Biblio VT
Randall fechou o circuito do gravador. Caminharam alguns metros em silêncio. Hennig tirou do bolso um amplo lenço, tossiu e expectorou para o tecido, voltando, depois de bem dobrado, a mergulhar o lenço nas profundidades do bolso das calças.
- Muito bem, vou explicar-lhe - disse com voz grave. Tenho sido sempre, no meu caminho -e não escondo essa feição - um patrão rudemente mercantil. Era um dos principais requisitos, para se sobreviver na Alemanha do após-guerra. A guerra devastou-nos por completo. Tratava-se então da velha cantiga da sobrevivência dos mais aptos. Ora a linguagem da sobrevivência era o dinheiro forte, muito dinheiro. Embrenhei-me na impressão da Bíblia só porque existia um grande mercado para as bíblias.
0 sector representava então riquezas, enorme prosperidade. Grandes lucros em bíblias muito caras. Dessa forma, consegui uma sólida reputação como um impressor religioso de boa qualidade. Então algo aconteceu repentinamente.
Por momentos, o impressor pareceu perdido nos seus próprios pensamentos, caminhando os dois em silêncio por mais alguns metros. Pouco depois reatou o fio à sua exposição.
-0 que aconteceu foi que, aqui na Alemanha, o interesse pela religião e pela igreja degenerou, diminuiu. Não há muitos anos ainda, os pobres e oprimidos e as pessoas que se deixavam orientar pela ciência e pela tecnologia declararam que Deus estava morto. A religião começou a decrescer, a deslizar pela ravina da negação e juntamente com ela o negócio e venda das bíblias. Como questão de sobrevivência, vi que devia imediatamente refazer-me da perda devido à súbita baixa das vendas; vi que tinha de deixar de chocar os meus ovos no ninho eclesiástico. De modo que, gradualmente, com aumento progressivo, comecei a tentar e a conseguir ganhar contratos para a impressão de livrecos baratos, populares, romancecos e pornografia. Sim, na Alemanha existia então um prodigioso mercado para a mais crua pornografia, e eu encontrava-me pronto a imprimi-Ia, só para que não parasse o afluxo de dinheiro aos meus cofres. Eu queria dinheiro, muito dinheiro, cada vez mais. Nunca me poderia permitir descambar na pobreza, tornar"me mais um desgraçado à mercê das contingências. Devo também confessar que andei envolvido com muitas jovens de vida airada, raparigas muito caras, até encontrar Helga Hoffinann, também ela um poço de sumir dinheiro. Está a começar a ver a coisa, hem?
-Não, receio que não esteja a compreender nada-respondeu Randall.
-Claro que não. Você não conhece a mentalidade artesanal alemã. Na drástica e radical reviravolta que organizei no negócio das bíblias para o negócio da pornografia, eritrei em conflito com os meus operários e com o Conselho de Trabalho em que estão filiados. Os jovens operários, tal como os veteranos, precedem de longas tradições de família na impressão artística e de qualidade, com todo o orgulho inerente ao seu artesanato, ao seu comércio, à sua produção, coisas que quase transcendem as considerações de lucros, de salários. As famílias daqueles homens trabalharam sempre para impressores de livros religiosos, livros de qualidade, e sentir-se-iam orgulhosos em fazerem para mim tal espécie de trabalho. Ora, quando eu quase abandonei as bíblias, os livros religiosos e me converti em impressor de livrecos baratos, impressões sem mérito, os operários das minhas oficinas sentiram-se abalados. Ressentiram-se da degradação sobre aquilo que estavam a imprimir. Mas o ressentimento foi ainda mais longe: ficaram fulos com a produção em massa que tinha que impor. 0 ressentimento manifestou-se pelo facto de eu exercer pressão sobre eles para obter uma maior produção que significava para mim um maior lucro. A pouco e pouco começaram a revoltar-se e a falarem de greve. Nunca antes tinha tido que enfrentar uma greve, e a maior parte dos meus melhores operários nunca tinham tido a mais leve razão para a promoverem. Mas agora, até mesmo aqueles que não se poderão dar ao luxo de estar sem trabalhar, que em outras condições não seriam capazes de o fazer, preparam-se para a greve. De facto, o presidente do Sindicato dos Impressores e Tipógrafos, Herr Zoellner, marcou uma data. Foi há meses. Evidentemente que temos negociado, mas sem fazermos progressos. Eu não me podia render. Zoellner e os seus homens também não quiseram ceder. Atingimos um beco sem saída. Bom, dentro de uma semana, a contar de hoje, ver-me-ei a braços com uma greve. Se ao menos eu lhes pudesse explicar que...
-Mas, Karl-disse Randall-deve haver alguma maneira de lhes dar a conhecer que você está a realizar a impressão da maior das Bíblias na história da indústria tipográfica.
- Nenhuma maneira - disse Hennig. - Estou numa alhada. Primeiramente, quando o Dr. Deichhardt me contactou, não me informou do conteúdo da nova Bíblia que pretendia impressa. Disse-me apenas que era radicalmente nova, diferente, importante. Depois de me ter delineado o projecto, tive que rejeitar o trabalho. Rejeitei-o porque o lucro que me caberia era pequeno. Recusei-me a deixar um trabalho lucrativo, fosse qual fosse o seu grau de baixeza, para conseguir prestígio. No entanto o Dr. Deichhardt continuou a pretender-me devido à minha reputação anterior. Sabe o que ele fez?
Randall abanou a cabeça negativamente.
-Fez-me jurar que manteria segredo e arranjou-me uma reunião privada em Francoforte com o Dr. Trautmann. Fiquei impressionado. 0 Dr. Trautmann é um dos nossos mais destacados teólogos. Quando do encontro, o Dr. Trautrnann entregou-me um manuscrito, sugerindo que o lesse imediatamente na sua presença. Aquilo que eu li, pela primeira vez, foram as traduções alemãs do Pergan-iinho Petrónio e do Evangelho Segundo Jacob.-Olhou interrogatívamente para Randall.-Leu-os?
- Recentemente.
- Ter-lhe-iam produzido o mesmo abalo que me produziram a mim?
-Fiquei profundamente impressionado e comovido. -Para mim representaram um despertar espiritual. Nem podia acreditar que me pudesse acontecer uma tal transformação interior, tendo principalmente em conta a minha personalidade como homem de negócios, como comerciante, como ávido procurador de lucros. Todavia aconteceu-me, voltando da cabeça para os pés o meu senso de valores. Ach, que noite de depuração aquilo produziu na minha alma! 0 discutir de hipóteses sobre o que deveria fazer desapareceu por completo. Aceitei o trabalho de imprimir a edição especial, o que significava que teria de abandonar bons lucros provenientes das porcarias que imprimia. Significava também uma redução nos meus rendimentos e, consequentemente, ter que esquecer durante um tempo tudo a respeito da Helga.
-E então, isso não satisfez os seus operários?
-Não. Porque a maioria deles nada soube do caso, porque eu não lhes podia dar conhecimento do meu novo e exemplar trabalho. 0 Inspector Heldering veio de Amesterdão e impôs no meu complexo de impressão as mais estritas medidas de segurança. Somente um número muito limitado dos meus operários veteranos podia ser utilizado na obra, permitindo-se"lhes que se inteirassem do conteúdo daquilo que estavam a imprimir. Como viu são precisamente aqueles que estão segregados dos outros operários mais jovens, e juraram manter totalmente secreto a espécie de trabalho em que estão empenhados. Quanto à maior parte dos meus operários nada sabem do caso, estão inconscientes de que eu voltei à tradição e à perfeição artesanal das obras religiosas. Desconhecem igualmente que tive que sacrificar uma enormíssima percentagem dos meus chorudos lucros anteriores, meramente para poder participar numa aventura religiosa histórica.
-De modo que irão para a greve na próxima semana, hem? -Não sei bem-disse Hennig com um súbito esgar em forma de sorriso.-Vou sabê-lo dentro de alguns minutos. Estamos finalmente em Mainzer Hof. Atravessemos a Ludwigstrasse e subamos ao último andar do hotel, onde fica instalado o restaurante, para sabermos a resposta.
Intrigado, Randall entrou com o impressor alemão no hotel, e meteram-se no elevador do átrio com destino ao oitavo andar. Era um restaurante alegre e airoso, como os olhos de Randall puderam verificar, com um dos lados da parede possuindo um vidro panorâmico que deixava ver o velho Reno a correr placidamente lá em baixo. 0 maitre dhôtel acolheu Hennig e Randall com uma reverência atenciosa, conduzindo-os rapidamente por entre as filas de mesas e luxuosas cadeiras forradas a brocado até um lugar junto à parede panorâmica, onde se encontrava já instalado um homem de proporções ciclópicas, com todos os sintomas de miopia pois tinha o rosto quase a tocar um maço de documentos que lia.
- Herr Zoellner, mein Freund! - gritou Hennig. - Ich zuill schon hoffen dass Sie noch immer mein Freund sind? 7a, ich bin da, ich erwarte ihr Urteil.
0 homem de tremendo arcaboiço levantou-se de um pulo.
- Es freut mich Sie wieder sehen zu kõnnen, Herr Heniúg.
- Mas primeiro, Herr Zoellner, deixe-me que lhe apresente um americano de Amesterdão que vai promover publicitariamente um livro prestes a sair dos meus prelos. Herr Randall... Herr Zoellner, que é der erste Vorsitzende, o primeiro presidente da Indust?ie Gewenschaft Druck und Papier, o sindicato nacional dos nossos tipógrafos e artistas de impressão. Hennig voltou"se para Randall. - Cumprimentei-o como meu amigo. Disse-lhe que me encontrava aqui para saber o seu veredicto.
Hennig fez um gesto para que Zoellner se sentasse e ofereceu a Randall uma cadeira a seu lado. Depois o seu olhar fixou-se intensamente no sindicalista:
- Bem, Herr Zoellner, qual é o veredicto... morte ou vida para Karl Hennig?
0 rosto de Zoellner abriu-se num amplo sorriso.
- Herr Hennig, es bedeutet das Leben. - Fez uma reverência com a cabeça. - Viverá... viveremos todos graças a si. As notícias são boas. -Apontou para o maço de papéis que tinha na sua frente, e disse excitadamente. - Esta contra"oferta que o senhor apresentou ao nosso sindicato é o contrato melhor que nos foi até agora oferecido, o melhor de que me lembro na minha vida de sindicalista. Os benefícios, os aumentos, os subsídios em caso de doença, a caixa de pensões e reformas, as novas instalações de recreios e divertimentos... Herr Hennig, sinto-me feliz em lhe poder anunciar que a nossa direcção aprovou tudo inteiramente e que apresentará o contrato esta semana aos nossos filiados. Tenho a certeza que todos eles aprovarão por unanimidade.
-Encantado, encantado - murmurou Hennig. - Ich bin entzückt, wirklich entzückt. De modo que a greve está olvidada, hem? Prosseguiremos juntos, não é verdade?
- 7a, ja, juntos - estrondeou o vozeirão de Zoellner. Fez um gesto respeitoso de cabeça. -Da noite para o dia o senhor será considerado um herói. Talvez não tão rico, mas um herói. Mas diga-me, o que é que o fez mudar de ideias?
Karl Hennig sorriu.
- Li um livro novo. Foi tudo. - Voltou-se para Randall. Está a ver, Steve? Chega a ser enjoativo, ver o sentimentalão em que me tornei. Imagine-se, eu transformado de um momento para o outro de Satanás em S. Hennig. Mas de repente resolvi partilhar o meu dinheiro com os outros. Sou doido, mas um doido feliz.
-Na verdade quando é que resolveu mudar de ideias a respeito de tudo? - quis saber Randall.
- Talvez na mesma noite em que li determinado manuscrito. Mas a mutação levou tempo. Parece-me que na verdade sucedeu a semana passada, na altura em que a minha crise trabalhista se aproximava do seu clímax, e em que me sentei à secretária a ler algumas páginas das provas que havíamos imprimido. Aquilo que li acalmou-me, conferiu-me um grande grau de proporçõw, reduzindo-me à minha insignificância, obrigandome praticamente a decidir que antes queria ser um outro Gutenberg do que um outro Creso com mistura de Casanova. Bem, realmente a paz é maravilhosa. Temos que comemorar. - Bateu com o garfo contra um copo para chamar a atenção da maitre dhôtel. - Vamos fazer um brinde com um Ockfener Bockstein 1959 do Sarre. É um vinho branco seco e fresco que contém apenas cerca de oito por cento de álcool. Será mais do que suficiente para pessoas que já se sentem um pouco tontas de felicidade.
0 repousado almoço no Mainzer Hof levou duas horas bem contadas. Depois de Zoellner se ter ido embora, Karl Hennig telefonou para o seu motorista e insistiu em que Randall voltasse para Francoforte na sua companhia.
Durante o caminho, Hennig falou alegremente da piscina olímpica coberta que fazia tenções de instalar para divertimento dos seus trabalhadores. Falou largamente do seu afecto pela actriz Helga. Abordou a sua vida social, mencionando um camarote que alugara a título permanente no teatro de ópera do distrito. Em certa ocasião, apontou para um extenso vinhedo à beira da estrada que produziria com certeza um delicioso Mairiz. Noutra ocasião, quando passavam através de uma tranquila e velha aldeia, com muros de tijolo encarnado, ruelas estreitas, casas antigas, igreja de altas torres, uma pequena praça protegida pela estátua de um santo, um pouco mutilada, com uma abada de flores frescas nas suas mãos postas-Hennig identificou~a a Randall como sendo Hockheim, onde viviam algumas pessoas de sua família. Depois de terem entrado na auto-estrada, a velocidade acelerara-se e Hennig mergulhara em silêncio meditativo.
Repentinamente, pelo menos como pareceu embora tivessem decorrido quarenta e cinco minutos, foram apanhados pelo vórtice do trânsito de Francoforte, com todos os ruídos inerentes a uma grande cidade. Os sinaleiros, em camisas de mangas curtas, lá estavam em cima dos seus pedestais a dirigirem o trânsito. As ruas estavam pejadas de camionetas de entrega de mercadorias, Volkswagens, pessoas a fazerem as compras ou a regressarem a suas casas depois de um dia de trabalho. Por baixo dos toldos brancos e encarnados em forma de guarda-sóis dos Terrassen-Café, começavam os clientes a instalar-se para consumirem o seu Teestunde.
-Volta para o Frankfurter Hof, Steve?
-Sim, para ir buscar a minha bagagem e pagar a conta. Vou apanhar o primeiro avião de volta a Amesterdão.
Henng, em alemão, deu ordem ao motorista para seguir para o hotel,
Logo que chegaram à Kaiserplatz, Hermig disse:
- Se precisar de mais informações, posso dizer-lhe que conto estar em Amesterdão muito em breve.
-Sabe já a data exacta em que irá?
- Quando tiver as primeiras bíblias encadernadas e prontas. Provavelmente na semana anterior à declaração pública.
Quando o carro se deteve em frente do hotel, Randall trocou um efusivo aperto de mão com o impressor.
- Muito obrigado pela sua cooperação, Karl. E muito obri" gado pela boleia até Francoforte, sinceramente não queria que se tivesse incomodado dessa maneira.
- Mas, caro Steve, não me desloquei unicamente para o acompanhar. Tinha que vir cá. Só lamento não ter tempo para bebermos mais um copo, mas tenho urna entrevista marcada, uma reunião de negócios no bar do Hotel Intercontinental. Bem, auf Wiedershen.
Randall esperou até o Porsche desaparecer absorvido pelo intenso trânsito e só depois entrou no átrio do Frankfurter Hof. Estava prestes a aproximar-se do balcão da recepção, quando se deteve a meio caminho.
Um homem elegantemente vestido, cofiando a sua barba à Van Dyke, aproximava-se da recepção.
Cedric Plummer, ali.
Primeiro em Mairiz, e agora ali.
Pelo pensamento de Randall perpassou como um relâmpago uma velha história que lera num dos livros de Somerset Maugham.
0 criado do mercador de Bagdade: Meu amo, ainda há pouco e,
quando estava na praça do mercado fui empurrado por uma mulher no meio da multidão e quando me voltei vi que tinha sido a Morte quem me acotovelara. Ela olhou Para mim e fez um gesto de ameaça... meu amo, empresta-me o teu cavalo... irei nas asas do vento para Samarra e lá a morte nao me procurara.
E mais tarde no mesmo dia, quando o mercador encontrara a Morte na praça do mercado e lhe perguntara porque é que ela fizera um gesto de ameaça ao seu criado, a Morte respondera: Não foi um gesto de ameaça, foi apenas um movimento de surpresa. Fiquei surpreendida por vô-lo em Bagdade, porque na verdade tenho esta noite um encontro com ele em Samora.
Aquela recordação poderia parecer insensata, mas não o era inteiramente.
Randall recuou, ocultou-se por detrás de um enorme vaso de pujantes e altas plantas e observou o que se passava.
Cedric Plummer tinha chegado junto do balcão e apontava um esguio dedo para o recepcionista.
Randail, rapidamente, passou por trás de Plummer e dirigiu-se para o elevador. Mas tentando escapar sem ser notado, não pôde contudo fugir à voz esganiçada do jornalista, que dizia bem alto:
-Guter Herr, sou Cedric Plummer... -Fico avisado, Mr. Plummer. - e se chegar qualquer telefonema ou recado para mim, faça o favor de dizer que estarei de volta dentro de uma hora. Tenho um encontro de negócios no bar do Hotel Intercontinental. Se houver qualquer recado urgente, façam o favor de me ligar para lá.
Ao ouvir as últimas palavras, Randall sentiu um baque de apreensão. Continuou o seu caminho para o elevador e quando chegou junto da porta deu uma rápida olhadela para trás. já não se via nem a sombra de Plummer.
Dentro do elevador, Randall começou a tirar conclusões em progressão aritmética.
Karl Hermig havia dito: Só lamento não ter tempo para bebermos mais um copo, mas tenho uma entrevista marcada, uma reunião de negócios no bar do Hotel Intercontinental.
Por sua vez, Cedric Plummer dissera ao recepcionista: Tenho um encontro de negócios no bar do Hotel Intercontinental.
A somar: coincidência.
Prova dos noves: conspiração.
Subtraindo as palavras de Hennig em Mainz, dizendo que se recusara terminantemente a ver Plummer, qual o resultado da nova adição? Nada. Absolutamente nada. As contas estavam todas erradas.
Preocupado, Randali decidiu que de momento deixaria as coisas assim, por resolver. Tinha de estar de volta a Amesterdão nessa mesma noite. Depois estava resolvido a não mexer nem mais uma palha. Iria encontrar-se com Ãngela. Doía-lhe a alma no desejo de a ver... depois, no dia seguinte e nos dias que se lhe seguissem, tomaria providências para que alguém observasse Karl Hennig de muito perto.
Após um curto voo desde Francoforte, ao chegar ao aeroporto de Schiphol em Amesterdão, Randall tinha à espera a «limousine» Mercedes-Benz, guiada pelo impecável e amistoso Theo.
Dirigira-se ao Amstel Hotel onde encontrara a tão ansiada mensagem de Ãngela Monti a dizer que tinha chegado a Amesterdão e que se encontrava hospedada no Hotel Vitória. A mensagem manifestava que estava desejosa de se encontrar com ele.
Tomou apressadamente um banho de chuveiro, vestiu-se e arredou com firmeza Hennig do pensamento, Plummer e tudo o mais, menos Angela. Descida a escada, meteu"se no Mercedes e disse a Theo para seguir para o Hotel Vitória. Logo que chegou ao átrio do complexo hoteleiro, dirigiu-se à recepção e mandou ligar para o quarto de Ãngela, no primeiro piso, indo depois aguardá-la, impacientemente, junto da imponente escadaria.
Quando finalmente a viu descer as escadas, ficou como que hipnotizado, quase não acreditando nos seus olhos. Vira-a apenas uma única vez antes, durante uma tarde, em Itália, no país dela, e partira logo a seguir com a certeza de que nunca se sentira tão atraído por uma mulher. Durante toda aquela semana, nas suas deslocações, transportara com ele toda a impressão do encanto daquela belíssima mulher. Mas naquele momento, ali, ao fundo daquelas escadas, pela segunda vez que a via, sentira-se completamente esmagado pela assombrosa presença de Ãngela. Lembrar"se dela apenas como uma linda mulher não seria prestar-lhe a devida homenagem. Ãngela era a mais desejável e tantalizante mulher que desde sempre conhecera. A sua magnífica juventude irradiava um «não sei quê» de maravilhoso. E quando ela naturalmente. Sem qualquer artifício, se fora acolher no amplexo dos seus braços, premindo contra os dele os seus lábios doces, cheios, suaves, quentes, soube imediatamente que Ãngcla era algo que fazia já parte integrante dele.
Theo levara-os ao «Bali», um restaurante indonésio situado na Leidstraat. Depois de ter mandado embora o simpático motorista holandês, insistindo que estava perfeitamente a salvo de ataques, dado que não trazia com ele qualquer trabalho, Randall tomara gentilmente o braço da Ãngela conduzira-a através da porta giratória, subindo dois curtos lanços de escada até chegarem à sala de jantar central do restaurante típico. Um criado de pele escura, com um imponente turbante, indicara-lhe um dos três pequenos gabinetes privativos no fundo da sala.
Tinham-se sentado numa mesa quase encostada à parede e encomendado o jantar segundo a lista e as recomendações do criado. Quase rão havia dado pela enorme quantidade de pratos que iam sendo colocados diante deles, a sajor soto ou sopa, bife com molho javanês, urna espécie de salada mista à base de feijão de soja, camarões gigantes, coco frito e outras iguarias. Tinham comido e falado esparsamente, consumido uma garrafa de Mosela seco e feito amor com os olhos através o subtil toque dos dedos.
Saldos do «Bali», de mãos dadas, deram um passeio na fria noite estival. Atravessaram a Leidsepleon, parando para escutarem três rapazes que dedilhavam guitarras. Da guarda da ponte de Prinsengracht, de braço dado, debruçaram-se para verem as escuras e calmas águas do canal, olhando com interesse para uma outra ponte que se via à distância onde centenas de luzinhas pareciam luminosos colares de pérolas suspensos do escuro pescoço da noite. Pouco depois tinham-se deslocado lentamente até à ampla, ponte sobre o canal de Singel, vendo lá em baixo embarcações iluminadas.
