Micky Smith não é apenas uma das herdeiras mais ricas da América: é também uma hippy convicta, que como tal se comporta, à margem de todas as normas convencionais. Talvez por isso, nada lhe custou aceitar o casamento com Michel de Villecroze, um jovem duma família nobre, mas arruinada. É um casamento sem amor, simples pretexto para a junção duma grande fortuna com um nome ilustre.
Os esponsais celebrar-se-ão na Cote d'Azur, no quadro duma recepção faustosa cujo esplendor faz lembrar as grandes festas da Corte. Também as bailarinas do Centro Internacional de Dança foram convidadas para prestar o concurso da sua arte. Infelizmente, Marie Soler, a melhor aluna do Centro, não poderá participar no espectáculo. Magoada num tornozelo, só lhe resta assistir...
A festa está para começar. Agitado por sentimentos contraditórios, Michel de Villecroze espera aquela que há-de ser sua mulher e que ele ainda não conhece. Mas Micky, a noiva, não aparece...
No Centro Internacional de Dança, em Cannes, no quarto das raparigas, nada mudara.
Um ano de vida em comum, mas cada "canto" instalado segundo o gosto de cada uma deixava adivinhar o seu temperamento. quarto funcional: camas, prateleiras, tábuas a servirem de mesa-secretária, quadros. A personalidade das suas ocupantes fazia dele uma espécie de caverna, um lugar discordante onde se amontoavam o essencial e o supérfluo.
As camas estreitas determinavam os seus territórios: patchwork matizado para Florentine, tecido indiano para Sarah, piqué branco para Marie. Colchas que podiam ter sido bandeiras. Para a primeira, a profusão das cores, dos gadgets, o que ela chamava os seus "zinzins", enquanto Sarah marcava as suas preferências pelo Oriente.
Em contraste, Marie impunha a limpeza, a simplicidade. Amava o branco e a sua cama estava impecável. No seu "canto", o que traía o seu carácter não estava lá por acaso. Os objectos raros, os livros, as fotografias, eram testemunhas duma profunda reflexão, dum gosto rigoroso.
Assim, a fotografia recortada dum jornal, sumariamente encaixilhada e pendurada na parede, não representava uma recordação, mas uma lição. A primeira grande lição que ela recebera da vida e que não queria esquecer: Galateia ou o Nascimento Duma Estrela. A primeira oportunidade, a glória adquirida, o acesso a todos os sonhos, a força em si próprio que faz acreditar na invencibilidade, o espírito de conquista -tudo isto natural porque desejado -, e nada, nada dessa felicidade antecipadamente gozada fora realizado. Nada.
Mas outra coisa surgira, e foram a decepção e o fracasso que fizeram nascer uma outra Marie. Na realidade, a estrela não nascera, mas a jovem existia, mais viva do que nunca. O drama não a diminuíra. Pelo contrário. Um ano depois, conseguia sorrir-se disso, e a ponta de amargura que sentia apenas servia para dar mais gosto a tudo o que estava para vir.
Contrariando os prognósticos, fora o destino quem decidira.
A jovem que fora privilegiada fora desapossada. Contrariando os augúrios, Marie não se revelara, o êxito não a coroara com os seus clarões sedutores. Duma esperança louca, de um período exaltado pela presença dum dançarino de génio e duma beleza selvagem, não restava senão essa fotografia que, uma noite, fora reproduzida em milhares de exemplares. Uma encantadora jovem, ou, melhor, uma adolescente-ela, Marie, dançando com o maior bailarino do mundo. Galateia... todo um programa... Mas, contrariamente à lenda, o criador não fora dominado pela sua criação. Indiferente, triunfante, Igor Andreiev partira de novo para o seu périplo da glória. Para Marie, o milagre não se dera. Em vez da estrela anunciada, houvera apenas uma aluna falível e desesperada-uma aluna que falhara, que deixara fugir a oportunidade e que julgara morrer de vergonha e desgosto por causa disso.
Estendida em cima da cama, com a perna direita erguida apoiada por uma cadeira posta ao contrário, Marie esperava Bardine.
Bardine era o feiticeiro, o curandeiro, o que conhecia as relações dos músculos com o esqueleto. Cinesioterapeuta emérito, muito mais do que dos PDG fatigados ou das mulheres preocupadas com a sua aparência, ele gostava dessa clientela de bailarinos, que pagava menos caro do que os outros, mas que, todavia, lhe dava profissionalmente as melhores satisfações.
Marie esperava-o com confiança. Embrulhada num xaile, estava ainda em fato de trabalho, de collants cor-de-rosa e maillot negro. Caíra durante a lição: uma queda má. Uma dor lancinante. Fora preciso levantá-la, ajudá-la a ir para o quarto. Ela receava alguma fractura ou rasgão. Mas Bardine ia livrá-la de dificuldades. Enquanto esperava, o que tinha a fazer era ficar calma e não fazer esforço.
Como de todas as vezes que se encontrava só e em qualquer lugar que fosse, Marie experimentava um misterioso bem-estar. Sentia em si como que uma doçura selvagem que renascia da liberdade incontrolada. O belo rosto tornava-se extraordinariamente grave. Uma outra Marie se revelava, e o que irradiava era o fogo duma profunda interioridade. Era isso mesmo que lhe dava tanto encanto. Um encanto no sentido mágico da palavra e que ninguém era capaz de analisar. Sozinha, ela encontrava uma outra inspiração, outro ritmo - os da rapariga invisível, aquela que se opunha a ela própria nos seus gostos e na sua maneira de viver.
Para se vencer, para se exprimir, para amar a vida, ela, a secreta, enveredara por um caminho onde o êxito exige que se "faça barulho". Fazer barulho, isto é vencer, impor-se, atrair a si os olhares e provocar as aclamações. Um caminho difícil. Era preciso lutar, possuir uma coragem a toda a prova, porque infelizes daqueles cuja vontade não é igual às suas ambições.
Marie vencera a primeira prova com grande alívio daqueles que a amavam e que tinham confiança nela. O seu carácter tinha-se afirmado, a sua coragem aumentado. Por muito frágil que parecesse, amava o combate. A sua vocação de bailarina, essa profissão que encarava sob o ângulo mais vasto - porque paralelamente continuava os seus estudos e trabalhava no teatro- correspondia a uma sede ardente de viver e a uma libertação secreta. Porque a verdadeira Marie, por muito aberta que parecesse com as outras, escutava mais do que falava.
Não fazia confidências, nunca se deixava arrastar por essas intermináveis tagarelices femininas onde a intimidade é violada, onde os sentimentos mais subtis são alterados pela linguagem. De facto, não se sentia ao mesmo nível das outras, mas sempre à margem, embora essa distância lhe deixasse uma impressão de desconforto. Por isso, por enquanto, fosse qual fosse a amizade que a ligava às suas companheiras, Marie aproveitava duma pausa. Tinha dores. Estava imobilizada, mas o seu pensamento ia e vinha e os seus olhos pousavam-se sobre as coisas que faziam nascer outros pensamentos.
Ela ouvia o eco das lições.
A música, aqui, era indissociável do esforço ou da interpretação e, quando a música se desvanecia, havia o recurso das percussões, das baterias, de um metrónomo. O fundo sonoro era a materialização de um ritmo interior, a sua prova e a sua necessidade. Trabalhava-se no Centro a todos os níveis, de todas as maneiras. O Centro era a colmeia, o lar ponto de encontro e de partida, simultaneamente. Marjorie Brooks, aquela a quem chamavam Madame, em sinal de dedicação e respeito, julgava, dirigia, adoptava e perdia sucessivamente essas crianças às quais procurava insuflar o amor da arte e a paixão do esforço, quase do excesso. Dançar é vencer vencer-se. Quantas derrotas. Quantas desistências...
Mas havia também talentos, vitórias, caracteres. A dança aperfeiçoava-as e Madame, que brilhara no mais alto do céu das estrelas, mantinha e transmitia na sua escola o fogo sagrado que continuava a animá-la. Madame era o modelo, Madame era o ídolo. Um ídolo provisório, sabia-o. Mas, enquanto possuísse esse poder, fazia tudo para que ele fosse benéfico.
Graças a ela, algumas alunas viviam grandes e puros amores. O trabalho, os encorajamentos e a confiança de Madame marcavam-lhe o objectivo. Depois... Depois haveria a vida, o afastamento, a dispersão e demasiadas vezes o esquecimento.
Marie jurava a si própria jamais esquecer Madame. Sarah exaltava- se. Florentine jurava também, mas sem paixão, porque não estava para se cansar. Admirar Madame! Normal! Não a esquecer! Lógico!
Florentine não procurava ir além dos seus actos, nem dos seus sentimentos. E, se adorava Marie, era talvez "porque não a compreendia", sem no entanto procurar compreendê-la. Ela admitia-o, e agora entre elas, ou, antes, com elas, havia Sarah.
Passara um ano, e nem uma nuvem. Uma rapariga formidável, Sarah. Podia ter-lhes aparecido uma maluca, ou uma maçadora, e o encanto do quarto teria sido quebrado. Pelo contrário. Porque, para Florentine, o quarto era um lugar privilegiado e, para Sarah, a mesma coisa.
Marie não ousava dizer que às vezes se sentia sufocar. Mas para Sarah essse espaço reduzido concretizava a sua necessidade de presença, o seu desejo de fraternidade e de confraternização. Para Florentine era " catita" encontrar-se lá, discutir lá e dormir lá em companhia de Marie e dessa americana de generosidade e de boa vontade embaraçosas. "Extravagante", essa riquíssima herdeira que trabalhava mais do que as outras e que, "desdenhando" as grandes celebridades, se vestia na Dorothée Bis ou no Prisu!
No Centro, Sarah regozijava- se, feliz por ter permanecido fiel à sua promessa de rapariga.
Quando duma representação onde Nova Iorque em peso aclamava Marjorie Brooks, que brilhava intensamente com os seus últimos fulgores, Sarah ficara subjugada, espantada, iluminada. Ela descobria um mundo, a estrela indicava a pista, abria o caminho. Esse caminho triunfal que parecia partir da cena misteriosa e dourada e que de facto é preciso percorrer às avessas. Partir da sombra para chegar lá, nessa luz em que a dança transcendia a vida graças a uma intérprete inspirada.
Alguns anos mais tarde, Sarah conseguira vir juntar-se a Marjorie Brooks e agora alimentava uma suprema ambição. Triunfar para arrancar ao pai os meios de fundar uma companhia e oferecer a direcção da mesma a Madame. Era o dote que desejava, um dote propício a outras núpcias diferentes daquelas por que sua mãe ansiava. Núpcias, ou, melhor, uma aliança. O poder do dinheiro reforçado. Sarah nunca cairia nessa armadilha. O dinheiro podia ser um meio, mas em caso nenhum devia ser um fim.
Sarah estava em oposição com a mãe, que continuava imbuída da sua fortuna, persuadida de que o dinheiro era um título de nobreza e que a mantinha livre de tudo. Embora soubesse pagar, a bela Sr.a Green não sabia dar. Ao contrário da sua incompreensível filha, que herdara uma alma de pioneira do Far-West e que, por instinto, sabia que nada é certo. Se concretizasse os seus sonhos, se a sua companhia viesse a existir, podia fazer viver bailarinos, pintores, músicos. Generosa e ingénua, Sarah tinha tendência para considerar o mecenato como uma empresa do Exército de Salvação. Sim, uma rapariga formidável.
Se, nessa noite, Marie não pudesse dançar, Sarah ficaria decepcionada. O Centro tinha de participar num serão mundano, uns faustosos esponsais. Graças às suas relações -a noiva era prima de Sarah -, esta conseguira para o Centro um contrato que o faria participar na festa. Um contrato excepcional, uma pechincha para as jovens bailarinas, que tanta dificuldade têm sempre em reunir os dois fins.
Ensaiavam há várias semanas.
Então, alguma fractura?
Vivamente, por reflexo, a rapariga esconjurou dando três pancadinhas na madeira:
Espero que não.
Bardine irrompia pelo quarto e avançava familiarmente.
"Conta lá como é que as coisas se passaram. i E o massagista examinava já o tornozelo, enquanto Marie explicava marcandoH com as mãos os exercícios que haviam precedido a queda:
Foi ao fazer o enveloppé, enveloppé, détourné e fouetté, fouetté.
Bardine apalpava o pé magoado.
Deves ter abrandado os rins. Nunca os comprimes o suficiente.
- Ai!
- Estou a fazer-te assim tanto doer?
- Oh, sim!
- E assim? "
Marie gritou com força:
Ai!
- Isto não é nada: um pequeno entorse. Quanto a dar às pernas, zero durante dois ou três dias. "
Marie já desconfiava, mas o diagnóstico decepcionou-a. Suspirava.
É aborrecido por causa desta noite.
-Com certeza, tens quem te substitua. Vou ordenar que te levem ao radiologista. É uma precaução: tenho medo duma diástase.
- Uma diástase? Que é isso?
-É quando o peróneo e a tíbia têm tendência para se afastar da base depois dum entorse, por exemplo. "
Marie manifestou uma verdadeira inquietação.
Não é razão para ficares transtornada. Estou a exagerar para que compreendas. Os ligamentos ras garam, ou pelo menos estão distendidos. Vamos fortalecê-los. "
Erguera Marie e, nos seus braços, levava-a para um compartimento contíguo, onde fez esguichar um jacto de água sobre o tornozelo doente, enquanto ia continuando os seus comentários:
Está fria, hem? Tanto melhor. É assim que se tratam os puros-sangue depois das corridas. Dentro de alguns dias poderás ganharo Grand Prix. "
Depois, reconduziu a estropiada para o quarto. Espalhou um bálsamo sobre o tornozelo, envolveu-o numa ligadura e recomendou a Marie que fosse prudente. Voltaria ao fim do dia, quando já tivessem o resultado da radiografia.
Mal o massagista saiu, a porta voltou a abrir-se.
Florentine vinha saber notícias. O ensaio terminara. uma colega tomara o lugar de Marie.
Marie encolheu os ombros: Ela poderá ocupar o meu lugar.
- É absurdo se não puderes dançar esta noite.
- Sim, é absurdo, mas não é uma tragédia. " As raparigas olharam- se, e nesse olhar trocado alguma coisa renascia: um acontecimento, uma recordação. Marie insistiu, porque nunca pretendia evitar um assunto tabu:
"Não é como com Galateia. "
E esboçou um sorriso, porque Florentine desviava bruscamente a cabeça, como se tivesse sido ela a culpada. Durante alguns segundos, os seus olhares pousaram-se sobre a fotografia que a ambas testemunhava uma aventura memorável. Fotografia-promessa, publicidade antes de tempo, anúncio prematuro duma jovem glória. Marie resplandecia no papel de jornal, sustida por Andreiev, o Magnífico, num encantador arabesco... Mas fora Florentine quem dançara. Fora Florentine quem interpretara o papel de Galateia. Fora ela quem arrebatara o êxito.
A mais cruel das provas para uma amizade até então sem nuvens. Florentine fora a substituta de Marie. Um pequeno personagem na sombra, e eis que a substituta tomara o primeiro plano, eclipsando a titular. Uma sorte de prestidigitação, um passo mal dado, e a confiança concedida à mais favorecida foi outra - a sua melhor amiga, uma irmã - que dela beneficiou. Um "bambúrrio", para falar a linguagem dos bastidores, isto é, da forma mais imprevista e arriscada.
Para Marie, esta substituição, que ela considerava como um drama, marcara o fim da sua infância, o fim daquele tempo feliz em que as esperanças loucas confundiam a lucidez e falseavam a razão. Não acabara ela por aprender à sua custa que a vida é maravilhosa, mas que é preciso desconfiar dela? Que não só "é preciso ter a sorte de ter talento, mas também o talento de ter sorte".
Desta reflexão admirável de um grande músico que tão infeliz foi tirava Marie a moral da lição que a vida lhe infligira. Quanto a Florentine, não sentia o mínimo orgulho pela sua proeza. Salvara a situação, é esse o papel dos duplos. Com a mão no coração, soberbo e senhorial, Igor Andreiev dissera-lhe que nunca a esqueceria. A rapariga, que se julgava filósofa, quase não contava com a promessa dele. Ver-se-ia.
Igor Andreiev partira. Os jornais relatavam os seus êxitos, os seus projectos, mas para os alunos do Centro, que tinham podido viver durante algumas semanas na sua esteira mágica, ele tornara-se uma estrela longínqua, quase uma, abstracção. Uma imagem brilhante e desencarnada que, para além da sua fama, não tinha mais nada em comum com o homem, ele, esse bailarino excepcional que fizera trabalhar os alunos, que trabalhara com eles na dura nudez das aulas, onde a lição quotidiana é a hora da verdade. Tão aplicado como um principiante, obstinado, tão implacável com ele próprio como com os outros. Um personagem fora de série.
Atento à descoberta do valor, aos indivíduos de raça, ele distinguira Marie. Não teria ela ficado subjugada por esse deus da dança ter podido deitar os olhos sobre ela, por ter querido erguê-la até ele, mesmo pelo espaço duma noite? Como poderia ela não ter confundido a atenção dum mestre com a de Berlioz.
Um amante? - com a palavra limitada ao seu sentido mais puro, isto é, aquele que ama.
Sim, agora ela troçava de si própria, sorrindo da adolescente pueril que fora transformando em zombaria esses arrebatamentos apaixonados que infelizmente a tinham desviado do único fim desejado por Igor e que devia ter sido o seu: o êxito da sua obra com a intérprete que ele escolhera entre todas.
A amizade das raparigas não fora alterada, o que provava a qualidade dos seus caracteres. Florentine ficara persuadida de que a sua amiga era "alguém" e que havia de encontrar as oportunidades que Lhe eram devidas. A única coisa que lhe censurava era essa vontade de não querer esquecer, e Sarah partilhava com ela o desejo de rasgar a fotografia emoldurada no quarto, por cima do leito virginal, como uma acusação.
De tempos a tempos, Florentine não podia reter uma reflexão que, à sua maneira, traduzia o seu pensamento: se Marie fosse uma freira, traria um cilício.
Deixa-te viver", gritara ela orgulhosa como uma advertência.
Mas era também por causa destas singularidades que ela gostava de Marie e que toda a gente se submetia à sua sedução, que não era apenas por causa dum rosto e dum ar perfeitamente encantadores.
De há um ano a esta parte que Marie parecia não viver senão para a sua profissão, enriquecendo-se com leituras, pesquisas, estudos. para o seu bacharlato. Mas as preocupações esseenciais das raparigas da sua idade, os assuntos do coração e dos sentidos, parecem continuar estranhos para ela, como que reservados a uma espécie da qual não fazia parte.
O amor... Nunca falava dele e esquivava-se até a qualquer conversa relativa a esse assunto. No Cen tro, a história de Igor Andreiev era considerada como uma criancice e, aos olhos das colegas, Marie Soler continuava a ser uma garota. Porque, para além da dança, que era aqui a paixão comum a todos, para todos o amor continuava a ser problema maior, o sal da vida.
Sobre esse ponto, Marie, que progredia em tudo, parecia paralisada. Era a Bela Adormecida no bosque.
Alguns pensavam que ela não se curara dos seus amores infantis e que era talvez a sério que amava o meteoro que chocara com a sua vida. Enganavam-se. Marie desejava estar disponível.
Incorrigível nas suas aspirações, se tinha de encontrar o amor, tinha de ser um grande amor: definitivo, absoluto, para sempre. Desejava que tudo fosse grande, e, no entanto, em tóda a parte se demonstra que os grandes amores são frágeis, impossíveis, a não ser que se morra antes que o tempo os mate. Marie estava convencida de que nunca mais amaria e julgava-se intangível: tinha dezoito anos.
A sua felicidade era poder voltar para junto da mãe, quando a escolaridade o permitisse. Mais do que nunca, amava a sua aldeia, a pequena propriedade que a mãe geria numa liberdade absoluta.
Em Grimaud, era o regresso à natureza. Sim, a natureza, as suas origens marinhas e vegetais, os bosques e os prados, os climas, esse clima da Provença onde o sol reinava. E depois os cavalos, os cães e o gato, que era o seu príncipe. Em Grimaud, tornava a encontrar esse domínio secreto ao qual se entregava sem reserva.
Mas Serge não voltara. Para ele, também o drama de Galateia marcara uma etapa. E para ele, também, a infância soçobrara ao primeiro desgosto. Tantos anos passados a crescer, animados pelo mesmo coração, iluminados pelos mesmos olhos. O rflexo e o complemento, os gostos e a partilha. Marie, a irmãzinha, a companheira, a mana, para não usar dizer ainda " o meu anjo, o meu tudo, o meu eu".
A aparição dum ídolo, uma rapariga deslumbrada, e Serge descobrira o ciúme, o desencantamento. Em lugar daquela de quem julgava tudo conhecer, uma desconhecida. Uma mulher, uma inimiga. Passada a crise, e por razões diferentes, como Marie, Serge fizera boa figura. E, como ela, fazia tábua rasa de toda a sentimentalidade. Marie não era a finalidade no mundo e raparigas era o que não faltava na terra! Mas adeus, infância. Era preciso não cultivar a nostalgia do verde paraíso que a maturidade interdita para sempre.
Aparentemente, tinham voltado a ser bons amigos. Serge, encorajado por Madame, que favorecia os seus dotes inventivos, começava a imaginar ballets, a compor coreografias. Era pela dança que ele se queria exprimir, e, se Marie se tornava para ele uma intérprete indispensável, era apenas uma exigência do ofício. Pelo menos, Serge assim podia pensar ao associar a jovem já não aos seus sonhos, mas aos seus esforços.
Enquanto continuava deitada à espera que a viessem buscar para a conduzirem ao radiologista, Marie apalpava a perna desnudada.
Os cuidados de Bardine tinham-na aliviado. Movia o joelho, a anca. Não, não devia ser grave. A ligadura branca que apertava o tornozelo fazia sobressair a sua pele cor de âmbar.
Florentine não tinha razão nenhuma para se lamentar por uma noite perdida enquanto mudava de trajo, atirando para o lado o maillot e as sapatilhas, para ir tomar um banho.
Preparava os rolos para a mise que Marie lhe queria fazer na cabeça. E tinha tirado do guarda- roupa o vestido de gala, um vestido folclórico, todo de renda com lantejoulas, guarnecido de musselina e folhos. Nada que se pudesse chamar elegância, segundo um Balanciaga. Mas o famoso costureiro estava morto, e a moda, tendo erguido a imaginação au poder, tinha mais força do que nunca.
Sempre em movimento, Florentine repetia entre diversas considerações de toda a espécie:
"Pobre Marie! Apesar de tudo, não se pode dizer que esteja em maré de sorte, e logo agora, que há uma saída. "
Para os bailarinos, uma representação em casa de pessoas da alta-roda ê sempre um acontecimento secundário, onde se faz sempre o melhor que se pode, certamente, mas com alguma condescendência, porque nessas festividades os artistas são apenas divertimentos.
A recepção, oferecida pela Sr. de Villecroze em honra dos esponsais do filho e da prima de Sarah, anunciava-se como o atractivo da temporada. Convidados prestigiosos, nomes, fortunas. Depois do espetáculo haveria baile, ceia. Graças a Sarah, os bailarinos estavam convidados. Nessa noite, todas as raparigas iam vestir-se de ponto em branco.
"Se puderes vir, vais ter oportunidade de brincares às gatas borralheiras. Vou preparar o teu vestido. "
Florentine pegou no vestido de Marie e estendeu-o em cima da sua cama, ao lado do dela. Um autêntico vestido de rapariga, um vestido de outrora, como os que usavam as nossas bisavós quando eram também meninas em flor e postos agora outra vez em moda pelas de hoje.
"Aproveita a ocasião, desta vez podes assistir ao espectáculo sem te fatigares.
- Embaraça-me ser convidada se não danço.
-Sarah vai ficar contrariada com as tuas manias. De qualquer modo, ninguém reparará em ti. Parece que vai ser uma loucura de gente. Se tu dançares ou não, qual será a diferença?
-Quando mais não seja, há uma: vou perder o meu cachet.
-Se soubermos fazer as coisas, talvez o consigas. Sarah diz que ela é faustosamente rica, a marquesa, faustosamente. Então, não se deve importunar com isso, e, além disso, foi um acidente de trabalho. "
Persuadida da eficácia dos sindicatos e da assistência social, aos quais, finalmente, a dança está adstrita, Florentine enumerou as razões que deviam incitar os responsáveis da festa a indemnizar aqueles que trabalhavam para a embelezar. Chegou mesmo a decretar que era por culpa do jovem marquês que Marie estivera em riscos de partir "a pata". Porque é que não havia de se casar, como toda a gente, sem aquele barulho todo. Há sempr riscos, faça-se o que se fizer, sobretudo se as pessoas se querem casar...
Florentine não parava de falar, encadeando as suas ideias e as suas reflexões com uma lógica que lhe era muito pessoal e com a qual era a primeira a divertir-se... Os riscos que o noivo corria... porque, segundo Sarah, o futura era "qualquer coisa", sem que quisesse precisar melhor a apreciação que fazia sobre a prima.
Chamava-se Micky, a prima, e, graças ao seu casamento, anunciado como um acontecimento na
corte do Grande Século, os pequenos bailarinos do Centro iam ganhar numa noite o que a Ópera não pagava em oito dias.
Marie quase não escutava a amiga. Estava habituada a estas intermináveis tagarelices que Florentine fazia a propósito de tudo e de nada. O que ela escutava era uma música, uma música que vinha de um grande estúdio e que, se bem que abafada, invadia o quarto. Era o pianista do Centro, que, liberto dos eternos exercícios, se lançavam numa interpretação de virtuose e tocava a Valsa de Weber.
Se Marie estava habituada à tagarelice de Florentine, esta estava habituada aos silêncios de Marie, às suas "ausências". Por sua vez, prestou atenção.
" Estás a ouvir, Marie?
-Com certeza... É Sarah... Repete O Espectro com Cyril. "
As duas raparigas podiam imaginar sem dificuldade, seguindo o piano, o célebre pas de deux. Um clássico e, mais ainda, uma lenda, a qual fazia sobreviver um bailarino de génio. Não acabava Béjart de lhe prestar uma brilhante homenagem? Nijinski - aquele que soubera voar da Terra e que se afundara na loucura- criara essa valsa, que um poeta adaptara a um argumento romântico: O Espectro da Rosa.
Sob o argumento transparecia o tema eterno. O sonho das raparigas: isto é o amor. O espectro saltitante, sínbolo da força e da virilidade, representa o jovem, o príncipe encantador, ao qual as raparigas se abandonam de olhos fechados. Dança de sonho, dança de amor. Um ballet que é um longo pas de deux. O homem e a mulher. Ele e ela, movidos por um sortilégio que resulta da vida: o encontro, a separação, a saudade.
Eu bem gostaria de dançar O Espectro", dizia Florentine. "Não é difícil, é apenas deixarmo-nos conduzir. É o bailarino que faz tudo.
- É verdade. Para a rapariga não é difícil, mas é outra coisa. Não se trata somente de dançar... É preciso representar, sobretudo... É como uma comédia de Musset. "
Marie não dissociava, como a maioria das bailarinas, a dança das outras formas de expressão. Aliás, no Centro, Madame esforçava-se por lhes inculcar uma cultura geral e queria que a profissão que elas tinham escolhido fosse uma abertura para o mundo, que lhes pudesse permitir uvoltarem-se para outro lado".
Esta perspectiva geral e inteligente convinha às aspirações de Marie. Sentia tantas forças em si, não apenas esperanças, mas forças, possibilidades. Odiava a mediocridade e era ainda demasiado jovem para apreciar as pequenas felicidades. O que ela desejava eram as grandes alegrias, como a criança d'O Pássaro Azul. Ou tudo ou nada. Queria fazer alguma coisa e qualquer coisa de bem. O melhor em vez do pior.
Não era apenas o prazer da dança pura, a felicidade do movimento sublimado, do ritmo inefável, que ela procurava no trabalho, mas sim outras dimensões, outras orientações. É verdade que era brilhante nos cursos de arte dramática, onde adorava interpretar Pirandello ou Musset, Strindberg ou lbsen.
A sua voz surpreendida, simultaneamente jovem e grave. Uma voz emocionante que prolongava o sentido das palavras, enquanto os bailarinos se esquecem de "colocar" a voz como "colocam os pés e que, paradoxalmente, esses campeões do fôlego têm vozes brancas, como que destimbradas.
Florentine cantarolava e esboçava a variação célebre que Sarah repetia lá em cima.
"Isto vai ser um êxito. O Espectro é como os velhos truques, agradam sempre.
No espírito de Florentine, "os velhos truques" eram, está-se mesmo a ver, Gisela, O Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida. Enfim, obras que pareciam bem longe das fantasias de um Nikolais, de um Cunningham ou da mestria de um Béjart.
Nessa noite, os convidados da marquesa não seriam defraudados. Um programa de gala com a reconstituição das danças da corte para a apresentação dos noivos. Ah, sim, e deviam também dançar! Porque os seus esponsais deviam apresentar-se como outrora, quando um grande casamento dava à corte ocasião para divertimentos e festas. Uma comédia-ballet como no tempo do Rei Sol.
na Provença, far-se-ia a compasso e o sarau ressuscitaria o famoso Triunfo do Amor, no qual a rainha e as damas de alta qualidade não tinham receio de rivalizar com as profissionais. Pavanas, danças ao toque de tamboril, canárias, chacóinas, correntes, danças dum passado findo para sempre que os alunos do Centro, já habituados à modern-dance e às acrobacias, se divertiam a trabalhar.
O programa previa igualmente o contraponto dessas coreografias ancestrais e, a partir duma partitura, os dançarinos podiam demonstrar como disto nascera aquilo, um ballet concebido como uma mecânica divertida e acelerada, mantida por acentos sincopados.
