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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A OUTRA FACE DE DEUS / F. T. Farah
A OUTRA FACE DE DEUS / F. T. Farah

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Há quase dois milênios, Jesus Cristo escolheu o discípulo Pedro para guiar seus seguidores em um mundo mergulhado nas trevas. Ele é considerado o primeiro papa da Igreja Católica.

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, os demônios são seres pessoais. Liderados por Satanás, estão engajados em uma batalha contra a humanidade, a Igreja e o mundo. Entre as atividades extraordinárias dos anjos caídos está a possessão de seres humanos. Apenas padres, com a permissão de bispos, podem realizar o ritual de exorcismo.

O conselheiro da rainha Elizabeth I, John Dee (1527-1608), foi um dos intelectuais mais notáveis de sua época. Além de matemático, astrônomo, geógrafo e espião, era mestre em ciências ocultas e afirmava se comunicar com o mundo dos espíritos. Baseado em supostas revelações sobrenaturais, desenvolveu a magia enoquiana, essencialmente anticristã. Seu maior tesouro, o Livro das Folhas Prateadas, nunca foi encontrado. John Dee dizia que ele fora escrito pelos próprios anjos.

O papa João XXIII (1881-1963) profetizou sobre um livro maldito que surgiria no fim dos tempos. Ele invocaria o ódio, dividiria os homens e provocaria guerras. Segundo suas palavras, esse livro criaria um "inferno sobre a Terra".

 

 

 

 

 

 

 

                                 Londres, 1589

Batidas violentas fizeram-no saltar da cama. Coração acelerado. Respiração entrecortada. De camisola e touca na cabeça, empunhou a espada e foi à entrada da casa."Será que fomos descobertos?", indagou-se, girando a chave suavemente. Seguiram-se três batidas. Em um movimento rápido, virou a maçaneta, escancarou a porta e estendeu a espada na direção do inimigo. Do lado de fora, um homem de barba, bigode e cabelos longos e desgrenhados, cobertos por chapéu, engoliu seco. A ponta de metal tocando a pele flácida de sua garganta. Ao reconhecê-lo, John Dee baixou a arma e o encarou com severidade.

Nada mal para um homem de sua idade — brincou seu discípulo, envergando uma capa azul-escura sobre a roupa.

Aquele homem tinha fama de charlatão. Mas o mestre o considerava um iluminado. "Ele conversa com os anjos", respondia aos seus detratores. A defesa não era um ato espontâneo de generosidade. John acreditava que, pela intercessão daquele jovem impetuoso, Deus lhe confiava Seus segredos. E, graças a eles, tornara-se um dos homens mais influentes do mundo. Reis e rainhas eram capazes de cometer os piores crimes apenas para ouvir seus conselhos. Defenderia Edward com as próprias mãos, se fosse preciso. Embora, naquele momento, quase tivesse arruinado seu maior tesouro.

O que faz aqui a essa hora? — indagou-lhe, afastando-se para que ele entrasse. — Pensei que fossem eles.

Eles estão bem perto, mestre — respondeu Edward, sentando-se no sofá.

Como sabe disso?

O mensageiro me revelou em um sonho — disse, franzindo o cenho.

O que você viu? — inquiriu John, acomodando-se na poltrona diante dele e, com a mão direita, acariciando a longa barba branca.

Homens alados com espadas flamejantes nos caçavam como se fôssemos animais, mestre - respondeu, arregalando os olhos.

O que queriam?

Queriam nos matar. E nos impedir de realizar a missão que Deus nos confiou - entregou, tirando o chapéu e colocando-o ao lado.

Até hoje o mensageiro não revelou nossa verdadeira missão, Edward — rebateu John, encarando-o.

Por isso ele me enviou até aqui, mestre. Precisamos ir ao laboratório antes que seja tarde demais.

John levantou-se e foi ao porta-chapéus.Vestiu o pesado casaco de pele de raposa. Em seguida, acendeu um candeeiro e fez sinal para que Edward o acompanhasse. Em silêncio, dirigiram-se para a biblioteca, considerada a melhor da Europa. Passaram pelas inúmeras estantes de livros e pararam diante de uma delas, no lado oposto à entrada.

—A hora da mágica — anunciou Edward. John repousou o candeeiro em uma pequena mesa lateral e colocou, ao seu lado, um exemplar manuscrito da Bíblia do Rei James retirado da estante. Enfiou o braço no vão e tateou o fundo, em busca de uma pequena alavanca. Forçou-a para baixo. Barulho de algo se soltando. Com a ajuda de Edward, empurrou a estante para a esquerda. Ela se moveu em um trilho oculto na base, revelando uma passagem. John agarrou novamente o candeeiro com a mão esquerda. Ergueu-o diante de si, iluminando os degraus. Os dois desceram em silêncio até uma pequena sala. Três espelhos de metal polido ornamentavam a parede oposta. Uma pequena janela oval na parede oeste permitia a entrada de luz solar, por um mecanismo refletor criado por John. No centro, uma mesa medindo quase um metro de altura sobre um tapete de seda vermelho, de aproximadamente dois metros quadrados. A toalha de linho branco sobre o tampo de quase um metro quadrado tocava o chão. Entre dois castiçais com círios, uma moldura circular exibia, no centro, um cristal redondo e polido. Nas laterais, duas cadeiras verdes encostadas.

Precisamos pegar os outros objetos — disse John, avançando para uma porta à direita.

— Não precisaremos do Sigillum Dei, nem do espelho negro — retrucou Edward, em tom enérgico.

O que devemos fazer, então? - indagou o mestre, pendurando o candeeiro em um gancho fixado na parede à direita da entrada.

Vá ao oratório e reze para que Deus envie seu mensageiro — respondeu seu discípulo, acendendo os círios com o auxílio de uma vela acesa na chama que John carregava há pouco.

A sala ao lado era menor ainda. Um armário de madeira com portas de vidro cobria uma parede. Lá estavam os objetos ritualísticos que os dois usavam nas sessões, além de manuscritos com as revelações dos anjos, enunciadas por Edward e transcritas por ele. Do lado oposto, uma estátua sobre o altar dourado estava coberta por um tecido negro. John acendeu uma vela e ajoelhou-se diante dela, sobre uma pequena almofada de veludo verde-escuro. Uniu as mãos em prece e fechou os olhos.

Senhor do céu e da terra, eu vos imploro: enviai vossos anjos para que nos mostrem o caminho. E confundi nossos inimigos para que não nos encontrem até que tenhamos terminado o que esperais de nós.

Um estrondo na sala principal estremeceu o chão, e um calafrio percorreu-lhe as vértebras. Sentiu pavor. Abriu os olhos. O tecido negro que cobria a estátua caíra ao seu lado.Virou-se para cima. O rosto de um anjo, iluminado pela vela, sorria. "É um sinal. Ele está aqui", deduziu, levantando-se. Pegou um pergaminho, pena e tinta e avançou para o laboratório. O discípulo estava tombado no chão, de bruços. Correu em seu socorro.

Edward, Edward — chamava seu nome enquanto sacudia o corpo, tentando acordá-lo. Sem sucesso. Uma forte luz invadiu a sala pela janela oval.

Impossível. São quatro da manhã — concluiu, olhando o relógio de parede — Senhor? — indagou perplexo, ajoelhando-se diante do cristal e cobrindo os olhos com as mãos. Sentiu uma ventania no rosto. Imaginou um anjo pairando sobre a mesa. Era capaz de ouvir suas asas movimentarem o ar. Permaneceu imóvel por mais de uma hora, até o visitante alado desaparecer. Abriu os olhos. A sala voltara a ser iluminada apenas pelos círios e pelo candeeiro. Levantou-se. Algo reluzia sobre a mesa. Era um livro prateado de aproximadamente vinte centímetros de comprimento, dezoito de largura e quarenta e oito páginas. Reconheceu imediatamente o símbolo na capa. E estendeu a mão para tocá-lo.

Este é o tesouro — revelou Edward, recuperando-se do desmaio.

Podemos abri-lo?

Ele não foi escrito para nós. Nossa missão é escondê-lo durante os próximos séculos — revelou Edward.

Por quê? Para quem?

Esse livro é a chave de uma nova era, mestre. E ele nos escolheu para sermos seus profetas.

Quem? Deus?

Não. Samyaza.

John olhou para o discípulo. Estava aterrorizado.

 

                           Roma, nos dias de hoje

A freada brusca fez com que a mulher, sentada atrás do motorista, batesse a cabeça no encosto. O sangue começou a escorrer da narina es­querda. Ela tombou no banco.

Cuidado, ou vai ser punido pelo padre — berrou Andréa, o outro passageiro. Diante deles, a Basílica de Santa Maria in Aracoeli, iluminada por refletores, erguia-se majestosa contra o céu escuro. Aquela imagem era uma das metáforas preferidas do padre Pietro Amorth em suas homí­lias: "Um sinal de Deus em um mundo mergulhado nas trevas".

O que vamos fazer com ela? — perguntou Simone, o motorista.

Temos que deixá-la na igreja.

Não vou subir todos esses degraus carregando essa vadia.

Você recebe para isso. Agora cale a boca e me ajude — retrucou Andréa, abrindo a porta do carro.

Os seios volumosos insinuavam-se no decote da camiseta branca. Minissaia preta. Salto alto. A maquiagem carregada dividia espaço com vários hematomas. O nariz estava inchado. Poderia ser a pancada de segundos antes ou as bofetadas de horas atrás. O cabelo liso, na altura dos ombros, era quase todo loiro, excetuando-se as raízes negras. Apesar do pouco peso e da estatura baixa, Andréa teve dificuldades de puxá-la para fora. Olhou para o amigo, mais alto e bem mais forte do que ele.

Deixe comigo — adiantou-se Simone, debruçando-se sobre a mulher - Posso passar alguns minutos com ela antes?

Só se você não tiver medo de ser mastigado pelo diabo, seu im­becil! — berrou Andréa — Traga-a para fora. O padre nos espera.

Como se fosse um pacote de poucos quilos, Simone colocou a vítima nas costas e subiu as escadas. Ao se aproximar da imponente porta principal de Santa Maria in Aracoeli, o celular tocou no bolso da jaqueta de Andréa.

Sim, padre, somos nós. Quer que deixemos a mulher aqui na entrada? Tudo bem, podemos entrar com ela pela porta lateral.

O que ele vai fazer com esta cadela? — perguntou Simone, exi­bindo um sorriso malicioso — Quer que a gente participe da brincadeira?

Cale a boca, cara. Assim vou ter que arrumar outro ajudante!

A porta do lado esquerdo se abriu. Diante dela, um homem alto e magro, com uma lanterna na mão. Cabelo e barba grisalhos, bem apa­rados. Uma cicatriz triangular na testa.Vestia um hábito negro, com um crucifixo de prata pendendo do pescoço. O sorriso desapareceu ao olhar o rosto da mulher desacordada.

O que aconteceu? — indagou, ríspido.

Ela estava histérica, padre — respondeu Andréa.

E agressiva. Arranhou meu rosto — completou Simone, sob o olhar reprovador do colega.

Tivemos que sedá-la com aquela injeção de tranqüilizante que o senhor nos arranjou — prosseguiu o responsável pela missão.

Venham comigo. E sem perguntas — ordenou o padre Pietro Amorth, fechando a porta da igreja e seguindo pela nave lateral. As imponentes colunas, trazidas do Fórum Romano e do Monte Palatino, pareciam gigantes na penumbra. Elas apoiavam o clerestório acima, com suas janelas retangulares. Após alguns metros, a mulher começou a gemer. Passaram pelo altar à esquerda do transepto da igreja. Ela deu um grito. E um soco nas costas de Simone. Os homens estremeceram.

E onde ficam os ossos de Santa Helena. Um lugar sagrado — ex­plicou Pietro, apontando para ele — Não se preocupem. Estamos chegando.

Santa Helena era a mãe do imperador Constantino. Se não fosse por ela, o mundo teria outros deuses, Simone.

Se todos os seminaristas pensassem como você, Andréa, o re­banho estaria perdido. A vitória do cristianismo é um milagre de Deus. Santa Helena foi apenas um instrumento em Suas mãos — repreendeu-lhe o padre, abrindo a porta da sacristia.

"Ele está prestes a violentar esta gostosa e quer dar lição de moral. E um babaca", reprovou Simone, em pensamento. A mulher apenas gemia. Pietro os conduziu até uma estante com relíquias de santos em uma parede lateral. Pegou uma chave do bolso e abriu a pesada porta de vidro e madeira. No centro, uma peça dourada no formato de ca­beça, incrustada de pedras preciosas coloridas. A viseira transparente permitia observar seu interior. Havia um crânio humano. Com cui­dado, o padre retirou o tesouro de seu plácido repouso e colocou-o sobre uma mesa.

Que capacete macabro... — comentou Simone.

É um relicário. Andréa, quando estiver fora daqui, explique ao seu amigo o significado deste "capacete" - censurou Pietro, deslocando para baixo uma pequena alavanca, que ficava escondida atrás do relicário. Empurrou a prateleira para o lado. Ela se deslocou sobre um trilho im­perceptível em sua base, revelando uma porta. Com outra chave, o padre destrancou a câmara secreta. "Tanto trabalho para foder esta vadia", pensou Simone. Pietro acendeu a luz e fez um sinal para que entrassem. A sala tinha seis metros quadrados. Diante deles, e sob uma pequena janela octogonal, uma imagem de Santa Maria.

A autêntica Madonna di Aracoeli — suspirou Andréa. O rosto de seu assistente se iluminou, como se aquele ícone trouxesse lembranças agradáveis do passado.

Um quadro de São Miguel empunhando uma espada e pisando sobre o dragão vermelho pendia no lado oposto. As duas paredes laterais, com rachaduras, ostentavam quatro crucifixos de prata cada uma. Dispostas abaixo deles, quatro cadeiras de madeira, espaldar reto. No centro do cômodo, uma cadeira estofada de veludo vermelho parecia presa ao chão, ao lado de uma pequena mesa com uma maleta de couro marrom bastante desgastada.

Amarrem essa infeliz naquela cadeira e dêem o fora - ordenou Pietro, apontando para o centro da sala.

Como se fosse um pacote de poucos quilos, Simone acomodou a mulher. Andréa usou os rolos com correias de três centímetros de largu­ra para amarrar as pernas bem torneadas, evitando olhar em direção às coxas. Depois prendeu os braços, desviando os olhos dos seios.

O que estou fazendo aqui? — ela perguntou ao seminarista antes que ele se levantasse. Era sua primeira frase após horas de silêncio forçado.

Já fizeram seu trabalho. Agora saiam! — impacientou-se Pietro.

Por favor, não me deixem aqui com esse pervertido — ela supli­cou, apelando para a compaixão daqueles dois jovens.

Você conhece o caminho, Andréa. Bata a porta da igreja assim que sair - orientou o padre.

—Vamos embora, Simone.

Deixaram o padre a sós com a mulher. Sem dizer uma palavra, atra­vessaram a sacristia ouvindo o choro desesperado daquela "infeliz". Antes de passarem pela porta que levava à nave lateral, um grito aterrorizante. Apertaram os passos. Deixaram a igreja sem olhar para trás. No carro, após alguns minutos, Simone quebrou o silêncio:

Esse foi meu último trabalho para vocês.

Por quê?

Não sou nenhum santo. Passei bons anos da minha vida atrás das grades porque matei minha noiva — explicou Simone.

Eu sei disso. Aonde quer chegar com essa história toda?

Aquele safado podia foder aquela mulher em qualquer lugar. Mas não na frente daquela imagem de Nossa Senhora, cara! Passei minha in­fância vendo minha mãe rezar na frente dela.Todos os dias.

Não acredito que você esteja pensando isso dele, seu pervertido! — censurou Andréa.

O que quer que eu pense, então? O que ele vai fazer com ela naquele quartinho secreto?

O padre Amorth é um exorcista — respondeu Andréa.

 

Era fim de tarde. Céu cinzento. Sentado em um banco do Saint Jamess Park, um jovem alto, pálido e em boa forma. O nariz alongado e arrebitado era proporcional ao rosto fino, com as maçãs e o queixo levemente salientes. O cabelo loiro, mais comprido no alto da cabeça e curto na nuca, deixava as orelhas descobertas. As costas arqueavam-se para a frente e os olhos castanho-claros corriam as páginas de A Tempestade, de William Shakespeare. Entretido com a magia do protagonista Próspero, o jornalista David nem percebeu o atraso da namorada Susan. "Às vezes, a morte chega sem avisar". Assustado, ele ergueu a sobrancelha direita, interrompida por uma discreta cicatriz, e fechou o livro.

Quem falou comigo? - indagou, mordiscando o lábio inferior, levemente mais estreito que o superior.

Não havia ninguém por perto. Olhou para o relógio. Passava-se quase meia hora do horário combinado. Pegou o celular e discou o número de Susan. Caixa postal. Seu sexto sentido era uma dádiva no trabalho, mas parecia uma maldição na vida privada. Ouviu um estrondo no céu. As nuvens se abriram. Surgiu um dragão vermelho-fogo. Era um ótimo repórter e não fugia da notícia, fosse ela um serial killer ou um monstro de proporções cósmicas. Conseguiu contar sete cabeças e dez chifres. A cauda se agitava freneticamente. Deduziu que era cinco vezes maior do que a torre do Big Ben. Olhou com atenção. Ela parecia brincar com centenas de esferas de fogo. Em um gesto inesperado, arremessou-as para baixo. Flashes de luz. Explosões. David sentiu um estilhaço atingir sua perna direita, acima do joelho. Caiu no chão, contorcendo-se de dor. Per­cebeu alguém se aproximar. Abriu os olhos. Havia um homem envolto em fumaça escura. Não conseguiu enxergar quem era.

Quem está aí?

Samyaza.

O que quer?

Vou foder sua mulher. Aquela puta do inferno.

Coração acelerado. Respiração ofegante. David abriu os olhos. Estava em seu território. Sentiu-se seguro. O relógio marcava quatro da manhã. Pontualmente. Sentou-se na cama. Pegou o bloco de notas no criado-mudo. Desde a trágica morte de Susan, aquele sonho se repetia. Apenas alguns detalhes mudavam, como o banco do parque e o trecho da peça de Shakespeare. Porém, era a primeira vez que se lembrava de algo importante. A caneta escorregou de sua mão suada enquanto escrevia aquele estranho nome: Samyaza. Foi até a sala de estar. Apertou a tecla shuffle do som. O acaso escolheu A Arte da Fuga — Contrapunctus I, de Bach, seu composi­tor favorito. Apanhou o cachimbo Dunhill, com seu inconfundível ponto branco na boquilha, herdado do avô paterno. Preparou-o com uma mistura exclusiva de tabaco. Entre uma baforada e outra, pensou em Susan. Já se passaram quinze anos do acidente de automóvel. Ele não se apaixonara por mais ninguém. O porta-retratos ainda enfeitava a sala com seu sorriso. E iluminava seu coração. A primeira música terminava. No silêncio de alguns segundos, desejou ter morrido com ela. Havia alguma razão para ter sobre­vivido. E aqueles pesadelos talvez tivessem a resposta.

 

Pietro abriu a maleta. Retirou alguns objetos e deixou-os sobre a mesa, ao lado de sua prisioneira.

O que o senhor vai fazer comigo, padre? Me tire daqui, por favor. Não fiz nada de errado - ela suplicou.

—Aqui, neste lugar, uma mulher profetizou a chegada de Nosso Se­nhor Jesus Cristo ao imperador Augusto. E ele construiu o ara coeli, altar do céu. E um terreno sagrado — explicou, dirigindo-se para trás da cadeira.

Me tire daqui! — ela gritou.

O padre pôs sobre o hábito uma sobrepeliz branca. Pegou a estola roxa e colocou-a sobre o ombro da mulher. Ela se contorcia. E berrava. Pietro fez o sinal da cruz sobre sua cabeça.

Seu padre maldito, me deixe em paz - disse ela, com uma voz grave, masculinizada.

É você que está no lugar errado. Exorcizo te, immundíssime spíritus, omnis incúrsio adversárii, omne phantásma, omnis légio, in nómine Dómini nostrijesu Christi — rezava, sem se importar com os roncos da mulher, cada vez mais altos.

Com um aspersório de prata e um frasco de vidro nas mãos, postou-se a dois metros de distância dela. O rosto, antes inchado por pancadas, estava estranhamente disforme. Os ossos, mais pronunciados. As veias cortavam a pele translúcida, formando estrelas. Os olhos projetavam-se para fora das órbitas. As mãos eram duas garras enrijecidas, com as unhas voltadas para cima. O corpo, inclinado para a frente, estava em posição de ataque.

Me enfrente como um homem, seu padreco!

Para te derrotar, minhas armas são outras — respondeu Pietro, elevando o aspersório sobre a cabeça como se fosse uma espada prestes a golpear o inimigo. Ao abaixar o braço, em um movimento vigoroso, a água benta jorrou sobre a mulher. Ela se contorceu e gritou, como se atingida por lava vulcânica.

Por favor, não me machuque mais - suplicou, imitando voz de criança.

O que você quer? - continuou o padre, aspergindo água benta.

Quero que você me chupe. Estou toda molhada - retrucou a possuída, com uma entonação sedutora. E forçou as coxas para fora, mos­trando que não usava roupa íntima — É isso o que você quer, não? — in­dagou, passando a língua nos lábios.

O padre desviou o olhar para a imagem de São Miguel Arcanjo, acima da soleira da porta. E continuou a recitar a fórmula de exorcismo do Rituale Romanum, que já sabia de cor:

Adjúro ergo te, draco nequíssime, in nómineAgni immáculati, qui ambulávit super áspidem et basilíscum, qui conculcávit leónem et dracónem, ut discédas ab hoc hómine.

Em seguida, molhou o polegar direito com óleo consagrado e se aproximou da mulher. Desenhou o sinal da cruz em sua testa. Dez longos gritos.

Eu conheço seu segredo, Pietro. Por isso você trabalha sozinho, não é? Tem medo de que outras pessoas descubram que você é um assassino? - ela deu uma gargalhada profunda, antes de prosseguir - Não deve ser fácil acordar à noite com o choro daquela criança. Ela está morta. Morta!

Pietro sentiu o coração se contrair. Um nó na garganta. Olhos mare­jados. A mulher ficou ereta na cadeira, com um sorriso malicioso no rosto. Ela atingira o padre. Com uma arma poderosa. Ele engoliu seco. Pigarreou. Fez uma oração a Nossa Senhora. Em silêncio. Ao sentir-se recuperado, forçou o crucifixo de prata contra a testa da mulher. Com raiva.

Qual é o seu nome?

Ela cuspiu em seu rosto. Mas ele permanecia imóvel.

Qual era o nome da criança? — provocou a possuída.

—Você deve saber. Também estava lá. Qual é o seu nome, espírito imundo?

Pode me chamar do que quiser, Pietro. Isso não faz diferença. Você não vai me foder logo? Sei que está com vontade.

Em nome de Nossa Senhora, cale a boca e me diga de onde você vem.

Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon.

—Volte para o inferno!

—Você pode me expulsar agora, padre assassino. Mas vou voltar para acertar as contas. Ninguém vai te salvar quando Deus revelar sua outra face.

Esta é a face de Deus — exaltou-se Pietro, esfregando o crucifixo na face direita da mulher. - Recéde ergo in nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti. Amen.

Um berro agonizante.

Pode ficar com esse corpo acabado — disse uma voz masculina, já sem vigor.

A cabeça da mulher tombou para o lado esquerdo. O rosto, inchado por pancadas e coberto por hematomas, estava menos lúgubre. Mas não tinha vida. O padre colocou dois dedos em seu pescoço, sobre a carótida. Sem pulso. Fez o sinal da cruz. Pegou o celular no bolso e ligou para o assistente.

Andréa, ela está morta.

 

Sem conseguir dormir, David foi ao escritório. Pretendia terminar a matéria sobre a top model brasileira Fernanda Albuquerque, que chegaria a Londres no fim de semana para o lançamento da campanha publicitária do novo perfume Schiaparelli."Ela é a nova estrela do showbiz. Quero um perfil completo, quando transou pela primeira vez, quantos namorados já teve, com quem está saindo. E especule sobre um romance com o prín­cipe Harry", o editor-chefe, Steven, pautara David.

— Dos assassinatos ritualísticos ao mundo das celebridades — disse para si mesmo, abrindo o arquivo com a coletânea de matérias e entrevistas da modelo brasileira em jornais e revistas internacionais.

Há dois anos, com a carreira no jornalismo em ascensão me teórica, não poderia imaginar que acabaria na redação de um jornal sensacionalista como o The Star, garimpando fofocas de celebridades. Às vezes, confir­mando boatos a pedido do editor-chefe. A história com o príncipe não passava de uma invenção barata."Não importa. Quero manchetes que ven­dam jornal. Depois, se chiarem, a gente solta uma notinha de poucas linhas pedindo desculpas pelo mal-entendido", repetia o diretor nas reuniões de pauta. A decadência profissional de David era comentada abertamente pelos seus colegas. Ele assinara uma série de reportagens sobre assassina­tos ritualísticos ocorridos em Londres. Em sua investigação, concluíra que os responsáveis pelos crimes eram integrantes de uma poderosa seita. No último artigo, publicara nomes de pessoas influentes da sociedade inglesa. Havia membros da Câmara dos Lordes, amigos de seu pai. No dia seguinte, um maníaco capturado pela Scotland Yard confessara os assassinatos. Com sua prisão, nenhuma mulher fora novamente encontrada com o útero eviscerado e o coração arrancado do peito. David perdera a credibilidade com o público e fora execrado pelo mercado. Um jornalista sem reputação não é ninguém. Além do emprego no The Guardian, como editor-adjunto, também perdera a amizade de seu pai, que não o perdoara pelo "grave e irresponsável equívoco". As pessoas costumam justificar os próprios erros apelando para um bode expiatório. No caso de David, um personagem misterioso conhecido como Duque Negro. Era o único nome que não constava em sua lista. O jornalista fora acusado de perjúrio. Semanas depois os nobres ingleses retiraram as queixas contra ele. "Isso não é cavalheirismo. Faz parte da conspiração", repetia. No fundo do poço, recebera uma liga­ção do editor-chefe do The Star. "Você é o cara ideal para trabalhar aqui. Faz barulho e não tem escrúpulos", dissera-lhe pessoalmente. Como não via outra saída, aceitara o emprego de editor assistente. Quase dois anos depois, no escritório de sua casa, uma entrevista de Fernanda para a Playboy brasileira chamou sua atenção.

—Você perdeu a virgindade aos catorze anos? Meu chefe vai ado­rar saber disso. Também vai gostar de saber que já participou de ménage à trois. Com dois homens! E drogas... Maconha. Algo mais pesado? Ah, experimentou cocaína em Nova York — conversava com sua perfilada até que uma resposta prendeu sua atenção.

 

Minha última lembrança do meu pai é assustadora. Acordei por causa de um pesadelo. Um dragão de fogo. Fui até o quarto dos meus pais, mas não havia ninguém. Desci as escadas e vi que o quintal estava movimentado. Meu pai estava com as mãos vermelhas. Parecia sangue. Consegui ver um bicho morto em cima de uma mesa. Talvez fosse um bode. Fiquei assustada e não quis ouvir a explicação da minha mãe. Só não queria mais conversar com ele. E me arrependo. No fim da tarde seguinte, ele morreu esfaqueado. Seu corpo estava jogado na mata, perto de casa. A polícia nunca descobriu o assassino.

 

David sorriu. Iria além da fórmula sexo, drogas e escândalos amo­rosos. A história da top model teria magia negra, sacrifício de animais, morte misteriosa. Dragão de fogo.

 

O carro com os dois homens estacionou discretamente diante de Santa Maria in Aracoeli quase às cinco da manhã. Andréa ligou para Pie­tro. E desligou no terceiro toque. Poucos minutos depois a porta lateral da igreja se abria. Ele ficou vigiando do lado de fora. Simone seguiu o padre até a sala de exorcismos, com um embrulho debaixo do braço. Ao entrar na câmara secreta, o ex-presidiário olhou para a Madonna di Ara­coeli. E abaixou a cabeça, envergonhado.

Faça isso rápido — ordenou o padre.

Sem dizer nada, Simone estendeu um plástico acinzentado no chão. De­satou as cintas que prendiam a mulher na cadeira vermelha. O rosto estava mais deformado. E a vítima, mais pesada. Ele deitou-a sobre o plástico, acom­panhado pelo olhar preocupado do padre. Cobriu o corpo com um dos lados e puxou uma fita vermelha, transformando o embrulho em saco mortuário.

É o momento da despedida, padre — alfinetou Simone, antes de cobrir o rosto da vítima.

Não irei acompanhá-lo até a porta. Diga ao Andréa que ela deve ter um enterro cristão. Rezarei por sua alma.

"É um cretino", pensou Simone, colocando o pacote nas costas. Passou pelas colunas da nave lateral sem olhar para os lados.

Exorcistas matam as pessoas? — perguntou a Andréa assim que deixou a igreja.

Um homem alto, vestindo casaco escuro, passou na rua, mirando o alto da escadaria e flagrando os dois. Desapareceu em poucos segundos.

Cale a boca, Simone. Precisamos ir embora antes que mais gente apareça.

—Você acha que a gente chama a atenção? Só porque estamos saindo de uma igreja a essa hora, carregando uma mulher morta?

—Você sabia que essa escadaria foi terminada em 1348 para come­morar o fim da Peste?

Dane-se essa escadaria maldita. Danem-se vocês, padres. Raça sinistra. Essa garota estava viva quando a deixamos na igreja. Não sei o que aquele cara fez com ela, mas coisa boa não foi - desabafou Simone, colocando o cadáver no porta-malas do carro — Meu pai sempre me dizia para não confiar em padres.

—Você não sabe o que está falando. O padre Amorth é um bom homem.

Ele guarda uma caveira no armário.

—Você lembra o lugar em que pegamos essa garota? Ela estava em um acampamento de adoradores do demônio.

Cara, ela era uma garota de programa. Só isso. Escapou de uma orgia para acabar com um velho pervertido.

—Você é um tosco! Não sabe de nada. Devia fazer seu trabalho ca­lado! — retrucou Andréa, com o tom de voz ligeiramente alterado.

Uma freada brusca.

O que foi? - berrou o seminarista.

Outro carro havia cruzado a rua e fechado os dois. Vidros escuros. Dois homens abriram as portas traseiras. Estavam com capas pretas sobre terno e camisa igualmente pretos. Óculos escuros. As pistolas automáticas cromadas reluziam nas mãos.

Meu Deus, nos proteja — rezou Andréa, apavorado.

 

David chegou à redação do The Star às dez e meia. Ele se destacava entre os colegas. Os outros vestiam roupas fora do tamanho - para mais ou para menos. Desde pequeno, David freqüentava a Savile Row, cen­tro da costura inglesa sob medida. No número um da rua, na Gieves & Hawkes, era sempre atendido pelo mesmo alfaiate de seu avô. "Você co­nhece meu corpo melhor do que eu", dizia para Charles, enquanto ele tirava suas medidas, várias vezes. O resultado era impecável. E ajudava a encobrir a diferença de poucos centímetros entre as duas pernas, resul­tado do acidente de automóvel que matou Susan. Os tecidos preferidos: nailhead, nos tons de cinzento e azul, cinzento-escuro, quase preto, com riscas agulhadas, e o clássico riscas brancas sobre fundo azul. Foi com esse último que chegou na mesa do editor-chefe.

Como está o andamento da matéria? - perguntou Steven.

Está pronta — respondeu, apoiando a bengala preta, com esfera de prata na ponta, em sua mesa. Era uma companheira inseparável e o ajudava a disfarçar que mancava ligeiramente com a perna direita. Abriu a maleta de couro marrom-claro e pegou três folhas impressas.

Temos uma manchete para a capa?

Na minha opinião, sim — respondeu, entregando-lhe a matéria.

Sexo, drogas... O quê? Magia negra? — surpreendeu-se Steven, com o texto em mãos — Cara, isso é sensacional. Quero que você fique em cima dessa história. Cobrirá a estadia dela em Londres, coordenará os paparazzi e trará ao jornal uma entrevista exclusiva.

Ela negou o pedido de entrevista exclusiva. Fará uma coletiva no Mandarin Oriental.

Faça o impossível.

Só isso? — ironizou David, fechando a maleta e pegando a bengala.

Não — respondeu Steven, com um sorriso malicioso no rosto — Amanhã uma jornalista americana chegará à nossa redação. Ela se chama Mary e tem um "QI" poderoso.Você será seu tutor.

O quê? Você sabe que gosto de trabalhar sozinho. Ainda mais com a chegada da Fernanda Albuquerque. Não terei tempo de ser babá de ninguém - esquivou-se David.

Essa missão é sua, cara. Além do mais, qualquer editor gostaria de ter uma assistente de vinte e três anos - disse, piscando para ele - Agora, chega de conversa. Preciso editar sua matéria. Passe uma cópia para o meu e-mail.

Espero que isso possa ser útil para a promoção que você me prome­teu — cutucou David, partindo em direção à sua mesa.

Já instalado diante do computador, pegou seu bloco de notas: Samyaza. Era o momento de descobrir o que significava aquele nome. Invocou seu oráculo: Google.

 

Ele passava com o motorista da diocese pelos imponentes portões de ferro do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, nos subúrbios de Roma, quando seu celular tocou.

Não posso falar agora.Tenho uma conferência. Ligo quando terminar.

Sua palestra era uma das mais aguardadas pelos alunos daquele estra­nho curso. Em quatro meses, uma platéia composta por seminaristas, pa­dres e freis dos quatro continentes tinha aulas sobre os aspectos históricos, teológicos e pastorais do exorcismo, as raízes antropológicas e sociológicas da crença no demônio, as patologias psicológicas e as respostas jurídicas aos cultos satânicos. "Precisamos treinar os soldados de Deus para a ba­talha final", o padre dissera na aula inaugural. O título de sua aula era emblemático: "As marcas da besta". O carro atravessou os gramados verdejantes daquele campus em expansão e estacionou diante de um prédio imponente e moderno.

Padre Pietro Amorth, nosso mestre — saudou um jovem padre asiático ao recepcioná-lo - O único que consegue lotar nosso auditório.

—Vamos deixar nosso jantar para outro dia?

Algum problema, Pietro?

Um chamado urgente da Santa Sé — explicou Pietro, entrando no auditório.

Havia mais de cem pessoas. Ele colocou um fone de ouvido com microfone. "As marcas da besta" também seria transmitida a alunos de outras cidades italianas. Entregou o pendrive ao assistente e pegou um pequeno controle remoto.

Caros alunos, vocês estão aqui porque ouviram a voz de Deus.Todos devem conhecer aquela carta em que São Paulo diz: "Revesti-vos da armadu­ra de Deus, para que possais resistir às ciladas do diabo. Pois a nossa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra os principados, as potestades, os domina­dores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelo espaço". Além de aliviar o sofrimento dos possuídos, nossa missão, como exorcistas, é descobrir as ciladas diabólicas contra a humanidade. Os demônios deixam marcas por onde passam. E é sobre essas marcas que pretendo falar aqui.

Apertou o botão do controle. No primeiro slide, a imagem de um dragão vermelho-fogo, com sete cabeças, dez chifres e uma longa cauda. Abaixo dela, várias estrelas.

Eis o diabo na visão de São João, descrito no capítulo doze do Apocalipse. As estrelas, como vocês sabem, são os anjos que ele arrastou do céu. E parte de seu exército. Mas ele também recruta outros soldados. Vocês sabem de que maneiras o diabo faz isso?

As respostas da platéia se seguiram, desordenadas.

Tudo o que disseram está correto, mas quero apontar para uma pequena passagem do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia: "...os filhos de Deus viram que as filhas dos humanos eram bonitas e escolheram as que lhes agradassem como mulheres para si". Os "filhos de Deus" são os anjos caídos, os demônios. O que isso significa? Que eles tiveram relações sexuais com as mulheres. E elas geraram filhos — disparou, varrendo o auditório com os olhos.

Ele sabia prender a atenção dos alunos.Todos estavam em silêncio, que­rendo ouvir mais. Pietro apertou outro botão. Era a foto de uma escultura. Ela retratava um anjo seduzindo uma mulher nua. Uma de suas mãos segu­rava o braço de sua consorte. A outra trazia a cabeça para perto dos lábios.

Sabem o nome desse sedutor das trevas? — inquiriu a uma platéia perplexa.

 

Aquele estranho nome aparecia em centenas de páginas da internet. Resolveu abrir a primeira. Ela falava de um texto escrito por volta do século III antes de Cristo. O Livro de Enoque era considerado apócrifo e não fazia parte da Bíblia. Durante milênios, apenas fragmentos circula­ram entre estudiosos e místicos. Porém, no século XVIII, um explorador escocês, chamado James Bruce, encontrou a versão integral. A primeira edição moderna saiu em 1821.

— Vamos ao que interessa — disse para si mesmo, fazendo o download do livro. Correu os olhos pelas páginas. No sétimo capítulo, mulheres elegantes e belas desfilavam seus atributos na face da Terra. Alguns an­jos, de passagem por aqui, ficaram apaixonados e confabularam entre si: "Vamos escolher mulheres para ter filhos com elas".

— Que anjos safados — murmurou David, com um sorriso maldoso.

O líder da rebelião arrastou duzentos deles até o monte Armon. Lá, todos juraram lealdade a ele. Seu nome: Samyaza. Logo depois, transaram com mulheres, plantando na humanidade a semente da maldição. Suas concubinas aprenderam a arte da feitiçaria e, após a gestação, pariram gigantes. Insaciáveis com a comida disponível, os monstros se viraram contra os homens para devorá-los. Os poucos sobreviventes, aterroriza­dos, suplicaram a ajuda dos céus.

— Essa história é bem mais interessante do que a serpente no Jardim do Éden. Mas o que tenho a ver com uma lenda de milênios atrás? — questionou-se - "Se tiver tempo, ligarei para meu amigo em Roma. Ele deve ter alguma explicação para o meu sonho", pensou, abrindo sua caixa de mensagens.

A redação do The Star seguia o modelo americano. Uma sala, sem paredes altas, era dividida em vários núcleos, como Esportes, Moda, Ce­lebridades. Em cada setor, o editor e o editor assistente sentavam-se lado a lado, supervisionando o trabalho de dois ou três repórteres, instala­dos em mesas menores diante deles. Na parede oposta à entrada, as me­sas do editor-chefe, do redator-chefe, do diretor de arte e de fotografia compunham a linha executiva do jornal. Atrás dela, a sala do diretor do The Star - o único com o privilégio da privacidade — e a de reuniões de pauta. Desde que entrara para a equipe, David era o único a ocupar o núcleo de reportagens especiais, no cargo de editor assistente. Isso lhe dava autonomia para defender suas próprias pautas nas reuniões. Outra vantagem era a de não precisar se subordinar a nenhum editor, além do editor-chefe, Steven.

Bom-dia, David. Você tem o celular do Mohamed al-Fayed? - perguntou Carolyn, a editora de moda. Com trinta e dois anos, um metro e oitenta de altura, olhos verdes e cabelo loiro, ligeiramente ondulado, emoldurando um rosto de traços suaves, Carol não andava pela redação, desfdava as tendências da moda. E arrancava suspiros de seus colegas.

Tenho, sim. Deixe-me consultar a agenda — respondeu David, abrindo a pasta e pegando seu Filofax. - Aqui está - anunciou, anotando o número em um papel e entregando-o a ela.

Além de ser o jornalista mais elegante, você é o que tem os melhores contatos — ela agradeceu, com um largo sorriso. "E uma conta bancária milionária", completou em pensamento, voltando para sua mesa.

Talvez Samyaza escolhesse você, Carol — disse baixinho, apre­ciando discretamente, enquanto ela se afastava, suas curvas naquele vestido justo.

 

O padre Pietro pegou o celular após atravessar os portões do Va­ticano. Estava ansioso. Era a primeira vez que se reuniria com os ou­tros membros daquela confraria secreta desde que fora convidado por seu amigo e confessor, o cardeal Gabriele Fioravante. Não disfarçou a surpresa quando soube do local do encontro. Conhecia muito bem os corredores da Santa Sé e em menos de dez minutos chegaria ao lugar combinado. Assim que entrou na Capela Sistina, as portas atrás dele se fecharam. Uma mesa, diante do Juízo Final, tinha cinco cadeiras. Duas de cada lado e uma na ponta, ocupada por um homem alto, ligeiramente acima do peso, tez clara. O nariz destacava-se no rosto redondo e os olhos pequenos exibiam-se maiores atrás das lentes dos óculos de fina armação prateada. Sobre os cabelos grisalhos, com raros fios pretos, o solidéu vermelho anunciava que aquele homem era um Príncipe da Igreja. O cardeal levantou-se e saudou o recém-chegado:

A paz esteja com você, Pietro — correu os olhos pelo diminuto auditório e prosseguiu - Neste lugar, o Espírito Santo escolhe o sucessor de Pedro para dirigir sua Igreja. E há séculos também guia a Confraria dos Quatro Anjos para impedir que o Inimigo realize o Apocalipse Negro. Como vocês sabem, Deus colocou quatro anjos nos quatro cantos da Terra para que o diabo não reescreva o Fim dos Tempos.

Desculpe-me, cardeal, quando o senhor me convidou para fazer parte dessa confraria, simplesmente aceitei, pois lhe devo obediência. Mas gostaria de dizer que sou apenas um exorcista, não me vejo em condições de prosseguir nessa missão — interveio Pietro. "Tem medo de que outras pessoas descubram que você é um assassino?", aquela ameaça do demô­nio não saía de sua cabeça.

Um exorcista de métodos pouco convencionais - rebateu o car­deal, encarando-o — Soube que seu assistente sequestrou uma prostituta da Colméia Dourada. E ela morreu durante o Grande Ritual! Também soube que Andréa... É assim que ele se chamava, não? Foi assassinado juntamente com um ex-presidiário.

Como? — perguntou Pietro, atônito. Coração pesado. Respiração curta. Boca seca.

O carro com os dois corpos foi encontrado nos subúrbios de Roma. Os servos do demônio revidaram, meu caro amigo. E você me colocou em um fogo cruzado com Sua Santidade. Ela quis saber por que eu o havia escolhido para fazer parte dessa confraria.

Não é possível! — desesperou-se Pietro, unindo as mãos.

Eu me justifiquei dizendo que, em nossa missão, precisamos usar armas menos ortodoxas. E quase sempre o Inimigo costuma retaliar — re­bateu o cardeal - Agora, vamos ao que interessa, meus caros. Dentro deste pequeno saco, há bolas vermelhas e pretas. Passarei entre vocês. Fechem os olhos e retirem uma bolinha. Quem pegar a vermelha primeiro começa.

"Matei Andréa", Pietro sentia remorso. A angústia apertava seu coração. Nó na garganta.

Peguei a vermelha — confirmou o monge espanhol Jose Gonzáles - Em meu último exorcismo, perguntei ao demônio como ele era. A resposta foi: "Com uma capa azul e um chapéu de abas largas, levantarei de minha fortificação no lago e serei vitorioso".

Pela tradição de nossa confraria, sempre que é coagido pelo exorcista, o Inimigo revela seus planos em códigos. No ritual da bola vermelha, descobrimos sua ordem. O primeiro é sempre uma referência ao lugar em que ele está preparando um ataque devastador. Pietro, por favor, anote o que seus companheiros dizem — Gabriele pediu ao padre, visivelmente perdido em divagações.

É a minha vez — concluiu o abade inglês Thomaz Baker ao pegar a bolinha do saco - Fiz várias sessões de exorcismo com uma mesma pessoa. Na penúltima, quando afirmei que o expulsava em nome de Jesus Cristo, o Messias, o demônio me disse: "A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé".

Como vocês sabem, o demônio é um macaco de Deus, gosta de imitá-Lo e se reveste de simbolismos divinos para reivindicar o trono — explicou Gabriele.—Aqui temos uma referência clara ao quinto versículo do capítulo cinco do Apocalipse: "Vê! O leão da tribo de Judá (...) saiu vencedor. Ele pode romper os selos e abrir o livro". Na segunda charada, o demônio revela seu escolhido, seu instrumento entre os homens.

E como iremos combatê-lo? - perguntou Thomaz.

Assim que ele for descoberto, o responsável pela missão deve acionar imediatamente um número de telefone e passar uma senha. E isso não será mais problema seu. Qual é o próximo enigma? — indagou o cardeal, fitando Pietro, que segurava a bola vermelha en­tre os dedos.

Bem, durante o exorcismo da prostituta da Colméia Dourada, perguntei, em nome de Nossa Senhora, de onde o demônio vinha. A resposta foi: "Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon".

E como você interpreta esse enigma diabólico, Pietro? — ques­tionou Gabriele.

Não tive muito tempo de pensar nele. Sinto que o diabo está zombando de nossa fé, como no exorcismo do abade Thomaz. Ele disse Ave, mas não completou com Maria. Ela é a rainha de nossa Igreja e seus olhos onipresentes são os olhos de Jesus Cristo, seu Filho - respondia Pietro, tentando se concentrar em cada palavra. — Agora o detalhe mais sórdido: Armon é o lugar, no livro de Enoque, onde os anjos caídos fize­ram um pacto para arruinar a criação de Deus.

Nessa charada, o demônio aponta o caminho que ele seguirá para conquistar seu objetivo. Esse é o terceiro e último enigma — ex­plicou Gabriele.

Todos olharam para o único membro que ainda não revelara nenhum enigma diabólico.

Você perguntou ao demônio quem era seu maior inimigo em nossa confraria. Qual foi a resposta, Benito? - inquiriu o cardeal.

Os outros rezaram em silêncio para não ouvir o próprio nome.

O padre Pietro Amorth.

Meu Deus! — exclamou o próprio, em um misto de surpresa e pavor. Ele não tinha medo de enfrentar demônios em suas sessões de exorcismo. Até gostava de provocá-los, pois estava protegido por alguém muito mais forte. Mas, para aquilo, não havia fórmulas ritualísticas escritas em nenhum manual canônico.

A partir desse momento, você está afastado de suas atividades em Santa Maria in Aracoeli, Pietro. Em dois dias, partirá para algum lugar do mundo, sozinho. Descubra que lugar é esse. Não deve se reportar a nin­guém além de mim. E não se esqueça de que todos dependemos de você. Que Deus inspire seus pensamentos, suas palavras e suas ações. Reunião encerrada — anunciou o cardeal, levantando-se da mesa.

Pietro fixou a cena do Juízo Final, diante de si. O barqueiro Caronte empunhava um remo. De repente, começou a açoitar as almas condenadas que queriam fugir do inferno, enquanto demônios carregavam-nas para a tormenta eterna. O padre podia ouvir suas gargalhadas. É o choro de­sesperado das pessoas que escolheram o caminho errado. "Você está no mesmo-barco, padre". Aquelas palavras pareciam vir de um demônio com orelhas pontiagudas e uma serpente enrascada no pênis. Ele encarava Pietro com um sorriso irônico. A sua esquerda, pouco abaixo, outro ser infernal puxava os cantos dos lábios com os indicadores e lhe fazia uma careta. Fechou os olhos e tornou a abri-los. A pintura estava do mesmo jeito que Michelangelo entregara ao papa Paulo III, em 1541. "O de­mônio não vai me intimidar. Sou um soldado de Deus", disse para si. Ao chegar em casa, deixou a pasta no sofá e seguiu para seu altar pessoal. Um ícone de Jesus Cristo fitava-o em silêncio. Lembrou-se da jovem morta em sua igreja, de Andréa e de Simone. Caiu no chão, sem forças.

— Meu Deus, me ajude — suplicou aos prantos.

 

Meia hora antes de se deitar, David calçou as confortáveis pantufas Hercules da Church's. Trancou a porta do quarto e girou a maçaneta duas vezes. Estava protegido. No closet, bem organizado e com aroma de cedro, vestiu o pijama de seda. Poucos passos depois, estava na suíte, diante do espelho. Passou fio dental e escovou os dentes. Se não estivesse tão cansado, poderia sentar-se na poltrona de veludo do quarto e ler algumas páginas. Mas preferiu o conforto da cama. Acendeu o pequeno abajur sobre o criado-mudo e apagou as luzes do quarto. Lembrava-se de ter colocado a bengala embaixo da cama, mas resolveu checar, tateando o chão com a mão esquerda. Estava lá. Fechou os olhos. E relaxou. Segundos antes de dormir, quando a realidade e a fantasia se misturavam, foi sur­preendido pelo rosto de um amigo de infância. David o conhecera no castelo de sua família, em Upper Slaughter. Durante alguns meses, eles se encontraram todos os fins de semana. "Como ele se chamava, mesmo?", questionou-se. Certa noite, o amigo sumira misteriosamente. Seus pais nunca falaram sobre aquilo.

— Socorro! — David abria os olhos em seu quarto, em Upper Slaughter. Tinha sete anos e ainda estava assustado com o pesadelo. Fora atacado por homens com o rosto deformado. A cama em que o amigo dormia estava vazia. Levantou-se e pegou a raquete de tênis. Iria procurá-lo, mas preci­sava se defender dos monstros.

Eles me levaram para o labirinto, David — ele reconhecia aquela voz.

Não posso ir até lá. Está escuro — retrucou.

Eles querem me matar, me ajude.

David abriu a porta principal, atravessou o jardim e chegou à en­trada do labirinto. A chama de uma vela vermelha tremulava ao vento. "Nunca entre aí. Um demônio se esconde atrás dessas paredes", advertira o pai inúmeras vezes.

Será que ele o pegou? — perguntou-se.

Me ajude, David.

Ele respirou fundo. Deu um passo, depois outro."Meu Deus, me ajude a salvar meu amigo", repetia, seguindo as velas vermelhas que serpentea­vam no interior do labirinto. Ouviu vozes, cada vez mais intensas. "Devem ser os monstros", concluiu. Levantou a raquete para se proteger do ataque. Chegou ao centro. Dezenas de velas pretas formavam um círculo em torno da pequena capela. O portão de ferro estava escancarado.Vozes subiam das profundezas. "São os monstros", pensou. Deu um passo para trás.

Me ajude, David. Eles querem me matar - era a voz de seu amigo.

Conteve a vontade de sair correndo e se aproximou. Passou por cima das velas. Um grito agonizante paralisou-o por alguns segundos. Parecia ser ele. Espiou pela porta. Uma enorme escada de pedra desaparecia na escuridão. Apanhou uma das velas no chão e avançou, degrau após degrau.

—Venha logo, David.

Onde você está? - sua voz ecoou. Gargalhadas. Homens com rostos deformados se atiraram sobre ele. Teve a impressão de ver o corpo do amigo sobre uma mesa.

—Vocês o mataram?

Por que não obedeceu ao seu pai? — perguntou um dos monstros. David íechou os olhos. Ao abri-los, passeava de mãos dadas com o pai perto do labirinto. Um animal assustador pulou detrás de um arbusto e o encarou. Estava prestes a atacá-lo. David saltou da cama. Empunhava a bengala, pronto para se defender de monstros do passado.

— Fazia tempo que não tinha esse pesadelo — disse para si, guar­dando a "arma" embaixo da cama. Conferiu o horário: quatro da manhã.

 

Após quatro horas ininterruptas de oração, Pietro teve a impressão de ouvir uma voz.

— Eu sou o rei dos deuses.

Jesus? — virou-se para o ícone diante de si, na espera de resposta.

Feche os olhos. Mostrarei como meus servos me adoram.

O padre obedeceu. No mesmo instante, estava diante de uma esca­daria. Havia marcas de sangue nos degraus. Um choro infantil ecoou no alto. Levantou o rosto e descobriu um templo sinistro. Sobre um altar de pedra, uma criança amarrada. Calculou quatro anos. Um homem surgiu detrás, vestindo túnica azul. Gritos estridentes. Um punhal atravessou o peito e rasgou o pequeno coração. O silêncio assustador de poucos se­gundos foi quebrado por um grito de guerra:

—Bölverkr!

Pietro acordou com o coração a mil. Ofegante. Levantou-se e foi até a biblioteca.

Acho que peguei você! — concluiu vitorioso, apanhando um dicio­nário de deuses e demônios — Afinal, um deus pagão é um ótimo disfarce. Bölverkr,"o que traz males". Um dos nomes de Odin. Outro nome, Grímnir, "o disfarçado". Um dos disfarces é o de andarilho: capa azul e chapéu de abas largas. Bingo! Agora só me resta descobrir em que lugar você atacará, maldito! — exclamou, deixando o livro de lado.

Ligou o computador. Bloco de notas à mão. Abriu o Google e digitou o nome do deus nórdico. Descobriu, em uma das páginas, que wednesday, o quarto dia da semana, em inglês, derivava de seu nome.

Inglaterra, Estados Unidos... - murmurou — Será que "fortificação no lago" é o código do país, da cidade... — pensava em voz alta, escrevendo aquelas palavras no buscador.

Seu rosto se iluminou. O nome do lugar estava diante de seus olhos: Londres. Umas das possibilidades de sua origem era a junção das palavras celtas llyn e din. E o significado mais provável era justamente aquele que o demônio revelara no enigma.

— Achei a íortificação no lago! Meu Deus, eu vos agradeço por terdes iluminado meu discernimento. Vamos ver quem sairá vitorioso, demônio disfarçado.

Preparou um café forte. Enquanto fazia anotações, pensou em um antigo colega londrino, o jornalista que o procurara para conversar sobre seitas satânicas e pedira seu auxílio para decifrar marcas diabólicas nos corpos de cinco mulheres brutalmente assassinadas. Foi um dos crimes em série mais macabros que ele jamais vira. Sentiu um arrepio ao se lembrar das fotos. Assim que o dia amanhecesse, ligaria primeiro para o cardeal Gabriele Fioravante. Em seguida, contataria aquele jornalista brilhante. Talvez ele pudesse lhe retribuir o favor.

 

Na Câmara dos Lordes, sir Alexander Cotton estava ansioso para falar. Logo que o conde ao seu lado terminou um comentário, ele se levantou do banco vermelho. Aquele gigante de quase dois metros de altura era um dos raros nobres hereditários que conservaram o assento graças a um privilégio especial concedido pela rainha. Desde que o Par­tido Trabalhista resolvera mexer nas tradições políticas inglesas, sir Cotton levantara a bandeira contra os "porcos imundos que se refestelavam nas pérolas". E seus discursos inflamados passaram a ressoar no saguão gótico em todas as sessões.

— Caros lordes, eles acham que têm o direito de dizer o que pode­mos fazer. Cresci caçando raposa com o meu pai, que caçava com meu avô, que caçava com meu bisavô. Nós fazemos isso há centenas de anos. Não me importa que cem mil raposas sejam mortas anualmente. Se de­pender de mim, elas continuarão sendo mortas. Hoje de manhã, apanhei essa aqui! - afirmou exaltado, retirando de dentro de um saco uma raposa ensangüentada. Um suspiro de repulsa perpassou a maioria dos presentes.

Caro sir Alexander Cotton, esta é uma atitude inapropriada para este local - advertiu o presidente da Câmara.

Quem eles são para proibir a caça às raposas? — prosseguiu sir Cotton, guardando o animal morto e ignorando a admoestação — Logo vão querer dizer o que podemos ter em nossas mesas. Ou quantas vezes devemos usar a privada.

No centro da bancada, dois Crossbenchers se entreolharam. Um deles fez um sinal com a cabeça e deixou a câmara vermelha. Cinco minutos depois, o outro repetiu o gesto. Encontraram-se no saguão principal aos pés da es­tátua do estadista Winston Churchill, com o sapato direito reluzente após ser esfregado por milhares de supersticiosos em busca de fortuna fácil. Aquele era um dos raros pontos do Westminster Palace sem microfones escondidos.

Não agüento mais as bravatas inúteis de sir Cotton. Ele fez parte das negociações secretas com a rainha para ficar no cargo. Agora faz esse show de mau gosto — comentou o conde de Bedford.

Ele tem sorte de ser descendente de sir Robert Bruce Cotton. O Duque intercederia a seu favor se fosse preciso.Vamos ao que interessa — disse o conde de Leicester.

Os Quatro Anjos se encontraram. O mensageiro chega amanhã.

Quem é?

Um padre exorcista italiano chamado Pietro Amorth.

O nome é familiar.

É o mesmo que ajudou David no caso dos assassinatos — expli­cou o conde de Bedford — Aquele jornalista impertinente devia ter sido eliminado naquela época.

Lembra-se da ameaça:"Quem estender um dedo contra David será queimado vivo"? Além de ser intocável, ele se tornou inofensivo - relembrou o conde de Leicester.

Isso pode nos causar problemas. Quem você acha que o padre irá procurar quando chegar em Londres?

O Duque Negro mantém as mesmas instruções.

Ok. O bastardo será a sombra do padre. E já preparou as boas-vindas. Assim que ele chegar ao hotel, terá uma surpresa mais desagradável do que a raposa de sir Cotton — respondeu o conde de Bedford, com um sorriso no canto dos lábios.

 

Na capa do The Star, a chamada com maior destaque era "Fernanda Albuquerque e Feitiçaria". O subtítulo dizia: "A top model e seu passa­do negro no interior do Brasil". O editor-chefe havia reescrito o texto original entregue por David. Era a primeira vez que isso acontecia desde que o jornalista fora contratado pelo jornal. Uma expressão inicial de espanto — e depois de reprovação — surgia à medida que o autor lia a matéria, sentado em sua mesa.