Naquele particular momento, com a sedutora noite já muito adiantada, ainda estavam na ponte sobre o Singel, sós,- como se mais ninguém existisse no mundo.
Ãngela disse-lhe que Naorni lhe arranjara um escritório naquela mesma tarde, um gabinete no mesmo piso que o de RandalI, quase ao lado, quase porta com porta.
- Sim fui eu que arranjei isso - disse Randall. Ãngela pareceu hesitante.
- Quer-me então tão perto de si todos os dias?
- Claro que sim. 0 mais perto possível.
- Steve, não receia estar a cometer um erro? Repare que mal me conhece.
- Tenho estado consigo toda a semana, todas as noites e todos os dias. 0h. Angela, conheço-a muito bem! Nem sabe como a conheço!
- Também eu sinto o mesmo - disse ela tranquilamente. Randall curvou-se mais uma vez no parapeito para observar o canal lá no fundo, mas quando se voltou de novo para ela, viu-lhe os olhos fechados, os lábios a murmurarem algo, movendo-se, e as mãos postas.
Pouco depois Ângela abriu os olhos e sorriu-lhe.
- Que estava a fazer? Estava a rezar? - perguntou-lhe Randall.
Ela fez-lhe um sinal afirmativo.
- Sinto-me melhor agora.
- Melhor a respeito de quê, Ãngela?
-A respeito daquilo que vou fazer. -0 doce sorriso dela persistia. - Steve, leve-me ao hotel.
-A qual deles?
- Ao seu. Quero ver onde está instalado. -Quer na verdade ir ver a minha «suite»?
A mão dela fez uma pressão de desejo na mão dele.
- Não. A «suite» não me interessa. Tudo o que quero é estar contigo.
Estavam os dois nus em cima da cama, voltados um para o outro, beijando-se, as línguas tacteando-se em todo um preliminar de amor. A mão dela brincando, ao de leve em carícias à pele do baixo ventre de Randali, e a mão dele acariciando-lhe a túrgida carne entre as coxas.
Não tinham trocado uma única palavra desde que estavam ali, e todos os sons que lhes chegavam aos ouvidos eram as respirações mais apressadas e os ritmos cardíacos acelerados.
A mão de RandalI, as pontas dos dedos, deslizaram até ao suave e húmido sacrário que ficava delimitado entre o triângulo formado pela pilosidade sedosa do púbis dela, e os dedos, ágeis procuraram e encontraram a tumescência do clítoris. Lentamente, levemente, os dedos como se tivessem vida própria iniciaram a sua massagem de amor. Involuntariamente, as ancas dela começaram a realizar movimentos de rotação, e Randall ouviu-a arfar e emitir um suspiro de prazer. Seguidamente, a mão dela escorregou pelo ventre dele e os dedos foram apertar-se em volta da massa erecta do pênis. Randall julgou que ia morrer de. gozo ao sentir aquela carícia tão intensamente amorosa, pensou até que seria incapaz de conter-se por mais tempo.
Nesse momento, do mais profundo de Ãngela partiu uni grito imperativo, como que um distante apelo para que o acto de amor se completasse. A mão soltou o pênis e ela rolou sobre si mesma, ficando deitada, em êxtase., de pernas afastadas, olhos fechados e boca entreaberta.
À luz difusa de uma pequena lâmpada de vigia, Randall viu por baixo o corpo nu de Ãngela, a mulhex que ele iria possuir totalmente até que os dois não fossem mais do que um. Ela estava pronta, com a massa negra dos cabelos espalhados pela branca almofada; as pálpebras cerradas sobre os olhos encantadores; a boca, de apetitosos lábios vermelhos, entreaberta e a respiração opressa, com os dois monticulos os seios subindo e descendo, onde as pequenas luas em volta dos túrgidos mamilos escureciam cada vez mais; contemplou-lhe o ventre liso, o escuro triângulo abaixo do umbigo, as opulentas ancas e as firmes nádegas que ondulavam...
Ela estava pronta para o amor. E ele também estava preparado.
Os joelhos dela ergueram-se e as pernas foram-se abrindo, revelando as coxas firmes. Randall instalou-se entre aquelas pernas, como um pássaro ajeitando"se no ninho. 0 sexo dele tocou a vagina, abriu caminho lentamente, deslizando pela mistura viscosa desencadeada pelos preliminares amorosos e. mergulhou profundamente naquela estreita passagem, sentindo as quentes paredes vaginais a fecharem-se solidamente em volta da sua virilidade, como se o puxassem cada vez para mais fundo, como se o quisessem arrastar todo inteiro para um abismo.
0 membro viril acariciava-lhe o fofo ninho interior, iniciando uma dança frenética, repetidas vezes sem conta, até que ambos começaram a gemer num misto de prazer e dor. Num súbito impulso, as pernas dela elevaram-se e envolveram-lhe firmemente os rins, enquanto as mãos, como garras de veludo se lhe fechavam nas costas. Movimento intenso, ritmo de amor sem cessar, para cima e para baixo, para baixo e para cima... rápido, cada vez mais rápido. Corpos frementes, consumidos por uma gigantesca labareda... Randall sentia um êxtase de paixão como jamais experimentara na sua vida, possuindo completamente aquele corpo que gemia e se agitava convulsivamente sob o seu.
Ãngela enfiou-lhe as mãos pelos cabelos, fechou-o num amplexo tremendo, enquanto as suas nádegas subiam e baixavam doidamente emparelhadas no ritmo dos impulsos dele. Gradualmente, toda a massa viscosa da vagina, toda a parte inferior do seu corpo, começou a girar, a revolutear cada vez mais rápido, mais rápido...
-Deus meu-sussurrou ele-, oh, meu Deus! Minha querida...
-Querido, meu querido... é maravilhoso!
E as ancas dela levantaram-se num súbito movimento e as pernas fecharam"se em volta dele como dois torniquetes. Toda ela era uma massa tremente que emitia sons roucos na final convulsão do orgasmo total, enquanto ele sentia abrirem-se todas as comportas do seu aparelho de masculinidade, enchendo-a completamente com o seu sêmen, em arrancadas vitais e de tremendo impacto.
-Amo-te-sussurrou"lhe Randall ao ouvido.-Amo-te, amo-te, amo-te...
-Oh, Steve, nunca me abandones, nunca, nunca... Como que esvaziados, tendo cumprido o grande mistério da luta do amor, ficaram ali, bem seguros nos braços um do outro, até que ela acabou por adormecer, esgotada, com o bonito rosto inundado de paz encostado ao peito dele.
Estonteado, Randall tentou coordenar ideias, ainda emocionado pela entrega dela, pelo soberbo calor daquele corpo. Tinham existido antes muitas outras mulheres, muitos outros actos de posse e entrega, mas nunca, nunca nada como aquele momento espantoso. Não com Bárbara, de certeza que nem com Bárbara-de quem naquela noite se podia lembrar com bondade e afecto, aceitando que as tentativas de amor que haviam feito tinham sido meros movimentos mecânicos sem significado, erros que podiam ser perfeitamente imputados aos dois. Um malogro comum. E DarIene? Darlene também não, como negativas haviam sido todas as Darlenes antes de Darlene, com o absoluto torpor sem vida de receptáculos ou então com as sábias acrobacias de gueixas bem treinadas. Naorni também não, nem todas as Naornis antes de Naomi, limitadas no prazer, com as suas aberrações sexuais, as mútuas manipulações dos órgãos sexuais, e sem finalidade; puro vício que mantinha morto o verdadeiro objectivo sexual.
Em tantas noites de tantos anos da sua vida de adulto, jamais havia dado ou recebido um orgasmo nascido do amor e libertado pelo amor incontido. Nem uma só vez em tantas noites partilhadas num leito. Nunca, até àquela noite, ali, em Amesterdão, com aquela mulher cheia de juventude e de encanto. Sentiu vontade de chorar. Pelos anos perdidos? Pela final e pura alegria de um prazer verdadeiro e partilhado? Pelos milhões de outros seres sobre a terra que estavam condenados a viver e a morrer sem nunca terem conhecido a virtude daquela verdadeira e completa união sexual proveniente de um amor real?
Beijou com amor a face de Ãngela. Depois enterrou a cabeça firmemente na macia almofada, fechou os olhos e deixou-se também afundar na inconsciência de um sono liberto de inquietações.
Quando começou a ter de novo consciência das coisas, teve a percepção de que soava uma campainha muito ao longe. Lutou para manter os olhos abertos e viu Ãngela a seu lado, ainda perdida no mundo dos sonhos. Por entre as tabuinhas das persianas começava a coar-se a claridade acinzentada do alvorecer.
0 toque da campainha era agora mais persistente. Voltou-se para o lado da mesinha de cabeceira e viu os ponteiros do seu despertador de viagem a marcarem seis e vinte da manhã, tendo pela primeira vez consciência que a insistente campainha era o telefone a tocar.
Ainda tonto, estendeu a mão e ajustou o aparelho à boca e ao ouvido.
- Estou... Quem fala?
- Steve, fala George Wheeler -disse a voz rouca mas de estentor no outro extremo do fio.-Lamento acordá-lo assim mas trata-se de uma coisa necessária. já está levantado? Está a ouvir-me perfeitamente?
-George, estou bem acordado.
-Ouça. É importante. Quero que esteja no Hospital da Vrije Universiteit dentro de uma hora. É o hospital principal de Amesterdão e faz parte da Universidade Livre. Deve lá estar o mais tardar às sete e meia. Tem um lápis à mão? É melhor tomar nota.
- Um momento. - Randall conseguiu localizar o lápis e o bloco-notas que a gerência do hotel pusera à sua disposição dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. - Pronto, já tenho aqui lápis e papel.
-Tome nota. Hospital da Vrije Universiteit. A morada é Boeleaan 1115. Fica situado em Buitenveldert, um novo subúrbio da cidade. 0 motorista deve saber onde é. Peça à recepção do hotel para lhe mandar vir um táxi. Quando chegar ao hospital pergunte à enfermeira da recepção onde é o quarto em que está Lori Cook, fica no quarto piso. Eu estarei lá ... todos nós estaremos lá.
- Um momento, George. Mas que raio é que se passa?
- Quando chegar logo saberá. Não posso estar a explicar as coisas pelo telefone. Basta que lhe diga que aconteceu algo de absolutamente extraordinário. E nós precisamos de você no hospital...
Quando o táxi que transportava RandalI, um Simca, saíra da cidade para entrar na ampla estrada conhecida como RooseveltIaan, havia acelerado, deslizando a toda a velocidade por paisagens de bosques e de campos de cultivo, para só abrandar ao desembocar na Boelelaan, já próximo do hospital. Randall oferecera ao motorista uma grojeta de dez florins se ele conseguisse chegar ao hospital antes das sete e meia e o motorista parecera decidido a não perder aquele dinheiro de bónus.
Naquele momento, da janela do Simca, Randall podia ver o imponente e impressionante complexo que tinha todo o aspecto de ter sido recentemente construído. Um gigantesco complexo hospitalar formado por inúmeros edifícios. 0 carro deu a volta na álca de entrada do hospital, um caminho de saibro ladeado por extensos canteiros de flores-a única nota de cor naquela cinzenta manhã de céu encoberto.
0 táxi deteve-se em frente do edifício principal e Randall notou que por cima do pórtico estavam as seguintes palavras: ACADEMISCH ZIEKENHUIS DER VRIJE UNIVERSITEIT.
- Chegamos cinco minutos antes da hora marcada - disse o motorista satisfeito.
RandalI, depois de ter pago a corrida, tirou de boa vontade mais dez florins da carteira.
Ainda intrigado pelo acontecimento «absolutamente extraordinário» que exigia a sua presença, Randall apressou-se a subir os degraus de pedra da escadaria da entrada. Depois de ter passado o guarda-vento giratório, encontrou"se num espaçoso átrio. Lá dentro via-se uma pequena lojeca de venda de tabacos, rebuçados e outros doces, e quase ao lado a recepção da portaria. Atrás do balcão, protegido por um friso envidraçado, estava uma enfermeira.
Mal se acabara de aproximar do balcão quando a holandesa lhe perguntou:
- t o Sr. Randall?
Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça, e a enfermeira prosseguiu:
-Faça favor de se sentar durante um momento. 0 Sr. Wheeler telefonou cá para baixo a dizer que vai já descer para se encontrar com o senhor.
Demasiado inquieto para se sentar, Randall encheu o cachimbo e pôs-se a examinar o grande átrio, com as paredes ornamentadas por mosaicos de arte modernista-um deles representando Eva a nascer de uma costela de Adão, outro mostrando Caim a matar Abel, ainda outro figurando Cristo a afagar uma criancinha. Quando se encontrava mais mergulhado na apreciação dos mosaicos, ouviu que o chamavam. Voltou-se e viu Wheeler que vinha na sua direcção a limpar as lentes dos grossos óculos, que colocou logo a seguir no imponente septo do seu volumoso nariz.
0 editor colocou um braço paternal sobre os ombros de RandalI, enquanto a sua voz cava, que por vezes se assemelhava ao bramido de um dromedário, lhe dizia alegremente.
-Sinto-me feliz de o ver de volta, principalmente numa altura destas, Steve. Quero que siga o caso desde o princípio, ainda que de momento não possa utilizar a história. Temos que manter a coisa oculta até termos a certeza de que não há novidade.
Mas a partir do momento em que os médicos digam que tudo está okay, deixá-lo-emos então trombetear a coisa para todo o mundo.
- George, mas afinal do que é que você está a falar?
- Desculpe, tinha a impressão que já lhe contara. Mas a verdade é que não o fiz. Vou-lhe relatar o sucedido enquanto subimos.
Guiando Randall para junto do elevador, o editor baixou a voz, mas sem conseguir reprimir a excitação que o tomava, dizendo:
- Oiça bem. Ontem à noite, encontrava- me eu a cear com
Sir Trevor no Dikker en Thijs, tendo como convidados o Signore Gayda, o editor italiano, e o assistente teológico dele, Monsenhor Riccardi, quando recebi uma chamada telefónica urgente de Naomi. Ela fez-me apenas um relato brevíssimo do que acontecera, avisando-me para que todos nós nos dirigíssemos a este hospital. Tenho estado aqui toda a noite. Os meus olhos devem ter sinais eloquentes desta noitada de vela.
- George - disse Randall impacientemente - quer fazer o favor de me dizer de uma vez por todas que diabo aconteceu?
- Desculpe... Sim, claro que sim. - Tinham chegado junto dos elevadores, mas Wheeler segurou Randall pelo cotovelo, impedindo-o de entrar. - Segundo aquilo que pude recolher, e as informações ainda são muito imprecisas e confusas, aquela rapariga que faz parte do pessoal do seu gabinete e que sabe tanto sobre arqueologia... esqueço-me sempre do nome dela...
0 nome de Ãngela quase que saltou da boca de RandalI, quando se lembrou que o editor não a conhecia e que ele se referia a um elemento do estado-maior da sua secção publicitária. -jessica Taylor? A americana...
Wheeler bateu com o punho fechado na palma aberta da outra mão,
- Exactamente. Miss Taylor. Ontem à noite, pouco antes da meia-noite, Miss Taylor recebeu um telefonema incoerente de Lori Cook, a sua secretária, aquela rapariga coxa, aquela que durante toda a vida foi sempre defeituosa dos membros inferiores.
Lori chorava ao telefone, dizia que tinha tido uma visão e que caíra de joelhos no chão a rezar para pedir que fosse curada, que pudesse voltar de novo a andar normalmente... e que quando a visão desaparecera se pusera de pé e vira que o seu mal desaparecera por completo, que podia perfeitamente caminhar, como você ou como eu.
- 0 quê? Não me diga! - exclamou Randall incredulamente. -Tem a certeza de que não está a brincar comigo?
- Ouviu o que eu disse, Randall. Podia andar normalmente, dizendo a Jessica pelo telefone que se sentia fraca e febril, fora deste mundo, e que seria preciso que alguém lhe acudisse imediatamente. Bom, parece que será desnecessário dizer-lhe que Jessica Taylor se dirigiu urgentemente a casa de Lori Cook, indo encontrá-la desmaiada no chão do apartamento. Jessica reanimou-a, mas depois de ouvir as palavras incoerentes e balbuciantes de Lori ficou sem saber que fazer, atrapalhada. Finalmente lembrou-se de mim e telefonou-me. Como eu estava a cear, foi atendida por Naorni. Esta, eficiente em tudo, mandou imediatamente uma ambulância a casa de Lori. A seguir telefonou-me para o restaurante e telefonou também para o médico assistente da Ressurreição Dois, o Dr. Fass. Eu telefonei para os outros e toda a gente acorreu ao Hospital da Universidade Livre. Qual é a sua opinião a respeito do caso, Randall?
Durante o relato, Randall relembrara a primeira entrevista que tivera com Lori Cook, o pardalito saltitante e medroso que tinha plena consciência do seu mal e que realizara uma peregrinação (como lhe chamara) por Lourdes, Fátima, Turim, Beauraing... odisseia de esperança e desespero em busca do milagre da normalidade.
-0 que é que eu penso?-repetiu Randall.-Nem, sei o que hei-de pensar. Gostaria de conhecer os factos. Desculpe, George, mas sabe muito bem que não acredito em milagres.
-Não me venha agora com essas coisas, você referiu-se ao Novo Testamento Internacional como um autêntico milagre lembrou-lhe Wheeler.
- Nunca pretendi referir-me a um milagre literal. Estava a utilizar uma hipérbole. A nossa Bíblia nasceu de uma escavação arqueológica científica. Teve uma base perfeitamente racional. Mas um milagre de cura... - suspendeu o que ia a dizer, lembrando-se de uma coisa que Lori Cook lhe dissera durante a entrevista, uma coisa sobre o significado que a Nova Bíblia tinha para ela. A nova Bíblia que segundo ela ouvia continha em si algo de incrivelmente miraculoso. Pela mente de Randall perpassou uma suspeita. - George, deve haver mais qualquer coisa por trás do que me está a contar. Lori explicou o que é que fomentou a visão e o... o chamado milagre?
-Ora aí é que está o busílis. Era precisamente o que lhe ia contar - e voz de Wheeler vibrava de entusiasmo. - Tem toda a razão em pensar que houve qualquer coisa que desencadeou a visão... uma coisa que se ficou a dever a um lapso de segurança por parte do nosso director de publicidade um indivíduo chamado Steve Randall. Sim, você foi o responsável directo, mas nós, considerando o que aconteceu, perdoamos-lhe.
-Eu fomentei uma brecha na nossa segurança? -Precisamente. Lembre-se bem. 0 Dr. Deichhardt emprestou-lhe o nosso Novo Testamento para ler uma noite, com a condição de você próprio entregar na manhã seguinte as provas ao nosso editor alemão. Ora em vez de fazer como tinha sido combinado, você encarregou Lori Cook da entrega.
-Estou a lembrar-me. Estava a ponto de entregar o exemplar das provas ao Dr. Deichhardt quando fui impedido por uma conversa com Naorni relativa ao itinerário da minha viagem. Depois pedi a Lori que fizesse entrega do documento. Bom, estava certo que ela entregaria as provas do Novo Testamento ao nosso editor alemão. Sei que deveria ter sido eu a cumprir o prometido... mas, afinal o que há de errado em Lori Cook encarregar-se do caso?
0 rosto de Wheeler contorceu-se numa careta que pretendia ser um sorriso.
-Tal como a sua Lori confessou a jessica ontem à noite, antes da ambulância chegar, você deu-lhe ordem para entregar o documento pessoalmente ao Dr. Deichhardt, só a ele e a mais ninguém, não é verdade?
-Plenamente verdade.
-Ora a rapariguinha cumpriu à risca as suas ordens. Foi entregar as provas ao Dr. Deichhardt, mas o nosso editor alemão não se encontrava no gabinete. Lori recusou peremptoriamente deixar os documentos à secretária de Deichhardt. Dediciu ficar com as provas até ele regressar. Mas a proximidade escaldante daquele... obj ecto sagrado... como ela lhe chamou, passou a ser um motivo de forte tentação--- tal como ter o Santo Sudário ou o Santo Graal e não lhes tocar... Lori confessou que pretendia ir comer qualquer coisa, mas que em vez disso se escondeu num dos armazéns do nosso piso no Kraal e que leu de um hausto o Pergaminho Petrónio e o Evangelho Segundo Jacob. De facto, se as suas palavras podem ter crédito, leu o relato de Jacob por quatro vezes antes de, mais tarde, ter ido finalmente entregar as provas ao Dr. Deichhardt.
-Acredito que tivesse lido o Jacob quatro vezes, Que disse ela que ocorreu a seguir?
-Durante toda a semana o seu pensamento foi dominado pelo que Jacob escrevera sobre Jesus. Começou a imaginar, acordada e a dormir, os passos dados por Jesus na terra. Como sobrevivera da cruz, a visita a Roma... com Jacob em Jerusalém, prestes a enfrentar a morte, a traçar a história no papiro. Ontem à noite encontrava-se sozinha no apartamento às voltas com todas aquelas alucinaçôes, quando fechou repentinamente os olhos, pôs as mãos e rezou a Jacob o justo para a curar, para lhe dar a plenitude da vida, tal como lhe levara a mensagem de um novo Cristo vivo. Abriu depois os olhos e viu na sua frente um círculo luminoso, quase ofuscante e no meio daquele círculo, flutuando, encontrava-se a figura de Jacob o justo, uma figura que levantou a mão para a abençoar. Lori contou que ficou assustada e ao mesmo tempo exaltada, voltando a cair de joelhos no meio do aposento e fechando os olhos, orando a S. Jacob para a ajudar. Quando abriu os olhos a visão tinha desaparecido. Pôs-se de pé, deu alguns passos e teve consciência perfeita do defeito no andar lhe ter desaparecido, já não coxeava. Desatou a chorar, repetindo vezes sem conta «estou curada! estou curada!». Foi nessa altura que telefonou para jessica, Esta foi encontrá-la desmaiada... ou em transe... não sei bem... e... bom, Steve, é tudo. Agora podemos subir.