Suzanne Leroy entrou no quarto. Vinha buscar Marie para a levar ao radiologista. Florentine saltou-lhe ao pescoço:
"Suzanne, diz a Marie que ela pode acompanhar-nos esta noite. Diz-lhe tu. Ela não vai perder aquilo! Os esponsais do século! Mais divertido do que na corte de Inglaterra! E entretanto arranja lá as coisas para que Marie não perca o seu cachet. Foi um acidente de trabalho. "
Suzanne Leroy estava habituada às demonstrações de Florentine. Claro, pois com certeza que ia fazer o melhor que pudesse. Mas primeiro a radiografia. Era preciso ter a certeza de que não havia nem rasgão, nem nada rachado. Quanto à festa, depois se veria, e, mesmo que Marie não assistisse, isso seria o menor dos males.
"Oh! és uma filósofa", decretou Florentine. A "filósofa", uma mulher morena, bela e grande, ocupava no Centro um lugar de primacial importância, e as suas responsabilidades eram múltiplas. Simultaneamente professora de História de Arte e assistente de Madame, a quem dedicava uma admiração e um afecto absolutos, era ao mesmo tempo a amiga das alunas, que não se embaraçavam por a tratar por tu. Suzanne Leroy abandonara toda a vida pessoal pela do Centro, seduzida pela personali dade de Marjorie, pelo ambiente, pela obra que aí se realizava, pela existência que lá se levava, e onde o trabalho mais árduo era sempre acompanhado de fantasia. Ela dizia de si própria que era um bocado " telhuda".
Na verdade, escolhera viver sem se preocupar com uma situação que lhe garantisse assistência social e reforma assegurada. Tendo escolhido à sua maneira a liberdade, de fazer o que lhe agradava, suportava-lhe todas as servidões e entregava-se sem limites à missão a que se dedicara.
Marie vestira-se à pressa. O tornozelo, ligado solidamente por Bardine, parecia que lhe doía menos. Seguiu Suzanne coxeando. Nas escadas, cruzou-se com Serge e outros rapazes, que lhe propuseram fazer uma cadeirinha, cruzando as mãos e dizendo:
"A carruagem da senhora espera-a. "
Marie recusou, rindo, pois antes queria caminhar com precaução do que ser transportada pelos companheiros.
Todavia, Serge acompanhou-a até ao carro. Achava que Marie coxeava com arte e já concebia a idéia de fazer uma dança em que aproveitasse este acidental infortúnio.
É de tarde. Em breve serão cinco horas, e a marquesa dá o exemplo. Como todas as manhãs, montou Mektoub, o seu cavalo favorito, e nem sequer teve tempo de mudar o trajo de amazona, que aliás lhe fica a matar. Incrivelmente jovem, duma vitalidade que nada consegue travar, requintada em extremo, Anne de Villecroze é uma pessoa fora do comum. Não tanto pelo seu nascimento, mas pela sua personalidade. Pratica o cinismo com elegância, a elegância com desenvoltura e a desenvoltura com esse sentido infalível que lhe indica o limite além do qual se não deve passar.
Decorador, músicos, alcatifadores, jardineiros
- uma horda - cercam-na numa azáfama provocada pela febre da última hora.
De mãos enluvadas, armada dum martelo, de pregos pequenos cerrados entre os dentes, a marquesa não receia subir escadas para franzir à sua vontade uma tapeçaria ou prender uma grinalda. De camisa aberta, mangas arregaçadas, cabelo em desalinho, dá ordens, vigia, verifica, dirige a encenação - e respira a plenos pulmões a atmosfera de desordem que, normalmente, deve preceder a ordem da batalha que pretende ganhar essa noite.
Seja o que for que dele venha a resultar, o sarau será extraordinariamente brilhante. Naturalmente pródiga e faustosa, a marquesa queria que as suas prodigalidades e o seu fausto fossem puros-isto é, sem outra finalidade além da do prazer. Mas, nessa noite, Anne de Villecroze põe em prática uma fórmula que julga bem plebéia: semear para colher. Não se trata de seduzir Paris, A vida mundana dos Villecroze conheceu todos os triunfos. Ser convidado para sua casa é uma honra, uma consagração. O seu crédito é ilimitado, mas o crédito não é a fortuna. Nessa noite, a marquesa vai servir-se desse crédito que os arruina. Nessa noite, é preciso seduzir um coração. A Sr.a de Villecroze sorri: a palavra é bastante elegante para mascarar alguns milhões de dólares. E é preciso viver...
Aqui, tudo respira a riqueza, o luxo. A propriedade é soberba. Uma "loucura" construída no princípio do século por um antepassado que, apaixonado pelo mar, abandonara o castelo ancestral perdido no interior das terras. A "vila" evoca as grandes habitações florentinas. Aí se acumularam tesouros, colecções. Um museu onde é agradável viver, uma vida ainda reservada a alguns privilegiados. Uma vida condenada pelas grandes correntes sociais, mas cuja beleza é recuperável para alguns grupos, para algumas comunidades. A toda a volta: a paisagem, uma natureza sumptuosa de azul e de luz. Uma sucessão de jardins, maravilhas vegetais, lagos, o espelhar das águas.
No centro do parque, que forma um cenário natural com as suas estátuas, as suas fontes e os seus arvoredos, ergueu-se um teatro de verdura, à maneira de Bérain. No palco, personagens evoluem ao ritmo duma música antiga. Um ballet da corte, no qual os convidados ficam encantados por participar ao lado dos profissionais.
Um mestre de dança dirige-os com ares de mestre-de-cerimónias. A própria marquesa fará uma "entrada" como antigamente os reis e as rainhas entravam nas danças.
De momento, Anne de Villecroze fez uma pausa, enfim, para olhar e comentar o ensaio. Junto dela, um personagem simultaneamente familiar e respeitável. É Nazaire, o mordomo. Na sua família têm-se mantido ao serviço dos Villecroze de pais para filhos, e não se queixam por isso.
Entre os intérpretes um jovem se destaca no meio dos outros que se mantêm à distância. Dança, gira, cumprimenta, como se uma parceira estivesse ao seu lado. Mas se o herói da festa está presente, da heroína não há o mínimo vestígio, e a sua ausência impacienta a marquesa. O atraso da futura noiva torna-se injustificável e o espectáculo exige uma preparação cuidada. Para Anne de Villecroze, esse sarau é uma ópera: é preciso que "role", como se diz no teatro.
Nazaire tenta tranqüilizá-la. Os Smith chegaram. O Valrosa, um magnífico veleiro de casco negro e laçado, foi assinalado no porto. A menina Smith não tardaria, e, enquanto espera, Michel desembaraça-se muito bem sem ela. Mas a Sr.a de Villecroze observa que, se Nazaire aprecia os espíritos, ela preferiria, quanto a si, ver finalmente a prometida em carne e osso.
Entretanto, Michel continua a dançar, uma dança que é meio pantomima, encontro, apresentação, declaração. Oferece-se a mão e dá-se o coração. É o triunfo do amor.
"Nos seus esponsais, o meu bisavô François dançou este bailado ao lado do rei.
- Será o mesmo com o Sr. Michel esta noite", disse Nazaire.
A marquesa riu: "com uma diferença, é que o Rei Sol será substituído pelo rei da carne de vaca.
-Ouvi dizer à Sr. a Marquesa que era a fortuna que fazia os príncipes. "
A marquesa riu um pouco mais:
"Certamente... Se exceptuarmos as nossas virtudes, nós, os nobres, somos apenas salteadores cobertos de glória. Foi Santo Agostinho quem o disse. "
Enquanto ela falava, uma mulher nova aproximou-se com uma certa familiaridade. Era Géraldine Dupuy. Sempre bela, cada vez mais desenvolta. A vida corre-lhe bem. O jornalismo, a televisão... À vontade em toda a parte, curiosa de tudo. Ouviu a Sr.a de Villecroze definir a sua casta e repete o essencial:
"Sem virtude... apenas salteadores cobertos de glória! Essa definição agrada-me infinitamente. De que lado fica você?"
Embora irresistível, o sorriso de Anne de Villecroze é de recear porque está sempre cheio de ironia. E, bem entendido, a pergunta de Géraldine fá-la sorrir. Ela toma um ar falsamente perturbado:
"Minha pequena Géraldine, você é uma insolente... Mas é isso que me agrada em si. Adoro bater-me, mesmo por nada. Acaba de chegar de Paris? Não a esperávamos e não podia chegar em pior altura! "
Géraldine desculpa-se. Veio de propósito de Paris por causa dum filme que prepara com Michel e o trabalho é sagrado, não é verdade?
"E o casamento?, exclama a marquesa, divertida. Não é sagrado?
- Preciso de ver Michel. "
A marquesa aponta para o palco onde o jovem dança.
"Olhe para ele! Concorde que é soberbo, o meu filho! "
Suspira e acrescenta mais para si própria:
"Que pena! "
Géraldine aproveita para retomar o tom de brincadeira:
"E a senhora vai imolar aquela maravilha!
- É preciso viver! "
O mestre de dança interrompeu o ensaio. Fala em voz alta ao dirigir o seu pequeno mundo: "Obrigado, Michel. Serás divino! Se a tua noiva se parecer contigo, vocês farão estragos! "
Géraldine fixa o olhar na marquesa, que não se digna responder a isto, procurando uma reacção, como se as palavras pronunciadas pelo mestre de dança tivessem um duplo sentido. Mas Anne de Villecroze fica impassível.
Enquanto Michel salta do palco com um movimento desportivo, que nada tem a ver com as graças de outrora, o mestre de dança bate palmas:
"Meus filhos, meus filhos. Vamos recomeçar na entrada da noiva. Eu vou fazer de noiva. E tu, Marie Chantal, presta bem atenção, tu vais sempre atrás... segue a comitiva, vejamos, segue a comitiva... Olha. "
Executa o passo cantarolando e fazendo trejeitos, o que faz rir os bailarinos amadores, para quem Léonidas Godot é um amador de eleição...
O mestre de dança nada tem a ver com um mestre de ballet estilo Roland Petit ou Balanchine. É mais um public-relation de grande classe. Mais do que um criador, um traço de união entre a dança e os seus rigores e o belo mundo, as suas pompas e as suas obras. Ele é de todas as galas, de todas as mundanidades. Trata por tu "a Terra inteira", que ele faz rir mais pelo seu espírito do que pelo seu talento. Ferozmente em oposição aos modernos, só gosta do tutu, que ele próprio tanto gostaria de usar, as lengalengas vienenses e as variações de Minkus.
Léonidas Godot continua a marcação da participação mundana que tem a sorte de dirigir e sobre a qual se inserirá a dos verdadeiros bailarinos que, há alguns dias, pretendem ressuscitar Lulli ou Rameau sob a direcção de Madame.
A chegada de Géraldine surpreendeu Michel. Que se passa?
Rapidamente, Géraldine põe o jovem ao corrente do motivo que a trouxe. O dia foi sem dúvida mal escolhido, mas, no fim de contas, negócios são negócios, em Paris como aqui. E parece que Géraldine está a braços com um bom número de problemas, demasiados, pensa a marquesa, que escuta a jovem com a condescendência que se concede àquilo que não nos interessa de forma alguma. O cinema, o laboratório, a tiragem, a montagem, as cópias, o produtor, a "saída". Em boa verdade, não é o dia indicado!
Géraldine deve ter no mais secreto de si própria outras razões além desta. Razões fáceis de adivinhar, e Anne de Villecroze compreende muito bem os sentimentos dessa bela rapariga, que, oficialmente, partilha com Michel ambições de cineastas para melhor dissimular os anseios do seu coração. Mas entre compreender e admitir! Anne de Villecroze reprime um sorriso.
Géraldine e Michel formam o que se chama nos meios profissionais uma equipa, um tandem. Um tandem cheio de idéias e de esperanças. Porque não? Artistas, certamente. Tudo o que ela, Géraldine, quiser, na condição de não perturbar os projectos da marquesa - uma artista, ela também, no seu gênero - com histórias convencionais de sentimentos.
Concluindo, Géraldine, a quem a presença da Sr.a de Villecroze irrita um pouco, acrescenta:
"Em breve vou precisar de ti. "
Michel herdou da mãe o mesmo sorriso, a ironia. Uma maneira de falar como se nada tivesse na verdade importância. Um certo desapego de boas famílias, quase um certo dandismo em segundo grau. Responde:
"A nobreza impõe obrigações... Não posso estar em toda a parte ao mesmo tempo e hoje, como sabes, sacrifico-me à família. É um mau momento a passar.
- Que será seguido de muitos outros. Quando uma pessoa se casa, é para toda a vida.
Michel desata a rir:
"Idiota!... Precisamente o tempo de dar prazer a minha mãe. "
Géraldine vira-se para a marquesa:
"A senhora tem um filho de ouro!
-Meu Deus, não, o pobre querido! De outro modo, você pensa que... Mas a noiva, Géraldine, a noiva... de ouro maciço! "
Após esta sátira, a marquesa afasta-se, seguida de Nazaire. Quer percorrer uma última vez o parque, os salões. A iluminação fora bem colocada no sítio onde o crepúsculo começa a arroxear-se. A noite vai ser bela, o céu transparente. Os músicos arrumam os seus instrumentos e os bailarinos convidados vão descansar um pouco antes de se prepararem para a grande parada nocturna.
Sim, tudo está em ordem, e lá em cima, no seu quarto de vestir, um sumptuoso vestido da cor da noite espera Anne de Villecroze. As suas célebres jóias, jóias históricas, dormem ainda, vigiadas pela criada de quarto, nos seus escrínios de veludo e seda, onde estão gravados os brasões familiares.
Quando pensa nelas, um clarão brilha no orgulhoso olhar: quem poderia suspeitar que essas jóias não passam de imitações? As pérolas nacaradas ou cinzentas, os diamantes azuis, os rubis negros, foram vendidos. Sim, é preciso viver! E, como numa ópera, a recepção será apenas uma admirável aparência enganosa. Uma forma como qualquer outra de se divertir com o destino, de fazer boa cara contra a má sorte e jogar tudo para chamar de novo a fortuna.
Antes de entrar em casa, a marquesa agradece a Nazaire. Ela não tem segredos para ele, que conhece o maquinismo e os objectivos da festa.
"Tudo vai correr bem, minha senhora. E os convidados ensaiaram todos os seus papéis o mais seriamente possível.
- Todos, excepto os principais interessados! Gostava bem de ver o aspecto dessa pequena Smith antes de subir o pano.
- Tranquilize-se, minha senhora. A Menina Smith fez ballet, como todas as meninas de boa família. Para Michel, será uma brincadeira de crianças fazê-la acertar o passo. "
Nazaire morde os lábios, mas a Sr. a de Villecroze está longe de se formalizar... Pelo contrário... Gosta muito desse Nazaire, que adoptou o seu estilo. De novo o seu sorriso, a sua ostentação. Se tivesse de morrer, Anne de Villecroze pensa que valia mais fazê-lo em beleza.
Uma noiva de ouro maciço!...
"A tua mãe é cínica - disse Géraldine.
- A vida é dura", replica Michel, que continua: "Escolhi uma profissão que custa caro. Se pudesse desembaraçar-me com uma caneta ou um pincel! Mas é uma câmara que eu preciso... um instrumento de luxo. E a família está arruinada, minha querida, completamente arruinada. "
Géraldine não pode deixar de lançar um olhar eloqüente sobre o que os rodeia. Completamente! É na verdade a expressão que qualifica aparências que sugerem o oposto da ruína.
"E tu estás convencido de que esse casamento os salvará?
- É uma receita que já mostrou os seus resultados.
- Na nossa época?
- Precisamente! O casamento é uma instituição fora de moda, logo, sem importância. Mas tranquiliza-te: nada mudará entre nós e eu continuarei a fazer projectos contigo.
- Mas dormirás com ela. "
Michel sorri. Géraldine furtou-se ao gesto de amizade que ele lhe fazia. Ele responde:
"Sim, é isso, mais ou menos: dormirei com ela.
- Não tens vergonha! "
Michel recusa-se a falar a sério, sobretudo com essa bela jovem que se considera livre de todos os preconceitos e com a qual adoptou o estilo "camarada". Brinca:
"Estarás tu com idéias antiquadas? Uma rapariga como tu... Eu, que te considero como um chefe! "
O "chefe" sacode a bela cabeleira. Mas é preciso ser forte e imitar esse rapaz resignado não apenas a fazer boa cara, mas a portar-se à altura.
Géraldine segue o jovem, que arrasta para a "vila", ao apartamento de seu pai. Antes de aí entrar, ela retém-no, incapaz de se calar, como o jogo exige:
"Haveria qualquer coisa que pudesse impedir-te de cometer esta loucura?"
O rosto de Michel tornou-se grave e quase infantil, de tal modo reflecte uma profunda e insuspeita sinceridade. Se Géraldine quer a verdade, então
que a ouça. Sim, há uma coisa que podia impedi-lo de fazer essa loucura. "O quê?
- Uma coisa mais louca ainda: o amor." Michel olha bem a direito nos olhos de Géraldine, que não pestaneja. Que não haja equívocos entre eles:
"O amor! Tu!... "
Géraldine tenta rir.
"Estás a ver como é engraçado, hem! "
Mais uma vez, ela reage bem. Que ria ou finja rir, é igual. A regra do jogo é respeitada, e, entre eles, é isso que conta. O amor?... Já não se acredita nisso... Sim, uma loucura quando é preciso ser razoável para responder às exigências duma época que rejeita os sonhadores e que apaga as palavras para as substituir por algarismos. A sociedade de consumo, o bezerro de ouro ao qual é preciso sacrificar.
Entre Michel e Géraldine há uma espécie de desafio permanente que está na base das suas relações. Relações que eles querem sem ambigüidade, sem complicações. É um jogo. Associados? Certamente! Amigos? Porque não? A sentimentalidade não interessa e, se algumas vezes se encontram nos braços um do outro, é para terem algumas horas de prazer sem pensarem no dia seguinte.
Michel ligou-se a essa rapariga inteligente, de iniciativas felizes e ousadas, e tornou-se-lhe indispensável porque ela entrou no jogo com ele. Alguém com quem correr o risco, alguém com quem construir um êxito e transformar os sonhos em realidades. Parceiros duplamente combinados: Michel um belo rapaz, ela uma linda rapariga. Uma paixão comum: a expressão em imagens, cinema ou televisão.
Nos nossos dias, a câmara substitui a caneta e os jovens criadores desejam ser cineastas. É a ambição da juventude. É a sua única finalidade.
O primeiro filme de Michel, uma curta metragem apresentada durante o festival de cinema de jovens em Hyères, fora coroado por um júri presidido nesse ano por Géraldine Dupuy, jornalista perspicaz e temida. A partir desse encontro, Michel e Géraldine, à força de trocarem idéias, acabaram por partilhar o essencial da sua vida.
No trabalho, a sua união caminhava de vento em popa.
O escritório do marquês é um lugar estranho, simultaneamente estúdio e laboratório.
Uma pantalha, uma máquina de projectar, bobinas de filmes, uma mesa de montagem com o seu visor e as suas bandas sonoras-tinas montadas sobre rodas, por cima das quais estavam presos metros e metros de películas. O tesouro do marquês. Um tesouro oficialmente transformável em dinheiro - sem relação com a fortuna ancestral, delapidada sem preocupações, sem pensar no futuro, nem na mutação dos valores e dos privilégios.
No dia-a-dia, os Villecroze viveram como senhores, queimando os seus últimos cartuchos, virando deliberadamente as costas às realidades. Nessa noite seria o fogo-de-artifício final, o remate. O marquês deu carta branca à marquesa, que melhor do que ninguém conhece a arte de viver, e, como ela, pensa que, se é preciso morrer, então que seja em beleza, sacrificando cada um uma última vez aos seus gostos, ao atavismo duma raça que conta cruzados e paladinos.
Que a festa será bela, Alexis de Villecroze não o duvida. Que seja um êxito, isso já é outra história! Vamos a ver. Tudo depende duma menina de quem é preciso obter o consentimento.
Por enquanto, Alexis de Villecroze está ali, no seu "antro", cercado de acessórios e de aparelhos, instrumentos do seu sonho e da sua última escapada num mundo que percorreu com paixão. Porque para ele, o melhor da vida parou brutalmente, a cento e cinqüenta à hora, numa auto-estrada. Um milagre, pois que a morte o poupou. Salvaram-no, maltratado e condenado.
De pernas meio paralisadas, o Sr. de Villecroze é apenas um enfermo, um sobrevivente da estrada. Mas adeus grande aventura, essa busca empreendida pelo amor da etnologia e que o levava aos quatro cantos do mundo, fascinado pelo desconhecido e pela descoberta. Um sábio de quarto, um viajante daí em diante imóvel e com pouca esperança de cura.
Felizmente que há Michel. Gostos comuns que os conduzem a actividades se não semelhantes, pelo menos paralelas.
Como a maior parte dos cineastas, Michel começou por documentários. Os trabalhos do pai, o fruto das suas explorações, das suas pesquisas, a soma de documentos acumulados, no curso dessa caça ao conhecimento que o marquês fez sem prever jamais o perigo ou recear o destino, Michel pôde dar-lhes um prolongamento, uma utilização. O filme com as suas imagens animadas, ligadas ao sabor da montagem, não será ainda uma forma de correr a Terra, de caminhar ao lado dos seus mistérios, de descobrir os seus segredos?
A chegada de Géraldine provocou uma reunião de trabalho. Para o marquês, como para Michel, é um improviso, um verdadeiro divertimento, o grande trabalho que se prepara. Todos os três reunidos no estúdio como num refúgio, seguem na tela uma seqüência do filme que os preocupa. Apenas iluminados pela lâmpada da mesa de montagem, os seus rostos emergem da sombra. Verificação da tiragem da cópia, da banda sonora, que tem de ser sincronizada em função das imagens, imagens extraordinárias de danças rituais executadas por selvagens e trazidas pelo marquês quando duma das suas últimas expedições.
Manipulado por Michel, o filme pára, é montado de novo, recomeça. Personagens fantásticos que parecem nascidos duma imaginação delirante e que, todavia, são autênticos. Perucas, adereços, maquiIhagens extravagantes, pelo menos a nossos olhos, evocam a mais total barbaria, paradoxalmente aliada ao mais total requinte. Um outro mundo, uma outra civilização, outros costumes.
Géraldine fez o plano. O Sr. de Villecroze reviu o cenário, no qual cada plano é anotado, numerado face ao texto correspondente. Michel fez então a seqüência voltar para trás a toda a velocidade. Os gestos rigorosamente ao contrário, tal como o som perfeitamente invertido, o que nunca deixa surpreender e divertir os profanos.
"Papá, tu recomeças o texto a partir do 207. Atenção, vamos gravar. "
E, de novo, na tela branca, as cores resplandecem. Os personagens extraordinários, que agora têm pouca semelhança com homens, recomeçam a dançar, a cantar, atormentados por um tambor obsessionante.
"Estes homens continuaram na Idade da Pedra. São os últimos sobreviventes da pré-história. Se bem que a sua civilização esteja condenada, temos ali testemunhos dos seus faustos. Essa dança comemora uma vitória. Quando a tribo ia ser exterminada, os seus combatentes refugiaram-se numa clareira, donde saíram cobertos de lama. Ao vê-los, espantados, os inimigos fugiram.
-Vão lá entendê-los!... Quem são esses selvagens?"
É a Sr. a de Villecroze, que entrou durante a projecção, quem deste modo interrompe a gravação, apesar dos protestos da equipa. Resignado, Michel parou o projector, que deixa na tela a visão de criaturas fantásticas, imobilizadas num movimento grotesco e bestial. Géraldine voltou a acender a luz.
"Aqueles selvagens são papuas, minha querida, verdadeiros papuas", disse o marquês com tanta deferência como se anunciasse a rainha de Inglaterra.
E Michel pôs-se a declamar:
A pays de Papouasie J'ai rencontré Ia pouasie La grâce que je vous souhaite C'est de ríêtre pás papouète...
"É de Léon Paul Fargue, minha mãe. "
A Sr. a de Villecroze encolhe os ombros. Decididamente, nem o marido nem o filho são pessoas que se possa tomar a sério. Os Papuas e a poesia! Na verdade, não era o dia indicado para isso. Que prazer podiam eles encontrar em filmar aqueles homens?
com uma voz inocente, Michel diz que pode dedicar aquele filme à Menina Smith.
"Que belo presente de esponsais! ", exclama a marquesa.
Michel continua no mesmo tom:
"Não me disse que ela era uma adepta do regresso à natureza?
- Espero que não o seja a esse ponto! "
A Sr.a de Villecroze virou-se para o marido: "Alexis, por favor! Parem hoje de se divertir com essas criaturas de pesadelo.
- Preferias que me interessasse pelas ninfas?
- Entre ninfas e macacos!... "
O marquês replica: "Não são macacos, são homens. E nós, esta noite, não estaremos a fazer uma macaqueação?"
A marquesa não pôde deixar de rir ao replicar por sua vez: "De acordo, mas os meus macacos serão mais bonitos do que os vossos. "
Mateh nulo. O próprio marquês também riu. E Michel, tal como a mãe pensava há pouco a propósito dele e do pai, acha que os pais nunca serão pessoas que se pudessem tomar a sério. É assim que se julgam uns aos outros na família, com um certo sorriso, que não exclui a ternura - bem pelo contrário. O jovem adora os pais, que se teriam sentido maravilhosamente à vontade no século das luzes. A Sr. a de Villecroze teria sido amiga de Voltaire. O Sr. de Villecroze, de Buffon.
Anne e Alexis de Villecroze dão-se bem. Cada um tem os seus sonhos, mas, gostam de partilhar as suas vidas. Verdadeiramente casados para o melhor e o pior. Para eles, houve a guerra. A guerra aos dezasseis anos. Tanto para as famílias como para eles: a resistência, o alistamento militar. E o seu encontro na atmosfera duma sombria magia. O jovem em missão encontrando refúgio num castelo onde não parecia haver senão raparigas. Uma grande residência, Givraines, nas proximidades da linha de demarcação, porto dos resistentes e dos proscritos.
Fora recolhido lá uma noite, quando a Gestapo o perseguia, por uma rapariga autoritária e desenvolta que governa as irmãs e o domínio. Anne, Anne de Givraines, sempre vestida de amazona, mas que à noite envergava longas saias para se sentar ao piano. O importante era a aparência. Parecerem raparigas inocentes, ignorantes do perigo e dos dramas da ocupação. Enganar os vencedores do momento, modificá-los para os transformar nos vencidos de amanhã. A esperança.
Alexis ficara subjugado por essa encantadora Valquíria, como ela ficara seduzida por esse jovem capaz de afrontar todos os riscos e todos os perigos. Para a sua juventude, a guerra foi a aventura. E a vitória o direito à felicidade e ao prazer. Esqueceram-se apenas de envelhecer, de caminhar com o tempo, que marcha a passo acelerado.
Num mundo "em plena mutação", segundo os sociólogos, a fortuna dos Villecroze teria tido necessidade de um político ligado ao mundo dos negócios, e não de um diletante, duma mulher de cabeça, em vez de uma mulher de talento.
Hoje, Anne de Villecroze arrisca tudo. Ela não combinou esse casamento - de pleno acordo com os pais de Micky- senão para o bem geral. Para poder tratar o marido, para salvar o domínio ou o que dele resta, para "estabelecer" o filho, enfim, para poder manter os seus gostos rebeldes à pobreza. O pai e o filho estão reticentes, mas a necessidade faz lei.
"Já vão sendo horas de pensarem em se prepararem e de abandonarem esse filme de terror. É preciso pensar em coisas sérias. Os Smith chegaram. "
A este aviso, Michel finge lançar um grito de dor, o que faz a marquesa dizer, falsamente espantada:
"Palavra de honra, meu filho, dir-se-ia que tens medo! "
Michel estende a cabeça como um mártir:
"Eis o cordeiro.
-Mas é Micky que se vai esfolar. "
Géraldine não pode deixar de rir com o trio familiar.
A Sr.a de Villecroze continuou: "Esta noite, então, não te vais divertir? Eu, da tua idade, divertia-me com tudo. Aliás, divirto-me sempre.
- Bem se vê que não és tu quem vai casar com a herdeira!
-Tu não a conheces.
- Conheço-a de reputação.
- E depois? Micky é um idealista: e assim tem de ser. Despreza o dinheiro; ela to dará. Acredita na liberdade: ela ta deixará. Na América, ela é escandalosa. Aqui, tornar-se-á uma heroína.
- E a minha mulher dará assunto para a crônica mundana.
O marquês intervém.
"Vocês não vão agora discutir, já que estamos todos de acordo quanto aos princípios. "
Em coro, o filho e a mãe exclamam:
"Oh! os princípios!... "
E Anne continua:
"Concordem, em todo o caso, que essa rapariga não tem falta de idéias. Conseguiu impor-nos um baile de máscaras. É uma profissão de fé. Aliás, os hippies, porque ela é hippy - é preciso chamarmos as coisas pelo seu nome - não se vestem senão nos sótãos. Tudo o que estava posto de lado, eles põem na moda... Vocês não queriam que a pequena Smith, que está na vanguarda da juventude americana, aceitasse casar-se com um vestido de alta costura!... Isso seria bom para um burguês... Ela escolheu as anquinhas, as perucas, as reverências...
- Um verdadeiro carnaval... a festa.
- Do qual tu serás o herói. Ah! invejo-te!
- Se quiseres o papel de príncipe disfarçado...
- Meu filho, tu queres trabalhar, como o teu pai.