Steven miserável, você reescreveu a história. Isso não é jornalismo, é ficção — disse consigo, levantando-se para tirar satisfação com o chefe.

Parabéns pela matéria, David. Vamos vender muito jornal. Mary, você terá um grande mestre por aqui — o editor-chefe estava diante dele, com a jornalista americana que faria parte de seu núcleo editorial.

Será um prazer trabalhar com você — adiantou-se Mary, avançan­do sobre ele para lhe cumprimentar com um beijo.

Tudo bem? Vamos conversar. Steven, depois quero falar com você sobre isso aqui — apontou para a capa do jornal, folminando-o com os olhos.

Quais são seus objetivos no The Star? — perguntou David, encarando a aprendiz. Seu cabelo encaracolado castanho-claro, os olhos, o nariz, a boca, o formato do rosto lhe eram estranhamente familiares. Sentiu o coração acelerar. Aquela mulher lembrava sua pequena Susan.

Você vai fazer uma entrevista comigo? — indagou, erguendo a sobrancelha esquerda. Sorriso suave.

Quero saber quais são suas pretensões no jornal. Assim, posso convencer o Steven a te encaminhar para outra editoria — disparou David.

De moda, por exemplo? — ironizou Mary.

—Vou ser sincero. Gosto de trabalhar sozinho e não sou um bom professor.

—Também vou ser sincera. Sou uma excelente aluna. E nada modesta. Também não gosto de ficar sozinha... Não que isso tenha a ver com você.

"Que mulher atrevida. Quase insuportável... mas linda", pensou David, tamborilando os dedos da mão direita na mesa.

Como você deve saber, a top model Fernanda Albuquerque chega a Londres na semana que vem. Quero que descubra o que ela pretende fazer no tempo livre: lugares e horários...

Posso adiantar um dos compromissos — interrompeu Mary, com um sorriso triunfal.

Qual?

Um chá da tarde comigo.

—Vocês se conhecem? — perguntou, incrédulo.

Ela morou muitos anos em Nova York. Somos amigas.

David sorriu. A sorte esmurrava sua porta. Ficou em silêncio, obser­vando Mary passar a mão direita no cabelo. Por um momento, pensou que Deus desejava se redimir com ele. E como pedido de desculpas por aquele terrível acidente, trouxera Susan de volta aos seus braços. "Boba­gem", pensou, atendendo seu celular.

Padre Amorth? Que coincidência! Ontem, pensei em ligar para você. Queria fazer uma consulta. Amanhã você embarca para cá? Claro, podemos nos encontrar pessoalmente à tarde. Me ligue quando chegar. Até logo.

— Você precisa se confessar? — zombou Mary, assim que ele desli­gou o telefone.

— Talvez não seja uma má idéia — respondeu David, com um sorriso no rosto.

 

No dia seguinte, eram quase oito da manhã quando o avião iniciou o procedimento de descida. O padre aterrissaria em solo inglês pela pri­meira vez. Olhou pela janela e disse:

— Não adianta se esconder atrás da fortificação. Será afogado no lago, demônio.

A senhora que viajava na poltrona ao lado arregalou os olhos, assus­tada. Ele apenas sorriu, sem jeito. Ao descer do avião, no Heathrow, sentiu calafrios. Percebia uma tênue névoa escura envolvendo as pessoas. Seu faro espiritual pressentia a presença do Inimigo. Era um sinal evidente de atividade diabólica. Na esteira das bagagens, sentiu uma leve tontura e se apoiou no carrinho. Uma mulher, a poucos metros de distância, desmaiou. Os seguranças vieram em seu socorro. Após a confusão, as pessoas se preo­cuparam novamente com as malas. Alguém parecia vigiá-lo. Vasculhou o ambiente à procura de algo. Uma menina, do lado oposto, olhava fixamen­te na sua direção. Talvez fosse apenas curiosidade de ver um padre fora da igreja, como peixe fora d'água.Talvez não fosse uma criança. Pietro agarrou o crucifixo prateado que trazia no peito. "Ele não poderá defendê-lo, padre assassino", a voz ecoou na sua cabeça. A criança de seis anos fez um gesto obsceno, sem que os pais percebessem. Pietro foi até ela.

Sua filha está possuída — alertou ao pai, até aquele momento atento à esteira.

—Você é um desses padres pedófilos que adoram criancinhas inde­fesas? — berrou a mãe Voz estridente. Tez pálida. Ossos salientes no rosto.

Um choro distante emergiu em suas lembranças. Cada vez mais alto.

Desculpem-me, acho que cometi um engano - esquivou-se, afastando-se.

O que menos queria era causar um novo tumulto e chamar a atençã para si. Saiu de perto da família e foi esperar sua bagagem em outro ponto da esteira. Tinha certeza de que filha e mãe estavam possuídas pelo demônio. Rezou por elas em silêncio até apanhar sua mala.Tamanho médio. Não sabia quanto tempo permaneceria em Londres. Na área de desembarque, um homem alto, nariz pronunciado, testa larga e cabelo negro encaracolado, vestindo calça cinza-escuro e sobretudo preto, segurava uma placa com seu nome.

Esse aí sou eu — anunciou sorrindo ao se aproximar dele.

Me acompanhe, padre — respondeu sisudo, pegando sua mala.

Ao passarem por um quiosque de jornais, revistas e livros, uma man­chete saltou aos olhos de Pietro: "Fernanda Albuquerque e Feitiçaria". No subtítulo: "A top model e seu passado negro no interior do Brasil". Pernas bambas. Respiração ofegante. A voz quase não saiu ao chamar seu guia — que andava a passos largos, dois metros à sua frente — e pedir que o esperasse. Comprou um exemplar e colocou em sua pasta. No carro, um Mercedes cinza, sentou-se ao lado daquele inglês taciturno.

Aonde vamos?

— Esperava que você soubesse — respondeu Pietro, ressabiado. — Enfim, siga para o Brompton Oratory — orientou-o, abrindo o jornal.

Ficou intrigado ao conferir o nome do autor daquela matéria: David Rowling. Para ele, não era uma simples coincidência. Poderia ser o dedo de Deus — que ele chamava de Providência Divina — ou uma cilada do Inimigo. Naquele momento, não sabia em qual possibilidade apostar.

 

Era seu segundo dia na redação do The Star. Chegou antes de David e foi conferir os e-mails. Notou que seu chefe chegara ao perceber uma discussão no fundo da sala. Elegante como no dia anterior, e com as mãos nos bolsos, o editor assistente acusava Steven de ter passado dos limites. E afirmava que não estava disposto a colocar seu nome em "engodos jornalísticos".

—Você estava morto no mercado. Se não fosse por mim, continua­ria sem assinar nada. É um ingrato! — respondeu Steven.

—Você é um irresponsável. Prefiro não assinar nada a assinar men­tiras criadas por você. — David contra-atacou.

—Você me acusa de irresponsável? Assinou uma das maiores farsas da imprensa desse país. Se fosse escrita uma história do jornalismo inglês, seu nome seria fraude.

Mary levou um susto quando alguém tocou em seu ombro.

Prazer, sou Carol, a editora de moda.Vamos tomar um chá?

Prefiro café. Aliás, sou viciada em café.

Café é a bebida da moda entre os ingleses. Mas não troco meu chá por nada. A casa de chá fica no último andar — disse Carolyn, pondo-se a caminho.

Eles sempre discutem assim? — quis saber Mary, acompanhando-a.

David quase nunca discute com ninguém. E um verdadeiro gentleman.

E se veste muito bem - observou a novata.

Nasceu em berço de ouro. O pai é um importante conselheiro da rainha. Não sei por que trabalha aqui e se sujeita ao Steven.

Ele deve gostar de independência - comentou Mary.

Ele não precisa de dinheiro. David e o pai cortaram relações há dois anos. Dizem que depois disso ele recebeu sua parte da herança. Al­guns milhões de libras — revelou Carolyn.

É verdade? — surpreendeu-se a americana.

O salário de editor assistente não paga nem as roupas que ele veste. Sem falar em outros gostos caros.

Por que ele brigou com o pai?

—Você terá tempo de perguntar isso para ele. O importante é saber que ele não se envolve com nenhuma mulher — respondeu, entrando na casa de chá e sentando-se na terceira mesa à esquerda.

Ele é gay? - espantou-se a americana, acompanhando-a.

Aquela pergunta ia além da mera fofoca. Mary estava interessada em David, e Carolyn pegou isso no ar.

Já saí com ele algumas vezes. O problema é outro. Uma tragédia na adolescência — respondeu, virando-se para a atendente. — Um earl grey, por favor.

Para mim, um café americano, por favor - pediu Mary, sem des­viar os olhos da editora de moda. Desejava que ela continuasse a história.

Sinto muito, café, aqui, apenas espresso italiano — retrucou a garçonete.

—Tudo bem. Pode ser.

Ele tinha passado o fim de semana com a namorada em um dos castelos da família. Na volta para Londres, perdeu o controle do Aston Martin e capotou algumas vezes. A namorada morreu. Mas aposto que ele ainda não conseguiu esquecê-la.

Coitado... - murmurou, com o olhar distante.

Além de perder Susan, ele precisou colocar pinos na perna direita. É difícil notar, mas ele manca um pouco.

Café forte — comentou a americana, fazendo careta e deixando a xícara de lado — Acho que será difícil me acostumar a isso.

Acho que você terá que mudar alguns hábitos, querida — aconse­lhou Carolyn, erguendo a caneca de chá.

 

No início, o padre achou o motorista ousado demais. Não respeitava os limites de velocidade, passava em sinal fechado e cortava outros carros. Seu silêncio também era suspeito. Algo estava errado.

Devo ministrar a extrema-unção para nós dois? — ironizou Pietro.

Não se preocupe, padre, não costumo falhar em meus serviços. Em poucos minutos, estaremos lá.

O padre sentiu alívio quando o carro estacionou diante do Brompton Oratory. Aquela fachada o fez sentir-se em casa. Em estilo barroco italiano, a segunda maior Igreja Católica da Inglaterra era uma cópia fiel da II Gesu, a primeira igreja jesuíta de Roma, construída entre 1568 e 1584. A original ostentava uma de suas esculturas favoritas:"Triunfo da Fé sobre a Idolatria". Sorriu ao lembrar-se da Religião, representada por uma mulher, esmagando a cabeça da serpente. "É um sinal de Deus. O cristianismo sempre vence", pensou. Não percebeu quando o motorista retirou a bagagem do porta-malas, deixou-a ao seu lado e, sem dizer uma palavra, entrou no carro e partiu.

Padre Amorth, fico feliz em vê-lo - um homem alto e loiro, de traços delicados, trajando hábito, recepcionou o italiano na entrada da igreja e o conduziu para a hospedaria por um caminho lateral à impo­nente fachada. — Irei levá-lo aos seus aposentos. Sinta-se à vontade para fazer suas preces quando estiver descansado. Se preferir, pode usar a capela privada. O cardeal Newman gostava de rezar lá. É um lugar inspirador — prosseguiu o homem, que Pietro identificou como sendo Edward.

Muito obrigado, padre. Tenho muito trabalho a fazer em Londres. Mas gostaria de participar de algumas celebrações religiosas no Brompton Oratory.

Aqui está seu quarto — anunciou o anfitrião, parando diante de uma porta estreita de madeira escura. - Do jeito que pediu, modesto e com wireless. Hoje em dia, somos todos dependentes da tecnologia. Se precisar de alguma coisa, estou à sua inteira disposição.

O quarto era pequeno e austero. A cama de solteiro, no centro, dividia espaço com o minúsculo criado-mudo, um guarda-roupas de duas portas, uma cadeira de madeira sem estofamento e uma escrivaninha oposta à entrada. Ao lado dela, uma pequena porta indicava a entrada do banheiro. Da parede sobre a cama, pendia um crucifixo rústico. Era a única decoração do ambiente, que contrastava com a opulência da Church of the Immaculate Heart of Mary, popularmente conhecida como Brompton Oratory. "Deus deve ser glorificado pela riqueza. O homem deve louvar ao Senhor na sim­plicidade", costumava repetir aos seus anfitriões. Era sua maneira de dizer que preferia quartos modestos, sem ser indelicado. Ajoelhou-se diante da cruz e fez uma oração de agradecimento por ter chegado bem. Colocou sua pasta em cima da escrivaninha e abriu a mala sobre a cama. Arrumaria suas coisas antes de ligar para David. Notou um pequeno pacote estranho.

— Alguém mexeu aqui - concluiu, pegando aquele intruso sobre a batina dobrada.

O papel, úmido, se desfazia ã medida que ele tentava desdobrá-lo. Não segurou o grito de pavor ao enxergar o pedaço de uma língua hu­mana, ainda ensangüentada. Sentiu o corpo sem energia. Deixou cair o embrulho no chão e despencou sobre a cama. A cabeça girava. Enjôo. Conseguiu chegar ao banheiro antes de vomitar. Repetidas vezes. Sen­tou-se no chão de azulejos brancos. Respirou fundo três vezes.Voltou ao quarto, recomposto. Mexeu no pacote com a ponta do sapato. Um anzol metálico prendia a etiqueta plástica na carne. Limpou-a com um pedaço de lenço de papel e descobriu a inscrição: Tg 3,5-8. Era uma referência à Carta do apóstolo Tiago. Lembrou-se das palavras do cardeal Gabriele: "O demônio é um macaco de Deus, gosta de imitá-lo e se reveste de simbolismos divinos". Pegou a Bíblia em sua pasta. A batalha estava ape­nas começando. E prometia ser sangrenta.

 

Assim que voltara do café, Mary cumprimentara David com um beijo no rosto. E já se passavam quarenta minutos sem que trocassem nenhuma palavra. O editor assistente estava em silêncio diante de seu computador, às vezes lendo algo, outras digitando. Mary pensava na conversa com Carolyn. "Esse acidente realmente traumatizou David", ponderou, espreguiçando-se em sua mesa para espiar o chefe. Notou uma cicatriz em sua sobrancelha direita. Provável conseqüência do desastre. Até mesmo a lembrança visível de uma tragédia o deixava charmoso. Ele flagrou o olhar da jovem americana na sua direção. E respondeu com um sorriso discreto.

Vocês não tomam café por aqui? — ela aproveitou a deixa para iniciar uma conversa.

Prefiro chá. É uma bebida que respeita nosso humor.

Pode ser mais explícito?

O café sempre excita as pessoas. O chá pode excitar ou acalmar. Depende do seu desejo — comentou David.

Prefiro viver ligada. E não gostei do café daqui. Não tem café americano. Você fuma?

Gosto de cachimbo.

Queria ver você fumando cachimbo. Nem meu avô fazia isso.

Ele devia ser mais jovem do que eu - brincou David.

Li sua matéria sobre minha amiga, a Fernanda...

Meu nome está lá por acaso. Steven escreveu aquilo - justificou-se.

Não importa. Achei exagerada. E uma visão torta. A Europa não é mais o centro do mundo. Nem o cristianismo é a religião oficial da humanidade.

Pode ser mais explícita? - indagou David, repetindo as mesmas palavras de sua assistente.

O pai da Fernanda praticava uma religião muito comum no Brasil. Uma mistura de catolicismo com rituais africanos.

Interessante. Há sacrifícios?

De animais. Como no judaísmo, por exemplo, a religião de Jesus Cristo. Aposto que o The Star nunca transformou judeus em adoradores do diabo. Foi muito injusto o que fizeram com o pai da Fernanda — disse Mary, elevando o tom da voz. David achou estranho seu interesse por religiões, mas decidiu não mudar o rumo da conversa.

Qual é o nome da religião que o pai dela praticava?

Candomblé. Sabe em que acredito, David? Se a fé é a moeda de troca das pessoas com os deuses, os praticantes de candomblé têm mais poder do que os católicos que freqüentam a missa por obrigação, e rezam sempre a mesma ladainha.

Mary, se você tem problemas com a Igreja Católica, discuta com um padre. Se você acredita em deuses, e eles apreciam sacrifícios de ani­mais, não me convide para participar do ritual. A menos que você cozinhe excepcionalmente bem — retrucou, com um sorriso discreto no rosto.

Não entendi. É uma brincadeira?

Talvez. Vamos ao que realmente interessa. Pelo que pesquisei, a Fernanda Albuquerque é espírita. E como você deve saber, o espiritismo foi fundado por um francês e se expandiu no Brasil Você escreverá sua primeira matéria para o The Star. Quero que fale sobre a trajetória espiritual da sua amiga. O que ela aprendeu dentro de casa e como escolheu seu caminho.

E quem me garante que o editor-chefe não vai deturpar tudo?

Escreva a matéria em primeira pessoa, como amiga da top model - orientou David, atendendo o celular.

Padre, tudo bem? Onde você está hospedado? Passo no Brompton Oratory às quinze para as cinco.Você é meu convidado para o chá da tarde.

Não gosto de padres — provocou Mary, assim que seu chefe desligou.

Se você conhecer o padre Pietro Amorth, tente ser simpática. Caso contrário, ele pode querer exorcizá-la. E mais uma coisa, escreva para mim o nome impronunciável desse culto afro-brasileiro. Consultarei o padre sobre ele — solicitou, voltando o rosto para a tela do computador.

 

"Assim também a língua, embora seja um membro pequeno, se gloria de grandes coisas. Comparai o tamanho da chama com o da floresta que ela incendeia! Ora, também a língua é um fogo. É o universo da malícia! Está entre os nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pela Geena! (...) nenhum ser humano consegue domá-la: ela é um mal que não desiste e está cheia de veneno mortífero". Era a oitava vez que Pietro repassava aquele trecho da Carta de São Tiago. A metáfora, em princípio obscura, pareceu-lhe evi­dente na última leitura. A Igreja tinha uma confraria de exorcistas para prever e evitar um ataque diabólico. Certamente, seguidores da Besta tam­bém se reuniriam para contra-atacar. Ele não temia os demônios durante os exorcismos. Gostava de provocá-los. Sua língua era uma espada afiada, golpeando-os incessantemente. Para os anjos caídos, sua língua estava cheia de veneno mortífero. Aquilo que encontrou em sua mala era uma ameaça. Tão palpável como o assassinato de seu assistente pela Colmeia Dourada. Sentiu um arrepio ao mirar aquele pedaço de carne no chão do quarto. E percebeu que algum infeliz tinha sido mutilado, ou morto, para que recebesse a mensagem macabra. Precisava se livrar daquilo. Era a prova de um crime. E se ele fosse acusado — talvez preso —, não conseguiria cumprir sua missão em Londres. Fez uma oração pela vítima do Inimigo. Enrolou papel higiênico em sua mão, pegou o pacote ensangüentado e o atirou na privada. A descarga se encarregou de levá-lo para longe. Com um pedaço de pano, limpou manchas de sangue no chão do quarto. Ainda precisava lavar uma das batinas. Conferiu o horário. Deixou a roupa dentro da pia, trancou o quarto e foi até a entrada do Brompton Oratory.

Padre, tudo bem? — cumprimentou David, assim que Pietro sur­giu de um caminho na lateral da imponente fachada. Era a primeira vez que se encontravam. O italiano pareceu-lhe mais jovem do que deduziu pelos inúmeros telefonemas trocados.

Que bom encontrar você! - o padre ignorou a mão estendida e abra­çou efusivamente o jovem jornalista, que, sem jeito, correspondeu e observou:

—Você é mais alto do que eu imaginava.

E você é mais jovem.

Ambos sorriram.

Espero que aproveite a estadia em Londres. Meu carro está aqui — disse David, abrindo a porta de um Jaguar esportivo preto.

Sei que você é fluente em inglês, padre. Mas, se preferir, podemos conversar em italiano.

Não é preciso. Quero aproveitar minha estadia aqui para exerci­tar meu inglês. Quantas línguas você fala, David? - perguntou Pietro, já acomodado no confortável banco de couro marrom-escuro.

Inglês, italiano, francês, espanhol, alemão e árabe. Meu pai queria que eu fosse diplomata. Acho que uma de suas maiores decepções foi quando decidi ser jornalista.

Árabe? — surpreendeu-se Pietro — Meu pai também não queria que eu fosse padre. Durante anos, não trocamos uma única palavra. Fize­mos as pazes no casamento de minha irmã mais nova.

Deixe-me adivinhar...Você era o padre? — indagou David, dando a partida no carro e pisando no acelerador.

Isso mesmo. Ele chorou a cerimônia inteira. Na festa, me abraçou e disse: "Obrigado por ser meu filho".

História comovente, padre. A minha foi um pouco diferente. Lembra-se daquelas matérias sobre os assassinatos?

David, não tenho a menor dúvida de que havia uma seita satânica por trás daquelas atrocidades — respondeu Pietro, que defendera aquela tese ao ser consultado por David.

Eu também não. Mas a Scotland Yard não concordou com a gente. Nem meu pai, que cortou relações comigo.

Espero que algum dia ele agradeça pelo filho que tem. Para mim, David, a investigação policial foi uma fraude dos satanistas. Eles estão infiltrados em todos os lugares. E são mais perigosos do que você possa imaginar.

Me fale mais sobre essa ameaça, padre.

Estou em uma missão confidencial, David. Preciso confiar em você. Quero que me prometa algo.

O quê? — perguntou, ressabiado.

A partir de agora, todas as nossas conversas serão em off.

Considere-as segredo de confessionário, padre. Por falar em segredo, o que você andou aprontando? Tem um Mercedes cinza nos seguindo desde que o peguei no Brompton.

Pietro olhou pelo retrovisor. Era o mesmo carro que o apanhara no aeroporto.

 

Aos sete anos,Andrew teve uma experiência terrível. Dormira em uma cama confortável e espaçosa. Ao despertar, mal conseguia se mexer. Braços amarrados sobre o peito. Pés unidos por uma fita. O lugar era estreito e rígi­do. A luz oscilava em pequenas velas ao redor de seu corpo.Tentava gritar. Voz presa na garganta. Tontura. Homens com capas pretas. Espadas em seu rosto. Palavras incompreensíveis. Desde aquele pesadelo, morrera para o mundo. Deixara de freqüentar a escola e perdera o melhor amigo. Sob os cuidados de monsieur Moureau, passara os anos seguintes em um castelo no interior da República Tcheca. Enquanto seus antigos colegas aprendiam matemá­tica, história e literatura inglesa, ele era iniciado nos mistérios da magia. E jurou servir o Duque Negro com a própria vida. Era seu filho bastardo e descobrira isso poucas horas antes da iniciação. A família adotiva morrera em um incêndio criminoso havia quatro meses. A gratidão pelo homem que o recebera de braços abertos o transformava no mais leal dos empregados. Se­guindo as ordens de seu pai, plantara uma ameaça real na bagagem do padre. E não desgrudaria os olhos dele enquanto estivesse em solo inglês. Acelerou quando o Jaguar esportivo aumentou a velocidade. E parou a alguns metros assim que ele entrou em um estacionamento na Bayswater Road.

Uma pequena caminhada de dez minutos. Espero que não se importe — David disse a Pietro, apanhando a bengala no banco de trás.

Se o resultado compensar... - brincou o padre.

Estamos indo a um dos meus lugares favoritos para o chá da tarde. O passeio pelo parque é o amuse-bouche. Pensei em ligar para você há uns dois dias. Tive um sonho estranho e achei que talvez pudesse me ajudar a entendê-lo.

Que tipo de sonho?

Um dragão vermelho... Acho que tinha sete cabeças e dez chifres. E alguém chamado Samyaza - revelou David, entrando no parque.

Sinais. Quando o demônio está se preparando para atacar algum lugar, pessoas mais sensíveis costumam ter sonhos apocalípticos. O dragão é um clássico. Falei sobre ele na minha última palestra.

Como assim, padre? Ataque do demônio? Explique melhor.

Qual é sua religião, David? — indagou Pietro, diminuindo o ritmo da caminhada.

Isso é relevante?

Nesse caso, sim.

Tive formação anglicana. Mas deixei a igreja há alguns anos.

Qual foi o motivo?

—Você seria um ótimo repórter, padre. Tive um acidente de carro. Perdi minha namorada - impacientou-se David.

Gosto muito de um autor inglês chamado C. S. Lewis. Ele escreveu O Problema do Sofrimento. Acho que a leitura desse livro lhe faria bem.

Obrigado pela sugestão.Vamos continuar nossa conversa durante o chá da tarde.

Os dois chegaram ao Orangery. O maitre os conduziu pelo salão até a mesa favorita de David, à direita da entrada. Sentaram-se diante de uma ampla janela com vista para o parque. Além deles, três casais e um homem solitário dividiam a atenção do staff naquele restaurante do século XVIII.

Um Tea Palace English Tea, com earl grey, por favor — solicitou o jornalista, apoiando a bengala na mesa.

Para mim, com café. Bem forte — pediu Pietro.

Agora me fale sobre dragões, demônios e sua missão em Lon­dres, padre.

Em off, David. Faço parte de uma confraria de exorcistas. Para nós, Satanás não é uma metáfora. Ele é tão real como as pessoas que estão neste salão.

—Tão real como Samyaza, que teve relações sexuais com mulheres? Por que você me ligou? — inquiriu David.

Minha missão é impedir que o demônio vença uma batalha. Pre­ciso que me ajude — revelou Pietro, olhos suplicantes.

Respeito suas crenças, mas não consigo perceber uma ameaça real.

Na madrugada de domingo, uma moça morreu enquanto eu fazia o ritual de exorcismo. Logo depois, meu assistente foi assassinado por membros de uma seita satânica chamada Colméia Dourada. Hoje, quando abri minha mala, havia uma língua humana dentro dela. Ainda com sangue. Isso é ameaça real, David! — disparou Pietro, debruçando-se sobre a mesa e encarando o jornalista.

E não nos esqueçamos de que fomos perseguidos até aqui — re­forçou David, mudando seu rumo na conversa. "Pode ser uma excelente matéria", farejou.

Acho que posso prosseguir... Em uma reunião a portas fechadas, os membros dessa confraria apresentaram frases enigmáticas ditas por demô­nios durante os exorcismos. Essas charadas diabólicas indicam três coisas. A primeira: o lugar em que o diabo atacará. Essa foi simples de decifrar. A resposta era Londres. As outras duas apontam o caminho que o Inimigo utilizará para atingir seu objetivo e uma pessoa-chave, seu testa de ferro.

Então, vamos lá. Qual é o caminho?

"Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon"— respondeu o padre.

Os olhos onipresentes da rainha? — indagou David.

O que significa?

Conhece o espião inglês James Bond?

Sim, aquele dos filmes. O que ele tem a ver com essa história?

Seu codinome é 007. Entre os séculos XVI e XVII, um homem chamado John Dee se tornou o espião favorito da rainha Elizabeth I. Sabe como ele assinava as cartas para sua majestade? — questionou David, com um quase sorriso.

Zero, zero, sete?

Sim, o verdadeiro. Além de espião, ele era o astrólogo da rainha. Foi ele quem escolheu a data de sua coroação.Também era geógrafo e defendia a formação de um Império Britânico para a dominação do mundo.

E onde ele se encaixa nesse enigma?

A rainha o chamava de "meus olhos onipresentes". E Armon, pelo que pesquisei recentemente, é o lugar onde os demônios juraram lealdade a Samyaza. Isso significa que John Dee guarda a chave do infer­no? — perguntou David.

Talvez aponte para as armas que o diabo vai utilizar. Preciso pes­quisar mais sobre ele.

Na mesa ocupada mais próxima dos dois, estava um homem solitá­rio de cabelo ruivo bem aparado e sardas no rosto. Vestia um sobretudo cinza escuro disfarçando o corpo atarracado e os músculos esculpidos. Ele pegou o celular e fez uma ligação. Outra pessoa entrou no restauran­te. Era um homem alto, nariz pronunciado, testa larga, cabelo encaraco- lado.Vestia terno e camisa pretos. Óculos escuros. O padre, de costas para o salão, não notou sua presença. Era Andrew.

 

Durante a tarde, o senador americano Karl Bundy não atendeu tele­fonemas em seu gabinete, nem assinou despachos ou recebeu aliados po­líticos. Jogou paciência em seu computador, enquanto aguardava apenas uma ligação. Aquele era o assunto mais importante de sua vida. Graças a ele, recebera um assento no Senado Americano, com apenas trinta anos. Se algo saísse errado, sua sorte mudaria em poucos segundos. E, prova­velmente, seu corpo seria esquartejado vivo. Segundo a lenda, era esse o destino das pessoas se traíssem a confiança do banqueiro Max Freeman. Ficou aliviado quando o celular tocou e ele reconheceu o número.

O chá está esplêndido — anunciou a voz conhecida.

Espero que esteja bebendo earl grey — aquela era a contra-senha. — Prossiga, Michael.

Os alunos fizeram a lição de casa.

Excelente. Estão indo bem?

Sim. Tiraram oito no exame de gramática.

Quero que continue dando suas aulas de reforço. O desempenho dos alunos depende de você.

Não se preocupe, eles vão passar de ano — respondeu Michael, desligando o celular e pegando um mini-sanduíche de pepino.

Na mesa ao lado, um padre e um homem elegante passavam geleia de laranja em scones. E conversavam sem parar. Outro homem, solitário como ele, acabara de se sentar na mesa ao lado. E não disfarçava a vigi­lância sobre os dois.

E qual é o enigma que indica a pessoa-chave? -indagou David.

"A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé" - revelou Pietro.

Esse é hermético. Parece bíblico. Não poderia decifrar. A menos que... — dizia o jornalista, até interromper a fala e erguer a sobrancelha com a cicatriz.

Não faça tanto suspense.

Você está em Londres. O demônio escolheu armas inglesas. A ressoa deve ser daqui.

Não tenho dúvida disso, mas como decifrar a charada? — inquiriu Pietro, alongando as costas no espaldar da cadeira.

As famílias inglesas mais tradicionais podem ser identificadas por brasões heráldicos. Talvez o selo do enigma seja isso.

Não tenho dúvidas de que Deus o colocou em meu caminho, David — disse Pietro, abrindo um largo sorriso.

Obrigado, padre. Mas não será muito simples encontrar essa pessoa. Há milhares de brasões por aqui. E o leão é tradicional na herál­dica inglesa. Por exemplo, o brasão do país tem três.

Com a ajuda de Deus, conseguiremos — retrucou Pietro, colo­cando David no mesmo barco.

Me conte uma coisa. O que você fez com a língua? — quis saber o jornalista.

Joguei na privada e dei descarga. Não quis correr o risco de ser encontrado com ela e precisar me explicar para a Scotland Yard. Sabemos que os satanistas estão infiltrados lá.

Tem razão. A propósito, você conhece essa religião? - perguntou David, retirando um papel do bolso da calça e entregando-o ao padre.

Ele tremeu ao ler aquela palavra. Deixou de lado o scone que estava prestes a abocanhar. Uma gota visível de suor escorreu em seu rosto.

Li o artigo sobre a modelo brasileira.Você escreveu sobre isso. O que mais quer saber? — respondeu, atropelando as palavras, sem conseguir disfarçar o nervosismo.

Padre, você está enganado. Não escrevi sobre isso na matéria. Minha assistente, que é amiga de Fernanda Albuquerque, me falou sobre essa religião hoje de manhã. E como não sei pronunciar a palavra, pedi a ela que escrevesse para mim. Queria consultá-lo sobre isso — seu faro jornalístico apurado o alertava de que o padre escondia algo.

— Vi que você escreveu sobre magia negra. E candomblé é feitiçaria brasileira. Acho que me precipitei - esquivou-se.

Segundo minha assistente, essa religião é resultado do sincretismo religioso entre cultos africanos e catolicismo. Ela disse: "Se a fé é a moeda de troca das pessoas com os deuses, os praticantes de candomblé têm mais poder do que os católicos que freqüentam a missa por obrigação" - pro­vocou David. Pela experiência, sabia que as pessoas costumavam se trair quando nervosas. Gostava de usar aquele artifício em entrevistas delicadas.

—Você poderia usar esse mesmo argumento para justificar o sacrifício de pessoas em cultos satânicos. Se eles têm fé, podem assassinar à vontade. Deus não barganha com criminosos, David! — exaltou-se Pietro, dando um murro na mesa e chamando a atenção do staff e dos outros clientes.

Espero que esteja apreciando o chá da tarde — contornou David, servindo-se de uma fatia de bolo de chocolate. "Como são fleumáticos esses italianos", pensou.

Muito bom. Mas agora, preciso ir ao toalete - respondeu Pietro, levantando-se e inspecionando o salão.

Coração disparado. Respiração curta e rápida. Sentou-se novamente, aproximou o corpo da mesa e sussurrou:

David, se não me engano, o homem que me buscou no aeropor­to está aqui. Deve ter sido ele quem colocou a língua na minha mala. E nos seguiu até aqui.

O olhar de David cruzou com o de Andrew. Borboletas no estôma­go. Aqueles olhos lhe eram tão familiares... O destino estava lhe pregando peças nos últimos dias: uma assistente parecida com a falecida Susan e, por coincidência, amiga da top model Fernanda Albuquerque, o ressurgi­mento do padre Pietro Amorth e, agora, aquele olhar. Naquele momento, os demônios eram reais. E remexiam em suas piores lembranças.

—Vamos embora, padre - sugeriu, levantando-se da cadeira.

 

Logo após o telefonema, o senador Karl Bundy desmarcou outros com­promissos e embarcou para Nova York. Às vinte e uma horas, chegou ao GE Building, no Rockefeller Center. Subiu até o sexagésimo quinto andar. Com o maître, passou por algumas portas até o salão dourado. Vazio. Lustres exa­gerados. Decoração démodé. Vista esplêndida da cidade. "Por que ele marcou neste lugar decadente com tantos restaurantes excepcionais em Nova York?", questionou-se. Em menos de um minuto, um homem aparentando pouco mais de cinqüenta anos, cabelos grisalhos bem aparados, terno azul-escuro com camisa branca e gravata vermelha surgiu de uma porta lateral.

Por que escolhi aqui, senador Bundy? Deste lugar, John Rockefeller vislumbrava o mundo. Era aqui que ele se reunia com os líderes das treze linhagens. Entre eles, seu bisavô. Prazer em conhecê-lo, senador. Você já deve ter ouvido falar de mim: Max Freeman — apresentou-se, estendendo a mão ao convidado que ficara em pé para recebê-lo.

Apesar do nervosismo, Bundy notou que ele tinha um espesso anel de ouro no dedo indicador da mão direita.

Sim, é igual ao anel que seu pai lhe deixou. Você deve usá-lo após este encontro. E não tirá-lo mais do dedo — continuou o banqueiro, parecendo ler seus pensamentos.

— Muito prazer, senhor Freeman. Agradeço tudo o que tem feito por mim.

É hora de você saber algumas coisas sobre nós, Bundy.

Sobre quem? — indagou perplexo, sentando-se logo após o anfitrião.

Os Soberanos Invisíveis.

Os conspiradores? — Bundy deixou escapar.

Para nossos inimigos, sim. Eles não aceitam nossa escolha.

Que escolha?

Nosso grupo reúne treze dinastias. A mais importante permanece oculta desde a invasão de Israel pelos assírios, no século VIII antes de Cristo. Sua origem é uma das doze tribos, considerada maldita pelos autores da Bíblia. Sua genealogia foi omitida no Antigo Testamento, e São João a dei­xou de fora do Apocalipse.Você perguntou qual é a nossa escolha? Somos o outro lado da história, Bundy. Nosso mestre escolheu a tribo de Dã e a ela juramos lealdade. O que você vê nesse anel? — perguntou, estendendo a mão na altura dos olhos do senador, sorriso de satisfação no rosto.

Uma águia com uma serpente no bico.

Exato. Esse é o símbolo da linhagem real. Nossos irmãos ingleses preferem usar outro. Costumam gravá-lo abaixo do brasão de família.

Posso saber a natureza da missão em Londres? — questionou o senador.

Por isso o chamei aqui. O grão-mestre inglês está com problemas para dar continuidade à linhagem real.

Por que não escolhemos outro líder?

Isso aqui não é uma democracia, rapaz! — exasperou-se Freeman, esmurrando a mesa. — O sangue vale mais do que tudo. E o Duque Negro é um autêntico descendente de Dã.

Me desculpe, senhor - adiantou-se Bundy, com o coração aos saltos. Não queria conferir se os boatos sobre a vingança de Freeman seriam verdadeiros.

Aprenda isso: desculpar-se é para os fracos — o banqueiro olhou fixamente para o interlocutor por alguns segundos antes de prosseguir - Há algumas semanas, o mestre supremo me revelou que era o momento de assumir as rédeas.

Por isso enviamos o anjo da guarda para Londres?

Isso mesmo. E importante que tudo fique claro para você. O fracasso nesta missão é intolerável. O anjo da guarda deve guiar nosso adversário ao lugar certo. E não pode ser descoberto até o confronto final. Vamos jantar?

 

Estava escuro quando David e Pietro deixaram o Orangery. Silên­cio e passos apressados até o estacionamento. Sentiram alívio ao entrar no carro. O jornalista estava introspectivo, um pouco abatido. Ficaram quietos durante quase todo o percurso. A poucos minutos da entrada do Brompton Oratory, David quebrou o silêncio:

Qualquer problema, me avise.

Estou cansado, mas não posso perder tempo.Vou pesquisar a vida de John Dee.

Cuidado para não dormir no computador. A cama é mais con­fortável — brincou David.

Obrigado por me ajudar.

Se eu puder colaborar com algo mais, não hesite em ligar.

—Você ainda não se livrou de mim — disse Pietro, olhando para os dois lados da rua antes de sair do carro - Acho que, desta vez, não fomos seguidos.

A caminho de casa, o celular de David tocou. Ativou o viva-voz. Era sua assistente.

Olá, Mary, conseguiu escrever a matéria?

Escrevi, mas estou insegura. Gostaria que lesse.

—Você esqueceu que sou o editor? Vou fazer isso amanhã de manhã, antes de passar para o Steven.

Queria que lesse hoje — insistiu.

Passe para o meu e-mail. Se tiver tempo, faço isso — impacientou-se David.

Pensei que fosse me convidar para tomar chá.

Outro dia...Talvez.

Boa-noite, David. A gente se encontra amanhã. Tchau.

Mas que impertinente! — concluiu o jornalista ao término da ligação.

Sentiu vontade de ligar de volta e convidá-la para jantar. Era a pri­meira vez, em muitos anos, que desejava alguém ao seu lado. Sairia com a Carolyn se quisesse apenas sexo. Era a melhor entre quatro paredes. E dava em cima dele sempre que as circunstâncias permitiam. Mas Mary tinha algo que desafiava seu coração. Como Susan...Talvez a convidasse para sair se não fosse seu chefe. E não pudesse ser acusado de assédio. Não estava disposto a mais um escândalo em seu currículo profissional. Estacionou na garagem de sua mansão, na tranqüila Hampstead Street, quase vizinha da casa onde John Keats escreveu Ode a um Rouxinol. Comprara a propriedade do século XVII com parte do adiantamento de sua herança. A imponente fachada era quase uma cópia da Fenton House, com suas amplas janelas e duas chaminés erguendo-se nas laterais. Foi até a sala de estar. Taça de conhaque. Ligou o som: A Arte da Fuga — Contrapunctus III, de Bach. Cachimbo na mão. Acomodou-se na poltro­na perto da lareira apagada. Precisava pensar. Era evidente que o padre estava escondendo alguma coisa. Mas, de qualquer maneira, sua história era muito boa. Mutilação, assassinato, enigmas diabólicos e profecias macabras. Ingredientes perfeitos para uma grande reportagem. Ainda mais sendo sua fonte o enviado do Vaticano para uma missão secreta em Londres. Talvez tudo aquilo trouxesse à tona os crimes em série que abalaram a sociedade inglesa e causaram sua ruína profissional. Talvez fosse a chance de provar que fora vítima de uma conspiração satânica. E que sempre estivera certo sobre a identidade real dos criminosos. Lembrou-se da reconciliação de Pietro com o pai. E foi surpreendido por uma lembrança de quando tinha seis anos de idade. Passeava de mãos dadas com seu pai no bosque do castelo, em Upper Slaughter. Um cão negro saltou detrás de um arbusto e avançou sobre ele. Parou a poucos centímetros. Pelos das costas ouriçados. Patas como as dos grifos que ornamentavam os portões de entrada. O focinho parecia chaleira no fogão, expelindo fumaça. Enquanto rosnava, presas à mostra babavam sangue. Seus olhos soltavam faíscas semelhantes às brasas da lareira. Eram amedrontadores. Ele abraçou as pernas de seu pai e escondeu o rosto. Um solavanco. Ouviu um breve e terrível grunhido. Ao virar-se, o cão estava com uma espada atravessada no pescoço. Era a arma que seu pai trazia escondida na bengala. Era a arma de seu herói. Ele evitara que o monstro o devorasse. "Se meu pai admitisse que eu estava certo, poderíamos voltar a nos ver", consolou-se. Fechou a mão em punho.

— Desta vez, vocês não me escapam, miseráveis.

 

O pequeno quarto de Pietro fora arrumado. A batina com manchas de sangue, que ele jogara na pia do banheiro, estava sobre a cama, limpa e passada.

— São mais eficientes do que eu gostaria — disse, verificando se não faltava nada em sua pasta.

Pegou o jornal. Leu o texto assinado por David. Falava sobre o pai da modelo, um praticante de magia negra misteriosamente assassinado. O corpo, descoberto em um matagal, trazia dezenas de punhaladas. Estre­meceu com a descrição. Aquela brasileira, Fernanda Albuquerque, trazia lembranças que ele preferia esquecer. "Ele é muito esperto. Deve ter desconfiado de algo. Por que eu disse que tinha lido a matéria? Sou estúpido. Tenho que aprender a ficar de boca fechada. Não posso colocar rudo a perder", pensou, abrindo o notebook sobre a escrivaninha. Olhou rara o crucifixo sobre a cama. Uniu as mãos em prece.

Obrigado, Senhor, por ter guiado meus passos até aqui. Me ilu­mine para que eu consiga realizar essa missão.

Buscou o nome "John Dee" na internet. Milhares de páginas. Começou pela biografia postada em uma enciclopédia digital. Aquele personagem intrigante era um dos homens mais cultos de sua época. Estudou em Oxford e lecionou em Paris. Sua biblioteca particular, com mais de três mil volumes, tornou-se a maior da Inglaterra e uma das mais cobiçadas por estudiosos de todas as partes do mundo. Como um autêntico renascentista, John Dee colecionava conhecimentos em várias áreas. Era matemático, astrônomo, geólogo. Também era especia­lista em códigos e mestre em ciências ocultas. "Ou artes diabólicas", o padre corrigiu em pensamento. Segundo o texto, John Dee e seu colaborador, Edward Kelley, receberam revelações dos mesmos anjos que apareceram ao patriarca Enoque. Foi assim que nasceu a magia enoquiana.

Anjos ensinando magia? Caro John, como cristão, deveria saber que uma das ciladas do demônio é se disfarçar de anjo de luz — disparou Pietro.

Deixou a biografia e acessou a página de uma organização inglesa fundada em 1897. O principal objetivo da Aurum Solis era divulgar os ensinamentos herméticos do verdadeiro 007. O padre fez o download de um texto que explicava os princípios da magia enoquiana. Apesar de ter estudado ciências ocultas durante anos a fio para discernir as "Marcas da Besta" e desvendar cultos satânicos, Pietro não entendeu quase nada daquele artigo. E duvidava que seu autor pudesse explicá-lo de maneira satisfatória. Possivelmente John Dee utilizara seus conhecimentos em criptografia para desenvolver seu próprio sistema de magia. Avançou algumas páginas e encontrou uma tabela intitulada "Alfabeto Enoquiano". Ele tinha vinte e uma letras e era escrito da direita para a esquerda. As letras estavam divididas em três grupos de sete. Isso era proposital.Três era uma referência à trindade divina.

Macaco de Deus! - exclamou ao ler aquilo.

Após a criação da "linguagem do demônio", como o padre a batizou, John Dee compilou um livro contendo noventa e cinco quadrados, cada um com dois mil quatrocentos e um espaços. A maioria fora preenchida com letras e números. Soterrada em páginas e páginas de símbolos, esta­ria a arma escolhida pelo diabo para a batalha final. Pietro lembrou-se do enigma: "Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon". Buscou a palavra Ave no artigo. Era o nome de um dos anjos que se comunicavam com John Dee e Edward Kelley. Conforme o artigo, além de presenteá-los com a mais perfeita das ciências, que dava poder para comandar anjos e demônios, Ave ensinara a eles uma nova doutrina: Jesus não era Deus e roubara Sua honra, portanto, nenhuma oração deveria ser dirigida a Ele; não existia pecado e o Espírito Santo era uma fábula. Al­guém bateu à porta do quarto. Pietro levou um susto. Era Edward.

— Padre, gostaria de convidá-lo para jantar conosco.

 

Andrew deixou o Orangery meia hora após David e Pietro. Sabia que o homem solitário ao seu lado pagara o maître para colocar uma es­cuta na mesa dos dois. Ele adotara outro método. Pelo seu tablet, rastrearia as incursões do padre pela internet. A camareira do Brompton Oratory plantara um dispositivo eletrônico no notebook de Pietro sem que ele preci­sasse desembolsar nenhum centavo. E com garantia de lealdade. Qualquer movimento em falso, Andrew mataria seu filho. "Padre estúpido, vamos ver quem é mais esperto. E você, David, logo será descartado. Quero matá-lo com minhas próprias mãos", remoeu esses pensamentos a poucos metros da saída do Kensington Park. De seu carro, ligou para o conde de Bedford.

Segui os dois até o chá da tarde. Há mais gente interessada nesse encontro.

Não é possível!

Um homem colocou uma escuta na mesa.

Sabe algo sobre ele?

—- Muito pouco. Ele tinha sotaque americano.

Obrigado. Preciso desligar. Tenho uma ligação urgente para fazer.

Qual é a próxima ordem?

Siga os passos do padre e me informe sobre tudo.

E David?

Deixe-o de lado. Ele não nos interessa nesse momento.

"Para eles não passo de um peão", ressentiu-se Andrew assim que o conde desligou. Cenho franzido. Chegou ao Lamb and Flag, pub do século XVII apelidado de Balde de Sangue por ter sido palco de lutas sangrentas regadas a cerveja. Com uma caneca de real ale na mesa, tablet à mão, seguiu os passos do padre italiano no mundo virtual: "John Dee", "magia enoquiana","linguagem enoquiana". Ergueu a bebida em homenagem ao monsieur Moureau, que o transformara em um expert na arte secreta de John Dee. Na segunda caneca, Andrew tomara uma importante decisão. Provaria aos lordes que estava acima de todos eles. E brilharia aos olhos de seu pai. Lembrou-se de uma citação que seu mestre francês sempre repetia: "O des­tino mistura as cartas, nós jogamos". Era do filósofo Arthur Schopenhauer. O baralho ainda não fora repartido, mas Andrew já conhecia as cartas. E achava que poderia jogar melhor do que seus adversários.

 

Antes de dormir, David acessara os seus e-mails. Das dezenas de men­sagens recebidas, abriu apenas três. A irmã enviava notícias de Harvard, onde estudava direito internacional há dois anos. "Ela faz falta", suspirou o jornalista. O editor-chefe, Steven, exigia sua presença na reunião de pauta do dia seguinte. "O diretor cobrou mais matérias bombásticas so­bre a top brasileira", dizia. "Talvez ela esteja no próximo e-mail", pensou, abrindo a mensagem de sua assistente: "A matéria está anexada. Espero que goste. Beijos, Mary". Imprimiu o texto. Caneta à mão.

— Isso está bom. Nem parece que é de uma novata — concluiu em voz alta ao terminar a leitura.

Estava surpreso. Havia informações inéditas e bem escritas. "O Steven vai cair da cadeira quando descobrir que entregou ouro em minhas mãos", imaginou, com um sorriso sarcástico no rosto. Colocou o despertador para as seis e meia. Queria caminhar no parque antes de ir á redação. Já dormia há algumas horas quando teve a sensação de que não estava sozinho em seu quarto. Coração acelerado. Suor nas mãos. Abriu os olhos. Conferiu o horário: quatro da manhã. Um grito de susto. Diante de sua cama, um homem alto e magro. Barba longa, cabeça coberta por touca, túnica escura. Aquela pessoa lhe era estranhamente familiar. Talvez já a tivesse encontrado. Não nas ruas de Londres do século XXI. Possivelmente na National Portrait Gallery. Fechou os olhos e tornou a abri-los. Era como se um retrato do século XVI tivesse se livrado da tela e ido parar ao pé de sua cama.

Como você entrou aqui? — arriscou a pergunta.

O intruso balançou a cabeça, negativamente. E estendeu as duas mãos em sua direção. Sobre elas, um livro de aproximadamente vinte cen­tímetros de comprimento e dezoito de largura. A lombada era prateada. David calculou cerca de cinqüenta páginas.

O que quer com isso? — insistiu.

Othil lasdi babage od dorpha Gohol!

Não consigo entender nada disso. Deixe-me, ao menos, anotar — pediu David, acendendo o abajur e pegando, no criado-mudo, bloco de notas e caneta.

Virou-se para o estranho. Não estava mais lá. No instante seguin­te, ele também não. Sentado em um banco do Saint Jamess Park, es­perava a namorada, relendo A Tempestade. Apesar de entretido com o livro, conferiu o relógio. Ainda faltavam alguns minutos para o horário combinado Voltou à peça de William Shakespeare. Terminava mais uma página quando foi surpreendido por mãos macias cobrindo seus olhos. O perfume era inconfundível.

Mary?

Assustou-se ao pronunciar aquele nome. "Droga, queria dizer Susan".

Ainda bem que já se acostumou comigo — respondeu ela, desco­brindo seu rosto e dando-lhe um beijo — Vamos almoçar?

—Você está linda. Mas precisamos ficar aqui mais um pouco.

Por quê? Estou com fome... - insistia a americana.

Olhe em direção ao Westminster Palace, sobre a torre do Big Ben.

O que tem? — impacientou-se Mary.

Espere...Vai surgir um dragão com várias cabeças.

—Você está maluco. Se eu acreditasse realmente nisso, David, prefe­ria estar bem longe daqui quando seu monstro aparecesse.

— Então vamos — ele consentiu, contrariado.

Caminhou em silêncio, apreensivo, esperando um estrondo no céu. Nada. Sentiu desconforto. Teve a impressão de estar sendo vigiado. A poucos metros de distância, um homem trajando terno cinza-claro e cha­péu preto lia seu jornal. David notou um estranho objeto sob o banco. Talvez ele tivesse deixado cair sem perceber.

Senhor, acho que perdeu algo - disse, assim que se aproximou.

Ele encarou David e exibiu um sorriso sarcástico.

Quem é você?

Samyaza. Escolheu a puta muito bem. Mal posso esperar a hora de provar o mel dessa vadia.

O alarme tocou: seis e meia da manhã. Sobre o criado-mudo, o bloco de notas estava aberto. Com sua caligrafia, arrastavam-se na página palavras em uma língua incompreensível.

 

Após o jantar com os outros padres, Pietro voltara ao computador. Queria aprender tudo sobre John Dee e magia enoquiana, na esperança de encontrar alguma pista concreta. Fizera o download de alguns ma­nuscritos digitalizados. Queria ler os textos originais, em inglês e latim, esquivando-se de possíveis equívocos nas traduções. Interessara-se par­ticularmente por De Heptarchia Mystica, 48 Claves Angelicae, Liber Scientiae Auxilii et Victoriae Terrestris e Monas Hieroglyphica. Bloco de notas à mão, passara a madrugada debruçado sobre revelações heréticas de su­postos anjos. Aprendera as bases daquele sistema complexo de magia e estudara os princípios da linguagem de John Dee.Talvez precisasse deles para desvendar futuros enigmas. Após horas de estudo, estava exausto. E desanimado. Os ensinamentos dos "olhos onipresentes" eram contrários às suas crenças. E já constituíam uma obra diabólica por excelência. Mas de que maneira o Inimi­go utilizaria aquilo para escrever o próprio Apocalipse e arruinar o projeto de Deus? Era uma incógnita. Com essa dúvida atormentando seu espírito, Pietro adormecera durante a última oração do dia. Pouco depois, foi surpreendido por um choro estridente. Abriu os olhos. Estava diante de uma escadaria que terminava em um altar de pedra. Lá em cima, amarrada, a mesma criança de seus últimos pesadelos. Um homem, vestindo armadura, surgiu da escuridão. Segurava um machado na mão esquerda. Na direita, arrastava uma raposa morta. O padre subiu os degraus de dois em dois, em sua direção. Sentia-se preparado para evitar o infanticídio. Foi detido por dois homens a poucos metros do "sacerdote". Conseguiu encará-lo. Observou-o soltar a raposa e apontar para o brasão em seu peito. Era um leão dourado sobre fundo preto. Garras de ataque, coroa na cabeça. Com um sorriso maldoso, ele avançou so­bre a criança, dizendo algo incompreensível. O padre abaixou a cabeça. Um dos homens agarrou seu cabelo e levantou-lhe o rosto. Um grito estridente. O machado dilacerara o ventre da vítima. Empurraram o padre contra o chão. Com as mãos cobrindo os olhos, dor no peito, garganta seca, ele gritou:

Meu Deus, por que o senhor não impediu esse crime?

Confiei a você essa missão, meu filho. Agora, suas mãos estão manchadas com o sangue desse inocente.

Ao ouvir aquilo, descobriu os olhos. As mãos estavam lavadas de lágrimas.Vermelho sangue. Berrou de desespero. Pietro deu um salto da cama. Olhos úmidos. Ajoelhou-se no chão frio, diante do crucifixo de madeira. Balbuciou algumas palavras.

Meu Deus, já faz tanto tempo. Será que o senhor nunca vai per­doar o meu crime? — desabafou.

Enquanto rezava, lembrou-se do brasão. Sinal de Deus? Era possível que sim. Já descobrira o caminho que o demônio estava percorrendo. Mas perder tempo decifrando milhares de páginas talvez fosse mais uma das ciladas do Inimigo. "Ele quer me confundir para ganhar tempo", de­duziu. Estava convencido de que sua missão teria sucesso se encontrasse o braço direito do diabo. E a chave era o brasão. A verdade estava sob o selo.

Escreveu as lembranças do sonho e esboçou o símbolo que vira no peito do carrasco. Sabia qual era o próximo passo, mas, novamente, precisaria do auxílio de David. Com as pálpebras pesando, olhos ardendo, ligou o notebook. E pesquisou os nomes dos nobres que estiveram relacionados à vida de John Dee. E os que dividiram os espólios após sua morte. As seis e meia, voltou à cama. Ainda era cedo para fazer qualquer ligação. E precisava descansar antes de acionar o jornalista.

 

Ele chegou cedo ao The Star. Pretendia planejar a cobertura jor­nalística da chegada de Fernanda Albuquerque a Londres, prevista para dali a dois dias. Surpreenderia Steven com a matéria de Mary e uma possível entrevista exclusiva com a top model brasileira. Precisava esti­car o tempo, pois a colaboração com o padre também exigia atenção. Ao entrar na redação, surpreendeu-se com a presença de sua assistente. Entretida com a leitura de O Enigma Michelangelo, ela não percebeu a aproximação do chefe.Vestia calça e jaqueta jeans sobre camiseta preta. Cabelo preso. Levou um susto ao virar a página do livro e deparar com ele sentado diante dela, observando-a.

Esse deve ser mais um daqueles best-sellers americanos — disse David, com olhar de reprovação.

O que tem contra eles? — indagou Mary.

— Filmes de Hollywood. Valem apenas pela ação. Os personagens não têm densidade. São leves como penas.

— Discordo. As histórias são muito boas.

Deixe-me adivinhar o enredo desse livro. O protagonista precisa desvendar enigmas que Michelangelo escondeu no Juízo Final. A vida de muitas pessoas depende disso.

—Você seria um ótimo personagem de best-seller, David — piscou a assistente.

Ofender o chefe dá demissão por justa causa — retrucou o jornalista.

Quer dizer que você não gosta de literatura americana? — rebateu Mary.

Gosto muito de Ernest Hemingway, por exemplo. Você o conhece?

Claro. Mas nunca li nada dele. Prefiro os contemporâneos.

—Você quer dizer: literatura descartável.

Ofender a inteligência dos subordinados é assédio moral. E ouvi dizer que as indenizações são muito boas por aqui - brincou Mary.

Parabéns pela matéria. Melhor do que eu imaginava. Fiquei surpreso.

Muito obrigada. Espero surpreender mais vezes. Pensei que fosse me escrever um e-mail... Mal dormi esta noite — queixou-se.

Estive muito ocupado. Agora preciso trabalhar.

—Vamos almoçar?

Desculpe, Mary Tenho um almoço com os editores. Mas, se acei­tar, podemos jantar hoje - convidou-a, por impulso.

Onde nos encontramos?

Onde você mora?

Em Chelsea.

— Conheço um excelente restaurante na região. Passo para te bus­car às oito horas. Agora, vamos trabalhar?

Ela sorriu. "Não foi tão difícil como Carol disse. Ela devia estar com ciúmes", concluiu. David se arrependeu de ter feito o convite."O que a faz tão irresistível?", indagou-se. Abriu a caixa de mensagens. O celular tocou.

Olá, padre, tudo bem? Acho que posso ajudá-lo com isso.Tenho um compromisso às oito, mas podemos nos encontrar antes. Para mim, o lugar está perfeito. O horário também. Até mais tarde.

Está freqüentando sessões de exorcismo, David? — perguntou Mary, assim que o chefe desligou o telefone.