Meteram-se no elevador até ao quarto piso. Passaram apressadamente por duas enfermarias de seis camas e dirigiram-se para o local onde se encontrava um magote de gente, o que indicava claramente o quarto hospitalar de Lori Cook.
Aproximando-se, Randall reconheceu Jessica Taylor, com um livro de notas na mão, õscar EdIund, o ruivo fotógrafo, com uma máquina a tiracolo. Outras pessoas no grupo familiares a Randall eram Gayda, Monsenhor Riccardi, o Dr. Trautmann e o Reverendo Zachery.
0 grupo estava reunido à volta de um homem de bata branca, obviamente um médico, que explicava qualquer coisa. Ao lado do médico encontravase uma bonita enfermeira, impecável no uniforme e na touca. Wheeler disse ao ouvido de Randall que o médico era o Dr. Fass, ligado à Ressurreição Dois. Um interno holandês, correcto e seco, provavelmente à roda dos sessenta anos.
Respondendo a qualquer pergunta que lhe havia sido feita, o médico dizia:
-Sim, fizemos chapas de Raios-X a miss Cook logo que foi internada. Quando a conduziram ao hospital ontem à noite... esta madrugada, para sermos mais exactos... a doente foi colocada numa cama móvel, nós não gostamos de utilizar macas e, metida neste quarto. Para um diagnóstico mais expedito, as nossas camas de tipo suíço são feitas de modo a tirarmos chapas de Raios-X aos doentes através do colchão. Agora, respondendo à outra pergunta, não, não podemos ser exactos sobre qual era o estado de Miss Cook anteriormente à alucinação... digamos mais cientificamente, à experiência traumática da noite passada. Estamos a tentar localizar os pais da doente, que andam em viagem pelo Extremo Oriente. Logo que tivermos entrado em contacto com eles, esperamos obter, eventualmente, registos médicos da doença que estropiou Miss Cook durante a infância. Presenternenete, só possuímos para nos orientar as palavras da doente que, claro está, não possuem qualquer precisão clínica. Partindo daquilo que Miss Cook nos contou, parece que foi atacada quando era criança, talvez há uns quinze anos, pela osteomielite.
Randall interveiu.
-Pode-nos descrever a doença, Doutor?
-No caso de Miss Cook, a inflamação sintomática ocorreu na tíbia ou seja no volumoso osso que vai do lado direito do joelho até ao calcanhar. Pode muito bem ter sido um caso agudo e causado a destruição do osso-as nossas chapas de Raios-X poderão confirmar o caso-porque, segundo a doente, teve sempre memória de turnefacções, dores e pontas de febre prolongadas. A doente não foi convenientemente tratada a tais sintomas, nem foi submetida a qualquer tipo de cirurgia. Nos anos que se seguiram ao ataque de osteomiclite, Miss Cook passou a ser vítima de um coxear crónico.
Wheeler interveio para perguntar:
- Dr. Fass, como é que o senhor explica o caso da noite passada? Afinal de contas ela está curada, não é verdade? julgo que agora já esteja a caminhar normalmente. Ou terá o senhor uma opinião diferente?
- Não. Acho perfeitamente razoável dizer-se que se encontra a caminhar normalmente. Miss Cook já o demonstrou satisfatoriame,nte para o nosso fisioterapista, 0 nosso director clínico foi até testemunha dos testes. 0 nosso neuropsiquiatra vai esta tarde passar algum tempo com a doente. Neste momento, está a ser examinada e int =ogada pelos Drs. Rechenberg e Koster, dois especialistas a quem pedi conselho. Quanto ao caso da noite passada, duvido que esteja em posição de poder explicar o que sucedeu. Por um lado, é possível que ela tenha sofrido um choque psíquico de qualquer natureza durante a infância em vez de ser atacada por uma doença de natureza organica, e a noite passada as alucinações que teve actuaram corno um antídoto, se assim me posso expressar, ao choque pelo desencadear de urna auto-sugestão. Em tal caso, poderíamos classificá-la como uma vítima de neurastenia durante longo tempo, não podendo pois a sua recuperação ser considerada como miraculosa. Por outro lado...
0 Dr. Fass suspendeu o que ia a dizer para observar as reacções nos rostos dos que o cercavam, pestanejando.
-...Se se provar que o coxear de Miss Cook teve origem numa doença orgânica e que ela se curou sem auxílio da ciência, então estamos a lidar com um outro assunto completamente diferente. No que diz respeito a casos desses parece-me conveniente referir-lhes um relatório cirúrgico feito no século dezasseis pelo estimável Dr. Ambroise Paré depois de ter tratado um certo doente: «7e le pansay; Dieu le guérit». - Eu tratei-o; Deus curou-o.
- 0 Dr. Fass fez um gesto como quem se desculpa.- Agora perdoem-me, mas tenho que voltar para junto dos meus colegas. Permitir-lhes-emos que interroguem a doente dentro de um ou dois dias. Evidentemente, que pretendemos tê-la sob observação aqui por um mínimo de duas semanas.
Quando o Dr. Fass abriu a porta, entrando juntamente com a sua enfermeira assistente, Randall forçou o caminho por entre os circunstantes para dar uma vista de olhos pelo interior do quarto.
Lori Cook, tão frágil, tão enfezada, estava sentada na borda da cama com a camisa hospitalar arregaçada até aos joelhos. Um dos médicos estava debruçado para ela, tacteando-lhe a perna direita. Dois homens de batas brancas estavam postados de ambos os lados da doente, observando com profunda atenção o exame do colega. Lori parecia nem dar pela presença de toda aquela gente. Tinha o olhar fito no tecto, com o rosto de pardalito a arvorar um misterioso sorriso. Tinha um ar positivamente beatifico.
Mas a porta acabou por se fechar, ocultando a cena dos olhos de Randall.
Afastando-se da porta imerso em pensamentos, Randall viu que o grupo se começava a dispersar e que Wheeler, encostado à parede fronteira com duas outras pessoas, o chamava com um gesto imperioso.
Randall dirigiu-se a Wheeler. As pessoas que estavam junto do editor americano, e que Randall não fora imediatamente capaz de reconhecer, eram Gayda e o teólogo católico italiano, Monsenhor Riccardi. Os três foram-se recostar em confortáveis sofás de couro na pequena sala de visitas logo ao lado.
-Que pensa deste caso, Monsenhor Riccardi? -perguntou Wheeler.-Na verdade os católicos possuem muito mais expeperiência de assuntos como este.
Monsenhor Riccardi alisou uma ruga da sua sotaina.
- É ainda muito cedo para se dizer seja o que for, Sr. Wheeler. Em tais assuntos a Igreja costuma proceder com muita cautela. É nosso hábito não cedermos a uma credulidade imediata.
- Mas é tão evidente que se trata de um milagre! - exclamou Wheeler.
- A primeira vista, a cura -dê. Miss Cook é impressionante, deveras impressionante - concordou Monsenhor Riccardi. - Toda via, devemos reservar o nosso julgamento. Desde o tempo em que Nosso Senhor realizou cerca de quarenta milagres demonstrativos, tem ocorrido sinais adicionais das Suas visitas de cura a alguns fiéis, até mesmo nos nossos dias. Isso sabemos nós com certeza. Mas aquilo que nós devemos perguntar a nós mesmos com mais precisão é: qual a verdadeira natureza de um milagre fidedigno? Consideramos o milagre como uma ocorrência extraor~ dinária, visível em si e não meramente nos seus efeitos, um acontecimento inexplicável em termos de forças ordinárias, que só pode ser explicado como sucedendo por meio da especial intervenção de Deus. É através continuados milagres que Deus se revela a Si Mesmo e de acordo com a Sua divina vontade. No entanto, nem todas as curas aparentemente creditadas à fé podem ser atribuídas à intervenção de Deus. Lembram-se bem que de cada cinco mil curas ocorridas no santuário de Nossa Senhora de Lourdes, a Igreja possivelmente só considerará como verdadeiramente miraculosas cerca de um por cento.
-Porque a maioria dessas curas é de carácter imagináriointerveiu Gayda num tora cheio de pedantismo.-A imaginação, o poder da sugestão podem manifestar resultados impressionantes. Por exemplo, vejamos o caso da falsa gravidez. A rainha Maria, que foi soberana da Inglaterra até 1588, tinha um desejo tão intenso de ter uma filha que esteve por duas vezes falsamente grávida, muito embora todos os seus sintomas tivessem uma aparência de fidedignos. Outro exemplo' é a demonstração feita por um neurologista em Paris nos anos trinta. 0 médico disse a um doente, com os olhos previamente vendados, que acabava de lhe colocar uma chama por baixo de um braço e que o local estava queimado. No braço do examinado surgiu imediatamente uma bolha. Contudo o doente fora enganado, o membro nem sequer fora aflorado pela mais leve chama. Tinha sido somente sugestionado com habilidade pelo médico. Lembramo-nos também dos chamados estigmatizados, ou que portam o estigma, sangrando de feridas como as que foram infligidas a Cristo... quantos casos desses, Monsenhor Riccardi?
-Através da história 322 casos verificados de pessoas sangrando das mãos e lado tal como Cristo na Cruz. 0 primeiro foi S. Francisco de Assis em 1224, e o último conhecido o de Theresa Neumann em 1926.
Gayda voltou-se de novo para Wheeler.
-Está a ver, George. Sugestão. Essas pessoas acreditaram piamente na Paixão. Sofreram o que Ele tinha sofrido. Reciprocaniente, pelo mesmo poder de sugestão, a nossa Lori Cook ansiava tanto curar-se, e foi tão intensa a crença na nossa Bíblia, que se curou.
-Mas isso é um milagre, pura e simplesmente um milagre! -exclamou Wheeler de braços levantados para o tecto, como se invocasse a potestade divina.
Monsenhor Riccardi levantou-se, com um gesto de assentimento na direcção de Whecler.
- Pode ser. Devemos observar o caso com atenção. Pode muito bem ser o começo. Uma vez propagado o novo evangelho do nosso Jacob a todos os povos, alargar-se-á a fé na Paixão, e com crença, com fé, Nosso Senhor responderá e os milagres abundarão em toda a terra. Vamos orar para que isso aconteça.
Depois do prelado se ter retirado na companhia do editor italiano, Wheeler reteve RandalI, dizendo com um orgulhoso júbilo:
- Steve, digo-lhe que estamos no bom caminho. Sinto-o dentro de mim. Esses teólogos sabem que é um milagre, o primeiro milagre divino que pode ser atribuído ao nosso Novo Testamento Internacional. Mesmo se os protestantes não andam tanto à procura de milagres como os católicos, não poderão ignorar uma prova como esta. Ficarão impressionados pelos poderes da Nova Bíblia, e daí podemos concluir a ânsia com que os católicos procurarão uma imprmatur para a nossa Bíblia. Quando se acender a luz verde para avançarmos, quero que você esteja pronto para fazer alarde deste ponto, Steve. Depois de termos feito o nosso anúncio ao mundo, poderá dar largas à história de Lori Cook como quem faz saltar rolha a uma garrafa de vinho capitoso. Pode você imaginar melhor aval do que esse, Steve? Nada de dificuldade nas vendas. Apenas um legítimo trabalho missionário. Pense no bem que podemos fazer.
0 bem que podemos fazer a dez dólares o exemplar, quis acrescentar Randall. No entanto refreou a língua...
Sobretudo porque estava impressionado.
Algo havia acontecido a uma pequena, a um pardalito que conhecia, uma rapariguinha que fora uma estropiada e que de repente deixara de o ser.
Não tinha resposta para o fenómeno. E a ciencia, ao que parecia, também não. Por isso, qual a dúvida em lhe chamar milagre?
Cinco horas depois, sentado numa cadeira em frente de Ãngela Monti, brincando com uma colher em cima da toalha de mesa polvilhada de pequenas bolinhas azuis de um café ao ar livre, Randall relatara a sua experiência no hospital.
Tinham-se encontrado para almoçar no Pool, um café-restaurante, com esplanada, situado a meio caminho entre o Hotel Victória - onde Ãngela toda a manhã estivera a trabalhar em notas relativas às pesquisas de Ostia Antica - e o KrasnapoIsky, onde Randall se mantivera febrilmente ocupado depois de ter saído do hospital com Wheeler.
Ãngela ouvira o relato e aceitara a história da cura milagrosa de Lori Cook sem surpresa e sem interrogações.
- Não porque eu seja uma católica excepcional, embora tenha fé religiosa, mas porque suspeito que num mundo aparentemente racional existem multidões de mistérios que a nossa limitada capacidade mental não pode compreender. Na classificação das coisas vivas no universo o nosso nível deve ir pouco além do das formigas - explicara ela com simplicidade.
Ãngela agarrara-lhe depois a mão que ele tinha em cima da mesa, desejando solicitamente saber tudo o que ele fizera no resto da manhã após ter saído do hospital. Mas antes que ele pudesse abrir a boca surgira um criado para receber a encomenda.
Randall agarrou numa das ementas, um cardápio colorido com quatro folhas retratando outras tantas iguarias especiais do local, além dos menus normais. Pareciam mesmo alguns daqueles famosos pratos, muito direitinhos e suculentos, que a televisão costumava apresentar em programas dedicados às donas de casa. Randall voltou-se para Ãngela.
- Tu conheces este lugar e também conheces os meus gostos.
0 que é que sugeres?
Ãngela pareceu ficar satisfeita.
-Para pessoas com muito trabalho para fazerem, sugiro que comamos pouco. Presentemente o mote de ordem são as refeições leves. -Apontou para uma das fotografias do cardápio e dirigiu- se ao criado. - Queremos um goulash húngaro.
Logo que o criado voltou as costas, Ãngela fixou de novo os olhos em Randali.
-Steve, conta-me agora como passaste o resto da manhã.
- Ora, deixa-me concentrar ideias. Antes de sair do hospital telefonei-te, não foi? Como te disse, tudo de que te pudesses lembrar, notas tomadas por ti, documentos de teu pai a respeito da escavação e do achado poderão ser muito úteis para nós, conduzindo-nos a umas quantas perguntas posteriores que possam ser aproveitadas para o nosso fim, depois de devidamente esclarecidas.
- já escrevi parte desses apontamentos para tu apreciares.
- Excelente. Bem, depois do hospital fui para o KrasnapoIsky. Les Cunningham e Helen de Boex -são membros do meu pessoal de publicidade e em breve os irás conhecer - estavam à minha espera para me darem boas notícias. 0 governo holandês aprovou a nossa utilização do auditório do Palácio Real para anunciarmos ao mundo, em 12 de Julho, a nossa descoberta e a publicação do Livro dos Livros. Obtivemos também a anuência para transmitirmos o acontecimento à escala mundial Por intermédio do satélite de comunicações Intelsat V. Depois redigimos um memorando confidencial para os cinco editores, com cópias extra para outro pessoal do projecto que esteja ligado directamente ao caso publicitário. Fizemos circular o memorando, apenso a uma nota escrita por mím aos editores a sugerir uma reunião para amanhã de modo a traçarmos os planos finais... Ãngela, eu não te contei a maior parte destas coisas quando te telefonei do Kras para almoçarmos juntos?
-Sim, contaste"rne umas quantas coisas sobre o teu trabalho. -Detesto repetir-me. Mas é tanta coisa ao mesmo tempo que eu...
-Gosto que te repitas. Adoro o som da tua voz. 0 que é que aconteceu a seguir, Steve?
-Bem, depois convoquei o pessoal do meu departamento para uma reunião no Quarto 204... fica no andar por cima do gabinete e é utilizado para reuniões publicitárias, mas é um aposento tão atraente que pensei que seria agradável estarmos ali os dois isolados...
Ãngela acariciou-lhe a mão.
-Ainda encontras tempo para pensar em mim durante o teu trabalho? Sinto-me desvanecida, mas a verdade é que estás demasiado assoberbado pelo trabalho para poder pensar em termos de homem com instintos gregariamente domésticos.
- Espero que possa ter uns momentos disponíveis. Na verdade o factor tempo está a exercer uma tremenda pressão sobre nós. Bom, seja como for, reuni-me com o meu pessoal e disso tirámos proveito.
- 0 que é que vocês discutem numa reunião de publicidade?
- Contei-lhes tudo o que ocorrera. 0 único membro que estava ao corrente do caso desde início era Jessica Taylor. Falei-lhes do caso Lori Cook, da leitura do Evangelho Segundo Jacob e do acontecido posteriormente, ou seja como ela agora já pode caminhar normalmente. Criei um ambiente de grande sensação. Nomeei Jessica para escrever duas reportagens - uma para ser publicada em nome de Lori Cook a contar a vida dela, os anos em que viveu com a enfermidade deformante, a longa busca de um milagre e o sucedido depois de ler o Jacob e o Petrónio, e a outra uma história da própria Jessica a relatar a sua experiência com Lori Cook na noite em que a foi socorrer. Designei Paddy O'Neal para preparar um artigo a respeito da ocorrência, salientando determinados factos relacionados com o lançamento da nossa nova Bíblia. Evidentemente, esse material depois de previamente impresso continuará retido até à confirmação dos médicos e dos teólogos. Uma vez obtidas as confirmações, as histórias estarão prontas para serem oficialmente publicadas. Serão reportagens que lançaremos ao público depois de termos feito o anúncio público do evento pelo Intelsat.
Admirada, Ãngela abanou a cabeça.
-A minha sabedoria a respeito de publicidade foi sempre muito limitada. Pensei que os jornalistas e os repórteres da televisão tinham que andar a cavar as notícias, tal como meu pai procede às suas escavações para encontrar qualquer coisa de valor.
Randall soltou uma gargalhada.
-Nem sempre as coisas acontecem assim. Claro que os homens da imprensa diária cavam e encontram as suas próprias notícias. Mas os editores dependem das pessoas que fazem publicidade para uma maior e melhor partilha dos frutos. Se pretenderes umas quantas revelaçõezinhas relativas à guerra, a política, a invenções, religião, ensino, dependerás de elementos ligados às relações públicas que pertençam a um comando militar ou ao pessoal de um dirigente nacional, tal como a pessoas de destaque na Igreja ou nas escolas. Não são só os espectáculos, os jogos ou os produtos industriais que possuem publicistas. Quase todas as coisas estão dependentes de uma publicidade bem orientada. Por muito estranho que pareça, até Jesus Cristo. Não dependeu Ele dos apóstolos e dos discípulos para irem pelo mundo a espalhar a Palavra?
-É uma coisa que soa quase a cinismo-disse Ãngela. -Sim, por vezes parece que sim, mas habitualmente não contém a mínima intenção cínica. Acontecem tantas coisas diariamente no mundo, coisas que os órgãos de informação não podem saber a cada minuto que se processam. Os meios de informação necessitam de ajuda, uma ajuda que nós, os publicitários, lhes prestamos mesmo fora os nossos interesses pessoais. E cada um de nós tenta dar aos meios de informação algo que julga mais importante para o público do que as ofertas da competição.
-Que mais debateram vocês na reunião, Steve? -Revelei material extra sobre aquilo que me contaste em Milão a respeito de teu pai, e disse ao pessoal que tu te encontravas aqui para fornecer mais informações arqueológicas. Prometi-lhes que iriam ter transcrições das entrevistas que gravei com Aubert sobre o processo de autenticação e com Hennig sobre a impressão tipográfica da Bíblia. Discutimos a seguir algumas ideias para histórias... Ah, é verdade, o Dr. Florian Knight esteve na reunião. Lembras-te de o ter mencionado durante o jantar de ontem?
- 0 jovem cheio de ressentimentos do Museu Britânico? -Esse mesmo. Mas tal como a namorada dele me prometeu, veio ter connosco. Ainda cheio de azedume, mas relutantemente cooperativo. 0 Dr. Jeffries tinha toda a razão. 0 jovem Knight é um mago absoluto no dialecto aramaico e nos comentários aos textos bíblicos-uma espécie de trabalho detectivesco sobre as escrituras que serviu para autenticidade dos textos. Foi um bocado difícil com todas aquelas perguntas e respostas a cruzarem-se, apesar de ele usar um aparelho auditivo, mas logo que pôde fazer uma ideia daquilo que nós precisávamos, foi verdadeiramente fascinante, e todo o meu pessoal anotou as suas palavras.
-Do que é que ele falou, Steve?
- Explicou principalmente o modo como o Dr. Jeffries e as suas equipas procederam para traduzirem o Novo Testamento Internacional. Contou os pormenores do trabalho, como o Dr. Jeffries seguiu o método utilizado há três séculos pelos tradutores da versão do Rei Jacob. Sabes como foi?
-Não faço a mais remota ideia-respondeu Ãngela-, exceptuando que a Versão Autorizada-a do Rei Jacob, que como católica, só li num curso sobre livros clássicos-é o escrito mais maravilhoso publicado em língua inglesa.
-E a única grande obra de literatura desde sempre a ser produzida por uma comissão. Segundo o Dr. Knight, em 1604 havia uma enorme discórdia religiosa em Inglaterra, e de modo a dar um propósito comum aos membros da Igreja em dissençâo, o Rei Jacob aceitou a proposta de um puritano chamado Dr. ReynoIds, reitor de um colégio em Oxford, e ordenou primitivamente a 54 eclesiásticos que, fizessem uma nova tradução da Bíblia. Aparentemente o Rei Jacob seria a última pessoa que se esperaria que instigasse um projecto de tal vulto. Gostava de livros, mas gostava muito mais de libertinagem. Era um homem cheio de vanidade e extremamente efeminado, de tal maneira que os seus súbditos costumavam dizer dele que a Rainha Jacob sucedera ao Rei Isabel.
Ãngela não pôde conter a explosão de riso.