Seja. Mas vocês já perceberam que é preciso dinheiro quando se quer ganhá-lo. Pessoalmente, teria preferido que escolhesses a ociosidade. É na ociosidade que a inteligência se afirma. É preciso ser muito inteligente para saber não fazer nada..."
De novo, Anne de Villecroze se lançou nesses aforismos que profere com prazer, mas volta outra vez a tomar consciência da presença de Géraldine, que escuta sem manifestar a menor surpresa.
"Não devemos aborrecê-la, minha pobre Géraldine! Está sempre a ouvir-nos dizer a mesma coisa.
- Eu não me aborreço com isso, minha senhora. "
Anne sorri:
"Espero que será discreta. "
Géraldine replica que nunca escreveu para a imprensa sentimental.
"Eu sei... Você tem outras ambições... As do meu filho... E é assim tão apaixonante fazer um trabalho em comum?"
Sem se desmanchar, Géraldine responde:
"Mas com certeza que é apaixonante. E a prova é que o Sr. de Villecroze quis reunir-se à nossa equipa. "
Bem respondido! pensam Michel e o pai.
Anne de Villecroze sorri mais. Géraldine marcou um ponto e os outros divertem-se. Mas à Sr." de Villecroze não desagrada que cada um ouse jogar o seu jogo, da mesma maneira que não lhe desagrada que se arrisquem a fazer-lhe frente. Continua, prosseguindo a justificação das suas preocupações essenciais:
"Que é que vocês querem? Eu só sei viver à grande. A ruína não é uma doença mortal. Os Smith são maravilhas de eficácia. Vamos dar-nos muito bem. Os Americanos vão direitos ao fim. Eu gosto dessa direiteza. Vamos, Michel, vamos, sorri a essa noiva que esperamos como o Messias. "
Chocado pela expresssão, o marquês protestou. Anne, perante o seu olhar, retrata-se.
"Perdão, Alexis. Não pretendi blasfemar... Quero dizer que esperamos essa jovem com a maior simpatia.
- Há razão para isso", murmura Géraldine. Mas a marquesa ouviu e dirige-se a ela:
"Você agrada-me, minha pequena. Compreende as coisas, e os sentimentos não devem embaraçá-la.
- O menos possível.
- Bravo, você irá longe. Ele, pelo contrário -e designa Michel -, é sentimental.
- Não tanto como isso" -não pôde deixar de replicar Géraldine, que baixa de repente os olhos para evitar o olhar da Sr. a de Villecroze.
Impaciente e para mudar de assunto, Michel pôs de novo o filme em movimento. com mão autoritária, a mãe desliga a corrente. Por esta noite, basta de Papuas. É tempo de se irem arranjar, de irem cumprimentar os Smith e de repetir com Micky a ordem e as figuras do espectáculo. O que a marquesa não confessa é que o atraso dos Smith a perturba. Que fazem pois esses aliados providenciais e sobretudo que faz a prometida?
Anne de Villecroze sabe que a futura nora não é de fiar, e enquanto não tiver pronunciado o sim sacramental -é, aliás, tudo o que se lhe pede- a jovem Smith é muito capaz de fazer aquilo que vulgarmente se diz armar bronca.
A Sr.a de Villecroze, que conhece o seu mundo, não deixa de ter razão ao experimentar alguns receios, porque, nesse momento, os Smith arrancam os cabelos, o que é uma maneira de falar, porque, como boa americana, Mildred Smith, aconteça o que acontecer, está perfeitamente penteada, de cabelos assentes sob uma laça infalível.
Não resta dúvida de que o Valrosa fez a sua entrada no porto. O seu casco de ébano, os seus vinte e dois metros de comprimento, os seus três mastros, provocaram a admiração habitual. Um barco de sonho, o que não impede os seus felizes proprietários de viverem numa espécie de pesadelo: a filha não está presente.
Sem ser má, mas caprichosa, Micky, instável, muitas vezes perdida nas nuvens da marijuana, que fuma, oh! em pequeninas doses, de vez em quando desaparece da Terra.
John Smith pôs um detective privado no seu encalço, porque a jovem exigiu fazer a viagem à sua maneira. Está-se nas tintas para o Valrosa. O caminho que desde Chicago tem de percorrer para vir ter com o noivo prefere ela segui-lo à sua vontade, uma forma como outra qualquer de enterrar a sua vida de solteira. Porque ela está bem decidida a dizer "sim", para viver finalmente à sua vontade. A seus olhos, um marido não é um obstáculo, mas talvez uma comodidade. As teorias do Movimento de Libertação da Mulher trabalham na cabecita de Micky. Aliás, isso é tudo susceptível de trabalhar nela, porque está convencida de que é verdadeiramente agradável não fazer nada -nada excepto amar os amigos e as flores.
Para seu pai, que, nesse momento, anda dum lado para o outro no Valrosa perscrutando o horizonte
- ah! se Micky aparecesse! -, a fortuna não exclui a lógica das suas preocupações. O importante é passar a bola, como vulgarmente se diz, e o Sr. Smith percebe disso. Ora a filha não é um bom negócio: o melhor é desembaraçar-se dela e que alguém tome o seu lugar. Para isso não há como um marido, e Michel de Villecroze está de acordo. Os Smith dedicar-lhe-ão por isso um eterno reconhecimento. Aliás, Micky também consentiu, convencida de que apenas o casamento lhe pode garantir a liberdade de acção e de meios que ela exige.
Um jovem e belo marquês! Porque não? Uma habitação de príncipes! Vamos a isso! Esponsais como no Grande Século! Maravilha quando se pretende ser um pouco trotskista e se sorri à revolução, enquanto se aceitam as larguezas de daddy.
Pelo seu lado, a Sr. a Smith mandou chamar Sarah, sua sobrinha, ao Centro de Dança. Ah! como ela inveja a irmã por ter uma filha que se sabe onde encontrar e que não exigiu a sua liberdade senão para trabalhar como uma escrava! As raparigas de hoje sempre são muito engraçadas! Mas Sarah não sabe mais do que eles, e, de sua prima, nem rasto. Tudo o que ela pode dizer é que a Sr.a de Villecroze é "formidável", que o sarau será um "acontecimento" e que Michel é um amorzinho.
Um amorzinho!
Enfim, um tipo muito bem. Sarah está persuadida disso porque estabeleceu relações com os Villeroze e ficaram amigos. Para tranqüilizar a tia, Sarah explicou-lhe que Michel lhe agradava muito. Não demasiado, espera Mildred Smith, porque ela tem muito interesse por esse perfeito jovem que pode fazer a felicidade da filha e assegurar a tranqüilidade dos pais.
Entretanto. um personagem saltara para a ponte do Valrosa depois de ter sacrificado ao ritual: deixar os sapatos à porta, isto é, sobre a escada de acesso ao navio. Toda a gente sabe que os veleiros são para os navegadores o que os santuários japoneses são para os fiéis e que não se pode pisar o seu chão senão com os pés nus.
O personagem é o Sr. Barbin. Comissário da polícia reformado e presentemente detective, para não perder o hábito e tirar proveito das suas aptidões. Ao saltar para a ponte do Valrosa, vem trazer as últimas notícias. Nada famosas. Todavia, não está pessimista. Embora os seus clientes tenham perdido o rasto de Micky desde que partiram, que se tranqüilizem: ele, Barbin, encontrou-a.
A pergunta brota como um duplo grito:
"Mas onde, onde está ela?
- Em Paris. "
Os Smith lançam um olhar pela paisagem mediterrânica iluminada por um sol poente que incendeia o céu. O azul, a água azul-marinha e, como moldura do porto, as palmeiras e os toldos que se agitam sob um ligeiro mistral. Em Paris! Mas isso é um desastre. Dentro de três horas, o rodeo, perdão, o sarau, vai começar.
Não só Barbin não está pessimista como, pelo contrário, é o optimismo que o anima, mas, se quiser fazê-lo partilhar, é preciso que se explique. É o que ele faz com bastante volubilidade:
"Desde a vossa partida de Chicago que a Menina Smith tem vindo a caminhar. Deu um salto até Marraquexe. Os países subdesenvolvidos fascinam os que sucumbem ao peso das riquezas. Mas em Marraquexe não gostam de pessoas da sua espécie. Foi forçada a abandonar o território com toda a sua tribo. "
Tribo! Os Smith rectificam:
"A sua comunidade, Sr. Barbin, a sua comunidade.
- As you like... Isso não impede que a Menina Smith tenha retomado o caminho dos seus sonhos com os amigos, para aterrar nas Baleares, onde os hippies ainda encontram alguns cantos paradisíacos. Mas aí não teve sorte: o chefe da tribo, perdão, da comunidade, converteu-se e decidiu desposar uma indígena, uma maiorquina toda impregnada dos Evangelhos, a quem ele jurou fidelidade. Isto chocou profundamente a Menina Smith, que exalta, em tudo e para tudo, a partilha."
Os Smith sabem isso até de mais, mas o discurso de Barbin espanta-os. Como é que o Sr. Barbin pode saber aquilo? O ex-comissário protesta com modéstia: é o seu ofício, e não basta ir à caça, é preciso também conhecer os animais a caçar. E como o animal a caçar roera a corda em todos os encontros, em todas as escalas, os Smith estão no direito de pôr a si próprios perguntas angustiantes, porque ali estão eles mesmo ao pé da porta, podia dizer-se, quando era a filha que aí se devia encontrar. Por isso, quando a campainha do telefone soou, houve um sobressalto de esperança: se fosse ela?
Não era ela. Era a Sr. de Villecroze que, delicada e civilizada, os chama à ordem, e a Sr.a Smith, que foi atender, tenta mostrar presença de espírito ao responder o melhor que pode:
"Mildred! How are you?
- Óptima, Anne, óptima. Acabámos de chegar. - com atraso, darling, com atraso.
- O mar estava mau... o mistral. "
Como o funcionário dos serviços meteorológicos, a Sr.a de Villecroze faz previsões:
"O mistral! Vai cair depois do pôr do Sol. Tanto melhor para a nossa festa. É preciso que nada falhe. Infelizmente, vocês faltaram ao ensaio.
- Sorry, verdadeiramente sorry. "
A marquesa retomou o seu tom autoritário:
"Não esteja sorry. Eu vou-lhes mandar o mestre de dança, Léonidas Godot... Está a ver! Ele é encantador e conhece a Terra inteira. Ele lhes indicará as entradas. Vou-lhes mandar também Michel... Ele repetirá o bailado com Micky. Ela está boa?"
A Sr. a Smith tem um olhar de angústia que provoca uma reacção caridosa da parte de Legris. com gesto decidido, este corta a comunicação para salvar a sua cliente do embaraço. Que ela recupere a serenidade. Nada está perdido:
"Desculpe, minha senhora. O meu gesto é muito grosseiro... Mas a Sr. ? de Villecroze levará este corte à conta dos correios e telégrafos... É costume em França... Aproveitemos para rever a situação. "
E Barbin lança-se nas suas deduções:
"O importante é que a sua filha chegue, não interessando se ela seguiu ou não o vosso caminho. Ela deu a sua palavra ao meu colaborador-claro que tenho um ajudante, evidentemente, um jovem de primeira ordem, a quem ensino o á-bê-cê do ofício. Comigo ele está na boa escola, e já está capaz de lançar mão a tudo. "
Os Smith têm dificuldade em seguir a linguagem de Barbin, e algumas expressões são para eles letra morta. Todavia, escutam-no, pois ele tornou a encontrar Micky -e o seu ajudante entrou em contacto com ela. Como?
"Oh! muito simplesmente! Para se aproximar da Menina Smith, o meu colaborador não hesitou em se disfarçar, para ser acolhido. A vantagem destas... comunidades é que se recebe seja quem for. Não têm necessidade nem de passaporte, nem de curriculum vitae. Para se aproximar da Menina Smith, o meu auxiliar imitou-lhes o aspecto: cabelos compridos, cigarros, colares, cruz e viola, todo o quadro, pois! E possuiu a Menina Smith sem a menor dificuldade. "
Possuída! exclamaram os Smith, receando ter compreendido: "O quê? What do you say?"
Barbin tranquiliza-os. Isto é uma maneira de falar: é preciso que a gente se entenda. O meu ajudante - um rapaz estupendo sob todos os aspectos- conseguiu aproximar-se dela e tornar-se seu amigo. Falaram muito e ele soube chamá-la à razão.
A razão! Há muito tempo que John Smith se conformou com a da filha. Se ao menos Barbin conseguisse trazê-la ali - e o pai, que tenta conservar a sua fleuma, bate, todavia, com o pé no soalho, liso à força de lavagem do sumptuoso veleiro.
O detective quer acalmá-lo. Dentro de duas horas, Micky estará ali. Ela vem a caminho, deve estar a chegar a Orly. O seu auxiliar não a deixa e ele próprio vai esperá-la ao aeroporto. A honra será salva.
A honra!... Os Smith trocam um olhar desiludido, mas o telefone soa de novo.
Encorajado por uma mímica de Barbin, que significa claramente: "Vamos lá, vamos lá", a Sr. a Smith tornou a agarrar o telefone suspirando, enquanto o detective se eclipsa para correr a Nice, pois é lá que a noiva deve desembarcar dentro de pouco tempo. Esfrega as mãos antecipadamente, vai buscar a fugitiva. Missão cumprida.
De novo a Sr.a Smith, de receptor colado ao ouvido, se encontra num grande embaraço. O Sr. Smith tomou o auscultador, preferindo deixar à mulher os prazeres da conversa. Escutam ambos a voz dominadora e feiticeira, porque, bem entendido, é a marquesa que torna a fazer a ligação interrompida:
"Alô, Mildred... Desligaram... Sim, é costume em França... Fale-me de Micky. Já há que tempos que não a vejo. Como está ela? Bonita?... Sossegada?... "
Sossegada!
"Bastante", responde Mildred, que pensa que a amiga força um pouco a ironia e que continua porque é mesmo preciso dizer qualquer coisa: "De qualquer modo, não a reconhecerá... Não sei se se recorda bem dela. "
De facto, a recordação de Micky não pode ser para a Sr. a de Villecroze senão muito longínqua. Há sete anos! Era em casa dos Smith, em Chicago. Eles tinham convidado os Villecroze, com os quais haviam travado amizade no ano anterior, quando duma viagem a França. Encontraram-se em casa de amigos comuns. Tinham simpatizado. Voltaram a encontrar-se: cocktails, cruzeiros, jantares, passeios, convites recíprocos, porque desse convívio nascera uma verdadeira amizade, que viera a terminar numa espécie de cumplicidade.
Os Smith estavam ao corrente da situação dos seus amigos de França, como os Villecroze estavam ao corrente das "extravagâncias" da jovem americana. A uma fortuna vacilante correspondia uma virtude maculada. Tudo podia solucionar-se, e, pelo lado dos pais, decidira-se fazer uma combinação.
Quanto aos filhos, para eles a fortuna e a liberdade: não se podia fazer mais.
E eis que o atraso de Micky deixa pressagiar o pior, arruinando as belas esperanças familiares.
" Wait and see", tinham muitas vezes repetido os Smith a respeito da sua filha única! Agora já não se trata de esperar, mas de ver, de a ver.
Entretanto, Anne de Villecroze parece não desconfiar de nada. Esta noite, que deve marcar não só o ponto culminante dos seus faustos, mas operar a sua salvação, deve ser um êxito. para todos:
"Organizei para Micky uma festa digna duma rainha - disse a marquesa, insistindo: - Como o desejou, e ainda melhor, espero. Toda a imprensa falará dela. O Harpers Bazar e a Vog mandam-nos enviados especiais.
- All right, all right- responde Mildred com angústia, acrescentando, esquecendo qualquer espécie de tacto: - Não esqueça, my dear, que nós é que fazemos todas as despesas, como ficou combinado, aconteça o que acontecer. "
John Smith franziu as sobrancelhas. Não é lá muito delicado recordar os acordos e o "aconteça o que acontecer" não irá alertar a Sr.a de Villecroze?
com efeito! O "aconteça o que acontecer" não caiu em ouvidos moucos. Mas ela finge não ter ouvido e torna a conduzir a conversa para a jovem apenas visto de relance... há sete anos. Uma garota então, bastante mal educada (aliás, os resultados dessa educação americana, que, para não complexar a criança, lhe permite ser a horrível prefiguração do adulto, estão à vista), uma garota de voz forte e que usava óculos. Ainda os usa?
"Não, a sua vista foi corrigida - replica Mildred, por sua vez, em veia de ironia. -Certamente que Michel não vai reconhecê-la.
- Ele tinha dezassete anos. Para ele, uma rapariga quase que ainda não tinha interesse e, no entanto, se ele tivesse sabido! "
O riso da marquesa faz eco, porque Mildred também ri, divertida pelo cinismo que dá às palavras da sua aliada o seu verdadeiro alcance. Anne continua, como se evocasse a mais encantadora das recordações:
"Depois de ter visto Michel, Micky dissera: He will marry me? Há-de casar comigo! Sim, sim, ela dissera-o batendo com o pé, estou certa disso. Pois bem, aí está: vai casar com ele. "
Tal como os revolucionários de 68, a Sr. a de Villecroze tem a certeza de que os desejos devem ser realidades. Por outro lado, embora ela tenha as maneiras de antigamente, assimilou perfeitamente as idéias de hoje. Ela quase que não respeita as instituições, a do casamento incluída, mas pode respeitar os sentimentos e a amizade que a une ao marido -e isto desde os seus primeiros encontros - como a contradição da sua filosofia.
O seu filho é livre. O amor, ele não pensa nisso; não acredita nele. Sim, ele é livre. Ao menos que essa liberdade sirva para qualquer coisa! Para salvar a família duma ruína desastrosa, para salvar um certo estilo de vida, para salvar certos bens que eles consideram, não pelo seu valor, que nunca estimaram, mas pelas suas recordações. Michel poderá trabalhar como entender, o Sr. de Villecroze poderá curar-se... quem sabe?... Sim, foi preciso a ruína para que Anne de Villecroze descubra que o dinheiro tudo pode... ou quase. E depois a franqueza da situação não será a melhor garantia? Nada de hipocrisias. Cada um sabe onde vai, enfim, quase... porque quanto ao que diz respeito a Micky...
Enquanto deixava os membros da família explicando-se ao telefone, Barbin corria para Nice.
Para ele a missão que lhe estava confiada era um bom negócio. O antigo agente da polícia queria com toda a sua vontade levá-lo a bom fim. Mas não se tratava de descobrir nem um vulgar chantagista, nem um escroque de pequena ou média envergadura, nem mesmo um cônjuge desaparecido. Aqui, tratava-se duma rapariga. Nada de mais delicado a tratar, sobretudo na nossa época, em que a juventude é quem governa -pelo menos deixam-na acreditar nisso!
Ah! essa Micky! Como Barbin desejava deitar-lhe a mão - com a melhor das intenções- e trazê-la, dócil e ajuizada, aos pais. Esta submissão vingá-lo-ia da sua.
Isso vingá-lo-ia também, de certa maneira, do par de bofetadas que a mãe lhe assentara quando ele tinha dezanove anos - a idade de Micky - porque o jovem Barbin declarara "que estava farto" da vida de família; hoje ele teria dito "saturado".
Se bem que duma geração ultrapassada, a mãe não deixava de ter desculpa. Viúva de um gendarme morto "no exercício das suas funções", só tinha um desejo - encorajado, aliás, pela administração reconhecida -: que o filho aceitasse o desafio de qualquer modo, ou, para falar mais justamente, que também ele entrasse na carreira. Além dele, o mais velho, havia que criar alguns irmãozitos e irmãs.
A irresistível e democrática ascensão das camadas sociais fizera do órfão um oficial da polícia. E depois dele? Depois dele, Barbin estava-se nas tintas porque não tinha nenhuma progenitura que precisasse de empregar.
As bofetadas maternais tinham-no traumatizado: as alegrias da família! Muito agradecido, mas podiam dispor delas. E as mulheres pareciam-lhe de recear. Ele admirava-se que ao Movimento de Libertação da Mulher não se opusesse um Movimento de Libertação de Homens, ao qual teria aderido com todo o coração.
Assim, essa jovem americana que estava encarregado de reconduzir ao aprisco provocava nele um fluxo de pensamentos que o levavam a estabelecer paralelos. Certamente que ele não se comparava à "pequena Smith". Quarenta anos de diferença e poucos pontos de comum entre uma riquíssima herdeira do Novo Mundo e um órfão do serviço público. Não, poucos pontos de comum, excepto esse gosto pela rebelião que é a chama da juventude.
Para Barbin, a rebelião fora esmagada por um par de bofetadas. E para Micky? Como outrora, a ovelhinha conduzida ao altar e, depois das bênçãos da praxe: "Vive a tua vida." Eram estas as reflexões que essa Micky que o obrigava a correr e a carregar no acelerador lhe inspirava.
Para Marie, a ida ao radiologista fora tranquilizadora. Nada de grave. Bardin voltara. Visto que não havia fractura nem diástase, seria ele quem voltaria a pôr em condições o tornozelo magoado. Tinha-o massajado, ligado, como ele sabia fazer: primorosamente. Não era em vão que os bailarinos se lhe confiavam, e, tranqüilizada, Marie sentia-se como se tivesse asas.
"Pois bem, não te aproveites delas para voar! Deixa-te estar no solo e não armes em esperta. Poderás voltar aos ensaios dentro de quarenta e oito horas. Enquanto esperas, vai tentando andar bem, o que é tão difícil como dançar. "
Já que Marie podia andar -ela só o que tinha era de prestar atenção e seguir os conselhos de Bardin -, Florentine e Sarah instavam para que ela fosse com a Escola a casa dos Villecroze. É que Sarah ia dançar O Espectro com Ivan Barlof, um bailarino entre os maiores. Marie não ia perder aquilo!
As raparigas controlavam -e de comum acordo-o seu trabalho recíproco. Cada uma velava de certo modo pelas outras. E eram severas: era a regra delas. Críticas, estímulos, conselhos, trocas de idéias, emulação, e não ciúme.
Por isso, o facto de Sarah ter nessa noite a sorte de dançar com uma estrela era muito natural aos olhos das suas amigas. Esse belo negócio que transformava o Centro em vedeta era um pouco obra sua, porque era graças a ela que o Centro se aproveitava disso. Se algumas alunas manifestavam certa inveja, eram logo censuradas asperamente pelas que apoiavam Sarah, as quais insistiam em que algumas raparigas no seu lugar "teriam puxado a brasa à sua sardinha" e exigido ser a única vedeta numa festa de gala que "ia dar que falar".
Não seria natural que a prima direita - em suma, quase uma irmã- daquela que ia ser a rainha de uma noite recebesse por isso um pequeno privilégio?
Alertada pela chamada telefônica da tia, Sarah não comunicara a ninguém as inquietações familiares. Sabia ela alguma coisa de Micky?
"Não, tia Mildred, nada. "
E era verdade.
De facto, Sarah receava o pior. com Micky, nunca se sabia. De qualquer modo, ela andava sempre atrasada, como aqueles que não fazem nada ou quase nada e para quem o tempo não conta, ao contrário daqueles que o empregam. Então nenhuma razão para que Micky, hoje, seja pontual, mesmo para os seus esponsais, em que ela consentira sem Sarah compreender porquê.
A única semelhança que havia entre as duas primas era a vontade. A vontade de fazer apenas o que lhes agradava. O resultado podia estar entre o melhor ou o pior.
Sarah demonstrava essa vontade hereditária no seu entusiasmo pelo trabalho, na disciplina que impunha a si própria, no gosto de se ultrapassar no esforço livremente consentido. Para Micky, essa demonstração limitava-se a uma ociosidade irremediável e no alardeamento de idéias de tal modo rasgadas que se perdia nelas. Certamente que os pais, atormentados -e indignados - ameaçavam. E como a vontade, que a filha herdara antes de mais nada, não lhes faltava e resistia aos anos, a prova de força fora decidida. Ou Micky se "arrumava", ou lhe cortavam a mesada, e a fortuna ia para doações. Os deserdados, Céus! não faltavam!
Os deserdados! Amargamente, os Smith decidiram que, de certo modo, Micky iria engrossar as suas fileiras. Mais ou menos, tirariam disso o benefício que a sua maneira de viver lhes fazia perder de vista. Já que a filha deles se comportava mal, os Smith praticariam o bem, sendo o seu mérito grande, pois não tinham a mínima vontade de o fazer.
Fora o nome de Villecroze que produzira na rebelde um efeito mágico. O seu rosto, escondido nas profundezas duma cabeleira selvagem, parecera emergir das trevas. Michel de Villecroze! Recordava-se. Nem tudo estava perdido, pois guardara na memória a lembrança de um homem que nem sequer lhe concedera um olhar.
"He will marry me"! E agora ofereciam-lhe juntamente com os seus castelos e os seus títulos de nobreza! Em suma, mais uma vez era satisfeito um dos seus caprichos. E no seu pequeno cérebro cheio de fumo germinara a aceitação diabólica, acompanhada das últimas exigências: esponsais e núpcias que seriam "a festa", como apenas as raparigas podem sonhar.
Ao preparar-se para essa "festa", Sarah continuava preocupada, mas em nenhum momento quisera dar parte das suas preocupações a ninguém. Segredo de família! E, depois, ela gostava do Sr. e da Sr.a de Villecroze e mais ainda de Michel, com quem se ligara desde que estava em França. Um verdadeiro camarada. Mas Sarah tinha tendência para considerar os rapazes que lhe agradavam como camaradas.
De facto, não pensava senão em dançar e considerava o amor como uma ocupação terciária, porque entre a dança e o amor, para Sarah, havia a amizade.
Marie acabou por aceder. Acompanhará a Escola. Encarregar-se-á de vestir Sarah, será espectadora, e vai pôr-se bonita. Florentine exulta: vamo-nos divertir!
Divertir!
Marie sente-se indecisa. Uma noite solitária não lhe mete medo. Pelo contrário. Gosta do silêncio, que favorece o diálogo consigo própria, a leitura, a reflexão e, certamente, o sonho. O sonho!... Isto é, as suas aspirações: o êxito, evidentemente, e a felicidade.
Muitas vezes, não sabendo o que pedir na ocasião de um voto, junta as mãos como para uma oração: "Que eu seja feliz, meu Deus, que eu seja feliz!" Mas que é a felicidade? com que se parece? Ou com quem? Ela sorri um pouco à recordação de Igor Andreiev, indulgente com a sua paixão infantil, que confundia o amor pela arte com o amor.
Uma vez mais, cede à camaradagem como se cede a uma obrigação. Um ligeiro esforço, sair de si própria. Mas há o perigo de parecer diferente e é preciso saber comportar-se como as outras. Para os alunos há essa noite, para além do espectáculo que eles vão dar, uma ocasião de festa. É preciso comparticipar dela, ficara combinado: nenhuma razão para fugir por causa dum tornozelo que funciona assim-assim.
Enquanto as colegas seguem a última aula do dia - depois será a partida para a "vila"-, Marie vai assistir ao último ensaio de Serge, no qual devia participar. Um estúdio, no piso superior da Escola. É aí que o jovem trabalha com um grupo de voluntários. Madame decidiu dar-lhe carta branca e encorajou-o a apresentar um bailado no concurso das jovens companhias que se realizará em Lausana, sob a orientação dum mecenas e de celebridades da dança e das artes.
Fraco no clássico, Serge mostra na dança moderna qualidades espantosas e não só de intérprete, mas também de coreógrafo. Ritmo, figuras, expressões, o que ela procura criar pela dança é a transfiguração do cinetismo: movimentos e cores. Mas além destas tendências abstractas, onde o grafismo e a geometria o arrebatam para além do pensamento, alimenta "idéias" e, como todos os jovens, procura exprimir as motivações do ser através da existência, onde se defrontam a violência e a morte, o amor e o desespero, o absurdo e a resignação. Grandes palavras, grandes temas, que a época volta a pôr mais do que nunca na ordem do dia. É normal que um homem procure decifrá-las e expô-las.
Alguns camaradas, seduzidos pelo seu dinamismo, aceitaram confiar nele e formarem uma equipa. E Marie faz parte do grupo. Esta busca em comum é tudo o que resta de amizade que Serge e Marie sentiram um pelo outro. Eram, desde a infância, inseparáveis e agora estão separados no segredo de si próprios.
Fora da Escola, são apenas colegas, quando antes eram bem mais. Colegas um pouco amargos, um pouco reticentes. Não como os outros, aqueles que não tiveram nem problemas, nem disputas, nem rupturas. Antes! Antes de Igor Andreiev, certamente-e, esse, Serge não o traz no coração.
Mas é sempre assim com as raparigas: sempre a paixão pelo príncipe ou pelo ídolo; o homem forte e brilhante. Então a libertação, a igualdade dos sexos, disparates! Como se aquilo que não se parece pudesse ser igual! Pelo menos, é isto que pensa o jovem, e também ele procura sorrir dum primeiro desgosto louco mas revelador.
Sim, louco o desgosto que Marie lhe causou, Maria, que lhe atirou ao rosto uma verdade cruel, intolerável. A mulher que nesse instante se revelara não o amava e tinha-lho gritado. Depois, fora o desenrolar dos dias. O tempo que se esbate, que vai suavizando. Sim, pode sorrir! Não morreu por causa desse drama.
Decerto que ele comoveu os adultos. Eles foram os primeiros a sorrir, discretamente, com uma certa piedade, como para dar o exemplo. Oh! a terrível compreensão deles, a sua experiência de que não se tem nenhuma necessidade!
Como experiência, não há senão uma: de cada um. De acordo, as pessoas podem sofrer mil mortes e viver outra vez e voltar a encontrar outros sonhos, outras finalidades, uma certa felicidade.
Marie entrou no estúdio. O pequeno grupo continuou. Quatro raparigas, quatro rapazes e Serge, que dirige, que inventa, que explica e marca o compasso seguindo uma partitura dominada pelas percussões.