Aprenda com os ingleses a ser mais discreta. Pode prestar atenção às minhas conversas telefônicas, mas finja que não ouviu nada.

Era um jeito bem educado de dizer que ela não tinha nada a ver com aquele assunto. Mary ficou sem graça. Tinha muito a perder se ir­ritasse David. Deixou o livro de lado e acessou sua caixa de mensagens. Fernanda Albuquerque respondera. Abriu o e-mail, excitada. Guardaria a surpresa para o jantar. "Eu também seria uma ótima protagonista de best-seller", disse para si mesma, com um sorriso nos lábios.

 

Ele tomara seis canecas de cerveja. A ressaca na manhã seguinte foi inevitável. Passava das nove da manhã quando Andrew se levantou. Não abriu as janelas, pois elas não existiam no porão de sua casa. Ele gostava da escuridão e passava a maior parte do dia naquele cômodo. Apanhou sanduíche e leite no frigobar e ligou o computador.

— Vamos ver o que o padre aprontou essa noite.

Em poucos minutos, tinha diante de si tudo o que Pietro acessara na internet. "Ele pode ler os manuscritos, mas só eu conseguirei recuperar o tesouro de John Dee. Seria um ótimo presente para o meu pai", pensou. Os objetos que pertenceram ao mago haviam passado de mão em mão após sua morte. A maioria estava em posse dos Soberanos Invisíveis, dos quais o Duque Negro era o grão-mestre. Para os historiadores, alguns simplesmente desapareceram da Terra. Havia também os que os estudiosos consideravam lendários. Entre eles, o Livro das Folhas Prateadas, preparado por John Dee e, segundo o próprio, escrito pelos anjos. Muitos membros da ordem, in­cluindo Andrew, duvidavam de sua existência. Outros objetos caíram em mãos erradas. E agora faziam parte da coleção de importantes museus in­gleses. "Depois cuido do padre", disse para si mesmo. Fez um pequeno inventário dos objetos que pretendia recuperar. Eles faziam parte do acervo do British Museum. No site do museu, rastreou as peças sagradas. Esta­vam expostas na Enlightenment Gallery, seção Religion and Ritual. A sala situava-se no piso térreo, à direita da entrada chegando pela Great Russell Street. Poderia acessá-la pelo Great Court. Ou optar pelo caminho mais garantido: descobrir o responsável pela segurança e seqüestrar seu filho ou mulher. Ele daria até a Pedra de Roseta para ter a família em segurança, da mesma maneira que a faxineira do Brompton Oratory colocara um dis­positivo no notebook do padre Pietro Amorth. Olhou para a pequena cela de dois metros quadrados no porão. Sorriso sádico no rosto. Bastava ligar para um contato na Scotland Yard e teria uma ficha completa em poucos segundos. Procurava um telefone na agenda quando foi interrompido por uma ligação em seu celular.

Qual é o principal compromisso do padre hoje? — perguntou o conde de Bedford.

Ele tem um encontro com o jornalista no Brompton Oratory.

A informação é segura?

Os telefonemas estão sendo monitorados. O padre acredita que lá estarão a salvo.

Temos motivos para nos preocupar com essa reunião?

O padre pesquisou pessoas que tiveram ligações com um de nossos mestres do passado. Se ele cruzar esses nomes com a atual Câmara dos Lordes, chegará a membros de nossa ordem - explicou Andrew.

Isso é gravíssimo. O que ele quer com o jornalista?

Lembra que o jornalista publicou uma lista de nomes?

A lista maldita...

Conde de Bedford, por exemplo, aparece na pesquisa do padre e na lista negra — revelou Andrew.

Eles estão chegando perto...

Se eu pudesse, acabaria com os dois! — disparou Andrew, com o punho cerrado.

Faça apenas o que eu mandar. E faça direito! A ameaça que fez ao padre não valeu para nada! — berrou o conde.

Andrew esmurrou o ar, imaginando-se desferindo um golpe no ros­to do lorde arrogante. Se pudesse, afogaria aquele homem em um vaso sanitário cheio de excremento. Engoliu a raiva.

O que quer que eu faça, senhor?

Faça o padre se sentir ameaçado. Nem que para isso precise dar uma surra nele.

Quando?

Depois do encontro com o jornalista.

 

Os editores, o editor-chefe e o diretor do The Star já estavam sen­tados quando David abriu a porta da sala de reuniões. A mesa oval tinha doze poltronas. O editor assistente ficou na ponta próxima à entrada, diante de Paul Reiner. O poderoso chefao do jornal tinha 54 anos, era alto, gordo e ostentava uma careca reluzente. Usava roupas ligeiramente menores do que suas medidas exigiam. As saliências eram visíveis nas dobras de suas camisas. A cintura de suas calças ficava sempre acima do ponto necessário. Ele quase nunca usava paletó, pois atrapalhava seus mo­vimentos. Os suspensórios tinham cores vivas e eram, assim como os óculos de aro vermelho, sua marca registrada. Nos bastidores, a editora de moda o apelidara de Zeppelin fashion. O adjetivo era apenas piada. "Paul está longe de ser um homem fashion, mas seria um Zeppelin com estilo", justificara Carolyn para David, em um de seus encontros fora do trabalho. E apesar de nunca ter revelado, a redação inteira sabia que Paul era gay.

Estávamos esperando você para começar — provocou Steven.

Gostei da matéria sinistra sobre a Fernanda Albuquerque — comen­tou o diretor, com um jeito afetado — Conseguiu marcar uma exclusiva?

Ela marcou uma coletiva no Mandarin Oriental...

Odeio coletivas. As pessoas nunca falam nada de interessante em coletivas. E os jornais publicam as mesmas aspas, o mesmo discurso. Quero coisas inéditas, David! - interrompeu-o Paul, elevando o tom de voz.

Como você planejou a cobertura? — perguntou Steven.

Repassarei a vocês o organograma. Pretendo usar dois repórteres e três paparazzi.

A Mary não é inexperiente para sair a campo? — indagou Carolyn.

Ela não está incluída nessa equipe. Mas será uma peça fundamental — entregou David, com um sorriso sutil.

Quem é Mary? — interveio Paul.

Uma americana que veio estagiar em nosso jornal. Coloquei-a como assistente de David — explicou o editor-chefe.

Qual é a relevância de uma foquinha norte-americana? — per­guntou o diretor, nariz empinado, sobrancelhas erguidas, corpo inclinado para a frente, olhos fixos no editor assistente.

Nesse momento, ela é mais importante do que qualquer pes­soa nessa mesa — respondeu David. Paul recuou na poltrona. Steven o censurou com os olhos. Carolyn ficou boquiaberta. Os outros editores fitaram-no curiosos.

A top model marcou um chá da tarde no Mandarin Oriental com uma de suas melhores amigas: minha assistente — revelou David.

Steven, eu deveria ter sido informado sobre isso — Paul fuzilou-o com os olhos.

Desde que vi a garota, achei que ela tinha estirpe - comentou Jennifer, a redatora-chefe.

Também estou surpreso, Paul — justificou o editor-chefe.

Depois da reunião, Steven, quero você na minha sala - ordenou o diretor. Rosto ruborizado. Detestava fazer papel de otário na frente de seus subordinados. Culparia Steven por omitir a informação sobre a chegada de Mary ao The Star. Não importava que ela fosse uma simples estagiária, tinha conexões poderosas. "Ele deve estar ganhando alguma coisa com isso", farejou Paul. "Esse gordo maldito pode colocar tudo a perder", pensou o editor-chefe.

E ela tem um texto ótimo. Escreveu uma matéria em primeira pessoa sobre a Fernanda Albuquerque. Quero publicá-la na edição de amanhã — retomou David.

"Ele está caidinho por ela", deduziu Carolyn, enciumada.

Confio no seu feeling. Passe a matéria diretamente para mim - exigiu o diretor, ignorando Steven e Jennifer na hierarquia da redação.

 

Era a primeira vez que o americano Michael viajava à Inglaterra. Recebera uma missão do senador Karl Bundy e deveria se reportar so­mente a ele. Em Londres, vigiaria os passos do jornalista David Rowling. E o protegeria com a própria vida, se fosse preciso. Sua família receberia uma indenização milionária caso morresse em serviço, garantira o sena­dor. Mas ele não contava com isso. Em poucos dias, já sentia saudades de casa. Principalmente do filho de quatro anos.

Ele adorava carrinhos de brinquedo. Pretendia presenteá-lo com um táxi preto em miniatura. E, para voltar a vê-lo, não podia cometer erros. "O pescoço de David vale uma fortuna", dissera Bundy. Michael pretendia acompanhar todos os movimentos do jornalista. Com esse objetivo, plan­tara um dispositivo GPS em seu Jaguar e microfones em pontos estraté­gicos de sua mansão. Monitoraria também as ligações do telefone fixo e de seu celular. Para acomodar a parafernália tecnológica, Michael alugara uma casa quase em frente à do jornalista. Poderia socorrê-lo em poucos segundos se ele fosse atacado na própria residência. Ele já desconfiava de um possível inimigo: o homem solitário que surgira no Orangery e mantivera seu protegido e o padre sob vigilância cerrada. Estaria presen­te no Brompton Gratory no horário que Pietro marcara com David. Se o quarto personagem também estivesse lá, tramaria algo contra ele. Era quase meio-dia. O celular vibrou em seu bolso. Reconheceu o número. Era uma chamada do gabinete do senador Bundy.

Ele vai comungar no fim do dia — relatou Michael.

O santuário está correndo risco. Talvez seja profanado essa sema­na — revelou o senador.

Devo me preocupar com isso?

Sim. Ele também deve ser preservado - explicou Bundy

Isso significa que devo redobrar a vigilância?

Entenda desta maneira: o santuário e o jornalista são duas partes da mesma coisa. Se um deles morrer, o outro não serve para nada.

Ou seja, também devo cuidar do santuário? — insistiu Michael.

Também deve protegê-lo com a própria vida.

Não seria melhor mandar reforços para cá?

Confio apenas em você para esse trabalho. Não me desaponte — res­pondeu o senador. A última frase era uma ameaça no estilo de Bundy: sutil.

Não se preocupe. Darei conta do recado. Adeus - despediu-se Michael, desligando o celular.

Ele pensa que consigo me dividir em dois? — desabafou consigo mesmo. A logística ficara complexa. Ele deveria duplicar o aparato de vi­gilância e ganhar mais mobilidade. A solução seria utilizar um tablet para monitorar os dois e priorizar as informações mais relevantes. Elas seriam a bússola e sua intuição apontaria para quem precisasse de mais cuidado em determinado momento. Separou alguns dispositivos eletrônicos e saiu com uma mochila às costas. Partiu em direção ao Brompton Oratory, torcendo para encontrar um fast-food pelo caminho. E para o padre passar um bom tempo fora do quarto.

 

Era seu dia de sorte. Convidara Mary para o jantar e fizera uma desforra na reunião de pauta. Mas sabia que o destino era traiçoeiro. Lembrou-se do acidente com Susan. Na viagem de volta a Londres, pla­nejavam as próximas férias, em Bora Bora. Estavam felizes. Parecia que ninguém no mundo poderia mudar aquilo. O amor os tornava confiantes, capazes de enfrentar homens e deuses. Entre os primeiros, estava o pai de David. Ele não gostava da família de Susan. E reprovava o relacionamento dos dois. No início, defendia que era um namoro passageiro. Quando o filho disse que desejava se casar com ela, passou a criticá-lo abertamente. Apenas cinco semanas separavam a última discussão do acidente. Após a morte da namorada, seu pai mudara radicalmente. Estivera presente no enterro e se retratara com ele. O destino ensinara a David que poucos segundos separavam o paraíso do inferno. E isso o deixava com o pé atrás sempre que as coisas caminhavam bem.

Sua primeira matéria será publicada na edição de amanhã — disse a Mary, assim que deixou a sala de reunião.

Fantástico! Vamos comemorar — respondeu a assistente, exibindo um largo sorriso.

—Vou passar a matéria para o Paul e preciso sair.

Preciso te passar o endereço da minha casa — ela disse, sorrindo com malícia.

Ok. Escreva em um papel.

David, você foi demais. Precisava ver a cara do Steven durante a reunião — era Carolyn aproximando-se de sua mesa. Ela usava um vestido azul-escuro justo, salto agulha e brincos de argola dourados.

Obrigado.

Parabéns, Mary. Soube que seu texto é muito bom. E você é bem relacionada. Está trabalhando com a pessoa certa.

Obrigada. Você está linda — comentou a americana.

Você também. Nossas editorias poderiam trabalhar em conjunto. Queria fazer uma matéria de moda com a Fernanda Albuquerque — adiantou-se Carolyn. —Você pode me passar o celular dela?

Quem disse que eu tenho o número? - retrucou Mary.

—Vocês não são amigas? Não irão se encontrar em Londres?

David olhou para a assistente. Mary estava com os braços cruzados, recuada na cadeira. Em pé, diante dela, aquela loira tinha uma presença intimidadora.

A Fernanda Albuquerque pediu que Mary não misturasse trabalho com vida pessoal. Ela quer encontrar uma amiga, não uma repórter do The Star— David saiu em sua defesa. E percebeu Mary relaxar na cadeira.

Espero que me avise se ela mudar de idéia — rebateu Carolyn, encarando a repórter. Depois, virou-se para David:

Recebi dois convites para um concerto no Barbican. Quer ir comigo?

Quando?

Hoje, às nove.

Infelizmente não posso. Tenho outro compromisso.

Deve ser um compromisso imperdível. Você nunca recusou um convite para o Barbican.

Ele me convidou para jantar - interrompeu Mary, atraindo o olhar fulminante de Carolyn e a expressão surpresa de seu chefe. "A re­dação inteira vai saber disso. Estou ferrado",pensou David, que pretendia, até aquele momento, manter em sigilo o encontro.

Espero que aproveitem a noite — a editora de moda foi sarcástica. Afastou-se dos dois deixando um rastro de Chanel N° 5.

Sem comentar nada, ele enviou o texto assinado por Mary ao dire­tor e fez uma pesquisa no Google Images. "Era você", disse para si, fitan­do o rosto na tela do computador. Apanhou o pedaço de papel sobre sua mesa, deixado pela assistente, despediu-se dela com um sorriso e partiu ao encontro do padre.

 

Após o almoço com outros padres, ele pretendia passar o dia fechado no quarto, em orações. A batalha se avizinhava e Pietro precisava con­centrar forças. Nada melhor do que ficar em contato direto com Deus. Edward bateu à sua porta quase às duas da tarde. Era uma emergência. Uma jovem mulher, aparentando trinta e poucos anos, entrara na igreja e não parava de dizer vulgaridades diante do altar.

Ela só pode estar possuída pelo demônio, padre. Uma pessoa em sã consciência é incapaz de fazer isso — alertava Edward, indo a passos largos diante de Pietro. Estava visivelmente nervoso.

—Você acha que ela precisa de exorcismo? - perguntou o italiano.

Não tenho dúvida disso.

Precisamos levá-la para uma sala reservada. Arranje dois homens fortes — orientou Pietro.

Acha que nós dois não conseguimos?

— Seguramente não. As mulheres possuídas têm uma força sobre-humana.

Ao chegarem à nave central, encontraram uma mulher escultural, cabelo preto encaracolado na altura dos ombros. A mão direita estava por baixo da saia jeans. Ela se masturbava e gemia. Além dos dois, havia outro padre, um grupo de sete mulheres idosas, escandalizadas, e três rapazes, ajoelhados em dois bancos no fundo da igreja, mais distantes daquele espetáculo.

Está possuída - diagnosticou Pietro, vasculhando a igreja e achan­do seus auxiliares. Foi ao encontro deles.

Preciso da ajuda de vocês — disse em voz alta, apontando para o altar. — Quero que carreguem aquela mulher.

O que ela fez de errado? — perguntou um deles, fingindo não ter percebido o que se passava bem diante de seu nariz.

Sou exorcista. Ela está possuída pelo demônio! — gritou Pietro.

Fique tranqüilo, senhor. Apenas diga para onde devemos levá-la - disse um dos jovens, levantando-se. Era um negro alto e forte.

Edward, mostre o lugar para eles. Voltarei ao meu quarto para pegar algumas coisas. Encontro você aqui.

Dois homens agarraram os braços da mulher. O terceiro levantou suas pernas. E arriscou olhar por baixo da saia. Ela estava sem roupa íntima.

Seus imbecis, me larguem ou serão currados pelo demônio! — ela berrou. Voz estridente.

Esse é bem vulgar — concluiu o exorcista, dirigindo-se rapida­mente ao quarto. Cruzou com outro homem, ruivo e forte, em um dos corredores. Não era um de seus anfitriões.

Boa-tarde, padre — cumprimentou-lhe o desconhecido, mochila às costas.

Boa-tarde — respondeu Pietro, olhando para ele. O rosto sardento pareceu-lhe familiar. Não tinha tempo de prolongar a conversa. Correu para apanhar a maleta com os objetos de exorcismo que deixara sobre a escrivaninha do aposento e voltou para a nave central.

Padre, nunca vi isso na minha vida. Ela quebrou tudo o que viu pela frente - relatou Edward, desesperado.

Me leve até o lugar em que a colocaram.

Os três rapazes imobilizaram a mulher no chão, em uma pequena sala, contígua à sacristia. E ela não parava de gritar.

Traga pedaços de corda - pediu Pietro.

Em poucos minutos, Edward estava de volta. O exorcista italiano instruiu seus auxiliares para que amarrassem a mulher na única cadeira disponível ali, e, em seguida, fossem embora. Assim que deixaram o lu­gar, dispensou Edward.

Não posso deixá-lo sozinho. Sei que precisa de ajuda — respon­deu o padre inglês, relutante.

—Você não tem experiência com isso. Pode ser perigoso — advertiu Pietro, colocando a sobrepeliz branca sobre o hábito - Agora, saia daqui.

Quer me foder, padre? Sei que está com tesão — disse a mulher, forçando as coxas para fora.

Exorcízo te, immundíssime spíritus, omnis incúrsio adversárii, omne phantásma, omnis légio, in nómine Dómini nostri Jesu Christi — Pietro proferiu aquelas palavras com os olhos fechados.

A provocação sexual das mulheres possuídas era um golpe baixo no seu voto de celibato. Ele tateou os objetos em sua bolsa, pendurada no pescoço. Pegou o aspersório de prata.

Enfie isso na minha boceta! - gritou a possuída.

Adjúro ergo te, draco nequíssime, in nómine Agni immáculati, qui ambulávit super áspidem et basiliscum, qui conculcávit leónem et dracónem, ut discédas ab hoc hómine... — recitava a fórmula do ritual, preparando-se para fazer o sinal da cruz, com óleo consagrado, sobre a fronte da mulher.

— Que horas são, padre? — ela interrompeu-o.

O que você disse? — espantou-se Pietro.

Você pode me dizer que horas são? - repetiu. A voz e o rosto tinham voltado ao normal.

Essa é mais uma de suas armadilhas, demônio? — inquiriu o exorcista.

Pode me chamar de Ashley.

São quase cinco horas - respondeu o padre, conferindo o relógio.

O showzinho terminou. Ele me pagou por apenas uma hora. Pode me desamarrar?

Quem é você?

Sou atriz de filme pornô. É a primeira vez que faço isso. Não acha que me saí bem?

— Quem contratou, vadia? - explodiu Pietro, avançando sobre a mulher.

Calma, padre. Sou uma profissional. E recebi muito bem por esse serviço.

Isso é uma igreja, a casa de Deus, não um prostíbulo! Você pa­gará por isso no Julgamento Final! - ameaçou Pietro, aos berros.

Se quiser transar comigo, faço um desconto para padres: cem libras a hora. Mas cobro só cinqüenta para sexo oral. É uma pechincha.

Seu coração acelerou. Respiração curta. Rosto ruborizado. Cenho franzido. Ele levantou a mão direita. Desejava esbofetear aquela mulher até sangrar sua mão. "Meu Deus, tenha misericórdia desta infeliz", rezou em pensamento. E se retirou da sala. Edward estava próximo à porta.

Tire essa mulher daí. Mande-a embora — ordenou Pietro, se­guindo para o quarto.

 

David entrou no Brompton Oratory quinze minutos antes do horário marcado com o padre. Não era um homem religioso, mas gostava de igrejas. Eram lugares calmos, ótimos para refletir sobre a vida. Certamente mudaria de opinião se estivesse naquele mesmo lugar poucas horas antes. Sentou-se em um banco próximo à estátua de mármore de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, esculpida por Giuseppe Mazzuoli. Era o local combinado para o encontro. Havia poucas pessoas na "casa de Deus". Na direção oposta à sua, cinco senhoras deslizavam as mãos em contas de terços. Em uma das cape­las da nave lateral direita, um homem ajoelhado escondia o rosto de algum santo. Enquanto os fiéis justificavam erros e imploravam favores, um casal de jovens bem-sucedidos atravessava a nave central, combinando com um padre os detalhes de um casamento suntuoso. Passaram por ele, discutindo quantas libras pagariam pela decoração da igreja.

"As igrejas estão cada vez mais vazias e as pessoas ainda fazem questão de se casarem nelas", o jornalista pensava ao ser surpreendido pelo padre:

Colocando a oração em dia, David?

Pensando que alguns rituais religiosos são tão necessários que nem mesmo os ateus se atrevem a abandoná-los — respondeu o jornalista, levantando-se e estendendo a mão a Pietro.

É a voz de Deus que chama a todos, caro amigo, mesmo os que se recusam a ouvi-Lo. Mas você está falando de que exatamente?

Do casamento. É a vitória da aparência sobre o essencial.

Depende da pessoa, David. É como a oração. Ela pode ser um encontro pessoal com Deus ou a repetição de palavras vazias. São os sen­timentos das pessoas que dão vida aos rituais religiosos — explicou Pietro.

Quais são as novidades, padre? - indagou David, interrompendo o sermão improvisado e sentando-se novamente no banco de madeira, acompanhado pelo italiano.

Aconteceu algo muito estranho hoje, David. Uma atriz foi paga para fingir que estava possuída pelo demônio. Fui convocado para o ritual de exorcismo. Uma farsa grotesca.

— Talvez promovida pela mesma pessoa que o ameaçou.Você me disse que precisava pesquisar brasões e genealogias. Aonde quer chegar com isso?

Pesquisei a vida dos "olhos onipresentes da rainha". Além de astrólogo, John Dee era mestre em ciências ocultas e criou um sistema de magia bastante complexo, com uma miríade de códigos e uma lin­guagem própria, que dizia ser a mesma que os anjos falavam no Paraíso. Passei a madrugada estudando alguns manuscritos digitalizados.

Não sabia que padres estudavam magia — brincou David.

Estudo para reconhecer as pegadas do demônio. Mas, nesse caso, ele está usando um ótimo disfarce.

Pode ser mais claro?

Segundo John Dee, ele e seu assistente recebiam ensinamentos dos anjos. Foram esses anjos que entregaram a eles os conhecimentos secretos. Mas as revelações eram desconexas. Até hoje os estudiosos de magia enoquiana não conseguiram agrupar tudo de maneira coerente.

Magia enoquiana? Algo a ver com o Livro de Enoque? — pergun­tou David, erguendo a sobrancelha direita.

Os anjos de John Dee diziam ser os mesmos que instruíram o patriarca Enoque. Mas os demônios são mentirosos. A doutrina que eles passaram ao seu conterrâneo é claramente anticristã. Os praticantes de magia enoquiana veneram Lúcifer como fonte de sabedoria.

O que isso tem a ver com o Apocalipse?

Esses satanistas acreditam que John Dee escondeu em sua obra as chaves para iniciar o Apocalipse Negro. Quem as encontrar terá o poder de reescrever o Fim dos Tempos, David. Essa pessoa será a escolhida do diabo, a Grande Besta.

A pessoa-chave do terceiro enigma — concluiu o jornalista.

"A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé". Se eu descobrir quem é essa pessoa, a missão será bem-sucedida - completou Pietro.

Como eu disse antes, há milhares de brasões. É como procurar agulha no palheiro — reforçou David, com uma expressão desanimada.

—Tive um sonho na noite passada. Era Deus me indicando o cami­nho — revelou o padre.

Que caminho seria esse?

Quando John Dee morreu, seus manuscritos passaram por algu­mas pessoas. Havia material inédito que jamais foi publicado. E perma­nece desaparecido. Aposto que uma confraria negra guarda isso até hoje, esperando o momento certo para usá-lo.

— Boa dedução — elogiou David.

Chamaria de iluminação divina. Sabe o que fiz? Pesquisei nomes de pessoas que se apropriaram dos espólios do 007. Eram nobres. Deviam ter brasões — explicou Pietro.

E alguns descendentes desses nobres devem freqüentar a Câmara dos Lordes... Poderíamos cruzar os nomes que descobriu com a lista das pessoas supostamente envolvidas naqueles crimes ritualísticos - sugeriu o jornalista, com um sorriso no rosto.

E em pouco tempo descobrimos a cabeça humana do diabo - concluiu o padre.

E desmascaramos o Duque Negro — completou David.

 

Ajoelhado em uma capela lateral do Brompton Oratory, Michael re­cordou as aulas de catecismo no interior de Nova York. Apaixonara-se por uma colega do curso. Três semanas antes da Primeira Comunhão, foram flagrados sem roupa na sacristia da igreja. "Seu filho é um pervertido!", a professora berrava com os pais. Sua mãe estava consternada com o es­cândalo. Seu pai sorria discretamente, cúmplice da ousadia do filho. Mas só Michael percebera isso. Impedido de terminar o curso, ele nunca mais encontrou a primeira paixão. Mas valera a pena. "Até Deus achou graça naquilo", pensou sorrindo. Um aperto no coração. Angústia. Lembrou-se do irmão mais velho, morto em um assalto quando ele tinha quinze anos. "As pessoas descobrem Deus no amor ou na dor", dizia sua mãe. Se Ele existisse, perdera-O pela dor. Não rezara mais desde o funeral do melhor amigo. Uma lágrima escorreu em seu rosto. Respirou fundo. Com as costas da mão, limpou aquele "sinal de fraqueza".Virou-se e percorreu a nave central com os olhos. Os dois protegidos conversavam a poucos metros dali. "A puta fez um excelente trabalho. Conseguiu convencer um exorcista de que estava possuída", gabou-se. "Os rapazes também se saíram bem." David e Pietro estavam tão envolvidos na conversa que não perceberam a aproximação de um homem vestindo capa preta e óculos escuros. Ele sentou-se três bancos atrás dos dois. Para Michael, não havia dúvidas. Era o suspeito do Orangery. Atravessou para o outro lado e ficou em pé atrás de uma coluna. De sua posição estratégica, conseguia observar o jornalista e o padre, e, o mais importante, vigiar os movimentos do terceiro homem. A mão sob o sobretudo estava pronta para sacar a pistola. Não hesitaria em estourar sua cabeça. Andrew girou o corpo na direção de Michael e o encarou friamente. Sorriu antes de levantar a mão direita, fazer um gesto obsceno com o dedo médio e dizer-lhe uma ofensa gesticulando os lábios. O americano retrucou: "filho da puta". Ignorando o que se passava a poucos metros, o jornalista e o padre conti­nuavam a reunião.

Assim que chegar em casa, vou lhe enviar a lista — disse David.

Onde posso checar as genealogias e os brasões? - perguntou Pietro.

No College of Arms, mas a pesquisa não é aberta ao público.

O que devo fazer?

Precisa de uma licença especial. Pode deixar que amanhã ela estará em suas mãos — assegurou o jornalista, conferindo o horário pela primeira vez.

Não quero atrapalhá-lo — disse Pietro.

Tenho um compromisso daqui a pouco. Mas preciso tirar uma dúvida. Você disse que Deus se revela nos sonhos. Vamos supor que eu acredite na existência do diabo. Ele conseguiria fazer o mesmo?

Sobre o que estamos conversando até agora, David? A tentativa do demônio de imitar o Apocalipse bíblico. Ele sempre tenta imitar Deus.

Na noite passada, tive um sonho bem estranho. Recebi um livro prateado de um homem de séculos atrás. Ele disse algo que não consegui entender. De manhã encontrei meu bloco de notas aberto. Devo ter es­crito enquanto dormia.

E por que você supõe que era uma mensagem demoníaca? — in­dagou o padre, encarando-o.

Antes de vir para cá, pesquisei na internet a imagem de John Dee. Era igual à do viajante do tempo que invadiu meu quarto. E o que ele disse está aqui — respondeu, retirando do bolso do paletó um papel dobrado — Pode ser só um amontoado de letras sem significado. Mas também uma mensagem escrita na "linguagem dos anjos". Como você se tornou um especialista no assunto, talvez consiga decifrar isso.

Parece a "linguagem do demônio" em caracteres latinos — con­cluiu Pietro, arregalando os olhos.

O que querem comigo, padre? - perguntou o jornalista.

Somos parceiros nessa missão. O inimigo sabia disso antes de nos encontrarmos. Ele fará um cerco contra você. Resista, David.

Preciso ir agora. Conversamos amanhã — despediu-se. Ambos se levantaram ao mesmo tempo e se depararam com o homem de óculos escuros, três bancos atrás. David sentiu um calafrio inexplicável. Pietro o reconheceu imediatamente. Era o motorista que o apanhara no aeroporto e o homem que os vigiara no chá da tarde.

David, jamais se esqueça dessas palavras de Cristo: "Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas são incapazes de matar a alma!" — disse em voz alta. E apontou o dedo indicador para o rosto de Andrew antes de prosseguir: — Você é um desgraçado. Não tenho medo de você, assassino!

— Padre, é melhor voltar para seu quarto. Qualquer problema, me avise — o jornalista sussurrou para que ninguém mais o ouvisse.

Não se preocupe comigo — respondeu Pietro.

Eles apertaram as mãos e seguiram em direções opostas. David pas­sou por outro homem em atitude suspeita. Encostado em uma coluna lateral, ele não tirava os olhos daquele que os vigiava. Era o mesmo que, solitário, tomava chá da tarde no Orangery, no mesmo dia em que ele e Pietro se encontraram pela primeira vez. Não era coincidência. Pessoas seguiam seus passos. Talvez fossem do serviço secreto inglês, comandados pela poderosa seita que assassinara cinco mulheres há dois anos. "Eles também devem estar por trás disso. Não acredito no demônio, mas seus seguidores são criminosos de verdade", pensou David, a caminho de sua mansão. Tinha pouco tempo para se arrumar e encontrar Mary.

 

Andrew deslizou no banco de madeira. Saiu pela nave central. Parou diante de Michael e tirou os óculos. Sorriso irônico no rosto. Saudou-o inclinando levemente a cabeça e deixou o Brompton Oratory pela porta principal. Michael pegou o tablet em seu bolso e conectou a ele um fone de ouvido. Na tela, tocou o ícone em forma de cruz que monitorava o quarto de Pietro, e acionou o GPS no carro de David. Não sabia de qual lado viria o golpe do adversário. "O padre está protegido. Duvido que o esquisito tente algo contra ele aqui.Vou atrás do jornalista", decidiu. Pe­gou o carro alugado, um Audi A8 prateado, e conectou o tablet no com­putador de bordo. Checou a trajetória do Jaguar preto. Possível destino: Hampstead. Passou para o viva-voz a transmissão da escuta que instalou no quarto do padre e tomou o mesmo rumo de David.

Cardeal, não gosto de levantar falso testemunho, mas alguém entregou que eu viria a Londres para essa missão — disse Pietro ao celular, sentado à mesinha de seu quarto.

Michael aumentou o som.

Sei que nossa confraria é secreta. Por isso acho que fomos traídos. O que me faz pensar nisso? Estou sendo ameaçado. Não tenho medo de enfrentar o Inimigo. E nunca desistiria. Mas se algo acontecer comigo, Gabriele, tenha outra carta na manga.

—Você é bem corajoso para um padre — Michael comentou em voz alta, ouvindo Pietro:

Estou próximo, Gabriele. Se Deus quiser, amanhã saberei quem é o instrumento humano do demônio. E tomarei as providências para neutralizá-lo.

 

Alguém bateu no quarto do padre. "Deve ser Edward me chamando para o jantar", deduziu, despedindo-se do cardeal e desligando o telefone. Virou a chave e empurrou a maçaneta para baixo. Um baque violento.

Foi arremessado contra a parede. Gosto de sangue na boca. Porta tran­cada. Não estava mais sozinho no minúsculo aposento. O intruso usava uma capa escura. Assustou-se ao reconhecê-lo.

O que está fazendo aqui? — indagou aos berros.

Revidando uma ofensa — respondeu Andrew, esmurrando a face direita do padre. Ele caiu no chão com o impacto.

Pode me matar, assassino! Mandarão outro no meu lugar.

Sua religião estúpida não manda oferecer a outra face? — per­guntou Andrew, chutando a face esquerda de Pietro. O padre ouviu um estrondo. Sentiu os ossos do crânio rangerem. Um líquido pegajoso es­corria em seu rosto. Parecia que o cérebro lhe escapava aos borbotões. Reminiscências rodopiavam na massa encefálica: o grito de uma criança, o sangue quente nas mãos, os olhos sem alma, o retrato da modelo brasi­leira no jornal. "Meu Deus, me perdoe", balbuciou.

—Você é um fraco. Por que seu Deus não desce da cruz e vem te salvar? — desafiou Andrew.

Pietro ouviu uma voz distante. Não conseguiu entender nada. Uma pancada forte no estômago. A dor atravessou seu corpo. "Não posso mor­rer. Tenho uma missão. Senhor, mande um anjo em meu socorro", suplicou em pensamento. Tudo ficou escuro. E quieto. De repente, uma luz difusa surgiu ao fundo. E logo preencheu todo o espaço. Estava leve. E em paz.

Pietro, você é muito presunçoso. Acredita que um homem é ca­paz de vencer um anjo? - aquela voz era estranhamente familiar.

Quem fala comigo?

Eu sou aquele que é.

Meu Deus!

Foi a presunção que o tornou um assassino, Pietro.

Pensei que estivesse fazendo Sua vontade...

Se estivesse convencido disso, não carregaria tanta angústia em seu coração.

Perdoe-me.

—Você precisa se perdoar primeiro. Só então sentirá Meu perdão.

Peço que envie alguém em meu lugar, Senhor.

Você é presunçoso, Pietro. Julga mesmo que algum homem é capaz de derrotar Lúcifer?

Sozinho, jamais. Mas qualquer pessoa que se entregar em Suas mãos, Senhor, é mais forte do que um exército de demônios.

Não fuja de si mesmo, Pietro. Estou onde você também está. No mesmo instante em que o padre ouvia aquelas palavras, o algoz olhava para seu rosto ensangüentado com um misto de desprezo e raiva.

Sinto muito, conde de Bedford, mas não gosto de fazer o serviço pela metade. Além disso, odeio padres — disse Andrew, erguendo a perna direita e calculando a força para esmigalhar o crânio de Pietro.

 

Para David, o banho era um ritual de purificação. Aos domingos, apreciava a banheira repleta de sais aromáticos. Ajudava-o a organizar a semana. Nos outros dias, uma ducha bem quente e forte relaxava seu corpo e desobstruía a mente. A sujeira mental descia pelo ralo, e o pensa­mento ficava mais ágil. Precisava disso depois do encontro com o padre. Mas não tinha tempo. Fez anotações rápidas de trechos importantes da conversa no Brompton Oratory. Depois do jantar, se debruçaria so­bre elas. No banho de cinco minutos, pensou na roupa que colocaria. Algo que não destoasse do estilo de Mary, mais informal. Uma calça cinzento-escura de flanela, camisa tattersallcheck, fundo branco, sem gra­vata, e tweed Donegal por cima. Calçaria o modelo chetwynd castanho da Church's. Conferiu o resultado no espelho do closet. Finalizou com um toque da fragrância KnizeTen. Antes de sair, colocou no pulso o relógio Patek Philippe 1949, uma raridade herdada do avô paterno, o mesmo que lhe deixara o cachimbo Dunhill. Programou o iPod em seu carro para tocar uma seleção de blues e jazz e pegou o papel em que Mary anotara seu endereço:

 

Me esqueci de dizer que, além de "literatura descartável", também gosto muito de Mary Ann Evans. Talvez porque tenhamos o mesmo nome :-) Ou porque moro na casa em que ela morreu. Como você é um literato, deve saber onde é. Te espero aqui no horário combinado. Sei que os ingleses são famosos pela pontualidade. Não me decepcione. Beijos, Mary.

 

— Era só o que me faltava! Não é só o diabo que gosta de fazer cha­rada. Mas essa não é difícil. Mary Ann Evans, pseudônimo: George Eliot. Morou na Cheyne Walk, como Henry James, T. S. Eliot e Ian Fleming... O criador de James Bond, o falso 007 — lembrou-se, dando a partida no carro — Ela gosta de me provocar!

Sentia borboletas no estômago. E elas eram parecidas com aque­las que batiam asas em seu primeiro encontro com Susan. Há anos não experimentava isso. Para diminuir a ansiedade, pensou na reunião com Pietro, pouco antes. "Será que ele está bem?", questionou-se, ao se lembrar do homem suspeito sentado logo atrás. O mau pressentimen­to sempre se manifestava como um formigamento na têmpora direita. Poucas horas antes do acidente com a namorada, tivera o mesmo sinal. No dia em que sua carreira afundara na lama, também. A sensação era infalível. Respirou fundo. Preferia as borboletas. No viva-voz, selecio­nou o número do celular de seu novo parceiro. Tocou algumas vezes e caiu na caixa postal. Devia ter esquecido o telefone no quarto e estar jantando com os outros padres. Mas a ameaça pairava sobre ele, como uma ave de rapina sobrevoando um cadáver. "A língua humana", pen­sou David. E não era difícil saber quem estava por trás daquilo. Havia uma seita em Londres capaz de assassinar com uma atrocidade demo­níaca.Tinha visto isso de perto. O rosto das mulheres mortas estampava terror. Sentia calafrio só de imaginar o ritual a que foram submetidas. E o padre Pietro Amorth tinha sido fundamental para desvendar aqueles crimes. Ainda que a versão oficial fosse uma farsa, ele representava um perigo real aos interesses dos verdadeiros monstros. Além disso, não era alguém conhecido na Inglaterra. Poderia ser assassinado em seu quarto, no Brompton Oratory, sem que isso fosse interpretado como vingança ou queima de arquivo. Para David, ele fora poupado por um simples motivo. Era um rosto conhecido do público. Se o corpo do jornalista fosse encontrado boiando no Tâmisa, ou atirado em algum lugar ermo, sua versão da história ganharia força. E as investigações policiais chega­riam a nomes poderosos da sociedade londrina. Tinha certeza de que seu pai se envolveria pessoalmente no caso. Insistiu na ligação. Nada. "Se tivesse o número de Mary, desmarcaria o jantar", pensou, já na Finborough Road. Faltavam quinze minutos para as oito horas. Ele não gostava de se atrasar.

 

Desde que "morrera" aos sete anos, Andrew desenvolvera uma inti­midade sinistra com a morte. Colecionava retratos de vítimas de crimes violentos. Alguns levavam sua assinatura. Sua ligação com a ordem lhe dava o poder de decidir entre a vida e a morte de algumas pessoas. Aquilo era o mais perto que podia chegar de seu deus. Sempre carregava a câmera digital e disparava flashes como os golpes do punhal ritualístico. De­pois contemplava os olhos aterrorizados, estancados no tempo. Sentia um orgasmo metafísico. Apalpou o bolso esquerdo da calça, abaixo da capa. A máquina estava lá, esperando o momento de entrar em ação. O padre não tinha o mesmo charme das Concubinas de Satã, mas seria o primeiro homem da igreja trucidado por ele. Merecia uma distinção especial por aquilo. E não era somente um clérigo a menos, mas um enviado especial do Vaticano. Era seu recado ao papa: "Não se desafia o rei deste mundo". Proferiu algumas palavras em latim, que talvez Pietro preferisse não tra­duzir. Depois completou:

Que a alma desse infeliz aqueça as fornalhas do inferno.

Assim que ministrou a versão diabólica da extrema-unção, foi sur­preendido por um golpe lateral. Estava apoiado no chão apenas com a perna esquerda. Desequilibrou-se e caiu. Reconheceu o homem que entrou com um solavanco no quarto do padre. Era o americano ruivo. Mira da arma em sua cabeça.

Se fizer algum movimento, estouro seus miolos! — berrou Michael.

Você é mais esperto do que eu imaginava — disparou Andrew, furioso.

E você é mais estúpido - retrucou, abaixando-se, com cuidado, e verificando a carótida no pescoço do padre. Tinha pulso.

Você se acha um cara de sorte? - perguntou Andrew, caído no chão. Em seguida, pronunciou algo incompreensível.

Michael sentiu um formigamento no ombro direito se espalhando pelo braço. Segurou a arma com força, mas não conseguiu manter a mira. Assustado com a perda de controle, não reparou na agilidade sobre-humana de seu oponente, que, em poucos segundos, já estava de pé sobre a cama. De repente, tudo ficou escuro. Ele fora coberto pela capa negra. Desesperado, atirou a esmo. Um golpe em suas costas o derrubou ao lado do corpo do padre. Ainda sem enxergar nada, levantou o braço e disparou uma saraivada de tiros com a pistola automática. Conseguiu desvencilhar o rosto do "véu". O inimigo estava a poucos centímetros de distância. Um chute certeiro na mão arremessou a arma para longe.

Quem te mandou para cá, americano?

Se contasse para ele, e fosse poupado, o senador Bundy enviaria alguém para queimá-lo. O mais grave é que sua família também corria risco. Pensou no filho de quatro anos. Sentiu o coração pular no peito. O corpo pronto para o combate. Coberto parcialmente com a capa, abriu o canivete que trazia no bolso da calça sem que Andrew percebesse.

Estou a serviço da...

Em um ímpeto, enterrou um terço da lâmina na panturrilha esquerda daquele estranho vilão. A dor o fez inclinar-se para a frente, com o rosto contorcido. E, novamente, disse algo que Michael não conseguiu entender.

... Liga da Justiça, imbecil — completou o americano, levantando-se. Tentou dar-lhe um soco. Sensação estranha. A velocidade de sua ação pa­recia bem mais lenta do que a do inimigo, que se desviou do golpe sem esforço, sentou-se na cama, puxou o canivete e o atirou para longe. Em seguida, cuspiu na mão direita e a colocou sobre o ferimento, dizendo palavras na mesma língua estranha. O sangue parou de jorrar e ele andou sem dificuldade até a porta do quarto. Antes de sair, fez um gesto obsceno para Michael. "Merda, o que esse cara consegue fazer?", pensou. Corpo pesado. Gravidade alterada. A magia foi quebrada assim que Andrew ba­teu a porta com violência. Enquanto guardava a pistola no bolso, o ame­ricano foi flagrado por quatro padres assustados. Era Edward, invadindo o quarto com mais três clérigos atraídos pelos disparos. Assustado com o rosto quase irreconhecível de seu hóspede, ele enfrentou o intruso:

O que você fez com o padre Amorth?

Acabo de salvá-lo do demônio - gabou-se Michael.

 

Ao entrar na Cheyne Walk, David olhou para o relógio. Marcava oito horas. No mesmo instante, observou Mary surgir de uma casa, com o cabelo parcialmente preso, lápis nos olhos, gloss nos lábios e bolsa preta cintilante a tiracolo. A saia rosa destacava-se na composição noir de ma­lha, meia-calça e salto agulha. O largo cinto com fivela prateada parecia exagerado, porém casava perfeitamente com o look fashion. No pescoço, um singelo colar de ouro, com uma única pérola, passaria despercebido inicialmente. Até surpreender pela elegância.

Você está deslumbrante — elogiou David, abrindo a porta do carro para ela.

Obrigada. Pensei que fosse se atrasar — respondeu com ironia.

Pensei que não gostasse de literatura inglesa - disse David, sen­tindo o perfume sensual e delicado da americana enquanto dava a par­tida no carro.

Gosto de Mary Ann Evans, de Oscar Wilde...

"Por esse milagre eu daria tudo! Sim, não há algo no mundo que eu não estivesse disposto a dar em troca. Daria até a alma!" — citou David.

O Retrato de Dorian Gray. Um de meus livros favoritos — respon­deu Mary.

Por essa eu não esperava.

—Você acredita em pacto com o demônio, David?

Na imaginação dos romancistas, tudo é possível.

Para seu amigo exorcista, os demônios não devem existir apenas na cabeça dos escritores.

Conheço o ponto de vista de um padre. Mas ficaria surpreso se você acreditasse que os demônios são reais, Mary.

Para os ingleses, Lorde Nelson virou um herói na Batalha deTrafalgar. Naquela época, se você perguntasse aos franceses o que achavam dele, vários diriam que era um "demônio". Agora passe para o outro lado da história. Na França, muitos seguiam Napoleão Bonaparte como um deus. Mas seus tataravôs, David, deviam considerá-lo a própria encarnação do diabo — comentou Mary.

O que isso tem a ver com religião?

Acredito em deuses. Se eles são anjos ou demônios, depende do lado em que você está.

Não concordo, Mary. Se um criminoso justificar seus assassinatos dessa maneira, "Fiz a vontade de Deus", o advogado de defesa tentará di­minuir a pena alegando insanidade. Acho melhor mudarmos de assunto. Não quero pensar que estou saindo com uma psicopata — brincou David. —Você gosta de blues e de jazz? — perguntou, aumentando o volume da canção "Crossroad Blues".

Você não queria mudar de assunto? Isso é uma provocação? - perguntou Mary.

Por que está me dizendo isso?

Nunca prestou atenção na letra dessa música? É sobre a encruzi­lhada onde Robert Johnson fez um pacto com o demônio.

Fiz uma seleção musical despretensiosa. Pouco me importa a vida desse cantor, de Dorian Gray, Lorde Nelson ou Napoleão Bonaparte. E não me interesso por religião — esquivou-se David, apertando a tecla shuffle. Próxima canção: "God Bless the Child", na voz de Billie Holiday. Os dois caíram na risada.

— Juro que não é provocação — adiantou-se David.

Sei - respondeu Mary.

Percebo que, além de literatura e religião, você também gosta de história.

Meu pai costuma dizer que história é a psicologia do mundo.

Não sou psicólogo. Mas acho que o mundo precisa ser internado em um manicômio — brincou David.

Onde está a camisa de força? — perguntou a americana, participando da piada. Tinham acabado de chegar ao Gordon Ramsay Restaurant.

 

Com fortes dores na cabeça e nas costas, ele percebeu a agitação de algumas pessoas a poucos centímetros de seu corpo. E vozes cada vez mais altas. "Ele vai ficar bem". Parecia Edward. Do lado esquerdo, as pálpebras estavam coladas. A luz invadiu o olho direito por uma pequena ffesta, obrigando Pietro a franzir o cenho para aumentar seu campo de visão e enxergar melhor. Enquanto as cores borradas ganhavam contornos, o padre reconhecia seu anfitrião, outro padre da comunidade e um médico. Havia uma quarta pessoa. Seu rosto não lhe era estranho. "O homem com quem cruzei no corredor mais cedo", concluiu.

Quem é você? - perguntou.Voz fraca.

Ele te salvou - adiantou-se Edward.

Meu nome é Michael.

Como o anjo... — concluiu o exorcista.

Você está internado no Hospital Chelsea and Westminster. Deve descansar. Amanhã fará alguns exames — orientou o médico.

Não tenho tempo para isso. O que aconteceu comigo? — inqui­riu Pietro.

Você sofreu um golpe violento na cabeça. O resultado aparen­te foi um corte no supercílio esquerdo. Levou oito pontos. Mas ainda preciso fazer uma tomografia para verificar se não houve formação de coágulo. Antes disso, não posso liberá-lo.

Sabe quem o atacou, padre? — questionou Michael.

Estou sendo ameaçado desde que pisei em Londres. Não sei quem é você, mas deve ter mais respostas do que eu.

Vocês podem nos deixar a sós? — o americano solicitou aos demais.

Lembre que ele está sob cuidados médicos e não deve se estressar — advertiu o médico.

Não se preocupe. Quero apenas conversar.

Assim que os três deixaram o quarto, Michael prosseguiu.

Pietro, como você, estou aqui em uma missão sigilosa...

Quem disse o que vim fazer aqui? - o padre o interrompeu, elevando a voz.

Isso faz parte do meu segredo.

—Você também está me seguindo?

Protegê-lo está entre minhas atribuições.

—Você trabalha para o serviço secreto inglês?

Não tenho nada a ver com eles.

Trabalha para a Igreja, então? — insistiu o padre.

Não interessa para quem trabalho. Se você colaborar comigo, Pietro, nós dois ganhamos Você completa sua missão e eu a minha. Mas se você preferir ser pisoteado por aquele maníaco, a escolha é sua. Isso é livre-arbítrio, não?

— Vamos supor que eu concorde com você. O que devo fazer?

Amanhã você comprará uma passagem aérea de volta para Roma e escreverá um e-mail a David dizendo que a missão foi abortada. Para essas ações, usará seu celular e seu computador — explicou Michael.

Está louco! — berrou o padre, sentindo pontadas doloridas na cabeça.

— Aquele maníaco é bem esperto. Precisamos despistá-lo. Ele deve acreditar que você ficou com medo e desistiu de tudo.

Eu não vou desistir!

Eu não espero isso de você, Pietro. Continuará em Londres, mas em outro endereço, com um novo celular e um novo notebook.

Por que tudo isso?

— Você foi grampeado. Ele ouve suas ligações e monitora seus acessos à internet.

Quer dizer que ele sabe tudo o que pesquisei?

A tecnologia faz seus milagres.

Não posso interromper minha comunicação com David — adiantou-se.

— Acho que o jornalista também está sendo monitorado. Eu me en­carrego de procurá-lo pessoalmente para esclarecer sua situação. Quando estiver invisível na cidade, aproximo vocês dois novamente.

As pontadas doloridas se intensificaram. Esforçara-se muito nos últimos minutos e o corpo exigia repouso. Já não conseguia mais fitar seu interlocutor.

— Nos encontramos amanhã — despediu-se, fechando os olhos. Respirou aliviado. Deus lhe dera uma segunda chance. Se não tivesse enviado Michael, agora, provavelmente, estaria prestando conta de seus erros no Purgatório. "Você precisa se perdoar primeiro. Só então sentirá meu perdão." Foi assaltado por aquela mensagem. Sem o perdão divino, seu destino era outro. Estremeceu ao pensar no fogo do Inferno.

 

O maître os conduziu à discreta mesa reservada por David.

Espero que goste de Gordon Ramsay — disse o jornalista, puxan­do a cadeira para sua convidada sentar-se.

Acho que vou te decepcionar. Nunca assisti aos seus programas — resignou-se Mary.

Deixe-me adivinhar seus pratos favoritos: pizza, cachorro-quente, pipoca. Cheesecake de sobremesa.

Prefiro os doces com chocolate.

Tem alergia a alguma coisa?

Não. Pode sugerir o prato.

Dois Menu Prestige com vinho, por favor — pediu ao garçom.

Agora me explique o que vou comer. Não gosto muito de surpresas.

O Menu Prestige é um passeio pela cozinha do chef. Vamos provar vários pratos em pequenas porções e elas serão harmonizadas com vinhos sugeridos pelo sommelier do restaurante. A primeira entrada é o sautéed foie gras. Para beber, o sauternes Château de Fargues 2001, produzido em Bordeaux.

—Você está falando inglês? — indagou Mary.

Para comer, uma composição com fígado de ganso. É um prato bem untuoso. O sauternes é um vinho mais denso do que você deve estar acostumada e que combina com a textura do prato. Por outro lado, sua doçura contrasta com o salgado, criando um casamento perfeito na boca — explicou com um sorriso de satisfação.

Esse mesmo vinho serve para os outros pratos? — Mary fingiu interesse.

Absolutamente, não. Cada prato tem sua personalidade. O mesmo acontece com o vinho. Eles precisam estar em sintonia. A harmonização à mesa é muito parecida com os relacionamentos humanos. Imagine um namoro entre a Carol e o Paul — disse David, rindo da própria comparação.

Não daria certo. Dizem que ele é gay. Agora, entre a Carol e você, consigo imaginar... — insinuou Mary.

—Você já deve saber que nós dois saímos algumas vezes.

Por que não deu certo?

Não existem vinhos ideais para acompanhar pratos complexos. Apenas aproximações. Algumas tentativas são mais bem-sucedidas do que outras.

Acho que entendi. Ela não era bem seu estilo de vinho.

Quase isso — esquivou-se. Não estava disposto a expor para a assistente sua vida íntima com a editora de moda.

Nessa sua explicação esquisita, não existe lugar para almas gêmeas?

Existem casamentos perfeitos. Foie gras com sauternes é um exem­plo que você está prestes a experimentar. Ostras com champanhe também.

—Você já encontrou seu par perfeito?

Mary foi direto ao ponto, encarando David nos olhos. Ele abaixou a cabeça. Suspirou. Estava visivelmente consternado. Nem notou que alguém se aproximara da mesa.

 

Com uma dor aguda na panturrilha esquerda, Andrew estacionou o carro. Conferiu o mapa no computador de bordo: Covent Garden. Um líquido viscoso roçava sua pele. Levantou a barra da calça encharcada. Avaliou com frieza a carne dilacerada. O corte era profundo.

Precisava ser suturado imediatamente. Não podia se registrar em nenhum pronto-socorro. Era uma das desvantagens de viver nas sombras, sem identidade. Para emergências médicas, deveria acionar o cirurgião Patrick Woodward, membro da ordem. Não solicitava seus serviços há pouco mais de dois anos, quando fora atacado por uma mulher e sofrerá uma perfuração no abdômen. Desejou que o americano tivesse o mes­mo destino daquela jovem. Ser eviscerado vivo. Checou o relógio. Não sobraria tempo para o doutor Woodward. Precisava improvisar. Apanhou no porta-luvas um pedaço de estopa e o amarrou com força em volta do ferimento. Uma chamada no celular. "O que esse imbecil quer comigo?", pensou, atendendo a ligação.

Cadê você? — perguntou o conde de Bedford.

Em Covent Garden.

Espero que o padre não nos importune mais.

Lembra-se do americano que colocou uma escuta na mesa do padre e do jornalista? — indagou Andrew.

— Vagamente.

Ele estava na igreja durante o encontro.

Alguma atitude suspeita?

Ele surgiu no quarto do padre e tentou defendê-lo.

Conseguiu?

Também apanhou. Mas conseguiu enfiar um canivete na minha perna — respondeu Andrew, sem disfarçar a raiva na voz.

Isso é problema seu. Se esse americano continuar no nosso cami­nho, será problema meu. Suma com ele.

Ok — respondeu Andrew, com os punhos cerrados. "Esse sujeito arrogante não perde por esperar." Desligou o telefone. Quatro adoles­centes deixavam o Rock Garden, a poucos metros dali. A banda tinha checado os equipamentos e pretendia jantar um sanduíche antes do show.

Aposto que um produtor vai estar na platéia — disse um deles.

E amanhã a gente recebe o convite para gravar um CD — comen­tou outro.

A gente vai explodir.Vai encher de gatinha no nosso pé - previu Philip, um adolescente alto e esguio, cabelo loiro e liso cobrindo as ore­lhas. — Mas tudo isso vocês devem a mim.

—Ao seu pai, cara. Se ele não fosse importante, a gente nem tava aqui.

É verdade. A gente faz um brinde com o velho. Ele prometeu que viria.

Olha só. O cara tá sangrando — um dos adolescentes mostrou com a cabeça o homem que mancava na direção contrária.

—Vocês podem me ajudar? — pediu o estranho.

O que aconteceu? - perguntou Philip.

Fui atacado por um cachorro. Preciso de um pronto-socorro.

—Vou pedir um táxi — adiantou-se um deles.

— Meu carro está aqui perto. Ficaria grato se me ajudassem a chegar até lá.

Como você vai dirigir com a perna desse jeito? A gente vai tocar daqui a pouco... — explicava Philip.

Só preciso pegar meus documentos no porta-luvas — insistiu o estranho.

"Ajude esse homem, Philip." Aquela mensagem invadiu seu pensamen­to como uma ordem. E vinha acompanhada por um mau pressentimento. O show fracassaria se ele não obedecesse à voz de sua "consciência".

Deixem comigo. Encontro vocês daqui a pouco — disse o gui­tarrista aos colegas. - Apoie seu braço no meu ombro — dirigiu-se ao desconhecido.

Muito obrigado. Está cada vez mais difícil encontrar pessoas so­lidárias em Londres.

—Vai ficar tudo bem, cara. Não se preocupe.

Meu carro é esse aqui - disse, apontando para um Mercedes cinza e desativando o alarme no controle remoto. - Está doendo muito. Acho que não consigo abaixar.Você pode pegar minha carteira no porta-luvas?

Sem problemas — consentiu Philip, abrindo a porta do carro e abaixando-se para vasculhar o porta-luvas - Não estou encontrando...

Claro, ela está no meu bolso — retrucou Andrew, tocando em suas costas.

No mesmo instante, Philip soube que fora enganado. Tentou se le­vantar, mas sentiu o corpo sem energia. E tombou no banco do passageiro.

 

As lágrimas escorreram assim que David girou o vinho na taça de cristal. Após observá-las atentamente, levou a borda ao nariz, fechou os olhos e inspirou, tentando apreender os aromas da bebida. Um sorriso sutil antes de passar o vinho pelo paladar. Entornou uma quantidade pequena na boca e a chacoalhou, da mesma maneira que utilizava o antisséptico bucal após escovar os dentes. Mary abaixou a cabeça, tentando segurar a risada.