-Muito inteligente. Foi o Dr. Knight que te contou isso? -Parece que quando quer pode ser também uma criatura divertida. Bom, de modo que o Rei Jacob acabou por aprovar uma comissão de quarenta e sete tradutores, um grupo muito diverso e intrigante. 0 mais velho dos elementos tinha setenta e três anos e o mais novo vinte e sete. Eram pregadores, professores, linguistas, gramáticos e eruditos. Um sabia quinze línguas, incluindo o aramaico, o persa e o arábico. Outro fora professor de grego da Rainha Isabel. Outro ainda desde a idade dos seis anos que lia a Bíblia em hebraico. Um deles era um refugiado belga, outro um bêbedo. Determinado indivíduo que fazia parte da comissão, consumido pela tuberculose, trabalhou na obra mesmo no leito de morte. Um dos eruditos, que faleceu durante o projecto, era um viúvo que deixou sete filhos ao desamparo. Bom, a comissão foi dividida em seis grupos: dois a traduzirem em Oxford, dois em Cambridge e dois em Westminster. Um dos comités de oito membros em Oxford encarregou-se de metade do Novo Testamento, e o comité de Westminster da outra metade.
-Mas, Steve, como é que eles podiam traduzir em conjunto? -Porque cada comité se encarregava de uma parte da Bíblia para a verter do hebraíco e do grego em inglês, estando cada indivíduo do comité entregue de um ou mais capítulos para traduzir. Os membros dos vários grupos liam uns aos outros as suas traduções, aproveitavam sugestões, faziam correcções e uma vez acabada a parte que lhes coubera, enviavam-na para um comité diferente para nova revisão. Tudo ficou concluído no espaço de dois anos e nove meses. Depois, nomeou-se uma junta composta por vinte elementos para rever e unificar a primeira redacção. Finalmente, um homem, o filho de um carniceiro que aos dezanove anos se doutorara por Oxford, o Dr. Miles Smith, fez a redacção final, sob a fiscalização de um bispo. Resultado? As quinze centenas de páginas da Versão Autorizada do Rei Jacob, publicada em 1611, cinco anos antes da morte de Shakespeare.
-E o nosso Novo Testamento Internacional foi preparado da mesma maneira?
Randall fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- 0 Dr. Jeffries criou três comités formados por cinco linguistas comentadores de textos, eruditos profundos conhecedores de tudo o essencial sobre o século 1. 0 Dr. Trautmann serviu de conselheiro ao comité de Cambridge, e eles traduziram os quatro evangelhos e os Actos. 0 Professor Sobrier juntou-se ao grupo de Westminster, que traduziu desde a Epístola de S. Paulo aos Romanos até ao Apocalipse. 0 Dr. Jeffries e o seu comité de Oxford encarregaram-se da tradução do Pergaminho Petrónio, do Evangelho Segundo Jacob e do material dos comentários e notas. Um terrível trabalho... E, Angela, cá temos finalmente o nosso almocinho.
Enquanto comiam o toldo azul do Café de Pool foi levantado. Não brilhava o sol. 0 dia continuava com um ar cinzento e carrancudo, com a atmosfera cheia de humidade.
Randall e Ãngela entretiveram-se a observar os transeuntes que circulavam na rua, para além da esplanada demarcada por renques de arbustos colocados em artísticos vasos, protegidos pelo entrelaçado de um gradeamento à altura das mesas.
Randall acabara de comer quando um rapaz, circulando por entre as filas de mesas, lhe colocou quase ao lado do prato vazio um prospecto publicitário. Randall deitou uma olhadela ao papel e levou-o depois até junto dos olhos como se não quisesse acreditar.
- Ãngela que diabo vem a ser isto?
No folheto, redigido em inglês, lia-se em letras garrafais: «ENJOY WIGNAND FOCKING 1 Corner of PijIsteeg ana Dam». Ãngela esboçou um sorriso.
- É publicidade sobre um antigo bar das vizinhanças que dá origem a um humor frívolo e pretensioso para os turistas ingleses. Focking é um famoso conhaque holandês. Queres saborear um cálice? Randall amachucou o prospecto e atirou-o para o chão.
- Não, obrigadinha. E nada de más interpretações, pois prometo-te que não as haverá. julgo que será melhor regressar ao Kras de cabeça fresca.
-Eu também julgo que será melhor voltar para o meu quarto para trabalhar mais um pouco, a não ser...
- A não ser o quê?
- A não ser que precises da minha ajuda como secretária. Se Lori Cook vai estar duas semanas no hospital, precisamente
1 jogo de palavras de difícil adaptação para português. Focking quer dizer, pouco mais ou menos, cópida. De modo que o prospecto em português diria: «SABOREIEM A CóPULA NO WIGNAND. Esquina de PijIsteeg e da Dam». (N. do T.).
as duas semanas mais duras e críticas para ti, deves pois precisar de uma secretária, não é verdade?
- Sou capaz de te pegar na palavra e poderás aproveitar para realizar o teu trabalho. Queres na verdade o emprego?
- Se tu me quiseres.
- Quero.
- Sinto-me feliz por te poder ajudar. Vou ao Victória buscar as minhas notas...
- E eu vou contigo para te ajudar a levares para a escola os teus trabalhos de casa.
Depois de paga a conta, Randall e Ãngela começaram a caminhar pela movimentada via pública. Percorreram a Damrak até ao Hotel Victória, uma velha construção de seis andares que ficava numa estratégica esquina, de um lado deitava para um canal e via-se relativamente perto uma estação de caminhos-de-ferro; do outro lado ficava sobranceira a um molhe conhecido como Open Haven Front.
A humidade contida na atmosfera era opressiva e na altura em que saíram do elevador no espaçoso patamar do primeiro piso e se encaminharam para o quarto 105, a camisa de Randall estava alagada em suor. Os aposentos de Ãngela estavam fresquinhos. Era um cómodo de dois quartos, um que servia da sala de estar e outro de quarto de cama. As paredes estavam pintadas com gosto de uma cor creme e o chão coberto com uma carpete esverdeada. Via-se uma espaçosa cama, um guarda-fato de mogno, várias cadeiras de braços, uma delas em frente de uma escrivaninha onde estava a máquina de escrever portátil de Ãngela e ao lado uma rima de papéis.
-Ãngela-disse Randall- enquanto tu juntas as coisas para levares para o escritório, importas-te de me deixar tomar um rápido banho de chuveiro? Estou bastante necessitado de me refrescar.
-Na verdade não tenho o que se possa chamar um autêntico chuveiro, mas sim um braço manual dentro da própria banheira. Mas espalha sem dúvida um belo leque de água.
-Perfeito para mim. - Libertou-se dos sapatos de pala, do casaco e do resto das roupas até ficar apenas com os shorts de malha no corpo. Vendo o olhar atento de Ãngela, perguntou-lhe:
- Que estás tu a ver?
- Como tu és à luz do dia.
-E então?
- Então... podes agora ir tomar banho.
Randall dirigiu-se para a casa de banho, situada quase ao lado da cama. Os mosaicos do chão estavam frios. Agarrou no tapete de banho, de espuma de borracha cor-de"rosa, que se encontrava suspenso num varão metálico e colocou-o junto da banheira. Depois tirou os shorts e entrou para a espaçosa banheira, levantando do descanso o chuveiro manual. Fez uma sábia mistura de água quente e fria até obter uma temperatura ideal e começou a espalhar a água por todo o corpo.
Começou a sentir mais conforto. Levou a mão à saboneteira e passou o agradável sabonete por todo o corpo até obter uma maravilhosa e refrescante espuma esbranquiçada.
Quando se voltou para colocar o sabonete de novo no seu lugar, ouviu as argolas metálicas a correrem no varão que sustentava a cortina. Voltou-se com tanta rapidez que quase se desequilibrou. Na sua frente, pela nesga da cortina protectora aberta, estava Ãngela, esplendorosamente nua. Randall esbugalhou os olhos ao contemplar aquele rosto cheio de beleza, os empertigados e bem desenvolvidos seios com os rosados mamilos, as amplas ancas e as roliças coxas a formarem uma tersa massa de carne nacarada em volta da encaracolada pilosidade púbica, que mal conseguia esconder o prolongado vinco central.
Sem pronunciar uma palavra, ela entrou também para a banheira. Agarrou no sabonete, sorriu e disse:
- Steve, também sinto calor.
Ãngela começou a passar a barra do sabonete pelo corpo de Randall, ensaboando-lhe bem as costas, ao longo das nádegas, entre as pernas, enquanto Randall lhe dirigia para o corpo o braço do chuveiro, perguntando:
-Que tal está?
- Oooh... bem bom, bem bom. Pronto, agora quero"me ensaboar.
Randall desviou o chuveiro, observando-a a ensaboar-se metodicamente até se assemelhar a uma criatura etérea composta por um milhão de bolas de sabão.
A medida que as bolas de sabão se iam dissolvendo, revelaram primeiramente um dos firmes mamilos rosados e depois o outro. A seguir, rios de água e de espuma escorreram-lhe pelo corpo, por entre os seios, pelo ventre escorrido, convergindo em inúmeras ramificações para o V formado pelas pernas fechadas. Randall sentiu-se fremir, sentiu o arranque da sua virilidade. Poisou o braço do chuveiro manual e agarrou-a, atraindo-a ao seu corpo cheio de espuma.
-Ummmmm, Steve, que coisa maravilhosa. -Amo-te, minha querida.
Ãngela recuou ligeiramente e olhou-lhe para a parte inferior do corpo, dizendo:
-É uma coisa linda... Não percamos tempo.
Com uma das mãos, ela afastou de novo a cortina e os dois, agarrados, saíram da banheira. Ãngela deixou-se, cair de joelhos no amplo tapete de espuma de borracha, arrastando-o consigo. Ajeitou-se depois até ficar de costas, com Randall por cima do seu corpo e entre o esplendor das suas pernas, como duas colunas douradas.
Era um movimento espontâneo, maravilhoso e ambos tiveram ao mesmo tempo consciência de que não seria sequer preciso que iniciassem o prévio jogo do amor. Randall foi inclinando o corpo até se encontrar bem por cima dela, rosto com rosto, depois de ter olhado para baixo e visto o vermelho aveludado do seu orifício vaginal à espera, numa ânsia louca. Introduziu o entumescido pênis naquele sexo que o aguardava, naquele ninho de amor e de desejo, fundo, mais fundo e cada vez mais fundo, deixando-se depois ficar quieto, mergulhado nele, enquanto as mãos de Ãngela lhe percorriam as costas em arrepiantes carícias.
-Nunca tinha tido nos meus braços uma sereia-ciciou Randall roucamente.
-E então, que tal?-perguntou ela também num murmúrio soluçado, quase inaudível.
Randall não lhe pôde responder, porque, ambos se começaram a movimentar, e pcrque ela sabia «que tal», sabia muito bem, como ele, sabiam os dois a resposta sem precisarem de palavras.
0 corpo dele, húmido, produzia um som de esparrinhar de água contra o corpo dela. Ritmo... loucura... movimento... movimentos em todas as direcções possíveis... novas dimensões no amor... mais rápido, cada vez mais rápido.
Randall teve ainda tempo para pensar que aquela «cópula» representava na verdade o termo adequado, sem jogos de palavras. Pura verdade. Uma cópula que embriagava mais do que todos os conhaques do mundo.
Carne molhada contra carne molhada, depressa, cada vez mais depressa, como que o húmido aplauso de dois corpos que se devoravam, que se fundiam que procuravam uma razão de vida,
0 flash de um pensamento na mente de Randall: «Oh, meu Deus, vou acabar! - E em voz alta:
- Ãngela, Ãngela, meu amor!
Nunca aquela explosão, aquela expulsão de algo profundamente enraizado nos seus arcanos atingira um momento tão alto, um tal nível e uma tal impressão de felicidade.
A tarde ia já no meio quando Randall regressou ao Hotel KrasnapoIsky. Ainda um pouco perdido no seu sonho de amor, foi despertado de chofre, para descer à verdade comezinha das realidades imediatas.
Acabara de entrar no hotel, exibindo o seu cartão encarnado, quando o guarda lhe disse:
- Mr. RandalI, têm andado à sua procura por toda a parte.
0 Inspector Heldering pretende que o senhor se dirija imediatamente para Zaal C.
- Zaal C?
-A sala de conferências privativa que fica ao lado das esca" das, no primeiro andar.
-E onde é que está o Inspector? -Reunido com os editores na Zaal C.
- Obrigado.
Randall estugou o passo.
Havia chegado ali eufórico, desanuviado, em paz. Atrás de si, no Hotel Victória, deixara Ãngela deitada na cama, para onde a tinha transportado e sobre a qual ela adormecera imediatamente, feliz como uma criancinha fatigada depois de brincar. Vestira--se logo a seguir e saíra ainda impregnado de todo aquele amor, daquela entrega pura. Mas, repentinamente, produzira-se uma transformação em todo o seu ser. Na Zaal C aguardava-o um grupo de homens que o tinham procurado por toda a parte.
0 instinto de Randall dizia-lhe que algo de errado ocorrera.
Nem sequer se dirigiu para o elevador. Subiu as escadas a quatro e quatro. Quando chegou ao patamar, parou para respirar e para localizar o aposento indicado. Lá estava a porta marcada ZAAL C. Lançou a mão ao puxador da porta para entrar, mas ela não cedeu. Os nós dos seus dedos bateram impetuosamente na almofada de madeira.
Ficou à espera. Alguns momentos depois uma voz perguntou lá de dentro.
-Mr. Randail, está sozinho?
- Estou - respondeu.
Ouviu um trinco a deslizar, depois o puxador a girar e a porta finalmente aberta reveloulhc um fleumático Inspector Heldering a indicar-lhe com um largo gesto que podia entrar.
Ao primeiro vislumbre dos editores sentados em volta da mesa de conferências, Randall soube que o seu instinto não o tinha enganado. Sem dúvida que qualquer coisa corria mal, muito mal.
Sob uma neblina de fumo, ali estavam sentados os editores -Deichhardt, Wheeler, Gayda, Young, Fontaine-e entre eles o Inspector Heldering, vendo-se uma cadeira vazia, provavelmente destinada a ele próprio, Randal1. Mas na sala estava mais uma pessoa. Num canto, com uni bloco-notas poisado no regaço, e um lápis em cima dele, estava sentada Naomi Dunn. Aquelas caras, que já se lhe haviam tornado familiares, representavam indivíduos isolados, mas naquele momento pareciam a Randall que eram todas iguais. Verificou que essa aparente semelhança se devia a estarem todas marcadas com o mesmo ar de preocupação. Os editores pareciam na verdade profundamente perturbados.
-Steve, onde diabo é que você tem estado? Bom, isso agora não interessa.-A sua mão, num gesto impaciente, designou-lhe a cadeira vazia, que ficava situada entre a dele e a de Deichhardt. -Convocámos esta reunião de emergência há mais de meia hora. Precisamos do seu auxílio.
RandalI, canhestramente, impressionado, sentou-se, observando atentamente os gestos de Heldering que voltava a correr o trinco cuidadosamente, recuperando o seu lugar, Uma vez que toda aquela gente fumava cigarros ou charutos, RandalI, nervosamente, procurou o cachimbo.
-Muito bem, afinal o que é que se passa? -perguntou. Foi Deichhardt, na sua voz gutural, quem lhe respondeu. -Mr. RandalI, pretendemos ter a certeza sobre determinado assunto. - Procurou entre um maço de papéis que se encontravam na sua frente, e tirou unia folha mimeografada. - Será este o memorando confidencial que esta manhã nos mandou distribuir? Randall olhou e confirmou:
- Exactamente. Trata-se do memorando a propor-lhes que façamos o anúncio público do Novo Testamento Internacional de uma tribuna montada no grande salão de cerimónías do Palácio Real Holandês. A recomendar que essa declaração seja feita em conferência de imprensa e depois espalhada para todo o mundo por intermédio do Intelsat. Se estiverem dispostos a isso, temos já acordos relativos ao assunto com as respectivas autoridades.
- Claro que sim. Estamos dispostos a aceitar esses acordos. Tem a nossa unanimidade - garantiu Deichhardt. - É sem dúvida urna ideia brilhante, uma das mais válidas para o nosso projecto.
- Obrigado.- agradeceu Randall cautelosamente, continuando a magicar naquilo que perturbava os «patrões».
-Bom, voltando a este memorando -e o Dr. Deichhardt agitou o papel, preso entre o polegar e o indicador, -a que horas é que o pôs em circulação?
Randall tentou lembrar"se com exactidão.
-Por volta... talvez por volta das dez da manhã.
0 Dr. Deichhardt tirou do bolso do colete um imponente e maciço relógio de ouro, ao qual abriu a tampa lavrada.
-Ora agora são quase quatro horas da tarde. De modo que... -os seus olhos correram por todas as pessoas sentadas em redor da mesa... De modo que, o me-morando confidencial foi posto em circulação há seis horas. Muito interessante.
-Steve, quantos exemplares do memorando foram tirados? -perguntou Wheeler, que tinha puxado a manga do casaco de Randall para lhe atrair a atenção.
-Bem, não tenho aqui a lista... Mas julgo que os exemplares se destinaram a todos os que se encontram sentados a esta mesa... -Mas quantos exemplares? -insistiu Wheeler.
- Quantos? Ora... dezanove, segundo creio. Wheeler voltou a intervir.
-Pois muito bem, aos que estão presentes foram distribuídos sete exemplares. E os outros doze?
- Deixem-me pensar... Naorni levantou-se para falar.
-Para o caso de lhes interessar, tenho aqui comigo a lista da distribuição.
-Muito bem. Mencione os nomes das pessoas que receberam cópias, com excepções das que estão nesta sala.
Naorni exibiu uma folha de papel dactilografada e principiou a ler, silabando cado um dos nomes.
-Jeffries, Riccardi, Sobrier, Trautmann, Zachery, Kremer, Groat, O'Neal, Cunningham, Alexander, de Boer, e Taylor. Doze, com os sete aqui presentes faz dezanove.
Sir Trevor Young abanou a cabeça,
- Incrível, 0 nosso pessoal de mais destaque e de mais segurança. Mr. RandalI, será que nos esquecemos de alguém? Passou verbalmente. o conteúdo deste memorando a mais alguma pessoa?
- Verbalmente? - Randall enrugou a testa, concentrando-se. Ah, claro que sim, Lori Cook, como minha secretária, sabia que andávamos a sondar o Palácio Real e a direcção do Intelsat, mas o facto é que nunca chegou a pôr a vista em cima deste memorando. Ah... é verdade, também mencionei o documento a Ãngela Monti, que se, encontra em Amesterdão a representar o pai...
0 Dr. Deichhardt, espreitando por cima dos óculos na direcção do Inspector Helderíng, perguntou:
-Miss Menti tem assegurada a anuência dos serviços de segurança como pessoa em quem se possa confiar inteiramente? -Sem a mais leve sombra de dúvida - respondeu o Inspector. -A esse respeito não há problemas. Todas as pessoas nomeadas foram aprovadas pela segurança e consideradas da maior confiança para o projecto.
- Bom, só resto eu - disse Randall frivolamente. - 0 diabo é que sou o autor do memorando.
0 Dr. Deichhardt: emitiu uma espécie de resmungo.
-Vinte e uma pessoas, com excepção de Miss Cook no hospital. Foram vinte e uma as pessoas, nem urna a mais nem uma a menos, que leram ou ouviram falar no conteúdo deste memorando confidencial. Todos são de confiança. Confesso-me desorientado.
-Desorientado com quê?-perguntou RandalI, denotando na voz uma leve irritação.
0 Dr. Deichhardt rufou com os dedos no tampo da mesa.
- Intrigado e desorientado pelo facto de, três horas depois do senhor ter posto a circular o memorando confidencial, o seu conteúdo ser já conhecido e encontrar-se nas mãos do Reverendo ... o Dominee Maertin de Vroome, Hervornd Predikant ... pastor de Westerkerk, que é um membro da Igreja Reformada Holandesa. É também dirigente principal do NIRRC Movimento Radical de Reforma Cristã, espalhado por todo o mundo.
Randall levantou"se da cadeira em que estava sentado, com os olhos muito abertos, completamente atónito.
-De Vroome... então ele tem em seu poder o nosso memorando confidencial?
-Exactamente -respondeu o editor alemão. -Mas isso é impossível!
-Impossível ou não, Steve, tem-no em seu poder-disse Wheeler.-Que-r dizer que de Vroome conhece o local, método e data em que faremos o nosso anúncio ao mundo.
-E como é que os senhores sabem que ele sabe essas coisas? Que tem em seu poder os dados contidos no memorando? perguntou Randall.
Foi a vez de Deichhardt responder.
- Porque tal como o Dominee de Vroorne conseguiu penetrar na nossa segurança, nós conseguimos recentemente penetrar na segurança do seu reduto, abrimos uma brecha nas suas muralhas. Possuímos presentemente um informador dentro do seu movimento, que desempenha as funções...
0 Inspector Heldering levantou-se, fazendo um gesto impeditivo com a mão.
-Cuidado, Herr Professor, muito cuidado...
0 Dr. Deichhardt fez um gesto de compreensão, baixando a cabeça ao chefe da segurança do projecto. Depois voltou-se outra vez para Randall.
-Bem, os pormenores não lhe interessam. 0 que interessa é que temos alguém ligado ao MRRC. Essa pessoa telefonou-me há pouco a enunciar-me o conteúdo do memorando confidencial, que aliás o Dominec de Vroorne enviou já para a chefia do movi" mento, juntamente com uma mensagem... também confidencial, evidentemente... que o Reverendo enviou a um dos seus mais bem colocados colegas. Quer conhecer a mensagem? Aqui está ela.
Randall aceitou a folha de papel que o editor alemão lhe estendia. Com todo o cuidado, leu:
«Caro Irmão na Causa:
Confidencialmente dou-lhe notícia de que o sindicato ortodoxo fará o anúncio público das descobertas e da nova Bíblia a partir do salão principal de cerimónias do Palácio Real de Amesterdão. A declaração e cerimónia serão transmitidos via sistema Intelsat na sexta-feira dia 12 de julho. Estão em progresso os preparativos para anteciparmos o evento. Muito em breve receberá informaçao sobre uma reunião que realizaremos em Westerkek. Por altura dessa reunião teremos em nosso poder um exemplar antecipado da nova Bíblia. Ora o nosso anúncio e denúncia do caso ao mundo será feito através de uma conferência de imprensa, com dois dias de antecedência sobre a programada declaração no Palácio Real. Será mais do que um golpe que vibraremos à propaganda deles, vamos destruí-los e calá-los para sempre.