Lançou um olhar a Marie. Uma mímica significativa: como vai isso?
Marie responde do mesmo modo: não vai mal...
A estropiada sentou-se e olha. O grupo actua com convicção. O lugar de Marie está vago. Não é caso para retomar o lugar, mesmo que fosse apenas "marcando" os passos, porque a coreografia de Serge não é para descansar e tanto se inspira na dança como na acrobacia.
com gravidade, os bailarinos entregam-se a uma acção ritmada, em que a intenção e o desenvolvimento são movimentos. Profanos espantar-se-iam do seu ar sério, da aplicação que põem na elaboração dum bailado -um ensaio- que procura materializar as aspirações dum jovem e dos seus meios de expressão. Eles dançam, e o rosto de Marie, que de momento tem de se contentar com olhá-los, é tão grave como o deles, tão reflectido - e isto não é um paradoxo - porque ela sabe que não se dança "irreflectidamente".
Quando o disco chega ao fim, todos param. Respiram fundo, descontraem-se, limpam a cara e, pouco a pouco, começam a falar, a rir, a discutir. A apressar-se também, porque para estes que estão "de serviço" essa noite a partida aproxima-se.
Vestindo um grande pull-over, um rapaz exclama para Serge:
"Fazes-nos levar uma vida dura. vou chegar a casa da marquesa de gatas.
-Nunca mais conseguirei chegar à meta-graceja uma rapariga que, com esgares de dor e de pés para o lado, se diverte assim a atravessar a sala, à maneira de Charlot.
- Vamos arranjar uma boa barra, para nos endireitarmos, segundo a sacrossanta tradição clássica. "
Arrastando as sapatilhas e as camisolas de lã, os jovens abandonam o estúdio.
"Então, Marie, tu abandonas-nos?
- Tenho aqui para dois dias. Se vocês julgam que é muito divertido!... "
Voluntariamente, Serge afastou-se da rapariga, que se desloca com precaução. No entanto, vira-se para lhe dizer, como se lhe desse uma ordem:
"Então, depois de amanhã, vens trabalhar.
- Talvez. De qualquer modo, virei à lição. Verei se o meu tornozelo agüenta. Senão, fica para outra vez. "
Acontece que Serge, com as suas grandes idéias, se porta às vezes como um garoto irascível. Não é lá porque uma rapariga tem um pé magoado que ele se vai enternecer! E, além disso, se ela prefere a eterna lição à aventura duma criação... Em resumo, de má-fé, replica:
"Se isso te aborrece, envia-me um atestado de doença. "
E morde os lábios. Idiota este desejo que sempre sente de tratar mal Marie, de afectar uma desenvoltura excessiva! Todavia, escolheu-a; precisa dela: para o seu bailado. Quanto ao resto, que ela se desembarace, nada tem a ver com ela...
Os colegas estão habituados à sua brusquidão recíproca. Sabem que entre eles há qualquer coisa, uma tensão, um desafio. Adiante! Um jovem continua:
"Esta noite, então, minha pobre Marie, ficas a ver-nos?
- Tanto melhor, assim sempre haverá alguém entendido na sala... Porque, segundo o que penso, as pessoas da alta são apenas um público de snobes... Perfeitamente: de snobes. "
Os jovens voltam para os seus quartos. Menos ágil do que os outros, Marie ficou para trás; uma das raparigas dá-lhe o braço, para a ajudar, e é ela que se queixa:
"Em certo sentido, invejo-te: vais ficar um pouco tranqüila esta noite. Estou muito cansada. Há dias em que me apetece desistir: é demasiado duro dançar, dançar sempre... Tenho a impressão de que vou rebentar. "
Sim, é duro! A dança é um combate perpétuo consigo próprio. É preciso fazer exercícios monótonos e desagradáveis. É preciso que o corpo, o esqueleto, a musculatura, estejam constantemente trabalhados, preparados. É preciso que haja uma vontade de aço e uma saúde de ferro.
A rapariga que se queixa é frágil. Coragem, dotes, mas pouca resistência. E, algumas vezes, nas lições, esgotada, o coração falha-lhe. Madame rompe então com a regra, emocionada com a palidez que trai o esgotamento duma aluna nos limites das suas forças. Manda-a sentar-se, permite-lhe respirar e, muitas vezes, dispensa-a de certos exercícios.
Marie procura tranqüilizar a companheira. compreende a sua angústia. Se Christine tem de "abandonar" depois de tantos anos de trabalho, que fará ela? Privada da sua vocação, será o vazio. Que fazer? Estudar? Uma "tarefa", ou condescender em aumentar a fileira dos bailarinos sem talento, sem futuro? Há também o casamento!... Mas, nos nossos dias, perdeu a sua magia. Menos que nunca, não é uma finalidade.
As raparigas de hoje não têm ilusões. As reivindicações femininas, a educação sexual, a pílula!... Não há com que sonhar. Desvanecidos os encantos da existência; os seus mistérios: desmistificados. E os esponsais que se preparam e que alimentam com o seu luxo os registos da alta-roda não se apresentam como uma atracção de prestígio?
As jovens dançarinas trocam este gênero de reflexões ao voltarem para o quarto de Marie, que entretanto desejava reconfortar a sua camarada.
Também ela conhece estes acessos de dúvida e sofreu "um duro golpe, muito duro". Também ela põe a si própria a terrível questão: "Que é que eu faria se não pudesse dançar?" Nem Christine, nem Marie, concebem que quem responderá é o destino. Aos dezoito anos, como admitir a renúncia? As asas arrancadas quando se sonha com uma vida transcendente? "Reconverter-se"? Isto é, abandonar a fé, acabar empregada de balcão ou secretária, mulher de negócios ou ainda mãe de família preenchendo as folhas da assistência social e os abonos? Fundir-se no comum dos mortais quando se tem o orgulho numa vocação e se aspira ao céu das estrelas?
"Não tenhas medo, Christine. Quando se quer alguma coisa, consegue-se obtê-la. Não é talvez rigorosamente como se imagina, mas consegue-se. É preciso querer, querer até morrer."
O tom de Marie impressionou a outra e distrai-a do seu próprio problema. Há em Marie -e isto apesar da sua aparência frágil e graciosa- uma surda violência, uma obstinação capaz de provocar perigos e vencê-los.
As raparigas continuaram a conversa sem se preocuparem com o vaivém que as rodeia. É o fim das aulas. Para todos, um dia bem cumprido, e é assim durante todo o ano. Não têm tempo de se aborrecer.
Ao separarem-se - embora as aulas tenham acabado, o dia ainda não -, as raparigas sorriem, sorriso de entendimento e de camaradagem.
Marie não pode deixar de olhar mais atentamente aquela que vem a dar-lhe o braço para a ajudar, embora ela própria esteja alquebrada, mas de outra maneira. Muito pálida, de olhos pisados, mau aspecto. Confundida por aquilo que ela adivinha de ameaça, Marie repete com uma segurança abalada:
"É preciso querer, Christine. Querer...
- Eu quero... mas é o meu coração que não quer, que não pode. É físico, compreendes, é físico, e isso desespera-me... "
O regresso de Sarah e de Florentine abreviou a conversa. Christine calou a sua queixa, esquivou-se como se qualquer coisa urgente a obrigasse a afastar-se bruscamente. Marie não teve tempo de a reter, de fazer um gesto.
"Que é que tens? -disse Florentine. - E Christine, que é que lhe deu? Está estranha.
-Não está brilhante. Devia descansar-disse Sarah.
- Ela não quer parar. Nada a obrigava a aceitar o bailado de Serge. Para ela, é uma fadiga suplementar, e não tem necessidade disso; anda com um ar abatido.
-Ela fez-me pena - disse Marie. - Tem medo. -Medo?
-Medo de ser obrigada a parar completamente. É por causa do coração.
- O coração trata-se. É como tudo. Olha, quando se pensa em Alicia Alonso -Alicia Alonso é alguém -, que cegou progressivamente, é ou não verdade? Pois bem, está curada; operaram-na e agora vê. Voltou a ver. Então, Christine pode tratar-se. Não é preciso tomarem esses ares de tristeza! Vocês exageram. "
Florentine está lançada. Sarah e Marie deixam-na falar.
Nos seus discursos há sempre alguma coisa de pândego. Quando ela toma a palavra, o melhor é deixá-la. Além disso, não deixa de ter certa razão... Acontecem acidentes aos bailarinos e doenças!... E são inúmeros os que partiram uma perna, aquelas a quem foi preciso extrair um rim, as que tiveram pneumonias!
À força de ouvir citar catástrofes, que, segundo a tagarela, dão todas as razões para ter esperanças, Marie e Sarah não podem deixar de rir e de se divertir enquanto começam os seus preparativos.
Maquilhagem, toucados, sapatilhas. Não esquecer nada. Por esta vez, Marie vai de mãos vazias, dado que as bailarinas vão sempre carregadas, não sendo raro ver estrelas deslocarem-se levando os tutus de gaze protegidos por coberturas de celofane, como enormes flores.
Hoje, Marie contenta-se em ajudar as amigas. E, de resto, alisou os cabelos, escureceu os olhos com um traço de carvão, avivou os lábios. E passou o vestido a ferro. O reflexo que lhe envia o espelho é encantador e a jovem experimenta com isso, durante alguns segundos, uma emoção confusa, enquanto, de cabeça ainda eriçada de rolos, Florentine a olha com admiração. Decididamente, esta Marie é como se tivesse o dom das metamorfoses! Umas vezes tem um ar insignificante e outras vezes resplandece com um brilho surpreendente.
O intercomunicador soa. A voz da Menina Leroy ecoa para fazer a chamada e reunir o seu rebanho. Dentro de dez minutos, a partida. O carro espera a companhia para a conduzir à "vila" dos Villecroze, no cabo Ferrat.
As partidas colectivas são sempre pretexto para uma animação excessiva, um divertimento. Risos loucos, larachas, cotoveladas, nada de inibições.
Em trajo de noite, o Sr. e a Sr.a Robin estão prontos para seguir. Quanto a Serge, a sua moto ronca já no pátio. De capacete em forma de bomba que assinala - e protege! - os entusiastas da velocidade, enverga, à maneira de smoking, um fato que parece ter sido talhado num tapete.
No fim de contas, Marie está contente por fazer parte da expedição. O barulho, a vivacidade, a alegria geral, acabam por vencer as suas tendências. Queria ficar só e ei-la metida na barafunda. Desejava o silêncio, mas o barulho não é o eco da vida?
Acabou por escolher o grupo em vez da solidão, acabou por ceder. Mas, nesse gênero de escolha, há sempre para ela a ruptura dum esforço. A multidão, a vida colectiva, os grupos, um instinto inexplicável, incitam-na sempre a defender-se disso, como se a sua natureza se retraísse ao contacto dos outros. Mas um outro instinto a força a sair de si mesma. E preciso ir em direcção -aos outros, é preciso saber responder-lhes, e, em geral, Marie não o lamenta.
No meio dos colegas, que se agitam, Marie move-se sem pressas, com cuidado, por causa do tornozelo. Florentine ainda exclamou:
"Mas como tu estás linda, esta noite! Estás a ver, Sarah? Estás a ver Marie?... Parece uma noiva... "
Preocupada, Sarah aquiesce vagamente. É que, por falar em noiva, a prima ainda não apareceu e a Sr.a Smith acaba de telefonar outra vez à sobrinha, sem saber que fazer.
"Continuas a não saber nada de Micky?
-Não, tia Mildred.
- Ela ainda acaba por estragar a noite-suspira a pobre mãe milionária. -Juras-me que não sabes nada?
- Nada, tia Mildred, juro-lhe. "
Nada! Ninguém sabe nada e dentro de duas horas começa a recepção!...
A Sr. a Smith não tem razão para desesperar. Alguém trabalha para ela nesse momento. Barbin está em acção e vai saber.
Barbin está em acção e sente-se seguro. Desta vez, é certo: vai agarrar Micky. Está previsto, combinado, entendido. E é com deleite que ouve a voz duma hospedeira do ar anunciar, como se anunciasse o Paraíso: "Os passageiros vindos de Paris e que se dirigem a Roma fazem o favor de se apresentar para as formalidades de controlo. "
A voz suave repercute-se na aerogare e parece prometer incomparáveis delícias. A essa voz, Barbin sorri, à espera sob uma palmeira -faz bom tempo em Nice e o Sol bate, incandescente, incendiário, lançando os seus últimos raios antes do seu poente glorioso. Depois dele, a frescura...
Ufa! o dia foi quente; Barbin deixou pois a sombra espalmada para se dirigir à pequena porta que vai filtrar os viajantes. Viu o aparelho que vinha de Paris aparecer no céu azul, virar sobre o mar resplandecente e vir pousar na pista. Terra!
Ao roncar dos motores, Barbin tem desejos de gritar: "Olá, Micky! "
Barbin rejubila: a fugitiva pousou em terra. Apenas o tempo de lhe apresentar as suas homenagens e de a reconduzir imediatamente a Cannes, ao domicílio familiar, neste caso, o belo veleiro no qual o papá e a mamã se lamentam enquanto se preparam, com a raiva no coração, para a festa.
A festa e a sua finalidade: a libertação! Micky noiva, Micky arrumada, entregue com o seu dote principesco a um jovem e autêntico marquês encantador e enquadrado, além de tudo isso, por um pai e uma mãe de grande classe! Tantos esforços, relações sabiamente conduzidas, para no último momento se tremer com receio de ver desmoronar-se uma operação que, para o Sr. Smith, foi mais difícil de conduzir do que a abertura de um mercado em Pequim. Não se pode dizer que a noiva está demasiado bela, pois brilha ainda pela sua ausência.
Ah! o olhar desolado dos Smith, que dão grandes passadas na sua cabina de luxo. Sumptuosos trajos século XVIII, perucas níveas, adereços de estilo e, enviados pelo melhor instituto de beleza, uma esteticista e um cabeleireiro. Agora, o vestido da noiva parece zombaria. E, todavia, que vestido! A cópia daquele que ostenta a Camargo, pintada por Watteau, no célebre quadro da colecção Wallace.
Puseram a estreita ponte, abriram a porta: "Cu-Cu, ela aí está! ", pensa Barbin. Mais um pouco de paciência. De binóculo, para suprimir a distância e ver melhor, o detective espera a saída dos passageiros, que saltam para a pista e se aproximam desordenadamente.
Entre eles, um grupo de hippies cabeludos e enfeitados chama, evidentemente, a sua atenção. Mas o grupo divide-se em dois. A atenção de Barbin fixa-se então naquele que se dirige para a saída e tenta distinguir entre essas criaturas folclóricas não só a heroína, mas também o seu anjo da guarda, Oreste Duroc, esse jovem detective que ele enviou ao seu encontro e que, segundo Barbin, promete ir longe.
Longe!
Agora vem ele de bem longe, o pequeno Duroc, porque, encarregado da missão junto de Micky Smith, se fartou de correr o país.
Mas onde está ele?
O grupo que chega à porta - e Barbin tornou a meter o binóculo na algibeira- não comporta, à primeira vista, as pessoas esperadas. É verdade que sob o nariz do antigo comissário da polícia passa um festival de sistemas pilosos em plena expansão. Difícil reconhecer alguém entre tantas barbas e cabeleiras em desalinho que o vento atira para a cara como uma cortina dupla. Os hippies, que saem, como toda a gente, pela porta, viram-se para enviar beijos e sinais de adeus aos seus irmãos de eleição. Mas nada da Menina Smith e nada de Oreste.
Barbin franze as sobrancelhas e torna a pegar no binóculo: vejamos, vejamos.
E vê.
Além, separada dos hippies que varrem a pista com as suas roupas velhas e as suas franjas, reconhece uma criatura isolada, que, numa atitude acabrunhada, se deixara cair sobre o primeiro banco que aparecera, balançando os cabelos, que se inclinam para o rosto.
É Oreste. Barbin nunca teria acreditado que o cabelo lhe pudesse crescer àquele ponto. Mas, por muito surpreendente que isso lhe pareça, não é isso que o preocupa. Vai direito a ele e senta-se ao lado do anjo da guarda.
"Onde está ela?"
com um gesto fatalista, Oreste designa o grupo em trânsito, que apresenta os seus passaportes aos funcionários respectivos.
"Ela prossegue. Eu desisto.
-Estás doido.
- Ainda não...
- Mas tinhas-me dito que ela estava de acordo!
- Ela estava, mas parece que mudou de opinião.
A Menina Smith é muito desconcertante, sabe? Há momentos em que parece outra... Meiga, meiga, inspirada...
- Inspirada?"
Oreste finge acender um cigarro, para explicar que, de tempos a tempos, Micky entra no domínio das coisas proibidas, mas suaviza o sentido do seu gesto, dizendo:
"Oh! ela fuma muito pouco... apenas para sonhar... para pairar entre o Céu e a Terra... É inofensivo... "
Oreste não diz que é, por descargo de consciência e para captar toda a confiança do fenômeno, também ele fumou um pouco e que, meu Deus! não era de todo desagradável... Gosta mais de um bom cigarro, mas a marijuana, desculpa-se... É melhor não confessar, porque, perspicaz, Oreste Duroc pensa que vale mais não mostrar ao patrão o lado agradável dum trabalho e que, para o pôr em evidência, convém sublinhar apenas os inconvenientes. Continua, a propósito de Micky:
"Ela é muito gentil, sabe... De certa maneira, adoptou-me. Tratamo-nos por tu; ela chama-me Oreste, tal como eu lhe chamo Micky. Parece que os pais são uns sujos burgueses. Ela entende que o dinheiro não traz a felicidade e que a sociedade de consumo não alimenta o homem que nela vive. No fundo, se não vivesse como vive, seria uma óptima rapariga. "
Que o ajudante alardeie um pouco de humor não alegra o chefe:
"Frisaste-lhe bem que esta era a última vez? Se ela não mantiver a palavra, zás! os pais cortam-lhe a mesada.
- Repressão... Mas ela troça do dia de amanhã. "
Barbin, que conheceu uma infância difícil e pobre, não pode reter uma reflexão amarga:
"Ela troça!... Nunca deve ter tido de pensar nisso. "
Depois continua:
"Ela sabe quem tu és?
-Evidentemente. Não há o menor equívoco, e até disse que um chui hippy seria a sua mais bela conquista. "
Barbin sente-se passageiramente desnorteado: preveniu os pais da chegada e estava convencido...
"Ela veio, mas volta a partir. Vê-a além?
Barbin bem teve nas mãos algumas fotografias, mas como distinguir, num grupo cuja originalidade gritante sobressai no meio do conformismo dos viajantes em trânsito, uma rapariga vestida de cigana e camuflada por uma cabeleira selvagem? Uma única coisa lhe surge como indiscutível: ela não deve partir, seria demasiado absurdo! Já que chegou, que fique. Que Oreste a vá buscar.
"Vá o senhor mesmo, patrão! O senhor não a conhece! Eu nem sequer a posso trazer de pés e mãos atadas: isso daria bronca.
- Encarrega-te tu disso, já que vocês são amigos. Eu vou chamar os pais. "
Mas Oreste resiste. Acha que já fez de mais de fantoche. Está farto da sua cabeleira de mosqueteiro, dos bigodes compridos, que o incomodam quando come. Em suma, do ponto de vista físico, o seu modelo é mais o gênero romano: cabelo curto e rosto glabro. E depois há ainda o pior! Há as companhias perigosas:
"Se isto continua, ainda acabo por me tornar hippy, também... Micky faz proselitismo, as suas amigas igualmente... e o meu caso interessa-as. Com eles, é a vida fácil; a gente não se cansa, não se ocupa de nada, é deixar andar, e acredita-se no amor e na bondade... É de tentar, sabe... Então, se eu continuar, arrisco-me a ser contaminado, a tornar-me irrecuperável... "
Barbin julga-se a sonhar, de tal modo está surpreendido. Tem visto e ouvido tanta coisa na sua carreira... Tenta chamar à razão o seu émulo: e a família, a mulher, os diabretes dos filhos! Não pensa neles?... E a promoção, o seguro social, a aposentação?... Não vai agora pôr-se a divagar também, isso seria o bonito!
O tempo passa e eles continuam a parlamentar, em lugar de agir.
"Deixa-te de palermices, tu estás em serviço, e a consciência profissional antes de tudo. Vai buscá-la. Não a largues.
- Ela decidiu ir até ao Katmandu. Vai fazer um retiro, num ashram... Não me sinto com coragem...
- Obedece.
- Oh! patrão, preferia ocupar-me dum ajuste de contas. "
Barbin fez-lhe notar que é mais ou menos o caso, apenas aí não devia haver efusão de sangue...
Bastante contente por ter provado, por sua vez, que também sabia fazer ironia, o detective dirige-se para uma cabina telefônica, enquanto Oreste, resignado, vai ter com a tribo, parecendo indiferente a tudo o que pudesse passar-se à sua volta.
Telefone!
O Sr. Smith empurra o criado de quarto para saltar -é essa a palavra- para o aparelho. com a morte na alma, vestia-se, quando esse disfarce devia ser uma parte do prazer. É que os Smith devem preceder os convidados. O atraso -se não for a ausência pura e simples- de Micky perturbou a ordem do dia. Teria sido bom que os noivos pudessem reconhecer-se. Que pudessem repetir as figuras da representação. Que pudessem chegar a acordo, enfim, como tão bem o fazem os pais e as mães.
Num belo trajo que faz lembrar o big boss em Luís, o Bem-Amado, de calções e meias de seda, peitilho e colete fulgurante, John Smith responde ao telefone, ansioso -presumimos- de ouvir as últimas notícias.
Nada famosas!
A voz de Barbin pronuncia palavras que nada têm de agradável; todavia: ela está lá.
"Está lá, sim, mas vai partir.
- Isso é loucura! ", geme o Sr. Smith.
E a Sr. a Smith, que agarrou o auscultador, repete como um eco esse gemido que traduz a sua perturbação.
Como se apresentar diante dos Villecroze? Como fazê-los esperar mais? Como encarar a falta à palavra dada, e isto em público, um público cuidadosamente seleccionado? Em negócios, o Sr. Smith foi sempre "impecável; pela primeira vez, arrisca-se a enganar sócios seus, que para mais são amigos! Em geral descontraído como um americano deve ser, John Smith, nesse momento está quase a perder o seu habitual domínio. Os seus nervos sofrem e Mildred Smith - nada mal nas suas saias de balão corre simplesmente o risco duma crise.
O que terão de lhes ouvir!
Micky tenciona continuar para Roma, Capri e a índia.
A índia! Porque não a Lua?
"Não, não, a Lua, não... mas um ashram no Katmandu.
- Tragam-na, a bem ou a mal.
- Impossível, ela está na alfândega.
Ai! A alfândega... sabe-se lá o que os empregados da alfândega são capazes de encontrar! My God, contanto que a brigada dos estupefacientes não esteja por lá! E sobretudo, sobretudo, oxalá a Micky não esconda nada daquilo que a lei proíbe!
Barbin explica-se...
Micky incorpora o grupo dos seus amigos. Oreste Duroc foi ter com ela. Está a fazer tudo o que pode para a convencer a segui-lo. Ovelha tresmalhada, não prometera ela deixar-se conduzir ao aprisco? Ele está a fazer tudo para a convencer a voltar para o papá-mamã e a dirigir-se ao belo castelo onde tudo foi preparado em sua honra. Mas os seus argumentos não produzem o menor efeito. Micky resiste, e evidentemente que é impossível empregar a força. Um rapto? Não passaria despercebido. É pena, sem testemunhas ter-se-ia podido arriscar!
"Bem, eu próprio aí irei. Veremos se alguém consegue impedir-me de reter a minha filha! Se for necessário, apresentarei queixa, denuncio-a, faço-a passar por louca... "
"Crazy, John is crazy." É o que pensa a Sr. a Smith na sua língua materna e embaraçada nas suas saias à Pompadour.
Ela não deixa de ter razão. O marido, o autodomínio personificado, está a tornar-se fortemente crazy, isto é, louco de cólera, e a cólera -todos o sabem - é má conselheira. Ei-lo a proferir ameaças, praguejando, gesticulando, e, levado pela indignação de pai ultrajado, esquecido do seu fato carnavalesco, atravessa a prancha do Valrosa.
O motorista, que esperava ordens, compreendeu. Põe o Rolls em andamento e ruma para a auto-estrada - pelo porto de Cannes, não se chega lá sem dificuldades-, em direcção a Nice.
Barbin disse que havia uma hora de escala. Durante esse tempo que o horário aéreo lhe concede, John Smith deve poder conseguir salvara honra.
No castelo, as trevas. A calma completa depois da agitação, quase o recolhimento antes do erguer do pano, pois para Anne de Villecroze, como para toda a sua gente, a noite será um espectáculo que comporta, como no teatro, tema, encenação e acção. Como no teatro, o tema é o amor e, como no teatro, não há necessidade de existir para parecer verosímil. É a ilusão que conta, e o reflexo não será o essencial da verdade?
Assim reflectiu a marquesa. Antes de voltar para os seus aposentos, foi aos do marido. Inclinado sobre a sua obra, ele vive também uma ilusão. Os seus documentos, os seus trabalhos, as suas pesquisas, podem fazer-lhe crer que ainda percorre o mundo para lhe descobrir os segredos; mas, de facto, está ali, preso a uma cadeira de enfermo.
Há-de curar-se, há-de curar-se. É isso que a mulher lhe repete obstinadamente, ternamente, e ele finge acreditar nela, finge ceder à sua esperança louca, indestrutível, como cedeu a essa maquinação, esses esponsais ilusórios! Uma maquinação que diverte Anne de Villecroze e da qual ela se sente orgulhosa, sem querer pensar que talvez devesse sentir-se corar. Mas quando é que alguma vez alguém se riu dos casamentos de conveniência, dos casamentos forçados? O importante é o êxito, e o seu brilho apaga sempre o que poderia ofuscá-lo. No seu "negócio" não há batota, os comparsas estão avisados.
Cada um ocupará o seu lugar. Uma única condição: o marquês não estará presente. Sem azedume, disse à mulher:
"Eu não desejaria estragar o teu prazer, mas infelizmente, nós não poderíamos dançar um com o outro.
- Lamento-o, lamento-o do fundo do coração, pois só contigo é que gostava de dançar. "
Anne de Villecroze, que tem o condão de irritar tanta gente, é, para outras, irresistível. É assim para o marido. Indulgente com os defeitos dela, ele aprecia as suas qualidades: o seu ar, o seu desprezo pelas coisas fáceis, a sua maneira de ir direita ao fim sem se preocupar com os obstáculos.
Agora, Anne de Villecroze está nos seus aposentos. Descansar. Reencontrar-se. Despiu finalmente o seu trajo de amazona para vestir um amplo roupão. Tenta estender-se, mas não consegue estar quieta. Parece aqueles actores que desejam apaixonadamente o levantar do pano com a passagem à Terra da Promissão, mas que, ao mesmo tempo, o receiam com uma angústia visceral que escapa a qualquer lógica.
Contíguo ao seu quarto, na sala de vestir, que ela se diverte a chamar a rouparia, um faustoso trajo a espera. Faustoso! Anne de Villecroze sorri. Copiada dum quadro de Watteau que enfeita um dos seus salões e que representa uma encantadora antepassada, uma jovem duquesa que teria podido participar no Embarque para Cítera. Anne de Villecroze suspira... Como se está longe do garbo de outrora!... Lamenta-a ela? Não... Pois, há pouco, a juventude dourada que ensaiava as atracções da noite - outrora, no tempo de Lulli ou de Rameau, ter-se-ia dito entreactos - não tinha falta de encanto. Raparigas e rapazes de fato unissexo, de jeans e tee-shirts comprados na rua.
Pena que a noiva não tenha vindo. Para se ver um pouco como ela é e se está à altura da festa, da qual deve ser a pérola.
Quanto a Michel, está tranqüila. Ele deu a sua palavra e prestar-se-á ao jogo como um jovem senhor. Mas Micky? Essa desconhecida, porque Anne de Villecroze não tem a menor recordação da garota carrancuda e autoritária que declarara que queria Michel. Pois bem, aí está: vai tê-lo...
E Michel? A marquesa não quer enternecer-se. Não manifestou nenhum entusiasmo, certamente, mas, para a salvação familiar, aceitou "sacrificar-se". Comparou-se mesmo, sorrindo, a "uma espécie de Ifigênia". "Mas, bem entendido, não morrerei por isso." Isto para que a mãe não tivesse remorsos.
Sobre uma mesinha, perto do toucador, foi deposto um cofre. Anne de Villecroze abre-o com mão negligente. Conta os adereços postos nos estojos de veludo azul-escuro. Que maravilhas! De novo a ironia brilha no seu olhar. Quem podia supor que as suas jóias célebres são apenas cópias? Como as imitações são belas, graças ao Sr. Duponson!
O Sr. Duponson! Um verdadeiro ourives. Hoje ainda a marquesa espera a sua visita, e quando ele se apresenta, pontual à entrevista, é com a mais franca amabilidade que o acolhe.
Sobriamente vestido, no gênero de agente de câmbio ou de notário, o Sr. Duponson está acreditado junto das melhores famílias e dos maiores lapidários. A Sr.a de Villecroze tem confiança nele e ele sempre tem procurado satisfazê-la, mostrando por esta cliente que sabe rir dos reveses uma certa predilecção.