Está bom — o jornalista disse ao sommelier.

Conte para mim a piada. Também quero rir — David reiniciou o diálogo, interrompido assim que o vinho chegou à mesa.

—Você bochechou o vinho. Isso é muito engraçado — entregou sua assistente, antes de saborear um pedaço do foie gras.

A língua é dividida em várias partes. Para degustar um vinho, você precisa fazê-lo passear por todo o paladar. Uma agulhada nas laterais, por exemplo, indica sua acidez. Tente fazer isso.

É melhor não.

—Vamos. Coragem.

Ela colocou um pouco de vinho na boca. Chacoalhou. Caiu na gar­galhada antes de conseguir engolir, aspergindo a bebida sobre a mesa. Foi a vez de David achar graça na situação.

Desculpe — ela disse sem jeito, usando o guardanapo de pano para enxugar o sauternes.

—Você perguntou se eu já encontrei meu par perfeito...

Fui indiscreta. Não precisa responder — interrompeu Mary.

Está tudo bem. Há quinze anos sofri um acidente de carro. Mi­nha namorada morreu. Eu estava apaixonado por ela, Mary. Nunca mais senti o mesmo por ninguém. Ela podia ser meu vinho ideal, sim. Mas nunca vou saber, porque ela se foi.

Há alguns meses, entrevistei uma mulher que perdeu a família em um desastre. Ela me disse: "A morte me parece algo antinatural.Você está com a pessoa amada e, poucos segundos depois, ela não está mais lá. E nunca mais vai estar" — recordou-se Mary, sentindo um aperto no peito.

Achei injusto o que aconteceu. Por isso deixei a religião de lado. Ela não aliviou minhas angústias. Ao contrário da música erudita, do vinho e... — interrompeu a frase. "Do seu sorriso", continuou em pensamento.

E do quê? — perguntou Mary, curiosa, aproximando o corpo da mesa e encarando David.

Deixe para lá. Me fale um pouco sobre você. Existem jornais excelentes no seu país, por que veio estagiar em um tabloide inglês? — esquivou-se seu chefe, pegando um pedaço de foie gras.

Meu pai queria que eu fosse jurista. Nunca gostei de direito, David, mas resolvi tirar a prova e fiz algumas disciplinas em Harvard. A única coisa boa da faculdade foi uma amiga que me convenceu a aban­donar o curso e a seguir minha vocação.

Temos algo em comum. Também contrariei meu pai e acabei no jornalismo.

O que ele queria que você fizesse?

Queria que eu representasse os interesses da Grã-Bretanha no exterior.

Ele é diplomata?

Banqueiro e presidente da Chatham House — respondeu David, desviando os olhos para a taça de vinho.

A Carol me disse que vocês não conversam.

Vejo que vocês fofocaram bastante sobre mim — comentou o jornalista, consternado.

Respondendo sua pergunta, trabalhar em Londres não foi exa­tamente uma escolha. Fugi para cá, David. Se continuasse nos Estados Unidos, não conseguiria emprego em lugar nenhum. Meu pai é pode­roso. E vingativo — revelou Mary, encarando-o e arrastando seu olhar de volta para ela.

Há uns dois anos, você deve ter acompanhado a onda de assassi­natos violentos em Londres — disse David.

Claro. Me lembro até das manchetes: "A volta de Jack, O Estripador", "O Estripador de Londres ataca de novo"...

Investiguei os crimes a fundo e emplaquei matérias exclusivas. Foi por causa de uma delas que meu pai deixou de falar comigo — expli­cou David, girando a taça e levando-a à boca.

Como assim?

Eu defendia que os assassinatos não eram cometidos por um serial killer isolado. Eram planejados por uma seita satânica poderosa. Consegui a lista dos nomes de seus membros. Havia desde industriais até políticos da Câmara dos Lordes. Recebi carta branca do diretor do jornal para publicar o furo.

E o maníaco que confessou os crimes? — inquiriu Mary, tomando um gole de vinho.

Apareceu no dia seguinte. O estrago já estava feito.Vários amigos de meu pai foram atingidos pelo escândalo. Ele exigiu que eu me retra­tasse publicamente para remediar o erro.

Por que não fez isso?

Porque acreditava que minha versão estava correta. E ainda acre­dito, Mary.

O próximo acorde do Menu Prestige chegava à mesa: ravióli de lagosta. O sommelier trazia o consorte: "Y" d'Yquem 1985.

 

O chute fora forte. A mão direita estava inchada e bem dolorida. Mas seu adversário saíra da luta pior do que ele - sem conseguir eliminar seu alvo, com um corte profundo na panturrilha e o melhor: entregara o padre de bandeja em suas mãos. Agora que tinha o consentimento de Pietro, poderia manipulá-lo da maneira mais conveniente. Montaria guarda na porta do quarto do Hospital Chelsea and Westminster até que ele recebesse alta. Conhecia várias histórias de queima de arquivo em hospitais. Não poderia arriscar seu pescoço mais uma vez. Ainda mais que seu inimigo agia de maneira estranha. Ou ele tinha uma agilidade incomum, ou era capaz de retardar o tempo. Também parecia imune à dor. Assim que recebera a missão, o senador Bundy o advertira de que talvez enfrentasse pessoas com poderes paranormais. "Contra eles, nossas armas sempre falham. Se você se deparar com um desses feiticeiros, use isso", orientara o político, entregando a Michael uma corrente com um medalhão de bronze, explicando:"Isso tem o poder de anular magia ne­gra". Não acreditava naquela bobagem. Mas, ressabiado que era, levara o objeto em sua bagagem. Quando chegasse a seu QG, colocaria o estranho medalhão em torno do pescoço e não o tiraria até completar a missão. Mal havia tomado a decisão, uma enfermeira passou por ele, roupa justa, peitos fartos, cabelo loiro na altura dos ombros, lábios carnudos. "Que gostosa", pensava, observando-a se afastar. Ela virou-se e o flagrou ad­mirando suas curvas. Sorriu com os olhos. "Nem essa enfermeira vai conseguir me tirar daqui. Nunca pensei que fosse trocar uma mulher por um padre", riu da situação. Lembrou-se de seu outro protegido. Rastreou David pelo tablet. O carro estava estacionado em Chelsea. O celular vi­brou no bolso da calça.

Cuspiram na hóstia - adiantou-se Michael ao atender a ligação.

Quem cometeu o sacrilégio? - perguntou Bundy, na outra ponta da linha.

Um feiticeiro. Pensei que isso fosse apenas uma brincadeira.

Uma brincadeira que poderia ter te queimado! Você estava com o escudo? — inquiriu o senador.

Ele saiu derrotado - despistou Michael.

Qual será o próximo passo?

Amanhã, ele jogará a batina.

Parabéns! Coloque-o próximo ao templo da deusa.

A reserva já foi feita.

Já posso sentir o cheiro da Operação Luxúria. Mais uma coisa: o padre não pode perder o contato com sua alma gêmea — instruiu Bundy.

Entendido. Serei o cupido. Até logo.

Michael desligou o celular com o cenho franzido. Ele e o senador haviam combinado alguns códigos antes da viagem. "Hóstia" e "santuá­rio" eram referências explícitas ao padre Pietro Amorth. O inimigo com poderes psíquicos era Andrew, o feiticeiro. Mas isso era apenas a descrição cifrada dos últimos acontecimentos. Ele estava preocupado com o que estava por vir: Operação Luxúria e deusa. A enfermeira loira vinha agora na direção oposta. Sorriu ao passar por ele e parou a poucos metros.

Aposto que você está olhando para a minha bunda — ela o pro­vocou com uma voz rouca, virando-se lentamente. Lábios entreabertos com um quase sorriso. Sedutora.

Alguém consegue não olhar?

Posso mostrar mais do que isso.

Estarei aqui a noite inteira - respondeu Michael.

Meu turno acaba em meia hora - revelou a enfermeira, prosse- guindo seu caminho com um rebolado insinuante. Para ele, era um convite irrecusável. As mesmas palavras que há poucos minutos eram sinais de missão bem-sucedida poderiam arruiná-lo nas próximas horas: deusa e luxúria.

 

O jornalista repetiu o ritual de degustação com o "Y" d'Yquem. Nessa segunda vez, Mary prestou atenção na maneira como ele mergu­lhava com os sentidos — e a alma — naquela taça. Por um breve instante, o tempo se tornava eterno e tudo à sua volta perdia importância: a morte de Susan, a briga com o pai, o naufrágio profissional.

— Já falei mais sobre mim do que gostaria. É a sua vez — disse David, assim que voltou do transe báquico.

Antes queria saber mais sobre sua versão para aqueles crimes bárbaros. A que chegou até mim pareceu bem convincente. Assisti até a uma entrevista com um agente do FBI explicando a mente e o modo de agir do Estripador de Londres — Mary queria retomar o assunto anterior à interrupção do garçom e do sommelier.

Quando vínhamos para cá, você defendeu os vários lados da história. O dos vencedores sempre prevalece. E, com o passar dos séculos, a verdade se torna irrelevante. Por exemplo: você sabe quem foi Alberto Santos-Dumont?

Nunca ouvi falar.

Era um brasileiro que o mundo aclamou como o verdadeiro inven­tor do avião — explicou o jornalista, antes de saborear o ravióli de lagosta.

Deixa disso, David. Todo mundo sabe que os inventores foram os irmãos Wright.

Pode ser isso mesmo. Mas talvez essa idéia seja resultado do marketing americano. Os poderosos escrevem a história. É uma mentira repetida milhares de vezes se torna real. Percebe como a verdade se torna irrelevante? — rebateu David, levando a borda da taça ao nariz.

Existem fotos e testemunhas dos primeiros vôos dos irmãos Wright...

O primeiro voo homologado da história de um mais-pesado-que-o-ar, ou seja, avião, aconteceu em Paris, não nos Estados Unidos. Ele foi acompanhado por uma equipe técnica qualificada. Não por pessoas sem nenhuma credibilidade — retrucou, tomando um gole do vinho branco.

Para mim, os irmãos Wright continuam sendo os pais do avião.

Para você e para quase todo mundo. Para mim, Mary, o avião foi criado por um brasileiro, e o Estripador de Londres não passa de uma fábula.

Por que pessoas poderosas arriscariam a reputação a troco de crimes gratuitos? — indagou a americana, pegando a taça de vinho.

Você mesma já deu a resposta na primeira vez que discutimos religião. Para aqueles psicopatas, o sacrifício humano é uma moeda de troca. Eles acreditam que serão bem recompensados se fizerem a vontade do diabo. Ou Deus, se preferir o outro lado. É uma fé legítima? Para mim, Mary, isso é uma depravação moral - argumentou, observando-a dar um largo gole na bebida.

É mais confortável pensar na existência de um maníaco irracio­nal por trás daquelas crueldades do que pessoas esclarecidas. Não imagino lordes ingleses... — dizia, até ser interrompida.

Meu pai tentou esse argumento. Mas ele é uma falácia.Você co­nhece história. E só fazer um paralelo simples. No regime nazista, pessoas comuns se tornaram assassinas.Todo mundo tem um lado sombrio, Mary. E um líder perverso é capaz de transformar "pessoas esclarecidas" em "bestas sanguinárias".

—Você descobriu o líder da seita? — indagou a repórter, devorando um ravióli.

Ele é chamado de Duque Negro. Mas nunca soube sua identidade.

E desistiu de procurar?

Levei um tombo e precisei reiniciar minha carreira. Confesso que nos últimos meses quase nem pensava mais nisso. Até que uma pessoa, que me ajudou muito nas investigações, ressurgiu em minha vida.

Deixe-me adivinhar: ele usa batina? — perguntou Mary, com um sorriso triunfante.

Por que está tão interessada nesse assunto? - inquiriu David, olhar desconfiado.

Porque quero saber mais sobre você.

Então vou revelar algo fundamental a meu respeito, Mary. O próximo prato é um dos meus favoritos do Gordon Ramsay.

Isso deve ser o que chamam de refinado humor britânico. Mas a do brasileiro que inventou o avião foi insuperável.

Pergunte sobre Santos-Dumont para sua amiga Fernanda.

Por falar nela, tenho uma surpresa.

Qual?

Vamos esperar o próximo vinho. Quero brindar a isso com ele — respondeu a jovem americana. David sorriu. Sua assistente era bas­tante curiosa e, quase sempre, indiscreta. Intrometia-se em sua vida sem nenhum constrangimento. Qualidade excepcional para uma repórter de tablóide, mas delicada em outros veículos. Ela também era observadora, tinha raciocínio rápido e olhar crítico. Além de uma agenda de telefones de causar inveja à experiente Carolyn. "Ela escolheu a profissão certa. Pena seu pai não ter enxergado isso", concluiu David.

 

Michael conferiu o horário pelo relógio de parede do corredor. Desde que fora provocado pela enfermeira, há cerca de quarenta minu­tos, não percebera nenhum movimento suspeito naquela ala do hospital. O padre estava bem sonolento durante a conversa. Efeito de analgésicos. Provavelmente dormiria até os exames do dia seguinte. Era só esperar aquela deusa surgir diante dele e arrastá-la para uma sala isolada. "Estou quase realizando minha fantasia de transar com uma enfermeira. E das melhores", pensou, com um sorriso malicioso. Desde que convencera a colega a se despir na sacristia da igreja, ele ficava excitado em situações de risco, quando havia o perigo de ser flagrado e, eventualmente, punido. Esse fetiche o levou a algumas loucuras. Aos catorze anos, convencera a menina mais bonita da sala a fazer sexo oral na biblioteca. Aos dezesseis, transara com a professora de matemática no banheiro da escola. Em seu currículo, já transara com uma aeromoça no aperto do banheiro do avião, em plena turbulência, deixara a dentista de quatro na cadeira do consul­tório, com a sala de espera lotada, chupara a esposa de um ex-chefe na sala da diretoria... Mas nunca conhecera uma enfermeira na intimidade. Distraiu-se pensando nos atributos daquela mulher.

—Vejo que continua me esperando - a voz rouca o surpreendeu.

Esperaria até amanhã — respondeu Michael.

Me siga. Mas fique um pouco atrás para não chamar a atenção. Estou toda molhada.

Mesmo excitado com aquela frase e hipnotizado com o rebolado sensual, forçou-se a prestar atenção no caminho. Estava a serviço e pre­cisava voltar à vigilância na porta do quarto o mais rápido possível. Duas rampas, três lances de escada e várias curvas levaram-no ao depósito. Ao menos era o que indicava o letreiro na porta. A enfermeira tirou a chave do bolso e destrancou a sala. Michael calculou oito metros quadrados. Sete prateleiras carregadas de suprimentos cobriam as paredes.

—Venha, me coma — ela ordenou, virando-se de costas e ficando de quatro na cama cirúrgica, encostada em caixas de medicamentos e rolos de bandagem. Michael notou uma serpente tatuada em seu pes­coço. Certamente seu protegido de batina diria que era um símbolo do demônio. "Bobagem", pensou, levantando a saia e descobrindo que ela estava sem roupa íntima. Suspirou. Abaixou as calças e admirou as cur­vas perfeitas daquele traseiro por alguns segundos, antes de penetrá-lo com força. No mesmo instante em que a enfermeira tinha o primeiro orgasmo, a poucos metros dali o padre Pietro sentia uma alfinetada aguda no lado esquerdo da cabeça. E pressentia que não estava sozinho no quarto.

 

No tilintar das taças com o Condrieu "Les Grandes Chailleé" 2008, David ansiava pela novidade. Mas, antes de anunciá-la, Mary fez uma provocação:

É assim que você faz suas vítimas?

Não entendi.

As mulheres costumam ficar bêbadas na primeira taça de vinho — explicou a americana, com um sorriso malicioso. — Essa já é a minha terceira.

Devo estar perdendo você para Baco — brincou David.

Consegui uma exclusiva com a Fernanda para você — revelou Mary.

Está brincando? — disparou, com os olhos brilhando de excitação.

É sério. Adivinhe onde vai ser?

— Não me mate aos pouquinhos.

Na suíte dela no Mandarin Oriental. No dia seguinte ao da coletiva.

Isso merece mais do que um brinde com esse vinho - disse David, consultando a carta de vinhos.

Gostei deste vinho.Você tem alguma coisa contra ele?

Quero que você tome o melhor vinho de sua vida — respondeu seu chefe. - Uau! Eles têm o Pétrus 1947. Dizem que ele é capaz de abrir as portas do céu.

Prefiro abri-las em outra ocasião. Mas com a mesma companhia - retrucou Mary, sorriso nos olhos.

Me avise quando esse momento chegar. Tenho um na minha adega.

David estava encantado com sua assistente. Naquele momento, o tempo parecia eterno, e todas as preocupações tornaram-se irrelevantes. Era como se estivesse degustando um Pétrus 1947, que quase pediu ao sommelier para comemorar a exclusiva com a top model brasileira. Mas até aquele rótulo perdia importância diante do sorriso de Mary.

Gostei do foie gras e do ravióli. Que venha a sobremesa - ela quebrou o silêncio.

Temos mais dois pratos antes dela.

Pensei que tivesse sido convidada para um jantar. Não para uma maratona gastronômica.

Espero que não queira desistir antes de ultrapassar a linha de chegada — rebateu David, reconduzindo a conversa — Na matéria que você escreveu hoje, fiquei impressionado com seu conhecimento sobre religiões. E a maneira apaixonada com que discute o assunto me faz concluir que, para você, ele é mais do que uma curiosidade intelectual. Estou certo?

Finalmente vai me dar espaço para falar sobre isso? — retrucou a americana, com um sorriso discreto no canto dos lábios.

Fique à vontade.

Sou uma bruxa — revelou Mary, encarando seriamente o interlo­cutor, na expectativa de sua reação.

Por isso estou enfeitiçado por você? - indagou David, girando a taça de vinho.

É sério. Minhas tataravós eram bruxas. Ainda bem que consegui­ram sobreviver. Senão, eu não estaria aqui enfeitiçando você — explicou, sorrindo com malícia.

Por isso não gosta de padres?

A inquisição católica foi um dos maiores crimes...

Depende do lado em que você esteja — interrompeu David.

Estou do lado oposto.

Acho que ficaria assustado se visse o altar da sua casa — brincou o jornalista.

Se quer saber, meu deus tem chifres, como o diabo.

—Você faz parte de alguma seita satânica? — perguntou, incrédulo.

Minha religião é anterior ao cristianismo, David. Milênios atrás, chifre era sinal de divindade. Na Babilônia, por exemplo, quanto mais chifres, mais poderoso era o deus. A Igreja Católica transformou deuses em diabo para acabar com o culto das bruxas na Europa Ocidental — ar­gumentou Mary.

Interessante...

Os satanistas não passam de um subproduto da igreja porque cultuam uma aberração criada por ela. Quando sacrificam pessoas em seu altar, não estão adorando o deus verdadeiro, mas um ídolo falso.

Bem antes do catolicismo, David, o deus de chifres, ou conífero, era sím­bolo da vida, da sexualidade, do êxtase e da liberdade. Não exigia a morte de ninguém - prosseguiu sua assistente.

David girou a taça de vinho no ar. Antes de levá-lo à boca, olhou para Mary, sorriu e disse:

— Nunca tinha prestado atenção em um detalhe. O deus do vinho tem chifres.

 

O padre tentou se levantar da cama do hospital. Mas não conseguia mexer os braços e as pernas. Concluiu que estava imobilizado. Diante dele, um homem na penumbra levantou os dois braços e se aproximou do leito. Desde que chegara à zona de desembarque internacional, no Heathrow, aquele rosto não o deixava em paz. Primeiro pertencia ao motorista mal-humorado que andava apressado e se recusava a conversar. Logo depois, aqueles mesmos olhos o vigiavam no chá da tarde com Da­vid. Eles também se escondiam atrás de óculos escuros no encontro com o jornalista no Brompton Oratory. Foram aqueles lábios pecaminosos que desafiaram Jesus Cristo em seu quarto, enquanto ele era surrado impiedosamente abaixo do crucifixo de madeira. Naquele quarto de hos­pital, o mesmo rosto sorria com sadismo. Pietro tentou gritar. A voz não saía. Desesperou-se diante de sua impotência. "Meu Deus, me ajude", rezou em pensamento, tentando se tranqüilizar.

Injetei uma droga em seu corpo. Você não consegue se mexer nem gritar. Mas ficará consciente o tempo todo — disse Andrew, retirando a co­bertura de uma mesa metálica, ao lado da cama. —Talvez sinta até menos dor.

Lágrimas saíram dos olhos do padre ao vislumbrar o arsenal às mãos daquele servo do diabo: serrotes, bisturis, martelos, foices.

Não se preocupe. Seguirei as palavras de seu mestre. Você deve conhecer o sermão da montanha de cor. Gosto dessa passagem: "Se teu olho direito te leva à queda, arranca-o e joga para longe de ti. De fato, é melhor perderdes um de teus membros do que todo corpo ser lançado ao inferno" — recitou Andrew, deslizando o dedo da mão direita sobre a lâmina serrilhada. — O demônio me contou seus segredos, padre. E, por ironia, serei o instrumento divino para que você entre no Paraíso. Nem que não seja inteiro.

Pietro sentiu dor no peito. O suor atravessava seu rosto. As mãos e as pernas tremiam. Tentou gritar novamente. Um som abafado emergiu de sua garganta. Quase inaudível. Seu algoz apoiou a lâmina do serrote maior em seu punho direito, imobilizado.

Essa mesma mão, padre, que abençoa as pessoas e consagra o corpo e o sangue de Cristo, também apunhalou alguém até a morte. É imunda. É melhor arrancá-la fora. Com um olhar perverso, cortou lentamente a mão de Pietro. O sangue jorrou. Em seguida, pegou o membro e atirou-o ao lixo.

Ainda é cedo para morrer de hemorragia — continuou Andrew, cauterizando o local da amputação. - Você tem muitos pecados, padre. Para salvá-lo, ainda tenho muito serviço pela frente. Você sabe que, no Jardim do Éden, o fruto proibido não era uma maçã? Era a boceta de Eva. Sempre achei engraçada a história do pecado original. Bilhões e bilhões de pessoas pagando o preço de uma única foda. A foda original — disse Andrew, pegando um instrumento que parecia uma foice.

"Meu Deus, me leve com você", chorava Pietro. "Não mereço o martírio." Sua calça foi abaixada até a altura do joelho.

—Você quase não aguentou o tesão quando a puta abriu as pernas. Ficou com vontade de pagar cem libras para foder aquela vadia, não é verdade? Você precisa ser mais fiel aos ensinamentos de seu mestre.Vou transformá-lo em um eunuco.Vai virar um anjinho, padre — provocou-lhe, segurando com força seu pênis e arrancando-o em um só golpe, rápido e certeiro. - Esse instrumento do pecado vai para o lixo, junta­mente com sua mão.

A cabeça rodopiou. Tudo ficou escuro. Por frações de segundo, Pietro sentiu que estava desmaiando. Ao voltar a si, deparou-se com um bisturi a poucos milímetros de seu olho direito. Gemeu.

Chegou minha parte preferida.Vamos arrancar isso aqui e jogá-lo para longe. Assim, você não vai mais precisar desviar ou fechar os olhos sempre que uma mulher gostosa passar perto de você. Ou abrir as pernas na sua frente — gargalhou Andrew.

Aterrorizado, o padre tentava lhe dizer algo. Mas a frase não saía.

— Já sei que não tem mais pinto. Mas o tesão continua. Você já percebeu que a visão é o sentido preferido do diabo. Por essas janelinhas malditas, quase todas as almas se perdem.Vamos arrancar o mal pela raiz.

Pietro sentiu uma agulhada no lado esquerdo da cabeça. E berrou. Dessa vez o grito saiu. Uma luz explodiu em seus olhos. Havia mais al­guém no quarto.

 

As duas sobremesas foram, para Mary, a melhor parte do Menu Prestige. E compensaram o pecado da gula.

Essa é divina! - comentou Mary ao saborear o creme brûlée.

Após algumas confissões e a revelação de que sua assistente era uma bruxa, o jornalista julgara melhor mudar o tom da conversa. E os dois terminaram o menu degustação discutindo blues. Não era o estilo musi­cal favorito de David. Ele gostava de música erudita. Apesar de conhecer vários intérpretes, Mary curtia mais outros estilos. Seu iPod estava repleto das canções de The Doors, Pink Floyd, Led Zeppelin.

Assim que David estacionou o carro, em Chelsea, a canção "Angel of the Morning", na voz de Nina Simone, começou a tocar.

Não acredito! Não ouço essa música há tanto tempo... Adoro a voz dessa mulher. Adoro essa letra. Você vai ter que me agüentar até o fim - disse Mary, iniciando um dueto com a cantora.

Isso não vai ser difícil — David consentiu. "Ela é encantadora", pensava, observando-a cantar.

"Apenas me chame de anjo da manhã. Apenas toque em minha face antes de me deixar, baby". No fim da música, ela virou-se para ele:

—Você me acompanha até a porta de casa?

— Não deixaria você ir até lá sozinha — respondeu-lhe, apanhando a bengala atrás de seu banco.

—Você só usa isso para parecer mais elegante — insinuou a americana.

— Ela se tornou minha companheira inseparável desde o aciden­te de carro.

Nunca esquecerei esse dia. Meu primeiro menu degustação — ela mudou o rumo da conversa.

— Também não. Foi a primeira vez que jantei com uma bruxa — respondeu David, olhando para ela. — E não senti medo.

E foi a primeira vez que não precisei beijar o sapo. O príncipe chegou prontinho — disse Mary, já à porta de casa. Aproximou-se de David com a boca entreaberta. Olhos maliciosos. Um suspiro. Ele passou o braço direito por trás de sua cintura e a trouxe para mais perto, unindo os corpos. Sentiu os seios excitados de Mary por trás da blusa. Os dois mamilos enrijecidos tocavam sua camisa e queriam arranhar sua pele. "Um feitiço irresistível", pensou, segundos antes de beijá-la. Mary per­cebeu que David a desejava sexualmente. Afastou-se um pouco. E sorriu.

Sempre quis conhecer a casa de George Eliot... — insinuou seu chefe.

Adoraria que você entrasse... Mas infelizmente tenho um encon­tro com Mary Ann.Vamos conversar sobre o Middlemarch — esquivou-se.

Um dos maiores romances do século XIX. Gostaria de participar desse colóquio literário - insistiu David.

Sinto muito, mas é só para mulheres - ela despediu-se com um sorriso no rosto. Entrou em casa e fechou a porta.

Mary sabia surpreendê-lo. Aquele beijo lhe parecera um convi­te para terminar a noite em sua cama. Mas ela o dispensara com uma provocação bem-humorada. A frustração por não ter transado com sua assistente o acompanhou até o carro. Olhou mais uma vez para a porta da casa da escritora, na esperança de que Mary mudasse de idéia. Continuava fechada. Inesperadamente, foi atingido por uma sensação avassaladora de alegria. Assim que dobrou a esquina, pensou no padre. Apanhou o celular. O aparelho não marcava nenhuma chamada perdida. Apesar do horário, resolveu ligar para Pietro. Caixa postal.

 

Ele tentou se esticar. Os pés tocaram em barras de metal. O lugar parecia apertado. "Que dor de cabeça", pensou, abrindo os olhos. Escu­ridão. Aos poucos, os objetos começaram a ganhar contornos. Uma mesa, um notebook, um frigobar, um armário de madeira mais distante. Percebeu um homem deitado em um sofá a poucos metros de distância. Conferiu o horário no relógio de pulso. Eram quase três da manhã. "Merda, perdi o show", disse Philip, lembrando-se do momento em que procurava, no porta-luvas do carro, a carteira do homem ferido. Desde então, tudo se apagara. "Fui seqüestrado", concluiu, com os batimentos cardíacos acelerando. "O que esse babaca quer comigo?". Ficou com medo ao avaliar as possibilidades. Seu raptor podia ser um maníaco sexual ou um assassino cruel. "Preciso ter a cabeça fria. Talvez ele queira apenas extorquir meu pai." Avaliou sua cela. Era um engradado com uma área de cerca de dois metros quadrados. A altura parecia inferior a um metro e meio. Não conseguiria ficar em pé. Deitado, segurou em duas barras laterais de ferro e forçou-as para fora. Eram maciças e estavam bem fixadas nas placas que serviam de teto e chão, forrado por uma borracha espessa. A porta tinha duas trancas numéricas. Cada uma com quatro números. Além dele, não havia mais nada dentro da minúscula solitária. E nenhum objeto que pudesse lhe servir de arma estava ao alcance de suas mãos. "Estou ferrado", deduziu, no limiar do desespero.

—Vou te dar uma chance — surpreendeu-o Andrew, levantando-se e acendendo a luz. — Se acertar os números dos cadeados, está livre. Pode ir embora. Se errar, vamos fazer uma brincadeira.

—Você é maluco. Isso é como jogar na loteria — retrucou Philip.

Às vezes, você é um cara de sorte.

Nenhuma dica? — o adolescente implorou com os olhos.

Qual foi a melhor banda inglesa de todos os tempos? — pergun­tou Andrew.

Os Beatles - respondeu sem pestanejar.

Eles eram mais famosos do que Jesus Cristo. Mas não foram os melhores.

—Você deve gostar de Led Zeppelin - insinuou Philip.

Começo a gostar de você.

Então me deixe sair daqui, por favor.

Não seja um fraco. Já descobriu o caminho. Quem sabe essa mú­sica não inspire você — disse Andrew, ligando o som.

Enquanto a música "Celebration Day" tocava, os dedos suados de Philip deslizavam pelos botões. No cadeado que estava acima, alinhou os números um, zero, dois, cinco. Era a combinação do mês e do dia em que o grupo de rock fez sua primeira apresentação, na Universidade de Surrey. Ouviu um estalo. Sorriu. Tinha passado pelo primeiro obstáculo. O show inaugural ocorrera em 1968. Usou essa combinação na tentativa de destravar o segundo cadeado. Nada. Continuava preso.

—Você me enganou — desesperou-se.

Era só pensar um pouco mais. A música que está tocando foi gravada em 1970. Tente mais uma vez.

O adolescente obedeceu. Um estalo. Passara pelo segundo e último obstáculo. Era só abrir a porta e enfrentar o inimigo. Com a perna ferida, ele estava em desvantagem. Empurrou a grade. Uma gargalhada sonora.

— Você ainda não aprendeu que não se pode confiar em estranhos, garoto — alfinetou Andrew, ostentando um sorriso sádico.

Seu filho da puta, você me enganou! - berrou Philip, com pavor e ira.

O que você faz na banda?

Não interessa. O que quer comigo? — o adolescente voltou à carga.

"Estou tão feliz. Vou me juntar à banda" — Andrew cantou um trecho de "Celebration Day", que se repetia pela terceira vez.

Sou o guitarrista — respondeu Philip, assustado com a performance musical de seu carcereiro.

Não disse que você é um cara de sorte? Se fosse o vocalista, teria que cortar sua língua. Acho que sua mão direita não fará tanta falta.

— Você está louco! — berrou o adolescente. Terror estampado no rosto.

— Começarei com o dedinho. Mas não me culpe se o seu pai não entender o recado.

Andrew foi até o frigobar e pegou duas latas de cerveja.

 

O dia fora exaustivo. Mas David não conseguiria dormir tão cedo. Preparou o cachimbo e sentou-se na poltrona diante da lareira. "Deus com chifres", pensou, com um sorriso no rosto. "O padre não engoliria essa." Pegou o controle remoto e ligou o som. Preferia ouvir jazz e blues e ficar pensando em Mary. Mas precisava se concentrar em outro assunto. Selecionou A Arte da Fuga — Contrapunctus IV, de Bach. Folheou o bloco de notas, com transcrições de sua última conversa com o padre. Pietro lhe dissera que o conselheiro real John Dee e seu assistente receberam revelações demoníacas em uma linguagem cifrada. Uma confraria negra, criada na época de Elizabeth I, estaria em posse de uma parte inédita de sua obra. Talvez esse segredo, guardado por séculos, fosse a chave para realizar o Apocalipse Negro, instaurando na terra um império diabólico. Mas isso poderia ser evitado se o tenente humano do inferno fosse descoberto e detido. Bastava decifrar o enigma: "A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé". Era o enredo perfeito para um romance de mistério. "Você seria um ótimo personagem de best-seller", brincara Mary, antes da reunião de pauta. Charadas demoníacas, exorcismo, seitas satânicas, mutilações. Lembrou-se das Concubinas de Satã, como batizara as cinco mulheres mortas na onda de crimes ritualísticos. Mesmo que o demônio não existisse, seus seguidores eram assassinos cruéis, capazes das piores atrocidades. "Somos parceiros nessa missão. O inimigo sabia disso antes de nos encontrarmos. Ele fará um cerco contra você. Resista, David", advertira Pietro no últi­mo encontro. Apostava que a mesma seita satânica que ele denunciara em suas matérias estava por trás dessa nova conspiração. E eles eram mestres na arte da intimidação. As suspeitas do padre podiam ser fantasiosas. Mas a ameaça era real, como a língua que ele achara na bagagem.Também havia aquele homem, estranhamente familiar, que os vigiara no Orangery e no Brompton. Com o cachimbo na mão, foi ao escritório e sentou-se diante do computador. Acessou o Google e buscou as primeiras quatro palavras da estranha mensagem que recebera em sonho: Othil lasdi babage od dorpha Gohol. Nenhuma página encontrada. Trocou aquele texto incompreensível pela última parte da charada demoníaca: Tronco de Jessé.

Árvore genealógica de Jesus Cristo? - indagou-se, surpreso, ao abrir uma das centenas de páginas acessadas. Ela se iniciava com um tre­cho de Isaías, um dos livros do Antigo Testamento: "Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé, das velhas raízes, um ramo brotará. Sobre ele há de pousar o espírito do SENHOR (...)". Segundo o texto, aquela profecia apontava para a linhagem real do Messias e fora cumprida, séculos depois, com o nascimento de Jesus Cristo. A reprodução de uma iluminura me­dieval mostrava uma árvore brotando das costas de um homem deitado, vestindo túnica régia. "Deve ser Jessé", concluiu David. Nos galhos late­rais, homens empoleirados. Duas pessoas se destacavam no desenho: Santa Maria e seu filho. "O diabo imita Deus", dissera Pietro. "Os satanistas não passam de um subproduto da igreja porque cultuam uma aberração criada por ela", afirmara Mary. Aquela bruxa encantadora tinha razão. O padre também. "Os discípulos do demônio precisam do cristianismo para legitimar suas crenças. É natural que reeditem as mesmas profecias para provar que escolheram o melhor lado. Seriam vencedores se con­seguissem dirigir o fim da história, o Apocalipse", deduziu David. Fitou novamente o Tronco de Jessé. Teve a impressão de enxergar um diabo com focinho de raposa e chifres reinando acima dos antepassados do pa­triarca bíblico. "Estou sendo preconceituoso. Deus já teve chifres." Estava cansado. Esfregou os olhos. Jesus Cristo continuava lá. Folheou o bloco de notas em busca de informações sobre o Livro de Enoque: Os anjos, lide­rados por Samyaza, tiveram relações sexuais com as "filhas dos homens".

Esses maníacos querem imitar as profecias de Isaías. É isso, o Apo­calipse Negro começa com o nascimento do Anticristo. E John Dee deve ter planejado isso - deduziu, entre as últimas baforadas do cachimbo.

Antes de desligar o computador, enviou a Pietro a lista dos membros da seita. E escreveu um e-mail ao amigo e presidente do College of Arms, Nathan Sandford. Pedia a gentileza de receber, nos próximos dias, o padre italiano Pietro Amorth, e de auxiliá-lo em uma pesquisa heráldica. Retri­buiria esse favor com fotos de sua mulher na coluna social do The Star.

 

Eram quase sete da manhã quando uma enfermeira acendeu a luz do quarto de Pietro. O padre estava banhado em suor. Acabara de acordar do pior pesadelo de sua vida. Sorriu aliviado ao sentir que não lhe faltava nada. A mão continuava no mesmo lugar, o pênis e os olhos também. Respirou fundo. A enfermeira aproximou-se e retirou a bandagem do supercílio esquerdo.

Estou faminto — reclamou Pietro.

Infelizmente, o senhor não vai poder tomar café da manhã. Pre­cisa estar em jejum para a tomografia.

Nem um cafezinho?

Só depois do exame. Agora vou refazer o curativo.

Logo depois vou fazer esse exame, não é?

Antes vai resolver algumas questões com seu guarda-costas.

—Você deve estar brincando comigo! - Pietro elevou a voz.

Estou falando do homem que passou quase a noite toda plantado aqui na entrada — explicou a enfermeira, passando uma pomada amarela no corte suturado.

Alguém bateu à porta do quarto. E entrou imediatamente. Era Michael, carregando uma maleta de notebook. Pietro identificou-a.

Bom-dia, padre. Trouxe seu computador.

Podemos fazer isso depois da tomografia? Estou faminto.

Não temos tempo. Precisamos despistar o inimigo antes que ele resolva agir novamente — disse Michael, voltando-se para a enfermeira. — Quando terminar isso, saia.

—Já terminei — ela respondeu, deixando o quarto e fechando a porta.

—Vamos logo com isso - insistiu Pietro.

Esse pequeno espião delatou tudo o que você fez nesse computador - revelou o americano, mostrando um pequeno dispositivo inserido em uma porta USB do notebook. —Vamos usar a arma do inimigo contra ele mesmo.

O que quer que eu faça primeiro?

Compre uma passagem de volta para Roma, saindo do Heathrow no fim de tarde — orientou Michael, entregando-lhe o notebook.

Tudo bem. Isso é fácil. Vou usar meu cartão de crédito para não deixar dúvida — consentiu Pietro, conectando-se à internet pela rede wi-fi do hospital.

Pronto. Agora posso fazer o exame? — o padre indagou ao fina­lizar a operação.

Ainda não. Escreva um e-mail ao jornalista dizendo que a missão foi abortada pelo Vaticano. Diga que você tem um assunto urgente para resolver na Itália e partirá no primeiro vôo. Por isso, não poderá se des­pedir dele pessoalmente.

Quem me garante que você cumprirá sua parte no acordo?

Eu salvei sua vida. Quer garantia maior do que essa? — retru­cou Michael.

Quando você irá procurar David e esclarecer tudo?

Hoje. E amanhã, coloco vocês dois em contato direto. Sem ne­nhuma ameaça externa.

Tudo bem - concordou Pietro, abrindo o Outlook. Havia uma mensagem do jornalista, enviada há quatro horas. Tema: "Os seguidores do demônio".

Preciso checar um e-mail — informou o padre.

De quem?

De David.

Faça isso.

Me empreste um pendrive.

Por quê?

Preciso gravar o anexo.

Está aqui — Michael entregou-lhe o objeto retirado do bolso da calça — Aproveite para responder ao e-mail. Do jeito que combinamos.

O padre acenou afirmativamente com a cabeça. Assim que garantiu a gravação da lista de nomes e retirou o pendrive do notebook, clicou em reply e conferiu a mensagem escrita pelo jornalista:

 

Padre, tentei ligar algumas vezes. Fiquei preocupado com você após nosso encontro no Brompton Oratory. Espero que esteja tudo bem. Conforme combinado, segue a lista dos integrantes londrinos da­quela organização satânica... criminosa. Não discutiria a existência do demônio com um exorcista. Para mim, isso é uma questão de fé. Mas o mal que os "seguidores do diabo" causam é um fato. Nós concordamos com isso. Quando for fazer a pesquisa no College of Arms, procure por Nathan Sandford. Ele irá ajudá-lo. Gostaria de encontrá-lo amanhã para conversarmos sobre o Tronco de Jessé. O que acha de tomarmos um chá da tarde? Abraço, David.

 

O jornalista deitara-se quase às duas da manhã. Estava exausto. Ten­tara resistir, apanhando A Tempestade sobre o criado-mudo. Não passara da primeira página. Já lera o livro duas vezes e não pretendia voltar a ele tão cedo. Mas os últimos sonhos intrigaram-no. Neles, as aparições de Samyaza eram antecedidas pela leitura da peça de William Shakespeare. Durante aquele dia, lembrara-se de uma citação célebre de seu protago­nista Próspero, duque deposto de Milão e poderoso mago: "Somos feitos da mesma substância dos sonhos". Da mesma maneira que Descartes, La Fontaine e Voltaire retornaram do reino de Morfeu com idéias para suas obras, a mente adormecida de David fazia conexões misteriosas na ten­tativa de resolver enigmas diabólicos. Era até provável que ela já estivesse sintonizada na conspiração satânica antes mesmo das primeiras revelações do padre, no Orangery. E A Tempestade poderia insinuar mais do que um gosto literário. Talvez tivesse pistas. "Estou ficando previsível. Isso é clichê de best-seller contemporâneo. Mary vai ter que se contentar com outro estilo de herói", pensava, fechando o livro e deixando-o novamente so­bre a cabeceira. Os olhos ardiam. Conforto ao fechá-los. Sem que per­cebesse, tinha novamente a peça em suas mãos. O mar estava revolto. As ondas quebravam acima do casco. Relâmpagos cortavam o céu e trovões retumbavam em seus ouvidos. A embarcação não resistiu aos golpes da tempestade e naufragou. O rei de Nápoles, Alonso, seu herdeiro, Ferdinando, seu irmão, Sebastião, o duque de Milão, Antônio, e uma pequena comitiva refugiaram-se em uma ilha selvagem. David estava entre eles. A campainha soou. Submergiu de A Tempestade. Olhou no relógio: quatro da manhã. "Não estou esperando ninguém." Insistência. Lembrou-se de Mary. Correu para atender a porta. Sua intuição se confirmava. Sem dizer uma palavra, ela o abraçou. Sentiu os seios excitados roçando seu pijama. Um beijo ardente. David arrancou sua blusa e o sutiã e contornou, com a língua, as auréolas rosadas. Mary suspirava cada vez mais alto. Gemeu quando seu chefe colocou o mamilo direito entre os dentes e o mordiscou suavemente. Poucos segundos depois, ele abria os botões de sua calça jeans, abaixava a roupa íntima e mergulhava a língua em sua vagina. O corpo tremia, em uma seqüência de espasmos. Gritos de prazer. Enquan­to sentia o gosto íntimo de Mary, David notou um sinal acima do clitóris. Era uma tatuagem. Não conseguiu discernir o desenho.

—Venha... Entre em mim... Quero gozar com você... — balbuciava sua assistente, entre suspiros de prazer.

O jornalista levantou-se e a penetrou com força sobre o tapete da sala, diante da lareira. Levou um susto ao perceber que não estavam sozi­nhos. Um homem em sua poltrona preferida assistia à transa. "O que esse maldito está fazendo aqui?", pensou. Apesar do constrangimento, desejava terminar. Mais alguns movimentos e ele explodiu dentro de Mary. O voyeur levantou-se e aplaudiu fortemente:

— Bravo, David! Bravo!

Quem é você? — perguntou o jornalista, colocando-se de pé à sua frente.

Pergunta errada. Quem somos nós? Você é Samyaza e eu sou David — respondeu-lhe o intruso.

O jornalista encarou-o com espanto. Estava diante de um gêmeo idêntico. O coração acelerou. Olhou para seu reflexo no espelho acima da cristaleira. O rosto parecia deformado por um focinho de raposa. Chi­fres na cabeça. Era o mesmo diabo que tivera a impressão de enxergar reinando sobre o Tronco de Jessé. Era seu reflexo. Era o diabo. Um grito de pavor. Abriu os olhos. Estava deitado na cama. Ficou quieto por alguns segundos, olhando para cima e rememorando os detalhes do pesadelo. O despertador tocou às sete e meia.

 

Em um golpe rápido, o alicate decepara o dedo mínimo da mão direita de Philip. Nos minutos iniciais à amputação, as latas de cerveja serviram como anestésico. O sangue dançando fora de seu corpo ao som de "The Battle of Evermore". Antes de desmaiar com o choque, jurou para si mesmo nunca mais ouvir Led Zeppelin. Acordou horas depois. A mão latejava. O lugar do corte parecia cauterizado. Conferiu o horário. Apesar de imerso na penum­bra, passava das nove da manhã. Vasculhou o cárcere à procura do carrasco. Estava sozinho. Checou os cadeados. Continuavam abertos. Retirou-os da grade. Devia haver uma trava escondida em algum lugar. Tateou com a mão a parte externa do teto. Descobriu uma saliência metálica. Forçou-a para fora. Era uma pequena alavanca. Puxou-a para baixo. Um estalo. Empurrou a grade. As dobradiças rangeram. Estava livre. "Ele não é tão esperto como pensa", disse para si. Uma escada em rampa conduzia ao alçapão. Devia ser a saída. Respirou fundo e subiu. Tentou empurrar. Nada. Estava confinado no "porão dos horrores".Apavorou-se. Aquele homem era um psicopata. Podia retalhá-lo aos poucos. E guardar as partes de seu corpo como troféus. "Pre­ciso de uma arma", deduziu, procurando algo sobre a mesa. Uma espada em miniatura. Prendeu o objeto na meia e o escondeu sob a calça. Um móvel de madeira, no canto oposto à cela, chamou sua atenção. Potes de vidro de diversos tamanhos. Aproximou-se. Conseguiu segurar o grito. Cinco cora­ções mergulhados em líquidos viscosos. Calor no peito. "Devem ser hu­manos", pensou. O suor frio cortava seu rosto em várias direções. "Ou eu mato esse desgraçado, ou morro aqui mesmo", concluiu. Voltou à prisão e se fechou. Sentou-se no chão. "Tenho que ser rápido." Ouviu passos. "E ele." Dobradiças rangeram. A claridade invadiu o cômodo. Evitou olhar para cima.

Meu hóspede continua aqui?

Era a voz do homem ferido que suplicara ajuda antes do show. Os passos se aproximavam. Philip enfiou a mão embaixo da calça e segurou a arma.

Você está livre. Seu pai aceitou minha proposta. E já cumpriu sua parte no acordo — disse Andrew, puxando uma mala pela alça — Vou conferir se está tudo aqui antes de te levar para um passeio.

Acendeu uma luminária e'abriu a mala sobre a mesa. Havia cinco embrulhos. Pegou o menor.

O que você acha que tem aqui, rapaz? — perguntou para Philip, excitação na voz.

Um crânio de criança.

Palpite mórbido. Aposto que é um globo de cristal — prosseguiu Andrew, retirando o plástico bolha. — Acertei. E esse aqui, quer adivinhar? — indagou novamente.

Um LP pré-histórico — respondeu o adolescente.

Gosto de você. Tem senso de humor. Se sua vida dependesse da resposta correta, estaria ferrado. E o Sigillum Dei, o selo de Deus. Um dos maiores tesouros do mestre Dee.

Desembrulhou rapidamente a peça e colocou-a sobre a mesa, embaixo da luz. Ela media cerca de vinte e três centímetros de diâmetro e quatro centímetros de espessura. Andrew ficou em silêncio. Sorriso no rosto. Acari­ciou lentamente a superfície de cera. Dentro de um círculo externo, estavam gravados concentricamente um heptágono, um heptagrama interligado, um heptágono menor e, no centro, um pentagrama interligado. Aquele com­plexo geométrico fora preenchido por inúmeras letras, números, palavras e símbolos. Andrew sentia-se tocando o mundo dos deuses. Nada mais im­portava. Fechou os olhos. Queria prender aquela sensação dentro de si. Per­cebeu que alguém se movimentava às suas costas. "Deve ser o anjo Uriel", deduziu. Calafrio. Um baque seguido de dor. Acabava de ser apunhalado. Girou o corpo e viu Philip empunhando seu abridor de cartas. Tinha san­gue na ponta. Um novo golpe rasgou a face direita. Seguiu-se um chute no escroto. E um soco na cabeça. Andrew desabou para trás. Assustado, o ado­lescente correu em direção à escada. Empurrou o alçapão. Nada. Esmurrou. Continuava fechado. Precisava encontrar um jeito de dar o fora dali. Olhou para baixo. O homem não estava mais caído no chão. Encostado na mesa, olhava fixamente em sua direção. O rosto se esvaindo em sangue.

Desça aqui e se tranque na cela — ordenou-lhe.

Philip simplesmente obedeceu, como se seu corpo fosse comandado por ele.

Não tentou lutar. Nem pensou que seria torturado e agonizaria nas mãos daquele psicopata.

— Doutor Woodward, preciso de ajuda. Perfuração nas costas. Corte no rosto — relatou Andrew no celular, alterando com a mão esquerda o segredo de um dos cadeados. — Ok. Estou em casa. Até logo.

Subiu a escada cambaleante, deixando marcas de sangue no caminho. Apoiou os dois braços no alçapão e forçou o corpo para cima. O rosto se contorcendo de dor. Um ruído forte. A claridade invadiu o cômodo.

— Era só fazer um pouco mais de força. A porta está emperrada — disse, olhando para Philip. — Quando eu voltar, acertamos as contas.

O guitarrista conhecia a combinação do primeiro cadeado. O plano imediato era tentar adivinhar a do segundo. Talvez fosse um cara de sorte. Sentou-se no chão. Chorou profusamente.

 

A redação do The Star estava quase vazia. Duas faxineiras termina­vam a limpeza. O office boy empilhava a edição do dia do jornal na mesa de entrada e uma repórter solitária lia, pela terceira vez, sua primeira matéria publicada. Estava feliz. Emplacara uma chamada de capa logo na estréia, e o texto impresso ficara quase idêntico ao original que enviara para David. Exceto por detalhes mínimos que davam agilidade à leitura.

Parabéns. Foi uma estréia brilhante — era a voz de David.

Obrigada — respondeu Mary com um largo sorriso, levantando-se para cumprimentá-lo. Calça jeans justa, jaqueta de veludo preta sobre a camisa branca de mangas curtas, revelando a parte superior dos seios. Um perfume suave.

Percebo que ainda não se adaptou bem aos nossos melhores há­bitos — comentou, apontando para o copo de café americano sobre a mesa, que ela comprara na Starbucks da esquina. — O que você vai fazer hoje à noite? - indagou, sentando-se à mesa e ligando o computador.

Adoraria participar de uma nova maratona gastronômica, mas já tenho compromisso marcado.

Com George Eliot? — perguntou, enquanto baixava seus e-mails.

Isso foi ontem à noite. Hoje vou me encontrar com bruxas in­glesas. Pretendemos criar um coven.

O que seria isso?

É mais do que um grupo de praticantes. É uma família espiritual.

Só de mulheres?

A única figura masculina é o deus com chifres.

David ficou quieto. Parecia hipnotizado diante da tela do computador:

 

Caro amigo, sua preocupação não era infundada. Pouco depois que você partiu, aquele sujeito que me perseguia invadiu meu quarto. Acho que ele queria acabar comigo. Se Deus não tivesse enviado Mi­chael, ele teria conseguido. Passei a noite no hospital. Devo receber alta nas próximas horas e embarcarei para a Itália. A missão foi abortada pelo Vaticano. Agradeço pela atenção. E espero algum dia poder retribuir a gentileza do chá da tarde em um café na Piazza Navona. Grande abraço, do amigo Pietro.

 

Droga! — deixou escapar.

O que foi?

O padre está abandonando o barco. Disse para eu resistir e não aguentou o tranco — respondeu, transtornado. Apanhou o telefone e li­gou para o celular de Pietro. Caixa postal.

 

Era a segunda reunião da semana na Câmara dos Lordes. A anterior fora suspensa após a terceira intervenção do polêmico sir Alexander Cot­ton. Dessa vez, seus companheiros esperavam um show mais explosivo. O tema a ser debatido era recorrente desde 2004. Muitos desejavam uma Câmara majoritariamente eleita. Se a reforma avançasse, sir Alexandre Cotton poderia ser um dos políticos a perder seu lugar no salão vermelho.

Assim que o presidente da Câmara apresentou a pauta, ele se levantou, cantarolando uma canção que todos conheciam muito bem:

"Remember, remember the fifth of November, gunpowder, treason and plot, I see no reason why gunpowder treason should ever be forgot. Guy Fawkes, Guy Fawkes, 'twas his intent to blow up the King and the Parliament...".

Ordem, sir Cotton. Aqui não é o lugar adequado para exibir seus dotes musicais — interrompeu o presidente.

E convenhamos que você é desafinado — provocou um dos Crossbenchers.

Senhores, todos vocês conhecem a Conspiração da Pólvora — prosseguiu sir Cotton — Os terroristas queriam explodir o parlamento durante a sessão de abertura. Imaginem se os trinta e seis barris de pólvo­ra tivessem sido detonados. Mas, como diz a canção, a divina providência interveio e Guy Fawkes tornou-se um traidor.

Ainda faltam vários meses para a Noite das Fogueiras, sir Cotton. Não vejo a relevância disso em nosso debate sobre as reformas — insistiu o presidente.

Claro que não vê. Posso explicar primeiro?

Seja breve.

Qual é a diferença entre um herói e um vilão?

A intenção — respondeu um companheiro de bancada.

Não, meu caro. É o momento histórico. Se Guy Fawkes vivesse no século XXI e explodisse o parlamento, seria um herói. Quem quer derrubar a pobre Inglaterra está do lado de dentro. Os traidores colocam o traseiro imundo nessas cadeiras e vomitam asneiras para explodir sécu­los de tradição! — discursava, seu tom de voz cada vez mais alto.

Respeite as regras do jogo, sir Cotton.Você é um súdito de Vossa Majestade — o presidente interveio.

Meu jogo é outro — bradou, retirando um pequeno embrulho de papel do bolso do casaco. Espanto geral. Com um isqueiro, sir Cotton ateou fogo na ponta do artefato e o arremessou na direção do assento vazio da rainha. Uma explosão ecoou na Câmara dos Lordes. O presi­dente da Câmara se jogou no chão. A pequena bomba de pólvora causou alvoroço. Os lordes se empurravam para sair da sala.

God save Guy Fawkes! — bradou sir Cotton.

A poucos metros do tumulto, ao pé de Winston Churchill, o conde de Leicester encontrava-se com o conde de Bedford.

—Você já se encontrou pessoalmente com o Duque Negro? — ques­tionou o conde de Bedford.

Por uma questão de segurança, ele comanda a organização incógnito.

Já ouviu rumores de que ele seja...

Sir Alexandre Cotton? Isso é bobagem — retrucou o conde de Leicester.

Seria uma excelente fachada. Ninguém desconfiaria que o Duque Negro é um lorde fanfarrão. Vamos ao que interessa no momento. O mensageiro do Vaticano foi acuado pelo bastardo. Retorna hoje a Roma.

É uma informação segura?

— Já comprou a passagem e informou ao jornalista que a missão foi abortada.

E qual é a notícia ruim? — interrogou o conde de Leicester.

O doutor Woodward me ligou há duas horas. O bastardo foi ata­cado duas vezes. Como sempre, teve sorte. A punhalada nas costas acertou uma das costelas. O talho no rosto já foi costurado. Treze pontos — expli­cou o conde de Bedford.

Ele está se expondo?

Acho que ele está agindo por conta própria. Hoje de manhã, soube pela BBC que alguns objetos foram roubados do British Museum. Eram da coleção de John Dee.

E o que o faz supor que foi o bastardo?

Um de nossos contatos na Scotland Yard me procurou dizendo que ele pediu a ficha completa do curador do museu. Horas depois, seu filho, Philip, desapareceu na porta de um pub onde faria uma apresentação. Testemunhas dizem que o seqüestrador estava ferido na perna. No mes­mo lugar em que o bastardo recebeu um golpe de canivete — relatou o conde de Bedford.

Isso é muito grave. Se suas suspeitas estiverem corretas, ele perdeu o equilíbrio e está colocando em risco a organização — sussurrou o conde de Leicester, aproximando os lábios do ouvido direito de seu interlocutor antes de prosseguir. — O Duque Negro deve me ligar ainda hoje. Vou suge­rir que mude as peças do jogo. O bastardo deve ser eliminado do tabuleiro.

 

Apesar da violência dos golpes, os exames na cabeça do padre não acusaram nenhuma seqüela grave. A lembrança dolorosa da noite pas­sada eram os inchaços no rosto e o corte no supercílio esquerdo. Mas aquela experiência terrível era reduzida a nada diante das palavras de Deus, que rasgavam sua alma como flechas. Na porta do hospital, com o relógio marcando treze horas, recordou as acusações de seu Senhor. "Foi a presunção que o tornou um assassino, Pietro. Julga mesmo que algum homem é capaz de derrotar Lúcifer?" A buzina de um carro interrom­peu suas lembranças. Era Michael ao volante de um Audi A8 prateado. O americano fez um sinal para que o padre entrasse pela porta traseira.

Vou passear de motorista? — brincou Pietro, vestindo um terno Armani que Michael deixara no seu quarto do hospital.

É uma honra servir um empresário italiano das telecomunica­ções - respondeu seu "anjo da guarda" — Há uma pasta ao lado. Ele é sua, senhor Giovanni De Santis.

Acho que pegou a pessoa errada.

Não me enganaria. Seu passaporte está na pasta, com a reserva de uma suíte no Mandarin Oriental e um cartão de crédito sem limite. Também há um notebook e um celular inglês.

E o padre Pietro Amorth? — perguntou o próprio.

Deve estar se preparando para voltar para casa. Não nos preocupe­mos mais com ele. No quarto do hotel, o senhor encontrará ternos, cami­sas, casacos, gravatas e sapatos - explicou Michael, pisando no acelerador.

Sou um padre. Onde está minha bagagem?