Em nome do Pai, do Filho e do Futuro da Nossa Fé,
DOMINEE MAERTIN DE VROOME.»
Foi com a mão tremente que Randall devolveu o papel ao Dr. Deichhardt.
-Como é que ele conseguiu saber? -perguntou RandalI, mais para si do que para os outros.
-É precisamente aí que reside a questão-disse o Dr. Deichhardt.
-E o que é que os senhores vão fazer a respeito do caso? -quis saber Rarídall.
-Isso constitui outra questão diferente. -Respondeu Deich" hardt. - Com respeito a isso decidimos já a primeira medida a tomar. Uma vez que o Domince de Vroome já sabe a data da nossa declaração ao mundo, decidimos modificá-la para alguns dias antes, mantendo a nova data um estrito segredo entre as pessoas que se encontram nesta sala - extensivamente a outros colaboradores como Hennig-, mas uma data que só será anunciada no derradeiro momento. Assim, entrámos em acordo para que a nova data passe de 12 de julho, sexta4eira, para segunda-feira dia 8... quatro dias antes. Sem dúvida, que o senhor, Randall, poderá proceder a novos arranjos com respeito à nossa reserva para o Palácio Real e para a transmissão via Intelsat.
Randall mexeu-se no seu lugar, visivelmente inquieto.
- Não me sinto preocupado a respeito dos novos arranjos a fazer o que me preocupa é a redução de tempo imposta ao meu departamento. A partir de amanhã restam-nos somente duas semanas e três dias para que preparemos a maior e mais decisiva campanha de publicidade e promoção dos tempos modernos. Não sei se o que pretendem poderá ser feito.
Dessa vez foi Gayda quem falou.
- Se o senhor fosse um crente saberia que tudo pode fazer-se. A fé move montanhas.
Monsicur Fontaine meteu a sua colherada,
-Mas quanto a um descrente, urna boa maquia extra servirá com certeza como melhor carro de assalto do que a própria fé. Randall manifestou o seu desagrado.
- Nem eu nem o meu pessoal precisamos de ser estimulados com qualquer gorjeta. Tudo o que eu preciso é de tempo, a única coisa que aparentemente não posso ter.-Encolheu os ombros.-Okay... duas semanas e meia.
-Excelente- disse o Dr. Deichhardt. -Outra razão para mudarmos a data da nossa declaração não deriva essencialmente da contramanobra de de Vroorne, mas como medida também de encurtamento do período em que possa acontecer algo de errado. Poderia ocorrer nova fuga sobre os progressos do nosso labor. Sr. RandalI, nós já alertámos Herr Hennig, em Mainz, da modificação nos planos e da necessidade de obtermos as biblias mais cedo. Hennig vai enviar os exemplares e por isso os elementos do seu departamento terão a oportunidade adequada de lerem o Petrónio e o Jacob, a tempo de prepararem todo o edifício publicitário. Mas, dentro desse processo, é evidente que nos expomos a um perigo ulterior. 0 senhor leu a mensagem do Domince de Vroorne. Ele promete aos seus partidários que terá em seu poder um exemplar no Novo Testamento Internacional antes de lançarmos a obra ao público. 0 tom em que escreveu é de uma certeza cheia de arrogância. Espera que o traidor que lhe facultou o nosso memorando secreto em breve lhe entregue a Bíblia. Ora dessa forma, surgem-nos duas perguntas fundamentais: Como é que de Vroorne obteve o memorando? Como é que obterá a nossa Bíblia? Resumindo: Quem será o traidor que se encontra entre nós?
- Sim, quem é o Judas Iscariotes dentro do nosso projecto?
- estrondeou Wheeler. -Quem é que nos vendeu ao Diabo por trinta miseráveis moedas de prata?
- E como é que nós o descobriremos antes que ajude a destruir-nos? - rematou Deichhardt.
Randall olhou em volta.
- já assentaram em algumas ideias para resolução do caso?
0 Inspector Heldering, que estivera a escrever qualquer coisa num bloco-notas, levantou a cabeça.
- Sugeri o detector de mentiras para todas as pessoas... isto é as vinte e uma pessoas que receberam o memorando ou que tiveram conhecimento dele.
-Não, não, isso não-disse o Dr. Deichhardt abanando a cabeça. - Seria uma medida de extremo desespero, capaz de instaurar a desmoralização entre os que nos são completamente fiéis. 0 trabalho ressentir-se-ia, com evidente prejuízo para o projecto.
- Mas lembre"se que nem todos são fiéis - insistiu o Inspector. - Pelo menos há uma pessoa desleal. Não veio qualquer outro método para conseguirmos saber a verdade.
- Tem que haver um modo melhor - persistiu o Dr. Deichhardt.
RandalI, que escutava a troca de palavras como se lhe chegassem de um outro mundo, tentava fixar ideias sobre a revelação que acabara de obter, elaborando um método que lhe parecia ser eficiente. A maneira de apanhar o traidor seria preparar-lhe uma armadilha dentro do mesmo sistema que o «Judas» aproveitara para fornecer a informação a de Vroorne. Ignorando as vozes que se entrecruzavam de um para outro lado da mesa, concebeu uma armadilha que se afigurava inteiramente lógica e que constituiria uma espécie de prova do fogo. Logo que a elaboração mental se completou, interrompeu os outros decididamente:
- Tive uma ideia. Tenho a impressão que funcionará dentro daquilo que pretendemos. Aliás é uma coisa que podemos pôr imediatamente em execução.
Teve a noção de que todos aqueles olhos o devoravam, enquanto se estabelecia um silêncio de morte. Agarrando pensativamente o cachimbo, levantou-se, deu alguns passos no espaço entre a cadeira e a parede, voltando a aproximar-se da mesa.
- É uma armadilha de uma simplicidade aflitiva, mas a verdade é que não vejo nela qualquer falha que nos impeça de descobrirmos rapidamente o traidor. Escutem: supunhamos que elaboramos um segundo memorando ultra"secreto, um documento sobre o desenvolvimento dos nossos planos publicitários. Seja o que for que inventemos para o documento não está agora em causa, mas o memorando deverá ter toda a verosimilhança de uma informação melindrosa a respe-ito da campanha de produção que logicamente se deverá seguir ao anúncio do Palácio Real. Digamos que vamos enviar esse memorando às mesmas pessoas que receberam o documento anterior... Bem, julgo escusado que o documento seja fornecido às pessoas que se encontram agora aqui... mas enviaremos exemplares a todos os outros envolvidos no caso. Cada exemplar do novo memorando será, no mais lato sentido do termo, uma cópia de um documento de base, com excepção de uma palavra. Isto é, em cada exemplar haverá uma palavra que nenhum dos outros contenha. Faremos uma lista rigorosa das pessoas que receberão o memorando, e inscrevemos à frente do nome a palavra especial designada na sua cópia. Estão a ver onde quero chegar? Logo que o documento chegar às mãos da pessoa que nos traiu, sem dúvida que o conteúdo, palavra por palavra, será transmitido ao Reverendo de Vroorne. Ora o vosso informador no quartel-general do Domince de Vroorne terá conhecimento do caso e imediatamente relatará ao Kras o texto obtido. Dado que o memorando não será exactamente como os outros por virtude da simples diferença de uma palavra, procuraremos justamente saber qual é a palavra diferente no texto do documento passado a de Vroorne e teremos descoberto o nosso «Judas».
Fez uma pausa para observar as reacções.
-Não é má ideia, nada má mesmo-disse Wheeler.
0 Dr. Deichhardt, bem como quase todos os outros, parecia ter ficado confuso.
-Pretendo certificar-me se na verdade consegui compreender o seu plano - disse o editor alemão. - Pode fornecer um exemplo concreto?
0 cérebro de Randall era uma máquina viva e criadora que tinha já estabelecido o completo plano.
- Posso. Tomemos como exemplo a '(Jltima Ceia de Cristo. Quantos eram os discípulos que estavam com Ele?
- Toda a gente sabe que eram doze - respondeu enfatica-mente Sir Trevor Young. -Bom... Tomé, Mateus... e todos os outros.
- Okay, doze - anuiu Randall. - Serve às mil maravilhas. Vamos então estabelecer uma lista dos doze nomes pertencentes a doze pessoas pertencentes a este projecto que tenham recebido ou sido informadas sobre o conteúdo do nosso último memorando. Não há precisão de incluirmos quem se encontra nesta sala, tal como já frisei. Incluindo Naorni, estão aqui oito pessoas, o que nos deixa treze hipóteses. Subtraiam ao número alguém de quem preciso para me auxiliar a preparar a armadilha, por exemplo Jessica Taylor. Responsabilizo-me por ela. Temos agora já doze nomes relacionados com o documento que servirá de isca. Mas se nenhuma dessas doze pessoas nos trair, então o «Judas» terá forçadamente que estar entre Jessica, Naorni, eu ou qualquer dos que estão aqui presentes. Vamos no entanto jogar na hipótese mais segura do traidor ser um dos doze escolhidos, a pessoa que nos vendeu a de Vroorne... Naorni, repita-nos os nomes dos doze.
Naorni levantou-se e destacou os nomes contidos na lista. -Dr. Jeffries, Dr. Trautmann, Reverendo Zachery, Monsenhor Riccardi, Professor Sobrier, Mr. Groat, Albert, Kremer, Angela Monti, Paddy O'Neal, Les Cunningham, Elwin Alexander, Helen de Boer.
Um outro nome perpassou pela cabeça de Randall: o Dr. Florian Knight-que chegara recentemente. Considerou acrescentar o nome dele à lista, mas teve receio. 0 jovem professor universitário, amargurado pelo projecto que lhe destruíra uma obra, ainda não devia ser admitido a semelhante jogo. Todavia, no caso de poder constituir um perigo, deveria pois ser incluído. Mas RandalI, com todo o conhecimento dos problemas de Knight, hesitava em submetê"lo a tal prova. Fosse como fosse, Randall pensou que também não seria necessário, dado que o mais provável seria o Dr. JcÍfries partilhar o seu memorando com o protegido.
-Muito bem Naorni-disse Randa11.-São exactamente as pessoas a quem vamos entregar os exemplares do novo memorando.
0 Dr. Deichhardt emitiu um fundo suspiro.
-É difícil imaginar um deles a trair-nos. Foram todos devidamente investigados e aprovados pela segurança. A maior parte estão connosco desde os primórdios da Ressurreição Dois. Como todos nós, o seu interesse é de preservação do segredo da nova Bíblia.
-Mas alguém nos atraiçoou -lembrou Wheeler.
- Tem razão... Toda a razão... Continue, Sr. Randall.
- Okay - continuou Randall. - Digamos que o memorando passa a ter o seguinte texto: «Confidencial. Foi decidido que o anúncio público da nossa publicação a fazer no Palácio Real o dia por excelência dedicado à glória eterna de Jesus Cristo seja seguido por doze dias consecutivos dedicados aos doze discípulos que o Novo Testamento menciona pelos seus nomes. Esses dias serão devotados aos assuntos públicos de celebração da nova Bíblia. 0 primeiro dos doze dias será dedicado ao discípulo André». Esse memorando será enviado ao Dr. Jeffries. 0 nome de código para o Dr. Jeffries passará a ser André. Prepararemos depois um outro exemplar do documento, exactamente com as mesmas palavras, excepto o nome do discípulo, passando o último período a ler-se assim: «0 primeiro dos doze dias será dedicado ao discípulo Filipe». Essa cópia será destinada a Helen de Boer. 0 nome de código para Helen passará a ser Filipe. A terceira cópia terminará com a referência ao discípulo Tomás e caberá ao Reverendo Zachery, que passará a ser conhecido pelo nome de código de Tomás. E assim sucessivamente ao longo de toda a lista, cada um desses doze colaboradores codificados com o nome de um dos discípulos. Pois bem, quando de Vroorne obtiver uma cópia do memorando, saberemos pelo nosso informador quem nos atraiçoou. Admitamos que o exemplar chegado às mãos do Dominee tem o nome do discípulo André, nesse caso saberemos que o elemento traidor entre nós é o Dr. Jeffries. Percebem?
Levantou-se um coro de assentimento em volta da mesa. E o Dr. Deichhardt murmurou:
- Percebemos muito bem. É demasiado claro e demasiado assustador.
- Demasiado assustador? - repetiu Randall.
- Sim, conceber que alguém entre nós nos traiu.
-Se um dos doze discípulos de Cristo o pode trair a Ele murmurou Randall calmamente - porque é que não podemos acreditar que um dos nossos esteja de novo pronto a traí-Lo... destruindo-nos também a nós?
- Tem razão - disse o Dr. Deichhardt. - Levantou-se ponderosamentc, observando os outros editores seus colegas e voltou-se depois para Randall. - Estamos todos de acordo. Há demasiado em causa para descrenças ou sentimentalismos. Prossiga com o plano, Mr. Randall. Pode começar imediatamente a preparar a sua armadilha.
Havia sido um dia longo e fatigante e, às onze e vinte da noite, Steve Randall sentia-se feliz por poder voltar aos seus aposentos do Arristel Hotel.
Mexendo-se no assento traseiro da «limousíne» Mercedes-Benz, Randall teve consciência do farfalhar da folha de papel que tinha metido no bolso interior do casaco. Uma folha de papel onde estavam escritos os nomes dos doze apóstolos que tinha servido para a redacção do memorando, em que fora auxiliado por Jessica Taylor. A frente do nome de cada discípulo encontravase o nome de cada um dos membros da Ressurreição Dois a quem o documento fora endereçado,
Pensou no tempo que levaria o traidor a enviar o memorando ou ir entregá-lo pessoalmente ao Domince Maertin de Vroorne, totalmente ignorante da ratoeira que lhe fora armada. 0 memorando anterior levara cerca de três horas, depois de publicado, a chegar até ao Reverendo. 0 novo documento, do qual cada uma das versões fora dactilografada por jessica Taylor, começara a ser distribuído quarenta e cinco minutos depois que ele saíra da reunião com os editores, As cópias haviam sido enviadas em mão própria por elementos dos serviços de segurança de Heldering, a destinatários ainda a trabalharem nas instalações do KrasnapoIsky ou àqueles que se encontravam nos seus hotéis ou apartamentos em Amesterdão, terminado o dia de trabalho. Fora também preparado um protocolo a ser assinado por cada uma das pessoas que recebessem o memorando, para não haver dúvidas sobre a posse.
Randall encontrou-se de novo a tentar deduzir quais os motivos daquela traição: teria sido por amor ou por dinheiro?
Eram geralmente os motivos que mais fortemente costumavam provocar a traição.
Bom, o melhor era não se deter particularmente em qualquer dos doze indigitados. 0 melhor era rezar para que o impostor fosse apanhado antes de poder deitar as imundas mãos ao segredo mais precioso: a edição especial do Novo Testamento Internacional que Herr Hennig em breve expediria de Mairiz.
Enquanto ainda se encontrava no seu gabinete de trabalho, Randall telefonara a Ãngela a convid&1a a jantar com ele. Embora profundamente fatigado, não resistira a vê-Ia nessa noite. Tinham jantado calmamente no elegante restaurante do Hotel Polen, permutando reminiscências da vida anterior um do outro. Depois, até sentindo"se cansado, custou-lhe deixar aquela mulher querida, embora consolado com a ideia de que a veria de novo pela manhã. Acabara por deixá-la à porta do Victória Hotel. Naquele momento em que se aproximava do Amstel ainda sentia nos seus lábios o perfume delicioso dos lábios dela.
0 carro voltou à esquerda. Um minuto depois, tendo dado as boas-noites a Theo, Randall ficou por momentos parado no passeio em frente do edifício. Quando se preparava para entrar, ouviu que alguém o chamava. Parou, voltou-se e o homem que o chamara começou a emergir das sombras em que estava mergulhado o parque de estacionamento.
- Mr. Randall! - chamou o homem de novo. - Só um momento, se faz favor!
Caminhando ao seu encontro, o homem foi repentinamente iluminado pelo halo de luz que dimanava a jorros da entrada do Amstel.
Cedric Plummer.
Mais zangado do que surpreendido, Randall preparava-se para lhe voltar as costas, quando Plummer o agarrou pela manga do casaco.
Randall deu um violento puxão para se libertar.
-Quero que fique bem esclarecido de uma vez por todas que não temos nada para dizer um ao outro, hem!?
A voz de Cedric Plummer adquiriu um tom suplicante. -Não se trata de mim. De modo nenhum o incomodaria,
mas estou aqui enviado por alguém... alguém muito importante que o deseja ver.
Randall estava decidido a não se deixar comover. -Tenho muito pena, Plummer, mas não me lembro de ninguém que você possa conhecer que eu esteja interessado em ver.
Deu uns passos na direcção da entrada. 0 jornalista inglês, com um ar de aflição seguiu-o.
- Mr. Randall ... espere... oiça. Trata-se do Dominee Maertin de Vroome... foi ele que me enviou.
Randall parou.
-De Vroome? -Olhou desconfiado para o i omalista. -Foi de Vroorne que o mandou procurar-me?
- Foi... Pode ter a certeza absoluta - respondeu Plummer, abanando a cabeça repetidas vezes afirmativamente como um boneco animado.
- E como é que eu sei que você não está a mentir com quaisquer outros desígnios em mente?
-Juro que é a pura verdade. Porque raio havia de estar a mentir? Que ganharia eu com isso?
Randall hesitou entre a desconfiança pelo inglês e o excitado desejo de que fosse verdade.
- E porque é que de Vroome pretende encontrar-se comigo? -Não faço a mínima ideia.
- Já sabia que não tinha - disse Randall sardonicamente. E porque razão o Reverendo de Vroome o utilizaria a si, um jornalista estrangeiro, como seu mensageiro? Não seria mais simples que me fizesse um telefonema?
Um pouco encorajado pela pergunta, Plummer respondeu prontamente:
-Porque ele costuma fazer tudo por vias indirectas, obliquamente. É um homem imensamente circunspecto em todos os seus contactos. Um homem na posição dele tem que ser precavido, astuto, cauteloso. Não correria o risco de lhe telefonar, tal como não alimenta quaisquer desejos de ser visto consigo em público. Se conhecesse o Dominee de Vroorne compreenderia o seu comportamento.
-E você conhece-o?
-Bastante bem, Mr. Randail. Sinto orgulho em lhe poder chamar amigo.
Randall lembrou-se da sensacional entrevista de Plummer com de Vroorne para o London Daily Courier. Fora uma entrevista comprida, em primeira mão e exclusiva. E lembrando"se dela, Randall aprestou-se para acreditar que a reivindicação de Plummer era verdadeira a respeito da amizade que o ligava ao clérigo reformista holandês.
Randall considerou a hipótese de um encontro com de Vroorne. Era coisa que oferecia perspectivas mais de artimanhas do que vantagens. Todavia, um factor irresistivel impelia Randall para defrontar o homem. A única sombra negra que se interpunha entre o futuro de Randall e o êxito da Ressurreição Dois era a daquele enigmático Reverendo de Vroorne. Não é muito frequente que uma pessoa tenha a oportunidade de se encontrar frente a frente com um inimigo que habitualmente escolhe a sombra para se acobertar. Na verdade, a oportunidade era irresistível ... Domince de Vroorne era caça grossa... muito grossa mesmo ... a maior peça daquele safari.
Randall fixou o ansioso inglês, perguntando:
- E quando é que de Vroorne me deseja ver? -já, precisamente agora, se for convenitnte para si. -Deve ser um motivo muito urgente para pretender um encontro a hora tão tardia.
-Não lhe posso dizer se é ou não urgente, mas posso assegurar-lhe que o Reverendo é uma espécie de filho da noite. -Onde é que ele está?
-No seu gabinete de Westerkerk.
- Muito bem, vamos lá descobrir o que quer o grande homem. Minutos depois seguiam no carro de Plummer, um coupé Jaguar, ao lado do Prinsengracht - Canal dos Príncipes – imerso em escuridão. 0 canal serpenteava em volta da parte ocidental do centro de Amesterdão e ao longo da Dam. Sentado no fofo lugar do carro de desporto, Randall estudava o perfil de Plummer -o seu cabelo fraquíssimo, os olhos pequenos, a cor macilenta da pele, que só parecia viva devido ao tufo de barbicha à Van Dike-e especulava qual o motivo que seria capaz de aproximar o jornalista inglês e o poderoso leader de um movimento religioso radicalista.
-Plummer, sinto-me fortemente curioso a seu respeito e a respeito de de Vroome. Você chamou"lhe amigo...
- Exactamente - Plummer não desfitou os olhos do caminho em frente.
- Que espécie de amizade? Será você o propagandista das ideias dele através da imprensa, e fará parte do rol de pagamentos do Reverendo? Trabalhará você para o movimento reformista? Ou será apenas um dos seus muitos espiões?
A mão de Plummer largou a roda do volante por momentos e agitou-se repetidas vezes num movimento de veemente negativa, o que lhe conferia um ar peculiarmente efeminado.
- Oh, céus, não, nada disso, meu caro rapaz, nada de tão melodramático como isso. Para lhe ser franco, digamos que entre mim e o Doinince existem interesses comuns... nomeadamente a vossa nova Bíblia, o grande segredo que está a ser mantido tão fortemente por trás das muralhas do KrasnapoIsky. Ambos temos razões diferentes para desejarmos saber o máximo que pudermos desse segredo antes que o vosso Dr. Deichhardt lance o Livro às massas como quem alimenta pombinhas num jardim. Achei que podia ajudar o Reverendo de Vroorne a esse respeito, de muitas e variadas maneiras, recolhendo pequenas ínformaçõezinhas, tagarelices, segredinhos, enfim tudo aquilo que geralmente está ao alcance de um bom profissional da imprensa. Em troca, espero que o Domirie-- me auxilie compensadoramente, fornecendo-me a hístória exclusiva que ecreveroi para o mercado mundial de notícias alites que vocês consigam lançar o pregão da vossa obra -Voltou para Randall um sorriso hipócrita desfeado pelos dentes apodrecidos. - Lamento, velho companheiro, se isto o pode privar da glória, mas c'est Ia guerre.