Ele lançou um olhar para o cofre completamente aberto, com as jóias espalhadas, entre as quais a marquesa escolherá o seu adereço da noite. Trocam um sorriso cúmplice. Sonharia a marquesa com aquilo que foi a prova duma fortuna de que agora se sente frustrada? Não, não sonhava, observa:
"Decididamente, tudo será falsificado esta noite! Mas, meu caro Sr. Duponson, o senhor é um artista. Até eu confundo... era capaz de acreditar que estas jóias são verdadeiras. "
Duponson suspira:
"Por quem é, minha senhora! "
Depois tira da sua bolsinha um pequeno estojo com a tampa marmoriada. Abre-o e apresenta à marquesa um anel resplandecente:
"Alarguei o anel segundo as indicações que me deu. A Menina Smith não será roubada.
- É a vida! "
Anne de Villecroze agarrou no estojo. Fez faiscar o anel - tudo o que resta do naufrágio -, um soberbo diamante de mil quilates. Admira-o:
"Essa americanazinha vai usar um anel de rainha. "
Duponson inclina-se com um ar de conspirador:
"A Sr. a Marquesa não tem pena?... Podia-se... "
Anne de Villecroze interrompe-o e protesta. Não, não pode ser e não sente pena nenhuma. Não se trata de falsificar: isso seria roubar. Que ao menos haja alguma coisa de verdadeiro neste negócio, de verdadeiro como esta pedra inalterável, último vestígio duma fortuna desaparecida.
"Esta noite, o meu filho entregará a Micky Smith esta garantia de casamento. Em negócios, é preciso ser-se honesto. "
Honesto! Questão fora de propósito.
Michel, em parte, obedeceu à mãe. Abandonou a reunião de trabalho, deixando o pai em companhia dos Papuas e de Géraldine, que nunca perde o seu tempo.
Géraldine! Uma espécie de selvagem no seu gênero, bem armada para a luta pela vida e que encara com coragem os reveses da sorte, pois está sempre pronta ao desafio e ao contra-ataque. O futuro casamento de Michel, aceita-o. Qualquer que seja o seu ressentimento (nunca confessará o seu desgosto), é inútil aborrecer-se. Continuar amiga de Michel, continuar sua associada. Na ausência do amor, há muito a fazer. O importante: não o perder. Acomodar-se. Esperar e deixar as coisas correrem.
Entre Géraldine e Micky, qual a diferença? Dum lado, um flirt, uma boa companheira, o gosto duma ambição comum; do outro, uma riquíssima salvação, uma oportunidade, uma riqueza. Quando alguém se sente cobarde, não há de que se sentir orgulhoso. Michel não tem ilusões, nem sobre ele, nem sobre seja o que for, nem sobre ninguém, e, quanto aos seus sonhos, não será preciso sufocá-los. Viver duramente num mundo duro, pouco a pouco insensibilizado à causa dos homens, à subtileza dos sentimentos, aos cambiantes do coração, às aspirações da alma.
Em vez de se preparar para a festa, Michel concede-se uma hora de descanso. Deambula pelo parque invadido pela noite. Dentro em pouco voltará para o quarto, onde Nazaire deve ter o seu fato preparado. Trajo Luís XV cor de pau-rosa, peitilho de renda, meias de seda. Trajo de outra época, um disfarce à Watteau, refinado e frágil para uma festa que vai tentar ressuscitar um mundo morto.
Triste e melancólico, fatigado de viver sem ter vivido, Michel refugia-se no parque. Simulacro duma evasão - liberdade medida.
Respira o perfume dos jardins exaltado pela noite. Tudo parece dormitar, na expectativa dum despertar mágico. Dormitar, dormir, fugir. Michel deixa-se penetrar pela mercê que o cerca, por esse fim de dia que, todo azul, vai cair na noite. O seu coração vazio, o seu coração inútil. O seu coração que desejava amar sem saber o quê nem a quem.
Deita-se na erva, perto dum lago donde sai um repuxo, e adormece aí, refugiado no sono como na esperança.
Durante esse tempo, o carro do Centro chegou. Curiosos, ruidosos, divertindo-se por tudo e por nada, os bailarinos espalharam-se sem pressas de ir ensaiar no palco para fazer "uma afinação" e se habituarem aos lugares. É preciso que o mestre de dança os chame à ordem, e Léonidas Godot não deixa de o fazer. Era mais fácil pôr a dançar as pessoas da sociedade do que trazer ao bom caminho esta jovem tribo turbulenta e que, de tal modo preocupada com a dança, se limitava a mostrar uma espécie de condescendência para se exibir neste ambiente de mundanidade.
Postado na escadaria, a sua preciosa voz erguendo-se até longe para chamar os dispersos, Léonidas Godot procura reunir o seu corpo de ballet. "Vistam-se, peço-lhes. Ensaio no palco dentro de vinte minutos. "
Os bailarinos fazem múltiplas perguntas. Onde é que nos vestimos? É preciso caracterizarmo-nos? Ensaiamos com os convidados ou somos só nós?
"Vocês ensaiam sozinhos. Os convidados já ensaiaram. "
Florentine não pode deixar de fazer um comentário - "É preciso que não haja misturas" - que Léonidas fez de conta que não ouviu. Ele gosta da alta sociedade, e na vida pode-se conseguir chegar a ser alguém tanto pelas relações como pelo próprio talento.
Bem entendido que Léonidas está convencido de que tem talento, e as relações -disso percebe ele representam toda a estratégia da sua vida. Elas são o seu cartão-de-visita, o seu trampolim. Pelo coração, todavia, porque ele tem um coração, Léonidas continua preso ao mundo da dança, a esse mundo que não concede o melhor lugar aos que trapaceiam -e quando fala dos bailarinos é com ternura que diz: os meus camaradas, os meus camaradas.
Os camaradas estão de novo juntos. Nazaire convida-os:
"As meninas e os senhores queiram fazer o favor de me seguir. Os camarins foram preparados no laranjal. "
Depois aproxima-se de Sarah, mais do que nunca vestida como uma cigana. Nazaire pensa que a juventude de hoje é estranha, sobretudo a juventude dourada, que gosta de se pavonear em roupas velhas que vão desde o gênero cortina do Templo à ganga dos fatos dos operários.
"Boa noite, Nazaire.
- Boa noite, menina. Parece que vai dançar esta noite entre nós.
- Sou a estrela, Nazaire, sou a estrela.
- Eu sei. Sinto-me muito contente por poder aplaudir a menina. Preparei-lhe um camarim só para si ao lado do quarto do Sr. Michel.
- A Menina Smith já chegou?
- Não tivemos ainda o prazer de a ver. "
Por um triz que Sarah não dizia em voz alta: "Pergunto a mim própria se a tornaremos a ver..." Mas contenta-se em pensá-lo, enquanto olha Nazaire, que finge o ar de alguém que não desconfia de coisa nenhuma, nem de ninguém e, sobretudo, da heroína do dia.
Marie seguiu os companheiros, que acompanharam Léonidas.
Sob a direcção deste, fazem "um ajustamento" no palco. Um ensaio sem se fatigarem, apenas para a organização do espectáculo, apenas para a marcação dos lugares e para se familiarizarem com o soalho, para estarem seguros do lugar. Saber se se podem fazer aí saltos e vôos sem riscos, piruetas e rodopios sem que fiquem presos nas tábuas mal ajustadas. Não basta que o palco seja aparatoso. Para a dança é preciso também que seja bom, que "responda". Quando o bailarino-estrela ressuscitar os legendários saltos de Nijinski ao criar O Espectro da Rosa, na Valsa de Weber, é preciso que o soalho seja simultaneamente céu e trampolim.
Ensaiam com luzes. Regulam-se os focos, as entradas, as saídas, as cortinas.
Marie desinteressa-se deste ensaio de rotina, que é apenas o último retoque e onde nada tem que fazer. À volta dela há um domínio desconhecido-essa propriedade feita para o sonho, um cenário preparado para uma magia. Uma festa para os olhos, mas não tanto para o coração.
Marie afasta-se e perde-se nas alamedas, por onde se mete ao acaso. Ergue o vestido branco. Caminha com precaução pelo que é difícil descobrir o leve coxear que lhe altera o andar.
Maravilhada, descobre os jardins, as estátuas, as fontes. Ao longe pode ver, se se virar, a "vila" que surge no meio da verdura. A verdura parece negra, mas a fachada está dourada. As janelas altas do rés-do-chão são ainda negros buracos, enquanto no primeiro andar já há luzes.
Além, o teatro ao ar livre, semelhante a uma decoração de Lê Nôtre, e o palco que os bailarinos acabam de abandonar. A noite descera completamente. Uma noite luminosa e azul, que, com o correr das horas, se tornará mais profunda.
Marie vagueia ao acaso, encantada. No meio da penumbra, uma roseira prodigiosa. Marie não resiste e colhe duas rosas nacaradas, depois retoma o passeio. Segue sem pressas, como se o passeio fosse uma dança ou uma pavana, ou antes uma valsa como a d'O Espectro, cuja música soa na sua cabeça enquanto aspira as duas rosas. E de repente, na erva, uma forma estendida.
Pára, com o coração a tremer.
Por instantes assustada, aproxima-se. Michel não se mexe. Ela anda à volta dele, afoita-se, inclina-se. Um adormecido. Um jovem que dorme, separado do mundo. Ela podia falar-lhe. Podia tocar-lhe, pois sob a camisa entreaberta pode perceber um coração vivo, um coração que bate. Então, troçando de si própria, depõe em cima do peito do jovem uma das rosas, cujo ligeiro contacto o faz apenas estremecer, mas que é o suficiente para pôr em fuga a jovem.
Foge, correndo tão depressa quanto o seu tornozelo lho permite, mas acaba por perder um sapato.
Não procurou reavê-lo. E se o adormecido a surpreendesse? E depois, continuando o jogo interior que a faz agir - devaneio, balada nocturna, encontro furtivo -, o sapato perdido não tomará neste caso o valor duma prova?
A Gata Borralheira! Aí está, e Marie sorri, enredada no jogo, sem se deixar iludir por isso. E se o desconhecido fosse um príncipe? E se Marie fosse a mais bela, a irresistível?
Sempre a fugir, sempre a sonhar, vai troçando de si própria; da sua divagação, do seu gesto, do jovem da rosa que dorme tão profundamente sob as estrelas. Mas ele não se mexeu e Marie tranquiliza-se. Ninguém a surpreendeu. Pode continuar a sonhar, a brincar consigo própria às meninas românticas. Porque não? Todas as bailarinas trazem em si o fantasma de Gisela, ou o de Odete, a princesa encantada d'O Lago dos Cisnes.
O teatro, provisoriamente deserto, pertence-lhe. Refugiou-se no palco, o palco onde não aparecerá nessa noite. Mas a música canta no seu coração. A imaginação, o gosto do movimento e do ritmo, tomam posse dela, e Marie põe-se a esboçar passos. Oscila no seu longo vestido, sombra clara entre as sombras.
Na sua imaginação substitui a parceira d'O Espectro. É ela a heroína do poema transfigurado, materializado pela dança -os temas do encontro, dum baile, duma recordação, e a aparição vertiginosa de um atleta sob a aparência dum deus coroado de rosas.
Bruscamente, Marie encontra-se presa num feixe luminoso. Um momento desnorteada, espantada, ouve uma voz que exclama:
"Marie Soler! "
É Géraldine, que, ajudada por um operador, vem regular os projectores para as fotos que vai tirar nessa noite.
A rapariga e a jovem mulher ficam tão surpreendidas uma como a outra. Marie, assustada, procura dominar-se, enquanto Géraldine reencontrou imediatamente o seu aprumo. Porém, a ingenuidade de Marie, em luta com tantos sortilégios, volta a dar-lhe o reflexo de troça que anima sempre os seus sorrisos.
"Marie... Estava a sonhar?... Que é que você dançava? E para quem?"
Desconcertada, Marie não sabe o que dizer e sacode vagamente a cabeça.
"Não estava a preparar nada? Os seus camaradas já estão com as costureiras e os cabeleireiros.
- Eu não posso dançar, contraí uma distensão.
- Não deve ser muito grave, pois está de vestido de baile!
- Parece que a festa vai ser muito bela. Sarah insistiu imenso para que eu viesse.
- E teve razão.
- vou ajudá-la a passar os fatos a ferro.
- A Gata Borralheira quis virá festa. "
Gata Borralheira! Novamente evocada, e desta vez por uma mulher que não acredita nos contos de fadas, que, aliás, nunca acreditou. Marie dissimula o melhor que pode o pé descalço. Se Géraldine o vir, vai fazer perguntas. Não se passeia meio calçada, mesmo numa noite de festa. Não é normal para uma pessoa em seu juízo.
Mas ela não viu nada e contenta-se em abanar a cabeça, dizendo:
"Você é uma rapariga estranha! "
É verdade que o comportamento de Marie, as suas maneiras, o seu físico, sempre lhe pareceram insólitos e encantadores. "Encantador", essa palavra fora de moda, mas que, aplicando-se a Marie, exprime todavia o seu sentido profundo, o seu sentido mágico. Nesse viveiro que é o Centro, Géraldine distinguiu essa pequena cheia de qualidades, mas que parece não se interessar com elas por aí além. Saberá ela explorar verdadeiramente as suas possibilidades? Porque, para Géraldine, isso é tudo: o talento é muito belo, mas a sorte é o melhor.
Marie desapareceu. Não gosta de Géraldine, que lhe mete medo. Uma mulher nova que parece demasiado segura de si própria, demasiado segura das suas opiniões, sempre à vontade em toda a parte e em quaisquer circunstâncias.
Começam a iluminar o arvoredo, as fontes transformam-se em luz e o dorminhoco desperta. Michel leva a mão ao peito e aperta a flor fresca, cujos espinhos acabam por o acordar. Ergue-se. Vamos, chegou a hora, é preciso voltar à vida.
No meio da erva, um objecto brilha ligeiramente: um sapato de cetim. Michel sorri e agarra-o. Mete-o na algibeira e, com a rosa na mão, dirige-se para a "vila", intrigado e divertido ao mesmo tempo com os seus achados.
"Que deseja, menina?
- A Menina Sarah Green, por favor. "
O criado de quarto mede Marie de alto a baixo, olhando-a com surpresa. De facto, não é a rapariga que o intriga, mas esse pé nu, pousado na escadaria.
"A Menina Green está a preparar-se no quarto que lhe tínhamos reservado.
- Eu sei. É capaz de me conduzir junto dela? Ela está à minha espera. "
Nazaire fixa com insistência o pé nu, depois resigna-se a conduzir a jovem visitante, que o segue e que caminha com indiferença quer sobre o tapete, quer sobre as vetustas lajes. Ao chegar em frente da porta de Sarah, Nazaire toma um ar importante:
"Previno-a de que a Menina Green tem uma visita neste momento.
- Eu espero. "
Desta vez, Nazaire sai da sua reserva e não pode reter uma observação:
"Posso fazer notar à menina que lhe falta um sapato?"
Marie sorri com um sorriso de desarmar:
"Assim acontece, de facto, e, se o encontrar, peço o favor de mo trazer. Obrigada..."
E Nazaire fica perplexo e embaraçado.
No aeroporto, postado na varanda, mas isolado pelos parapeitos e pelos corrimãos, Barbin bate o pé de impaciência. Contanto que o Sr. Smith chegue a tempo!
O embarque para Roma é anunciado.
O rebanho dos passageiros trota docemente na pista e cada um surge na escada de acesso. Filtrados por uma hospedeira de bordo, precipitam-se um por um no aparelho. Entre eles, "o bando de Micky" põe uma nódoa matizada.
No momento de subir, um dos hippies parece hesitar e volta-se com ar de súplica. A silhueta de Barbin faz apenas um sinal de inteligência, que deve significar: "Vai, segue o teu caminho." E Oreste segue a formidável trunfa que o precede e que, segundo toda a verosimilhança, deve pertencer à fugitiva.
Oreste, que segue essa trunfa como se caminhasse atrás do rasto dum cometa, volta-se de novo antes de desaparecer na carlinga. Por sua vez, dirige ao patrão um pequeno sinal fatalista e resignado. O Katmandu é longe e Oreste sente o coração pesado ao lembrar-se da sua trapeira do Gâtinais, onde os vasos de petúnias estão em flor.
Ao longe, Barbin agita-se: "Coragem, coragem, havemos de acabar por a agarrar. "
Barbin não passa despercebido. Tal como um semáforo, executa diversos movimentos, em código secreto, o gesto substituindo a palavra que gostaria de dizer ao ouvido do seu missionário, de que nem tudo estava perdido. Todos os minutos são preciosos e todos sabem que os transportes aéreos, por mais rápidos que sejam, são também os mais demorados a pôr-se a caminho. Os motores do Boeing ainda não estão a roncar e o pai de Micky, o Sr. Smith, está certamente a chegar.
Efectivamente, ei-lo que chega.
John Smith saltou do seu Rolls brilhante como prata maciça. Preparado para tudo, até o está já para a festa: vestido com o seu belo trajo Luís XV, de peruca branca, casaco bordado, tacões vermelhos. Os próprios hippies que se preparavam para partir - os hippies freqüentam muito os aeroportos, que consideram como lugar ideal para a viagem, para a realização dos seus sonhos - os hippies que se preparavam para partir, eles próprios, estavam de boca aberta. Seja qual for o seu desinteresse pelas aparências deste vale de lágrimas, não podem deixar de contemplar esse personagem e a sua farpela, que faz que as deles pareçam verdadeiros uniformes.
Indiferente à curiosidade que suscita o seu estranho trajo, John Smith, de Chicago, em pessoa, corre como um campeão da maratona. Sem complexos, empurra, acotovela -"sorry, excuse me" curiosos e funcionários.
Barbin viu-o.
Precipita-se ao encontro do seu cliente. Mas, cos diabos! durante o tempo que levam para decidir qual a intervenção decisiva, a ponte de acesso ao avião é recolhida. Clac! a porta da carlinga fecha-se e, sem pressas, mas de forma inexorável, obedecendo por sua vez ao controlo e aos fusos horários, o avião rola, arrastando o seu enorme ventre, e afasta-se para ganhar a pista de vôo, branca e balizada, que se estende ao longo da margem.
O Mediterrâneo azul-marinho, liso e chão ao crepúsculo que caía, um crepúsculo glorioso para o céu esbraseado lá para o ocidente, enquanto o oriente já fora atingido pela noite.
Sufocado, fora de si, o Sr. Smith pergunta:
"Onde está ela?"
Barbin apenas pode designar o grande aparelho que se afasta:
"A bordo.
- A minha filha a bordo! E você não fez nada? Era preciso retê-la. Ou então organizar um rapto. "
Barbin recusa-se:
"Um rapto! Nós não somos nenhuns piratas, my dear. Nós somos apenas polícias, polícias particulares, isto é... "
Mas Barbin não acaba a frase. É que os "particulares" dispõem de poucos meios. Desempenham o trabalho mais delicado, não gozando da mínima protecção legal, e são muitas vezes "os oficiais" que se manifestam como o seu inimigo n. ? 1, mais do que os homens a abater ou as raparigas a recuperar.
Todavia, a palavra "polícia" lembrou ao Sr. Smith, furioso, que a polícia podia ser todo-poderosa.
"Polícia! O. K. Era preciso tentar uma detenção provisória. Deter Micky e pregá-la ao solo.
- Pregá-la ao solo! Isso é bom de dizer. E eu ainda pensei nisso. Eu penso em tudo, eu, é o meu ofício. Certamente que era fácil criar um incidente: uma interpelação, verificação de papéis, inspecção de bagagens e de roupas... Mas... e os riscos! Quais teriam sido as reacções da Menina Smith? Dado o seu caracter independente, digamos mesmo, até prova em contrário, indomável...
"O Sr. bem o sabe, pobre Sr. Smith! Ora Micky podia até amotinar as pessoas-nisso também eu pensei. A sua malta deitava-se para aí no chão, à volta dela.
" Note que, felizmente, são dos não-violentos, mas quando eles se metem nisso nada os impede de fazer barulho. E os jornais, sobretudo os da oposição, ocupavam-se logo do assunto. Falava-se logo de repressão, de juventude humilhada. E conhece as tendências de hoje, não conhece? Os adultos dão sempre razão à juventude, sobretudo quando ela a não tem... Para no meio disto tudo terem ar de compreensivos. Em suma, as pessoas humilham-se literalmente perante os jovens. Eles matam! -foi porque tiveram uma infância difícil... Eles incendeiam! - a falta é dos construtores... Não, não e não, não se pode lutar contra um tal estado de espírito... "
Pobre Barbin... É como se falasse para si próprio, enquanto o Sr. Smith segue com olhar simultaneamente impotente e ameaçador o avião, que no fim da pista, desenhado a negro sobre o mar, se prepara para abandonar o solo, pondo os seus motores a roncar com um barulho infernal.
Sim, pobre Barbin, que fala como se lamentasse um mundo onde as crianças se precipitavam no caminho traçado pelos pais, numa época em que se usava orelhas de burro e em que se podia apanhar reguadas nas mãos... O bom tempo, pois! A sua própria juventude, fosse ela qual fosse, mas a sua juventude.
E continua com veemência, tentando voltar ao assunto, antes de se deixar levar pelas suas recordações e pelas suas saudades:
"A vergonha, o escândalo, se se sublevar a opinião. O seu nome, a sua reputação, enxovalhados, é para os Villecroze uma afronta irreparável. Ao passo que, se agirmos com delicadeza... "
O Sr. Smith berra:
"com delicadeza! Mas ela escapa-se, olhe, olhe, ela escapa-se."
Efectivamente, Micky partiu, irremediavelmente. O avião descolou, afasta-se, toma altura, vira as costas aos problemas de família.
O Sr. Smith não recuperou a sua fleuma, a sua linguagem ressente-se disso:
"A noite está estragada. Agora, que nós estávamos preparados para viver em boa harmonia, os nossos amigos vão ficar ofendidos! Não há mais nada a fazer para evitar o escândalo. A ausência desta filha maluca não terá justificação.
- É verdade -disse Barbin -, mas entre pessoas de princípios há sempre um meio de as coisas se arranjarem... As pessoas bem-educadas sabem fechar os olhos e, se tiverem de os abrir, sabem como se calar. "
Barbin tomou o ar manhoso de alguém que teve uma ideiazinha que começa a germinar. Smith observa o rosto do seu "particular", que o leva a sentir um renascer de esperança, mas, como o Boeing desapareceu definitivamente no belo céu crepuscular, replica, desiludido:
"Mesmo assim! Eu não posso pedir aos Villecroze e aos seus convidados que tenham os olhos fechados durante toda a noite.
- Evidentemente. Tanto mais que estes esponsais estão anunciados como uma festa, como um verdadeiro regalo para os olhos. Eu tenho cá uma idéia... "
O ar manhoso de Barbin tornou-se um ar guloso. A sua idéia germinou e está a crescer, a crescer, e deve ser boa. Vai juntamente revelá-la, confiá-la, a sua pequena idéia. O caro Sr. Smith paga-lhe para isso.
John comunicara a idéia de Barbin à esposa. Porque não?
Pelo seu lado, a Sr. a Smith não perdera o seu tempo. Assim que o marido partira, ela preparara-se, por sua vez. Não lhe tinha John-John dito: "Arranja-te e vai para o castelo"?
Mildred, enquanto se embonecava e vestia, ia-se preparando para tudo: exteriormente, para a festa, para o êxito dum projecto acariciado com amor, se se pode dizer; interiormente, para o escândalo, para a ruptura, para o fracasso dum sonho!
Como toda a americana que se preza, Mildred Smith era vaidosa e requintada. Que pena que o seu prazer fosse estragado por essa filha impossível que os fazia desesperar e da qual era preciso livrarem-se o mais depressa possível!
Que o jovem marquês a domasse - ele era de boas famílias; seria também um homem de pulso? - ou que se submetesse à rebelde, isso já não interessava aos Smith. Os filhos suspiram sempre pela sua emancipação, e os pais então! Não se acredita que eles possam procurar também uma emancipação que lhes agrade e seja justamente merecida?
Sim, era pena que o seu prazer se fosse pela água abaixo. Ela tinha um vestido extraordinário, copiado ponto por ponto dum modelo da Pompadour, que era famosa em matéria de elegância. Fora Micky quem quisera os trajos de máscara para os seus esponsais, uma maneira de dizer que o seu casamento seria uma mascarada.
Daphne, a criada de quarto, de pele negra, mas vestida com um uniforme azul-celeste, com a cabeça encarapinhada coroada com uma pequena touca encanudada, andava atarefada em volta da mistress, observando-a com olhar atento.
A mistress virava-se, tornava-se a virar, em frente do espelho de três faces. De costas, de perfil, de pé, nimbada de luz, afastando-se e aproximando-se dum múltiplo reflexo que parecia satisfazê-la e que Daphne admirava sinceramente. Saias de balão, bofes, Abordados, grinaldas, níveas perucas e diamantes faiscantes.
Para além destas maravilhas, Daphne colocou uma longa capa de cor de papo de pombo. "Beautiful, mistress estava very, very beautiful." Elogios que enchiam o coração de mistress de amargura. Tantos esforços que se arriscavam a não servir para nada, senão para ofender a marquesa, sua amiga, que a essa hora devia estar a vestir-se na ponta da unha.
E Mildred repetia para si esta expressão bem popular, sem saber ao certo que é que ela queria dizer, mas apenas que significava qualquer coisa da última moda.
Pediu a Daphne que mandasse vir o carro; o seu-um comprido Cadillac que não era evidentemente de ouro maciço, mas que valia no entanto o seu peso em dólares. O mordomo a conduziria. Prática e previdente, recomendou a Daphne que não esquecesse nada e, endireitando os folhos do vestido, instalou-se no banco detrás do carro, enquanto Daphne espalhava à sua frente, com grandes precauções, o Vestido, o da Noiva, o de Micky, uma obra-prima que por enquanto apenas cobria um fantasma.
Mas se por felicidade John-John trouxesse a ovelha desgarrada -ovelha tinhosa, sim, pensava a Sr. a Smith -, ela encontraria os seus aprestos no castelo. Pelo lado dos criados, seria fácil arranjarem-se para a vestirem às escondidas. Não era Nazaire um modelo de dedicação, além de eficaz, discreto e compreensivo? bom Nazaire. Havia de se lhe dar uma boa gorgeta para que ele acreditasse naquilo que lhe contassem. O pai traria uma filha de andrajos, mas o vestido de contos de fadas ia transfigurá-la e a honra seria salva.
Não foi pois pelo vestíbulo, a entrada de honra, que a Sr.a Smith penetrou no castelo. Modestamente, astuciosamente, preferiu a entrada de serviço. Maneira de passar despercebida, porque por nada deste mundo queria arriscar-se a encontrar a marquesa antes de estar na possibilidade de lhe apresentar "a prometida".
As suas precauções não eram em vão. Antes de qualquer outra pessoa - excepto a filha, evidentemente-, queria encontrar Sarah, que conhecia bem de mais a prima. Sarah, louca pela dança, decerto, mas tão razoável, tão segura. Ah! se a sobrinha fosse a sua filha, Mildred Smith ter-lhe-ia dado imediatamente os meios de financiar uma companhia. Enquanto aquela fedúncia da Micky não prestava para nada de nada.
Como estava em boas relações com os Villecroze, graças a Géraldine, de quem era "camarada", Sarah talvez pudesse, nestas circunstâncias, dar um conselho, fazer uma sugestão, ter também uma idéia, como Barbin, a quem não faltava audácia. Transmitida pelo marido, a solução do desespero ia germinando na cabeça da mãe indignada. Enquanto espera, vejamos Sarah: há mais idéias em duas cabeças do que numa só.
Enquanto a Sr. a Smith se metia pelos corredores de serviço como uma ladra, para chegar ao quarto onde se encontrava Sarah, Anne de Villecroze saía dos seus aposentos. Pronta finalmente, decidida ao grande jogo, queria dar um último olhar aos preparativos que ordenara. Passar em revista as baixelas de prata, as flores, os criados eventuais. Dizer "boa noite" aos músicos. Encorajar os electricistas. Em breve, para ela, uma espécie de sonho de uma noite de Verão.
com andar imponente na sua saia de balão, parecia a rainha da noite. Percorreu rapidamente a galeria que dava para o vestíbulo, e, mal erguendo o vestido, desceu a escada de mármore, atapetada de veludo.
Michel, que voltava do jardim, acolheu-a sorrindo, enquanto a mãe exclamava:
"O quê! Ainda não estás pronto? Os convidados vão chegar dum momento para o outro. "
Enquanto falava, ia olhando com orgulho o jovem, que usava com elegância uns jeans desbotados, uma camisa de cow-boy sob um blusão já usado. Parecia inexplicavelmente feliz e "algures", como que emergindo dum mundo invisível e encantado. E segurava uma rosa. Saudara a mãe com uma cerimônia fingida e uma verdadeira admiração:
"Minha senhora, está soberba. "
O cumprimento fez o seu efeito, porque o olhar de Michel não mentia. A marquesa empertigou-se um pouco no seu vestido:
"É assim que me sinto à vontade. "
Depois chamou a atenção para a habitação, os jardins, eles também em trajo de gala, iluminados, cintilantes, preparados para o prazer dos olhos, e, rindo, suspirou:
"Ah, como eu teria gostado de ser a heroína desta extravagância! "
Uma loucura. Seria a última...
Era preciso acabar em beleza, era preciso pelo menos esta exibição de luxo, este fausto requintado para concluir um casamento de conveniência. Depois da salvação, Anne de Villecroze jurara a si própria ser prudente; começaria a viver à moda actual e viraria as costas a um gênero de existência ultrapassado. O trabalho era rei. Seja. Trabalharia. Em quê? Depois se veria.
Porque não fazer como aqueles lordes que oferecem hospitalidade fazendo-a pagar muito caro? A "vila", assinalada nos roteiros internacionais, tornar-se-ia a residência daqueles que possuem os meios de se oferecerem estadas para apreciar a vida num castelo.