Eu já disse que o senhor é um empresário italiano chamado Gio­vanni de Santis. Se não quiser fracassar, vista essa máscara - aconselhou, fitando-o pelo retrovisor.

Pietro abriu a pasta e pegou o passaporte. Tinha a sua foto, mas a identidade era outra. Ligou o notebook e colocou o pendrive com o últi­mo e-mail de David. Acessou o arquivo anexo. Um dos nomes da lista de "seguidores do demônio" lhe era familiar: sir Alexander Cotton.

Havia uma caderneta de anotações na pasta do padre. Onde ela está? - perguntou Pietro.

É importante ficar com ela?

Você sabe com quem está falando? Um empresário como eu pode conseguir tudo o que quiser. E nem sempre de maneira civilizada.

— Está aqui, senhor — respondeu Michael, retirando o bloco do bolso do paletó e entregando-o ao passageiro. Sorriso no rosto.

Em poucos segundos, o padre encontrou o que desejava: a lista de notáveis que tiveram alguma relação com a vida e o espólio de John Dee. Cruzou-a com os membros da atual Câmara dos Lordes denunciados por David como integrantes da seita satânica. O conde de Leicester e o de Bedford apareciam nas duas. Os atuais eram prováveis descendentes de nobres que freqüentavam a casa dos "olhos onipresentes". O lorde Harry Ashmole, ex-presidente da Câmara dos Lordes, devia ter parentesco com o antiquário Elias Ashmole, que esteve em posse de manuscritos originais de John Dee e era praticante da magia enoquiana. E sir Alexander Cotton seria o representante atual da linhagem de sir Robert Bruce Cotton. O padre suspeitava que aquele personagem, conterrâneo de John Dee e morto em 1631, era o herdeiro do conselheiro e espião de Elizabeth I. E primeiro grão-mestre da confraria negra criada para proteger os segredos diabólicos. Provas para corroborar sua tese não faltavam. Após a morte do 007, sua cobiçada biblioteca e dezenas de objetos ritualísticos caíram nas mãos daquele antiquário. Alguns foram parar na coleção do British Museum. Outros, como a Mesa de Prática e o Livro das Folhas Prateadas, desapareceram misteriosamente. O padre supunha que fizessem parte do tesouro dos "seguidores do diabo". "Esse Alexander Cotton deve ser o atual mestre da confraria negra... o tenente humano do diabo. Preciso pesquisar alguns brasões", concluiu, aproximando-se do banco do moto­rista e dizendo:

—Antes de me levar ao hotel, preciso passar em um lugar. É urgente.

Para onde quer ir?

College of Arms — respondeu Pietro, pesquisando o endereço no notebook.

 

A redação continuava quase vazia. David levantou-se e saiu sem di­zer nada. Parecia bravo. Mary aproveitou para checar os e-mails. Abriu o de Fernanda Albuquerque:

 

Querida Mary, tudo bem? Mal posso esperar para te encontrar e colocar a conversa em dia. Sinto falta de você, amiga. Estou cercada por gente interesseira. A maioria das minhas amizades é tão falsa como as grifes de Chinatown. E os homens? Você se lembra do meu último namorado? O Bill me deixou porque não suportava o assédio dos fotógrafos. Dei razão para ele. Não posso sair para beber, para dançar, para paquerar sem ser flagrada e virar capa. Parece brincadeira. No início da carreira eu venderia a alma para sair na capa de uma re­vista. Agora fujo delas. Outro dia, consegui entrar disfarçada em uma danceteria. Recebi a pior cantada da minha vida. Mas resolvi encarar o convite de um garotão malhado para uma noite de sexo selvagem. Imagina o que aconteceu quando ele descobriu que eu era a Fernanda Albuquerque? Não conseguiu dar conta do recado. E o cretino ainda vendeu a história para dois jornais. Enfim... Logo chego a Londres. Mas a agenda vai ser tão apertada que precisarei me contentar com o nosso café da tarde para respirar um pouco. Queria tanto ir para uma balada com você e relembrar os velhos e bons tempos... Mas meu empresário fechou uns compromissos em Dubai e diminuiu minha estadia na Inglaterra para quatro dias... Te amo, amiga. Beijos, Fer. PS: A exclusiva para seu chefe continua de pé.

 

—Vender a alma nunca é um bom negócio, o comprador sempre trapaceia — sussurrou Mary, recordando a curiosa citação de um jogador de pôquer que nunca perdia. Seu truque era esconder cartas na man­ga e usar prestidigitação. Embora confessasse isso a ela, quando tinha oito anos, justificava as jogadas mágicas aos adversários dizendo que era preciso confiar na sorte e saber "blefar como um padre". Era amigo de seu pai, mas, também, seu melhor amigo. Ele sempre chegava com uma cesta de chocolates e brinquedos, além de flores para sua mãe. E gos­tava de se sentar em uma cadeira de balanço na sala de estar. Enquanto ela se movia para frente e para trás, aquele homem contava episódios tascinantes de suas viagens pelo mundo. Sempre segurando um copo de uísque. Deixava a bebida de lado apenas quando precisava das mãos para divertir Mary com suas mágicas. Aqueles momentos com o "joga­dor de pôquer" estavam entre as melhores lembranças de sua infância em uma casa onde os adultos andavam ocupados demais para lhe dar atenção. Seu pai parecia dormir e acordar de terno e gravata. Quase nunca cruzava com ele naquela mansão de muitos cômodos e pouco aconchego. Sua mãe, sempre preocupada com as aparências, se dividia entre a academia, o salão de beleza e os compromissos sociais. Para a pequena Mary, quase não sobrava tempo. Mas aquele homem bonito, elegante e com um perfume de madeira adocicada conhecia o vazio em seu coração. E sabia preenchê-lo. Dizia para as colegas da escola que era seu namorado. Ficava com raiva quando seu pai o chamava para o escri­tório e ele se despedia piscando o olho direito. A sala vazia novamente. Fechavam a porta e passavam horas discutindo negócios. Duas vezes por mês, sua mãe fazia reuniões sociais. As mulheres conversavam e bebiam licores, os homens fumavam charutos e tomavam uísque. Nessas ocasiões, ela perdia a companhia do amigo quando os adultos resolviam jogar pôquer. "Onde você estará agora?", pensou.

Oi, querida, a noite foi boa?

Que susto! — exclamou Mary, surpreendida por Carolyn. A edi­tora de moda usava um vestido verde-escuro, com um enorme decote insinuando seios empinados. Estava sem sutiã. "Deve ser silicone. Isso é concorrência desleal", deduziu a americana, emendando a resposta:

Foi sensacional.

— Vamos tomar um chá? Ou melhor, um café? Assim você me con­ta tudo — sugeriu Carolyn. Sorriso no rosto. Tão falso como as grifes de Chinatown. Mary apanhou o copo de café americano e acompanhou a editora de moda até a casa de chá do jornal.

 

Já fazia três horas que aquele maníaco tinha saído do calabouço, deixando atrás de si um rastro de sangue. Philip tentara centenas de com­binações numéricas, e o cadeado continuava travado. Sentado em sua cela, olhava na direção da estante macabra. Daquela distância, e com a iluminação precária, não enxergava os corações humanos. Mas sabia que estavam lá. Desejou uma morte rápida. Ouviu passos. O coração disparou. Dobradiças rangeram. A claridade invadiu o cômodo. Olhou para cima. Seu pesadelo descia os degraus.

Eu me esqueci de dizer que tenho o corpo fechado, rapaz! - gritou Andrew, com um bandagem no rosto. — A punhalada que você me deu pelas costas foi bloqueada pela costela. Perfuração superficial.

Sempre fui ruim de pontaria - retrucou Philip.

— O corte no rosto foi o melhor que conseguiu fazer. Sabe quantos pontos eu recebi?

Quantos?

Treze. Meu número de sorte.

Um número de azar para quase todo mundo, incluindo a mim — rebateu o adolescente.

Superstição tola. Se você tentasse a combinação zero, zero, um, três no cadeado fechado, mudaria de idéia. Mas é tarde para tentar escapar - disparou Andrew, aproximando-se da cela.

—Vai me matar? — indagou Philip. Ira e medo nos olhos. —Você viu o meu rosto. Conhece a minha casa. Está com raiva de mim. Tenho motivos suficientes para isso. Não acha?

E se eu prometesse ficar calado?

Por que eu deveria confiar em você? Aprendi a confiar em uma só pessoa - respondeu Andrew.

Em você mesmo?

Não sou louco a esse ponto.

Então, acabe logo com isso.

Você é um cara de sorte. Meu pai quer que eu o solte. Vamos beber para festejar sua liberdade.

Andrew apanhou uma garrafa de Chivas 12 anos e serviu dois copos baixos. Entregou um deles ao prisioneiro e ergueu o seu.

Um brinde à sua irmã — adiantou-se Andrew. Solenidade estam­pada no rosto.

Deixe-a em paz! — berrou Philip.

Não vai acontecer nada com ela se você cumprir sua promessa: ficar calado. Se estiver mentindo para mim, rapaz, vou foder a boceta da sua irmã com o mesmo abridor de cartas que você usou para me apunha­lar. E antes que ela desmaie de dor, vou rasgar o peito daquela vagabunda e arrancar seu coração. E você sabe onde vou guardar esse troféu porque xeretou minha coleção.

O adolescente estremeceu ao imaginar a irmã mais nova naquela prisão. Sabia que aquele psicopata teria prazer em cumprir a ameaça. Imitou seu gesto e entornou a bebida de uma só vez. Estava de estômago vazio. Sentiu tontura. "Dazed and Confused". Reconheceu a canção do Led Zeppelin. Mais uísque em seu copo. Esvaziou-o em segundos. As barras da cela não eram mais rígidas. Moviam-se como cordas bambas. Fechou os olhos. Algo prendeu em sua mão esquerda. Uma fisgada. San­gue. O dedo mínimo no chão. O carcereiro empunhando um alicate.

Seu filho da puta! — gritou com a voz enrolada.

—Você não pensou que eu fosse deixar isso barato, né? — perguntou Andrew, apontando para a bandagem no rosto. - Mas encare como um favor. Deixei a mão esquerda igual à direita — emendou uma gargalhada.

Filho da puta! — repetiu o adolescente, abaixando-se para pegar o membro mutilado.

Como você adivinhou que minha mãe era puta?

Philip desmaiou sobre a poça de sangue.

Gostei de você. Pena que precise voltar para casa — comentou Andrew, abrindo a porta da cela. — Adoro essa música.

Era "Black Dog".

 

Aquele lance era arriscado. E podia colocar tudo a perder. Sem saber se tomara a decisão certa, Michael estacionara na frente do College of Arms. "Devo lembrá-lo de que o senhor está com a agenda cheia, senhor De Santis. Retorno em meia hora", dissera a Pietro. O padre não estava preocupado em cumprir o prazo. Se fosse preciso, passaria o dia inteiro pesquisando brasões e genealogias. Sua missão estava acima de tudo. Até mesmo dos caprichos de seu protetor. Lembrou-se do enigma diabólico que o levara até aquele templo de heráldica: "A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé". Assim que soubesse a resposta, devia fazer uma ligação. Guardara na memória o número de telefone que o cardeal Gabriele Fioravante lhe confiara antes da viagem. A pessoa do outro lado da linha estaria à espera de uma palavra-chave e de um nome. Se sua suspeita se confirmasse, esse nome seria: sir Alexander Cotton. Sentiu calafrio ao pensar no possível destino daquele lorde inglês.

Padre Amorth? — perguntou-lhe um homem de cabelos casta­nhos, alto e magro. Levemente curvado para a frente, envergava terno azul-escuro e gravata de riscas.

Você deve ser Nathan Sandford — concluiu Pietro, estendendo-lhe a mão.

É um prazer conhecê-lo. O senhor foi bem recomendado. Em que posso ser útil?

Preciso consultar a genealogia e o brasão de quatro ingleses.

Suponho que eles façam parte da alta nobreza.

São membros da Câmara dos Lordes — respondeu o padre.

Não teremos problemas. Queira me acompanhar até a Sala de Registro.

Naquele horário, as amplas janelas do andar superior se encarre­gavam da iluminação interna. Armários de madeira escura forravam as paredes e suas portas de vidro eram vitrine de milhares de catálogos. Gavetas de arquivo intercaladas guardavam as histórias das mais notáveis famílias da Inglaterra. Nathan levou Pietro à mesa central, com seis cadei­ras de espaldar alto. Além dos dois, havia outro homem na sala. De costas para eles, percorria fileiras de livros com o dedo indicador.

Sente-se aqui, padre — orientou Nathan, puxando uma das cadeiras. — Passe para mim os nomes, por favor.

Conde de Leicester, conde de Bedford, Harry Ashmole e Alexander Cotton — enunciou Pietro.

O mais polêmico dos lordes — complementou o anfitrião.

Como assim?

Sir Alexander Cotton tem métodos pouco ortodoxos para de- lender seus interesses. Em uma das últimas reuniões, levou consigo uma raposa alvejada naquele mesmo dia, só para protestar contra a proibição da caça — respondeu-lhe, levantando as duas sobrancelhas.

É um showman.

Tem um senso de humor incomum. Com sua licença, providen­ciarei os livros — disse Nathan, retirando-se.

Aquela história lhe pareceu familiar. Firmou o cotovelo direito sobre a mesa e apoiou a testa na palma da mão. Fechou os olhos. Lembrou-se de sua primeira noite no Brompton Oratory. Sonhara com um homem ar­rastando uma raposa morta. Ao soltar o animal, apontara para um símbolo na armadura: um leão dourado reluzia sobre fundo preto. Garras de ataque, coroa na cabeça. Teve a certeza de que Deus estava por trás da revelação e o conduzira até aquela sala para desmascarar o escolhido do diabo. "Obri­gado, meu Deus", agradeceu em pensamento, abrindo os olhos. Levou um susto. Sentado à sua frente, um homem calvo, ostentando no rosto redondo um bigode espesso e desgrenhado, encarava-o com frieza. Era o mesmo que, minutos antes, procurava algo nas prateleiras.

Maldito seja, padre — ofendeu-lhe o estranho, erguendo o dedo em riste na sua direção. — O sangue escorre das suas mãos.

Quem é você? - assustou-se Pietro.

Posso ajudá-lo, senhor? - retrucou o homem, deixando um livro de lado.

Agradeço. Mas não é necessário — esquivou-se o padre.

Sabia que o demônio estava em seu encalço. Por alguns segundos, transformara aquele homem em ventríloquo e o atacara. Pretendia fazê-lo desistir da caçada. Mas já era tarde. Sandford chegou acompanhado por um assistente baixo e magro, aparentando pouco mais de vinte anos. Cada um carregava cinco pesados volumes.

As informações de que você precisa estão nesses volumes — in­formou o presidente do College of Arms, empilhando-os sobre a mesa. - Por onde quer começar?

Pelo mais polêmico dos lordes. Quero saber se ele é descendente de sir Robert Bruce Cotton, morto em 1631.

Deixe-me consultar sua árvore genealógica...

Em menos de um minuto, Nathan tinha a resposta:

Sim, padre. O cavalheiro que o senhor mencionou recebeu um títu­lo nobiliárquico, e sir Alexander Cotton pertence à linhagem iniciada por ele.

Posso ver o brasão? — perguntou Pietro. Mãos suadas. Respira­ção rápida.

O anfitrião folheou as primeiras páginas de outro livro. Ao encontrar o desenho, ergueu-o na altura dos olhos de Pietro e anunciou solenemente:

Apresento as armas da família Cotton.

Peguei você — o padre deixou escapar. Não pesquisou os outros nomes. Já tinha a sua resposta. Agradeceu Nathan Sandford e saiu do College of Arms à procura de Michael.

 

Enquanto tomava um english breakfast com leite na casa de chá do The Star, David ligava para o celular do padre. Desistiu na sexta tentativa, sem deixar recado. Preparava-se para voltar à redação quando foi abor­dado pelo diretor do jornal. Sem pedir licença, Paul Reiner sentou-se na mesma mesa com um copo de suco de laranja.Talvez para combinar com os suspensórios alaranjados.

— A estréia de sua assistente foi sensacional - elogiou Paul, referin­do-se à matéria escrita por Mary.

Foi uma ótima indicação do Steven - respondeu David.

Sem falsa modéstia, por favor. Como ela se chama?

Mary.

A Mary teve sorte de cair na sua editoria — prosseguiu o diretor do jornal. — Estou de olho em você há muito tempo, David.

Agradeço pelo elogio, Paul.

Vou lhe confidenciar algo — anunciou o Zeppelin fashion, abai­xando o volume da voz e inclinando o corpo na direção do jornalista. David estranhou o gesto de intimidade. Afastou-se um pouco e encarou seu interlocutor com atenção.

Sua assistente foi indicada por uma pessoa muito influente nos Estados Unidos. O Steven quis levar vantagem na negociação. Ele fez jogo sujo.Traiu minha confiança.

Desculpe minha indiscrição, Paul. O que ele ganhou com isso?

— Você é um jornalista, David, e dos melhores. Eu ficaria surpreso se não me fizesse essa pergunta. Ele pretendia ocupar o cargo de diretor em um importante jornal de Nova York. Recebeu um adiantamento de cem mil dólares — revelou, antes de levar o copo de suco à boca.

Se o padrinho de Mary tem o poder de nomear o diretor de um jornal, por que não deu para ela o cargo de editora? O preço que ele pagou é bem alto para um mero estágio no The Star. Não acha? — considerou David.

Não me interessa saber os motivos do padrinho de sua assistente. Ela provou que tem méritos para continuar aqui. Penso até em promovê-la. Meu problema agora se chama Steven. Ele vendeu o jornal pelas minhas costas.Vai ser demitido na semana que vem. E quero que você o substitua — disparou Paul, encarando-o.

O convite surpreendeu David. Pessoas acima dele na hierarquia do jor­nal cobiçavam o posto de editor-chefe. Era estranho Steven não ter indicado nenhuma delas. Deu de ombros. Merecia aquilo mais do que ninguém.

Me sinto lisonjeado pela escolha. Quando quer que eu comece? — adiantou-se.

—Você vai ter muito trabalho com a chegada da Fernanda Albuquer­que. Quando isso acabar, será promovido. Até lá, mantenha essa conversa em sigilo. Vou preparar a cama do Steven — respondeu, bebendo o resto do suco.

Conte comigo.

Mary e Carolyn entraram na casa de chá. "Ela está me escondendo alguma coisa", pensou David, fitando discretamente a assistente. Aquelas revelações de Paul Reiner deixaram-no ressabiado. O destino estava jo­gando com ele. E podia ser tão trapaceiro como Steven. O celular tocou em seu bolso. Não identificou o número. O aparelho acusou uma men­sagem de voz. Levantou-se da mesa juntamente com o diretor e passou pelas duas com um sorriso mordaz no rosto. Já na redação, acomodou-se em sua cadeira e acessou a caixa postal: "David, aqui quem fala é Nathan Sandford. O padre Pietro Amorth acaba de deixar o College of Arms. Ele buscava informações sobre sir Alexander Cotton. Conseguiu o que queria. Mudando de assunto: farei uma festa em casa neste fim de semana. Ficaria grato se pudesse enviar um fotógrafo e dar um destaque na coluna social do The Star. Abraço".

Ele não desistiu da missão — concluiu em voz alta.

O celular tocou. Número desconhecido.

David?

— Quem está falando?

Você não me conhece. Temos um amigo em comum. Ele pediu que eu retribuísse uma gentileza em seu lugar.

Que amigo?

A Fonte dos Quatro Rios não pode esperar — respondeu o ho­mem do outro lado da linha.

"Seja quem for, deve estar de referindo à Fontana dei Quattro Fiumi, na Piazza Navona", deduziu. Leu a última parte do e-mail enviado pelo padre: E espero algum dia poder retribuir a gentileza do chá da tarde em um café na Piazza Navona. Grande abraço, do amigo Pietro.

Quando e onde? — perguntou o jornalista.

Estarei no Old Bull and Bush às oito horas — informou o desco­nhecido, desligando o telefone.

Aquele pub era um antigo ponto de encontro de artistas. A coinci­dência é que ficava em seu bairro, próximo ao Hampstead Heath. "Ele deve ter armado tudo isso para despistar o Inimigo. Boa jogada, Pietro", comemorou David.

 

A editora de moda tinha um olhar sedutor. E aproveitara-se disso quando David passara por ela com Paul Rcmer. Mary percebera que ela piscou discretamente. Assim que ele deixou a casa de chá, Carolyn fechou os olhos e inspirou. O comentário veio em seguida:

— Knize Ten. Adoro esse perfume de David.

Não conheço a marca - retrucou Mary.

Knize é uma instituição clássica da moda masculina. A grife atin­giu o auge da fama entre as duas guerras mundiais. Era lá que Marlene Dietrich encomendava suas calças — explicou Carolyn.

Mais um sinal do gosto refinado de David — comentou a americana.

Tudo em David é sofisticado. Você já deve ter percebido isso, principalmente após o jantar de ontem - provocou a editora de moda.

— Ele é um gentleman. Me ensinou sobre gastronomia, vinhos... - contava Mary, com o olhar distante. Carolyn aproveitou-se de uma ligeira pausa para retomar a palavra:

Harmonizações. Ele falou para você sobre os casamentos perfeitos: foie gras com sauternes e ostras com champanhe?

Pelo visto você teve a mesma aula — insinuou Mary.

Já passei de ano inúmeras vezes. No terceiro encontro, você aprenderá um pouco sobre música erudita. Uma dica: o compositor pre­ferido de David é Bach - provocou Carolyn.

Obrigada — ironizou a americana, dando o último gole em seu copo de café.

Queria que você soubesse que apoio seu relacionamento com ele. Se precisar de algum conselho, pode me pedir. Os jornalistas também sabem guardar segredo - a editora de moda fingiu solidariedade, dese­nhando um sorriso forçado com os lábios.

Pode deixar.

— Mary, preciso de um favorzinho — disse Carolyn, fazendo um gesto com o polegar e o indicador para representar seu tamanho.

Pode me dizer, se estiver ao meu alcance... — respondeu Mary, completando em pensamento: "Por isso está tentando ser tão simpática?"

Eu queria fazer uma matéria com a Fernanda Albuquerque sobre moda casual: o que ela gosta de vestir quando não está nas passarelas. Sei que você conseguiu marcar uma exclusiva e não quero me meter nisso. Agrade­ceria se pudesse passar para ela algumas perguntas por e-mail e se conseguisse algumas fotos dela no dia a dia, sem maquiagem e produções ousadas.

Posso escrever e assinar a matéria? — questionou Mary, interessada na proposta.

Claro. Mas precisa da autorização do seu chefe para isso. E ele não vai se importar de emprestar você para mim um pouquinho — res­pondeu Carolyn, tomando um pouco de chá.

Pode deixar que eu falo com ele. Tentarei fazer a matéria ainda hoje.

O que será que ele discutia com o Zeppelin fashion? — a editora de moda mudou o rumo da conversa.

Com quem?

O diretor do jornal. Ontem, houve uma briga na reunião de pauta por sua causa — entregou Carolyn.

— Por quê? — indagou Mary, erguendo a sobrancelha esquerda.

Steven, o editor-chefe, não informou Paul Reiner sobre a sua contratação. Ele foi pego de surpresa quando soube que você, a assistente de David, fazia parte do jet set internacional. Nenhum chefe gosta de fazer papel de palhaço.

Sério?

Acho que a cabeça de Steven vai rolar. E aposto que David está sendo sondado para o cargo — especulou Carolyn.

Por que acha isso?

Ontem, o Paul disse para David se reportar diretamente a ele. Pas­sou por cima de Steven e da redatora-chefe. É um forte indício, não acha?

Pode ser.

O celular de Mary tocou. Era o número da redação.

Estão discutindo moda? — perguntou David, em tom sarcástico.

Carol está me dando uma aula sobre...

Qual é mesmo o nome do perfume dele? — perguntou baixinho para a editora de moda.

Knize Ten — respondeu Carolyn.

Sobre o Knize Ten - ela disse ao telefone.

Preciso falar com você antes da reunião de pauta. Acho que pa­gou um preço muito alto para estar aqui, Mary - disparou David.

Pode ser mais explícito?

Por que você comprou um cargo de assistente no The Star po­dendo ser editora em Nova York? — inquiriu seu chefe.

Em cinco minutos você terá a resposta. Até logo.

Também preciso voltar - disse Carolyn, assim que a americana desligou o celular, com a tez pálida e preocupação nos olhos.

 

Estava de volta ao porão, após deixar Philip desacordado em uma região rural próxima a Windsor. Informara ao curador do British Museum as coordenadas GPS de seu filho. "Acho melhor se apressar. Ele não está inteiro", encerrara a ligação com um humor sinistro. Olhou para a cela vazia. O rastro de sangue e o dedo mínimo eram lembranças da presença do adolescente. Andrew sentiu o peso da solidão. Não havia ninguém para conversar sobre bandas de rock nem dividir uma garra­fa de uísque. Esse era o fardo de viver nas sombras. "Meu pai vai me recompensar por isso", pensou, aproximando-se das peças roubadas do museu. Contemplou o Sigillum Dei por quase uma hora, lembrando-se dos ensinamentos de monsieur Moureau, tirados diretamente dos escri­tos de John Dee: "No grande heptágono foram inscritos sete nomes que os anjos definiram como 'nomes que não são conhecidos para os anjos nem podem ser falados ou lidos pelo homem...'". O Sigillum Dei também possuía uma gravação na parte oposta. Com cuidado, Andrew virou a peça sobre a mesa. No centro, um círculo irradiando uma cruz com duplas traves na extremidade de cada braço. Nos ângulos da cruz estavam gravadas as letras A, G, L, A, a partir do quadrante superior es­querdo, sentido horário.

"Tu és poderoso para sempre, ó Senhor. Em hebraico, Andrew: Atah Gibor Le-olam Adonai. O nome cabalístico de Deus é derivado das pri­meiras letras dessa frase. Ou seja, AGLA", ensinara-lhe monsieur Moureau. O bastardo passou o dedo indicador sobre aqueles sinais. O círculo cen­tral, cortado pela cruz, estava saliente. Abaixou a luminária para examiná-lo melhor. Não era um desenho contínuo. Um sulco ao redor sugeria que ele fora feito à parte e acrescentado posteriormente ao conjunto. Com o dedo indicador em forma de gancho, deu leves batidas no meio e nas extremidades do objeto. Teve a impressão de que o centro era oco.

— O que o mestre Dee está querendo me revelar? — questionou, com um sorriso infantil no rosto.

Pegou o abridor de cartas que o apunhalara. Encaixou a ponta, com a marca de seu sangue, na reentrância do círculo. Com um pouco de esforço, conseguiu movê-lo dois centímetros para fora. "É uma tampa", deduziu, aumentado a força. Um estampido. A peça sobressalente elevou-se e tombou alguns centímetros para o lado direito. Algo a impedia de ser arremessada para fora da mesa. Uma corda, presa a um pequeno gan­cho em sua parte interna, ligava o pedaço de cera a um rolo escondido na câmara secreta.

Andrew retirou-o com cuidado, evitando que as folhas se quebrassem. Colocou o Sigillum Dei sobre o sofá. Precisava de espaço para mexer com os papéis sem danificá-los. Sorriu. Não importava o conteúdo, naquele momento tinha mais poder do que qualquer pessoa da ordem, tirando seu pai."Ele vai reconhecer meu valor", pensou, desabafando em voz alta:

Aquele imbecil do conde de Bedford beijaria meu rabo por isso. O conde de Leicester e sir Ashmole não perdem por esperar. Começarei a dar as cartas nesse jogo.

Com cuidado, desenrolou a primeira das três páginas. Ela era ilus­trada com uma árvore genealógica. Um tronco brotava das costas de um anjo sentado sobre um trono, ostentando um símbolo na fronte. Duas asas se estendiam em direções opostas, com três sinais na parte interna de cada uma. "Devem ser os sete nomes impronunciáveis", concluiu. Ignorou os anjos, homens e mulheres que estavam suspensos em galhos, carregando nomes que ele conhecia. Primeiro, seus olhos foram guiados na direção do homem que encimava o lado direito da árvore. Nenhum nome o identificava.Mas Andrew o reconheceu imediatamente. O brasão em seu peito era o mesmo do Duque Negro.

Esse aqui é o meu pai! — gabou-se.

Na mesma altura, do lado esquerdo, contemplou uma mulher ves­tindo túnica escarlate.A serpente em seu ventre e a abelha sobre a fronte revelavam que ela descendia da tribo de Dã.

A mãe do Anticristo - disse para si, excitado.

Exatamente no centro, na parte mais alta da ilustração, o homem com chifres erguia um cetro imperial na mão direita. Na outra, segu­rava um orbe, símbolo do mundo. "Ajoelha-te aos meus pés e te darei o mundo": o demônio tentara seduzir Jesus Cristo, no deserto, com aquela promessa. Ela surgia nos pensamentos de Andrew, acompanhada por um sorriso perverso no rosto. Ele encheu um copo de uísque para festejar a descoberta.

 

Diante do computador, David tamborilava os dedos da mão direi­ta sobre a mesa. Por mais promissora que tivesse sido a conversa com Paul Reiner, ela despertara a desconfiança de Mary. Não conseguiria se concentrar no trabalho antes de ouvir as explicações de sua assistente.

"O que ela está escondendo?", perguntara-se diversas vezes. Correu os olhos pela página de notícias aberta na tela. Uma matéria chamou sua atenção:

 

Peças são roubadas do British Museum

Na última noite, seis objetos desapareceram misteriosamente do British Museum. Eles faziam parte do acervo de John Dee (1527-1608). Esse cientista e místico ganhou notoriedade ao ser nomeado astrólogo da rainha Elizabeth I. A fama inspirou William Shakespeare na criação do personagem Próspero, de A Tempestade. Entre os objetos roubados estão a shew-stone, um espelho asteca e o Sigillum Dei, ou Selo de Deus. Provavelmente eram utilizados em rituais de magia. O curador do British Museum, Gerald Todd, informou que o crime está sendo investigado pela Scotland Yard. Suspeita-se que o responsável pela vigilância noturna do museu esteja envolvido. Os alarmes foram desativados por alguns minutos durante a madrugada, contra­riando as normas de segurança da instituição. Informou a BBC.

 

John Dee inspirou Próspero? — indagou-se, surpreso. — Este rou­bo deve ter alguma conexão com a missão de Pietro e a organização satânica... — concluía em voz alta.

Adoro seu perfume — interrompeu Mary, aproximando-se da mesa de seu chefe.

Ele apenas encarou a assistente. Cenho franzido. Sobrancelha direita erguida. Olhar desconfiado.

—Você sempre tira suas conclusões antes de ouvir o outro lado da história? — indagou Mary.

—Você deveria ter esclarecido tudo ontem, no nosso jantar. Perdeu uma ótima oportunidade. Detesto ser pego de surpresa - disparou David.

Contei o que realmente importava para mim. Eu jamais con­seguiria ser editora em Nova York. A melhor solução foi, como você mesmo disse ao telefone, comprar um cargo de assistente em Londres — rebateu a americana, cruzando os braços.

E quem pagou por isso?

Um publisher, amigo do meu pai. Em off, quer saber como eu pa­guei por esse favor? No meu último mês em Nova York, transei com ele todos os dias — provocou Mary, encarando seu chefe.

Boca seca. Nó na garganta. Aperto no peito. A voz quase não saiu.

É assim que você consegue o que quer? — indagou David.

—Você costuma acreditar em todas as besteiras que te contam? — respondeu, com um sorriso no rosto. — Pensei que tivesse o feeling mais apurado.

O que quer dizer com isso?

Por que eu não transei com você ontem? — retrucou Mary.

—Você está invertendo os papéis. Eu deveria lhe fazer essa pergunta.

Minha primeira vez tem que ser com alguém especial, David. E eu quero estar apaixonada por essa pessoa — disse-lhe, abaixando a cabeça.

—Você é...? — perguntou, desconcertado.

Sim.

Então qual foi o preço para estar aqui?

—Jornalismo investigativo e chantagem. Encontrei no escritório do meu pai provas de que ele tinha comprado matérias para esconder frau­des e alavancar as ações de algumas empresas. O publisher que me indicou fez todas as transações pelas costas do conselho editorial. E faturou alto com isso. Prometi acabar com a reputação dele se não me ajudasse - ex­plicou Mary, voltando a encarar David. O queixo ligeiramente inclinado para cima e o sorriso no canto dos lábios revelavam o orgulho que sentia da própria sagacidade.

—Você denunciaria seu pai? — surpreendeu-se David.

Eu só queria seguir minha carreira em paz, longe de casa... Às vezes, o preço da liberdade custa caro.

Agradeço pela sinceridade.

Desculpe não ter contado isso antes. Ainda não consegui digerir tudo.

David olhou discretamente para os dois lados. Ao certificar-se de que ninguém se aproximava, disse à sua assistente, em tom de voz mais baixo que o usual:

Troco suas desculpas por um convite.

Deixe-me adivinhar: um concerto de música erudita?

—Vejo que você e Carol não conversaram apenas sobre o meu perfume.

Na nossa conversa, também descobri que o papo sobre os pares perfeitos é um clichê. Você podia ter sido mais original comigo, David — provocou-lhe.

Nunca convidei Carol para uma corrida de galgos.

De quê?

De cachorro. Será a estréia do meu Sabreur du Diable.

Corrida de cachorro? — indagou Mary, aos risos. — Você me surpreende.

Posso te buscar amanhã às seis horas? Jantamos no estádio.

Não trabalhamos amanhã?

— Não estamos no plantão de sábado. Nossa corrida começa depois de amanhã, quando sua amiga desembarca no Heathrow.

Combinado. Você já sabe meu endereço — respondeu a ameri­cana, com um sorriso suave no rosto. — A Carol perguntou se eu podia escrever uma matéria de moda.

Tudo bem. Empresto você para ela um pouquinho — consentiu, voltando-se para o monitor. A notícia sobre o roubo no British Museum continuava aberta na tela.

 

Após beber o copo com a bebida, Andrew desenrolou o segundo pergaminho:

 

Um anjo surgiu diante de mim empunhando uma espada. Ele disse: "Sou o rei desse mundo e estabelecerei para sempre o trono do meu reino. Meu rebento surgirá do Tronco de Jessé e sangue de Dã correrá em suas veias. Sua mãe será uma prostituta e abrirá seus olhos no solstício de inverno. Ele será educado nas artes negras e, aos 33 anos, sairá das sombras para cumprir sua verdadeira missão. Arrastará atrás de si quase todo o rebanho das igrejas e será adorado por milhões e milhões de pessoas. Todas elas carregarão uma marca em suas frontes. Todas estarão ligadas a mim até o último dia. Eu tenho muitos nomes. Mas é Samyaza que seduzirá a belíssima Babalon".

 

Andrew sorriu. Sentiu uma dor aguda no corte da face direita. Gritou de excitação. Aquele documento era a prova de que ele era alguém muito especial. Filho bastardo do Duque Negro, Andrew per­tencia à linhagem de Dã. Além do sangue real, ele nascera de uma prostituta francesa e fazia aniversário em 21 de setembro. Exatamente nove meses após o solstício de inverno europeu, quando fora conce­bido. Também fora instruído nas artes negras e vivia sem identidade, nas sombras.

Sou o filho de Samyaza! — exclamou, empunhando o abridor de cartas como o anjo da profecia.

A revelação merecia ser festejada com mais uísque. Enquanto enchia o copo, um detalhe daquela mensagem chamou sua atenção. Ele já tinha 35 anos.

Recebi a primeira missão há dois anos - concluiu em voz alta, fitando a estante com os corações extirpados. Naquele instante, pela pri­meira vez, percebeu a importância das primeiras missões. Ele fora o es­colhido de Samyaza para realizar os casamentos diabólicos. Não era um simples assassino. Era o "papa do inferno".

Aos meus pais - disse Andrew, elevando a bebida acima de sua cabeça. Desenrolou novamente a ilustração da árvore genealógica e con­templou o homem com chifres erguendo um cetro imperial na mão direita e um orbe na esquerda.

Estou pronto para cumprir minha verdadeira missão! — bradou, abrindo o terceiro e último pergaminho: "Após profetizar o nascimento de seu filho, Samyaza revelou doze nomes. O último cumprirá suas pala­vras". Andrew foi direto ao fim da lista. Soltou um grito. Deixou o copo de lado e bebeu o resto do destilado no gargalo. Prendeu a cabeça entre as mãos e puxou os cabelos.

Não pode ser. Não pode ser! - repetiu aos berros.

Com o abridor de cartas, cortou o pulso direito.

Eu tenho o sangue sagrado! Eu tenho o sangue sagrado!

Dois pesos de papel prendiam as extremidades do terceiro pergami­nho. Estendeu o braço sobre ele. Gotas densas de sangue caíram sobre o manuscrito. Em menos de um minuto, os nomes foram devorados por uma mancha avermelhada.

Sou o filho de Samyaza. Ninguém vai roubar isso de mim!

O celular vibrou sobre a mesa. Era o número secreto do conde de Bedford.

Andrew, hoje de manhã uma notícia chamou minha atenção. Lembrei-me de você.

Que notícia? - impacientou-se.

Lerei a introdução. Você me contará o resto: "Na última noite, seis objetos desapareceram misteriosamente do British Museum. Elas fa­ziam parte do acervo de John Dee...".

O que quer insinuar com isso?

Que você conhece o resto da história melhor do que eu. E isso é grave, Andrew, muito grave.

"Eu tenho o sangue sagrado, seu conde de merda Você deve se ajoelhar diante de mim. E me adorar como um deus", retrucou em pensamento. Ainda não era hora de revelar seu segredo. Acertaria as contas com o conde de Bedford assim que Samyaza lhe desse carta branca.

Quer que eu descubra o que aconteceu com os objetos? — dissimulou.

Eles não são importantes para nós. Se fossem, acha que estariam em exposição no museu? Não jogamos pérolas aos porcos. Mas tenho curiosidade de saber o que o idiota que as roubou pretende fazer com elas — prosseguiu o lorde.

Como você mesmo disse, o ladrão deve ser um idiota. Por que deveríamos nos preocupar com ele?

—Você tem razão, Andrew. Na minha vida, basta um idiota: você — provocou o conde de Bedford, desligando o telefone.

Filho da puta! — gritou, esmurrando o ar com o braço direito e esguichando sangue no chão.

 

Homens trajando casacos vermelhos e cartolas se aproximaram do Audi A8. Eram os porteiros do imponente Mandarin Oriental. Em um gesto rápido e elegante, um deles abriu a porta de trás.

— Bom-dia, senhor — saudou o cliente recém-chegado.

Pode fechar a porta, por favor. Preciso conversar com meu mo­torista antes de descer — respondeu o passageiro, ríspido.

Desculpe-me, senhor - disse o porteiro, fechando a porta e espe­rando a ordem para abri-la novamente.

O que é isso? — perguntou ao motorista, encarando-o pelo retrovisor.

Um dos melhores hotéis de Londres.

—Você conheceu meu quarto no Brompton Oratory? - irritou-se Pietro.

Sim, senhor. Era bem austero.

Costumo dizer aos meus anfitriões: Deus deve ser glorificado pela riqueza. O homem deve louvar ao Senhor na simplicidade. Se eu me hospedar aqui, trairei meus princípios, Michael.

Senhor Giovanni de Santis, eu lhe daria razão se fosse um padre. Mas é um dos empresários mais bem-sucedidos da Itália. Estranharia se quisesse um hotel menos luxuoso.

Tudo bem. Vou fingir que sou outra pessoa. Mas quero me en­contrar com David amanhã — exigiu o italiano.

— Marquei um encontro com ele hoje ã noite para explicar sua si­tuação. Amanhã, pego você às cinco e meia. Prepare-se para assistir a uma corrida de cachorros.

Até amanhã — retrucou o padre, abrindo a porta do carro. O por­teiro adiantou-se para ajudá-lo e se ofereceu para carregar a pasta.

Aproveite os serviços do hotel, senhor De Santis — despediu-se Michael, pisando no acelerador.

O nervosismo impediu que o padre reparasse no salão de entrada. Entregou o passaporte falsificado na recepção. "Não fuja de si mesmo, Pietro", recordou-se daquelas palavras durante o check-in. Enquanto es­fregava os dedos nas palmas das mãos, ensaiou uma oração. Detalhes dou­rados chamaram sua atenção. "Não se pode servir a dois senhores... Não podeis servir a Deus e às riquezas", a lembrança daquelas palavras de Jesus Cristo atingiram-no como um raio. Fechou os olhos. Sentiu o suor acariciando seu rosto.

Senhor De Santis, tudo bem? — perguntou o recepcionista.

— Tudo. Só estou um pouco cansado — respondeu Pietro, fitando aquele jovem de traços árabes e tez morena.

O carregador o acompanhará até a presidential suite. Suas malas chegaram mais cedo e já estão a sua espera.Tenha uma boa estadia.

Obrigado.

"Meu Deus, não me deixe cair em tentação e me livre de todo o mal. Que eu possa completar a missão", repetiu no percurso até o eleva­dor. Assim que a porta se fechou, o carregador virou-se para o padre e o encarou com um sorriso mordaz.

O que você quer? — irritou-se Pietro.

Como você fede.

O padre o encarou. Não importava que nunca tivesse encontrado antes aquele homem corpulento de feições indianas. Conhecia aquele sorriso e aquele olhar melhor do que ninguém. Era o Inimigo que estava ali, diante dele.

E você cheira a enxofre. Volte para o seu lugar, demônio! — orde­nou-lhe, com o dedo em riste.

Precisa tratar melhor seus anfitriões, padre. Você acha que vai encontrar um crucifixo na parede do quarto? - retrucou o carregador. - Aqui as regras são outras.

Deus está em todos os lugares — rebateu Pietro.

Nunca me encontrei com Ele.

Mentira! Você foi enxotado de Sua casa. E nunca mais vai voltar para lá! — berrou o italiano.

E você acha que Ele vai abrir as portas de Sua casa para um assas­sino? O sangue escorre de suas mãos, padre de merda. Sua alma não vale mais do que um centavo.

Pietro fechou a mão direita e encarou o carregador com raiva. "Não seja presunçoso", aquelas palavras ressoaram em sua cabeça. Um sinal sonoro. As portas do elevador se abriram.

Chegamos — anunciou o carregador, acompanhando-o até a porta do quarto. Esperou por uma substanciosa goijeta, digna do hóspede da suíte presidencial. O padre colocou a mão no bolso da calça e sentiu metal na ponta do indicador. Era um centavo.

Minha alma não está à venda - disse Pietro, jogando-lhe a moeda. Sem entender nada, o carregador entregou-lhe a pasta e partiu descontente.

Isto aqui é uma casa — concluiu Pietro, na sala da suíte.

Pegou o celular na pasta e acomodou-se no sofá diante das amplas janelas. Algumas árvores do Hyde Park se insinuavam entre as cortinas. Teclou o número de telefone que o cardeal Gabriele Fioravante lhe con­fiara. Alguém atendeu a ligação. E ficou em silêncio.

Abaddon — o padre sussurrou.

Quem se esqueceu de passar sangue na porta de casa? — inquiriu-lhe uma voz grave.

Sir Alexander Cotton - respondeu Pietro, desligando o telefone.

Estremeceu ao pensar no significado da palavra-chave. Abaddon era o anjo da destruição, o instrumento da ira divina sobre os homens. No Êxodo, livro do Antigo Testamento, ele fora o executor da décima praga do Egito, matando os primogênitos das famílias que não marcaram a porta de suas casas com sangue. A contra-senha indicava o destino trágico do lorde inglês.

Que se cumpra a vontade de Deus — disse o padre, levantando-se do sofá e desbravando os noventa metros quadrados da suíte. Já cumprira sua missão. Era hora de aproveitar o prêmio.

 

Faltavam dez minutos para a reunião de pauta. David não estava a fim de participar do planejamento da próxima edição do The Star. Entretera-se com a versão de A Tempestade que baixara da internet logo após convidar Mary para a corrida de galgos. De vez em quando, fazia anotações em seu bloco. Queria descobrir de que maneira a última peça de William Shakespeare, inspirada em John Dee, tinha relação com uma conspiração satânica no século XXI. Tudo começava com uma tempesta­de no mar, arrastando, para uma misteriosa ilha, o rei de Nápoles, Alonso, seu herdeiro, Ferdinando, seu irmão, Sebastião, o duque de Milão, Antô­nio, e uma pequena comitiva. Naquele lugar ermo, Próspero controlava um exército de espíritos e ninfas. Um de seus objetivos ao provocar o naufrágio, por intermédio de um deles, era vingar-se do irmão. Com a ajuda do rei Alonso, Antônio usurpara seu trono e lançara-o ao mar com a filha Miranda, esperando que morressem à deriva. No séquito do mago e verdadeiro duque de Milão, havia dois personagens antagônicos. O es­pírito do ar, Ariel, era o exemplo de submissão, fazia tudo o que o mestre exigia com a promessa de receber alforria. O escravo Calibã era o filho bastardo do diabo com uma bruxa, uma figura monstruosa que odiava seu senhor e tentava atraiçoá-lo. No decorrer da peça, o John Dee lite­rário perdoava os inimigos e recuperava o ducado. "Uma confraria negra foi fundada pelos 'olhos onipresentes' para conservar alguns segredos re­velados pelos anjos", raciocinava David. "O padre disse que os seguidores do diabo planejam o Apocalipse Negro, ou seja, querem inverter o final da história. É isso, Próspero é Lúcifer injustiçado querendo recuperar seu trono. Os membros da seita acreditam que estão trabalhando para ele. São seus instrumentos. Quem seria Ariel? É o monstro Calibã? É a filha virgem de Próspero, Miranda? Ela se apaixona e se casa com Ferdinando, filho e herdeiro de Alonso. A união está acima dos sentimentos, é uma ligação dinástica... Se o maior legado da confraria é um ritual de magia sexual que visa à concepção do Anticristo, eles querem repetir a ficção... O padre disse que o diabo é o macaco de Deus. Ele quer copiar o enredo dos Evangelhos: o filho que une Deus aos homens, a vingança que se converte em perdão. Esse livro parece um roteiro da confraria negra. Será que Shakespeare escreveu a peça sob encomenda?", refletia.

David, a reunião de pauta já começou - Mary interrompeu seus pensamentos.

Obrigado por me avisar — agradeceu, levantando-se e apanhando a bengala.

Parece que você está em outro planeta — comentou sua assistente.

Acho que estou sendo contaminado pelos seus best-sellers — alfi­netou David.

Não entendi.

Só que, em vez de procurar códigos na Capela Sistina, estou quebrando a cabeça com A Tempestade — explicou, avançando para a sala de reuniões.

Minha peça preferida - revelou Mary.

David parou, virou-se na direção de sua assistente e perguntou-lhe:

Então você também gosta de Shakespeare?

Prefiro as versões para o cinema.

Ele escreveu as peças para o teatro. Garanto que elas ficam me­lhores no palco do que nas telas.

— Gosto não se discute.

Se lamenta — completou David, sorrindo. — Quero que vá co­migo a uma encenação no Skakespeare s Globe. Sabe o que é isso, não?

Mais uma de suas provocações. Acho que nossa relação está fican­do agitada: jantar, corrida de cachorro, teatro...Talvez possamos dispensar a música erudita.

—Vamos discutir isso depois. Agora preciso ir à reunião. Estão me esperando.

—Aposto que essa bengala é mais do que uma bengala — insistiu Mary.

O que quer dizer com isso?

Deve ser uma espada disfarçada. Para se defender dos vilões e proteger sua dama.

— Quem sabe? — insinuou o jornalista, apertando os passos.

 

O senador Karl Bundy estava feliz com o desempenho de Michael. O agente especial do Vaticano fora hospedado em um dos melhores ho­téis de Londres, com identidade falsa. Talvez não resistisse às tentações do mundo. O lacaio do Duque Negro comprara a história de sua partida e estava neutralizado. O próximo passo era aproximar o jornalista do padre sem despertar suspeitas. Apenas a Operação Luxúria o preocupava. Um erro e sua cabeça rolaria. Ficara ressabiado com a ligação do banqueiro Max Fre­eman pedindo uma reunião de emergência em Nova York, no topo do GE Building, no Rockefeller Center. Chegara havia quinze minutos. Enquan­to o esperava no salão vazio do Rainbow Room, tomava um Manhattan observando a vista noturna da metrópole."Será que houve mudança de pla­nos? Ele bem que poderia desistir dessa operação maluca. Se alguém des­cobrir quem orquestrou isso, todos estaremos arruinados", pensava até ser surpreendido pelo homem de cinqüenta e poucos anos, cabelos grisalhos bem aparados, terno azul-escuro com camisa azul-clara e gravata dourada.

Sabe por que jamais estaremos arruinados, senador Bundy? — questionou Freeman, cumprimentando-o com a mão direita que osten­tava o espesso anel de ouro no indicador.

Por que, senhor?

Olhe pela janela, senador - recomendou-lhe, estendendo o braço direito. — Estamos acima de todos. Nós mexemos as peças do tabuleiro, dirigimos o destino das pessoas. Ninguém pode nos atingir.

Mas um assassinato, senhor...

Milhares de pessoas morrem casualmente todos os dias.Você sabe o significado de sacrifício? — indagou Freeman, encarando o senador com a sobrancelha esquerda erguida.

Não, senhor.

Pensava que os senadores fossem mais inteligentes - provocou-lhe, sentando-se à mesa. - A palavra é derivada do latim: Sacrificium. Sacro ofício, ofício sagrado. Não estamos falando de assassinato. Trata-se de uma oferta especial ao nosso mestre.

O Duque Negro? — quis saber Bundy, acomodando-se na cadeira diante do banqueiro.

Não. Alguém acima dele. Pensei que isso já tivesse ficado claro para você.

Desculpe-me, senhor. São tantos despachos por dia...

Que você esquece o essencial. Se não fosse por nós, você não seria nada, seu senadorzinho! — exasperou-se Freeman.

Em que posso ser útil, senhor?

Houve uma mudança de planos. O Duque Negro me procurou ontem. Ele teve uma premonição. Sua vida corre perigo — revelou Freeman.

Quer que o anjo da guarda elimine a ameaça?

Ela não pode ser eliminada. O Duque Negro me passou, provi­soriamente, as rédeas da organização.

Parabéns, senhor.

— Isso significa que não precisamos mais agir na surdina. Uniremos nossas forças.

Como assim?

O anjo da guarda deve procurar o Feiticeiro e lhe entregar o aparato. Ele fará o sacrifício.

Assim não poderemos ser implicados diretamente nesse crime...

Bundy deixou escapar.

Quem falou em crime? — retrucou Freeman.

Quis dizer sacrifício — corrigiu-se o senador.

Assim está melhor.

Nesse acordo, o Duque Negro fez uma exigência — prosseguiu o banqueiro.

Qual?

Após o sacrifício, o Feiticeiro deve ser eliminado do tabuleiro. Ou seja, assassinado.

Mas... O Feiticeiro não é filho dele? — inquiriu Bundy, perplexo.

É um maldito bastardo que perdeu o equilíbrio e está colocando em risco a nossa organização. E você conhece o destino dos traidores.

Ligarei para Michael e passarei as novas ordens.

— Muito bem, Bundy. Antes de iniciarmos o jantar, quero que me diga a principal lição que aprendeu aqui.

Sacrifício não é assassinato.

— Não. Basta olhar pela janela, senador — sugeriu Freeman.

Nós dirigimos o destino das pessoas. Ninguém pode nos atingir - respondeu Bundy.

—Vamos chamar o maître — disse o banqueiro, estampando um sor­riso de satisfação no rosto.

 

O almoço no Dinner by Heston Blumenthal fora esplêndido. Pietro retornou à suíte duas horas após o amuse-bouche, parcialmente embriaga­do e com o estômago cheio.

Meu Deus, considerarei essa extravagância um banquete da vitó­ria. Não um pecado desmedido de gula — justificou-se, deitando na cama.

Suas malas continuavam fechadas, próximas ao closet. Deduziu que eram roupas de grife. Fechou os olhos. Sentiu uma pontada dolorida no supercílio esquerdo. O desconforto passou em poucos segundos.

Que cama maravilhosa!

Esfregou-se no lençol macio e caiu no sono. Despertou com a cam­painha do telefone.

Quem é? — atendeu em italiano, mal-humorado.

Aqui é do spa do hotel, senhor. Liguei para avisar que seu trata­mento está marcado para daqui a quinze minutos.

Não marquei nada.

É cortesia do hotel — explicou a mulher do outro lado da linha. — Posso pedir para buscarem o senhor? Garanto que não se arrependerá.

Tudo bem — consentiu.

"Deve ser parte do meu prêmio", deduziu em pensamento.

Isso vai me fazer bem depois da noite de ontem — concluiu, sentando-se na cama.

Enquanto esperava, folheou o bloco de notas. O desfecho da missão fora mais simples do que supusera. Não precisava ter desperdiçado tantas horas de sono tentando entender magia enoquiana. "Com a morte do líder, a seita é desbaratada. Morte?!", surpreendeu-se com o próprio pen­samento. Conhecia sir Alexander Cotton apenas por meio das palavras do presidente do College of Arms: "O mais polêmico dos lordes. Ele tem métodos pouco ortodoxos para defender seus interesses".

O demônio disse que o sangue escorria das minhas mãos. Abaddon. Não apertei o gatilho. Mas se algo acontecer a sir Alexander Cotton, a culpa será minha! - angustiou-se Pietro, caminhando até a sala ao lado com o corpo inclinado para a frente. Sentia o peso em suas costas. Abriu a cortina e, por alguns minutos, escondeu-se entre as árvores do Hyde Park. A campainha soou na presidential suite. Ele fora achado.

 

Uma mensagem cifrada em seu celular o fez abreviar o almoço no Old Bull and Bush. Em menos de vinte minutos deveria entrar em uma conference call. Devorou o ribeye steak e virou a caneca de cerveja. Conseguiu chegar em casa a dois minutos da reunião virtual. Assim que ligou o com­putador, a chamada de Karl Bundy piscou na tela.

Boa-tarde, senador - respondeu Michael pelo microfone.

Boa-tarde. O santuário está decorado?

Uma decoração luxuosa. Tem até spa.

Ótimo. E o jornalista?

—Temos uma reunião hoje à noite. E as almas gêmeas se encontram amanhã. Em uma corrida de cachorros - esclareceu Michael.

Não combinamos esse código.

Não é um código. Estou me referindo ao hobby inglês.

— Ele deve ter os olhos vendados. Seja um jogador.

Isso não será um problema para mim.

Recebi uma nova bula — revelou o senador.

O que devo fazer?

Encontrar-se com o Feiticeiro.

Ele é um alvo? — questionou Michael, surpreso.

Por enquanto, considere-o um aliado.

Ele é um psicopata!

Quer um candidato melhor para executar a Operação Luxúria? — disparou Bundy. — Encontre-o amanhã e lhe entregue o aparato. O telefone e as instruções estão no seu e-mail.

Algo mais?

Silêncio. O senador desligara o telefone. Michael acessou a caixa de mensagens. O nome do Feiticeiro psicopata era Andrew. Deveriam se encontrar na London Eye. O operador da roda-gigante seria subornado para autorizar apenas duas pessoas em uma das enormes cabines de vidro. Quando ela completasse meia volta e estivesse no ponto mais alto, ele testaria a identidade de seu aliado com uma senha. Se a contra-senha es­tivesse correta, daria a ele a caixa lacrada com o aparato secreto. Partiriam em direções opostas assim que a cabine fosse aberta. "O Feiticeiro é trai­çoeiro. Não se esqueça de carregar o escudo. Ele te protegerá de qualquer armadilha", recomendara o senador ao fim da mensagem. Michael pegou o telefone e teclou o número do homem com quem lutara no Brompton Oratory e no qual cravara a lâmina do canivete na panturrilha esquerda. Seis toques. Alguém atendeu e ficou em silêncio.

—Você deve ser Andrew - arriscou o americano.

E você, o homem que salvou o padre. E furou a minha perna. Como devo chamá-lo?

Eu me chamo Michael.

Recebi uma ligação do mestre. Ele disse que você tem um pre­sente para mim, Michael.

Um belo presente, Andrew. Liguei para confirmar o lugar e o horário da festa.

London Eye, amanhã, às quatro horas.

"Melhor marcar no mesmo horário da corrida de cachorros. É minha garantia de que ele não atrapalhará os planos.Aquele cara é impre­visível", pensou Michael, sugerindo em seguida:

Pode ser às seis e meia?

Ok. Vejo você às seis e meia.

"Levarei duas armas além do escudo", decidiu o americano ao desligar o telefone. Os olhos pesavam. Queria descansar antes do en­contro com David. Depois do compromisso profissional, desejava rela­xar. Lembrou-se da noite passada. Nunca pensara que as horas em um hospital pudessem ser tão prazerosas. Tivera sorte de cruzar com uma enfermeira ninfomaníaca e gostosa. Acessou uma página de anúncios eróticos: "sósia de Pamela Anderson".

Uau! Ela se parece mesmo.

Ligou e passou o endereço de sua casa. Depois do encontro com o jornalista, merecia aquela recompensa.