Randall sentiu-se mais divertido do que aborrecido com a franqueza do homem.
- Você está seguro de que o seu amigo de Vroorne lhe possa servir as nossas cabeças numa bandeja, hem?
Plummer voltou a mimoscá4o com o seu sorriso de diabrete de cartas de jogar muito surradas.
- Sim, estou seguro disso.
-Bom, pelo menos é um aviso de fair play.
- É verdade, um sentido de jogo franco à maneira de Eton e de toda essa maralha... - Depois, mas já sem sorrir, acrescentou:
- Seja o que for que possa pensar de mim, Mr. Randall, sou um gentleman. E o mesmo acontece com o Dominee de Vroorne.
-É verdade, de Vroorne... Sei pouquíssimo a respeito dele. Oficialmente o que é que ele é? Chefe da Igreja Reformada Holandesa?
-Não existe chefe oficial da Nederlands Hervorrnd Kerk... a Igreja Reformada Holandesa. Os quatro ou cinco milhões de protestantes deste país, nas 1466 paróquias espalhadas por onze províncias, elegem cinquenta e quatro representantes, uns pastores outros leigos de destaque. Poderia pois dizer-se que o sínodo governa a Igreja Holandesa, mas na verdade não é assim. Os membros do sínodo são testemunhas e não bispos. Domince de Vroorne costuma dizer que o sínodo não é a autoridade mas sim a consciência da Igreja. A Igreja aqui é uma comunidade demasiado centralizada, mas de um tipo que se afigurará quase anarquista a um inglês ou a um americano. 0 Dominee foi eleito pelo conselho da Igreja dessa comunidade para chefiar uma Igreja local individual. Tem-me dito repetidas vezes que não tem qualquer autoridade especial mesmo na sua própria Igrej'a. 0 seu poder deriva exclusivamente da personalidade. Os seus únicos deveres são de falar bem e escutar melhor, e de nunca se esquecer que a sua Igreja é realmente a Igreja do povo. Estou a mencionar-lhe estas coisas para que possa compreender o homem com quem sc vai encontrar.
-Essas palavras apresentani-no como se fosse um humilde pastor da vizinhança - disse Randall. - Ouvi dizer que ele é o leader do Movimento Radical da Reforma Cristã, com legiões de partidários, eclesiásticos e leigos, em todo o mundo.
- Lá isso é verdade - concordou Plummer, - mas não inva" lida o que eu disse. A nível local não tem mais peso na Igreja do que um vulgar camponês. E esse facto importante-que é na prática o que ele prega: a incarnação de uma relevante fé popular -faz dele um verdadeiro rei no estrangeiro. Quanto a mostrá-lo como um radical, a maneira como a palavra é proferida tem um som sinistro. Um radical é simplesmente alguém que deseja fazer modificações imediatas, drásticas e fundamentais na ordem existente. Sim, nesse sentido o Dominee de Vroorne é um leader radical da Igreja.
Pouco depois, Plummer apontou para a frente, tirando uma das mãos do volante.
-Cá está... eis que chegamos ao quartel general de de Vroorne. Westerkerk, consagrada em 1631, edificada em forma de cruz ao estilo neoclássico, provavelmente com a torre mais alta de Amesterdão. Um montão compacto e feiusco, hem? Mas é a primeira Igreja da Holanda-lugar de casamentos da casa real holandesa-e a presença de de Vroome transforma-a provavelmente na primeira Igreja do Protestantismo.
Estacionaram o carro na Westermarkt, e Randall aguardou na praça enquanto o inglês fechava o seu Jaguar.
Para Randali, a casa de oração que lhe ficava na frente parecia-se com uma casa holandesa de tamanho desproporcionado coroada por um rígido campanário que procurava atingir as alturas do céu. Tal combinação fazia com que a construção parecesse ao mesmo tempo amigável e ameaçadora, exactamente como o seu principal habitante, segundo Randall suspeitava. Examinando a fachada mais cuidadosamente à luz dos candeelros de iluminação pública, Randall pôde observar que o edifício era construído de pequenos tijolos que, com a patine do tempo, se tinham transformado de vermelhos em castanhos deslavados, um tom que com aquela luz se parecia com manchas de sangue seco. Randall decidiu que o aspecto total era na realidade ameaçador, tal como provavelmente o próprio Domince Maertin de Vroorne.
- 0 que é que quer dizer Dominee? - perguntou Randall a Plummer, que entretanto se lhe juntara.
- Senhor, Mestre - respondeu o jornalista inglês. - Vem do latim dominus, e é aqui o equivalente a Reverendo. Incidentalmente, quando se dirigir a de Vroorne, chame-lhe também Dornince.
Quando começaram a caminhar para a Igreja, Randall disse:
- De Vroorne enviou-o para me convidar. Não sabia se eu aceitaria. Pensa que estará à minha espera?
-Sim. Está à sua espera.
- Como é que pode ser tão positivo a respeito disso, se nem sequer sabe do que me pretende falar?
- Nem esperava que ele dissesse. É consigo que ele pretende falar e a seu tempo lho dirá. - Plummer fez uma pausa. - Claro está que posso supor.
- Não me diga que tentará obter de mim qualquer informação. Seria arrojo demasiado.
- Meu caro camarada, o Domince não é assim tão rude. Pode ser persuasivo, mas é um pacifista. Receio que você se tenha deixado intoxicar por esses filmes de violência que a televisão americana transmite sem cessar. Ou será que já ouviu falar a respeito dos, cadáveres que estão ocultos por baixo de Westerkek?
- Quais cadáveres?
- Oh, então não sabe? Nos velhos tempos, os paroquianos eram enterrados em criptas por baixo da Igreja. Por causa disso desenvolvia-se um cheiro de tal ordem que os fiéis eram obrigados a munir-se de frascos de Água de Colónia quando assistiam aos serviços religiosos. De facto alguns dos fiéis mais velhos ainda continuam a trazê-la, embora o cheiro há muito tenha desaparecido. Não, Mr. RandalI, não tema que vá parar ao mesmo sítio que esses corpos. - Sorriu sardonicamente. - Pelo menos penso que não terá essa sorte.
Randall teve vontade de lhe falar nos dois rufias que o tinham atacado na primeira noite em que chegara a Amesterdão, num dos sectores daquele mesmo canal que passava junto da Westerkerk, mas pensando bem no caso resolveu calar-se.
Contornaram o templo passando para além das enormes portas de carvalho chapeado, à moda espanhola, que constituíam a principal entrada, e caminharam na direcção de um pequeno bungalow, em perfeito estilo holandês, pintado de verde, com as janelas tapadas por cortinas de pano branco, residência encrustada, por assim dizer, no corpo da Igreja. Subiram os quatro degraus de uma alpendrada até à portinha que arvorava uma tabuleta: COSTERIJ.
-A porta principal está trancada -explicou Plummer.- Aqui é a casa do sacristão.
A porta não estava fechada no trinco, e os dois homens penetraram numa espécie de vestíbulo.
-Vou ver onde é que está o Dominec-disse Plummer, que continuou a penetrar nas dependências da casa, desaparecendo num corredor. Pouco depois Randall ouviu a voz dele e uma voz feminina a trocarem algumas palavras em holandês. Logo a seguir Plummer reapareceu e fez um gesto na direcção de uma grande porta quase em frente.
-De Vroorne está na ala principal da Igreja.
Randall seguiu o jornalista para o interior da Igreja. Era uma coisa tremendamente vasta e cavernosa. Só um dos quatro candelabros de bronze que pendiam do alto tecto em abóbada estava aceso, o que deixava quase todo o corpo da Igreja mergulhado na escuridão. Com excepção da faixa encarnada de uma passadeira que se estendia pela ala central da Igreja, e que formava uma cruz com a outra faixa de passadeira estendida pelo transepto, uma pessoa tinha imediata impressão de severa austeridade. Em vez de bancos, viam-se filas de cadeiras, estufadas em veludo verde e ligadas umas às outras, que faziam face a um estrado, no centro do qual se via um púlpito em madeira. Randall concluiu que devia ser a tribuna do pastor.
Plummer tinha estado a examinar o interior, habituando os olhos à obscuridade, e naquele momento apontava para o centro do templo, pelo meio da floresta de colunas que sustentavam a abóbada.
-Está ali. Na primeira fila, mesmo em frente do púlpito. Randali fixou os olhos, perscrutando a escuridão, e conseguiu finalmente avistar a solitária figura de um clérigo, todo ataviado de negro, como uma mancha de escuridão no meio da escuridão, inclinado para a frente, numa das cadeiras, com os cotovelos apoiados nas pernas e a cabeça metida entre as mãos.
- Está a meditar - disse Plummer num murmúrio respeitoso. A distante figura moveu-se. A cabeça ergueu- se na direcção em que Randall e o jornalista se encontravam. Mas a claridade era fraca e Randall não pôde ter a certeza que de Vroorne os tivesse visto.
Plummer deu uma ligeira cotovelada em Randall.
- Ele sabe que você se encontra aqui, Vamos esperá-lo no gabinete. Não demorará mais de um ou dois minutos.
Voltaram até junto do vestíbulo da casa do sacristão, subiram alguns degraus de uma pequena escada. No patamar, lateralmente, viam-se duas grandes portas com duas tabuletas. Na da esquerda lia-se: WACHT KAMER. E na direita: SPREEK KAMER.
-A Sala de Espera e a Sala de Recepção -disse Plummer, impelindo Randall para a direita. -A Sala de Recepção é o gabinete do Reverendo. Está a ver aquele globo sobre a porta? Acende.se uma luz encarnada quando o Domince não quer ser incomodado.
0 gabinete surpreendeu Randall. Apesar do que Plummer lhe dissera, esperara ir encontrar um gabinete que se ajustasse a um príncipe da Igreja internacionalmente conhecido. Mas o escritório nada tinha de pretensioso, embora fosse confortável. Possuía um divã, urna mesa baixa para café, duas poltronas, uma lareira, uma secretária muito simples com uma cadeira de alto espaldar, duas fileiras de livros espalhados por estantes, alguns quadros representando brasões, um enorme quadro a óleo, de concepção moderna, da última Ceia. Finalmente era iluminado por meia dúzia de candeeiros.
Randall recusou a poltrona que lhe fora apontada por Plummer. Agora a tensão tomara conta de todo o seu ser. Estava preocupado pelo pensamento de que uma tal entrevista viesse a ser considerada e interpretada de maneira errada por Deichhardt e pelos outros editores se soubessem... e com certeza que saberiam. Com antecipação, o Inspector Heldering nunca teria permitido semelhante coisa. Randall não fazia a mais leve ideia daquilo que o Dominee sabia sobre a Ressurreição Dois, mas era óbvio que, através o seu ou os seus espiões, de alguma coisa tinha conhecimento. De qualquer modo, o que continuava a ser um factor desconhecido era se sabia o conteúdo do Novo Testamento Internacional ou alguns pormenores dos achados do Professor Monti em Ostia Antica. Um dos perigos contra o qual Randall se devia manter em guarda era que o eclesiástico lhe quisesse passar uma rasteira, levando-o a fazer qualquer revelação involuntariamente.
Perturbado, lamentando ter-se ido meter no covil do inimigo, Randall foi até à janela situada do lado direito da secretária. Nesse momento a porta rangeu e Randall voltou-se rapidamente, como que reagindo a um choque.
0 Domince Maertin de Vroorne encontrava-se no limiar da porta, trazendo ao colo dois gatinhos siameses aos quais afagava o pêlo.
Era um homem alto, talvez de um metro e oitenta e relativamente novo para a elevada posição que ocupava, talvez quarenta e cinco a quarenta e oito anos - seguramente menos de cinquenta. Envergava uma longa veste talar ou sotaina, que lhe caía a direito pelo corpo seco. Tinha o cabelo espesso e crespo, de uma cor indefinível parecida com o açafrão, que usava comprido. As feições, cadavéricas, revelavam o asceta ou o fanático. Sobrancelhas espessas e em linha contínua, olhos afundados nas órbitas mas de um penetrante azul, faces chupadas, uma boca em que era difícil adivinhar os lábios, que não passavam de um traço severo.
Plummer, que tomara uma posição servil, como um escravo, resolveu fazer as apresentações.
- Domince... eis Mr. Randall. Mr. Randall... apresento-lhe o Dominee de Vroorne.
Sem cerimônias, de Vroorne poisou os gatinhos no chão, deu um passo em frente, estendeu a mão e apertou mole e fugidiamente a dextra apresentada por RandalI, dizendo com voz cava:
- Benvindo a Westerkerk. Foi grande generosidade da sua parte anuir a vir a esta hora tardia. Sem preâmbulos escusados, é evidente que ouvi falar muito de si, e por isso pensei que um encontro só poderia ser vantajoso para ambos. -A sua voz continuava a ser cava, mas à medida em que ia falando tomara uma sonoridade vibrante, arrastadora. - Sugiro que se sente no divã, é o lugar mais confortável do aposento. Poderá até servir possívelmente para vencer a sua resistência.
Um cliente frio, pensou Randall enquanto se afundava no sofá. Frio, urbano, grandiloquente e formidável.
-0 que é que o faz pensar que eu tenha qualquer resistência a vencer? -perguntou Randall.
0' Dominee de Vroorne não respondeu, mas fez um gesto na direcção de Plummer a dizer-lhe que podia ficar no gabinete. Plummer, nervosamenae sentou-se numa das poltronas junto das estantes com livros e pareceu ficar como mais um dos objectos inanimados da sala. 0 Dominee de Vroorne lançou uma olhadela para o tampo da secretária, como para certificar-se de que estava tudo em ordem. Depois, satisfeito, dirigiu-se para a poltrona que ficava em frente do sofá, enrolou a sotaina em volta das pernas e sentou-se, dirigindo-se a Randall:
-Julgo que, como novo membro da Ressurreição Doisseja o que for tal nome idiota possa significar, embora conjecture qual seja a resposta certa para esse código-, o senhor foi já devida e cuidadosamente informado a meu respeito, acerca do meu papel como adversário da ortodoxia religiosa, representada pelos seus patrões. Por conseguinte, tendo ouvido a parte mais tendenciosa a meu respeito e através uma lealdade natural para com as gentes com quem está a trabalhar e para quem trabalha, considera-me certamente como a verdadeira incamação do Diabo. A sua guarda mantem-se rigidamente levantada. 0 senhor mostra-se, aliás compreensivelmente, resistente.
Randall não se pôde furtar a esboçar um sorriso. -Domince, no meu caso não se comportaria da mesma maneira? A minha profissão leva-me a urna total manutenção do sigilo, enquanto o senhor está precisamente devotado a tentar arrancar-me o cioso segredo.
A boca, quase sem lábios, do Reverendo rasgou-se num esgar que talvez pretendesse ser um sorriso.
-Mr. RandalI, tenho outros meios a que recorrer sem ser o de o utilizar para me revelar os fins da Ressurreição Dois e o conteúdo exacto do Novo Testamento recentemente traduzido.
0 senhor é meu convidado, e não me passa sequer pela cabeça perturbá-lo com sondagens a respeito daquilo que jurou manter secreto.
- Agradecido - disse Randall. - Tranquilizado a esse respeito, poderei tomar a liberdade de perguntar o que pretende então de mim?
-Principalmente, que me escute. Emprestando-me solicitamente os seus atentos ouvidos poderá aprender alguma coisa. Em primeiro lugar, é vital que saiba aquilo porque luto e aquilo porque lutam os seus patrões e os lacaios deles. julga que já sabe tudo, mas na realidade nada sabe.
-Tentarei ser receptivo -prometeu Randall. De Vroorne fez estalar os ossudos dedos.
-Ninguém pode ser totalmente receptivo. A mente humana é uma selva de preconceitos, de tabos, de,histórias da carochinha e de dolos. Não, não posso esperar que me abra inteiramente a sua mente para absorver com verdade aquilo que tenho para lhe dizer. Tudo quanto peço é que não ma feche completamente.
-Não está fechada - garantiu Randali, pensando que diferença faria a de Vroorne que fosse assim ou assado.
-Aquilo em que creio, aquilo em que milhões de pessoas em todas as terras do mundo acreditam, e insistem em tomar realidades, é uma nova Igreja, uma Igreja que tenha significado e que se ajuste à sociedade de hoje e às suas básicas necessidades. Ora antes de tudo o mais, tal reforma requer uma nova compreensão das Escrituras, que devem ser lidas à luz dos nossos conhecimentos actuais e do progresso científico. 0 Dr. Rudolf Bultmann, o teólogo alemão, lançou o primeiro apelo às armas na nossa revolução não-violenta. Para ele, era pura perda de tempo procurar um Jesus ligado às coisas da terra. 0 que lhe interessava era procurar a essência, os significados profundos, as verdades contidas na fé da Igreja primitva, limpando de todos os mitos o Novo Testamento, despojando, tal como ele disse, a mensagem do evangelho dos seus elementos inconcretos, não positivos. Para reunir o homem moderno dentro da religião, segundo a crença do Dr. Bultmann, devemos afastar do Novo Testamento o Nascimento do ventre de uma Virgem, os milagres, a Ressurreição, as promessas pueris e não científicas de uma vida excelsa no Céu ou as ameaças de tremendos castigos no Inferno. Como orgulhosos herdeiros de todos os investigadores honestos, desde Galileu e Newton a Mendel e Darwin, achamos pouco plausível aceitar, tal como Allan Watts sublinhou, «a herança do Pecado Original desde Adão, a Imaculada Conceição de Maria, o Nascimento de Jesus de um ventre Virginal, a Crucificação para Remissão dos nossos pecados, a Ressurreição física de Cristo, o Regresso de Jesus de entre os mortos, a sua corpórea Ascensão ao Céu e a nossa ressurreição dentre os mortos no dia do juizo Final, um julgamento que nos amarra física e espiritualmente ou à bem-aventurança eterna ou às eternas penas infernais». De modo a que possa crer, do que o homem moderno precisa e aquilo que pode aceitar como plausível é a mensagem de um homem sábio ou um mestre, que poderá ter-se chamado Jesus, uma mensagem que ajude o homem moderno a enfrentar a realidade da existência-ou, tal como um teólogo do Oxford resumiu o pensamento do Dr. Bultmann, levar a cada pessoa uma mensagem «por meio da qual possa viver de harmonia com o seu ser, um ser que sabe que morrerá e cuja certeza o leve, por conseguinte, a viver com autenticidade». Para encurtar, parece-me não ser descabido parafrasear algo dito por Renan, esclarecendo que temos que produzir uma pessoa que não seja possuída pela fé, mas sim que possua fé. Fui suficientemente claro, Mr. Randall?
-Plenamente, Dominec.
-Atingimos uma fase em que julgo ser necessário, a fim de estarmos de acordo com o nosso tempo, fazermos uma revisão mais radical às Escrituras, se quisermos que o evangelho seja um instrumento de utilidade para ajudar e para salvar o homem moderno. Crer em Jesus Cristo como um Messias ou como um ser histórico já não se reveste hoje de importância vital para a religião. 0 que assume a máxima importância é o reler, com uma nova dimensão, a mensagem social dos primitivos cristãos. Não importa quem proferiu a mensagem ou quem a escreveu. 0 que interessa é o significado que a mensagem possa ter hoje, especialmente quando ela estiver liberta dos seus elementos míticos e sobrenaturais e espremida e purificada para deixar os seus resíduos de amor do homem pelo homem e da sua crença na fraternidade. E tudo isso me leva de encontro aos conservadores, aos defensores do velho Cristo e dos velhos mitos, aos quais o vosso plano se prepara para representar...
- Como é que sabe que eles são conservadores? - interrompeu Randall. -Como é que pode ter a certeza de que eles não estejam também prontos para uma modificação drástica?
- Porque os conheço pessoalmente, a todos eles, e sei muito bem aquilo que defendem, Não estou a falar dos vossos cinco editores, os promotores da nova Bíblia. Esses são apenas desprezíveis. 0 interesse. deles é meramente comercial. As únicas Escrituras que lhes interessam estão nos livros do haver, dos lucros fáceis, e a única religião que professam é a do evangelho das contas bancárias. Para sobreviverem precisam do apoio dos vossos Traut" marins, Zacherys, Sobriers, Riccardis, Jeffries, bem como dos conselhos da Igreja ultrapassada, bota-de--clástico, e das Sociedades da Bíblia. São esses os homens cuja crença em Cristo, cuja administração e protecção do Deus deles, tem estultificado e retardado a verdadeira religião e a verdadeira Igreja durante séculos. Eles sabem muito bem que está morta a razão básica para a religião que professam, mas continuam a pregar falsos temores e esperanças falsas num só chorrilho ao mesmo tempo que fazem baixar uma cortina de ritual e dogma que os oculta dos verdadeiros problemas dos seres humanos reais. Tillich disse-nos que a verdadeira teologia deve ser ensinada a respeito daquilo que nos interessa fundamentalmente: o significado da nossa existência, a significação da vida. Não obstante, esses teólogos ortodoxos ignoram deliberadamente tais coisas. Tal como dizem os meus amigos do Centro pro Unione, em Roma, esses teólogos são os que querem preservar o velho clube religioso, o «status quo» ortodoxo do inevitável processo da dissolução. A menos que eles resolvam reformar, ou que se rendam a nós para reformarmos, o mundo passará a consistir de novas gerações sem religião, sem fé, sem espírito para a sobrevivência humana que só se pode adquirir e desenvolver por meio da fé.
- Tem vindo a falar de uma depuração da Bíblia - fez notar Randall. - Mas como é que pensa reformar a organização da própria Igreja?
- Quer dizer, de uma maneira prática?
- Precisamente, de uma maneira prática.