Alexis, pelo seu lado, podia continuar os seus trabalhos e as suas pesquisas sem mais se preocupar com o dia seguinte. A vida ainda valeria a pena ser vivida e o encanto e a diplomacia que ela desperdiçava no seu mundo utilizá-la-ia nos negócios. Sim, seria engraçado!
Fixando outra vez o olhar no filho, repetiu: "Oh, sim, invejo esse Micky, que tem o poder de se oferecer a si própria um tal capricho; eu gostava bem de ser a heroína desta extravagância."
Michel beijou-lhe a mão dizendo: "És a alma dela. "
Sorriram ambos, o que revelou a sua semelhança e a sua ternura mútua. A Sr.a de Villecroze replicou:
"A alma -danada! Que queres tu, meu filho, é preciso viver e o teu pai morrerá contente.
- Mama, sempre dizes coisas! O papá tem tanta intenção de morrer como tu.
- Espero bem que sim. Isto é uma maneira de falar. "
Ela reparara na rosa que Michel segurava delicadamente; estendeu a mão: "Dás-ma?
- Não, guardo-a.
- Para a tua noiva?"
O jovem não respondeu.
Nazaire ia a passar, chefe de estado-maior atento ele também a que nada fosse esquecido. Sabendo muito bem que a marquesa jogava uma grande partida, que era preciso ajudar a ganhar. Pelo Sr. Michel, que ia tornar-se rico e que podia, enfim, expulsar os credores que assediavam a casa.
com um gesto, Anne de Villecroze fazia notar ao mestre de cerimônias que o herói da festa ainda se apresentava em trajo de freqüentador dos pampas ou de Saint-Germain-Prés e que, apesar da bela flor que trazia como relíquia, por enquanto nada tinha do cavaleiro da rosa.
Nazaire esboçou, muito respeitosamente, um movimento de censura:
"Como vê, Nazaire, o Sr. Michel está longe de estar pronto. Vá com ele para o ajudar. E que ele não esqueça o anel. Pu-lo no estojo, em cima da mesa-de-cabeceira. "
Nazaire precedia já o jovem a subir a escada. Michel seguia contra vontade, com a cabeça virada para a mãe, que o encorajava.
O anel! O diamante de família, a pedra inalterável, a jóia que sua mãe amava entre todas. A única que ela guardara no seu valor e na sua beleza originais e cujo aro acabava de mandar alargar, para Micky. Nunca mais Michel veria o diamante posto como uma chama nas mãos extraordinariamente distintas de sua mãe.
Anne de Villecroze, vendo-o afastar-se, fazia as suas últimas recomendações:
"Não o percas. Tens de o dar a Micky no fim do bailado, quando estiverem os dois no palco. "
Michel aquiesceu, agitando a rosa que encontrara há pouco, misteriosamente sobre o coração.
A idéia de Barbin ia germinando. A Sr.a Smith, no seu belo vestido Pompadour, conversa com Sarah, tomando uns ares de conspirador perturbado pela vingança.
No quarto, mobilado com um leito de dossel de cortinados de seda e com um mobiliário precioso, Sarah criou o clima tradicional dos camarins das bailarinas. Os saiotes de tule pendurados ao acaso decoram a sala de singulares ramos de flores.
Collants de seda, sapatos, coroas, um amuleto e, espalhada em cima do toucador de madeira de amaranto e de violeta, a maquilhagem.
Já com o rosto pintado e penteada para a primeira entrada, Sarah acaba de tirar os collants, fazendo as construções do costume. O que não a impede de ouvir a tia e de partilhar um pouco das suas inquietações. Mas a idéia de Barbin parece-lhe "excessiva"; e qual será o resultado?
A Sr.a Smith insiste:
"No fundo, tu és aqui a única pessoa que conhece Micky.
- E o Sr. e a Sr.a de Villecroze, além de Michel.
- A última vez que eles a viram foi quase há sete anos. Entre os doze e os dezoito anos, uma rapariga pode mudar completamente! Aliás, foi isso que ela fez... não para melhor, ai de mim!
A Sr.a Smith suspira. É bem certo que Micky mudou, e isso apesar de todas as lições, de todos os exemplos. Uns pais-modelo para nada, nada senão uma filha perdida que troça dos costumes, do futuro, da high society, da qual faz parte, para escolher uma liberdade ilusória, uma vida aventurosa e amigos piolhosos. Sofrer para pôr no mundo um ser que se revela a pior das estranhas... A Sr.a Smith bem pode suspirar.
Por muito arriscada que a idéia de Barbin possa parecer -se se puser em execução-, ainda pode salvar a situação. Evitar o escândalo, a ofensa aos Villecroze. Esta idéia -e não se encontra mais nenhuma- é a única tábua de salvação, e a Sr.a Smith tenta fazê-la admitir pela sobrinha.
Convicta dos seus argumentos, a Sr.a Smith repete com convicção:
"Micky é doida, completamente doida, e má, muito má. Mas desta vez tanto pior, John-John vai-lhe cortar a mesada.
- Não é isso que vai trazê-la esta noite.
- Só há duas soluções: ou dizemos a verdade à Sr.a de Villecroze...
- Isso não é possível! ", exclama Sarah.
Ao que a Sr. a Smith replica com a energia do desespero:
"Então adopta-se a idéia de Barbin e vamos substituir a Micky."
Sarah está assombrada: "Substituir Micky, mas por quem?
- Por qualquer pessoa.
- Micky não é qualquer pessoa! "
com um gesto, a Sr. a Smith despreza essa consideração. As horas passam e a sua decisão, como a do marido, é irrevogável.
Perfeitamente, vai-se substituir Micky. Servir-nos-emos do que se encontrar. O teu tio está à espera que o Sr. Barbin volte; ele deve trazer-nos a rapariga que, por esta noite, será a nossa filha. Seja quem for, não deve ser pior do que a nossa.
Toc, toc...
"Entre. "
É Marie. Um pouco confusa por vir interromper uma conversa que devia ser apaixonante, fica no limiar. Faz uma breve reverência em direcção da Sr.a Smith e dirige-se a Saràh:
"Desculpa-me. Vinha ver se precisavas de mim.
- Entra -exclama Sarah -, entra e fecha a porta. "
Marie avança, encantadora no seu vestido comprido e trazendo como único enfeite uma rosa - uma rosa nacarada que cheira bem.
Sarah apresenta-a à tia:
"É Marie, Marie, a minha melhor amiga no Centro. Esta é a Sr. a Smith, a mãe de Micky. "
Marie repete a sua reverência, como só as bailarinas sabem fazer. Sorri, enquanto a Sr. a Smith pensa de alto:
"She is lovely! Como está?
- A minha tia diz que és adorável. "
Sarah, que passou o vestido a ferro, tem dificuldade em fechar os colchetes do corpete. com toda a naturalidade, Marie vem ajudá-la, dizendo:
"Vira-te, encolhe a cintura. "
Sarah obedece, enquanto Marie abotoa o estreito corpete.
"Estás a ver que fizeste bem em vir. Estás a prestar-me um serviço.
- Quando estiveres pronta, vou ver as nossas companheiras. Deve ser tudo uma maravilha. Tu é que tens sorte em dançar. Já vi o teatro. É o que há de mais belo! "
A Sr. a Smith aproximou-se e parece particularmente interessada:
"Você não dança?", pergunta ela a Marie.
A jovem mostra o pé ligado:
"Não posso. Magoei-me.
-Sorry. "
Mas Sarah, ao contrário da Sr. a Smith, viu o pé nu.
"E o teu sapato?"
Marie começou a rir para esconder o embaraço: "Perdi-o.
- Mas como? Não se perde assim um sapato! Apanha-se... Que é que te aconteceu?
- Oh, nada, depois te explicarei... "
Difícil para Marie dizer a verdade. Passar por uma parva que, lá porque se perdeu num parque solitário, se põe a sonhar e que, ao encontrar um jovem adormecido, o contempla e depõe uma flor sobre um coração desconhecido, igual àquela que prendeu sobre o seu? E, depois, teve medo... E se o adormecido abrisse os olhos, a visse e começasse a troçar dela?
Fugiu, perdeu um sapato e não ousou ir à procura dele. Voltará lá mais tarde. Há-de encontrar o arvoredo que abriga o lago... O sapato deve ter ficado caído na erva...
Que pode fazer um sapato quando há um encontro mágico? É de não contar, é de guardar essa magia para si. Sarah riria, chamar-lhe-ia "atrasada"...
A Sr.a Smith, que não se cansa de observar Marie, acha-a adorável. Uma verdadeira menina como os bons pais sonham! Uma rapariga de físico ideal.
Certamente que o vestido é bonito, de mangas compridas, corpo subido, gola encanudada. Um vestido à antiga, tão querido das raparigas de hoje. O inimitável andar das bailarinas, o porte da cabeça encantador, os cabelos levantados num rolo, deixando livre a nuca e o pescoço, que o branco fazia parecer mais tom de âmbar.
Sim, um lindo vestido e sobretudo uma linda rapariga. E a Sr.a Smith retoma coragem. Ela vai antecipar-se a Barbin, sabe-se lá. Mais vale tentar servirmo-nos do que se encontra, sobretudo quando o que se encontra se parece com Marie. Pergunta: "Mas então, se você não dança, está livre!... "
Marie olha-a sem compreender, enquanto Sarah, essa, já compreendeu e troca um olhar de conivência com a tia, que começa a falar muito depressa e com veemência.
"Faça-me um favor, menina, e evite-nos uma ofensa aos Villecroze, que nunca mais nos perdoariam e teriam razão para isso. É preciso salvar a situação, compreende?"
Marie abana a cabeça. Não, não compreende. E a Sr. a Smith insiste:
"Aceite o papel que fará de si a rainha da noite.
- Mas, minha senhora, eu já lhe disse que não posso dançar.
- Não se trata de dançar! Você anda: para nós, isso é o essencial. E, além disso, você é particularmente encantadora. Graças a si, a ilusão será possível. Proponho-lhe substituirá minha filha. "
Marie fica sem voz. Incrédula, indecisa: "Isso é a brincar?"
Mas Sarah vem já apoiar a proposta da tia: "É tudo o que há de mais sério. Aceita, Marie, aceita, sou eu que te peço. "
E a Sr. a Smith continua:
"Peço-lhe, Marie, aceite. Não há-de lamentá-lo. Nós temos de dar uma lição a Micky, que se diverte a arruinar as nossas esperanças. O jogo que lhe proponho será a última oportunidade. Repito-lhe, é preciso ao menos esta noite salvara situação. Depois, serão apenas as explicações para arrumar a questão. Anne...
-Anne?", pergunta Marie, que tem dificuldade em seguir o projecto da Sr. a Smith.
Sarah explica:
"Pois bem, sim, Anne, Anne de Villecroze, a mãe de Michel, a mãe do noivo. Eu já to tinha dito quando ela me pediu que preparasse com os alunos do Centro um bailado para o Sarau. "
A Sr. a Smith continua, dirigindo-se sobretudo a Sarah:
"Anne é a pessoa mais compreensiva que conheço. Tem um grande sentido de humor. Será talvez a primeira a rir da mistificação que nós possamos conseguir graças a Marie. "
Sarah aponta para uma fotografia encaixilhada em cima duma cômoda Regência. Apresenta-a a Marie:
"Olha, aquele é o Michel, o noivo. com ele não será uma estopada. "
O retrato de um jovem como as raparigas podem sonhar. Marie sufoca a exclamação que lhe sobe aos lábios, pois reconheceu o adormecido, o jovem da rosa. Hesita, reflecte, simultaneamente divertida e tentada, enquanto a Sr.a Smith e Sarah esperam pacientemente a sua reacção, a sua resposta. Tem um sorriso de candura para dissimular a ironia da sua pergunta:
"Se eu aceitar a vossa proposta, minha senhora, não tenho de casar mesmo com o Sr. de Villecroze?"
"Que idéia! Esteja tranqüila. Não lhe pediremos que vá até aí! Você passará pela noiva de Michel, mas no fim de contas é Micky quem casará com ele. O jogo acabará com o sarau. Partidos os últimos convidados, eu confessarei a fraude. A Sr.a de Villecroze perdoará, porque o filho lhe dá igualmente grandes preocupações -embora noutro plano. O que importa é salvar uma festa dada em nossa honra. Os Smith só têm uma palavra e este casamento é um negócio. É, de certo modo, a compra dum carro de grande marca em troca de um em segunda mão.
Pelo menos, a americana fala com franqueza. Marie desejaria abster-se de ceder à tentação. Não sonhará ela com uma conquista? Será apenas para rever o homem que dormia como que desligado do mundo. Conhecer o seu olhar, o som da sua voz. Dar-lhe o braço, ouvi-lo...
Representar um papel é libertar-nos. A aventura toma o aspecto dos contos de fadas; porque recusar vivê-la? Ser ela própria como não se tem a coragem de ser em 1974, escondendo-se atrás duma outra! O romanesco que a vida moderna exilou com os tempos que já lá vão continua jovem e duradouro, sempre pronto a retomar o poder com a imaginação.
A Sr.a Smith chama de novo o testemunho de Sarah:
"O importante agora não é já a personalidade da noiva, mas que haja uma noiva, e Marie responde idealmente à situação. "
Marie ainda não disse que sim, mas também não disse que não, e vai-se deixando seduzir sem reparar na cilada.
"Encontraste alguém quando chegaste? - pergunta Sarah.
- Não... Não... Estava com as outras companheiras. Elas foram para "o camarim" e eu fui passear um pouco. O parque estava completamente deserto e não encontrei ninguém, excepto, no vestíbulo, um criado de grande aprumo a quem disse que desejava ver-te.
- Grande aprumo! É Nazaire, forçosamente. -Ele indicou-me o teu quarto e depois, muito delicadamente, fez-me notar que me faltava um sapato! Então pedi-lhe o favor de mo trazer, se por acaso o encontrasse. "
A Sr. a Smith implora:
"Então menina? Aceita ou não? Peço-lhe. Habitualmente, você dança, esta noite vai representar uma comédia. "
Sarah passa já à acção. Em primeiro lugar: chamar Nazaire. Nazaire, em rigor, não sabe quem é Marie, mas as colegas? Quando elas virem "a noiva", não se arriscam a começar a rir, a agitar-se, a trair-se? E Léonidas Godot, que marcou e ensaiou com Michel a representação de Micky, desempenhando com ares efeminados o papel da ausente, que fará ele quando vir aparecer, em vez duma jovem milionária, uma das alunas do Centro?
"Não te rales. Eu vou prevenir as colegas no momento do bailado. Quanto a Léonidas, é o homem mais astucioso, mais sagaz, que existe. Vai farejar qualquer coisa, mas entrará no jogo. "
Enquanto falava, Sarah tocou a chamar Nazaire. "Que é que eu tenho que fazer? - pergunta Marie.
- Deixa-te conduzir, fala o menos possível; aliás, neste gênero de festas, a banalidade das conversas é de rigor. É como se fosses representar Esta Noite Improvisa-Se. Pois bem, improvisarás, levada pela situação. Tenta empregar um pouco de sotaque.
- O sotaque! Não conseguirei. "
Sarah está entusiasmadíssima. A noite que se prepara promete ser muito mais divertida do que aquela que previra. A não perder para uma iniciada.
"Não tens senão de te calar, e, além disso, Micky foi criada num colégio francês, nos Dominicanos. "
A Sr. a Smith adianta o que julga serem os últimos e os melhores argumentos:
"Pagar-lhe-emos um bom cachet, menina. O serviço que nos vai prestar não tem preço. "
Depois de ter batido discretamente, Nazaire apareceu, respondendo ao chamamento. Cumprimenta e pergunta a Sarah o que é que deseja.
"Precisamos de si, Nazaire. A Menina Smith tem de se vestir. Já é mais que tempo. "
Espantado, Nazaire não pode deixar de manifestar a sua surpresa: "A Menina Smith! ", e olha para a jovem de pé descalço, aquela que guiou há pouco sem poder imaginar um segundo que era a heroína da festa, a retardatária que fazia a marquesa bater o pé de impaciência.
"Menina Smith! ", repete Nazaire no auge da surpresa.
O seu olhar curioso vai e vem da pretensa noiva para a Sr.a Smith, passando por Sarah, interrogativo, sem todavia ousar fazer perguntas. Que estranha maneira de se introduzir numa casa onde tudo foi organizado para a acolher com honra e fausto! Sabe-se que a Menina Smith é "extravagante", mas mesmo assim... Certamente que é encantadora, mas o vestido -fica-lhe bem, é verdade- é simples de mais e não corresponde em nada ao protocolo da noite, e se a Sr. a Smith está mascarada -e de que maneira! -, a noiva está longe de evocar os luxos do século xviii que impôs. Então?...
Sorridente, um pouco volúvel, a Sr. a Smith procura responder: a comédia vai começar e vai ser preciso ganhar a partida combinada. Nazaire é um comparsa com quem é preciso contar. Agarrou Marie pela mão, como se a apresentasse ao criado de quarto, que se inclina, deferente.
"Meu caro Nazaire, a minha filha é uma incorrigível romântica. Não faz nada como as outras pessoas, e para os seus esponsais quis entrar aqui como, como... "
Pàrou, não encontrando a palavra que conviria para justificar o último capricho da "filha". Mas Nazaire é cheio de subtileza e vem em seu socorro, dizendo.
"A Menina Smith quis penetrar aqui como uma simples mortal. "
Por um pouco que Mildred Smith não o abraçava.
"Aí está: foi exactamente isso, como uma simples mortal! "
Nazaire está bastante satisfeito por ser aprovado, doseia o respeito com a cerimônia e é com arzinho entendido que se inclina diante de Marie dizendo:
"Eu compreendo, menina. "
A Sr. a Smith continua, porque a hora aproxima-se:
"Numa palavra. Era preciso, Nazaire, que fosse pedir ao Sr. Smith, que está à espera na entrada de
serviço... "
Na entrada de serviço, o Sr. Smith! Decididamente, estes americanos têm costumes surpreendentes! Ou são crianças grandes, que se divertem com os acontecimentos mais graves? Mas a Sr. A Smith, que o leva a reflectir, não lhe deixa oportunidade de o fazer:
"Nazaire: é mais que tempo de Micky se preparar. O trajo dela está no carro. Ela vai vestir-se aqui. Depressa, diga ao meu marido que venha ter comigo aqui, mas que tenha cuidado em que não o vejam - por enquanto. "
Apenas ele saiu, a Sr. a Smith contempla rapidamente Marie. Não, não se podia encontrar melhor. É preciso dar os últimos retoques e explicar-lhe certas coisas, dar-lhe algumas chaves da situação, falar do seu cachet, se bem que Marie tenha feito um gesto de recusa sobre esse assunto.
Mas negócios são negócios! Em caso algum essa rapariga providencial deve ser lesada.
Na entrada de serviço, mas a uma boa distância da porta, o Rolls está estacionado na alameda de plátanos. Nazaire viu imediatamente o carro, que brilha suavemente sob a cobertura das árvores. O Cadillac está lá igualmente, esguio e negro como um felino.
O Sr. Smith ficou sobressaltado ao ver Nazaire passar a cabeça pela portinhola, saudando-o e dizendo-lhe rapidamente, com um ar de conspirador:
"A Sr. a Smith manda pedir o vestido da menina." Seguindo o plano de salvação previsto por Barbin e aceite em desespero de causa, Smith espera pelo detective, que lhe deve trazer um grupo de jovens entre as quais se poderá escolher uma noiva aceitável por algumas horas. Por isso, a intervenção de Nazaire surpreende-o e, julgando ter ouvido mal, pergunta, incrédulo: "O... vestido da menina?
- Sim - a menina já lá está, senhor. -Lá? Onde?
- No castelo. Está com a Sr.a Smith e com a Menina Sarah. "
O Sr. Smith julga sonhar: "Ela está lá?
-Certamente, senhor. Já lá está há um bom bocado... Uma fantasia de rapariga... Mas já não há tempo a perder. A menina tem de se vestir. Se o senhor quiser fazer o favor de me seguir com o vestido dela. "
Smith saiu do seu Rolls como se sai duma sala de espera para não perder o comboio que entra na gare. Aproxima-se do Cadillac, onde Daphne e o motorista esperam. Pleno de energia, faz sinal à criada de quarto:
"Eh, hop! Come on, Daphne... "
Mas o vestido dos esponsais é incômodo e frágil. Só se pode tocar-lhe com cuidado. E, além dele, há os acessórios, a peruca, os sapatinhos, os saiotes. O motorista quer vir em auxílio de Daphne, mas o Sr. Smith diz-lhe em voz baixa que fique ali, porque o Sr. Barbin não deve com certeza tardar. Que o detenha. O tempo de verificar se na verdade está tudo em ordem e o Sr. Smith virá logo ter com ele.
A criada de quarto negra, que leva o vestido nos braços estendidos, e o patrão, vestido como um descendente da flor-de-lis no século das luzes, seguem Nazaire, muito elegante na sua libré, calções curtos e meias brancas, que lhes mostra o caminho com precauções de ladrão.
No entanto, desculpou-se:
"O senhor perdoar-me-á pelo facto de o fazer seguir por uma escada secreta. "
Smith apenas esboçou um gesto:
Não é altura de se mostrar formalista e a necessidade faz lei. Recuperemos a galdéria da nossa filha, preparemo-la e que a festa comece. "
Mal o trio desapareceu, aparece Barbin ao volante do seu 12.
Atrás dele, instaladas no assento, três jovens: candidatas ao papel de Micky, de acordo para tentarem a sua oportunidade.
A primeira pretendente é uma estudante habituada a fazer de baby-sitter para pessoas que vivem com dificuldades, enquanto a proposta de Barbin é principesca: razão de sobra para desistir dos bebês e dos pais viciados de liberdade durante várias semanas. O sonho!
As suas concorrentes são certamente dum nível intelectual menos elevado. Uma é empregada de balcão numa loja de "roupas usadas", profissão que exerce com condescendência, porque tem certamente o valor duma Liz Taylor, pelo menos. A terceira é figurante numa boite. A perspectiva de um cachet na alta-roda tenta-a como uma promoção social ou uma pura viagem de prazer. As três são jovens e todas bonitas. Os Smith decidirão.
Para já, embora descubra o carro no sítio indicado para o encontro, do Sr. Smith nem rasto. O motorista vem ao encontro do detective. À pergunta deste, responde com um gesto, indicando o castelo:
"O Sr. Smith está lá, com a menina. "
Ao ouvir isto, Barbin não acredita nos seus ouvidos, porque a Menina Smith, a essa hora, não deve tardar a fazer escala... em Roma.
"com a menina! Qual menina?
- com Micky, senhor.
- A Menina Micky! Impossível.
- Mas é verdade, é verdade.
- Não pode ser, não pode ser. "
O segredo profissional proíbe a Barbin falar mais, excepto da chuva e do bom tempo. Volta para o 12. "Aguardemos, meninas. "
Uma delas, a pequena empregada de balcão, que tem aquilo que se chama desplante, ousa perguntar:
"Há qualquer coisa que não está a correr bem?"
É que as raparigas têm já o ar inquieto e decepcionado! Barbin tranquiliza-as:
"Não se preocupem. Não estão aqui bem comigo, ao fresco? Temos ainda muito tempo à nossa frente, e prometo-lhes que não hão-de arrepender-se por me terem seguido. "
Ninguém os viu. Chegaram e, antes de bater à porta, Nazaire repete, com uma satisfação de cúmplice:
"Senhor, a Menina Smith está aqui com a senhora. Se o senhor ainda tiver necessidade de mim, fico à sua disposição... Enquanto espero, vou-me ocupar do noivo.
Um toc-toc discreto, e Nazaire afasta-se, silencioso, embora os tapetes abafem os passos.
Sarah entreabriu a porta e, sem qualquer preâmbulo, o Sr. Smith entra no quarto.
Daphne quer entrar também, mas Sarah graciosamente, impede-lhe a passagem, agarra no vestido. Daphne, pode voltar para o carro. A Menina Smith está em boas mãos. Daphne, que teria gostado bem de tornar a ver a filha pródiga, volta um pouco ofendida por terem recusado os seus serviços, sobretudo num dia daqueles.
No quarto, o Sr. Smith só vê a mulher, a sobrinha, e não presta a menor atenção a uma vaga pessoa desconhecida. Mas onde está Micky?
"Mildred, onde está Micky, onde está ela?"
120
Mildred tem um sorriso suave. Toma Marie pela mão para a apresentar ao marido:
"Eis a nossa filha, John-John. Para esta noite, creio que não podíamos ter arranjado melhor. "
John-John é obrigado a mostrar boa cara. Observa a jovem, que lhe sorri timidamente, e, com um tom altivo, concorda que ela é lovely.
"Estás a ver, ele também te acha adorável -diz Sarah.
- Isto parece não lhe dar muito prazer", murmura Marie.
É isso também que a Sr. a Smith verifica ao trazer o Sr. Smith à realidade.
"Sê amável, John-John. Tu também estás de acordo: esta jovem é adorável e aceita salvar-nos. Quanto às condições, combinarás com ela. "
O Sr. Smith observa outra vez Marie. Nas circunstâncias presentes, não será ela a mais sedutora das oportunidades? Aproveitemos e sejamos delicados. Como um verdadeiro homem de negócios que vai sempre até ao fim, o Sr. Smith estende uma mão sólida para apertar a mão delicada. Um shake-hand para confirmar o acordo e, com confiança, declara:
"Adoptada.
-Estás a ver, eles adoptam-te-disse Sarah rindo.
- E nós não perdemos com a troca -encarece a Sr.a Smith, que passa imediatamente às coisas práticas.
-E agora, menina, se quiser vestir-se, Sarah vai ajudá-la. "
Os olhares viraram-se para o vestido, que, pendurado num tocheiro de bronze, oscila docemente à luz dourada do quarto.
Marie fixa os olhos nesse vestido como se estivesse fascinada por um fato mágico. Cetim nacarado, grinaldas, plumas esvoaçantes colocadas em corola em volta do decote, na extremidade das mangas. Que felicidade se sentirá ao vesti-lo, ao animá-lo? Um vestido-flor, donde a imaginação pode brotar, libertar-se, escapar-se.
Marie avança para o vestido, enquanto os Smith saem do quarto.
"Nós esperamo-las. Assim que estiver pronta, trataremos de recuperar o tempo perdido. "
Durante este tempo, Michel transforma-se em príncipe de lenda. Calções de seda, peitilho de rendas preciosas, camisa de fino tecido e, ajudado por Nazaire, veste um colete cintilante. O jovem parece absorto, avaro de palavras, enquanto Nazaire bem gostaria de conversar com o seu jovem amo.
"A Menina Smith chegou, com a mãe.
- A minha peruca", disse Michel.
Nazaire passa-lhe a peruca, continuando a sua idéia:
"Está a vestir-se no quarto da menina Sarah. "
Michel está surpreendido:
"Está a vestir-se? Aqui?
- Sim, senhor, está a vestir-se aqui. É uma jovem surpreendente, e estou convencido de que não faz nada como as outras pessoas, mas isto não é uma censura. "
A Michel não apetece falar de Micky. Ajusta a peruca, espeta uma jóia nos folhos do peitilho. Nazaire continua:
"Creio que o senhor vai ficar espantado, como eu próprio fiquei. "
E Nazaire ainda o fica mais porque, ao pôr as coisas em ordem, acaba de encontrar, metido numa algibeira de Michel, um sapatinho de mulher! Uma "bailarina" ligeira, branca e suave como uma luva. Nazaire não diz uma nem duas: sub-repticiamente, escamoteia o sapato para ocultar na algibeira da sua libré.
Toma cada vez mais o ar de alguém que sabe alguma coisa. Michel parece não querer entender nada, nem se interessar seja o que for por aquilo que devia estar em primeiro plano nos seus pensamentos.
"Posso dizer ao senhor que ela é encantadora.
- Tanto melhor -diz Michel, como se dissesse tanto pior.
- Encantadora, senhor. Sempre é preferível, porque nós não sabíamos lá muito bem como se ia apresentar a noiva do senhor, e a Sr. a Marquesa vai ficar contente.
- Se a minha mãe ficar contente...
- O senhor ainda deve ficar mais, se é que penso bem... "
Michel ergueu as sobrancelhas. Contente com esta sinistra farsa... Que julgamento tão engraçado, Nazaire. Ele, Nazaire, mordeu os lábios. Ele, a discrição confirmada, vai surpreender-se por querer falar demasiado? Não, não e não...
Contenta-se em sorrir, com um sorriso que diz bastante, porque Michel não diz o suficiente. Para Nazaire, o sapatinho que apalpa na algibeira não será uma prova do acordo dos jovens, dum segredo que eles não querem ainda revelar? E o casamento à força não se tornaria num casamento de amor?
Michel está pronto. De pé em frente do espelho, agarrou a rosa e tenta prendê-la na lapela bordada do fato. Nazaire precipita-se:
"O senhor podia picar-se... Deixe-me eu prendê-la. "
Nazaire prendeu a rosa. Michel sorri por fim e consulta-o com o olhar. Nazaire responde com um sorriso, encorajamento e cumplicidade. O jovem está soberbo; pode ir ter com a marquesa para receber os convidados.
Marie vestiu o vestido de noiva, e, como verdadeira bailarina, usa-o com uma graça inata, mas os sapatos preparados para Micky são grandes de mais e os saltos não convém ao seu tornozelo frágil ferido. Não pode levar os próprios, pois só tem um. Sarah enerva-se:
"Não se perde um sapato como uma caixa de fósforos. Eu vou ter com as nossas colegas: vou ver se te encontro qualquer coisa."
No corredor, choca com os Smith:
"Falta alguma coisa?", perguntam em coro.
Ao que Sarah responde, cheia de segurança:
"Eu já volto".
Logo a seguir, cruza-se com Nazaire, que parece que volta para se porá disposição dos Smith.