 

No spa, Pietro trocara o terno Armani pelo roupão e esperava o mas­sagista sentado em uma cama confortável. Estranhou a situação. Depois de adulto, não expusera o corpo para ninguém, além de médicos. Inspirou profundamente. Aromas de flores, ervas e madeira ajudaram-no a relaxar. Ergueu a cabeça. A luz indireta criava um ambiente intimista, em tons ama­relados e rosáceos. Chamas de dezenas de velas balançavam com suavidade. Pareciam acompanhar o ritmo oriental da música ambiente. Desde que chegara a Londres, era a primeira vez que se sentia leve. Uma mulher se aproximou com um vestido preto justo, na altura dos joelhos. Cabelo preto bem curto. Olhos verdes iluminando o rosto de traços suaves. Sorriu. "Ela é linda", observou Pietro. Coração acelerado. "Não posso deixar que me roque.Tenho que resistir a essa provação", repetiu.

Prazer, eu me chamo Abby. O senhor poderia tirar o roupão e se deitar de bruços? Faremos uma massagem tradicional.

Como? — perguntou, desconcertado.

É sua primeira vez aqui, senhor Giovanni?

Sim.

Fique tranqüilo. O senhor sairá dessa sala com o corpo e o espí­rito renovados - garantiu Abby, sorrindo.

"Ela é uma profissional. Não posso julgá-la. Não pensarei boba­gens. Senhor, me ajude", rezou em pensamento, obedecendo às instru­ções da massagista. Com a cabeça repousando em uma toalha dobrada, observou a inglesa untar as mãos em um líquido denso e brilhante. "Deve ser óleo", concluiu.

Feche os olhos e relaxe, senhor — sugeriu a mulher.

Tudo bem, respondeu, completando em pensamento: "Maria Madalena massageou os pés de Jesus Cristo com óleo aromático. Isso aqui não é pecado. É quase uma encenação bíblica. Sou um simples padre seguindo o exemplo do Mestre".

Era uma metáfora pertinente. Estremeceu ao sentir o toque daquelas mãos macias em suas costas.

Algum problema, senhor? - questionou Abby.

Apenas me assustei. Me desculpe. Pode continuar.

As mãos dançavam em sua pele como duas bailarinas ágeis. Passos mais firmes e dolorosos nos "pontos de tensão". Em poucos minutos, seu pensamento embarcou de volta à terra natal e retrocedeu no tempo. Estava diante de um campo de futebol improvisado. Reconheceu o lugar. Era a região rural de Turim. O silêncio foi quebrado quando seis garotos de dez anos chegaram animados. Um deles carregava uma bola de capotão. Estava tão rota que parecia não resistir ao primeiro chute da partida. O padre acompanhou a divisão dos times e os minutos iniciais do jogo. "Cuidado, cuidado!", desesperou-se, antevendo uma tragédia. O dono da bola não enxergou uma vala. E levou um tombo a caminho do gol adver­sário. A parte frontal da cabeça se chocou contra uma pedra pontiaguda. Os outros vieram correndo. Sangue. Chacoalharam o amigo. Continuava desacordado. O padre passou a mão na própria testa.

 

Não tenha medo, meu filho.

A voz ecoou na escuridão.

Quem está falando comigo?

Eu sou seu melhor amigo. Sempre estarei com você.

Alguém aproximara-se com uma vela na mão direita. Tinha barba, bigode, cabelos longos, nariz adunco, pele morena e um sorriso acolhedor. Ele o reconhecera imediatamente. Era o homem pendurado no crucifixo na igreja.

Jesus! — exclamara.

Muitos chamam meu nome. Poucos me seguem.

Ele despertara em seu quarto, três dias após o acidente.

O que aconteceu, mãe?

Está tudo bem, meu filho.

Jesus apareceu para mim, mãe. Ele me chamou.Vou ser padre.

 

Pietro sorriu ao se lembrar daquelas palavras. Elas marcavam o mo­mento em que descobrira a vocação. As mãos da massagista deixaram suas costas. Agora, dançavam em suas coxas. O calor se espalhou pela virilha e atingiu seu sexo. Experimentou uma ereção. Coração acelerado. "Os pe­cados começam nos pensamentos. Preciso pensar em outra coisa...", disse para si. Em um gesto rápido, a massagista passou a mão direita por baixo da coxa e chegou ao pênis. Pietro abriu os olhos.

O que você está fazendo? — assustou-se.

Encontrando outras maneiras de relaxar o senhor.

Como?

Quero que se vire. Irei massageá-lo com meu corpo - respondeu Abby, abrindo o zíper e tirando o vestido. Não usava nada por baixo. Seios empinados.

— Meu Deus, se vista. Não posso... - balbuciou Pietro, cobrindo os olhos.

O senhor não me acha bonita? — perguntou Abby, com uma ex­pressão triste nos olhos.

Não é isso, minha filha - justificou o padre, olhando para ela. — Como você é linda...

Então me deixe terminar o serviço, por favor? Aposto que não vai se arrepender.

Pietro obedeceu. Deitou-se de costas e fechou os olhos. Os aromas de flores, ervas e madeira inebriavam o olfato. Arriscou uma espiadela. O corpo da mulher parecia a chama de uma vela, acompanhando o ritmo veloz da música oriental. Sentiu uma flecha incandescente atravessar seu sexo e atingir a massagista. Durante uma pequena fração de segundo toi inundado por um prazer avassalador para naufragar em seguida. Ao fim daquela sessão, o padre vestiu apressadamente o terno Armani. Sem nenhuma palavra de agradecimento, correu para o banheiro luxuoso da presidential suite. E, inúmeras vezes, esfregou o corpo sob a forte ducha de água quente. Depois, chorou ajoelhado diante da cama, esfregando a cicatriz em sua testa. Desejava apagá-la. Desejava que o pesadelo na noite anterior, no quarto do hospital, tivesse sido real.

 

Aquela fora a reunião de pauta mais estranha desde que ingressara no The Star. A relação entre o diretor do jornal, Paul Reiner, e o editor-chefe, Steven, estava visivelmente abalada.

Sem dizer quase nada nem disparar dezenas de comentários áci­dos, como habitualmente fazia, Steven revelava a fragilidade de sua po­sição. Tentava encontrar o ponto de equilíbrio e preservar sua carreira. "A corda está em seu pescoço", pensava David, exibindo um sorriso irônico durante seus breves comentários.A reunião encerrara-se com sua descrição da cobertura jornalística da visita de Fernanda Albuquerque a Londres, que lhe garantira um elogio de Paul, um olhar enciumado de Steven e um sorriso sedutor de Carolyn. Foi o primeiro a deixar a sala. Passou rapidamente por sua mesa."Esta minha assistente é linda", pensou, despedindo-se de Mary com um beijo no rosto.

Até amanhã - ela disse, sorrindo com os olhos.

No percurso até o Old Bull and Bush, David tentou relaxar com A Arte da Fuga — Contrapunctus VI. Pretendia organizar a mente antes do encontro. Não conhecia seu interlocutor. Era provável que fosse um amigo do padre. Mas também poderia ser uma armadilha. Um tiro no escuro. Inspirou profundamente. "Seita satânica... John Dee... William Shakespeare... A Mary é uma bruxa virgem. Talvez esse seja o capítulo mais surpreendente dos últimos dias", concluiu, esboçando um sorriso. Estacionou diante do pub e conferiu o relógio. Estava adiantado em cinco minutos. "Vou esperar no balcão." Sentou-se e começou a folhear a carta de vinhos. Alguém se aproximou.

Prazer em conhecê-lo, David - saudou-lhe um homem ruivo e sardento com sotaque americano. Vestia terno preto, camisa branca e gravata prateada, que não caíam bem no corpo atarracado.

Qual é o seu nome? — perguntou o jornalista, levantando-se e retribuindo o aperto de mão.

Eu me chamo Michael.

Michael, seu rosto me é familiar... Como poderia esquecê-lo?

Você estava no Orangery durante meu encontro com o padre. E não era meu convidado — ironizou David.

Eu também estava no Brompton Oratory quando vocês se en­contraram. E não fui até lá para colocar a conversa em dia com Deus.

Onde está o padre Amorth?

Ontem, corria risco de vida. Nesse momento, está melhor do que nós dois - respondeu, sentando-se e gesticulando para que David fizesse o mesmo.

Continua em Londres?

Está hospedado em um hotel na cidade, mas com outro nome. Digamos que deixou de ser padre por um tempo e virou um empresário bem-sucedido.

O e-mail que ele me enviou faz parte dessa farsa?

Foi uma das formas de despistar o inimigo. Seu notebook e ce­lular estavam grampeados.Você também está sendo monitorado, David — revelou Michael.

Qual é seu interesse nessa história? Você trabalha para o Vaticano?

Não interessa quem paga o meu salário, David.

—Você é americano, não?

Deve ter percebido isso pelo meu sotaque.

Provavelmente você sabe o que o padre veio fazer em Londres.

Faz parte do meu trabalho.

Também deve saber o motivo de nossos encontros.

Perfeitamente.

Se você protegeu o padre e me procurou, deduzo que seu chefe tenha algum interesse em nossas ações. Talvez nós três tenhamos o mesmo objetivo. A única coisa que muda é a maneira de expressá-lo — disse David.

O padre quer derrotar o demônio e boicotar o Apocalipse Negro.Você pretende desmascarar uma seita satânica e recuperar o prestígio profissional. Talvez meu chefe queira desbaratar uma quadrilha interna­cional de narcotráfico, prostituição infantil, terrorismo... E tudo o que sustenta o poder dos adoradores do diabo.

Sim, o alvo é o mesmo. Mas Pietro e eu agimos por vaidade, e vocês, como sempre, têm objetivos mais nobres — o comentário do jor­nalista foi sarcástico.

Não foi o que eu quis dizer — esquivou-se Michael.

Não importa. Estou disposto a colaborar com a... CIA... Acertei? Desde que haja uma contrapartida.

E qual seria?

Quero ter acesso aos seus arquivos desse caso. E exclusividade para publicar a história assim que a investigação for concluída — exigiu David, encarando seu interlocutor.

Essa é a contrapartida. Qual seria a colaboração?

Informações privilegiadas.

Interessante. Preciso consultar meus superiores.

—Vocês estão trabalhando com a Scotland Yard? — inquiriu o jornalista.

Não, aquilo é um ninho de serpentes. Os criminosos têm gente infiltrada.

Era a resposta que David desejava ouvir. Aproximou-se da mesa e questionou Michael:

Quando encontro o padre?

Amanhã, eu o levarei até você.

Tenho um compromisso... — dizia até ser interrompido.

Uma corrida de galgos. Será a estréia do Sabreur du Diable. Você convidou sua assistente para acompanhá-lo, uma nova-iorquina chamada Mary. Espero que a presença do padre não atrapalhe o encontro.

Vejo que está bem informado sobre mim. Deve conseguir me localizar no estádio. Qual é o nome do empresário que irei conhecer?

Giovanni de Santis.

Querem pedir as bebidas? — sugeriu o garçom, aproximando-se da mesa.

Uma água com gás, por favor - adiantou-se David.

Para mim, traga aquela Chouffe Bok 6666 - pediu Michael.

Eles têm essa cerveja aqui?

Não para os clientes comuns. Pensei que você só curtisse vi­nhos, David.

Gosto da história da bebida. Por que você escolheu essa cerveja?

Porque há coisas que não podem ser ditas. E uma pessoa esperta como você é capaz de ler nas entrelinhas. Faço questão que me acompa­nhe nesse brinde — respondeu o americano, observando o garçom trazer a garrafa e servir dois copos. Levantou-se e disse:

Saúde!

Saúde!

Não gosto de quem se esconde atrás de números, de enigmas, do demônio.Vamos arrancar a máscara desses criminosos, David - comentou o americano.

Conte comigo, Michael.

 

As doze convidadas já haviam chegado à casa de Mary Ann Evans. Como a anfitriã, vestiam túnicas negras e usavam colares no pescoço. Mary acendeu a lareira e apagou as luzes. No centro da sala, treze velas vermelhas circundavam o altar coberto por uma capa azul-escura.

Antes do banquete, vamos saudar Cernunnos — orientou Mary, desvelando a estátua de um homem nu, sentado na posição de lótus, bar­ba comprida, cabelos encaracolados.

Dois chifres na cabeça e a serpente erguendo-se da região pubiana distinguiam-no dos mortais.

Salve o Senhor do Mundo! — saudaram as jovens inglesas.

Com uma vareta, a bruxa americana acendeu as velas.

Façamos nossas oferendas - ordenou Mary, despindo-se da túnica. Untou as mãos com óleo e masturbou Cernunnos por alguns minutos. Logo depois, anunciou solenemente:

A cópula sagrada.

Virou-se de costas para as outras bruxas e agarrou os chifres, erguendo-se até o colo do deus conífero. Em silêncio, abaixou-se lentamente e penetrou a própria vagina com o falo animalesco. Orgasmos se seguiram enquanto cavalgava sobre a estátua e dizia:

Me possua!

Excitadas com a cerimônia, duas convidadas transaram aos pés do altar. Após quinze minutos, Mary berrou. Estava em êxtase. Permaneceu parada por alguns segundos. Olhos fechados. E levantou-se exibindo um largo sorriso. O mel vaginal escorria do sexo de Cernunnos.

Nunca trepei com homem nenhum. Duvido que exista alguém que me faça gozar desse jeito - comentou a jornalista, arrancando risadas de sua platéia.

Por isso sou lésbica. A língua da Abby é poderosa — retrucou uma inglesa de cabelos ruivos ondulados, emoldurando o rosto de traços suaves.

Assim você me deixa sem graça — respondeu uma mulher de cabelo preto, bem curto, que se deleitara com o sexo da companheira durante o ritual.

Conte para elas o que você fez hoje, querida.

Trabalhei como massagista no Mandarin Oriental — respon­deu Abby.

—Você faz isso há oito anos — desdenhou uma mulher aparentando vinte anos, cabelo loiro liso caindo sobre os ombros.

Mas, dessa vez, faturei uma boa grana. Tudo o que precisei fazer foi transar com um empresário estrangeiro.

Pelo menos, ele era bonito? - perguntou Mary.

Tinha um corte no supercílio esquerdo. E parecia que nunca ti­nha feito sexo na vida. A transa não durou nem cinco minutos. Quando ele gozou, ficou tão assustado que, mal se vestiu, saiu correndo.

Quanto você ganhou por isso? — indagou uma mulher negra, a mais alta e magra do grupo.

Um americano me pagou cinco mil libras.

Uau! — exclamaram as amigas.

Esse é o nosso primeiro encontro e já parecemos uma família — observou Mary.

Os três anos de encontros virtuais serviram para alguma coisa — considerou Abby.

E as encarnações passadas também — complementou sua na­morada.

Declaro oficialmente criado o nosso coven. Reuniões às sextas-feiras, a partir das nove horas. Podemos começar com o banquete e deixar o sexo para a meia-noite, como no Sabá tradicional.

Adoro tradições — concordou a mulher negra.

Você é mesmo virgem, Mary? — perguntou-lhe a única mulher de traços orientais do grupo.

Até hoje fui fiel a ele - revelou a anfitriã, apontando para Cernunnos. - Mas posso mudar de idéia nos próximos dias...

Como assim? - quis saber a ruiva.

Estou saindo com meu chefe. Ele é bonito, refinado, inteligente. Acho que o deus chifrado não vai se importar de dividir isso aqui — res­pondeu a americana, colocando a mão sobre a vagina descoberta.

Afinal, ele já tem chifres - brincou a indiana do coven, calada até aquele momento.

Todas riram da piada. Mary não achou graça, mas forçou um sorriso. A campainha soou. Antes de atender, a jornalista apagou as velas, cobriu seu consorte com a capa azul-escura e vestiu a túnica negra. Encontrou à porta uma mulher baixa e atarracada, bem acima do peso, entre duas magricelas altas. Elas vestiam roupas brancas e carregavam travessas.

Boa-noite, senhora. Sou Lucy, a personal chef — apresentou-se a menor delas.

Entrem. Estamos ansiosas pelo banquete.

 

Ele colocara o rosário sobre a cama e passara cinco horas ajoelhado no chão. Olhos fechados. A ronquidão no estômago aumentara nos últimos minutos. Apesar do farto almoço, estava faminto. "Devo fazer penitência", insistia consigo mesmo. Lutava contra o corpo. Os joelhos pareciam apoia­dos em agulhas. As costas queimavam. O corte no supercílio esquerdo era dardejado por uma dor aguda. Até aquele instante, conseguira esquivar-se das lembranças do spa. Quando sentia um aperto no peito, segurava o cru­cifixo entre as mãos e se esforçava para recordar episódios agradáveis. Os anos passados no seminário renderam boas lembranças e amenizaram sua angústia. Um ronco prolongado no estômago arrastou seus pensamentos para o banquete do almoço. Salivou. Com uma simples ligação, poderia colocar um ponto-final naquela tortura. Balançou a cabeça negativamen­te. Precisava domar os desejos do corpo para não mergulhar na escuri­dão. Sentiu um aperto no peito. Segurou o crucifixo com força. O rosto de Abby surgiu em sua mente. Tentou substituí-lo pelo de Ugo, o amigo brincalhão do seminário. Fracassou. Logo, ela já estava despida. Os seios empinados, mamilos cor de rosa. Pietro fechou a mão direita em punho. Um berro quebrou o silêncio quando ele golpeou o supercílio esquerdo. O líquido espesso encharcou a sobrancelha e desceu pelo rosto. A dor era lancinante. "Sou um traidor." Aromas de flores, ervas e madeira invadiram seu olfato. Podia ouvir a música oriental e os gemidos de Abby. Sentiu o pênis avolumar-se. Esmurrou novamente o corte, com mais violência. Mergulhou na escuridão. Uma luz difusa surgiu ao fundo e se aproximou. Era o mesmo homem que o visitara após o acidente no campo de futebol. Dessa vez, também carregava uma vela na mão direita.

Jesus Cristo?

Me chame como quiser, Pietro. Sou o amigo que prometeu nunca abandoná-lo.

O senhor me visitou quando eu tinha dez anos, depois nunca mais voltou.

Nunca voltei porque jamais fui embora.

Por que me sinto abandonado?

Porque foge de si mesmo.

Sou uma ovelha desgarrada. Não mereço ser padre.

Bendita seja sua mãe pelo nome com o qual te batizou.

Uma homenagem ao apóstolo Pedro.

Muitas vezes, Pietro, aquele homem não compreendia as palavras de seu mestre. Era capaz de empunhar a espada para defendê-lo, mas fu­giu quando ele mais precisava. Mesmo assim, foi o escolhido para guardar as chaves do reino dos céus.

Por quê?

Você mesmo deve responder a essa pergunta — aconselhou, so­prando a vela.

No mesmo instante, a dor lancinante voltou. Tentou abrir os olhos. O direito ficou entreaberto. Descolou as pálpebras do lado esquerdo com a mão. Pegajosas. Levantou-se do chão do quarto e foi ao banheiro. Deteve-se a poucos passos do espelho. Receava ver o próprio reflexo.

Senhor, salvai-me — implorou. Fechou os olhos. Aquela sú­plica lhe era familiar. Lembrou-se do episódio em que Pedro fora chamado para ir ao encontro de Jesus Cristo, caminhando sobre as águas. A violência do vento o amedrontara e ele começara a afundar. Desesperado, o discípulo suplicara a Jesus Cristo que o salvasse. A mão salvadora do mestre chegara acompanhada por uma repreensão: ''Homem de pouca fé, por que duvidaste?". O padre conhecia o simbolismo daquela passagem bíblica. O mar representava o mal. Em suas profundezas, reinava o império das trevas. Lembrou-se do que dissera em uma de suas homílias: "Não importam os ventos contrários, as tempestades que nos atingem, o Senhor sempre vem em auxílio de seus filhos para livrá-los do perigo".

Senhor, salvai-me — repetiu, aproximando-se do espelho e enca­rando seu reflexo. Os golpes tinham afrouxado um dos pontos e provo­cado um afluxo de sangue, que embebia a sobrancelha esquerda e deixava um rastro na face. Aquela estranha lágrima refletia horas, dias, anos de an­gústia. O padre deu um tapa sonoro na face direita. E caiu na gargalhada.

Seu padre estúpido. Parece que não entendeu nada até hoje. Jamais, jamais pense que está sozinho na tempestade. Basta pedir ajuda ao seu amigo. Obrigado, Jesus, obrigado por me estender sua mão.

 

Aos vinte e cinco anos, ele descobrira o dom de farejar mentira. Se alguém tentava enganá-lo, era desmascarado por um zumbido no ouvi­do direito. Ele batizara esse sinal de "cigarra atrás da orelha". A intuição infalível era ineficaz na vida privada, mas garantia de sucesso na car­reira jornalística. Percebia quando o entrevistado estava mentindo e o encurralava na pergunta seguinte. "Nasci equipado com um polígrafo", confidenciara a Steven ao ser contratado pelo The Star. Sentado em sua poltrona vermelha diante da lareira, cachimbo na mão, David pensou no encontro com Michael. O "agente secreto" fora evasivo em suas respostas. E não apresentara nenhuma prova de ser membro da CIA. Mas David não desconfiara dele até o momento em que brindara com a Chouffe Bok 6666. "Não gosto de quem se esconde atrás de números, de enigmas, do demônio.Vamos arrancar a máscara desses criminosos, David", dissera Michael, despertando a cigarra no ouvido do jornalista.

Ele não quer desmascarar os criminosos... Deve trabalhar para eles... O braço americano da seita satânica - pensou em voz alta.

Pegou o copo com conhaque na mesinha ao lado e ligou o som. En­quanto ouvia A Arte da Fuga — Contrapunctus VIII, de Bach, recordou-se de passagens da peça A Tempestade, que lera no computador antes da reunião de pauta. O livro estava ao seu lado, próximo à garrafa de conhaque, mas não queria pegá-lo. Um trago no cachimbo. "Esse agente americano está nos se­guindo desde o começo e sabe tudo o que discutimos. Ele confinou o padre em um hotel, com uma identidade falsa, e assumiu o controle da missão. Se ele trabalha para a seita, está nos arrastando para uma armadilha, está fazendo o mesmo que Próspero fez com os inimigos, levando-os para o seu territó­rio, a ilha deserta. Padre, estamos em uma tempestade", deduzia. As pálpebras pesavam. Conseguiu se arrastar para o quarto. Apesar do cansaço, fez o ritual diário antes de dormir. Menos de vinte minutos separaram o último gole de conhaque do sono profundo. E em menos de trinta minutos deixou seu quarto para passear de mãos dadas com seu pai, no bosque do castelo.

Papai, não gosto daqui.

Por que, filho?

Os monstros se escondem na floresta.

Que monstros, filho?

Eles não me deixam dormir, papai. Entram pela janela.

Não vou deixar nenhum monstro fazer mal a você, filho.

Os dois foram pegos de surpresa por um grunhido assustador. O monstro surgiu detrás de um arbusto e avançou sobre David. O animal parecia um cão raivoso, pelos negros ouriçados. Os olhos faiscavam. Fu­maça escapava-lhe do focinho. Enquanto rosnava, sangue borbulhava nas presas afiadas.

É ele! — gritou o garoto, escondendo o rosto atrás da perna do pai.

Maldito cão do inferno, fique longe do meu filho! — berrou seu pai, sacando uma lâmina escondida na bengala de passeio e jogando-se sobre o animal.

Um breve e terrível grunhido. O golpe fora fatal.

Esse não vai mais machucar você. Mas virão muitos outros, filho.

David encarou o animal estirado na relva, morto. Berrou quando ou­tro monstro, maior do que o primeiro, saltou detrás de uma árvore. Olhou para o lado na esperança de que o pai o salvasse. Estava sozinho. Coração a mil. Queria fugir, mas sentia as pernas dormentes. Cobriu o rosto.

Enfrente seus medos.

Ao ouvir aquela voz, abriu os olhos. O cenário havia mudado. Estava em uma praia. Um homem alto e magro caminhava sobre o mar, em sua direção. Tinha barba longa, cabelos cobertos por touca, túnica escura.

Sei quem você é. O que quer comigo, John Dee?

Quero que deixe as pernas de seu pai e derrote sozinho os monstros.

Monstros não existem.

Então por que sente medo deles até hoje?

Não tenho medo.

Ora, David, o medo transforma anjos em demônios, servos de Deus em discípulos do diabo, rituais sagrados em crimes hediondos, ani­mais afáveis em bestas sanguinárias.

O que quer comigo?

Quero que mereça esse prêmio - respondeu, mostrando um li­vro de aproximadamente vinte centímetros de comprimento, dezoito de largura e cerca de cinqüenta páginas. Lombada prateada.

Não estou interessado em magia negra.

Isso é o mais perto que você pode chegar de Deus! Volte ao bos­que e prove que não é mais um garoto medroso.

No tempo de uma piscada, David estava novamente diante do ani­mal diabólico. Respirou fundo. Apanhou uma pedra no chão e atirou contra ele.

Quer brigar, venha! — ameaçou, com as mãos em punho.

O cão avançou, abanando o rabo. Era dócil como o Sabreur du Diable.

Eu não disse, David, o medo transforma animais afáveis em bestas sanguinárias.

O jornalista despertou às seis e meia com aquelas palavras na cabeça.

 

Fascinado com o segredo do Sigillum Dei, Andrew deixara as outras peças do British Museum de lado. Nada poderia se comparar àquela reve­lação. Ele se convencera de que era o filho de Samyaza, mesmo que a lista de nomes no último pergaminho apontasse para outra pessoa. Comemorara a descoberta com um porre e acordara às onze da manhã, encolhido no sofá do porão. Ficou deitado por alguns minutos, tentando lembrar-se do sonho. Estava na sala de armas de um castelo. Havia outro homem lá. Pouco mais baixo do que ele, longas barbas brancas, túnica escura."O mestre Dee queria me mostrar alguma coisa", pensou. Fechou os olhos e franziu o cenho. Na mão esquerda, o homem do sonho levantava um objeto redondo e chato. A superfície refletia espadas pregadas na parede à sua direita.

Sabe o que é isso, Andrew?

Um espelho mágico.

Espelhos são moldados pelos homens. Isso é um presente dos anjos. Com ele você pode contemplar outros mundos e se comunicar com in­teligências não humanas.

Eu poderia tocar nele, mestre?

Apenas os homens destemidos podem fazer isso.

Estou entre eles?

Descubra você mesmo.

Andrew saltou do sofá e apanhou o embrulho redondo e chato que recebera do curador do British Museum. Arrancou o plástico e sorriu. Estava diante do "presente dos anjos". Era um pedaço de antracite bem polida, assemelhando-se a um espelho negro.

O sangue sagrado corre em minhas veias, mestre. Sou destemido - gabou-se, levantando o objeto com as duas mãos.

Um estrondo estremeceu o porão. Andrew se desequilibrou, mas conseguiu apoiá-lo sobre o Sigillum Dei. Outro estrondo. Dezenas de raios subiram da superfície negra, atingindo o teto.

Quem quer que seja, vai precisar mais do que isso para me intimidar.

Seu tolo, eu sou o verdadeiro mestre — retrucou uma voz grave, vinda do espelho.

Quem está aí?

Tenho muitos nomes, mas pode me chamar de Samyaza.

O rei deste mundo.

Ele mesmo.

Meu pai?

Como quiser.

Como posso servi-lo, senhor? — perguntou Andrew, aproximan­do-se da voz. Um empurrão arremessou-o contra o sofá.

Não se aproxime.

Estou às suas ordens.

Seu pai fez uma aliança com a águia e assinou sua sentença de morte, Andrew.Você foi traído pela única pessoa que amava.

Não é verdade! - gritou Andrew, olhos arregalados, rosto ruborizado.

O que eu ganharia mentindo para você, filho?

O que eu devo fazer?

Obedeça as ordens da águia, realize o casamento sagrado. Quan­do deixar o leito matrimonial, você será perseguido. Mate a si mesmo e sobreviva.

Devo me suicidar?

Não seja estúpido. Faça outra pessoa pagar essa dívida e se mova na escuridão. O inimigo vai conduzi-lo até o tesouro. Siga suas pegadas e fique com o troféu. Todos temerão o seu poder.

Qual inimigo vai me conduzir?

Aquele que roubou sua vida.

Aquele maldito! — berrou Andrew, fechando a mão direita em punho. - Posso matá-lo?

Um sopro gélido o rodeou antes de mergulhar no espelho negro e desaparecer em suas profundezas. Silêncio. Estava novamente sozinho naquele porão. Lembrou-se de seu pai e sentiu um aperto no coração. Garganta seca. "Você foi traído pela única pessoa que amava". Aquela acusação o enchera de tristeza. E raiva. Prendeu a cabeça entre as mãos. Desejava se vingar. E Samyaza lhe mostrara o melhor caminho.

— Obrigado, senhor Dee. Esse presente dos anjos abriu meus olhos. Sou melhor do que aquele verme. Sou maior do que o Duque Negro. Sou o herdeiro de Samyaza! - bradou como um guerreiro, prestes a se lançar contra os inimigos.

 

Conferiu o relógio de pulso. Faltavam sete minutos para o encontro. Era o tempo de estacionar o carro e caminhar vagarosamente até a casa de Mary. Vestiu o blazer navy, os botões de ouro cunhados com o brasão de sua família, e apanhou a bengala. Vestia calça cavalry twill tradicional, em tom castanho mais escuro do que as atuais, e camisa quadriculada, sem gravata. Nos pés, um full brogue em camurça castanha. A poucos passos da entrada, a porta se abriu. Era Mary, com um belo sorriso no rosto. Usava um tailleur azul-escuro. A meia-calça preta terminava em um salto agulha. O chapéu delicado imprimia um toque de sofisticação no figurino.

— As americanas também sabem ser pontuais — brincou Mary, apro­ximando-se de David.

Isso é o que o mundo chama de pontualidade britânica - retru­cou o jornalista, conferindo o horário: cinco e meia. — Detesto ser repe­titivo. Mas, nesse caso, é inevitável.Você está deslumbrante, Mary.

Se todos os homens fossem repetitivos como você, as mulheres seriam mais felizes.

David aproximou-se de Mary e a beijou como não podia fazer na redação do The Star.

Está preparada para assistir a uma corrida de galgos? — emendou a pergunta, estendendo o braço esquerdo na sua direção. O outro se apoiava na bengala.

Costumava freqüentar corridas de cavalo. Mas de cachorros... E novidade para mim — respondeu Mary, caminhando de braços dados com seu chefe.

Espero que goste. Preciso lhe dizer algo antes que seja apanhada de surpresa.

O quê?

Lembra-se do padre italiano?

Já ouvi falar muito sobre ele.

—Vamos nos encontrar na corrida.

Pensei que eu fosse sua única convidada... — lamentou.

E era. Mas houve um contratempo — justificou, abrindo a porta do carro.

David, sou sua única assistente. Você não acha que deveria confiar mais em mim?

Não sei como você lidaria com esse assunto. É muito preconceituosa — respondeu o jornalista, batendo a porta do carro. Ela soltou a resposta assim que ele surgiu do outro lado:

Garanto que sou menos preconceituosa do que esse padre ita­liano. Eu já freqüentei casamentos e batizados. Ele jamais participaria de nenhuma cerimônia celta. Se estivesse em casa ontem, tentaria exorcizar o coven inteiro.

Tudo bem, Mary. Vamos fazer um acordo. Eu conto a verdade e você finge que não sabe de nada. Pretendo escrever um livro sobre o assunto e precisarei de uma assistente para me ajudar nas pesquisas.

É um convite?

Um convite vinculado a uma promessa.

Tudo bem. Aceito seus termos.

Lembra-se da minha versão do Estripador de Londres? - indagou, pisando no acelerador.

Os assassinatos foram cometidos por uma seita satânica comandada por pessoas poderosas.

—Você deve recordar que o padre Amorth me ajudou nas inves­tigações.

Claro.

Ele está em uma missão sigilosa em Londres, Mary. Membros da seita estão tramando algo.

O quê? — surpreendeu-se, girando o tronco na direção do motorista.

O Apocalipse Negro.

O que isso significa? Um ataque em massa? - especulou Mary.

Não sei ainda.

Uau! Vocês já pensaram em pedir ajuda ao serviço secreto britânico?

Não posso confiar em quase ninguém. A Scotland Yard faz parte dessa conspiração e já me prejudicou uma vez.

Conte comigo, David. Estou do seu lado, mas espero que você respeite minhas crenças.

A única semelhança entre você e os satanistas, Mary, é que ambos seguem um deus com chifres - assentiu David, com um sorriso no rosto.

Ele se chama Cernunnos. Algum dia vocês serão apresentados.

Não vejo a hora — retrucou o jornalista, ligando o som do carro. Estacionaram no Wimbledon Greyhound Stadium ao som de "Too Young", na voz de Nat King Cole.

 

O padre chegara ao saguão de entrada do Mandarin Oriental às dezessete e trinta. Esperava Michael sentado em uma poltrona, The Independent à mão. Trajava um terno cinza-escuro, camisa branca, gravata cin­za com diminutos quadrados azuis. Cabeça coberta por um tradicional homburg preto. Encontrara o vestuário nas malas deixadas em seu quarto. Lia um artigo sobre a política norte-americana no Oriente Médio. Sen­tiu calafrio. Espiou atrás das folhas abertas do jornal. Coração a mil. Mãos suadas. A massagista que o seduzira passava por ele sem notar sua presen­ça. Respirou fundo e desviou o rosto. "Não posso", pensou, fechando os olhos. O celular tocou. Era Michael.

Senhor Giovanni, cheguei.

O padre deixou o jornal de lado, apanhou o sobretudo polo coat azul e encontrou-se com o "motorista" na entrada do hotel.

Está elegante, senhor - elogiou Michael, assim que Pietro en­trou no carro.

Não uso chapéu.

Me disseram que esse modelo ficou popular quando um rei de­cidiu usá-lo.

Não me importo com isso. Como foi seu encontro com David?

Muito bom. Ele sabe defender seus interesses.

Quais interesses?

Vocês poderão conversar sobre isso pessoalmente daqui a meia hora — respondeu Michael, dando a partida.

—Você é um homem de palavra, Michael. Cumpriu o combinado.

Sou um simples motorista — brincou, fitando o padre pelo retro­visor, com um sorriso no rosto.

Obrigado.

Está aproveitando a estadia no Mandarin Oriental, senhor?

—Você sabe que eu me contentaria com um quarto simples.

Gostou da massagem?

—Você armou aquilo, seu canalha? — exasperou-se Pietro, avançan­do sobre o banco do motorista.

Não entendi, senhor.

Aquela prostituta!

Não sei do que está falando. Simplesmente recomendei ao gerente que lhe desse o melhor tratamento que um hóspede poderia desejar. E o spa é um dos atrativos do lugar. Que história é essa de prostituta?

Esqueça. Até quando devo fingir que sou outra pessoa? — inda­gou, recostando-se.

Até a missão acabar.

Por mim, ela já acabou.

Eu não estaria tão certo disso, senhor Giovanni.

Como assim, Michael? — questionou, aproximando-se novamente do banco do motorista.

Sir Alexander Cotton é um notório apreciador de corridas de cachorro. Ele estará presente no estádio, em uma mesa próxima à de vocês. Se ele é quem você pensa que é, o anjo exterminador ainda não fez o trabalho. Talvez seja uma ótima chance de vê-lo entrar em ação.

O que você sabe sobre isso?

Giovanni, sei tudo. Isso não devia ser novidade para você. Abaddon é uma das senhas do esquadrão da morte da Igreja Católica — revelou Michael, com o cenho franzido, fingindo seriedade.

A Igreja Católica não tem esquadrão da morte! — gritou Pietro.

Não seja ingênuo, Giovanni. Esse esquadrão existe e é uma ver­são moderna dos cruzados. Mas, em vez de lutar contra os infiéis, ele combate os servos do Diabo.

— Como nunca ouvi falar disso?

Eles não promovem massacres públicos, Giovanni. Matam em segredo. Alguém precisa fazer o trabalho sujo, não acha?

O padre ficou calado. As Cruzadas e a Inquisição faziam parte de um capítulo sangrento na história da Igreja Católica. O papa João Paulo II já fizera o mea culpa pelos erros do passado. "A única arma da Igreja no século XXI é a palavra de Deus!", o cardeal Gabriele Fioravante dissera aquilo aos berros, assim que ele lhe confessara seu crime. "Foi a presun­ção que o tornou um assassino, Pietro." O padre chegava ao estádio com a lembrança daquelas palavras. E uma expressão de dúvida no rosto.

 

Estava ansioso para reencontrar o amigo. Assim que estacionou o carro, apressou-se em direção ao local em que ele estava. Mary seguiu um pouco atrás, sem se importar com a falta de atenção de David. Per­cebia como aquilo era importante para ele. Na entrada do lugar em que o galgo ficava, ele cumprimentou um homem de estatura mediana, com roupa esportiva ligeiramente suja. Mary deduziu que era o treinador do Sabreur du Diable. Ao ver o cachorro que ganhara de sua mãe, ainda fi­lhote, o jornalista abriu um largo sorriso. O galgo correu em sua direção, abanando o rabo e latindo. "Ele deve estar querendo dizer 'Por que você me deixou aqui? Minha casa é mais confortável'. Se não fosse essa grade, os dois rolariam no chão de terra", concluiu Mary, observando seu chefe se abaixar. Diante da assistente, David se contentou em acariciar a cabeça do animal e surrurrou-lhe:

Não me importa que seja o azarão, dê o melhor de si.

Mary se aproximou. O cão virou-se para ela, silencioso. Sem dizer nada, a americana abaixou-se e passou as palmas das mãos na terra. De­pois se levantou, pronunciando palavras em uma língua que David não conhecia e soprando o pó na direção do Sabreur du Diable.

O que está fazendo? — perguntou o jornalista, estranhando o ritual.

Transformando o azarão no favorito.

Isso é bruxaria?

Digamos que sim.

Agradeço pela boa intenção, mas isso não vai dar certo, Mary. O favorito é o Mosquete de Trafalgar, de sir Alexander Cotton.

Garanto que quem apostar nesse aqui vai embora feliz para casa — retrucou sua assistente. —A propósito, por que o batizou com um nome francês tão sinistro como Sabreur du Diable?

Da mesma maneira que seu deus chifrudo não tem nada a ver com o diabo, o Sabreur du Diable não tem nada a ver com religião. Esse era o nome do galgo preferido de Santos-Dumont.

Quem é Santos-Dumont?

O rival dos irmãos Wright.

O inventor brasileiro do avião... Pensei que aquilo fosse piada. Por que se interessa tanto por esse homem, David?

Vamos até o restaurante. Eu conto no caminho — sugeriu seu chefe. — Adeus, campeão — despediu-se do animal e deu o braço esquerdo para Mary segurar durante a caminhada.

Tudo começou com uma provocação do presidente do aeroclube de Londres. Ele disse que a história da aeronáutica era uma farsa e me emprestou um livro de sir Peter Wykeham, um alto oficial da Royal Air Force. Era a biografia Santos-Dumont: O Retrato de uma Obsessão. Me iden­tifiquei com o protagonista.

Isso é muito surreal. O que um jornalista inglês teria em comum com um aviador brasileiro?

Seu pai era um produtor milionário de café e doou sua parte na herança ainda em vida. Santos-Dumont usou o dinheiro para seguir sua vo­cação. Ele se diferenciava dos outros inventores pela criatividade e pelo estilo. Tinha um gosto refinado, apreciava gastronomia, vinhos, boa literatura.

Parece que você está se descrevendo.

Ele não foi importante apenas na história da aviação, Mary. Os amantes de relógios como eu, prestam a ele as devidas honras.

Não vai me dizer que ele também é o inventor do relógio?

Desde a primeira vez que te vi, na redação, prestei atenção no seu pulso.Você usa um Cartier Santos 100. Sabe o que isso significa?

Uma coincidência de nomes?

Resposta errada. No início do século XX, as pessoas usavam relógios de bolso. Durante as experiências aeronáuticas, Santos-Dumont percebeu que precisava de algo mais prático para medir o tempo de vôo. E fez uma encomenda ao amigo Louis Cartier. O mundo se rendeu àquela invenção.

—Você está me dizendo que ele criou o relógio de pulso?

Não exatamente. Algumas versões já tinham sido criadas e utili­zadas por militares ou pelas mulheres. Eu diria que ele foi o responsável pela idealização do primeiro modelo comercial. E democratizou seu uso provando que podia ser prático e elegante exibi-lo no braço, em vez de escondê-lo no bolso.

Fascinante, David. Mas nunca conseguirá me convencer de que ele criou o primeiro avião.

Não perderei meu tempo com isso — retrucou seu chefe.

Acabavam de chegar à recepção do Grandstand Restaurant. Foram conduzidos à mesa reservada pelo jornalista, diante da linha de largada. Sentaram-se de frente um para o outro. Restaram quatro cadeiras vagas.

Onde estão os outros convidados? — brincou Mary.

Convidei apenas você. Mas imprevistos acontecem.

Faltava meia hora para a primeira corrida e o salão continuava vazio. O jornalista pediu a carta de vinhos.

Eles precisam aumentar as opções - queixou-se, ao consultar os rótulos disponíveis. — De qualquer maneira, uma Möet & Chandon Brut Imperial é uma ótima escolha para celebrarmos a estreia de Sabreur du Diable... — disse, encarando Mary. - Eo nosso segundo encontro fora da redação.

Ela respondeu com um sorriso.

 

Relutara consigo mesmo em aceitar a história do "esquadrão da morte" da Igreja. Uma coisa era um homem cometer assassinato para defender sua fé. Outra bem diferente era a Igreja defender seu rebanho usando violência. A afirmação de Michael contradizia suas crenças, mas tornava seu pecado algo menos terrível. Afinal, imitara um modus operandi da mesma instituição que orientava seus passos. Imerso em pensamen­tos, deixava-se conduzir pelo americano. Não percebeu quando passaram pela recepção do Grandstand Restaurant. Foi pego de surpresa com a saudação de David:

—Você está elegante, padre...

Deixe-me apresentá-lo a Giovanni de Santis, David — interrompeu-o Michael.

Prazer em conhecê-lo. Essa é minha assistente, Mary — disse o jornalista.

O padre tomou a mão da americana e a beijou, exibindo um sorriso no rosto.

Uma ótima escolha, David.

Obrigada, senhor — agradeceu Mary, retribuindo o sorriso. Con­trariando a própria expectativa, sentiu empatia por aquele homem gentil e afável.

—Vejo que se machucou.Você está melhor? — indagou David, ob­servando o curativo no supercílio esquerdo.

Isso aqui foi um pequeno acidente doméstico. Nada grave - res­pondeu o padre.

Vim até aqui só para apresentá-los. Preciso me retirar para um compromisso. Espero que tenham uma noite agradável. Sorte para vocês — despediu-se Michael.

Pietro sentou-se ao lado de David. Retirou o chapéu e o colocou na cadeira ao lado. Sorrindo, abraçou calorosamente o jornalista e disse:

Estava com saudade, meu amigo.

—Você aceita champanhe?

Por que não?

Os padres bebem champanhe? — sussurrou Mary, surpreenden­do Pietro.

Ela sabe quem eu sou? — perguntou para David.

Tudo bem, padre. Minha assistente é uma das poucas pessoas em quem confio. Ela pode nos ajudar nessa missão.

Antes de falar sobre a missão, quero lhe explicar uma coisa, Mary. O primeiro milagre de Jesus Cristo foi a transformação de água em vinho. Calcula-se mais de seiscentos litros do melhor vinho da época. Imagi­ne só. E o champanhe foi criado pelo monge beneditino francês Dom Pérignon. Um padre que não bebe é praticamente um herege! - termi­nou a frase com uma gargalhada.

Gostei dele, David — comentou Mary.

O balde com a garrafa de champanhe chegou à mesa. O sommelier desarrolhou a garrafa, quase sem fazer barulho, e serviu as taças.

Um brinde ao Sabreur du Diable - adiantou-se Mary.

A quem? — Pietro arregalou os olhos.

Ao meu galgo. E sua estréia nas pistas.

Um brinde ao cachorro com nome francês — brincou o padre. — E outro ao belo casal que vocês formam.

Mary ficou ruborizada. David sorriu. Pela primeira vez via o padre tão bem-humorado.

Soube que você esteve no College of Arms. O que descobriu? - indagou-lhe o jornalista.

Mas que surpresa! Sir David Rowling — um homem que passava pela mesa interrompeu a conversa. Era alto e trajava um casaco tweed da Cordings of Picadilly, camisa quadriculada e gravata vermelha, com galgos bordados. Nos pés, botas da Trickers. Era um uniforme tradicional dos caçadores ingleses.

Boa-noite, sir Cotton — respondeu David, levantando-se para cumprimentá-lo. — Esses são meus amigos: Giovanni e Mary.

Prazer em conhecê-los — retrucou o lorde, cumprimentando pri­meiro a dama da mesa e estendendo a mão para Pietro.

Coração aos saltos. Respiração curta e rápida. Com a mão suada, o padre apertou a mão fria daquele homem. Não estava em seus planos conhecê-lo.

Você está trabalhando no tablóide The Star, não? — sir Cotton voltou-se para David.

Há quase dois anos.

Deve se sentir à vontade por lá. Pode inventar o que quiser sobre as celebridades. Elas sempre agradecem. É a vitória do "falem mal, mas talem de mim" — alfinetou o lorde, dando-lhe às costas e sentando-se duas mesas adiante, com um grupo de cinco homens em trajes esportivos. Bebiam uísque.

Sir David? — perguntou Mary.

Pelas convenções, sim.

Que homem estúpido — prosseguiu sua assistente. — Por que ele te atacou dessa maneira?

É simples. Eu o denunciei como parte da seita satânica. No orga­nograma, ele era um dos membros de honra.

Sir Alexander Cotton — sussurrou o padre, recuperando-se do susto. - Ele é a resposta ao terceiro enigma, David. Ele é o grão-mestre da confraria negra. Se preferir, seita satânica.

—Você está me dizendo que ele é o Duque Negro?

Sim. Tenho certeza disso — confirmou Pietro.

Na minha investigação, encontrei alguns indícios que levavam até ele. Mas não eram fortes o suficiente para acusá-lo de chefiar a organiza­ção. Essa é uma acusação grave. Muito grave — advertiu David.

Eu acredito em você — apoiou Mary, fitando os olhos assustados de Pietro, sem o brilho de minutos atrás.

 

Ele pisou fundo no acelerador. Não podia se atrasar para o encontro com o Feiticeiro. Planejava entregar-lhe a caixa de madeira com o artefa­to e o envelope lacrado. E se mandar em seguida. Não tinha o que con­versar com Andrew. Apenas um psicopata aceitaria executar a Operação

Luxúria, e Michael preferia evitar os loucos homicidas. Além do mais, não queria perder o compromisso mais importante do dia. Um encontro privado com a sósia de Pamela Anderson. O telefone tocou. Reconhe­ceu o número do senador Bundy. Pensou em não atendê-lo. Não estava preparado para uma mudança de planos na última hora. Mas contrariar aquele homem não seria um bom negócio. Preferiu não arriscar. Colo­cou no viva-voz.

Está indo encontrar o Feiticeiro?

Sim, senhor.

Ótimo. Não o deixe irritado. Espero que esteja levando o escudo consigo.

"Merda, esqueci aquela porcaria em casa", pensou Michael, emen­dando a frase:

Sim, senhor, está no bolso do casaco.

Ele é muito esperto e perigoso. Aposto que já está desconfiado da traição.

Como assim? Alguém vazou a informação? - surpreendeu-se Michael.

Não posso dizer.

Alguma recomendação?

Sim. Após entregar o pacote, diga que uma pessoa próxima a ele quis apunhalá-lo pelas costas. Mas o mestre americano não aceitou isso, porque está convencido de que ele é a realização da profecia. Só está à espera de uma confirmação para romper com os britânicos e nomeá-lo mestre supremo — instruiu Bundy.

Ele saberá do que estou falando?

Seguramente. E, se acreditar, deve entregar a você dois pequenos pergaminhos que, provavelmente, carrega no bolso.

O que devo fazer com isso?

Quando as almas gêmeas encontrarem o tesouro, deposite os papéis no Santuário. Ele saberá o que fazer. Como estão nossos homens?

Giovanni de Santis está aproveitando muito bem o conforto do hotel. Correm rumores de que transou com a massagista. Depois de per­der o cabaço, saiu correndo para a suíte.

—Você não presta, Michael — disse Bundy, caindo na gargalhada. — É uma maneira eficaz de minar a resistência do Santuário.

Obrigado, senhor.

Ele também ficou fora de controle quando falei sobre o esqua­drão da morte da Igreja e, pelo que captei por intermédio de uma escuta, ele acaba de apertar as mãos do homem que acredita ter mandado matar.

Ele conheceu o lorde caçador?

Sim, todos estão reunidos na corrida de cachorro.

Depois, quero uma gravação da conversa. Mais alguma coisa que eu deva saber?

Sim, senhor. As almas gêmeas não estão sozinhas.

Quem está com elas?

Uma mulher, americana. Ela é assistente do jornalista. Os dois estão tendo um caso. Devo me preocupar com ela?

Ela não nos interessa. Deixe-a fora disso.

O jornalista confia nessa mulher.Talvez ela interfira no curso dos acontecimentos — justificou Michael.

Monitore a conversa deles. Se notar algo anormal, me comunique. Mas não desvie sua atenção para personagens periféricos.

Ficarei alerta.

E com os dois pés atrás no encontro com o Feiticeiro. Até logo — despediu-se Bundy.

 

O padre listou mentalmente os Sete Pecados Capitais. Se precisasse escolher um para descrever o lorde, ficaria com a soberba. Nos primeiros séculos do cristianismo, aquele pecado fora considerado o mais terrível. "O orgulho agrava todos os outros", pensou Pietro, lembrando-se do monge grego Evagrius Ponticus, autor da primeira lista de crimes e paixões hu­manas. Pegou a taça de champanhe, voltando-se novamente para a mesa de sir Cotton. Com um copo de uísque na mão, o aristocrata inglês o en­carava. Calafrio. Durante os exorcismos, Pietro ficava frente a frente com o poder das trevas. Os demônios usavam palavras para ofendê-lo e gestos para agredi-lo. Porém, a sensação mais aterrorizante era o silêncio, quando o possuído se calava e o próprio diabo parecia observá-lo das profundezas do inferno, com um sorriso zombeteiro. Sempre que isso ocorria, alguém parecia sussurrar em seu ouvido esquerdo: "Seus crimes já foram julgados, padre. Eu sou o carrasco". Sentado à mesa do Wimbledon Greyhound Stadium, na companhia de David e Mary, Pietro teve a impressão de ouvir aquelas mesmas palavras. As mãos suavam. Ele tremia. Sua taça escorregou, estatelando-se na mesa e respingando bebida no jornalista.

Tudo bem, padre? - adiantou-se Mary.

Me desculpe. Molhei você? — perguntou a David.

Não se preocupe com isso — retrucou o jornalista.

—Você disse que ele foi suspenso da Câmara dos Lordes? — indagou Pietro. Estava distraído quando o amigo narrara o episódio.

Na sessão de ontem, ele detonou um pequeno explosivo e exal­tou um traidor da Inglaterra — repetiu David.

O demônio escolheria um homem orgulhoso como sir Alexander Cotton para ser seu braço direito. A soberba é o maior dos pecados. Foi por causa dela que Lúcifer se rebelou contra Deus. Ele desejava ser maior do que o Pai. Por isso O traiu. Pelo que acaba de nos contar, esse lorde também tem um apreço especial por traidores — comentou o padre.

Não concordo totalmente com o senhor — retrucou a americana, com um sorriso no rosto.

"Esse não é o melhor momento para polêmicas, Mary", pensou David, reprovando sua assistente com o olhar.

Em que você discorda? — questionou Pietro, curioso.

O diabo é inteligente?

Muito mais do que os seres humanos.

Aonde você quer chegar com isso, Mary? - impacientou-se David.

Muito simples. Se o diabo é tão inteligente assim, por que es­colheria alguém como ele? Não seria melhor procurar uma pessoa mais confiável e menos egocêntrica? Pelo que vi, sir Cotton não seria o me­lhor exemplo de lealdade - observou a americana.

As pessoas virtuosas estão do lado oposto, Mary — explicou o padre. — O diabo precisa se contentar com a escória.

Como concluiu que sir Cotton é o Duque Negro? — interrogou- -o David, querendo retomar o assunto sobre o "elo perdido". A prova que não conseguira encontrar em suas investigações.

Após a morte de John Dee, o antiquário sir Robert Bruce Cotton adquiriu sua cobiçada biblioteca e objetos ritualísticos em uma transação aprovada diretamente por São Carlos I.

Um rei santo? — interveio Mary.

Ele foi deposto e executado. A Igreja Anglicana o canonizou em 1660. Prossiga, por favor, padre — insistiu David, não querendo desviar novamente a conversa.

Essa transação não foi uma compra, David. Foi uma doação real para a confraria recém-fundada. Alguns objetos, como a Mesa de Prática e o Livro das Folhas Prateadas, desapareceram para sempre. Outros, não sei por que, foram parar na coleção do British Museum.

O roubo... - David deixou escapar.

O quê? - perguntou Mary.

Ontem, os objetos de John Dee desapareceram misteriosamente do acervo do museu.

Devem ter sido roubados por essa confraria negra - concluiu sua assistente.

Pois bem, qual é a ligação entre o provável primeiro grão-mestre da confraria negra e esse lorde arrogante? — prosseguiu Pietro, com uma pergunta retórica ao estilo de suas aulas. — O sobrenome responde tudo. Sir Alexander Cotton é o atual representante da linhagem de sir Robert Bruce Cotton. Em outras palavras, ele é o legítimo herdeiro do legado maldito.

Você checou o livro genealógico no College of Arms? — David quis certificar-se.

Sim.Você se lembra do enigma: "A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé"? O brasão de sir Cotton é um leão coroado, David. Não tenho dúvidas, ele é o escolhido da Besta para iniciar o Apocalipse Negro.

Agora que você já sabe a resposta, o que pretende fazer para im­pedir isso? — inquiriu o jornalista.

As luzes do restaurante se apagaram. Pietro olhou na direção do lorde polêmico. Teve a impressão de enxergar um homem bem alto às suas costas.

 

Ele ficou parado a alguns metros da London Eye, observando o movimento. Nenhum sinal do Feiticeiro. Conferiu o horário: dezoito e trinta e cinco. Concluiu que Andrew talvez estivesse fazendo a mesma coisa. Segurando uma caixa prateada pequena e rígida, tomou a iniciativa e caminhou até a roda-gigante. Seu interlocutor chegou segundos depois, mancando ligeiramente.

Prazer em revê-lo — disse Michael, estendendo-lhe a mão.

Não posso dizer o mesmo - retrucou Andrew, apertando com força a mão do americano e encarando-o com um sorriso irônico.

— Vejo que você andou se envolvendo em outra briga — provocou Michael, apontando para o corte em seu rosto.

Cruzei com outro idiota pelo caminho.

Você tem um ponto de vista peculiar, Andrew. Vamos tratar de negócios — disse o americano, fazendo um sinal para um dos operadores da London Eye. No minuto seguinte, vinte e três pessoas deixaram uma das cabines. Apenas os dois tiveram permissão para subir. Até chegar ao ponto mais alto, Andrew e Michael ficaram em silêncio. Diante da vista deslumbrante da cidade, o americano retomou o diálogo.

Ele sabe tudo.

O olho que tudo vê - respondeu Andrew.

Era a contrassenha correta.

O artefato está aqui dentro — revelou Michael, estendendo-lhe a caixa prateada.

—Você tem uma nota de um dólar?

Por quê?

—Você tem? - insistiu.

Deixe me ver - respondeu-lhe, pegando a carteira no bolso da calça.

"O senador pediu para tomar cuidado. Deve ser mais um de seus truques", deduziu. Encontrou um dólar entre as libras e o entregou ao Feiticeiro. Andrew deixou a caixa prateada sobre o banco e mostrou o verso da nota a Michael.

Esse olho dentro do triângulo é o Olho que Tudo Vê, o Olho de Hórus.

Por que você está me dizendo isso?

Já ouviu falar do Terceiro Olho?

O que isso tem a ver com a missão?

Bem aqui está a porta para o outro mundo. Quem tem esse olho aberto, enxerga com o Olho de Hórus — explicou Andrew, colocando o dedo indicador entre as sobrancelhas de Michael

Não estou interessado nisso - esquivou-se Michael, afastando a cabeça. — Não toque em mim.

Cale a boca e me escute. O padre que você salvou tinha uma cicatriz na testa. Quando chegar o momento certo, ele enxergará melhor do que nós. E poderá dar o xeque-mate usando nossas próprias peças. Se isso acontecer, cretino, não haverá nenhum lugar no mundo em que você consiga se esconder de mim.

Esse não é o melhor momento para me ameaçar, Andrew. Ainda mais agora, quando você foi traído pelo seu protetor.

O que você sabe sobre isso? — o bastardo exasperou-se. Olhos arregalados. Mãos em garras, prestes a se lançar sobre Michael.

O mestre americano não compactuou com isso. Ele está conven­cido de que você é a realização da profecia.

Eu sou — disse Andrew, com um sorriso triunfal.

Ele quer romper com os britânicos e nomeá-lo mestre supremo.

Ele é bem esperto. Quer ficar do lado vencedor. Do que ele pre­cisa? — adiantou-se.

Primeiro, o casamento deve ser realizado.

Isso vai acontecer em breve. O que mais ele quer?

—Você tem algo que confirme a profecia?