- Para ser conciso.. . - e de Vroome deixou a frase em suspenso, fazendo uma festa, distraído, no gato siamês que se lhe roçava pelas pernas, como se estivesse a avaliar o que dizer. Logo a seguir retomou o fio à meada. - ... Bom, a nova Igreja que eu advogo será uma Igreja única, tanto protestante como católica. Deverá ter uma unidade cristã. Prevalecerá nela um espírito ecum& nico-um mundo numa Igreja. Essa Igreja não promoverá uma fé cega, nem milagres, nem celibato, nem uma autoridade irrefutável para o seu clero. Será uma Igreja que rejeitará as riquezas, que gastará o seu dinheiro com as pessoas e não com a construção de catedrais maciças como a Westerkek, a Abadia de Westminster, Notre Dame ou S. Patrício, em Nova lorque. Funcionará em comunidade, por meio de pequenos grupos que não serão submetidos a sermões Mas que desfrutarão de celebrações espirituais. Integrará minorias, funcionará dentro do reconhecimento da igualdade feminina, promoverá acção social. Apoiará o controle da natalidade, o aborto legal, a inseminação artificial, o auxílio psiquiátrico, a educação sexual. Opor,se-á aos governos e indústrias privadas que se dedicam ao negócio de matar, de oprimir, poluir e explorar. Será uma Igreja de compaixão social, e o seu clero e membros agirão e viverão consoante os ensinamentos do Sermão da Montanha, não se limitando apenas a segui-lo como um ideal inatingível.
-E não pensa que os teólogos e editores da Ressurreição Dois queiram igualmente essa espécie de Cristianismo?
As comissuras da boca de de Vroome arquearam-se mais uma vez num arremedo de sorriso.
- Pensa que eles querem o mesmo que eu, o mesmo que deseja a grande massa do povo? Se assim é, interrogue~os. Porgunte-lhes se não é apenas para manterem as vias tradicionais e a hierarquia que eles se opõem ao meu movimento. Pergunte-lhos porque é que em assuntos de ética cristã se mostram sempre vacilantes entre o compromisso e o mais acirrado fanatismo. 0 compromisso é igual a indolência e o fanatismo excesso de zelo -o que significa ausência de amor. Na hora que vivemos há uma outra alternativa: solucionarmos as imediatas necessidades dos nossos companheiros e vizinhos. Pergunte aos seus associados se estão prontos a acabarem com a sua Igreja de ensinamentos dogmáticos em troca de debates livres. Pergunte"lhes o que é que eles estão a fazer - agora - a respeito de relações entre raças, pobreza, distribuição desigual de riquezas. Pergunte-lhes se estão prontos a acabarem com as suas rançosas instituições para se integrarem numa comunidade cristã universal, onde o ministro ou o sacerdote não são pessoas especiais, onde perdem a categoria de dignitários, passando a ser humildes servidores para ensinarem a vida espiritual ao povo que os emprega e a quem a Igreja pertence. Mr. Randall, faça-lhos estas perguntas e quando obtiver as respostas compreenderá aquilo que eles não conseguem compreender: que o principal problema da vida não é a preparação para o que virá depois da vida terminar... é instaurar o reino do Céu aqui na Terra, fornecê-lo a partir de já.
Dominee de Vroome fez uma pausa, fixou os olhos em Randall durante alguns segundos c prosseguiu, medindo cautelosamente cada palavra proferida.
-Quanto a essa Bíblia secreta que os seus amigos estão a fabricar-seja o que for que ela contenha, sejam quais forem as coisas boas que tenha para oferecer, seja qual for a sensação que possa criar-não é um produto de amor. Os motivos que apoiam a sua publicação são tão insulsos como pecaminosos. Para os editores, o motivo é o puro lucro. Para os teólogos, é essencialmente desviar milhões de pessoas da reforma da religião chá e sã, hipnotizá-las ou levá"las pelo medo a regressarem ao velho desespero de uma Igreja transportada para o país dos sonhos, uma Igreja mítica, ritualizada. Asseguro-lhe que com a nova Bíblia eles esperam matar o meu movimento e varrer de uma vez por todas a Igreja clandestina. Com essa Bíblia, esperam fazer reviver a religião da vida futura num outro mundo ideal e impraticável, pondo termo à religião do presente, do agora, da vida terrena, Sim, Mr. RandalI, os motivos deles são insulsos e pecaminosos...
Randali tinha que interromper aquela torrente de palavras. -Domince desculpe mas tenho que interrompê-lo. Penso honestamente que o senhor está a ir longe demais. A sua razão de queixa a respeito dos editores pode ser válida, embora pense que os está a julgar com demasiada severidade. Seja como for, nem tentarei garantir se são ou não sãos os motivos que os impelem. Mas sem dúvida que tenho de saltar em defesa do resto do pessoal envolvido no projecto, e acredito que essas pessoas são defensoras devotas, honestas e sinceras daquilo que consideram como um produto da revelação divina. Tomemos o exemplo do Dr. Bernard Jeffries, de Oxford. Foi o primeiro dos teólogos com quem me encontrei. Creio sinceramente que dedicação dele ao projecto deriva tão somente da devoção incontestável que o arrasta para a erudição e para o espirirualismo...
Dominee de Vroorne levantou uma das mãos.
-Mr. RandalI, não profira nem mais uma palavra. Disse para tomarmos como exemplo o Dr. Bernard Jeffries... pois bem, tornemo-lo como um perfeito exemplo do que diz respeito à apreciaçáo que eu estava a fazer em globo. Não negarei que é um homem dedicado à erudição e um perito na matéria. Nem sequer porei em dúvida que seja um homem de profunda convicção religiosa, Mas não são esses os principais motivos que o levam a participar na produção da nova Bíblia. Existe um outro motivo, e esse totalmente de foro político.
- Político? - espantouse Randall. - Não posso acreditar em tal.
-Não pode? Talvez possa. já ouviu falar do Conselho Mundial das Igrejas?
-Já. Meu pai é uni pastor. Foi a ele que ouvi falar nisso. -Mas conhece alguma coisa a respeito do Conselho?- insistiu tenazmente de Vroome.
Randall hesitou.
-É... se bem me lembro... é uma organização internacional que engloba os mais importantes grupos protestantes. Não me posso recordar de outros pormenores.
-Permita-me que lhe avive a memória, e ao fazê-lo, que lhe pinte ao mesmo tempo um retrato claro do seu abnegado e altruísta Dr. Jeffries. -A medida em que ia falando, conforme Randall notou, o semblante do clérigo holandês tomara-se mais frio e a vibrante voz mais implacável. - 0 Conselho Mundial das Igrejas, com sede em Genebra, é composto por 239 Igrejas protestantes, ortodoxas e anglicanas pertencentes a noventa países. Essas Igrejas agrupam em todo o mundo 400 000 000 de membros.
0 Conselho Mundial é a única organização religiosa, fora de Roma, com um controle e potencial autoridade capaz de constituir um desafio para o Vaticano. Todavia, desde a sua fundação nesta cidade em 1948, e até agora, de nenhuma forma manteve, fosse quando fosse, qualquer espécie de semelhança com o Vaticano. Tal como o primeiro secretário"geral anunciou na primeira assembleia: «Nós somos um Conselho de Igrejas, não o Conselho de uma Igreja indivisível». E tal como se disse no terceiro congresso, realizado na índia: «0 Conselho Mundial das Igrejas é uma associação de Igrejas que professa o credo que, de acordo com as Escrituras, Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e o Salvador». Resumindo, o Conselho é um corpo formado por várias Igrejas ligadas entre si pelos laços mais livres possíveis, Igrejas com diferentes ambientes sociais e raciais, procurando uma comunicação entre elas, buscando uma unidade cristã, lutando para estabelecer um consenso de fé e acção social comuns. No espaço entre os seus congressos, que se realizam de cinco em cinco ou de seis em seis anos, a sua política é incrementada por um Comité Central e por um Comité Executivo ' Ora, as duas posições mais activas e responsáveis dentro da organização são os cargos de secretário-geral-um trabalho permanente e compensado monetariamente -e de presidente-que é um posto meramente honorário. Dos dois, o de secretário-geral é de grande influência-dado que governa as duzentas pessoas do pessoal agregado à sede de Genebra e que funciona como um oficial de ligação entre as Igrejas membros, sendo o porta-voz do ConselhG para todo o mundo.
-No entanto, não é uma figura designadamente autoritária, segundo julgo, pois não?
-Tal como as coisas hoje estão, não, absolutamente não.
0 secretário-geral não possui poderes judiciais. Repito, possui grande influência e um poderio potencial para manejar os cordelinhos. É aqui que vamos pois enquadrar o seu espiritual e altruísta, Dr. Bemard Jeffries. A hierquia da Igreja ortodoxa-os bispos e eclesiásticos de maior projecção, os bem entrincheirados conservadores-possuem um plano bem arquitectado para urna votação maciça na próxima assembleia geral do Conselho Mundial das Igrejas, a fim de instalarem o Dr. Jeffries como próximo secretário-geral em Genebra, e através dele planeiam reestruturar o Conselho Mundial para o transformarem num Vaticano protestante, que terá Genebra como centro tentacular. Uma vez o Dr. Jeffries eleito, os conservadores passarão a governar por édito e promulgação, levando os aderentes de todas as Igrejas de volta ao redil da fé cega, pondo termo para sempre às esperanças de uma fé viva, vital, popular, livre. E como é que a cabala ortodoxa levará a efeito tal programa? Por meio da excitação, da propaganda e alarido engendrados pela nova Bíblia que está a ser preparada pelo pessoal da vossa Ressurreição Dois.
Escutando aquela verborreia incisiva, Randall teve uma vaga ideia de ter já ouvido anteriormente o nome do Dr. Jeffries ligado com o Conselho Mundial. Tentou recordar-se a quem ouvira a citação, e de repente lembrou-se. Em Londres, da boca de Valerie Hughes, a noiva do Dr. Knight. Mas nessa anterior referência à candidatura do Dr. Jeffries a secretário-geral do Conselho houvera uma certa lógica. Naquele momento, segundo a versão do Reverendo de Vroorne, os motivos para a candidatura eram apresentados a uma nova luz que tinha o seu quê de sinistra.
Randall, perturbado, fez a pergunta que lhe estava a queimar o pensamento:
-E o Dr. Jeffríes tem conhecimento desse plano?
- Se tem conhecimento? Pertence à primeira linha do esquema, da trama, colaborando activamente e politícando em segredo para ser promovido a secretário"geral. Possuo documentos -cópias da correspondência trocada entre Jeffries e os seus conspiradorespara apoiar tudo aquilo que lhe disse.
-E pensa que ele poderá ascender ao cargo?
-Ascenderá se a vossa nova Bíblia lhe der suficiente publicidade, lhe conferir distinção e o projectar para uma nova estatura difícil de desafiar.
-Vou voltar novamente a fazer-lhe a mesma pergunta e pretendo que me responda directamente - disse Randall. - Pensa que o Dr. Jeffries poderá ascender ao cargo?
- Não, - respondeu de Vroorne secamente. Voltando a esboçar o seu sorriso. -Não, não o conseguirá. E eles também não conseguirão levar as suas intrigas a bom termo.
- Porque não?
- Porque eu os impedirei. Fá-los-ei parar por meio da demolição do trampolim através o qual o Dr. Jeffries pensa pular para o poder -a vossa nova Bíblia - , desacreditando-a e destruindo-a antes que possam anunciá-la e pô4a em circulação entre o público. Uma vez isso fcito, haverá outro secretário-geral para o Conselho Mundial das Igrejas. Fixe bem, Mr. Randall, estou disposto a ser o futuro secretário -geral.
Randall não pôde esconder o seu espanto.
- 0 senhor? Mas pensava que era contra a autoridade eclesiástica e...
- E sou, - interrompeu de Vroome com brusquídão. - É essa precisamente a razão porque é imperativo que seja o próximo secretário-geral do Conselho Mundial. Precisamente para proteger a organização da fome pelo poder. De modo a preservá"la para a unidade cristã. Para a tomar ainda mais sensível à modificação social.
Randall sentia~se confundido. Não podia discernir bem se o Domince era honesto nas virtudes que apregoava ou se não passava de um ambicioso, tão politiqueiro como aqueles a quem se opunha com tanta tenacidade. Mas havia mais, de Vroome acabara de falar na necessidade de destruir a nova Bíblia e Randall sentia que tinha que entrar em confrontação com o Dominee no respeitante à irracional determinação que mostrava para a destruição de um documento tão excepcional.
- Quando a mim, nem sequer estou disposto a comentar quem deverá ou não ser o próximo secretário-geral do Conselho Mundial das Igrejas, mas sinto ser meu dever tecer comentários à atitude que está a tomar contra a versão revista do Novo Testamento, documento que nunca leu e de que sabe tão pouco ou nada. Pondo de parte as vantagens ou desvantagens políticas, na verdade não posso ver como é que poderá destruir-foi exactamente a sua palavra, destruir-uma Bíblia que poderá levar conforto a milhões de pessoas, às quais impregnará de uma nova fé e de uma nova esperança. Uma obra que poderá ser promotora de fratemidade e amor, os verdadeiros fins que o senhor procura através do seu movimento. Como é que pode pensar que será moralmente defensável destruir o Verbo uma vez que nada sabe sobre a sua mensagem?
De Vroorne franziu o cenho.
-Não preciso de saber antecipadamente o conteúdo da mensagem, dado que conheço muito bem os seus mensageiros.
-Que quer isso dizer?
-Sei tudo o que é preciso saber-se a respeito das pessoas envolvidas na descoberta, na autenticação, na produção e na promoção da vossa Bíblia.
Pela primeira vez Randall começou a perder o domínio dos
seus nervos.
-0 que é que pretende insinuar com isso?-perguntou com uma ponta de azedume. -já conheci o pessoal mais importante ligado ao projecto. Algumas dessas pessoas conheço-as agora excelenternente. A maioria, sou positivo a respeito do facto, são gente decente, sincera, honesta, A maior parte dessas pessoas possui manifesta integridade e os propósitos que as guiam são perfeitamente sãos. E o senhor de modo nenhum pode conhecer essas pessoas tão bem como eu.
-Na verdade?-disse de Vroorne em tom divertido. Levan tou-se. -Nesse caso, vamos lá ver aquilo que o senhor sabe... e aquilo que eu sei... a respeito do vosso devotado rebanho.
Enfurecido pela segurança manifestada pelo pastor, Randall fez um esforço para se conter, enquanto observava o Dominee de Vroome a dirigir-se para a secretária. Metendo as mãos nas profun-didades da sotaina, o clérigo tirou uma chave com que abriu uma das gavetas, extraindo uma pasta de arquivo, que abriu e colocou em cima da secretária.
De Vroorne sentou-se, tirou um maço de papéis de dentro da pasta, folheouo deliberadamente durante um segundo, depois ergueu o maço no ar para Randall ver.
-Está aqui o meu dossier sobre o pessoal ligado à Ressurreissão Dois. Demasiado para o senhor poder ler. -Colocou o maço dentro da pasta de arquivo, colocou os cotovelos em cima do tampo e repousou o queixo sobre as mãos.-Posso dizer-lhe em poucos minutos tudo o que precisar a respeito do vosso rebanho fiel.
- Poderão muito bem ser mentiras.
- Toma-se apenas necessário que se dirija a cada uma das pessoas de que eu falar para poder verificar se é verdade ou mentira aquilo que lhe disser. De facto, até o convido a proceder dessa maneira.
- Continue - disse Randall com acrimónia.
- já falámos do seu abnegado Dr. Bernard Jeffries. - 0 seu tom continuava calmo, como quem fala de assuntos de somenos importância. - Vamos lá então passar em revista alguns outros d.) v3sso círculo. Bom, falemos por exemplo do vosso George L. Whecler, o poderoso e rico editor religioso americano, que o contratou a si para fazer a pubilcidade do projecto.
0 que é que o senhor sabe a respeito dele? Sabe que esse grande capitão da indústria, esse tubarão do capital estava à beira da bancarrota quando foi obrigado a entrar em negociações de venda da editorial a Mr. Towery, presidente do cartel Empresas Cosmos? Sim, não faça essa cara de espanto porque é a pura verdade. Mas o negócio ainda não está concluído. Depende do êxito da publicação da vossa nova Bíblia. Para Wheeler, a nova Bíblia terá de ser um sucesso se quiser sobreviver no negócio e manter a sua posição social de estadão. Quanto a Towery, o seu único interesse ao tomar a casa editora de Wheeler cifra-se em adquirir prestígio à custa da nova Bíblia, que o projectará para as alturas no seu destacado círculo Baptista. Foi essa a razão porque Wheeler o resolveu contratar a si -para satisfazer Towery e para se salvar a si próprio com a certeza de que a nova Bíblia se tomará a mais famosa na história.
- Não me está a dizer nada que eu não soubesse já - disse RandalI, imensamente aborrecido com a arrogância de de Vroorne, e sem querer admitir que tinha ouvido algo de novo. Mas a verdade é que desconhecia que a sobrevivência de Wheeler como editor dependesse essencialmente do êxito do Novo Testamento Internacional.
-Não lhe disse nada que não soubesse já?-repetiu de Vroorne.-Talvez possa melhorar os meus cadastros. Vamos lá falar da vossa nova Bernardette de Lourdes, a sua simplíssima secretária Miss Lori Cook. 0 senhor esteve esta manhã no hospital, o Hospital da Universidade Livre, e testemunhou os resultados de um milagre, não é verdade? A vossa Miss Cook que desde a meninice era uma estropiada dos membros inferiores teve ontem uma visão e recuperou o uso normal do andar. Vejam lá! Lamento imenso em relação a si e em relação à moça, porque a verdade é simples como a água-Míss Cook sempre se pôde locomover normalmente. Mas posso dizer-lhe, como consolo, que ela não é uma traidora nem uma especuladora materialista com o vosso projecto. Somente uma mistificadora doentia, neurótica, patética. Com sentido prático das realidades, tornou-se fácil verificar a história dela na América. Bastou urna chamada telefónica para um pastor do nosso movimento, pastor de urna Igreja situada nas vizinhanças do local onde nasceu e vivia Miss Cook, para a verdade ser revelada. A documentação legal vem a caminho. Temos provas das proezas atléticas de Miss Cook no liceu, proezas que exigiam pernas firmes. A verdadeira aflição dela cifrou-se sempre no facto de não ser atraente, de nunca ter recebido atenções nem amor. Por isso, quando pretendeu juntar"se ao vosso projecto, deliberou fingir de coxa para conseguir afecto e piedade. Recentemente, viu que podia ainda obter mais atenções e indulgência brincando às Bernardettes, de modo que enveredou decididamente pelo desempenho de tal papel. Ela está curada, está a ser objecto de extremas atenções, de cuidados especiais e de consideração. Amam-na. Em breve será uma legenda viva. Mas, Mr. RandalI, não faça dela uma lenda para exaltar a publicidade da nova Biblia ou então seremos forçados a expô-la a ela, e a si, em público, De modo nenhum quereria ferir a pobre e desamparada criança. Nem sequer lhe peço para acreditar nas minhas palavras...
-Não acredito... -murmurou Randali, abalado pela revelação de de Vroome.
-...Só lhe peço que não seja completamente tolo para utilizar o caso de Lori Cook na sua campanha de promoção. Se o fizer, creia que lamentará. - De Vroome apanhou um dos siameses do chão e colocou-o no colo, depois estendeu a mão para o maço de papéis. - Quem quer que seja o próximo do seu rebanho em que eu fale? Ah, talvez aqueles com quem se encontrou na viagem que fez a semana passada. Pensa também que esses são pessoas de confiança e devotas? Quer que lhe fale deles?
Randall ficou calado.
- Quem cala consente - disse de Vroorne. - Pois bem.
0 senhor esteve em Mainz, na Alemanha. Passou o dia com Karl Hennig. Um companheiro franco, aberto; excelente pessoa esse impressor alemão, hem? Um devoto de Gutenberg e de livros raros, não é verdade? Mas é mais do que isso. Trata-se do Karl Hennig que na noite de 10 de Maio de 1933 se juntou a milhares de outros estudantes nazis para a monumental parada à luz de archotes através as ruas de Berlim, manifestação em massa que terminou na praça da Unter den Linden, onde Karl Hennig e os seus camaradas, grandes admiradores e admirados por Goebbels, queimaram numa pira monumental milhares de livros, livros escritos por Einstein, Stefan Zweig, Thomas Mann, Freud, Zola, Jack London, Havelock Ellis, Upton Sinclair, etc. Sim, precisamente o mesmo bonacheirão Karl Hennig, devotado impressor alemão e queimador nazi de livros. Quando a esta informação, devo-a ao meu amigo aqui presente, Mr. Cedric Plummer-e a mão de de Vroome apontou para o sumido jornalista inglês.
Atónito pelo que ouvia, Randall quase que se esquecera da presença de Plummer. Olhou então para o local onde ele estava e viu-o corar como se tivesse recebido um excelso elogio, ouvindo-o também murmurar com voz de falsete:
- É a pura verdade. Tenho o negativo de uma velha fotografia do jovem Henning a lançar livros para a fogueira.
Nesse momento os recentes acontecimentos de Mainz e Francoforte começaram a delinear-se para RandalI, uma espécie de ajustamento de peças do quebra-cabeças. Provavelmente Hennig recusara-se a ver Plummer até saber a razão da visita do jornalista. Depois disso, encontrara-se com Plummer em Francoforte. Era agora clara a razão para o encontro: chantagem.
- Porque raio essa pretensão de lançar o descrédito sobre Hennig? - perguntou Randall a Plummer em tom verberativo. - 0 que é que você ganhará com isso?
-Um exemplar antecipado da vossa nova Bíblia -respondeu Plummer, com os lábios arreganhados num esgar.-Um preço baratíssimo para recuperar o negativo de uma velha fotografia pouco edificantc.
0 Domince de Vroorne moveu a cabeça num gesto de assentimento.
- Exactamente - disse. - 0 nosso preço é um exemplar da nova Bíblia.
Randall afundou-se no sofá, incapaz de falar.
-Vamos lá falar do curriculum de mais dois dos vossos colaboradores e terminaremos -continuou infatigavelmente o eclesiástico.-Vamos lá avaliar o vosso notável e objectivo cientista, o Professor Henri Aubert, do processo de estabelecimento de datas pelo carbono-14. 0 senhor esteve em Paris com ele, e ele contou-lhe com certeza como a descoberta que autenticou lhe restaurou a fé, a humanidade, e o seu desejo de dar à esposa o filho que ela há tanto desejava, não foi? Contou-lhe que a mulher já transporta no ventre o filho dos dois, não é verdade? Mentiu-lhe.