"Tenho uma mensagem para a menina. Dão-me licença que lha transmita?
Nazaire tem um ar tão insinuante que, ao falar de "mensagem", parece estar a prometer um doce. Os Smith trocam um olhar de assentimento. "De acordo", que Nazaire entregue a "mensagem" dirigida à filha. O jogo entrou em acção e Nazaire, o primeiro espectador, entra a fundo na fraude.
Contanto que aconteça o mesmo com os principais personagens da comédia!
Respeitosamente, Nazaire bateu à porta.
"É Nazaire, menina.
- Entre. "
Ele obedece, depois, tão respeitosamente como bateu, aproxima-se da noiva inesperada. Baixa a voz:
"Eu tinha compreendido imediatamente que a menina não era uma pessoa vulgar... a menina encarregou-me dum recado, pois bem, aqui está. "
Triunfante, tirou o sapatinho da algibeira: "Pensei que a menina havia de ficar contente por voltar a encontrar o seu sapatinho esta noite. No entanto, faremos o que a menina achar melhor, e, se for preciso, vou tornar a pô-lo na algibeira do Sr-, Michel, onde o encontrei. A menina pode contar comigo. "
Marie tem um sorriso radioso, enquanto Nazaire se ajoelha para calçar o pé nu. Mas em cima do tapete da China descobre o sapato de Micky. Marie apressa-se a responderá muda interrogação:
"Não posso agüentá-los. São demasiado grandes e ao mesmo tempo fazem-me doer. "
Ergue a fímbria do vestido.
"Vejo que a menina está magoada.
- Não é nada de grave... é sobretudo incômodo, principalmente esta noite... "
com precaução, Nazaire estende-lhe o sapato, no qual ela enfia o pé.
"É extraordinário como a menina tem o pé pequeno e delicado. A Sr.a Marquesa ficará muito contente com isso.
- Porquê?
- Porque é um sinal de nobreza.
- Você é gentil... Nazaire...
- É que, se eu tiver de ficar ao serviço do Sr. Michel, gostava muito de me dar bem com a mulher dele. "
Nazaire tornou a pôr-se de pé. Não se poderia dizer agora aos pais da menina que entrassem?
E afasta-se para abrir a porta sobre Marie transfigurada.
Durante um segundo, os Smith contemplam a maravilha, a "sua" maravilha. Depois, rapidamente, a Sr. a Smith conclui o trajo.
Um colar de diamantes, pingentes cintilantes. Mas Marie, que não pode deixar de se admirar nos espelhos, não esquece a rosa que prende nos franzidos do corpete.
Depois, o trio desliza pelos corredores e mete outra vez pela escada de serviço. Agora já não interessa fugir a uma entrada que provocará um tão belo efeito.
A "família" engalanada, deslumbrante, cheia de folhos, dirigiu-se aos carros estacionados sob os plátanos. Vindo do castelo, um ligeiro rumor começa a ouvir-se, assim como as luzes que foram acesas e envolvem a habitação num halo dourado que ilumina a noite.
O melhor que pode, o trio introduz-se no Rolls, o Sr. Smith à frente, ao lado do motorista, surpreendido, tal como Daphne, por ver o vestido da Menina trazido por uma estranha. Mas a expressão dos patrões faz-lhes compreender que não têm nada de que se admirar e ainda menos que fazer perguntas. Se o vestido está ali, é porque Micky está ali. Os criados sabem bem que com a Menina há sempre com que levantar os braços ao céu, mas nós não os contrariamos e copiamos os nossos patrões, que parecem achar natural uma situação... que não o é verdadeiramente.
Quanto a Barbin, esse, quer no entanto alguns esclarecimentos. Tem à sua responsabilidade uma tríade de jovens desencantadas com grande dificuldade e eis que lhe dispensam o prazer do último serviço.
Aproximou-se do Sr. Smith e fala-lhe através da porta do carro, cujo vidro está baixado.
"Vejo que já resolveu o problema. Nesse caso, que é que faço das pequenas que arranjei?
- Pode agradecer-lhes.
- Mas olhe que elas são na realidade bem bonitas. "
Como Barbin parece inquieto sobre a sorte das três graças, o Sr. Smith determina:
"Meu caro Sr. Barbin, ver-nos-emos amanhã. A sua idéia era boa e nós não esperámos por si para a pôr em prática. Apresente as nossas desculpas às meninas, que não se incomodaram em vão. Nós regularemos isso tudo os dois. "
Barbin tenta ver Marie. Evidentemente que não há nada a dizer: o aspecto é mais que lisonjeiro, mas sabe-se lá? Como homem que já viveu muito, e que aprendeu que o hábito não faz o monge, baixa um pouco a voz para dizer:
"O senhor está seguro da pessoa? Tem referências? E as jóias? Ela brilha como uma vitrina do tesouro do xá! Não tem medo que ela se ponha a voar?"
Ele ri, e para precisar o seu pensamento: "Não com o xá, mas com as pedras?
- Não há o menor risco. Elas estão no seguro. "
O Rolls afasta-se, para entrar outra vez na alameda que conduz à entrada de honra.
No 12 de Barbin, as raparigas estão decepcionadas. Da festa, apenas terão percebido um vago rumor e entrevisto uma rapariga como elas, mas vestida com um vestido digno da Pele de Asno no terceiro dia da sua metamorfose. Sim, estão decepcionadas e um pouco tristonhas.
Barbin desculpa-se e, para não trair o segredo, explica que a menina chegara e que já não havia necessidade duma substituta, mas que o Sr. Smith as indemnizará prodigamente, pois o prometeu.
Certamente que não há nada a dizer e manifestar algum ressentimento seria fazer de parva! Mas as concorrentes sentem-se frustradas porque o papel a representar as fizera sonhar.
A festa promete ser brilhante. Os nomes mais importantes, as mulheres mais belas, as jóias mais raras.
Como uma rainha, a marquesa recebe os convidados, que vêm inclinar-se perante ela. Michel está ao seu lado. Vénias, beija-mãos, cumprimentos.
Toda a gente se desvela ao tomar contacto com o encanto da feérica recepção. Um rumor de bem-estar, de despreocupação, mas a noiva continua a não aparecer, e, apesar do seu sorriso, a marquesa lança ao filho um olhar ansioso. A essa hora, os Smith deviam já ter feito a sua entrada, e Michel não pode deixar de exprimir o que pensa:
"Se eles tivessem a boa idéia de não vir! "
Não é o momento de ter gracejos deste gênero; decididamente, Michel não está a falar a sério.
"Tranquiliza-te, mama: eles já cá estão. E Nazaire está contente: ele já a viu. "
Quem? Ela, evidentemente, Micky, a heroína, a jovem louca, a desejada...
E eis que o grande Rolls prateado acaba, enfim, de depositar a sua gente ao fundo da escadaria.
Aliviada, a marquesa recebe os recém-chegados, enquanto os músicos começam a tocar uma fanfarra de Rameau.
As desculpas, os protestos de amizade, isso já não interessa a Anne de Villecroze. O essencial é que os Smith ali estejam. Todos os olhos se dirigem para o trio sumptuoso, fixando-se sobretudo na jovem herdeira, que faz sensação.
Marie executa para a marquesa uma reverência irrepreensível. Anne de Villecroze exulta e é com verdadeiro arrebatamento que depõe um beijo na testa da sua futura nora. Não esperava tanto e, para dizer a verdade, receava o aparecimento da jovem milionária, objecto indispensável duma aliança combinada. E eis que esta aparição é um encantamento. Micky é absolutamente distinta. Pelo menos, na aparência -e isso é de capital importância, porque, no mundo, o que interessa antes de mais nada é que as aparências sejam salvas.
Apresentado a Micky, Michel ficou um instante como que paralisado, perguntando-se se não era vítima dum sortilégio. Inacreditável! Micky sedu-lo irresistivelmente, e, ao estender-lhe a mão, ao seu contacto, ele julga reencontrar um conhecimento de sempre.
É com grande sinceridade e surpresa que a marquesa cumprimenta a jovem:
"Está encantadora, minha filha. Absolutamente encantadora. "
Dirige-se a Michel:
"Aposto que não eras capaz de a reconhecer; aliás, eu também não... Que maravilhosa surpresa... "
Dirige-se aos pais, que, pela primeira vez na vida, sentem alegria por ter uma filha capaz de encantar alguém.
"Era uma garota quando a vimos pela última vez e hoje é, é...
- É uma jovem", disse o Sr. Smith para dizer alguma coisa, enquanto a mulher encarecia, com um risinho glorioso e embaraçado:
"Uma mulher. "
Há um risinho geral, se bem que todos riam para si e por diferentes razões.
Divertida, Anne de Villecroze adivinha a perturbação de Michel perante a encantadora feiticeira. Seduzida ela própria, alegra-se com isso sem tentar penetrar o insólito da situação, pois a noite ainda não acabou.
"Tardaste em chegar, minha filha, mas a nossa espera não foi iludida... Pelo contrário. Mas, se quisermos respeitar o programa, vão sendo horas de ir ensaiar com Michel o bailado. Para os dois será a melhor maneira de se conhecerem. Não esqueçam que esta festa é vossa e nós quisemos satisfazer os vossos desejos: espero que concordem que o conseguimos. "
Sem uma palavra, Michel segurou Marie pelo braço para a conduzir ao salão, onde Léonidas espera o casal em companhia dum pianista. Ensaio in extremis dum espectáculo montado, todavia, com o máximo cuidado. Oxalá que a noiva não seja um podão e que ao menos saiba caminhar a compasso!
A rosa que ela traz no corpete, igual àquela que ele próprio apresenta, intriga o rapaz como uma misteriosa mensagem:
"Vejo que temos os mesmos gostos, pois adornámo-nos com a mesma flor... "
Marie não responde.
Enquanto os jovens se afastam, a Sr.a de Villecroze e os Smith, um pouco pensativos, seguem-nos com o olhar.
"Aprecio a vossa franqueza, mas pergunto a mim própria se vocês não julgam Micky de forma demasiado severa!...
- Vê-se que não a conhece-replica a Sr.a Smith em tom ambíguo.
- Em todo o caso, ela tem um ar tão adorável. Eu era capaz de lhe dar a comunhão sem confissão. "
Por muito habituado que estivesse ás mais críticas situações no mundo da alta-roda e sabendo muito bem que nunca se deve parecer ofuscado ou perturbado, Léonidas Godot sobressaltou-se ao ver Marie e o jovem de Villecroze, em grande aparato, penetrarem no discreto salão onde ele aguardava os noivos.
Marie ruborizou-se perante o olhar do mestre de dança, que compreendeu imediatamente que se pássava qualquer coisa de extraordinário. No entanto, ele fica impassível.
Rapidamente, Michel faz as apresentações:
"Léonidas Godot, o nosso mestre de dança, a Menina Smith. "
Sim, sim, Michel disse bem: Menina Smith. Só lhe resta inclinar-se e proceder como se nada de insólito se passasse. Então vamos ao ensaio.
Léonidas explica e marca as figuras. Depois da dança geral, há primeiro a entrada das jovens, entre as quais a noiva se deve encontrar, conduzindo o cortejo:
"Vou-lhes mostrar como é, se me permitem." Léonidas agarrou Marie pela mão para a conduzir para a sua entrada, Michel está atrás deles. Baixinho e com ironia, Léonidas sussurra:
"Menina Smith! Encantado por a conhecer. How do you do? Estou feliz por a ensaiar, consigo tenho a certeza de que vai ser fácil. "
Marie não ousa responder e olha-o com ar suplicante. Ele tem um sorriso de conivência:
"Então, Marie? Andas a brincar às herdeiras ricas, agora? Não te preocupes. Por mim, não há novidade, mas amanhã contas-me; acho esta substituição divina. "
Virou-se, fazendo rodopiar Marie. À sua frente, vai-lhe marcando os passos, enquanto o pianista toca em surdina para dar o compasso.
"1, 2, 3 e 4, curvar à direita, 1, 2, 3 e 4, virar à esquerda, 1, 2, 3, 4, saltar, voltar e reverência. "
Michel admira a facilidade e o donaire de Micky. Se ela, na verdade, é capaz de levar uma vida desordenada, tem contudo o aprumo duma princesa.
Evidentemente que para Marie é uma brincadeira de crianças aprender em poucos minutos o intermédio que será o ponto alto do serão, pois de certo modo marcará, pelo aspecto da dança, o anúncio dos esponsais. E Léonidas não pode deixar de dizer, no que é aprovado por Michel:
"Bem se vê que a Menina Smith praticou a dança... Agora, assim, e depois assim. Querem ensaiar os dois?"
Os jovens ocupam os respectivos lugares. O pianista ataca os acordes iniciais, que se continuam pela dança dos prometidos. Ambos combinam o melhor possível. Evoluem como maravilhados por se descobrirem. É uma pantomima muda, acompanhada por uma música alegre e brilhante que canta a felicidade.
Léonidas pode deixá-los. Eles vão-se desembaraçar bem os dois; não será melhor voltar a ocupar-se dos outros, mas não sem ter tranqüilizado a Sr.a de Villecroze sobre as qualidades da Menina Smith? A sua presença não irá desfazer a harmonia do balet, pelo contrário, mas o mais difícil para Léonidas ainda está por fazer. com efeito, quais serão as reacções das bailarinas quando a noiva se lhes juntar?
Será conveniente preveni-las? Perplexidade. Em todo o caso, pode pedir conselho a Sarah. Ela deve saber qualquer coisa: não é ela da família? E não é ela que está na origem do contrato dos alunos?
Michel e Marie estão sozinhos. Repetem ainda as suas danças e, enquanto se exercitam, começam a falar. O rapaz está cada vez mais seduzido. Daquilo que ele chamava uma mascarada vai surgindo um encanto ao qual lhe era cada vez mais difícil resistir. Quanto a Marie, resplandece. Sorridente e grave ao mesmo tempo, saboreia a magia destes instantes.
"Micky, você conhece a finalidade do nosso encontro?"
Micky esboça um ligeiro aceno de cabeça. Sim, sabe. Os Smith ensinaram-lhe a lição.
"Devo confessar, Micky, que você não corresponde nada à idéia que eu fazia de si. "
Marie não responde, mas ela sabe-o, a reputação de Micky é má. E Michel continua:
"Sem a conhecer, tinha mil razões para a detestar. "
Então Marie esquece Micky e, num sopro, pergunta:
"Detestar-me... e... agora...
- É outra coisa... "
Dançam ainda um momento em silêncio.
Depois, Michel, decidido a que não deve haver o menor equívoco entre eles olha outra vez a rapariga como se quisesse gravar a imagem inesperada daquela a quem deve ligar a sua vida:
"Devo dizer a verdade. "
O jogo é difícil. Marie descontrola-se. Pára de dançar:
"Um momento, peço-lhe... Mais um momento... estou fatigada. "
Deixou-se cair numa poltrona. Michel continua a olhar para ela. Observa-a. Estupefacto, vê emergir sob a renda das suas saias o bico dum sapato. com gesto brusco, ajoelha-se, ergue a fímbria do vestido e apodera-se do pequeno pé.
"Deixe-me, suplico-lhe... dói-me.
- Que quer dizer?
-Nada, nada... Há pouco você estava a dormir e eu andava a passear no parque...
-Há pouco?
-Sim. "
Marie tenta brincar para justificar o seu primeiro encontro: "Eu queria conhecer um domínio que não é o meu." Volta a si: "Enfim, que ainda não é... E depois vi-o... Ainda não sabia quem você era... Ainda não... Foi Sarah quem mo revelou mostrando-me o seu retrato... Tive medo e fugi... "
Michel levanta-se.
"E quando fugiu esqueceu-se duma flor, dum sapato...
-... Foi para brincar... "
E o marquês? Que faz ele durante este tempo? Também prossegue o seu sonho, isto é, trabalha. O seu salão transformado em estúdio está na penumbra. As grandes janelas estão abertas para o parque iluminado e ouve-se a música abafada pela distância e pela folhagem.
Géraldine está lá, mas enquanto o marquês projecta o filme dos Papuas, sobre o qual redige o texto do documentário, Géraldine, cuja silhueta se recorta no enquadramento duma das janelas, instala com a sua câmara para poder filmar o sarau. Dali ela tem um belo ângulo para tirar fotografias do conjunto do teatro e o zoom permitir-lhe-á, apesar do afastamento, fazer grandes planos. Repartiu os técnicos da sua equipa, um para os bastidores, outro na sala e ela própria, que operará dali.
Nazaire apresenta-se. O marquês pára a sua projecção e acende a luz. Uma imagem dos selvagens lançados num movimento frenético fica imobilizada na tela, mas esfumada pela claridade. Géraldine voltou-se. O marquês interpela-a:
"Então, Géraldine, os seus bailados serão tão anacrônicos como o meu?
- Quase. Em todo o caso ficarei com um bom documento para a minha antologia e agradeço-lhe o ter-me permitido filmar em sua casa. São sempre interessantes estas danças da corte e há trajos maravilhosos.
- Gosto mais dos meus Papuas. Acho-os menos obsoletos que essas ressurreições do século XIII que encantam a minha mulher. Que pensas tu, Nazaire?"
Nazaire observa a pantalha. Está acostumado aos hábitos de trabalho do marquês, a esses documentos que ele arranca à noite dos tempos ou a civilizações embrionárias, vestígio do fundo dos tempos. Os Papuas, a seus olhos, nada têm de humano.
"O Sr. Marquês exagera, os Papuas, mesmo assim, sempre são menos bonitos do que estas damas e estes senhores.
-Num certo sentido, talvez! Mas os meus selvagens são mais sérios. Para eles, a dança é uma profissão de fé, um acto social e sagrado. Para os outros, é apenas um prazer. Um jogo... "
Nazaire começou a preparar a mesa para o jantar do marquês, que fez rodar a sua cadeira até ao centro da sala para se aproximar do criado. Este toma o ar misterioso dos que sabem alguma coisa. Retoma a última palavra do Sr. de Villecroze, enquanto Géraldine volta para a sua câmara.
"Um jogo... Um jogo que se desenrola perfeitamente, segundo as regras estabelecidas. E até talvez mais do que o que esperávamos. Tivemos bastantes inquietações. O Sr. Marquês pode estar sossegado, quanto à Sr. a Marquesa, ela está esplêndida.
- Não tenho a menor dúvida. E... a noiva?" Nazaire sorri, com verdadeira beatitude: "Excelente impressão, Sr. Marquês... excelente.
A Menina Smith está a conquistar o seu mundo.
- Não lhe basta comprá-lo!
- O Sr. Marquês é severo, mas vai ficar surpreendido, como nós ficámos. Sabe que eu encontrei a Menina Smith antes de saber que era ela?
Nazaire parece muito romanesco nesta noite. De que encontro fala ele? Sem saber que era ela? "Como é que é isso?
- Foi assim... Ela andava por aí incógnita, sim, Sr. Marquês, incógnita, queria dar uma volta por aí antes da festa oficial."
O Sr. de Villecroze sorri, escarnecendo: "A volta da proprietária. "
O marquês é feroz. As suas ilusões acerca dos encantos dum casamento forçado perdeu-as duma vez por todas.
"A Menina Géraldine podia tê-la encontrado?
- Quem? - pergunta Géraldine.
-A Menina Smith.
-É isso! Você viu-a?
-Como a estou a ver, menina. Eu fui, sem dúvida, uma das primeiras pessoas a ter o prazer de a conhecer. E digo bem; o prazer. Quando a virem hão-de compreender. "
"Dois talheres, senhor? A menina ceia consigo?"
O marquês aquiesce e Géraldine agradece-lhe. Muito digno, com um certo ar de superioridade, Nazaire, enquanto vai girando dum lado para o outro, continua com os seus comentários:
"É absolutamente inacreditável, senhor, e inesperado: a Sr.a Marquesa está dominada pelo seu encanto... o Sr. Michel também. Champanhe?
- Num dia destes!... Champanhe, com certeza! "
E o marquês acrescenta:
"Minha pequena Géraldine, enquanto esperamos a nossa vez de ficarmos encantados, vamos beber à saúde da Menina Smith! "
Começou o espectáculo.
Nos seus trajos concebidos segundo documentos antigos, os bailarinos executam, cada um por sua vez, o intermédio inspirado pelas diversões da corte.
Silenciosos, nos bastidores, os noivos esperam a sua entrada, que marcará o final do bailado e tornará oficial o pacto concluído entre as duas famílias. Léonidas e Sarah tiveram muito que fazer, porque a aparição da "Menina Smith" provocou nas bailarinas uma certa efervescência.
O próprio Serge ficou embaraçado e um pouco suspeitoso e foi o único a não rir. Foi preciso fazer calar, parar com as exclamações, as perguntas, o riso que alastrava como no espectáculo duma boa farsa.
Em volta do mestre de dança e de Sarah baixa-se a voz, cochicha-se, enquanto se deitam olhares aos "noivos", que se mantêm ainda à parte. Mais do que os outros, Florentine arde em curiosidade. Como é que Marie, a sua melhor amiga, pôde não lhe confiar semelhante segredo?! Ela é a Menina Smith ou não é? E o que é que aquilo quer dizer? Irá ela desposar verdadeiramente o jovem e belo marquês, porque ele é, na verdade, belo e jovem? Há cada mistério!
Mas Sarah e Léonidas suplicaram ao seu pequeno mundo. Explicar-lhes-ão depois, o espectáculo antes de tudo. Que façam como se nada se passasse. É um assunto muito grave, muito delicado e Marie está a salvar a situação. É preciso não a perturbar. É preciso entrar no jogo com ela.
Uma bailarina observa:
"Afinal, é ela que tem o papel principal.
- Ela não se vai casar? - pergunta Florentine.
-Tu és muito parva - replica Sarah. -Se ela se fosse casar não o havias de saber?"
Uma outra bailarina:
"Mesmo que não seja a sério, pelo menos é divertido. "
Mas Florentine prefere, sim, prefere muito mais que esta comédia seja "para rir", e "façamos como se não conhecêssemos Marie".
"Atenção, é a vossa vez. "
Todas as bailarinas invadem o palco. Há uma alegre fanfarra que anuncia a entrada da noiva, a qual, ao aparecer, provoca um arrebatamento geral. Em poucos passos, com um sorriso, a heroína tocou o coração do público, que, mais ou menos atento, não esperava a radiosa aparição.
Evidentemente que o vestido é uma maravilha, mas quem o enverga é outra maravilha, bem mais enternecedora, uma maravilha de vida e de esplendor. As pessoas "ao corrente" e as más-línguas não murmuravam que a Menina Smith era uma rapariga escandalosa, uma hippy que infringia as leis e a sua correcta aplicação, cujos pais só alimentavam uma esperança: arrumá-la, fosse qual fosse o preço?
Marie e Michel evoluem no meio dos bailarinos. Encontram-se, apresentam-se, ele escolhe-a, oferece-lhe a mão, oferece-lhe o coração. Ela aceita. O pedido de casamento é mais eloqüente do que as palavras de circunstância que a dança interpreta e traduz com espírito.
Certamente, Marie dança com um garbo e um instinto que, para os ignorantes da sua identidade, parecem prodigiosos. Ela já não sente o tornozelo que a magoa. Escondida pelo personagem que encarna, entrega-se-lhe completamente. Agüenta todos os olhares. O seu comportamento é simultaneamente orgulhoso e encantador. Resplandece, iluminada pelo colar de diamantes e pelos medalhões com que os Smith remataram o seu trajo. E a Sr.a de Villecroze irradia.
Como vê longe, a sua surpresa desvaneceu-se. O encanto da jovem milionária não lhe parece insólito, mas os pais enegreceram de mais o seu retrato. Tanto melhor, porque o seu a seu dono. É de toda a justiça que a categoria de Michel não seja diminuída pela da esposa. A aparência é miraculosamente a seu favor, o que já é muito, e não é a marquesa quem iria achar que a noiva é demasiado bela.
A música é cada vez mais viva. Rodeados pelos outros, os jovens procuram-se, saúdam-se, esboçam passos que os aproximam, e soa o acorde final. A tremer, Michel passa no dedo da jovem o diamante luminoso que sela os esponsais.
Aplaudem-nos, levam-nos em triunfo.
"Ufa! ", pensam os Smith.
"Que maravilha!" pensa a marquesa, absorta.
"Milagre! ", diz para si Michel, sentindo um aperto no coração.
Quanto a Marie, que alcança um autêntico êxito, agradece melhor do que uma rainha, ou seja, como uma estrela.
Esta maneira de anunciar o casamento de Micky Smith e de Michel de Villecroze arrebata os convidados. Encantador! Admirável!
Anne de Villecroze tem na verdade a arte de receber e de dar prazer ao seu mundo. Toda a gente aplaudiu vivamente, o que não impediu alguns comentários: eis uma coisa bem feita, mas a rapariga ultrapassa todas as esperanças... O noivo está um pouco pálido... O noivo vendido... Riem-se à socapa, simultaneamente cúmplices e divertidos.
Os "noivos" não vieram sentar-se nas poltronas que lhes foram destinadas na sala. Preferem ficar à parte, não se misturar com as pessoas, logo a seguir, porque vivem nesse momento na fronteira que separa o natural do sobrenatural. Sentem-se protegidos à sombra da folhagem que os projectores não conseguem penetrar. No palco, o espectáculo continua. Rompendo com os intermédios anteriores, começa agora um bailado que é a transposição das diversões de antanho. Bach em versão de jazz, saracoteios e síncopes, dança moderna, ritmo endiabrado.
"Os noivos" olham para o palco para disfarçar a atrapalhação. Na verdade, estão a cem léguas dali. Entre eles há um silêncio que se torna insuportável. Michel procura rompê-lo. Segura a mão de Marie, a mão esquerda. O anel simbólico refulge. Os jovens contemplam-no um instante, depois Michel decide-se a falar e arrasta a jovem para um pouco mais longe, no parque.
Sentam-se num banco de pedra de esculturas carcomidas. O lugar é propício. A música chega lá, abafada. A brancura das suas vestes recorta os jovens sob o céu cintilante. De rosto resplandecente, os olhos brilhantes de emoção e de melancolia, são semelhantes a todos os heróis amorosos e parecem condenados.
com voz contida, pergunta:
"Este jogo divertiu-a?"
Marie inquieta-se: "Que jogo?...
- Esta festa, as nossas núpcias...
- Porque, para si, é um jogo?...
- Como para si, não?"
Marie retirou a mão e virou a cabeça. Michel insiste:
"Você sabe tão bem como eu que é um jogo. E é preciso que assim continue.
- Continuará forçosamente. "
Marie respondeu contra vontade. E eis que Michel responde com palavras que querem desmentir o jogo:
"Não, Micky, se esta comédia não acabar com esta noite, é grave.
-Todavia, aceitou-a.
- Ontem, sim. -... Porquê?
- Por indiferença, por fraqueza também, sem dúvida. Era livre... "
Como hesitar em querer saber mais? Depois de um momento, ela ousa perguntar:
"E já não o é?"
Por sua vez, Michel vira a cabeça. Eles não ousam já olhar-se, porque os seus olhos são menos discretos do que as suas palavras, e sentem-se paralisados, interditos perante uma emoção desconhecida, imprevisível e que, de facto, é a única verdade da sua história. Michel continua:
"Compreendo agora que este projecto é irrealizável.
- Porquê agora?
- Porque a vi. "
Marie reveste-se de toda a sua coragem para dizer com uma ponta de vaidade: "Está decepcionado?
- Agora, conheço-a.
- Tão pouco...
- O suficiente para saber que não devo desposá-la. Tudo está sujo, comprometido... O nosso casamento é apenas um negócio... um nome a vender...
"-Uma reputação a resgatar.
- Não consigo acreditá-lo. "
De novo, Marie procura parecer Micky. Ensinaram-lhe a lição. Ela deixou-se envolver numa história divertida, mas não deve traí-la. A hora da verdade, essa, são os Smith quem decidirá dela.
"A minha conduta não é irrepreensível, você sabe-o.
- Repito que não consigo acreditá-lo.
- Obrigada... Ai, mas em breve ficará convencido. "
Michel abana a cabeça e olha Marie que sustenta o seu olhar.
"Micky... Menina Smith... Casar consigo por dinheiro...
- E eu por um título... e sem conhecer aquele que
o usa...
- Um gênero de casamento que já não é do nosso tempo. "
Marie estende o vestido... um vestido que todas as raparigas do mundo ficariam felizes por usar, um disfarce ideal.
Michel tem razão. Na nossa época, a juventude adquiriu a liberdade. Ela pode submeter-se, deixar-se levar, mas pode também escapar às combinações familiares, aos conselhos, às obrigações. Em suma a juventude é adulta. Ela pode, se gostar disso, correr os seus riscos, com a condição de que um sentimento, uma vocação ou uma esperança os motivem. Sim, o casamento previsto entre Michel e Micky não parece já do nosso tempo.
"Como os nossos trajos", diz Marie, pensativa. E exprime a sua reflexão acrescentando: "Mas há tantos casamentos que nunca passaram de mascaradas!...
- E até houve alguns que resultaram! Mas nós estamos no século da contestação e não no dos contos de fadas.
- É pena... "
Sim, era pena...
E à harmonia da festa Géraldine ia trazer a contestação.
O marquês aproximara a sua poltrona da varanda para dar uma olhadela ao espectáculo que Géraldine filmava. O palco distante surgia brilhante, decorado como -um jardim de Lê Nôtre, que se prolongava, rodeado pelo arvoredo do parque. O marquês observava as bailarinas, o que lhe inspirava esta reflexão:
"Se as pessoas não se exprimissem senão por gestos, não diriam tantos disparates. Mas o homem acabou por matar o bailarino, enquanto nas civilizações antigas a dança era a forma de expressão mais alta, quer no profano, quer no sagrado. "
Géraldine não respondeu porque, colada à sua câmara, estava cada vez mais intrigada. No lugar da noiva parecia-lhe reconhecer um rosto quase familiar. A vista fixa no visor, accionou o zoom, e na objectiva o rosto de Marie apareceu em grande plano.