O bastardo encarou o interlocutor por alguns segundos, sem dizer nada. Michael sabia que aquele homem era capaz de decifrar o que se passava em sua cabeça. Sem muito esforço, pensou na sósia de Pamela Anderson que encontraria naquela noite. Andrew sorriu e pegou duas pequenas folhas enroladas que carregava no bolso do casaco.

Cuidado com isso. E um empréstimo. Se não me der de volta...

Não haverá nenhum lugar no mundo em que eu possa me es­conder de você — completou Michael, guardando os papéis no bolso.

A roda-gigante retornara ao ponto de partida. O operador abriu a porta. — Uma coisa importante sobre o Terceiro Olho, Michael - disse Andrew. - O das putas fica no traseiro.

Os dois riram e seguiram em direções opostas.

 

Enquanto David olhava para a pista de corridas e Mary comen­tava o blecaute, os olhos de Pietro acompanhavam os movimentos do homem atrás de sir Alexander Cotton. Assustou-se quando ele sacou uma espada flamejante e os homens daquela mesa se transformaram em demônios raivosos. Os olhos do lorde polêmico reluziam como fogo e seus dentes longos e pontiagudos devoravam a própria boca. Teve a impressão de alguém sussurrar em seu ouvido: "É de Deus que vem o juízo: é ele que abate um homem e ergue o outro. Pois na mão do SENHOR há uma taça com vinho a fermentar, misturado com veneno. Ele o derrama: até as fezes deverão bebê-lo, dele vão beber todos os ímpios da terra". Reconheceu os últimos versos do Salmo 75. Em um golpe rápido, a lâmina de fogo degolou sir Cotton. No mesmo instante em que Pietro fechava os olhos, as luzes do restaurante se acendiam. Ouviu gargalhadas em uma mesa próxima.

Esse cara é bem espalhafatoso. Não acha, padre? — perguntou Mary.

Hesitante, Pietro mirou novamente a mesa demoníaca. Os seis ho­mens seguravam copos de uísque e conversavam animadamente. "Não passou de uma visão. O Senhor deve ter poupado sua vida", concluiu Pietro, aliviado.

Não estou aqui para julgar ninguém - respondeu o padre, pegando outra taça de champanhe. - Mas concordo com você — completou, pis­cando o olho.

A corrida vai começar! — anunciou David.

Após o sinal, as cancelas se abriram e os galgos zarparam atrás de um coelho mecânico. O jornalista ficou em silêncio, punhos fechados sobre a mesa, olhos fixos no movimento dos cães. Em poucos segundos, eles desapareceram de seu campo de visão. Seu galgo foi o último a dobrar a curva. David voltou-se para a televisão. Ficou de pé.

— Vamos lá, Sabreur du Diable - torceu Mary.

O azarão passou para a quinta posição, depois para a quarta. Sir Alexander Cotton, também em pé, gritava o nome do favorito:

Mosquete de Trafalgar!

O Sabreur du Diable ficou pareado com o terceiro colocado, depois avançou sobre o segundo. Um sinal soou no estádio. Era o fim da corrida. Mary olhou para David. Ele sorria. Estava feliz com a segunda colocação do amigo de quatro patas. Um burburinho se espalhou pelo restaurante. E virou algazarra. A tela não mostrava o nome do vencedor, apenas a mensagem: "Em aberto".

O que aconteceu? Quem venceu? — quis saber o padre.

É como corrida de cavalo, quando dois chegam juntos, o juiz precisa avaliar as imagens e dar a palavra final — respondeu Mary.

O do David ficou em que lugar?

Aposto que venceu o cão de sir Cotton. Diria que seu focinho cruzou a linha de chegada alguns centímetros antes — arriscou a americana.

Inacreditável! O vencedor da primeira corrida dessa noite é o azarão Sabreur du Diable — anunciou o locutor, no momento em que seu nome começou a piscar na tela.

Ele venceu! — vibrou David.

Eu não disse que venceria? — gabou-se Mary.

Parabéns, David. Um brinde ao cachorro de nome francês — adian­tou-se Pietro, levantando a taça. — Agora, peço licença aos dois, vou ao toalete.

Acho que vou começar a acreditar em bruxaria — brincou o jor­nalista, observando o padre se afastar.

Por que você não diz isso na frente dele?

Prefiro evitar polêmicas desnecessárias.

Gostei desse padre. Tem senso de humor. É diferente dos outros que conheço.

O que achou da história?

Intrigante. Gostaria de saber mais detalhes. Mas depois você me conta.Vamos curtir a vitória do Sabreur du Diable.

Não aceito o resultado. Esse azarão é tão trapaceiro como o dono - disparou sir Cotton, passando enfurecido pela mesa de David e fuzilando-o com os olhos. Estava a caminho do toalete.

Me desculpe, David, mas quando esse cara abre a boca, só sai merda - comentou Mary.

Se o que o padre disse for verdade, sua derrota nessa corrida foi só o amuse-bouche.

Seguiu-se outro blecaute. O restaurante mergulhou novamente na escuridão.

 

A caminho de casa, Michael acessou o celular de Bundy. Precisava prestar contas do encontro com o Feiticeiro antes de se entregar à luxúria. Assim que o senador atendeu a chamada, ele transferiu a ligação para o viva-voz.

Fico feliz que tenha sobrevivido, Michael.

Missão cumprida. O artefato não está mais comigo.

Ele mordeu a isca?

Sim. E me entregou os papeizinhos.

—Você já sabe o que fazer com eles.

A Operação Luxúria já está nas mãos do Feiticeiro.Quando devo apagá-lo? — indagou Michael, ansioso.

Logo que ele concluir a Operação Luxúria e deixar o hotel. Su­giro que o apanhe no Hyde Park.

Alguma recomendação especial?

Ele é o bastardo do grão-mestre. A exigência é que tenha uma morte honrosa — explicou o senador.

Devemos duelar? - brincou Michael.

Um duelo com ele seria suicídio.Você sabe disso. Na Inglaterra, os nobres devem ser decapitados.

Ele é apenas um tolo — Michael deixou escapar.

—Você será um tolo se não cumprir as ordens — ameaçou Bundy.

Tudo bem. Como deve ser feito?

Você receberá, na sua casa, um pacote estampado com o brasão real de Carlos I. Para o serviço, use o que encontrar dentro dele.

O que quer que eu encontre nesse pacote, primeiro usarei minha arma.

Você não tem autorização para atirar nele. Use apenas o que chegar até você.

Isso é loucura.Você mesmo me disse que ele é perigoso e impre­visível. A chance de dar errado...

—Vai dar certo.Você é um dos melhores, Michael — interrompeu-o Bundy.

Sou um dos melhores quando estou com a minha arma e posso usar meus métodos. O que tem nesse pacote surpresa?

— Um machado sagrado.

O quê? Quer que eu elimine o Feiticeiro com um machado? Isso é brincadeira, não?

Você deveria se sentir lisonjeado. Irá manejar a mesma arma que decapitou o rei Carlos I. Sabia que ele foi canonizado pela Igreja Anglicana?

Foda-se a Igreja Anglicana!

—Você preferia ser escalado para a Operação Luxúria?

— Ela não fazia parte do nosso acordo. Desde o início você disse que Londres indicaria a pessoa para esse trabalho.

—Você já deve ter percebido que nesse negócio os acordos são maleáveis. Não quero lembrá-lo disso novamente.

O que eu faço com...

Quando terminar o serviço, cubra o Feiticeiro com a capa — instruiu Bundy.

E a...

Leve-a com você. A mesma pessoa que pegará a arma de volta também carregará a cabeça. Até logo - despediu-se o senador.

— Um machado. Droga, eles querem que eu use um machado para matar aquele psicopata. E ainda por cima leve a cabeça dele comigo. O que eu poderia esperar de quem arquitetou a Operação Luxúria? O mundo vai querer saber o que aconteceu de verdade. Quando der merda, quero estar bem longe daqui — desabafou consigo mesmo. Lembrou-se do filho. Coração apertado.

 

O padre esbarrou em sir Alexander Cotton à saída do toalete. Apesar da escuridão, reconheceu o gigante. Um calafrio percorreu suas vértebras.

Que merda de blecaute.Vou mijar no chão mesmo — vociferou sir Cotton.

Antes de fechar a porta, o padre olhou na direção do lorde. O mes­mo homem que viu às suas costas, antes da corrida, estava lá. "Quan­do entrei, não havia mais ninguém ali dentro", pensou, estranhando sua presença. Sentiu uma força arremessá-lo para fora. A porta bateu com força. "Pietro, você julgou esse homem. O anjo chegou para executar a sentença. Até as fezes sorverá sir Alexander Cotton." Teve a impressão de alguém sussurrar aquilo em seu ouvido. Com a mão direita suando, fez o sinal da cruz, apertou os passos em direção à mesa e rezou:

Meu Deus, que ele tenha o que merece.

Torceu o pé e caiu a poucos metros da porta do toalete. Ouviu um grito abafado. Depois um baque surdo. E algo se estilhaçando. A luz vol­tou. Levantou-se e respirou fundo. Precisava voltar à mesa. Mas desejava ver o desfecho da história. Deu alguns passos. Parou e voltou até a porta do banheiro. Tentou empurrá-la. Estava travada. Tentou novamente, com mais força. Ela se abriu de repente e ele foi atirado ao chão. Contorceu o rosto e gritou. Sir Alexander Cotton estava caído de bruços, com a ca­beça retorcida, virada para cima. Havia estilhaços de pia espalhados pelo banheiro, alguns enterrados no rosto e no pescoço do lorde. Coberto por sangue, ele estava praticamente irreconhecível. Pietro vasculhou o am­biente à procura do anjo exterminador. Nem sinal. Voltou-se novamente para o escolhido do diabo. Queria apreender todos os detalhes daquela cena. Percebeu que algo saía da boca rasgada. Eram fezes. "A profecia", concluiu. Dois homens da segurança chegaram juntos, atraídos por seu grito. O mais alto tinha o nariz pronunciado e os lábios saltavam à vista. O outro contrastava na altura e nos traços mais delicados.

O que aconteceu aqui? — perguntou o mais alto, terrificado com o cenário brutal.

A porta estava travada... Precisei empurrar... Caí... Ele já estava aí, desse jeito... — explicou, levantando-se.

Chame a polícia — ordenou o mais alto ao assistente e voltou-se à única testemunha. — Quando você chegou aqui, havia mais alguém, além da vítima?

Ninguém.

Se você se lembrar de alguma coisa, me procure. No momento, peço que deixe o toalete. O cenário deve ser preservado - orientou, entregando-lhe um cartão de visitas.

Não sei nada que você também não saiba — rebateu Pietro, esten­dendo a mão na direção de sir Cotton. — Estava escuro. Talvez ele tenha escorregado e batido a cabeça na pia. Um acidente fatal.

Pelo visto, você entende de acidentes — retrucou o segurança, apontando para o ferimento no seu supercílio esquerdo. - De onde você é?

Sou italiano.

É policial?

Não. Sou um simples padre - respondeu Pietro. "Se ele pedir para conferir meu passaporte, estou enrascado".

Pena não ter chegado a tempo da extrema-unção, padre.

Que sua alma seja recebida por Deus. E tenha um julgamento justo — disse Pietro, mirando o defunto e fazendo um sinal da cruz na direção do corpo. "E queime no inferno pela eternidade", completou em pensamento.

— Já fez seu trabalho. Pode ir, padre.

Estou com dor de barriga. Onde posso encontrar outro banheiro?

Espero que tenha mais sorte dessa vez - desejou-lhe o seguran­ça, indicando com a mão direita o outro toalete masculino. Sem pressa, Pietro girou sobre o calcanhar e saiu daquele lugar terrível. Ao chegar ao outro toalete, fechou-se em uma das cabines. Abaixou a tampa do vaso sanitário e sentou-se. Com as mãos trêmulas e suadas, tirou o celular do bolso do paletó.

 

Na televisão do restaurante, a imagem da pista era substituída por um aviso: "A próxima corrida foi adiada temporariamente em virtude de pro­blemas técnicos. A previsão é de que sejam resolvidos nos próximos instan­tes. Enquanto isso, usufrua nossa hospitalidade". David conferiu o horário.

Mary, faz vinte minutos que o padre deixou a mesa.

E daí? Talvez ele tenha ido fazer o número dois. Algumas pessoas são mais demoradas.

Não acha uma coincidência sir Cotton também não ter voltado ainda?

Na verdade, o único problema que vejo na demora do padre é a minha fome. A etiqueta diz que devemos esperá-lo antes de fazer o pedido.

Podemos pedir para o garçom trazer uma entrada.

Meu estômago pararia de reclamar — brincou Mary. - O que você sugere?

Gosto desse aqui: pate de champagne — respondeu David, com o menu aberto.

Por mim, pode ser.

Enquanto fazia o pedido ao garçom, sentiu o celular vibrar no bolso do blazer navy.

Alguém me enviou uma mensagem de texto - comentou, con­ferindo o telefone. Era o padre: David, o Duque Negro está morto no toalete mais próximo. Chamaram a policia e é provável que a Scotland Yard também venha. Estou com documento falso. Preciso que me tire daqui imediatamente. Te encontro na saída do restaurante.

Droga! O que ele fez? - o jornalista espantou-se ao ler a mensagem.

O que aconteceu?

Precisamos sair daqui. Agora.

Mas...

É mais grave do que você imagina. Explico no caminho - justi­ficou David, calculando o valor da conta e deixando o dinheiro sobre a mesa. - Vamos.

—Você não vai nem esperar o troco? — indagou Mary, erguendo a sobrancelha esquerda.

O garçom vai ficar feliz com essa saída repentina. É a maior gor­jeta da noite.

A mensagem era do padre?

Escreveu a matéria para a Carol? — perguntou David, mudando completamente o foco da conversa.

Entendi... Sim, já fiz — sua assistente entrou no jogo. — Fernanda respondeu algumas perguntas por e-mail e enviou fotos exclusivas. A Carol adorou.

Muito bom. Também me lembrarei disso quando for promovido — David tentou descontrair.

Passaram pela porta do toalete. Estava fechada. Dois seguranças montavam guarda diante dela. O jornalista evitou olhar em sua direção.

Algo deve ter acontecido aqui - observou Mary.

Nada que nos interesse neste momento - retrucou David.

O padre os esperava na saída do restaurante. Esfregava os dedos nas palmas das mãos. Não conseguia disfarçar o nervosismo.

Caro amigo, a corrida foi adiada. Problemas técnicos. Quer saber? Acho que vão demorar para resolver isso. E melhor nos divertirmos em outro lugar. O que acham de jogar bridge? — dissimulou David, colocando a mão sobre o ombro de Pietro.

Prefiro tranca - respondeu o padre, participando da farsa.

E eu, pôquer — revelou Mary.

Após aquele comentário, permaneceram em silêncio até o carro. Mary sentou-se ao lado de David. Pietro acomodou-se no banco de trás. Um silêncio constrangedor. Passaram pelo portão de saída.

No quarteirão seguinte, cruzaram com seis carros velozes a caminho do estádio. Quatro eram da polícia. Os outros dois, do serviço secreto.

— Está na hora de você contar o que aconteceu, padre - cobrou o jornalista, fitando-o pelo retrovisor.

 

Protegido em seu porão macabro, Andrew abriu a caixa prateada entregue por Michael. Encontrou um envelope espesso e uma caixa de madeira. Sorriu ao ver o símbolo desenhado sobre ela. "O hieróglifo", disse para si mesmo. Deslizou a tampa e contemplou o artefato doura­do sobre um fundo negro. Era uma abelha foijada em ouro, com partes móveis aparentes. Retirou-a da "colméia" e a virou ao contrário. Havia cinco cordas, com quatro caracteres ao redor de cada uma. "Um peque­no cofre", concluiu, removendo o tecido preto que forrava o interior da caixa. Uma pequena reentrância no fundo indicava um compartimento secreto. Com o auxílio da ponta de seu abridor de cartas, forçou-a para fora. Uma tampa se deslocou vagarosamente, revelando um pergaminho. "O ritual", deduziu. Usou uma pinça para removê-lo e colocou-o, com cuidado, sobre a escrivaninha. Após guardar o artefato, olhou em direção ao espelho negro. Silêncio. O encontro com Michael deixara-o intrigado. Se o mestre americano prometia aceitá-lo como o filho de Samyaza e ameaçava romper com os ingleses, talvez ele não precisasse mais se fingir de morto após o casamento sagrado. Nem seguir o homem que roubara sua vida. Bastava se unir aos americanos e esmagar seus inimigos. Não pouparia ninguém. Repousou o espelho negro sobre o Sigillum Dei e ficou de pé diante dele. Não se surpreendeu quando trovões estremece­ram o porão e raios rasgaram a penumbra.

— Mestre?

— Por que me procura? - perguntou a voz grave, oriunda da relí­quia de Dee.

A águia sabe a verdade?

Eles conhecem a profecia.

Então, mudaram os planos?

Se você fosse intocável, Andrew, seu pai não teria te traído.

Se os americanos sabem quem eu sou, então serei perseguido por soldados do Duque Negro?

—Você acaba de encontrar seu algoz — revelou a voz grave.

Michael? — inquiriu, surpreso.

Não me desaponte. Pensei que você já soubesse disso.

Eu entreguei os documentos... Ele me enganou... Filho da puta!

Se você sente raiva do seu carrasco, por que o elogia? Poucos têm o privilégio de ser filho da puta como você, Andrew.

Como serei morto?

O Duque Negro fez uma exigência. Você deve ser decapitado com o mesmo machado usado na execução do rei Carlos I. Uma arma sagrada. Percebe como ele gosta de você? — a voz grave finalizou a ironia com uma gargalhada rouca.

O que devo fazer?

Deixe que o carrasco encontre outra pessoa, vestido com a mesma capa e máscara que você usará no casamento.

Mas se ele tirar a máscara...

Talvez encontre outro rosto. Mas defenderá que é você. A vida dele depende disso.

Isso significa que não devo confiar mais na ordem?

Faça o que eu disse. Siga aquele que roubou sua vida até o Livro das Folhas Prateadas. Quando estiver com ele, todos se ajoelharão diante de ti.

Me vingarei de todos eles — desabafou Andrew, fechando as mãos em punho.

Espero que isso seja uma promessa. A misericórdia faz parte da minha lista de pecados capitais.

Não o desapontarei.

Sua vingança já começou essa noite. Não se sinta órfão. Você não precisa de outro pai além de mim.

Andrew sentiu um sopro gélido no rosto. Silêncio. Estava novamente sozinho no porão. Precisava se preparar para o casamento sagrado. Antes de examinar o ritual, abriu o envelope encontrado na caixa prateada e despejou seu conteúdo sobre a escrivaninha. Duas chaves tilintaram. A maior tinha um escudo na extremidade. Reconheceu o brasão de armas do monarca britânico. Deduziu que a outra fosse da suíte de um hotel luxuoso. "Deve haver uma mensagem." Conferiu o interior do envelope. Havia um pedaço de papel com a seguinte mensagem: Após ingressar no Mandarin Oriental pela entrada com face para o Hyde Park, penetre na alcova: a royal suite. E realize o casamento sagrado.

 

O casal de jornalistas ouviu, sem interrupção, os detalhes sinistros da morte de sir Alexander Cotton. Assim que terminou sua história, o padre respirou fundo. Apesar do desfecho trágico, a missão fora bem-sucedida. O alívio inicial transformou-se em apreensão com o silêncio de seus interlocutores.

—Vocês não vão dizer nada? — cobrou Pietro.

Isso é... assustador — comentou Mary.

David o encarou pelo espelho.

Não sabia que anjos de Deus cometiam assassinatos, padre — iro­nizou o jornalista.

No Antigo Testamento...

Os matadores alados costumam deixar marcas escatológicas no cadáver? — prosseguiu David, interrompendo Pietro.

Sou um padre...

—Você ainda não percebeu a gravidade da situação, padre — interrompeu-o David. — Nas próximas horas, talvez você seja apontado como o principal suspeito do assassinato de um membro da Câmara dos Lordes.

Eu não estava no banheiro quando ele foi morto.

Isso não importa.Você esteve no College of Arms investigando a ár­vore genealógica de sir Cotton com a ajuda do presidente Nathan Sandford, uma testemunha relevante. Pouco depois, se hospedou no Mandarin Oriental com uma identidade falsa, o que já o torna um criminoso. Qual­quer detetive medíocre consegue chegar até você e ligá-lo ao assassinato. Ninguém vai acreditar nessa história de enigmas diabólicos e Apocalipse Negro. Suas crenças religiosas não vão inocentá-lo — argumentou David, em um tom de voz acima do habitual.

Você acha que eu o matei, David? - questionou Pietro, aproxi­mando-se do banco do motorista.

Acho que seria capaz disso para defender suas crenças.

Você acha que eu matei aquele homem? — repetiu a pergunta, elevando a voz.

Sinceramente, não — respondeu o jornalista, fazendo uma pausa antes de prosseguir. — Acho que alguém manipulou tudo para que você parecesse culpado.

Michael? — sugeriu Pietro.

Quando ele me procurou para explicar sua situação, insistiu que nosso objetivo era o mesmo. Até sugeriu que trocássemos informações. No começo, acreditei que ele fosse um agente secreto norte-americano com a missão de desbaratar uma quadrilha internacional de narcotráfico, prosti­tuição infantil e terrorismo, comandada por satanistas. Mas tenho um dom inexplicável para farejar mentira. Estou quase certo de que ele trabalha para o braço americano da seita satânica - David defendeu sua suspeita.

Não é possível. Ele salvou minha vida - rebateu o padre.

—Você acha que ele fez isso por amor ao próximo? Ou bancou o herói para conquistar sua confiança? Como vocês dizem: lobo em pele de cordeiro.

Se Michael fizesse parte da confraria negra, deveria proteger o Duque Negro. Não participar do assassinato e tentar me incriminar de­pois. Isso não faz sentido.

Faz sentido, sim. Talvez estejamos no meio de uma disputa de poder entre duas facções. Com a morte de sir Cotton, os americanos assumem as rédeas do jogo. Responsabilizando você pelo crime, ainda saem com as mãos limpas e se vingam de um inimigo poderoso, a Igreja Católica — deduziu David.

Uma jogada de mestre — participou Mary.

Michael sabia que o lorde seria assassinado - revelou Pietro.

O que ele disse? — questionou o jornalista.

Que a Igreja Católica tinha um esquadrão da morte para o tra­balho sujo. E eu... Eu dei a ordem para matá-lo. O que vou fazer, David?

Primeiro, vamos deixar Mary em casa.

Sou sua assistente. Quero ficar com vocês - protestou a americana. — Você se esqueceu de que a Fernanda Albuquerque chega amanhã?

Quero que você se concentre apenas nela.

Nós faremos o quê? — insistiu o padre.

Sua suíte no Mandarin Oriental deve estar grampeada. Vamos para um lugar seguro. Temos muito trabalho pela frente.

 

Que lugar seguro? Sua casa, imbecil? — exasperou-se Michael, ouvindo a conversa transmitida pela escuta plantada no carro de David.

A campainha de sua casa soou. Era a prostituta escolhida pela internet. "Merda, eles estragaram minha noite", lamentou, abrindo a porta. A sósia de Pamela Anderson entrou em sua casa tirando o sobre­tudo marrom-escuro. Salto alto dourado. Minissaia vermelha. Camisa preta decotada revelando seios turbinados.

Tenho que terminar um trabalho antes - explicou Michael.

Não quer relaxar primeiro?

Espere aqui. Volto em alguns minutos.

Você tem certeza? — insistiu a prostituta, contornando os lábios com a língua.

Não mexa em nada.

Como você quiser — ela retrucou, acomodando-se no sofá da sala.

Michael fechou a porta do escritório e aumentou um pouco o vo­lume do transmissor.

Padre, o senhor está hospedado no Mandarin Oriental como um empresário italiano, certo?

O americano reconheceu a voz de Mary.

Sim - respondeu Pietro, com certa hesitação.

Sei de algo que talvez possa ajudá-los.

Então se apresse, Mary, você já está chegando em casa — obser­vou David.

Isso pode constrangê-lo, padre — advertiu a nova integrante da equipe.

—Vá em frente - insistiu Pietro, hesitante.

Uma amiga, massagista no spa do Mandarin, recebeu cinco mil libras para seduzir um empresário hospedado no hotel.

E como isso pode nos ajudar? - impacientou-se David.

Meu Deus! - exclamou Pietro.

Essa minha amiga disse que o empresário era estrangeiro e tinha um corte no supercílio esquerdo. Pode ser só coincidência...

Como... como se chama sua amiga? — gaguejou o padre.

Abby.

Mary, mais alguma coisa? - perguntou David.

O homem que pagou pelo serviço era americano.

Meu Deus — sussurrou Pietro.

Coincidências, Mary. Os padres são celibatários. Chegamos. Eu irei acompanhá-la até a porta de casa — disse David, estacionando o carro.

Adeus, padre. Foi um prazer conhecê-lo — despediu-se Mary.

Adeus, lady.

Deus "revela o que existe de profundo e também o escondido". Que vergonha, meu Pai — lamentou o padre, a voz embargada.

Michael pegou o celular e acionou o número do senador Bundy. Caixa postal. Tentou novamente.

O lorde já embarcou? - perguntou o senador assim que atendeu a ligação. Vozes e risadas ao fundo.

Haverá festa no inferno — retrucou Michael.

Fantástico! Algo mais? — indagou Bundy.

As almas gêmeas enxergaram a ameaça. Estão conspirando. Có­digo negro?

Ainda não. Em breve, elas morderão a isca. E terão algo realmente sério para se ocupar. E você também.

Como assim?

Em dois dias, você passará de carrasco a curador de uma exposi­ção noVictoria and Albert Museum, com um incremento substancial no salário. Até breve - despediu-se o senador.

Curador?! — exclamou surpreso, deixando o celular ao lado do computador. Passaria a madrugada acompanhando os movimentos de David e Pietro. Mas, antes, tinha um compromisso inadiável. A prostituta estava sentada no sofá da sala. Pernas abertas.

Mostre o que sabe fazer com essa boca — disse Michael, aproximando-se dela com as calças arriadas.

 

Sentado no banco do passageiro, Pietro estava cabisbaixo. A mão direita cobria os olhos. David pigarreou. O padre continuava em silêncio. Ele tomou a iniciativa.

—Vamos para a minha casa.

Ela se chamava Abby, David... — Pietro quebrou o silêncio, voz fraca.

Não precisa me revelar seus segredos. Para mim, basta saber que o homem que subornou a massagista tinha sotaque americano.

Talvez ele também tenha contratado a atriz que se fingiu de pos­suída no Brompton Oratory...

Exato.

O que ele está fazendo?

No nosso segundo encontro, você me disse que o inimigo sabia que éramos parceiros nessa missão e planejava um cerco contra mim. O cerco é uma estratégia de guerra utilizada para enfraquecer a vontade do oponente. Acho que a mesma metáfora se encaixa no seu caso — ponderou David.

Como assim?

— Hospedar um padre em um hotel luxuoso, como o Mandarin Oriental, é uma forma eficaz de minar sua resistência. A derrota é mais garantida do que um ataque direto, como o que você sofreu no Brompton Oratory. Nesse momento, você está tão preocupado com seu deslize...

Pecado - corrigiu Pietro.

Que está deixando a missão para trás — prosseguiu o jornalista.

Como assim, David? O escolhido do diabo já está fora de combate.

Mas a seita satânica, não.Você acha que tudo acaba com a morte do Duque Negro?

Estava tudo em suas mãos.

Se a hipótese das duas facções estiver correta, o que estava nas mãos de sir Alexander Cotton deve ter passado para o líder americano. Ninguém entra em guerra para perder no final — rebateu David.

—Você está me dizendo que eles ainda podem realizar o Apocalipse Negro? — inquiriu o padre, girando a cabeça na direção do motorista.

— Não tenho dúvida disso.

— Deve haver uma solução...

Um dos enigmas revelava as armas que eles usariam — afir­mou David.

— "Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon" — confirmou Pietro.

O desaparecimento misterioso das peças de John Dee do British Museum reforça nossa teoria sobre esse enigma. E é um forte indício de que a seita satânica está tramando algo. Tenho um palpite.

Qual?

No Livro de Enoque, Armon é o lugar onde os anjos rebelados juraram lealdade ao líder Samyaza, certo?

Sim.

Depois desse pacto negro, escolheram mulheres e...

...Tiveram relações com elas — emendou o padre.

Procriaram. O Tronco de Jessé mencionado em um dos enigmas não faz parte da árvore genealógica de Jesus Cristo? — perguntou David.

Sim. Profecia de Isaías.

Lembra-se dos assassinatos cometidos pela seita satânica? As vítimas eram mulheres jovens e belas. Úteros eviscerados, corações extirpados, vaginas retalhadas — prosseguiu o jornalista.

Aonde quer chegar com isso?

Sexo entre anjos e mulheres, assassinatos ritualísticos com violência sexual, árvore genealógica do filho de Deus. Acho que eles planejam dar um filho ao diabo.

Como fariam isso?

Possivelmente por meio de um ritual de magia enoquiana escrito por John Dee, doado ao antepassado de sir Alexander Cotton e, atual­mente, em posse dos americanos — adiantou David.

O Livro das Folhas Prateadas... Talvez ele tenha sido escrito pelo próprio demônio.

Tenho sonhado com ele ultimamente.

Se você estiver certo, David, ele deve ser encontrado e destruído.

Discutiremos isso mais tarde. Agora temos outra preocupa­ção. Você vai me ajudar a escrever uma matéria sobre a morte de sir Alexander Cotton que será publicada na edição de amanhã do jornal — disse o jornalista, estacionando o Jaguar na garagem de sua mansão, na tranqüila Hampstead Street. Na sala de uma casa no lado oposto da rua, uma prostituta, de quatro no chão, berrava de dor. Michael estava descobrindo seu "Terceiro Olho".

 

Um círculo vermelho em torno do altar era a lembrança das treze velas que haviam derretido durante o coven, na noite anterior. Sob a capa azul-escura, o deus chifrudo se escondia de sua consorte, esperando o próximo acasalamento. O pênis ereto, ainda úmido, carregava o cheiro íntimo de Mary. Após trancar a porta de entrada e acender a luz da sala, ela se jogou no sofá diante de Cernunnos. Apanhou o controle remoto na mesinha ao lado e acionou o som. Selecionou "Wish You Were Here", da banda inglesa Pink Floyd."A noite prometia ser tão emocionante.Vou ter que ficar de castigo em casa." David se despedira apenas com um beijo no rosto. Ao abrir os olhos, Mary o observara se afastar com a elegante bengala marcando passos apressados. Talvez ele não se sentisse à vontade na presença do padre para uma despedida mais calorosa. "Do jeito que o padre estava preocupado, acho que nem notaria se a gente desse um beijo de língua dentro do carro", concluiu Mary, com um sorriso malicioso no rosto. De qualquer maneira, mesmo que estivessem sozinhos, ela não o chamaria para entrar em casa. Nem aceitaria um convite para dormir na de David. Ainda não estava preparada para "perder a virgindade" com seu chefe. Fechou os olhos. Lembrou-se do primeiro namorado, o jogador de pôquer que "blefava como um padre". Ele se chamava Sammy e cos­tumava lhe presentear com brinquedos e chocolates. Mary adorava suas visitas. Ele era o único amigo de seu pai que lhe dava atenção.

 

Certo dia, Sammy chegou de surpresa. Apenas os empregados divi­diam com ela o espaço da mansão.

—Você veio me visitar? — perguntou, sorridente.

—Vim apenas para ficar com você — respondeu Sammy, entregando-lhe um buquê de rosas vermelhas. - Sei que você preferia doces ou bonecas, mas hoje é um dia especial.

Especial por quê? — quis saber a menina de oito anos.

Porque hoje você vai deixar de ser criança. Vai virar mulher. Quero conhecer o seu quarto — disse aquele homem elegante, exalando um delicioso perfume de madeira adocicada. Orgulhosa, Mary segurou em sua mão e o levou à suíte de cinqüenta metros quadrados. Fadas douradas flutuavam em um papel de parede cor-de-rosa. O dossel trans­formava a cama em um leito de princesa. Ao lado, uma casa de bonecas encomendada pelo pai arrancava suspiros invejosos das amigas. A pequena mansão tinha luzes nos cômodos e água nas pequenas torneiras.

Que lindo! — observou Sammy.

As bonecas que você me deu estão aqui — gabou-se Mary, apon­tando para uma prateleira suspensa diante da cama.

—Você sabia que elas podem se mexer?

É mesmo? — surpreendeu-se Mary, excitação nos olhos.

Sim, é a minha melhor mágica. Mas você precisa me ajudar.

O que eu devo fazer?

Sammy abrira o dossel e se deitou na cama.

— Venha aqui comigo, minha princesa.

Mary se deitou ao seu lado. As bonecas continuavam imóveis.

Quando vai começar?

Ele abaixara a calça.

O que é isso? — questionou a menina, com um misto de curio­sidade e estranhamento.

Era a primeira vez que via o sexo masculino.

Uma mágica. Preste atenção, ele vai crescer — explicou Sammy, estalando os dedos.

Que engraçado. Posso colocar a mão?

Se fizer isso, vai desfazer o encanto. E as bonecas vão continuar quietas. Chegou a hora de me ajudar.

O que eu faço?

Tire a roupa e sente aqui, de frente para elas — orientou o amigo, de seu pai, apontando para o pênis ereto.

Mary tirara o vestido e a roupa íntima. E obedeceu Sammy.

Está doendo. Está doendo muito — dizia entre lágrimas.

Tudo tem um preço, Mary. Esse é o preço da mágica. Olhe para cima — instruía o homem.

Ela teve a impressão de ver as bonecas dançarem sobre a prateleira, acompanhando o movimento de algo estranho e rígido dentro de seu corpo. Apesar da dor dilacerante, esboçou um sorriso. E desmaiou. Lem­brava-se de ter acordado horas depois, com a mãe ao lado e uma queimação entre as coxas.

O que aconteceu, mamãe?

Acabou, minha filha. Tudo vai ficar bem.

Nunca conversaram sobre aquilo. E seu namorado nunca mais voltou.

 

Lágrimas silenciosas correram pelo rosto de Mary até que um ronco no estômago alertou-a de que precisava comer algo. Deixou o sofá ao som de "Hey You", do Pink Floyd.

 

Sentado no sofá da ampla sala de estar, o padre descrevera nova­mente a morte de sir Cotton. Depois foi sabatinado pelo jornalista, que pretendia extorquir todos os detalhes. Ao fim do interrogatório, David levantou-se da poltrona e disse:

Não é gentil deixar uma visita sozinha. Mas nas atuais circuns­tâncias, espero que o senhor me perdoe. E aceite meu convite para jantar assim que eu terminar o trabalho.

Não se preocupe. Faça o que deve ser feito.

Quer beber um vinho do Porto?

Adoro esse estilo de vinho — respondeu Pietro, forçando um sorriso.

Acho que vai gostar desse — disse David, abrindo um armário de madeira e retirando de uma adega embutida uma garrafa de Quinta do Noval Vintage 1955. Colocou-a sobre uma pequena mesa antes de correr a porta envidraçada no compartimento inferior e pegar duas pequenas taças de cristal.

—Você vai me acompanhar? - perguntou o padre.

Apenas no brinde. Precisarei de inspiração enquanto estiver es­crevendo a matéria — respondeu o jornalista, desarrolhando o vinho e servindo os dois cálices. — Ao sucesso da missão — adiantou-se, entregan­do a bebida ao italiano.

Que Deus nos ajude — completou Pietro.

Não duvido disso. Afinal, estamos do seu lado — retrucou David, sorrindo. — Deixarei a garrafa aqui. Sirva-se à vontade. Se precisar de algo, me chame.

—Você me deixará em boa companhia — brincou Pietro, relaxando no sofá.

Ao entrar em seu escritório, David fechou a porta e ligou o compu­tador. "Preciso falar com Mister Jones", disse para si, apanhando o celu­lar. O agente repassara-lhe informações sigilosas sobre os assassinatos em série e se tornara seu contato secreto na Scotland Yard. Costumava se referir a ele como "o único investigador confiável em um covil de lobos". Sentado na poltrona alemã diante do computador, acessou o número do celular do investigador. Desligou no quarto toque. Logo em seguida, o agente ligou de um aparelho não rastreado pela ScotlandYard e, assim que ele atendeu, avisou:

A investigação é sigilosa.

Acabo de entrevistar uma testemunha. Ela entrou no banheiro pouco depois do assassinato — revelou o jornalista.

Um padre. Ele se chama Pietro Amorth. Está hospedado no Man­darin Oriental com uma identidade falsa: Giovanni de Santis. Ele dividia a mesa com você no estádio. Uma estranha coincidência, não?

Bem informado como sempre. Deixe-o fora disso. Ele teve o azar de cruzar com sir Alexander Cotton pouco antes do assassinato — defendeu David.

Então foi a última pessoa a encontrá-lo vivo - prosseguiu o agente.

O que aconteceu?

Oficialmente: ele escorregou na própria urina e bateu a cabeça na pia. Um final tragicômico para uma figura patética.

Sem suspeitos?

Sem suspeitos.

Uma fatalidade?

Essa será a conclusão dos laudos periciais - insistiu o investigador.

E a versão correta?

Será investigada pelo SID.

Crime sobrenatural? - indagou David, surpreso.

A posição invertida da cabeça não resultou da queda. Alguém muito forte quebrou seu pescoço.

E por que o SID foi chamado para investigar um crime come­tido por alguém muito forte? — inquiriu o jornalista, enfatizando as três últimas palavras.

Duas queimaduras, uma nas costas e outra no peito, na altura do coração. Órgãos internos dilacerados. Parece que ele foi trespassado por uma lâmina incandescente. Nunca vi nada igual — explicou o agente.

Algum detalhe escatológico?

Só para confirmar o que sua testemunha disse, ele estava com a boca cheia de merda. Irônico, não?

- Vou escrever uma matéria sobre a morte de sir Cotton. Posso mencionar o que você me contou?

Desde que não cite a fonte.

Como sempre. Ninguém precisa saber que você é o Mister Jones - emendou David.

Gosto da versão de Amy Winehouse. Até logo — despediu-se o investigador.

Prefiro Billy Paul - comentou David consigo mesmo ao desligar.

Imediatamente, o jornalista ligou para Paul Reiner. O diretor do jornal atendeu no primeiro toque.

Tenho um furo, Paul.

Sobre a Fernanda Albuquerque?

Um assassinato no banheiro do Wimbledon Greyhound Stadium - entregou David.

Quem?

Sir Alexander Cotton. A Scotland Yard vai dizer que ele foi vítima de uma fatalidade ao escorregar na própria urina. Mas tenho uma testemunha ocular e a declaração em off de um investigador que desmentem isso.

O que aconteceu?

O SID, Supernatural Investigation Departament, é o núcleo da Scotland Yard que investiga crimes incomuns. Ela entrou no caso.

Fantástico. Me envie a matéria o mais rápido possível.Vou mudar a capa da edição de amanhã.

A matéria estará no seu e-mail nos próximos quinze minutos. Até logo — despediu-se David, pegando o cálice de vinho do Porto.

Fechou os olhos para sentir as nuanças de sabor passeando pelo paladar. "Deliciosa inspiração", pensou, voltando-se para a tela do com­putador. Após sete minutos, o texto sobre o assassinato de sir Alexander Cotton estava pronto. Precisou de três minutos para revisá-lo e enviá-lo ao e-mail de Paul. Terminou o vinho e inspirou profundamente. Preci­sava relaxar antes de reencontrar o padre. O telefone tocou. Estranhou ao reconhecer o número. Desde que se indispusera com o pai, há dois anos, sua mãe sempre ligava às escondidas do próprio celular. Mas aquele número identificado em seu visor era o principal do castelo em Upper Slaughter, onde sua família costumava passar os fins de semana. "Não pode ser", disse para si, relutando em atender.

Deve ter ocorrido alguma tragédia — concluiu em voz alta, acei­tando a ligação.

Meu filho.

Era a voz de sua mãe, quase inaudível. Estava emocionada e se esfor­çava para não chorar.

 

Pietro entornou a terceira taça de vinho do Porto. "E se David es­tiver certo e o Apocalipse Negro começar com a concepção do Anti-cristo? Preciso ligar para o Gennaro assim que chegar ao hotel", decidiu, levantando-se do sofá e se esticando. Teve a impressão de alguém passar correndo atrás de si. No mesmo instante em que girou o tronco, sentiu uma pancada em sua fronte e tombou no chão. "Deixe os olhos fechados e enxergue com o espírito", a voz familiar pareceu sussurrar aquelas pala­vras em seu ouvido. A cicatriz triangular começou a latejar e, no instante seguinte, uma dor lancinante se espalhou pela parte frontal da cabeça. Pietro precisou se esforçar para manter as pálpebras coladas.

Está pronto? — alguém indagou.

Guia meus passos na escuridão, Senhor - consentiu.

A dor desapareceu sem deixar vestígio. A alma parecia flutuar no vazio. De repente, algo empurrou-a para baixo. Estava diante de uma escadaria imponente. No alto, um templo majestoso erguia-se contra o céu avermelhado. Um homem e uma mulher passaram por ele de mãos dadas, túnicas brancas manchadas de sangue. "Preciso segui-los", pen­sou, subindo os degraus. Atrás de colunas gigantescas, que lembravam as de Santa Maria in Aracoeli, havia um altar rústico. A mulher deitou-se com as costas na pedra e puxou a túnica acima do umbigo, revelando seu sexo. "Não posso ver isso", disse para si, abaixando a cabeça.

Não permita que suas crenças se transformem em pedras no ca­minho e o impeçam de enxergar a verdade — o conselho de seu guia o fez levantar os olhos.

A túnica do homem já estava aos seus pés e ele se lançava, voraz, sobre o corpo da consorte. Um estrondo no céu. Um dragão vermelho-fogo, com sete cabeças e dez chifres, precipitou-se sobre o templo, agitando freneticamente a cauda. "A besta do Apocalipse", deduziu, vol­tando o rosto na direção do altar. O homem continuava movimentando-se sobre a mulher. "Preciso enxergar o rosto."

Isso não lhe será revelado, Pietro. Você deve usar seu discerni­mento e interpretar os sinais - rebateu seu guia. — E tome cuidado para não cometer erros. Se você fizer algum inocente pagar por sua insensatez, terá que responder por isso no Juízo Final.

—Vai pagar por isso aqui - disse alguém encostado em uma coluna próxima. Mesmo com o rosto desfigurado por cortes e a boca cheia de fezes, Pietro reconheceu sir Alexander Cotton. Estremeceu. "Deve ser uma artimanha do demônio, não posso deixar que isso me distraia", con­cluiu, virando-se novamente para o altar. Algo reluzia atrás do casal em coito."Preciso dos sinais." Era um livro prateado nas mãos de um... Teve a impressão de enxergar um anjo vestindo uma túnica negra. Ou seria uma batina de padre? A mulher gemia cada vez mais alto. Parecia... "Abby." Sentiu-se sujo. Começou a afundar em uma poça de...

—Você vai ter o que merece, padre safado.

Era sir Alexander Cotton, zombando dele.

Mas não agora — respondeu Pietro.

O anjo não segurava mais o livro prateado. Era ele próprio quem transava com a mulher sobre aquele pedaço de pedra. Um grito. Ela che­gava ao clímax.

Padre assassino! — gritou sir Alexander Cotton, desviando sua atenção da cena principal.

Cala a boca, maldito! — berrou Pietro.

Ao mirar novamente o altar, encontrou a mulher sozinha. Conti­nuava deitada de costas, com a barriga bem mais volumosa. Um grunhido intermitente o fez olhar para cima. O dragão desceu até ela e enterrou as garras em seu ventre. Ao arrancá-las, um choro de criança ecoou pelo templo.

Bendito é o fruto do vosso ventre, Babalon — disse a Besta, elevando-se ao céu.

O silêncio que se seguiu não durou quase nada. Foi quebrado por um zumbido intenso. Centenas de abelhas invadiram o altar e desapareceram dentro da vagina do cadáver. Algo inesperado tocou em seu ombro.

 

A ligação o pegou de surpresa. David esperou sua mãe se acalmar antes de disparar a pergunta:

O que houve, mãe?

Esperei tanto tempo por isso, meu filho — desabafara.

Então me diga, mãe. Preciso terminar um trabalho.

Seu pai quer conversar com você.

Sei que você deseja isso, mãe. Mas não temos nada o que conversar - respondeu David, ressentido.

Faça isso por mim, filho - pediu-lhe, com voz suplicante.

—Você se esqueceu de que ele me renegou publicamente e já doou minha parte na herança? Não temos nenhum assunto pendente.

Ele cometeu um erro, meu filho. E quer se justificar.

— O que aconteceu para ele mudar de idéia? — indagou David, esboçando um sorriso.

Ele mesmo vai explicar.

Não irei encontrá-lo se não souber o que o fez mudar de idéia - insistiu David.

A morte de sir Alexander Cotton — revelou sua mãe.

Um de seus amigos denunciados por mim. —Você pode vir até aqui amanhã?

— Não tenho boas recordações daí.

Seu pai quer conversar durante a caminhada matinal.

Preciso trabalhar amanhã — esquivou-se David, tamborilando os dedos da mão direita sobre a mesa.

—Vai trabalhar o dia inteiro?

David ficou em silêncio por alguns segundos. O voo da top model brasileira, Fernanda Albuquerque, estava previsto para chegar às catorze horas. Ele não trabalharia antes das treze.

A partir do meio-dia, mãe — respondeu, relutante.

Então podemos tomar café da manhã juntos. Depois, você con­versa com seu pai. O que acha?

Tudo bem. Estarei aí às oito. Até amanhã.

Ao desligar o telefone, David respirou fundo. Não se sentia preparado para encontrar-se com seu pai. E não conseguia imaginar o que o assas­sinato de sir Cotton tinha a ver com sua mudança repentina de atitude. "A menos que ele estivesse sendo...", ponderava até ser interrompido por um estrondo na sala de estar.

Droga! O que houve? — questionou-se, correndo para lá.

Encontrou o padre caído no chão. Sangue e pus escorriam de uma pequena abertura entre dois pontos, no supercílio esquerdo. Com os olhos abertos, Pietro se convulsionava, retorcendo o tapete. David se abaixou e tocou em seu ombro.

Precisa de um médico? — perguntou, assustado.

O que aconteceu? — retrucou o padre, voltando ao normal.

—Você se contorcia no chão.

Olhos abertos?

Sim.

Tive uma visão lúcida, David.

O que é isso?

A Bíblia diz que Deus se revela em sonhos ou em visões lúcidas.

O que você viu, padre?

A confirmação do que você disse. O diabo está preparando o nascimento do seu filho. A mulher se chama Babalon, também conhecida como Babilônia ou Grande Prostituta. O homem será possuído por um demônio. A chave está no livro prateado. E as abelhas... - Pietro inter­rompeu a explicação.

Que abelhas? — quis saber David.

Quero checar algumas profecias sobre o Anticristo.

Já terminei meu trabalho aqui. Podemos ir. Mas antes, padre, su­giro que cuide disso.Vou te levar ao lavabo.

—Você é meu convidado para jantar no hotel. — Aceito o convite, Giovanni de Santis — brincou David, com um sorriso no rosto.

Em poucos minutos, tinha duas grandes novidades para contar ao parceiro. O assassinato sobrenatural de sir Alexander Cotton era uma delas. A outra era a aproximação inesperada de seu pai.

 

Enquanto a prostituta se vestia, Michael observava o Jaguar deixar a garagem e dobrar a esquina. "Esses dois ainda vão me criar problemas. Preciso saber o que estão aprontando", pensou, apanhando a carteira no bolso da calça.

Quanto devo pagar por isso? — perguntou à sósia de Pamela Anderson.

Com sexo anal, cento e cinqüenta libras.

Se você me responder uma pergunta, pago duzentas - desa­fiou Michael.

Que pergunta?

Por que putas não beijam na boca?

Porque somos profissionais. Isso é apenas um trabalho, não um relacionamento amoroso.

Dou duzentas e cinqüenta libras por um beijo de língua.

Trezentas libras e está fechado.

Michael tirou as notas da carteira e as amassou na mão direita. Aproximou o rosto ao da mulher e mergulhou a língua na boca que chupara seu sexo.

Agora basta — Michael interrompeu o beijo e entregou as notas amassadas na mão da prostituta. - Pelo dobro do preço comprei seu coração.

Não é verdade, do mesmo jeito que você pagou para meter seu pau na minha boceta, também comprou um espaço para sua língua na minha boca. No meu corpo tudo está à venda — respondeu, com um sorriso malicioso. — A única coisa que não vendo é minha alma.

—Você é só uma vadia. Não é ninguém. Dê o fora daqui! — esbra­vejou Michael, abrindo a porta de sua casa.

Olhos marejados. Ela abaixou a cabeça e saiu. "Era só o que me faltava", pensou ele, a caminho do escritório. Acionou a escuta no carro de David.

—Você se lembra do Mister Jones? — era a voz do jornalista.

Seu contato na Scotland Yard. Por que você escolheu esse pseu­dônimo? — indagou Pietro.

Ele mesmo escolheu. Conhece a canção "Me and Mrs. Jones"? A versão mais conhecido é do Billy Paul.

Não.

O personagem tem um caso amoroso com a senhora Jones. Mister Jones, que não é mencionado, é o marido traído. O meu contato na Scotland Yard entrou na corporação por idealismo. Quando viu o que acontece lá dentro, também se sentiu traído - explicou David.

E tenta lutar contra isso entregando-lhe informações privilegiadas - completou o padre.

Exatamente.

Então, o que aconteceu com o lorde polêmico? — insistiu Pietro.

A morte será investigada pelo SID, um departamento especial responsável por crimes sobrenaturais. Parece que ele foi trespassado por uma espada incandescente, que deixou uma queimadura nas costas e ou­tra no peito. E dilacerou tudo por dentro, inclusive o coração.

Uma espada flamejante! - disparou Pietro.

O que é isso?

A arma dos anjos exterminadores.

E você realmente acredita nessa besteira?

Se fosse um crime comum, por que eles delegariam a investi­gação a um departamento especial? Já não teriam encontrado pistas do assassino? — retrucou o padre, com duas perguntas retóricas.

Talvez haja outra explicação.

— Por que você ignora a explicação religiosa, David?

Porque preciso de provas.

— "Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia" — citou Pietro.

Todas as pessoas que perdem os argumentos racionais parafra­seiam Shakespeare. Mas ele escrevia ficção, padre. E, para mim, as crenças religiosas não passam de ficção — desabafou David.

O padre ficou em silêncio.

A campainha soou na casa de Michael. Um homem negro, alto e forte, vestindo sobretudo cinza-escuro e botas cano alto, carregava uma caixa de madeira.

Sua encomenda, senhor — anunciou, estendendo-lhe um pacote.

Quanto lhe devo? — perguntou, surpreendendo-se com o peso.

—Você me deve uma cabeça. Passo para buscar depois de amanhã.

E não se esqueça de que isso é apenas um empréstimo.

Michael fechou a porta e levou o pacote até a mesa da sala de jantar. Retirou a fita e deslocou a tampa. Havia algo envolto em veludo verme­lho. Desembrulhou com cuidado. Um cabo rústico de madeira terminava em uma lâmina de dois gumes, afiadas o suficiente para decepar a cabeça de alguém. Ele empunhou a arma com as duas mãos, elevando-a acima de si. Para fazer o serviço, a vítima deveria ter os braços e as pernas imo­bilizados, com o pescoço apoiado em uma superfície plana. Repousou o machado sobre a mesa e apanhou a garrafa de Jack Daniels.

Isso tem tudo para dar merda — concluiu, servindo uma dose dupla de bourbon, estilo caubói. Voltou ao escritório com o copo na mão.

 

Com lágrimas nos olhos, Grace caminhava em direção à estação Hampstead, da linha Northern. A rua estava silenciosa. Cruzou com um indigente em uma esquina. Roupas em farrapos, ele pedia esmolas com um chapéu à mão. A calvície avançava sobre o cabelo grisalho, ralo no alto da cabeça, mas abundante nas laterais. Rosto parcialmente encoberto pela barba e bigode espessos e pela sujeira impiedosa das ruas londrinas.

Ajude esse miserável — suplicou assim que a bela mulher de sal­to alto dourado, minissaia vermelha, camisa preta decotada e sobretudo marrom-escuro passou por ele.

O que o senhor quer? — perguntou, abaixando-se e fitando seus olhos cabisbaixos.

O que você não deseja mais — o indigente respondeu, encarando-a. Seus olhos eram envolventes.

Não quero mais humilhação — disse a prostituta, retirando as tre­zentas libras amassadas do bolso do casaco e entregando-as a ele.

Me dê apenas a metade que você despreza. A outra, ganhou justamente.

Quem é o senhor? O que sabe sobre mim? — disparou a prostituta.

Perguntas erradas. Quem você é e o que sabe sobre si mesma, menina?

Sou uma puta! Vendo meu corpo! E isso o que eu sou!

Você é o que os homens não podem comprar. Sua beleza está aqui — rebateu, tocando com o dedo sujo entre os seios, na altura do coração.

Grace caiu em prantos.

O que devo fazer?

Antigamente, as pessoas acreditavam que Jesus Cristo se disfarçava de mendigo para testar a bondade das pessoas.

O senhor é...

Um mendigo que, às vezes, se disfarça de...

— Deus?

Não sou tão pretensioso assim. Digamos que seja um simples mensageiro.

O que quer de mim?

— Além das cento e cinqüenta libras, quero que procure uma pessoa e lhe entregue essa carta — respondeu-lhe, retirando do bolso da calça fé­tida um envelope esmaecido pelo tempo e mais amassado do que o rosto de Elizabeth II nas notas de dinheiro.

Ela conferiu o envelope. Estava lacrado com cera. Não havia desti­natário. Nem remetente.

Quem eu devo procurar?

Uma puta.

Assim como eu?

Você é como Maria Madalena, preservou seu coração. Babalon vendeu algo que ninguém pode tocar — explicou o indigente.

A alma? Estou arrepiada.

Algo que Ele considera muito valioso - respondeu, apontando para cima. — E pretende resgatar antes que o tempo se esgote.

Qual é o nome dela, o endereço?

Não tenho.

O senhor está brincando comigo? Há milhares de putas pelas ruas da cidade e a única pista que me dá é um nome de guerra? Babalon? E como procurar agulha em palheiro — reclamou Grace.

—Você não estará sozinha nessa busca.

O senhor vai me guiar?

O anjo lhe mostrará o caminho. Fique fora das ruas até terminar sua missão.

Quer que eu pare de trabalhar? - espantou-se Grace.

—Você estará trabalhando para Ele — respondeu o indigente, apon­tando novamente para cima. — E Ele remunera melhor do que ninguém.

Mas...

Cento e cinqüenta libras? Obrigado, minha senhora. Nunca re­cebi esmola tão generosa - agradeceu-lhe, guardando as notas amassadas no bolso e deitando-se sobre cobertores gastos. Ela o cobriu com a manta que estava aos seus pés. O cheiro forte de urina a fez sentir enjôo. Levan­tou-se cambaleante e seguiu até a estação de metrô.

 

Os dois entraram no Mandarin Oriental sem trocar nenhuma pa­lavra. A caminho do Dinner by Heston Blumenthal, o padre continua­va chateado com o ataque de David às suas crenças. E o jornalista não agüentava mais as explicações religiosas. "Há tantas evidências. De que outras provas ele precisa para se convencer de que Deus e o demônio estão agindo?", questionava-se o padre. "Não devia ter falado sobre a SID. Essa conspiração é orquestrada por pessoas de carne e osso", pensava David, enquanto seguia Pietro.

Boa-noite, senhor Giovanni — uma mulher saudou o padre à entrada do restaurante. Era a primeira vez que via aquela hostess morena, cabelo castanho-claro cacheado, olhos verdes, quase um metro e setenta. Sorriso sedutor.

Boa-noite, gostaria de uma mesa para duas pessoas, mais reservada — solicitou Pietro. Cenho ligeiramente franzido.

Sejam bem-vindos, espero que apreciem nosso jantar — desejou a hostess, conduzindo-os a uma mesa a meio caminho da entrada, no lado direito.

Obrigado, Lauren — agradeceu David, dando as costas para o salão e sentando-se de frente para o padre.

Não a conheço e ela me chamou pelo nome — estranhou Pietro, encarando David.

O staff costuma tratar bem os hóspedes mais generosos. Não es­queça que aqui você é um empresário bem-sucedido.

Ela me lembrou de uma citação — prosseguiu o padre.

De quem?

Francesco Petrarca.

O inventor do soneto. O que ele disse?

"A mulher é o próprio diabo" — respondeu Pietro, lembrando-se do sorriso de Abby pouco antes de seduzi-lo.

Nos Canzoniere, a musa de Petrarca, Laura, está mais próxima de Deus do que do diabo. Isso me faz recordar Alexandre Dumas, filho: "A mulher é o anjo e o diabo em um só corpo" - rebateu o jornalista. — Depende do olhar.

Boa sacada! — disse o padre, excitação na voz.

Boa-noite, senhores — saudou o maître.

Quero um caldo de cordeiro — adiantou-se Pietro. - E você, David?

— O mesmo, por favor — ele respondeu, virando-se novamente para o padre, com um olhar inquisitório.

Se você estiver certo sobre a usurpação da Profecia de Isaías pela confraria negra, a chave de tudo está nessa citação do filho de Dumas — explicou o italiano, com um largo sorriso no rosto.

Como assim?