"Inacreditável! "
Que é que aquilo queria dizer?
Impressionado pela surpresa da jovem, o marquês perguntou:
"Que vê você de tão extraordinário na sua câmara?
- A noiva, senhor.
- É na verdade bonita?
- Oh! sim, é bonita, muito bonita.
-Então tanto melhor... Que toda a gente fique encantada. "
Géraldine teve um sorriso mau.
Sempre segura de si, estava decidida a "partir a louça", segundo o seu próprio pensamento. Não dizer nada não seria participar numa traição que Michel iria pagar? Porque o pobre...
A ele também ela o descobrira em grande plano. Que ar estranho ele tinha! Um ar que não lhe conhecia e que estava longe de reflectir o seu cinismo ou a sua desilusão habitual!
Surpreendido no mistério da câmara escura, o seu rosto, prisioneiro da objectiva, parecia emocionado, encantado, semelhante ao de uma criança a quem se revela uma maravilha! Não seria dever de Géraldine chamá-lo à realidade? Se havia uma mistificação, estaria certo deixar os Villecroze serem as suas vítimas? Estas núpcias eram ridículas. Marie Soler fazendo-se passar pela Menina Smith... Uma bailarinazinha de quatro vinténs apresentada como a jovem milionária!
Géraldine não pensava sequer que a situação devia ser mais subtil, porque esquecia que os principais interessados, o Sr. e a Sr. a Smith em pessoa não pareciam espantados com a "sua filha". Mas Géraldine agarrava-se ao único pensamento que lhe parecia nobre e que sufocava os outros pensamentos sobre os quais preferia fechar os olhos e a consciência, porque o próximo casamento de Michel estava longe de ser um prazer para ela.
Fosse quem fosse a noiva, ela repudiava-a, sem o confessar certamente. Ver Marie pavonear-se num papel que só podia estar a usurpar não era engraçado? Engraçado a ponto de fazer ranger os dentes! Na objectiva que accionava à sua vontade, afastando e aproximando os heróis, separando-os ou unindo-os, ela via seres que a câmara expunha, traía, pondo a nu os seus caracteres e o seu estado de alma. Géraldine descobria uma emoção e uma sinceridade como uma insuportável revelação.
Então virou-se para o marquês.
Contendo-se, disse o que a sua pretensa moral lhe ditava. A Menina Smith não é a Menina Smith. Havia mistificação. A "noiva" que triunfava no palco, a que recebia o diamante impecável e salvo da ruína, Géraldine conhecia-a muito bem e não se enganava. Revelou o seu nome, uma bailarina, uma aluna do Centro, tal como todas as que dançavam à sua volta, uma amiga de Sarah, a própria sobrinha dos Villecroze e dos Smith.
O marquês escutava-a. Como duvidá-lo, quando Géraldine o afirmava? O descontentamento dera lugar à sua habitual ironia. Nazaire voltava para servir uma ceia requintada, uma ceia de festa.
Sempre satisfeito com o desenrolar do programa, Nazaire preparava-se para servir quando o marquês o deteve. Era raro que o marquês se mostrasse irritado. A força das coisas obrigara-o a tomar uma distância para com elas e a cultivar uma certa filosofia. Ficava calmo, mas foi com voz alterada que ordenou a Nazaire:
"Quando a festa terminar, faça saber a essa menina..." Ao mesmo tempo, designava com o dedo a radiosa jovem que saudava no palco. Surpreendido, Nazaire repetiu:
"Essa menina!... Sr. Marquês, quer dizer a Menina Smith?
- A Menina Smith... sim... tenho pressa de a conhecer, eu também.
-É muito natural, senhor.
- Mande-ma imediatamente, e só.
- Mandar-lha... "
Nazaire estava aparvalhado com o ar do patrão e chocado pela expressão:"Mandar a Menina Smith." Como é que um senhor tão delicado podia empregar uma linguagem daquelas e naquele tom! Mas a atitude do marquês impede-o de falar mais. Saiu depois de ter dirigido um olhar a Géraldine, cujo rosto estava impenetrável.
Nazaire partiu à procura dos jovens. Refugiados, longe dos outros, continuam um diálogo que serve de pretexto para prolongar a sua conversa e ainda para tentar adivinhar "o que se passa", o sortilégio em que se encontram momentaneamente prisioneiros. Separados do mundo, protegidos pela penumbra do arvoredo, saboreiam com surda angústia o momento de encanto que o tempo lhes concede.
Michel queria usar de lealdade, denunciar o negócio que deve associá-los, exprimir o sentimento verdadeiro que nele submerge todo o cálculo e toda a convenção. Quanto a Marie, sente-se partilhada entre uma alegria desconhecida, um prazer louco e o compromisso de se calar, a obrigação de representar uma comédia que neste momento a mortifica.
Tem vergonha de enganar aquele que lhe diz:
"Compreenda-me, Micky, mesmo que o nosso encontro não tivesse sido combinado, mesmo que aquilo que eu sinto por si o sentisse por... acaso, de maneira natural, o nosso casamento seria impossível. "
Marie compreendeu, a evidência dum entusiasmo verdadeiro, duma atracção imprevista, despertou os escrúpulos do jovem, a quem responde docemente:
"O nosso casamento seria impossível por causa da minha fortuna... Pobre Micky Smith... Pois bem, não tenha remorsos, porque, tal como a vê neste momento, posso afirmar-lhe que ela nunca casará consigo. "
Nazaire, finalmente, descobriu-os. Tosse para os prevenir da sua presença. Depois aproxima-se, inclinando-se para transmitir à Menina Smith o convite do marquês.
Desvairada, com o coração contraído, Marie lança um último olhar a Michel e segue Nazaire. Vira-se, obrigando-o a sorrir como se quisesse dizer até já... ou... até nunca mais...
Levou a mão ao peito, no sítio onde prendera a rosa, no término do decote, entre a carne e o cetim, e Michel repete o gesto pondo a mão sobre a rosa encontrada deposta no seu colete bordado. Símbolos, uma flor, um sapato... uma rapariga, a única rapariga.
Nazaire guiou Marie, precedendo-a respeitosamente. Ei-la em frente do Sr. Villecroze. Intimidada, esboçou uma breve reverência. Nazaire eclipsou-se. Durante alguns segundos, imóvel na sua poltrona, o marquês mantém-na sob o seu olhar, e o seu rosto é severo, o que aumenta o embaraço de Marie. Ele faz-lhe sinal para avançar: "Aproxime-se, aproxime-se, menina." Ela obedece, embora tivesse vontade de fugir.
"Estou desolado por a arrancar às delícias da festa. "
Marie não se mexe. Ele não a convidou a sentar-se e continua com voz seca, que nada anuncia de agradável:
"Admirei-a... de longe. Dança com um donaire que muitas profissionais podiam invejar. A menina é muito dotada. Mas a festa vai acabar e amanhã a vida vai começar para a noiva do meu filho. Já pensou nisso?"
Marie está deveras incomodada. Esboça um sinal com a cabeça. Amanhã! Sim, certamente, é mesmo obrigada a pensar nisso. E o seu incômodo transforma-se em pânico. Estremeceu porque, vinda da varanda, Géraldine aproxima-se, irônica e curiosa.
"Inútil apresentá-las. Vocês já se conhecem, parece! "
Como um grito de vitória e de perfídia, Géraldine tem a coragem de sorrir, enquanto metia as mãos nas algibeiras:
"Então, Marie Soler, como está?"
Marie fica muda, paralisada. O marquês interroga-a.
"Menina Soler, que significa esta comédia? Não quer responder? Seja. Minha pequena Géraldine, mande dizer aos Smith que desejo vê-los imediatamente. Eles devem-me explicações, já que esta menina se recusa a dar-mas. "
Encantada, Géraldine apressa-se. Sozinha diante do marquês, Marie toma a resolução de fugir e quer alcançar a porta que se fechou sobre Géraldine. Mas o marquês faz rodar a cadeira, passa-lhe à frente e impede-lhe o caminho.
"Peço-lhe, senhor, não me queira mal... Não reflecti... Aceitei representar um papel, é tudo.
- Um papel de grande vulto...
-Sim, um papel de grande vulto... Eu não sabia no que me metia... Julgava que não tinha importância... Agora é que vejo bem... mas juro-lhe que aceitei sem reflectir, como se fosse um jogo.
- E esse jogo é uma fraude, uma vigarice. -Oh! não, senhor." E foi quase em voz baixa, como para si própria, que prosseguiu: "E, se houver fraude, os mais roubados não serão aqueles que se pensa. "
Esta reflexão perturbou o marquês: "Os mais roubados não serão aqueles que se pensa. "
"Você não vai queixar-se. "
E Marie responde outra vez, mais para ela do que para aquele que a julga:
"Não tenho de que me queixar... e foi maravilhoso. "
Que está ela a narrar? "Não há maravilhas, menina, há realidades. "Há um pequeno sorriso irônico: a bela maquinação posta em acção, o casamento forçado, tanto para os prometidos como para os seus ascendentes, que não podem ser enganados, esse casamento não é, pois, um pequeno negócio, e a presença dessa noiva de reserva toma aparência duma afronta.
"Não, senhor, não é uma afronta, pelo contrário. Foi o que o Sr. e a Sr. a Smith me explicaram.
- Ah! eles deram-lhe explicações! Se começo a compreender, os Smith deixaram-na usurpar o lugar da filha.
- Eu não o usurpei; foram eles que mo deram... por esta noite."
Por um momento, o marquês observa a jovem com uma atenção crescente e até uma certa simpatia: é verdade que ela é adorável, que não se parece nada com uma aventureira. Não há nela nada de equívoco, mas sim de ingenuidade. Nazaire tinha razão; ela é encantadora e, para cúmulo, respira honestidade. Alerta.
Marie retomou coragem para tentar tranqüilizar o marquês e justificar-se:
"De qualquer modo, não deve inquietar-se: Michel e eu estamos de acordo.
- Michel! Você conhece-o há muito tempo?
- Desde esta noite.
-Esta noite! Pois bem, não perdem o vosso tempo. "
Marie tem um suspiro desolado e diz:
"Creio que perdi mais.
-O quê?"
Como responder? Como dizer ao Sr. de Villecroze, simultaneamente irritado e surpreendido, que o jogo e os seus disfarces ultrapassaram a intérprete? Que a substituta, a noiva de uma noite, se deixou prender na armadilha da ilusão que ela devia transmitir e que, representando um mau papel -aos olhos do marquês -, se deixou prender a sério?
Mas aí estão os Smith, todos elegantes nos seus soberbos trajos. Géraldine, que os segue, fica à distância para não os deixar adivinhar a verdade. Fica à parte, tal uma Cassandra que regista os efeitos das suas profecias. Um malicioso prazer a faz rejubilar, preparando-a para gozar o confronto geral.
Os Smith estão faladores como quando não se tem a consciência tranqüila, mas Anne de Villecroze acompanha-os; ela quer assistir a esta primeira reunião de família. Notou imediatamente a atitude do marido, que acolhe os pais de Micky como um grande senhor ofendido. Porquê? Alexis, que é tão delicado, não teve uma palavra de boas-vindas, um gesto de entendimento ou de amizade. E os Smith não parecem com vontade de se suster perante esse acolhimento ameaçador, que contrasta com a alegria geral que reina na festa.
Mundana em excesso, Mildred Smith requebra-se e perde-se numa onda de palavras, cujo essencial se resume:
"Perdoe-nos, meu caro Alexis, por ainda não o termos vindo cumprimentar. Chegámos muito atrasados por causa de Micky. Até à última hora causou-nos bastantes emoções.
- Compreendo.
- Enfim, ela aqui está. Desculpam-nos, não é verdade? A festa está uma maravilha. Estão todos muito contentes.
- Precisamente... Eu não podia esperar mais. Ardia de desejo de conhecer a vossa filha. "
O tom do marquês não deixa a mínima ilusão. Os olhares viram-se para Marie, que baixa a cabeça. Os Smith compreenderam: o Sr. de Villecroze sabe a verdade e a Sr.a de Villecroze começa a entrevê-la.
O marquês faz um gesto para Marie:
"Aproxime-se, menina, chegue aqui. "
Confusa e ao mesmo tempo revoltada, Marie aproxima-se, bem direita e de cabeça erguida. Começa a sentir um sentimento de cólera contra todo esse belo mundo de que ela está a ser o joguete. A voz do marquês eleva-se mais:
"Vossa filha! Esta jovem, vossa filha? De quem querem troçar? Desejo saber. "
Anne de Villecroze queria retardar a explicação definitiva. Suplica ao marido: a festa está no auge, ele que não vá estragar tudo.
"Anne, reflecte, peço-te, sê capaz de voltar à realidade. "
O marquês fala-lhe como a uma criança cuja decepção e humilhação ele avalia: "Tu ainda não estás ao corrente?
- Não... Mas julgo que adivinho. "
Olha Marie demoradamente, sorri com desgosto... "Era demasiado belo. "
Era demasiado belo! Não foi o que Michel disse há pouco? Marie sente um impulso de gratidão por essa dama que tanto a intimidou e acolhera com tanto garbo como surpresa.
Agora os Smith procuram justificar-se. Falam ambos ao mesmo tempo.
"Nós só tivemos uma idéia: evitar o escândalo.
- Mas isto em nada muda os nossos projectos. Eu hei-de trazer-lhes Micky de pés e mãos ligados. Nós só temos uma palavra.
- Era preciso salvar as aparências.
- Graças a esta menina, foi um êxito-disse a marquesa com amargura contida.
- com efeito - concede o marquês.
- Então, deixemos acabar a festa como começou. Quanto à menina, a partir de agora, a noiva pode desaparecer. "
A Sr. a Smith é a única a sorrir das suas sugestões. No ponto a que se chegou, certamente! Mas será preciso, mesmo assim, avisar o herói. Quais serão as suas reacções? Michel é inteligente, compreenderá.
Marie não se mexeu. Está rígida, gelada. Michel compreenderá...
É o que pensa Géraldine, que há um bom momento se eclipsou discretamente, em brasa para ter o prazer de ser ela própria a avisar o "prometido".
Encontrou-o no corredor que vai dar aos aposentos do marquês. Vinha saber novidades. A apresentação de Micky a seu pai. Normal que queira saber o resultado.
Géraldine reteve-o, apressada em repetir ao jovem a revelação que fizera ao pai. A encantadora, a surpreendente Micky Smith, não é mais do que uma bailarina cuja beleza conseguira iludir num mau papel. Michel não sabe se há-de rir ou se há-de zangar-se com a brincadeira. Está simultaneamente decepcionado e aliviado e a sua reacção parece ambígua.
"Pobre Michel... o teu casamento está comprometido. "
Ele agüenta a mofa, respondendo à letra: "Isso não é caso para se contristar... nem a mim, aliás.
- Viva a liberdade! ", disse Géraldine numa gargalhada, aproximando-se dele.
Ele afastou-se vivamente. Géraldine fica despeitada.
"De qualquer modo, minha velha, o casamento não se faria.
- Como?
- Como?... Assuntos particulares. -Julgava que éramos camaradas.
- Somos camaradas... e algumas vezes até mais. "
De novo Géraldine se aproxima, e desta vez ele
não se afasta. com gesto familiar, afaga o rosto da
jovem. Ela tem um rosto feliz, sorri a sério e agarra a
mão que acaricia para a beijar com ternura. Diz:
"Não te zangues, Michel. Vamos trabalhar, conseguiremos, os dois.
Provarás que não tens necessidade de ninguém... senão de mim."
As aparências estão salvas. Os Villecroze e os Smith não romperam o pacto. Mais tarde se verá. E Marie revolta-se como se tivesse sido vigarizada. A Sr.a Smith não deu a entender que daqui em diante se podia passar sem a noiva? Mas se Marie se obstinasse, se quisesse ir até ao fim da noite, fazer uma derradeira reverência ao último convidado que partisse? Ou se quisesse gritar a verdade, berrando subitamente que não é Micky Smith e que toda aquela parada mundana é apenas uma chocarrice?
Ela continua ali, no meio da sala, em frente dos Villecroze, pouco à vontade perante essa jovem de olhar tão fixo e que, por sua vez, parece tão orgulhosa e ofendida. Então, lentamente, Marie tira os medalhões de diamantes, tira do pescoço o colar fabuloso, e restitui-os à Sr. a Smith, que os recebe balbuciando agradecimentos, a que se acrescentam o de John Smith.
"Espero que fique contente, menina, e que não lamente o imenso serviço que nos prestou. "
Estendeu um cheque, que Marie segura com relutância depois de ter lançado a todos um olhar de desafio. Negócios são negócios, como diria esse belo mundo com o qual acaba de ser confrontada.
Anne de Villecroze, que é tão hábil em dominar todas as situações, fica no entanto silenciosa, contentando-se em olhar para Marie com uma simpatia que não procura dissimular. A Sr. a Smith tenta dissipar o mal-estar geral. Gostava de oferecer outra coisa sem ser o cheque e disse:
"Pode guardar esse vestido, como recordação.
- Como recordação! "
Marie tem um sorrisozinho irônico e desencantado:
"Não, obrigada. É um pouco incômodo. Eu entrego-o a Sarah. "
O mal-estar acentua-se mais. Uma última vez Marie olha os Villecroze, os Smith. Depois vira-lhes as costas e, sem pressas, como uma princesa, dirige-se para a porta, que abre lentamente, mas sem hesitações. O marquês quer chamá-la:
"Menina... Menina... "
Marie não se volta. Sai e fecha a porta.
Marie acha-se só no largo corredor deserto, iluminado a espaços por candelabros de bronze e cristal. Dá alguns passos. É preciso voltar a assentar os pés na terra, na vida de todos os dias, e bruscamente sente-se agitada, fatigada, pois o tornozelo inchou e dói-lhe. Apoia-se à parede, deixando-se cair numa banqueta acolchoada de damasco, para se descalçar e massajar o tornozelo ligado.
Não reparou que Michel, meio escondido por uma estátua de mármore, a observa desde que ela saiu. Ele aproxima-se.
"Dói-lhe alguma coisa?"
Marie ergueu-se, procurando pôr o pé no sapato, sem o conseguir completamente. O jovem já não é aquele a quem ela encantou. A voz dura, o ar desiludido, irônico, ele diz:
"A festa foi penosa.
- Um pouco.
- E o seu papel terminou. Felicito-a. Representou muito bem a comédia... Estive quase a cair, como se diz. "
Que responder? Marie caminha ao longo do corredor coxeando. Michel segue-a. Ouve-se a Grande Valsa de Weber, e Marie pára diante duma janela aberta para o jardim. Daí os jovens podem ver o teatro, o palco dourado pela luz. O bailarino atlético, soberbamente moldado num trajo que evoca a flor cujo espectro é, salta, rodopia, impõe-se à jovem adormecida, que ele arrasta e guia como uma sonâmbula. É Sarah quem interpreta a sonhadora.
No cenário, que sugere um quadro romântico aberto para a noite, a jovem voltou do seu primeiro baile premindo uma rosa contra o coração. Uma rosa, uma recordação que se materializa, pelo maravilhoso bailarino - o espírito e a forma -, do qual ao despertar não restará nada, nada, senão uma flor que murcha e uma certa nostalgia.
Marie chora docemente. Vira as costas a Michel. Sim, a festa foi penosa. E se Michel "caiu", ela também se deixou prender num jogo bem mais belo do que a verdade. E murmura:
"Creio que estamos quites. "
Fez um gesto, e o anel de esponsais cintilou. Tira-o vivamente e estende-o ao jovem. "Tome, já me esquecia.
- Que esperava ganhar com esta comédia?
- Isto." E, em ar de desafio, Marie exibe o cheque que a Sr. a Smith lhe entregou. Tomou um tom duro, amargo, ao agitar o cheque.
"Confesse que valia a pena. Quando se ganha mil francos por mês...
- Evidentemente que é um belo cachet." Marie continua no mesmo tom:
"Um cachetde estrela e o preço dum segredo.
- Está segura de o não ter traído.
- Sou sempre sincera... quando represento. "
Há um momento de grande mal-estar. Michel guardou o anel.
"Não é tudo", disse ele, designando a rosa que traz no colete e a que perfuma o corpete de Marie.
Marie encolheu os ombros.
"São para deitar fora. "
Debruçou-se na janela. Por baixo, decorando a varanda, há uma fonte que se derrama num lago. Marie é a primeira a deitar fora a rosa, que desliza sobre a água brilhante. Em breve a outra rosa se lhe vai juntar, sendo também arrastada num turbilhão que lembra a dança d'O Espectro. Símbolos irrisórios, palpitações de coração inúteis, os jovens sorriem, constrangidos e decepcionados.
"Adeus.
-Adeus", repete Michel, que, contra vontade, pensa: até à vista.
No entanto, deixa-a afastar-se, desaparecer. Nem sequer sabe o seu nome... Marie... Géraldine não disse que ela se chama Marie?... Sim, até à vista, Marie.
Marie encontrou o quarto de Sarah. Um refúgio.
Despiu-se. O enorme, o sumptuoso vestido de noiva, pendurou-o no braço dum candelabro. O vestido resplandecente fica inflexível em cima das saias engomadas e dos arcos.
Marie queria ter a coragem de rir duma aventura que terminava em dissabor. Furiosa contra si própria, furiosa por ser "tão jovem", tão ingênua -ela pensa: tão estúpida! Será ela então duma outra época, saída dum mundo ultrapassado, votada a motivações de garota fora de moda? com que sonham as raparigas?
As respostas são brutais e sem rodeios. Hoje, é a pílula, a liberdade, a igualdade dos sexos, e tanto pior para os inefáveis segredos do amor.
Adeus festa, adeus disfarces, adeus sonho. Retomemos a vestimenta de todos os dias. O vestido de hoje, o único vestido de noite que possui. Menos luxuoso, menos insólito? Não é menos conveniente. Não é a Pele de Asno voltada ao seu incógnito de bicho de cozinha, mas uma jovem tão encantadora como a ilusória heroína da noite. Um olhar para os espelhos pode tranqüilizar Marie. Não vale mais ficar ela própria do que passar por outra? Só no palco é que as mudanças de personagens transfiguram e aprofundam a verdade.
Marie encontra-se no estado de alguém que acaba de receber uma lição e que não sabe ainda como aproveitá-la.
A realidade vem até ela de todas as maneiras. O seu tornozelo inchou, dói-lhe. Amanhã terá de ir procurar Bardin. O massagista vai-lhe ralhar. Ele disssera-lhe que ficasse quieta e ela terá de faltar às próximas lições.
Florentine entrou. Por essa noite, para ela, como para as suas companheiras, a tarefa terminou. Enquanto O Espectro da Rosa, principal atractivo do espectáculo oferecido, se desenrola no palco, o corpo de bailado foi envergar os seus trajos quotidianos. Florentine despachou-se e, curiosa, lançou-se à procura da amiga, dessa noiva imprevista, que deve ter muitas coisas a contar.
Nesse momento, descobre Marie encafuada numa poltrona e a massajar o tornozelo. Os seus olhos brilham, vê-se bem que chorou. Florentine espanta-se:
"Também já acabaste?
- Sim, já.
- Pobre Marie, dói-te? Não devias ter vindo... Nós é que tivemos a culpa.
- Forcei demasiado. "
Florentine julgava vir encontrar uma Marie radiosa e satisfeita com o seu êxito. Ora a amiga tem um "ar estranho", como aqueles que se contêm para não chorar.
"Não chores. O teu tornozelo vai ficar bom. Bardin trata disso. Devias estar contente. Foste formidável. O que eu me admirei quando te vi!... Sarah suplicou-nos que nos calássemos; se não fosse isso, o barulho que teríamos feito... Mas ela disse que era muito importante, que era preciso salvar a situação... então, bom... Mas hás-de contar, hem... No fundo, isso deve ser cômico... "
Marie não responde. Tenta tornara calçar o sapato, com dificuldade, e Florentíne continua:
"Dói-te, hem? Está inchado... Mas não vais chorar por isso, apesar de tudo. Devias estar contente; foste tu quem desempenhou o melhor papel. Que é que fazes agora? Ficas para o baile e para a ceia com a Sarah ou voltas comigo? Podemos fazer o que quisermos. Eu prefiro ir-me embora... "
Marie levantou-se. Coxeia, porque não pode calçar o sapato, e marcha forçando o contraforte. Também ela prefere retirar-se.
"Vou-me embora contigo... Aliás, é conveniente que não me vejam... É preciso não estragar a festa. "
Decididamente, não há dúvida, Marie tem um ar estranho. Estaria ela com segredos?
"Apesar de tudo, esta história é engraçada", disse Florentine, suspeitosa. Continua: "Em todo o caso, tiveste sorte, porque o noivo é bem bonito! "
As raparigas deixaram o quarto - ao passarem, roçaram o vestido, que fica so e oscila suavemente.
Saem para o corredor. Para Marie só interessa não encontrar ninguém, não tornar a ver ninguém, desaparecer, fugir. Meteram-se pela escada principal. O mais depressa possível, mas a coxear, Marie desce os grandes degraus amparada por Floflo. A "vila" parece deserta, é nos jardins que a vida continua, que se desenrola o espectáculo.
As jovens apressam-se, lançando olhares furtivos. De repente, ao voltar-se, Florentine viu aparecer Michel no cimo da escada de honra.
"Que grande trinta-e-um! O teu noivo", disse ela, desatando a rir.
Marie não se volta e procura descer mais depressa. Michel começa a descer, por sua vez. Aparece então Géraldine, que o segue de mais longe.
Os últimos degraus, o vestíbulo, a escadaria, a fuga no parque. Obliquando para evitar as pessoas, mas à pressa, desajeitada, Marie perdeu outra vez o sapato, que não consegue segurar no pé. Tanto pior. Não parar. Seguir pelas áleas, atravessar o pátio a correr para subir para o carro do Centro, onde jovens bailarinas já estão prontas para partir.
Michel seguiu as raparigas, mas sem tentar apanhá-las. Atrás dele, Géraldine aproxima-se. Na escadaria de mármore está o pequeno sapato, e Michel baixa-se, apanha-o e mete-o na algibeira.
Géraldine vem ter com ele. A silhueta de Marie desapareceu. Géraldine segura-o pelo braço e Michel deixa-se levar. Não diz nada, dócil e alheio ao mesmo tempo. Aperta o sapatinho como se ele constituísse um penhor, uma promessa. Tudo acabou, certamente, mas não poderá tudo recomeçar?
Uma mão sólida ajudou Marie a subir para o carro. É Serge, que diz à rapariga estropiada:
"Como vês, tinha-te guardado um lugar ao pé de mim, como de costume. "
Marie encolhe-se no lugar reservado, estende a perna. E de novo se sente perturbada. O carro pôs-se em andamento. Dê por onde der, não irá chorar!
"Foste imprudente, minha amiga. Loucuras como essa podem custar muito caro. Tinhas feito melhor se ficasses quieta.
- Oh! se tinha - disse Marie.
-Dói-te?"
Florentine intromete-se:
"É claro que lhe dói... Ela não parou... Parece que ela salvou a situação... Isso fez-lhe ficar com a perna num bonito estado.
- És parva", disse Serge, enquanto Marie se ajeita e põe a perna atravessada sobre os joelhos do rapaz com um gesto familiar.
Olham-se. Ele sorri abertamente. E como os seus olhos são azuis no seu rosto bronzeado e sob os cabelos louros que lhe cobrem a testa! Serge. E ela vê-o como se o descobrisse de novo. É verdade que quase não pensou nele durante a noite, nem nele, nem em ninguém, à excepção de um desconhecido que não existe, ou pelo menos que não pode existir para ela.
No carro, que alcançou a estrada e rola na noite, há o ambiente das tournées, uma espécie de recreio. Discute-se, brinca-se, canta-se, e algumas árias são repetidas em coro. E Marie acalma-se. Ali, como na Escola, está em casa, no seu mundo, aquele que escolheu, com as suas amigas, com os seus companheiros. Companheiros formidáveis, como Serge, por exemplo.
Serge, que lhe diz, com a sua boca que ri, enquanto os seus olhos azuis estão tão graves:
"Era estranhamente bela, a noiva.
- E tu bem gostarias de ser o noivo -replicou Florentine.
- Não é o gênero de pessoa que me interesse." Marie olha-o. Ele pergunta:
"Estás bem? -Estou.
- Tens pena?
- Não sei... É talvez por causa d'O Espectro." Serge encolhe os ombros. Ela disparata, está a dizer parvoíces. É doida, todas as raparigas são doidas:
"O Espectro!... Isso não cabe na cabeça de ninguém. Queres que te diga? Tu tens tendência para desempenhar a situação dos papéis em lugar de
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viver a tua vida. É um defeito, mas é também uma qualidade, a qualidade dos verdadeiros artistas: o que eles interpretam ultrapassa sempre o que eles vivem. "
Marie protesta, sem convicção.
"Não vais agora pregar-me moral. Começo a sentir-me bem, e, além disso, tenho sono. "
Apoiou a cabeça no ombro de Serge.
Por trás deles, Florentine fica um momento inclinada e, como vai para falar, Serge faz-lhe sinal que se cale... pois Marie quer dormir.
Florentine enfia-se no seu lugar. Reflecte um pouco... Que estranha noite... Marie não teria representado a Gata Borralheira?
Floflo, que é boa rapariga, une as mãos dizendo baixinho: "Esperemos, por causa de Serge, que o Príncipe nunca mais lhe venha trazer o sapatinho... "
Odette Joyeux
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