Ora, eles querem que a mãe do Anticristo seja uma imitação de Nossa Senhora. Ou seja, uma mulher supostamente pura deverá conceber o filho do diabo — respondeu Pietro.

"A mulher é o anjo e o diabo em um só corpo" - repetiu David.

Isso mesmo. O anjo e o diabo em um único corpo. Acho prová­vel que esses seguidores do demônio também se apropriem das profecias sobre a vinda do Anticristo. Por isso, preciso que meu assistente no Ate­neu Pontifício Regina Apostolorum me envie um arquivo...

Padre, você se lembra de alguma dessas profecias? - adiantou-se o jornalista.

O Apocalipse é a fonte mais confiável.

E, possivelmente, a inspiração desses satanistas — concluiu David.

O que ele diz sobre a mãe do Anticristo?

São João escreveu: "A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, e toda enfeitada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Tinha na mão um cálice de ouro cheio de abominações, as imundícies da sua prostituição. Na fronte da mulher estava escrito um nome enigmático: 'Babilônia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da Terra'" - recitou Pietro.

A primeira entrada chegou à mesa. Faminto, o padre avançou sobre o caldo de cordeiro. David tamborilou os dedos da mão direita. Se o pa­dre estivesse certo, o homem morto no banheiro do estádio era o Duque Negro. E se sua teoria sobre as duas facções rivais fosse verdadeira e o co­mando da seita tivesse sido transferido para os Estados Unidos, suas chances de desmascarar os criminosos estaria milhares de quilômetros mais distante.

Qual era mesmo o primeiro enigma diabólico? — perguntou David.

"Com uma capa azul e um chapéu de abas largas, levan­tarei de minha fortificação no lago e serei vitorioso".

O que isso significa?

Que a confraria negra escolheu Londres para um ataque devas­tador — respondeu Pietro.

Então, mesmo que o Duque Negro tenha morrido, é provável que continue sendo aqui o palco do Apocalipse Negro?

Sim. Se isso significar um ritual para a concepção do Anticristo, ele será realizado aqui mesmo.

Essa é a nossa chance de pegá-los, padre. Precisamos descobrir quem é a mulher escolhida.

A Babilônia, também conhecida como Babalon, a Grande Pros­tituta, a Mulher Escarlate — completou Pietro, esfregando um pedaço de pão sobre o restante do caldo. - Você tem algum palpite?

Acho que os sinais apontam para uma pessoa — respondeu o jor­nalista, girando o vinho na taça, sob o olhar curioso do padre.

 

No número 72 da West Street, esquina com a Central Park Avenue, uma família de turistas australianos fotografava o imponente edifício Dakota, onde John Lennon viveu os últimos dias de sua vida.

Ele foi assassinado bem aqui — disse um adolescente com o rosto do ex-Beatle estampado em sua camiseta.

Sabia que a Madonna queria comprar um apartamento nesse lugar, mas os outros moradores proibiram? — revelou sua irmã, um pouco mais velha. Em sua camiseta, um dos versos da canção "Like a Virgin", interpretada pela cantora norte-americana.

Não vim aqui por John Lennon nem pela Madonna — o pai en­trou na conversa.

Por que veio, então? — indagou o filho.

Foi aqui que Roman Polanski filmou o clássico O Bebê de Rosemary, um dos meus filmes favoritos.

Nunca consegui assistir até o final — confessou a mãe.

— Por quê? - quis saber o filho.

É um filme de terror. A atriz engravida do diabo.

É suspense. O verdadeiro terror aconteceu fora daqui - corrigiu o chefe da família

Como assim? - perguntou a adolescente.

Um ano depois de O Bebê de Rosemary ser lançado, a mulher de Roman Polanski foi assassinada por uma seita satânica. Ela estava grávida de oito meses. O líder dos criminosos queria iniciar uma guerra que chamou de "Helter Skelter"— explicou o pai.

Espere aí, esse é o título de uma música dos Beatles - observou o filho.

Isso mesmo. O psicopata se inspirou na sua banda favorita — re­trucou, com um sorriso sarcástico.

Precisamos tomar cuidado com você. Sempre desconfiei que era um psicopata em potencial — provocou a irmã.

—Vamos embora, estou com calafrios - sugeriu a mãe.

Uma limusine estacionou diante do edifício.

Agora não saio daqui por nada. E se for a Yoko Ono? Quero um autógrafo - entusiasmou-se o filho.

Um homem negro, alto e forte, desceu primeiro e abriu a porta de trás.

Tem até segurança — observou o pai.

Cinco carros estacionaram atrás. Homens apressados desceram, dis­parando centenas de flashes. Todos queriam captar imagens inéditas da deusa brasileira, a top model Fernanda Albuquerque.

Como ela é alta! — surpreendeu-se a adolescente assim que a modelo deixou o carro, a poucos metros de distância.

Ela é linda - disse seu irmão, boquiaberto.

Ela é linda mesmo - repetiu o pai, encantado.

Mas não é para o seu bico — repreendeu a esposa, enciumada.

O cabelo loiro e liso estava preso em rabo de cavalo. O rosto de traços finos, levemente maquiado, se iluminava com os olhos azuis. No dia a dia, a top model vestia-se casualmente. Saiu da limusine com tênis, calça jeans lavada, camiseta e casaco preto. Suas curvas bem delineadas encantavam os poetas das passarelas. Do alto de seu um metro e oitenta e oito, Fernanda abriu um largo sorriso na direção dos fotógrafos. Os flashes refletiam-se no dourado e nos diamantes dos brincos longos que pendiam das orelhas bem talhadas. O celular tocou em sua bolsa. Não era o melhor momento para atendê-lo.

Me dá um autógrafo? — pediu a adolescente com a camiseta "Like a Virgin".

Um segurança se interpôs entre a australiana e a celebridade.

Adoro essa música. As vezes, acho que ela foi composta para mim - respondeu Fernanda, esquivando-se do segurança e pegando a caneta das mãos de sua admiradora.

Pode assinar aqui — disse a fã, abaixando o casaco jeans e virando-se de costas.

Você precisa subir, Fernanda. Será difícil afastar tantas pessoas - orientou o chefe da segurança, preocupado com a multidão atraída pelos flashes.

Acho que estraguei sua camiseta - brincou a top model, devol­vendo a caneta e obedecendo ao seu protetor.

O que ela escreveu? — perguntou o pai da adolescente.

Fernanda, A Virgem - leu a mãe.

Assim que entrou no edifício Dakota escoltada pelo Anjo Negro, como apelidara seu segurança afrodescendente, criado no Brooklyn, Fer­nanda pegou o celular. Uma ligação perdida do empresário. Acessou a caixa de mensagens: "Fernanda, sei que acabamos de nos encontrar para acertar os últimos detalhes da viagem a Londres. Mas acabei de receber uma liga­ção e houve uma pequena mudança de planos. Para a coletiva de imprensa, que será amanhã, no Mandarin Oriental, você deverá vestir uma roupa do estilista italiano Francesco Fiori e jóias da Vanessa Segala. Até logo".

Não usarei nenhum figurino desconhecido, meu bem — disse Fernanda consigo mesma.

 

A entrada continuava intocada no prato. O maître abordou David:

Desculpe-me senhor, quer que troquemos ou podemos servir o prato principal?

— O prato principal, por favor — respondeu o jornalista, voltando-se novamente para o padre.

Então, de quem você suspeita? - inquiriu Pietro, avançando sobre o prato principal recém-chegado: costeleta de porco preto.

Antes de revelar a pessoa, vou dizer como cheguei a essa dedução. Concluímos que Michael é um agente duplo, servindo o braço americano da seita satânica, certo?

Certo.

Ele marcou seu encontro comigo no mesmo lugar em que sir Alexander Cotton foi morto, certo?

Mais do que isso, ele insinuou que o Duque Negro seria assassinado e tentou me responsabilizar por apertar o gatilho - completou Pietro.

Por que você acha que ele o hospedou neste hotel?

Não sei — respondeu o padre, pegando a taça de água com gás.

Amanhã, uma celebridade chegará a Londres. E também se hos­pedará no Mandarin Oriental.

Quem?

A top model brasileira Fernanda Albuquerque.

A taça de água escorregou da mão de Pietro, estatelando-se na mesa.

Já vi essa cena hoje, padre.Você estava igualmente nervoso - ob­servou David, encarando-o.

O garçom chegou à mesa e pediu licença para trocar a toalha. O italiano permaneceu em silêncio. Aflição nos olhos.

Se somos parceiros nessa missão, padre, é melhor que não me esconda nada.

Não tenho nada a dizer sobre isso. O que Michael está tentando fazer? - esquivou-se Pietro.

Talvez queira torná-lo um cúmplice da seita satânica — sugeriu o jornalista.

Isso não é possível. Estamos em lados opostos.

Vamos supor que Michael estivesse certo sobre o esquadrão da morte da Igreja Católica. Se os americanos planejavam o assassinato do Duque Negro, e você puxou o gatilho, quem está do lado de quem? — disparou David.

Coração acelerado. Mãos suadas. Respiração entrecortada."Ele pode estar certo. Será que a confraria negra conhece o meu passado? É muita coincidência terem me hospedado aqui. Será que cruzarei com ela, tantos anos depois? O que Michael quer me induzir a fazer agora?". A cabeça de Pietro rodopiava. Sentia-se arremessado em um turbilhão de dúvidas.

— Vejo que você está perdido em pensamentos, padre. A questão é: o que eles farão com a Grande Prostituta? E o que eles esperam que você faça?

Você está invertendo tudo, David! — exasperou-se Pietro, cha­mando a atenção do casal que jantava na mesa ao lado.

— Você gosta de xadrez?

Não tenho paciência para esse jogo. Seja mais direto — ordenou o padre, encarando-o com o cenho franzido.

Parece que estamos participando de um jogo entre a Igreja Ca­tólica e a seita satânica, ou, como você prefere dizer, confraria negra. Nós somos apenas duas peças, e não conseguimos enxergar muito além de nosso movimento no tabuleiro.

— Você está sendo fatalista — rebateu Pietro.

— Talvez - disse David, provando o prato principal escolhido: pombo com especiarias. "E algumas peças sempre são sacrificadas para se obter um ganho maior nos próximos lances", pensou, fitando os olhos ator­mentados do padre.

 

A top model bateu com violência a porta do apartamento no edifício Dakota e atirou sua bolsa no sofá. Há algumas semanas, estranhos aconteci­mentos rondavam sua vida. Tudo começara com um sonho. Ela estava no quar­to da casa em que passara a infância, no interior do Brasil. De repente, um es­trondo. O chão estremeceu. Ela se debruçou sobre a janela, olhando para cima. Um dragão vermelho-fogo se agitava no céu. Apavorada, correu em busca dos pais. A casa estava vazia.Vozes exaltadas no quintal. Ela abriu a porta dos fundos. As pessoas, reunidas em torno de uma mesa, afastaram-se ao vê-la. Ela ficou frente a frente com seu pai. Sangue escorria de suas mãos e da lâmina que ele empunhava. Pouco abaixo, havia um animal. A cabeça, unida ao corpo por alguns tendões estirados, estava encoberta por uma máscara avermelhada que escorria pelos chifres e respingava no chão. Vísceras escapavam de um corte no ventre. Um enxame de moscas se esbaldava no odor ocre da morte.

Isso é para você, minha filha. Sempre olhe nos olhos da vítima — aconselhou o pai, com um sorriso sinistro no rosto.

Impelida mais pela curiosidade do que pela obediência, conteve o asco e fitou os olhos do animal. Não era mais um bode morto que jazia sobre a pedra. Era uma criança. Fernanda acordara do pesadelo aos berros, embebida em suor. Desde então, tinha a impressão de estar sendo observada por alguém, mesmo quando trancada em seu apartamento, e acordava todas as noites com um choro estridente no quarto. Até pensou em desmarcar a ida a Londres. "Se você fizer isso, minha querida, vai perder o contrato com a Schiaparelli. Sabe o que isso significa?", ameaçou seu empresário. Aquela pergunta a fizera mudar de idéia no instante seguinte. Desde a infância, ela fora preparada para o suces­so. E sempre estivera disposta a pagar o preço, fosse ele passar por cima de suas concorrentes ou aceitar a estranha oferta de um olheiro americano. Diante de um amplo espelho em sua suíte, lembrou-se do dia em que aquele desconhe­cido, vestindo bermudas e camiseta florida, aproximara-se. Ela tinha quinze anos e passava, com as amigas, as férias de julho em uma praia. Espreguiçava-se na areia, ao sol do meio-dia, quando foi surpreendida por um homem sentado diante dela, aparentando cerca de quarenta anos. Assustara-se.

—Você é muito linda — elogiu, com um forte sotaque.

Obrigada. Mas já tenho namorado — Fernanda retrucou, com cenho franzido.

Posso transformá-la na maior top model do mundo. Está in­teressada?

Ela abriu um sorriso e sentou-se diante dele, olhando dentro de seus olhos.

O que eu preciso fazer?

A fama tem um preço. Seu pai já pagou uma parte... — explicava até ser interrompido.

Ele está morto. Foi assassinado.

Antes de ele morrer, assinamos um contrato.

Não tenho dinheiro — lamentou, abaixando os olhos.

Estava tão interessada na proposta, poderia dar tudo em troca, menos dinheiro.

Não se preocupe com dinheiro. Você será milionária. Mas não será com isso que me pagará — propôs o americano, com um sorriso no rosto.

Quer transar comigo?

—Você não me pagará com dinheiro nem com seu corpo.

— Então, está fácil.

Isso é um sim? — indagara o homem, com uma expressão séria no rosto.

Sim.

Três dias depois, ela foi procurada por um representante da maior agência de modelos norte-americana. Em menos de um mês, desembar­cava em Nova York. Nunca mais encontrou o americano de bermudas e camiseta florida. Desejava agradecer-lhe por tudo. A campainha inter­rompeu seus pensamentos.

Merda!!! Não estou esperando ninguém. Ainda mais uma visita surpresa que chega a essa hora e sem ser anunciada — reclamou, disparan­do em direção à porta.

Investigou através do olho mágico. Do outro lado, havia um casal de senhores. "Devem ser vizinhos", concluiu. Hesitou por alguns segundos antes de abrir a porta.

Olá, tudo bem? E um prazer morar no mesmo prédio que a Fernanda Albuquerque — saudou o homem, aparentando mais de sessenta anos.

É um prazer — repetiu sua mulher, cabelo armado e maquiagem carregada.

Desculpem-me, acabei de chegar em casa e viajo daqui a poucas horas. Podemos marcar um café assim que eu voltar... — justificava-se a top model.

Quando você voltar? — indagou o homem, sorriso irônico. — Não será possível. Não é mesmo, Emily?

É. Não será possível, Robert.

O que vocês querem dizer com isso? — perguntou Fernanda.

Temos um amigo em comum — revelou Robert.

— Quem?

Sammy - respondeu a mulher.

Não conheço ninguém com esse nome — retrucou Fernanda, intrigada.

Não disse que ela era ingrata, Emily?

Não seja injusto com ela, Robert - rebateu sua esposa antes de se virar para Fernanda. Aquela conversa lhe parecia ensaiada. — Sammy, minha querida, é o homem que lhe deu tudo isso.

O homem na praia... - concluiu. Voz trêmula.

Ele mesmo. Sammy pediu que lhe entregássemos uma carta - explicou o homem, estendendo-lhe um envelope.

Uma carta — repetiu Emily, com um sorriso ensaiado.

Tenha uma boa-noite. E... Lamentamos pelo café — despediu-se Robert.

É... Lamentamos muito. Chegou a hora de você... Chegou a hora de ela fazer o que, mesmo, Robert?

Pagar a dívida - recordou o marido.

É isso, minha querida, boa-noite - despediu-se Emily, sorrindo.

Assim que o casal deu as costas, Fernanda trancou a porta do apar­tamento. Tremia da cabeça aos pés. Sentou-se na poltrona da sala. As mãos suadas abriram o envelope.

 

Chegara o momento da sobremesa. Enquanto observava o padre devorar o chocolate com sorvete de gengibre, David se contentava com um pequeno cálice de Pedro Ximenez Solera 1927. Durante o prato principal, os dois discutiram os próximos passos da missão. Mas um silên­cio constrangedor pairava na mesa há alguns minutos, desde que David insinuara que a Igreja devia ter algum interesse obscuro no Livro das Folhas Prateadas. E, por conta disso, estava tentando se aproximar da con­fraria negra pelas suas costas. "Você deve estar possuído pelo demônio. O único interesse da Igreja nas obras do diabo é destruí-las. Se esse livro chegar às minhas mãos, irei queimá-lo", esbravejara Pietro, silenciando-se em seguida. Pensara em revelar ao jornalista sua suspeita de que um membro da Confraria dos Quatro Anjos podia, realmente, estar fazendo jogo duplo. Mas, sem provas, cometeria o pecado da calúnia e difamação. Além do mais, aquilo poderia alimentar as fantasias perversas de David. "Ele precisa entender que a Igreja é santa, apesar dos erros de alguns de seus homens", pensou o padre, abocanhando um pedaço da torta.

Meu pai quer conversar comigo — o jornalista quebrou o silêncio.

Ele quer se reconciliar?

Não sei. Mas não me sinto preparado para encontrá-lo.

Por quê?

—Talvez porque ele não tenha me apoiado quando eu mais precisei.

Talvez ele tenha reconhecido o erro. E deseje seu perdão — suge­riu o padre, fitando os olhos de David.

Desde que ele cortou relações comigo, quero provar a ele que eu estava certo...

E ele errado? — adiantou-se Pietro.

Exatamente.

Por isso resolveu me ajudar nessa missão?

Isso não importa, padre.

Para mim, talvez não faça diferença. Mas para você, David, é uma escolha importantíssima. De um lado, há o caminho da reconciliação, do amor, do perdão. Do outro, o atalho do ressentimento, da vingança, do ódio. Se você seguir pelo segundo, garanto que vai cair em um abismo.

—Vingança e perdão, a mensagem central de A Tempestade — mur­murou David.

O que você disse?

— Você está discursando como se estivesse no púlpito de uma igreja, tão distante dos fiéis como Deus dos homens - polemizou David. Não estava disposto a discutir a obra de Shakespeare nem sua possível ligação com a seita satânica. Se aquilo fosse apenas especulação, poderia atrapa­lhar ainda mais uma missão já complexa.

Estou falando como homem, não como padre! — esbravejou Pietro, com o rosto ruborizado, os olhos fixos e o cenho franzido.

Desculpe, mas...

Eu matei uma pessoa - revelou em italiano, com a voz trêmula e os olhos marejados.

No início do jantar, David pressentira que o padre escondia algo e usara sua habilidade para forçá-lo a contar seu segredo. Mas não esperava por aquilo. Retomou a conversa em italiano, para que Pietro não ficasse constrangido com a presença dos outros comensais.

Antes de se tornar padre?

Não, depois. Não confiei na justiça dos homens. Desobedeci os ensinamentos de Cristo. Escolhi a vingança e o ódio. Caí no abismo, David. Não passo um único dia sem ser atormentado pelo que fiz — res­pondeu o padre.Voz arrastada. Olhar distante.

Quer conversar sobre isso? — perguntou o jornalista, observando as lágrimas escorrerem pelo rosto do "padre assassino".

Já confessei esse crime. Mas não me sinto perdoado. Talvez de­vesse procurar as pessoas que prejudiquei. E lhes pedir perdão... Por isso, David, eu posso lhe dizer, não como um padre no púlpito, mas como um homem que errou: escolha o caminho certo. Não desperdice nenhuma chance de reconciliação. A vingança pode ser atraente. Mas seu preço é muito alto - afirmou, limpando o rosto com as costas da mão direita.

O jornalista sorveu o último gole do vinho, sem apreciá-lo adequa­damente. Estava menos interessado em seus aromas e sabores do que na história sórdida de Pietro. Mas aquele não era o melhor momento para saciar sua curiosidade. Torceria para que ele chegasse antes de o padre voltar a Roma.

Agradeço seus conselhos. Não me esquecerei deles - agradeceu David, mirando discretamente o relógio de pulso. — Preciso ir. Como combinado, nos encontramos amanhã, aqui no hotel.

Quando você voltar,já terei reunido as principais profecias sobre a Mulher Escarlate e o nascimento do Anticristo - prometeu o padre.

Não se esqueça de usar o business center. Seu computador e seu celular estão sendo monitorados por Michael, e ele deve acreditar que nossa missão terminou com a morte de sir Alexander Cotton. Lembre-se do jogo de xadrez.Vamos deixá-lo pensar que está com a vantagem.

Para apanhá-lo de surpresa — completou Pietro, voltando a con­versa para a língua inglesa.

Até amanhã — despediu-se David, apertando as mãos do padre.

Vou tomar dois cafés antes de sair. A noite será longa — disse Pietro, sentando-se novamente. "Como ele pretende virar o jogo em uma hora de entrevista exclusiva? Se a Fernanda for realmente a Grande Pros­tituta, David não conseguirá dissuadi-la de participar do ritual, nem de lhe entregar o Livro das Folhas Prateadas. Ela nem deve saber o que é isso. Se as profecias sobre a Mulher Escarlate apontarem para ela, a única solução é... Abaddon. Não! Não posso... Não contra essa menina."

Meu Deus, o que o senhor está fazendo comigo? - gritou, em italiano. Espantadas, as pessoas das mesas próximas olharam na sua direção. O café chegou poucos segundos depois.

 

Fernanda respirou fundo algumas vezes, mas suas mãos ainda tremiam, tornando a carta quase ilegível. Achou melhor repousá-la na mesinha ao lado da poltrona. Acendeu o abajur. Ela fora escrita com pena, na cor sépia. Caligrafia artística.

 

Querida Fernanda, nunca tirei os olhos de você. Os últimos seis anos lhe fizeram muito bem. Você está linda... Mas, infelizmente, não faz meu estilo. Gosto de mais curvas. Parabéns, você se tornou a maior top model do mundo. É claro que, sem meu empurrãozinho, você não seria ninguém...

 

— O que você quer comigo? — indagou ao remetente, interrom­pendo a leitura por alguns segundos.

 

Chegou a hora de saldar nossa dívida...

 

Fernanda fechou os olhos. E lembrou-se do que lhe dissera o pro­vável autor daquela carta no único encontro que tiveram: "Você não me pagará com dinheiro nem com seu corpo". Tomada por um calafrio, retomou a leitura.

 

Espero que goste das roupas e das jóias que usará amanhã. Eu mesmo as desenhei. Permaneça com elas após o encontro com a imprensa. As onze e meia da noite, você rece­berá uma visita em sua suíte. Meu "cobrador" se chama Andrew. Seja uma boa anfitriã. E faça tudo o que ele quiser. Prometo que será uma noite inesquecível. Um beijo, Sammy.

 

O preço é transar com esse... Andrew? — questionou-se. Pareceu-lhe muito pouco para tirar aquele peso das costas. Pagaria com seu corpo, mas o felizardo seria outro homem. "Andrew", repetiu mentalmente. Ligou o iPod. Seleção aleatória. Acendeu um cigarro ao som de "Vertigo", do U2.

Adoro essa música — disse, dando um trago. Aumentou o volume. Começou a dançar no centro da sala.

Your eyes are wide

And though your soul

It can't be bought

Your mind can wander...

 

Silêncio. A canção fora interrompida inesperadamente. Fernanda ficou imóvel. Coração acelerado. O iPod voltou a tocar. O som estava mais alto:

 

God knows they got to you

Empty glass, the lady sings

Eyes swollen like a bee-sting.

Blinded, you lost your way

In the side streets and the alleyways

Like a star exploding in the night

Filling up the city with broad day light.

Angel in devil's shoes...

 

Era um trecho de "Angel of Harlem", da banda irlandesa. Silêncio. Fernanda ouviu passos. Fechou os olhos e respirou fundo. Sentiu um sopro gelado em seu rosto. Abriu os olhos. Teve a impressão de enxergar alguém correndo em direção a ela. Um arrepio percorreu suas vértebras.

Quem está aí? — gritou.

O som voltou a funcionar. Desta vez, a voz de Raul Seixas tomou conta da sala com um trecho de "Gîtâ", uma das canções preferidas de seu pai:

 

Eu sou o seu sacrifício

A placa de contra-mão

O sangue no olhar do vampiro

E as juras de maldição.

Eu sou a vela que acende

Eu sou a luz que se apaga

Eu sou a beira do abismo...

Pela primeira vez, alguém parecia sussurrar-lhe aquelas rimas da "beira do abismo". Sentiu pavor. "Será que Sammy... Não, não pode ser. Isso não passa de imaginação", pensou. Com as mãos trêmulas, acendeu outro cigarro.

Preciso de um banho relaxante. Preciso de sexo. E preciso de outro iPod - concluiu, sentando-se no sofá. O silêncio foi quebrado pela voz de BonoVox: "Esta é a canção que Charles Manson roubou dos Be­atles. Nós estamos roubando de volta". Seguiu-se "Helter Skelter".

Charles Manson não é o maníaco que matou a mulher daquele cineasta? — questionou-se. — Qual é mesmo o nome daquele filme que ele rodou aqui, no Dakota?

Repentinamente, a banda irlandesa foi substituída por uma música suave.

Que canção de ninar sinistra. Nunca gravei essa porcaria — disse para si, conferindo o título: Christopher Komeda, "Rosemarys Baby".

Arrancou o iPod da base e o arremessou contra a parede. Agachou-se no chão. O cigarro caiu de sua boca. A brasa foi apagada pelas lágri­mas que despencavam de seu rosto.

 

Sentado na poltrona da sala de estar, David ouvia A Arte da Fuga - Contrapunctus IX, de Bach. "As intenções do padre são as melhores, mas estou quase certo de que ele está sendo manipulado", deduziu. Sua mente estava em ebulição. Apostava que a Mulher Escarlate era Fernanda Albuquerque e que a seita satânica realizaria o ritual após o lançamen­to da campanha publicitária. "Eles são perversos, não estúpidos. Se algo desse errado, estariam arriscando milhões de dólares de contrato publi­citário", afirmara ao padre. Sua entrevista exclusiva com a top model estava prevista para depois de amanhã, três horas antes do lançamento oficial do perfume da Schiaparelli. Era a chance que ele tinha de reverter o jogo. Convencera Pietro de que esse era o melhor caminho. Embora não soubesse exatamente qual seria sua jogada, Mary faria parte dela. Precisava abrir o jogo com sua assistente. "Posso confiar nela? Será que ela não faz parte disso? Acho que estou ficando paranóico", concluiu. Decidiu marcar um encontro com a americana assim que chegasse de Upper Slaughter.

— Não me sinto preparado para confrontá-lo. Nem para perdoá-lo - confessou a si mesmo, franzindo o cenho.

"Mesmo que sir Alexander Cotton... Ele tinha que ter ficado do meu lado, não me jogado na fogueira". Lembrou-se da história de Pietro. "Ele é muito intempestivo. Pode arruinar tudo." Bocejou. As pálpebras pesavam. Estava muito cansado. Mas antes de se deitar, precisava enviar um e-mail. Foi ao escritório e acessou a caixa de mensagens: Mary, preci­samos nos encontrar antes da coletiva de imprensa. Ligo para você amanhã. Esteja alerta. Beijos, David. O ritual que antecedia o sono demorava cerca de vinte minutos. Encostou a porta do quarto, girou a chave duas vezes e testou a maçaneta outras duas. Após confirmar que estava trancada, co­meçou a inspeção pela janela.Travada. Olhou embaixo da cama e dentro dos armários. Nada. Trocou de roupa. Já de pijama, passou para a suíte e escovou os dentes. Conferiu a janela. Travada.Voltou ao quarto e trancou a porta do banheiro. Girou a maçaneta duas vezes. Trancada. Colocou a bengala embaixo da cama, do lado esquerdo, onde dormia. "Arma a pos­tos", pensou. Acendeu o abajur e apagou as outras luzes. Costumava ler algumas páginas quando estava menos cansado. Não era o caso. Fechou os olhos.Teve a impressão de ouvir algo raspando a porta do quarto, pelo lado de fora. "Ele sempre vem. Ainda bem que nunca consegue entrar. Pelo me­nos quando estou acordado", confortou-se. Cedeu à exaustão. O barulho continuava, cada vez mais alto. O braço de David caiu para fora da cama. A mão esquerda tateando o tapete, em busca de sua arma. Não estava lá.

David, você precisa de mais do que uma bengala para derrotá-lo - aquela voz lhe era familiar.

Eu já o enfrentei na floresta.

Aquilo foi uma brincadeira.

O que eu preciso fazer?

Abra a porta e lute.

Ele respirou fundo e saltou da cama. As raspadas transformaram-se em batidas. Uma pancada violenta o fez recuar.

Não seja covarde.

Ele destrancou e escancarou a porta. Os olhos faiscantes encaravam-no. O jornalista se jogou sobre o monstro e golpeou sua cabeça duas vezes, até sentir as presas afiadas mergulharem em seu braço direito. Ber­rou quando o animal girou o pescoço, arrancando um pedaço de seu corpo. O sangue jorrava. Conseguiu levantar-se. Observou, enojado, o cão devorar sua carne.

Deus se rebaixa aos homens e os homens se transformam em Deus quando comem seu corpo. Isso é o que chamam de milagre da comunhão, David — explicou o interlocutor invisível.

Ele viu o animal transformar-se em homem. Reconhecia aquele corpo e aquele rosto. Eram seus.

Parabéns, meu filho.

Fazia tempo que não ouvia aquela voz.Virou-se. Seu pai lhe esten­dia um anel de ouro que costumava usar no dedo anular da mão direita. Tinha séculos de existência e passara de geração em geração.

Essa é a sua verdadeira herança — prosseguiu.

— Por que você me renegou? — indagou, com a voz embargada.

Para te proteger. Me perdoe.

David acordou com uma frase em sua cabeça: "Abra a porta e lute". Levantou-se e foi até a porta. Ficou parado diante dela por alguns minu­tos. "Preciso vencer isso", pensou, relutante. Voltou para a cama e checou se a bengala continuava lá embaixo. "Arma a postos", disse para si. Sorriu, aliviado. Adormeceu poucos minutos depois.

 

Seu assistente, Gennaro, enviara dezenas de textos havia três horas. Desde então, ele cruzara diversas profecias e anotara tudo o que lhe pare­cera relevante para a missão. Fora a última pessoa a deixar o business center, quase às duas e meia. Assim que entrou na suíte, abriu o notebook e enviou um e-mail ao cardeal Fioravante.

— O feitiço contra o feiticeiro - disse, triunfante. Acreditava que aquela mensagem despistaria Michael. Os olhos ar­diam e os pulsos doíam. Deitou-se na banheira com água bem quente, temperada por sais relaxantes. Sua mente voltou-se para um pequeno tratado escrito pelo monge Adso no fim do século X. Encomendado pela rainha Gerberga, ele reunia as principais profecias sobre o Anticristo exis­tentes na época. "A antigüidade é um excelente critério para a seleção", decidira-se, ao deparar com uma enxurrada de artigos contemporâneos, alguns muito acadêmicos, outros, sensacionalistas. Apanhou o bloco de notas em uma banqueta ao lado da banheira e abriu na página dobrada:

 

Como dizem nossos autores, o Anticristo nascerá do povo judeu, da tribo de Dã, conforme as palavras do profeta: "Dã seja como serpen­te no caminho, como víbora no atalho, que morde os calcanhares do ca­valo e faz cair para trás o cavaleiro". Será, portanto, como uma serpente escondida à margem da estrada preparada para morder os que seguem o caminho da retidão, envenenando-os com sua malícia.

 

Fechou os olhos e lembrou-se da escultura na igreja Il Gesù. A reli­gião esmagando a cabeça da serpente. Sorriu.

A Igreja sempre vence - disse baixinho, voltando-se novamente para as anotações. A transcrição de parte do tratado medieval era inter­rompida por considerações pessoais.

 

Símbolos de Dã: Águia com serpente no bico/Abelha.

Visão lúcida: Centenas de abelhas penetram cavidade sexual da Grande Prostituta.

Mulher Escarlate: Tribo de Dã.

 

Trechos da carta do monge Adso prosseguiam entremeados pelos seus rabiscos:

 

Ele será resultado do intercurso sexual de sua mãe e seu pai, como outros homens, e não de uma virgem solitária. Ele será com­pletamente concebido no pecado, engendrado no pecado e parido no pecado (fruto de uma mulher perdida e impura e de um bandido abominável)... O diabo escolheu o lugar onde deve nascer o homem da perdição, o Anticristo, um lugar que foi a origem de todos os vícios e crimes: Babilônia.

 

"A Fernanda foi criada em um antro de facínoras. Deve ter sido consagrada ao diabo pelo pai. Certamente escolheu o caminho do Mal. Isso explica como e por que ela saiu daquele lugar ermo e virou celebri­dade no mundo inteiro...", refletia Pietro.

Maldita seja a alma daquele desgraçado!

Sentiu o corte no supercílio latejar. Tontura. Forçou a vista para con­seguir terminar a leitura da última parte de sua transcrição:

 

O Anticristo terá como mentores magos, encantadores, advinhos e feiticeiros. Todos serão guiados pelo demônio e o iniciarão na arte nefas­ta e na prática de iniquidades.

 

—Aquele bandido deixou tudo preparado. Mesmo depois de morto ainda me... - arrastava a voz até sentir uma estocada no centro da testa. A cabeça tombou para o lado direito. O bloco de notas mergulhou na banheira. Com a página posterior virada para cima:

 

Teorias conspiratórias/satanismo

Décima terceira linhagem: sêmen do diabo (tribo de Dã?)

Algumas chaves: Freeman/Bundy/Rockefeller (bandido abominável?)

 

"Três novas mensagens", anunciou uma voz feminina, entonação sensual. Michael esfregou os olhos antes de se levantar do sofá. Olhou para o chão. A garrafa de bourbon estava vazia. Foi até a mesa e sentou-se diante do notebook. Cabeça pesada. Um clique no ícone e o e-mail recém-chegado tomou conta da tela:

 

Caro Gabriele, nossa missão em Londres foi bem-sucedida. Essa noite, o inimigo foi derrotado. Farei um relato completo assim que voltar a Roma. Peço permissão para ficar na cidade por mais alguns dias. Pretendo fazer convênios acadêmicos entre nossos irmãos ingleses e o Ateneu Pontifício Regina Apostolorum. In Christo et Maria, pr. Pie­tro Amorth S. f.

 

— Será que posso acreditar em você? — indagou Michael, passando para a mensagem anterior.

 

Senhor Abbot, o empresário italiano jantou com o jornalista David Rowling, no Dinner by Heston Blumenthal. As vinte e três e vinte e cinco, seguiu sozinho para o business center. No tempo em que esteve lá, fez uma ligação para Roma e utilizou um dos computadores. Fizemos backup dos arquivos carregados (anexos). Às duas e trinta e dois, ele voltou para a suíte. Atenciosamente, Morgan.

 

Michael fez download dos documentos anexados. Centenas de pági­nas, em italiano. Correu os olhos por algumas, na tentativa de encontrar palavras recorrentes.

Anticristo - disse com sotaque. — Você perdeu horas pesquisando isso? Eu, no seu lugar, teria passado a madrugada fodendo aquela massa­gista gostosa.

Voltou à mensagem de Pietro e conferiu o horário em que ela fora enviada: duas e quarenta. "Poucos minutos depois de ter voltado do business center", concluiu.

Está querendo enganar a quem, padre de merda, seu chefe ou o meu? — indagou, acessando a mensagem ainda não lida. O e-mail do sena­dor Karl Bundy estava sinalizado como urgente, e chegara havia duas horas.

 

Espero que você tenha apreciado a relíquia. E treinado seu manuseio. Devo lembrá-lo de que o serviço deve ser realizado com um ÚNICO golpe apenas. Exigência inglesa. Pretendia deixá-lo concentrado tiisso, mas surgiu um imprevisto. A deusa che­gará amanhã e fará uma coletiva de imprensa no hotel. Esteja presente. Uma mulher tentará lhe entregar uma carta. Sua missão é impedi-la. Boa sorte, K.B.

 

Preciso arrancar a cabeça de um bruxo bastardo e você quer que eu me preocupe com uma maldita carta? - desabafou Michael.

Eram quase quatro horas da manhã. Foi até a mesa em que deixara a relíquia. Segurou o cabo com as duas mãos e ergueu a lâmina acima de sua cabeça. Parecia mais pesada do que antes. Imaginou um homem ajoelhado, cabeça baixa, pescoço saliente.

Um único golpe... — disse, descendo vagarosamente a arma. — E sua cabeça vai rolar.

Sentiu os braços formigarem. E perderem força. Soltou-a. Um es­trondo. A lâmina fincara-se no assoalho de madeira, projetando o cabo a quarenta e cinco graus do chão.

Merda! — resignou-se, tentando puxar o instrumento do martírio de São Carlos I. As mãos adormeceram. Não conseguiu evitar a queda. Sentiu a pancada violenta na nuca. Uma explosão luminosa. Escuridão.

 

Alguém passou correndo por ele, parou poucos metros à sua frente e virou-se em sua direção:

Antônio roubou minha filha — disse-lhe uma mulher com o rosto queimado de sol, aparentando ter quinze anos a mais do que seus meros vinte e cinco. Lágrimas nos olhos.

Por que ele fez isso? — indagou Pietro.

Reze pela alma da minha pequena — suplicou a mulher, jogando-se aos seus pés.

— O que ele quer com a sua filha?

Ele vai chamar o demônio...

Quem ele vai chamar dessa vez, o preto velho ou a pomba-gira? - questionou Pietro, com um sorriso zombeteiro.

O tinhoso, padre! Reze pela minha filha, eu imploro! — a mulher berrava, desesperada.

O que ele quer com a sua filha?

Ele vai sacrificá-la - respondeu a mulher, olhos arregalados, res­piração acelerada.

Por que você entregou a menina?

Eu precisava do dinheiro. Meu Deus, eu mereço queimar no inferno, mas salve a alma da minha filha — implorou a mulher, levantando-se e saindo em disparada novamente. Em poucos segundos, desapare­ceu da vista de Pietro.

"Quando aceitei ser voluntário nessa região miserável, nunca imagi­nei que fosse ver uma mulher vender a própria fdha... Meu Deus, perdoe seu erro. O Antônio é um feiticeiro maldito, mas seria incapaz de...", pen­sava. "Se for verdade, preciso salvar a criança." Pietro sabia onde Antônio morava. O terreiro de candomblé era no quintal de sua casa. Fechou os olhos. Ao abri-los, já era noite. A lua cheia exibia cor vermelho sangue. "Mau presságio", deduziu Pietro. Atravessou a pequena mata. O muro de cinco metros o separava de uma algazarra. Chocalhos, tambores, dezenas de vozes. "O demônio é o senhor dos meus passos." Aquela frase quase inaudível explodiu em seu ouvido. Calafrio. Escalou os blocos de concreto apoiando-se nas falhas. Pessoas estavam reunidas em torno de uma mesa de pedra. Uma menina nua, amarrada sobre ela, chorava. Pietro reconheceu Antônio, segurando um punhal com as duas mãos. O servo do demônio er­gueu o punhal acima da cabeça e olhou na direção do muro. Os olhares se cruzaram e ele sorriu para o padre. Pietro reteve a respiração. Era como se o próprio diabo zombasse dele. "Aqui, sua religião não serve para nada.Você não será capaz de salvá-la." Aquelas palavras invadiram sua mente no mes­mo instante em que Antônio cravou a lâmina no ventre da criança, pelo lado direito, rasgando-o até a outra extremidade. O padre fitou os olhos da vítima. Desespero, dor agonizante e ausência de vida. Ânsia. Abaixou-se e vomitou. Espiou novamente por cima do muro. O assassino cortava a ca­beça da vítima. Foi surpreendido por outra menina, abrindo a porta dos fundos da casa.Vestia pijamas cor-de-rosa, com flores vermelhas estampadas. Encarou o algoz com as mãos sujas de sangue. Depois voltou-se para a mesa de sacrifício. Os olhos se encheram de lágrimas. Um grito. Pietro reconhe­ceu a criança. Era a filha de Antônio e freqüentava a missa com sua mãe. A revolta tomou conta de seu coração. O tempo passou em um piscar de olhos. Era fim de tarde e ele estava de tocaia na mata. Sabia que o assassino passaria por aquele lugar. Ouviu gravetos e folhas serem pisoteados. Os passos se aproximavam. O homem passou. Coração acelerado. Respiração curta. Pietro se jogou sobre ele e golpeou suas costas com uma faca.

— Onde está o seu senhor agora? Morra, desgraçado. Vá para o inferno! — dizia, enquanto o apunhalava.

 

Ele assistia a um desenho quando a campainha de sua casa soou. Ouviu os gritos de sua mãe e correu para acudi-la. Encontrou-a agachada no chão, com as mãos cobrindo os olhos. Um choro abafado.

— O que aconteceu, mamãe? — perguntou Michael, observando o policial na porta.

Seu pai está em casa?

Está trabalhando. Meu irmão mais velho saiu. Eu sou o homem da casa. Pode falar comigo.

Seu irmão foi baleado em um assalto.

O que é baleado? — questionou Michael.

Levou um tiro a queima-roupa. Infelizmente, os paramédicos não puderam fazer nada.

Meu filhinho — chorava sua mãe, com o coração dilacerado.

Meu irmão, meu irmão... Onde ele está? — gaguejou Michael.

Depende de como ele viveu aqui — alguém respondeu.

Quem está falando comigo? — perguntou, olhando em volta. Sua mãe e o policial tinham desaparecido. Ele não estava mais em casa. Re­conheceu o lugar onde soltava pipa e andava de bicicleta com o irmão.

Estou aqui embaixo, cuidado para não pisar em mim — respon­deu a mesma voz.

Michael olhou para baixo, encontrando a cabeça de um homem. Tinha cabelo comprido ondulado, bigode e cavanhaque pontiagudo.

Quem é você? — estranhou, inclinando o corpo na direção do resumido interlocutor.

Sempre esqueço de me apresentar. Eu era o rei Carlos I. Mas fui promovido a santo.

O machado... — murmurou o americano.

...que me decapitou está com você — completou o santo.

O que quer comigo?

Eu não quero nada. Quem quer é Ele.

Ele quem?

Michael, basta pensar um pouco. Se eu sou um santo, quem é o meu patrão?

Deus?!

Ele mesmo.

Aquele... — dizia Michael, apontando para cima.

Cuidado com o que você vai falar - advertiu a cabeça.

Ele ferrou minha vida. O que mais Ele quer tirar de mim? - desabafou.

— Quem disparou a arma não foi Deus, Michael.

Por que ele não impediu?

O mal que existe no mundo é uma escolha dos homens. Mas essa vida é apenas a ante-sala da eternidade.

Por que você está me dizendo isso?

—Você está trabalhando para homens que já nasceram condenados. Mas ainda pode ser resgatado. É a sua última chance — revelou o rei santo, erguendo a sobrancelha direita.

O que eu preciso fazer? — questionou Michael, com um sorriso sarcástico.

Me levante acima de você.

—Vá à merda — retrucou o americano.

Em pouco tempo, você estará afundado nela. Essa vida é breve como um piscar de olhos...

Goooooool! - berrou Michael, chutando a nuca do rei como se tosse uma bola de futebol.

Mergulhou na escuridão. Dor. Parecia ter sido atingido, ele mesmo, por um chute na nuca. Abriu os olhos com dificuldade. Estava caído no chão da sala. O machado à sua frente, fincado no assoalho.

 

O corpo de Antônio estava estirado na relva. Os olhos estampavam terror. Poderia ser a surpresa do ataque violento, ou a descoberta de que o assassino era um padre. Para Pietro, eles anteviram os horrores que o aguardavam na outra vida. Sua mão direita, melada de sangue, ainda segurava a faca. Sentiu repulsa. Queria arremessar a arma para longe e correr até sua casa para tomar banho. O céu estava escuro e ninguém atravessava a pequena mata. Por precaução, Pietro arrastou o corpo para trás de uma árvore. Andou alguns metros, cavou um buraco na terra e colocou a arma. Com o pé, selou o esconderijo. Um clarão no céu iluminou seu rosto. Coração apertado. Seria Deus, mostrando que ele jamais conseguiria ocultar aquele crime? Um trovão estremeceu a terra. E seu corpo. Para ele, o sinal era inequívoco: a ira divina recaindo sobre sua ca­beça. Saiu em disparada. Outro raio. Seguiu-se um estrondo mais intenso. Pietro se atirou ao chão. E caiu em prantos.

Meu Deus, me salve! - gritou, desesperado.

Levantou-se e continuou a correr. Tempestade. As lágrimas foram arrastadas pela chuva. O sangue de Antônio também. Abriu aporta de casa.

Seja bem-vindo.

Ele reconheceu a voz. Olhou para cima. O teto desaparecera. So­bre um trono, suspenso a alguns metros, enxergou um homem vestido de branco. Ele tinha barba, bigode, cabelos longos, nariz adunco, pele morena. Mas em vez do sorriso acolhedor de outrora, ostentava uma expressão severa.

Jesus! - exclamou Pietro, ajoelhando-se no chão.

—Você chama meu nome. Mas não me segue.

O que quer de mim, Senhor? - indagou, terrificado.

Que ouça minha voz.

Aquele homem... Ele... — balbuciava o padre, sem olhar para cima.

Escolheu outro caminho.

Eu só quis... Queria... — Pietro tentava se justificar.

Julgar e punir os ímpios?

Sim.

Deus é o juiz. Você quis se igualar a Ele? — disparou o homem sobre o trono.

Eu... Eu só queria fazer a Sua vontade.

E acabou fazendo a própria. Em breve, terá consciência do mal que causou.

Me perdoe, Senhor — implorou o padre, com as mãos cobrindo o rosto.

"Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido". Todos os dias você repete isso. Apenas com a boca. Precisa rezar com o coração, Pietro.

Tenha misericórdia de mim.

Silêncio. Gargalhadas. O padre descobriu os olhos. Estava imerso em uma penumbra avermelhada.

Quem está aí?

Você será julgado pelos crimes de seus inimigos — acusou uma voz rouca.

Alguém se aproximou. Era a menina imolada por Antônio, segu­rando as vísceras com as mãos. A cabeça, quase degolada, pendia para o lado esquerdo.

Por que você fez isso? — ela perguntou, com a boca coberta de sangue.

Outra pessoa chegou e parou ao lado da criança. O rosto inchado e coberto por hematomas. Seios volumosos insinuando-se no decote da camiseta branca. Minissaia preta. Salto alto. Ele a reconheceu imediata­mente. Era a mulher morta no último ritual de exorcismo que comandara em Santa Maria in Aracoeli.

Por que você fez isso? - ela indagou, com a boca deformada por pancadas.

Sentiu o coração apertar no peito. Dois homens se aproximaram e ficaram diante dele. Um deles era seu antigo assistente, o seminarista Andréa. O outro era Simone, seu ajudante.

Por que você fez isso? - perguntaram em uníssono. Os rostos traziam a assinatura sinistra dos membros da Colmeia Dourada: perfurações à bala.

Alguém tocou em suas costas. E sussurrou em seu ouvido:

Por que você fez isso?

Reconheceu a voz de sir Alexander Cotton. O hálito de fezes não deixava dúvidas. Sentiu suas mãos meladas. Era sangue. Segurava uma faca. Voltara à pequena mata, perto da casa de Antônio. A vítima gritara após o primeiro golpe. Algum covarde a apunhalara pelas costas. Apesar da dor, conseguiu se virar e reconheceu seu algoz. Era ele mesmo, o padre da aldeia.

Por que você fez isso? — aquelas foram suas últimas palavras.

Pietro abriu os olhos, assustado. A água da banheira estava gelada. Re­tirou o bloco de notas do fundo e colocou-o sobre a banqueta. As anota­ções à caneta tinham esmaecido. Enrolou-se no roupão e usou o secador de cabelos para salvar as outras páginas. Eram quatro horas da manhã quan­do se ajoelhou na beirada da cama e tentou rezar um Pai-Nosso. "Todos os dias você repete isso. Apenas com a boca." Recordou aquelas palavras. Chorou profusamente.

 

Mary devorara quatro pedaços de pizza no sofá da sala. Estava pres­tes a desligar a tevê quando o próximo filme foi anunciado: O Bebê de Rosemary. "Sempre quis assisti-lo", disse para si, acomodando-se nas almofadas. Estava cansada. Adormeceu com a canção suave da abertura. Poucos minutos depois, passeava sozinha no Central Park. Fim de tarde. Céu cin­zento. "A Fernanda mora aqui perto, podia tomar café com ela", pensou. Vozes.Virou-se na direção delas. Era uma trupe teatral. Pessoas aglome­ravam-se em torno do palco improvisado. Sobre ele, um senhor vestindo manto dialogava com uma jovem mulher:

"Tudo o que fiz foi por ti, minha idolatrada filha, que não sabes quem és, nem tens notícia de onde eu teria vindo, nem que eu possa ser mais do que Próspero, talvez o dono desta gruta, e seu pai".

"Eu conheço essa peça. E A Tempestade, de Shakespeare", deduziu Mary. Um estrondo no céu a fez olhar na direção do edifício Dakota. As nuvens se abriram. Um dragão vermelho-fogo agitava suas asas sobre o apartamento da amiga brasileira. Contou sete cabeças e dez chifres. A imensa cauda parecia brincar com centenas de esferas de fogo. Em um gesto rápido, lançou uma delas contra o chão. A luz intensa a fez cobrir os olhos. Percebeu alguém se aproximar, envolto em um manto azul-escuro.

Quem é você?

"É tempo de saberes alguma coisa mais.Tire dos meus ombros o manto mágico" — respondeu o homem, parafraseando uma das falas do protagonista shakespeariano.

Perfeitamente - ela consentiu, puxando o tecido.

Ele estava nu.

Quem sou?

Sammy?

Você reconheceu minha varinha mágica? — ele perguntou, sor­rindo e apontando para o pênis ereto. - Os anos lhe esculpiram muito bem, querida.

O que você quer?

Fazer minha melhor mágica.

Quer transar comigo? — disparou Mary.

Transaria com você por toda a eternidade. Mas, infelizmente, precisamos obedecer algumas regras. Cubra-me com o manto, querida.

Mary arremessou o tecido azul-escuro sobre o rosto daquele homem.

O que você está fazendo?

Reconheceu aquela voz. Era David, exatamente no mesmo lugar em que Sammy estivera há menos de um segundo.

—Você viu o dragão? — ela perguntou.

Com uma mulher linda na minha frente, não consigo enxergar mais nada — retrucou seu chefe, avançando sobre ela e tirando sua blusa. Mary fechou os olhos. Ao abri-los, estava no tapete de casa. David sobre ela, penetrando-a e pressionando suas costas com as pontas dos dedos. Sentiu o corpo tremer em uma seqüência de espasmos. As mãos dele afrouxaram e uma onda de calor percorreu a vagina e subiu até o ventre. Tornou a abrir os olhos. O jornalista não estava mais lá. Uma mulher nua cavalgava a estátua de Cernunnos. Um grito. A cópula sagrada chegou ao clímax. A intrusa virou o tronco, revelando seu rosto. E disse:

Espero que você não tenha ciúmes.

Era a amiga Fernanda Albuquerque. Mary despertou, excitada. O filme O Bebê de Rosemary estava no fim. Arrancou a capa azul-escura de Cernunnos. O deus exibia um estranho sorriso.

 

O celular tocou sobre o criado-mudo. A mulher, deitada ao lado, resmungou algo incompreensível. O conde de Bedford acendeu a luz do abajur e conferiu o horário. Quase cinco da manhã. Sabia que era uma chamada de emergência do conde de Leicester. Levantou-se com cuida­do e foi atendê-lo no escritório.

— Estamos nas garras da águia — disparou a voz do outro lado.

Não pode ser! — exclamou o conde de Bedford.

O mensageiro do Vaticano continua em Londres. E é um forte suspeito do assassinato do lorde fanfarrão.

O que isso tem a ver conosco?

Lembra-se de sua suspeita sobre a identidade do Duque Negro? — indagou o conde de Leicester.

Sir Alexander Cotton? Você me disse que isso não era possível...

Vamos deixar as especulações de lado e ir direto aos fatos. Um dia antes do crime, o mensageiro do Vaticano esteve no College of Arms e pesquisou a genealogia da família Cotton. Ele deve ter tido acesso a informações privilegiadas.

Acho pouco provável que ele soubesse mais do que nós sobre nossa própria ordem — argumentou o conde de Bedford.

Concordaria com você se ele fosse apenas um padre enviado pelo Vaticano para desarticular nossa organização. Mas você se lembra do norte-americano que estava cruzando o caminho do bastardo?

Um possível emissário dos nossos irmãos norte-americanos....

Sim, o agente da águia enviado para Londres em missão sigilosa. Ele está dando cobertura para o padre - entregou o conde de Leicester.

—Você está me dizendo que a águia fez uma aliança com a Igreja Católica? Isso é impossível! - indignou-se.

Isso é política, meu caro. Os dois devem ter um interesse em comum.

Você acha que o Duque Negro... - dizia o conde de Bedford, hesitante.

— Você sempre esteve em contato com ele. Mesmo sendo por tele­fone, cartas e internet, nunca desconfiou?

Ele usava um intermediário, meu caro. Mas isso não importa agora.

Isso é terrível - concluiu o conde de Bedford.

Estamos no escuro.

Traidores malditos! Quem vai nos guiar?

O bastardo tem o direito de sangue — respondeu o conde de Leicester.

Aquele louco? Jamais! - berrou o conde de Bedford, esmurrando a mesa do escritório.

Lembra-se do juramento?

O que você está insinuando?

O assassinato do mestre nos dá duas escolhas — sugeriu o conde de Leicester.

Eu... Eu já tenho a minha - balbuciou o conde de Bedford, des­ligando o telefone. Sentou-se na poltrona e segurou o retrato da família. Ele sorria ao lado da mulher e de um casal de filhos, já adultos.

Tudo o que fiz foi por vocês. Espero que me perdoem.

Abriu a terceira gaveta da escrivaninha, removeu algumas pastas e deslocou a tampa ao fundo. Havia uma chave. Retirou a última gaveta do móvel e destrancou o alçapão logo abaixo. As mãos suadas puxaram uma pasta de documentos e uma pistola semi-automática. Jogou os papéis no lixo de metal e derramou um pouco de uísque sobre eles. Ateou fogo.

Que o mestre guie meus passos na escuridão — disse, ajoelhando-se no tapete do escritório. Abriu a boca e apoiou a ponta da arma na língua, mirando para cima. O gosto metálico provocou ânsia. Respirou fimdo e fitou o porta-retratos mais uma vez antes de apertar o gatilho.

 

 

                                                                              CONTINUA

 

 

David não guardava boas recordações da propriedade familiar em Upper Slaughter. No bosque daquele castelo, fora ameaçado por um animal selvagem. Mesmo morto pelo pai, aquele "monstro" nunca o abandonou, e montava guarda na porta de seu quarto. Todas as noites. "O medo transforma animais afáveis em bestas sanguinárias", recordou-se daquelas palavras enquanto rumava em direção aos pesadelos de infância, vestindo o clássico riscas brancas sobre fundo azul. No banco do passa­geiro, sobretudo crombie coat azul-escuro, da Tibbett. Sentiu um aperto no peito. Nó na garganta. Não queria pensar naquilo. Olhos marejados. "Qual será a justificativa do meu pai? Será que ele...", pensava.

Droga, por que eu não morri com você? — berrou. Fazia quinze anos que capotara com seu Aston Martin esportivo prata na direção con­trária daquela curva.

 

 

 

 

Por que seu pai não gosta de mim, David? — perguntara-lhe a namorada, enquanto voltavam a Londres após um fim de semana em Upper Slaughter.

Ele não gosta de quase ninguém, Susan. Mas não se preocupe, ninguém neste mundo vai mudar o que eu sinto por você.

Jura?

Juro.

Nem mesmo Deus? — insistira Susan.

Nem Ele — respondera, hesitante.

Estou tão feliz, querido. Nas próximas férias, poderíamos viajar para algum lugar, só nos dois. O que você acha?

Uma ótima idéia. Para onde você quer ir?

Bora Bora?

Exótico. O que podemos fazer lá?

— O que acha de um casamento taitiano? — sugerira Susan, com um largo sorriso.

Meus pais querem que eu me case na Saint Paul.

Eles não querem que você se case comigo, David. Você perce­beu que está em uma encruzilhada e precisa tomar uma decisão? - pro­vocara Susan.

Minha decisão é Bora Bora. Quero dizer, é você.

Eu te amo, David.

Eu também... - dizia, até ser surpreendido por uma pontada dolorida na têmpora direita. Fechara os olhos. Ao abri-los, poucos segundos depois, flagrara um estranho homem parado na pista, a menos de cinqüenta metros. Assustado, girara o volante com força. Evitara o atropelamento, mas o acidente foi inevitável. O Aston Martin capotou sete vezes. Três dias depois, acordou em um quarto de hospital.

Onde ela está? - perguntara para a mãe.

Sinto muito, filho.

O que aconteceu, mãe?

Ela não resistiu.

 

Aquela foi a pior notícia que recebeu em sua vida. Desejava ter termi­nado a frase:"Eu também...Te amo, Susan". Encostou o carro no acostamen­to. Janela aberta. Ligou o pisca alerta. Abaixou a cabeça no volante. Chorou.

Nunca vou encontrar você de novo, minha querida...

 

                                                                              

 

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