0 Professor Aubert mentiu,lhe. Ele é fisicamente incapaz de poder dar a sua mulher o almejado filho. Perguntará porquê? Porque há anos se submeteu a uma vasectomia com êxito total. Acreditava firmemente no controle da natalidade e preferiu ser esterilizado por um hábil cirurgião, tem os canais deferentes que transportam o esperma dos testículos para as cavidades seminais cortados, obstruídos. É óbvio que dessa forma deixam de existir quaisquer possibidades de se desencadear o processo de procriação. 0 vosso Professor Aubert não é digno de confiança. Enganou"o a si. É impossível poder ter dado um filho à mulher.
-Mas fê-lo! - exclamou Randall. - Fui apresentado a Madame Aubert e vi que estava grávida.
De Vroome arvorou de novo o seu indulgente sorriso. -Mr. RandalI, eu não disse que Madame Aubert não podia engravidar. Só disse que nunca podia estar grávida do Professor Aubert. Está grávida? Claro que sim, está grávida ... mas engravidada pelo amante dela, por Monsicur Fontaine ... Não faça essa cara, de espanto... sim, exactamente o mesmo Monsieur Fontaine editor francês da vossa Bíblia, o homem sem mancha. Quanto ao Professor Aubert, toma-se óbvio que ele fecha os olhos a tal coisa, mas não devido ao seu desejo de ter um filho ou de manter junto de si a esposa. Simplesmente porque era contraproducente um escândalo na altura em que ele e um colega foram nomeados como candidatos a um Prêmio Nobel da Química pela descoberta do processo de datação pelo carbono, que têm vindo a desenvolver há tantos anos. 0 seu Professor Aubert coloca as honras acima do orgulho... e da veracidade. Com certeza que não espera que acredite na palavra de um homem como ele, seja em que assunto for. Quanto a si estaria disposto a acreditar?
Randall não queria dar crédito a de Vroorne, mas deixara de ter forças para poder desafiar o advogado do Diabo. Aguardou.
- Guardei para o fim a mais pessoal e significativa informa-
çio - disse de Vroorne. - Por muito doloroso que seja para ambos, tenho que falar agora de Miss Ãngela Monti, de Roma, a sua nova apaixonada.
Randall sentiu um impulso que lhe dizia para se levantar e ir"se embora. Mas, por outro lado, sabia que era preferível ouvir aquilo que ia ser dito.
-Evidentemente, que o senhor teve um encontro com o pai dela, o Professor Augusto Monti, que lhe forneceu todas as informações necessárias relativas à nova Bíblia, não é verdade? -perguntou de Vroome. Mas não esperou pela resposta. -Mas talvez não o tenha conseguido ver, tal como outras pessoas não conseguiram recentemente. Será? Bem, inclino-me a pensar que de facto não se encontrou com ele. E porque não? Porque o professor está sempre a ser enviado para escavações longínquas, para o Médio Oriente e para outros locais. Enviado por superiores que se sentem invejosos da sua descoberta, hem? Não é o que, Angela diz a toda a gente, incluindo-o a si? Perdoe-me a rudeza, mas Miss Monti mente. Onde estará então o Professor Monti? Está em Roma, algures num subúrbio de Roma, escondido, caído em desgraça, em aposentação compulsória ordenada pelo governo. Porquê? Porque o governo italiano soube que o Professor Monti, nos preparativos para as escavações que levaram à descoberta, se comportou impropriamente. Em vez de arrendar o local para a escavação, enganou os pobres camponeses que eram os donos do terreno e comprou-lhes o título de propriedade por urna tuta e meia de modo a tirar proveito pessoal, de modo a poder ficar com cinquenta por cento do valor do seu achado em vez de o dividir com os verdadeiros proprietários. Enganou deliberadamente os campónios. Depois do Professor Monti ter feito a descoberta, os antigos donos do terreno dirigiram-se ao Ministério da Educação Pública e contaram a história. Foram reembolsados. 0 escândalo foi abafado. 0 Professor Monti foi silenciosamente retirado do seu cargo na Universidade e forçado a manter-se na sombra, oculto numa aposentação compulsória.
Randall empertigou-se, procurando conter a ira que o avassalava.
-Não passa de um acervo de mentiras. Não acredito numa só palavra do que disse.
0 Dominee de Vrome encolheu os ombros.
-A sua fúria não se deve voltar contra mim. Ãngela Monti é a única pessoa com quem deve estar zangado. É ela quem lhe tem ocultado a verdade, não apenas para proteger o miserável progenitor mas também para que o senhor ajude a promover internacionalmente o nome do pai. Se ela o puder seduzir a si para que lhe transforme o pai no nome de maior nomeada do projecto, então o professor poderá emergir da sombra, terá poder para desafiar o governo e sairá a terreiro para colher os louros da glória. Em tal caso o governo italiano sentir-se-á tão intimidado que não terá vontade de revelar o mau procedimento do Professor Monti, terminando a sua punição Miss Monti mente-lhe. Está a utilizá-lo em proveito do pai. Sinto muito, mas a verdade é a verdade.
-Continuo a não acreditar.
-Se é essa a sua atitude, então pergunte directamente a Miss Monti.
-É precisamente o que penso fazer.
-Não vale a pena maçar-se a perguntar-lhe para confirmar ou negar o que lhe acabei de contar. Ela voltará a mentir-lhe. Em vez disso, peça~lhe com insistência para que ela lhe arranje um encontro com o pai. Não vacile.
-Não procederei assim com esse ardil - indignou"se Randall. -Então nunca saberá a verdade.
-Existem muitas verdades, tal como existem muitos pontos de vista e muitas interpretações diferentes sobre aquilo que por vezes se vê ou ouve.
0 Domince de Vroorne abanou a cabeça.
- No caso de cada uma das pessoas que eu mencionei só existe uma verdade. No velho mito, Pâncio Pilatos perguntou a Nosso Senhor, «Qtizd est veias? -Qual é a verdade?-. No caso que lhe estou a expor, se, tivesse que dar uma resposta a Pilatos, converteria as letras da pergunta dele num anagrama, «Est vir qui adest» -o que traduzido significa: «É o homem que está na sua frente». Sim, Mr. RandalI, aquele que está na sua frente neste gabinete, Maertin de Vroorne, possui a verdade. Se o senhor investigar como eu investiguei, se procurar a verdade como eu busquei, aprenderá a confiar e a crer em mim. Se o fizer, poderá então avaliar porque lhe solicitei esta entrevista.
-É isso mesmo que tenho estado à espera de saber. Porque é que me pediu que viesse esta noite aqui?
- Precisamente para tentar mostrar-lhe a sinceridade da nossa causa e a insinceridade das pessoas ligadas à Ressurreição Dois. Para lhe dar a conhecer que o senhor está a ser mal informado, que o estão a utilizar para fins indignos. Para o fazer compreender que o empregaram para ser o instruniento, a alavanca que forçará as portas do êxito-o senhor e muitas outras pessoas de boa-fé na Ressurreição Dois-em favor de um sindicato comercial de editores e de um bando de sectários religiosos inflexíveis e de pensamentos completamente errados. Pedi-lhe para vir aqui a fim de procurar conquistá-lo para a nossa causa, para que se junte a nós. Mas, nos meus esforços para lhe abrir os olhos, para lhe fazer ver a luz, julgo, pelo contrário, que só consegui antagonizá-lo.
-0 que é que o senhor na verdade pretende de mim? perguntou Randall com urna nota de violenta insistência.
- Os seus serviços e o seu gênio profissional. Necessitamos dc si aqui, ao nosso lado, para nos ajudar a contradizer a propaganda da Ressurreição Dois e a promover o nosso esforço para restaurarmos a religião e a fé entre o povo de todo o mundo. Estou-lhe a fazer uma oferta generosíssima, Mr. Randall-a oportunidade de abandonar um barco prestes a afundar-se por uma embarcação segura, em perfeitas condições de navegabilidade; a oportunidade para preservar o seu futuro e a sua integridade; a oportunidade para acreditar em algo. Quanto a dinheiro, os meus associados e eu podemos oferecer-lhe tanto ou mais do que aquilo que lhe pagam Wheeler e as suas coortes. Terá tudo a ganhar e nada a perder.
Randall levantou-se.
-Por tudo aquilo que ouvi, nada terei a ganhar, pelo contrário será tudo a perder. Possuo fé nas pessoas com quem estou a trabalhar. Não tenho fé em si. Tudo o que ouvi não passou de mexericos, nada de factos essenciais. Ouvi coisas que falavam de chantagem, não palavras de decência. Quanto à sua causa, não passa de uma promessa. Quanto à Ressurreição Dois, trata-se de uma verdadeira realização. Quanto a si, propriamente dito Randall olhou para o homem que estava na sua frente imóvel.
0 rosto do pastor não tinha o mínimo movimento, como se se tratasse de uma máscara de ferro que tivesse afivelada. Randall pensou se ousaria continuar, mas decidiu-se.
- ...Não o julgo menos ambicioso ou egoísta do que aqueles para quem trabalho, mas penso, isso sim, Dominee, que é muito mais fanático. Poderá encarar isso como uma necessidade fundamental e para um fim bom, mas o facto é que nunca poderia trabalhar para um homem tão justo, tão inflexível, tão certo de que é a única pessoa detentora da verdade. Não me podia transformar num vira-casacas e ajudá-lo a destruir a única coisa em que até agora fui capaz de crer: a Palavra... Sim, a Palavra que vamos transmitir ao mundo. É uma mensagem de que o senhor nada conhece e, se depender de mim, nem uma só frase saberá dela até que, a salvo de ataques perniciosos, esteja entregue ao mundo a que pertence. Boa-noite, Domince. Posso desejar-lhe boa-noite, mas não boa-sorte.
Suspenso, sem se atrever a respirar, à espera que a tempestade se desencadeasse, Randall sentiu-se desapontado por verificar que a calma era absoluta. De Vroorne limitava-se a abanar a cabeça num movimento oscilatório. Por momentos sentiu-se como um mau actor que tivesse recitado mecanicamente uma tirada melodramática. Ter-se-ia julgado um tanto pateta se não fora existirem razões para as suas palavras de crítica. De Vroorne tinha fustigado pessoas que não se podiam defender - Jeffries, Wheeler, Lori Cook, Hennig, Aubert, até Ãngela e o pai. 0 Dominee mostrara-se uma pessoa rude e vingativa, daí Randall não se sentir envergonhado por ter perdido o controle.
- Basta, basta - pronunciou de Vroorne. - Nem sequer tentarei convencê-lo, mostrar-lhe como está enganado a meu respeito e a respeito da minha causa, nem o erro em que persiste a respeito daqueles que tão lealmente defende. Esta noite dissemos já tudo quanto havia a dizer. Deixemos as coisas no pé em que estão. Mas lembre-se do que lhe vou dizer: pu-lo de atalaia relativamente a certos factos a respeito dos seus colegas e daquilo que eles representam. Pedi-lhe para verificar a verdade por si próprio. Se buscar essa verdade, desejará então encontrar-se outra vez comigo. Será possível que então me considere a mim e aos meus fins com mais caridade, mais compreensivelmente. Se isso ocorrer antes da vossa Bíblia ser publicada, como acredito que aconteça, quero que saiba que a minha porta continuará aberta para si... e que a nossa causa poderá utilizar os seus serviços.
- Obrigado, Domince.
Randall voltara-se para sair quando ouviu de novo soar a voz de pastor de Westerkerk.
- Mr. RandalI, quero dar-lhe um último conselho.
já perto do limiar da porta, Randall voltou- se e viu que de Vroome havia colocado o gato no chão e que se encontrava de pé, tal como Plummer, escondido parcialmente atrás da negra sotaina.
- É um conselho para si e uma advertência para si e os seus colegas. - De Vroome estava a desdobrar um papel qualquer.
- Não percam o vosso precioso tempo com truques tolos e infantis num esforço para me fazerem cair numa ratoeira. Agitou uma folha de papel azul. - Refirome a este memorando, que ainda não há muito tempo o senhor pôs em circulação entre o seu pessoal e corpo de consultores.
Randall engoliu em seco e aguardou.
- 0 senhor pretendeu que isto fosse, tomado corno um memorando sério e urgente a respeito dos seus esforços de promoção -continuou de Vroorne. -Não há a mais leve dúvida que pretendeu apenas experimentar o pessoal a fim de saber qual dos que o rodeiam é a pessoa desleal que me tem entregue todas as informações acerca das vossas operações. Esperava que quando eu visse este memorando, como de facto aconteceu, agisse num primeiro impulso para me antecipar publicamente às medidas que consigna, revelando-lhe assim o ponto nevrálgico, a brecha no vosso aparelho de segurança, de modo que Heldering saiba qual o pessoal a eliminar a fim de colmatar a brecha por onde as revelações se escoam. Mas o senhor cometeu um erro - na verdade dois - porque é um amador em teologia sendo os seus conhecimentos sobre o Novo Testamento deficientes. 0 que o seu memorando contém relativamente ao cumprimento do programa é de tal modo impossível que um erudito na matéria, uma pessoa versada com segurança nos evangelhos, no foro cristão, tal como eu sou, teria que à viva força dar imediatamente pela insensatez. Nem por um momento poderia aceitar o documento como sério, para cair inocentemente na sua ridícula armadilha. Não volte a jogar comigo estes joguinhos pueris. Ou, se quiser na verdade apanhar-me em falso, deixe então que sejam os peritos a agirem sob a sua orientação.
Randall sentiu que o sangue lhe corria pelas veias e artérias com desusada força. De Vroorne não havia detectado a verdadeira ratoeira, Ainda ficava de pé uma oportunidade.
-Não faço a mais leve ideia daquilo a que se refere...
- Ah, não faz a mais leve ideia? Ora deixc"me ser mais explícito e refrescar-lhe a memória. -De Vroorne fixou os olhos na folha de papel. - Vejamos aquilo que o senhor escreveu: «Confidencial. A declaração pública no Palácio Real da nossa publicação será um dia dedicado a consagrar a Ressurreição de Jesus Cristo. Foi decidido que os doze dias seguintes serão sucessivamentc dedicados aos doze discípulos cujos nomes estão mencionados no Novo Testamento». - Depois o senhor menciona os doze discípulos, incluindo Judas Iscariotes. -De Vroorne abanou a cabeça. Em estado de grande tensão, Randall ficou à espera que o Dominee continuasse, que lesse a última frase, a frase com o nome de código que revelaria o traidor da Ressurreição Dois. Mas de Vroorne nada mais leu. Pousou o documento em cima da secretária e voltou a abanar a cabeça. -Rematada tolice.
Randall sentiu-se em pulgas, desesperado, mais do que isso, intrigado com as palavras do Domince.
-Mas não estou a compreender... -balbuciou.
-Não compreende qual foi a sua tolice? Esperava então que se pudesse acreditar que estaria a ser sério a respeito de uma promoção destinada a consagrar uma nova Bíblia ao dedicar doze dias a doze discípulos e mencionando Judas Iscariotes corno um deles? Judas... o sinónimo histórico que designa um traidor, o homem que atraiçoou Cristo?
Randall ficou perturbado. Eis o que tinha sido tolice. Não havia debatido o nome de cada discípulo com os editores. Mencionara-os de moto próprio e ditara o danado memorando a grande velocidade, mandando-o distribuir sem consultar nenhum dos peritos na matéria para verificação.
Inexoravelmente, de Vroorne continuou:
-0 seu segundo erro foi declarar que o Novo Testamento faz menção aos nomes de doze discípulos, quando qualquer teólogo de meia tigela-com suficiente atenção-logo verificaria que os nomes invocados são treze, dado que, depois da traição de Judas, Cristo substituiu-o por Matias, que é o décimo terceiro discípulo nomeado. Se o seu memorando tivesse creditado Cristo com treze discípulos, sugerindo que se dedicassem doze dias a doze apóstolos, com a substituição de Judas por Matias, talvez me tivesse enganado, obtendo êxito com o tnique. Mas isto... -olhou para a folha de papel azul com desprezo - _este joguinho infantil nada podia resultar. - Sorriu friamente para Randall. - Não nos subestime. Respeite-nos, e acabará por se juntar a nós.
Zangado consigo mesmo, Randall lançou uma mirada para o documento. A última frase. Tinha que ver a última frase.
0 coração galopava-lhe no peito, quase que teve medo que o som se propagasse, como o bater de um tambor, pelo gabinete. Procurou desesperadamente lembrar- se de qualquer pretexto que fizesse de Vroorne revelar"lhe a última frase, Tentando manter controlado o tom da voz, disse:
- Dominee, apreciei imenso a sua prelecção a respeito de relaç5es públicas e erudição bíblica, mas receio não lhe ter apreendido o sentido. Não fui eu quem escreveu esse memorando.
0 pastor fez um gesto de impaciência, resmungando:
- É uma pessoa obstinada. Continua com as suas brincadeiras. Será capaz de reconhecer a sua assinatura?
-Com certeza.
-Então é ou não a sua assinatura?
0 Dominee de Vroome estendia a folha de papel azul por cima da secretária, na sua direcção.
Quase que mal se podendo mover, com as pernas trementes, Randall aproximou-se da secretária.
Olhou para o memorando. A última frase, logo acima da assinatura, saltou-lhe à vista.
0 primeiro dos doze dias será dedicado ao discípulo Mateus. Randall levantou a cabeça, tentando disfarçar o sentimento de triunfo que se apoderara de todo o seu ser. Conseguiu fazer com que as feições tomassem um ar de envergonhada desculpa.
-Venceu, Domince. É de facto a minha assinatura. já me tinha esquecido que esse memorando estava destinado a ser hoje entregue.
0 Reverendo de Vroome fez um aceno, satisfeito, ao mesmo tempo que voltava a agarrar no documento e o dobrava cuida~ dosamente.
-Esqueça tudo aquilo que quiser, mas peço-lhe que se lembre pelo menos de uma coisa: saberemos tudo o que houver para saber acerca da nova Bíblia antes que o senhor possa hipnotizar o povo com ela. Prepararemos o público para se opor ao vosso assalto e para repelir o ataque. Se pretender estar ao lado da parte vitoriosa, venha para junto de nós e trabalhe connosco em pé de igualdade... Bom, Mr. Plummer vai agora conduzí-lo ao Amstel.
- Muito grato, mas prefiro apanhar sozinho um pouco de ar fresco para aclarar as ideias - disse Randall apressadamente. -Como queira.
De Vroome conduziu Randall até à porta e, sem pronunciar mais nenhuma palavra, foi indicar-lhe a saída.
Minutos depois, já com a casa do sacristão e a mole do templo deixados para trás, Randall atravessou os renques de vetustas árvores que lançavam uma espessa sombra nas vizinhanças de Westerkerk, apressando o passo até chegar à solitária praça, ilumi" nada pelos candeeiros públicos.
Sentia a zumbir-lhe nos ouvidos um nome, um nome que lhe latejava nas fontes como baquetas a zabumbarem insistentemente num tambor.
Mateus. Nem sentia paciência para procurar um táxi numa ocasião daquelas. Era o momento da verdade. Só uma das pessoas a quem fora distribuído o memorando estaria designada pelo código de Mateus. Quem teria recebido o documento incriminador com o nome de Mateus?
Quem? Encostado a um dos candeeiros de iluminação pública, que espalhava uma mancha de luz amarelada, Randall, com as mãos a tremerem de impaciência, meteu a mão no bolso interior do casaco para tirar a lista dos doze discípulos e das dozes pessoas que se encaixavam na distribuição.
Pronto. Ali estava a lista. Abriu-a. Os olhos percorreram avidamente a folha de papel
Discípulo André . . . . . . . Dr. Bernard Jeffries Discípulo Tomás . . . . . . . Rev. Zachery Discípulo Simão Pedro . . . . . . . Dr. Trautmann Discípulo João . . . . . . . Mons. Riccardi Discípulo Filipe . . . . . . . Helen de Boer Discípulo Bartolomeu . . . . . . Mr. Groat Discípulo Judas . . . . . . . Albert Kremer Discípulo Mateus . . . . . . .
0 nome que figurava a seguir do pontilhado era o de Ãngela Monti.
Fora uma noite em claro. Noite de pesadelo. Naquele momento a manhã daquela sexta-feira ia em mais de meio, a mais negra manhã que em toda a sua vida Randall conhecera.
Havia dado ordens a Theo para o conduzir, não para o Grande Hotel KrasnapoIsky, mas sim ao edifício de cinco andares que se alongava pela Dam - o Bijenkorf, os maiores armazéns da cidade de Amesterdão.
Vinte minutos antes, ainda no Amstel, telefonara a Ãngela Monti. Não a conseguira já encontrar no Victória Hotel, mas a chamada feita a seguir localizara-a na sala pegada ao seu próprio escritório, onde ela se preparava para substituir Lori Cook no cargo de secretária.
A conversa telefónica fora curta. «Angela, tenho uma coisa urgentíssima para te dizer. Aí no escritório não. Em qualquer parte fora do KrasnapoIsky. Disseste-me que já estiveste muitas vezes em Amesterdão. E se nos encontrássemos nos grandes arma, zéns da Dam? Haverá lá um «snack-bar» ou uma cafetaria, um sítio qualquer onde possamos estar sentados durante alguns minutos?» -Tinha uma cafetaria no andar térreo e outra no quarto e último andar. - Okay, iremos para o último andar. Vou já para lá. Não te dernores».
Entrara nos armazéns Bijenkorf pelo lado da Dam. Dado ser uma hora bastante matinal, o monumental empório ainda nlo estava pejado de pessoas a fazerem compras, como era hábito. junto ao balcão de uma secção de malas de mão e chapéus de senhora, perguntou a uma das vendedoras, que falava inglês, onde ficavam os elevadores.
Seguindo as indicações, atravessou a toda a pressa por entre balcões e vitrinas cheias de jóias de fantasia, flores artificiais, discos e toalhas, quase sem nada ver, sem se importar com o que o cercava, concentrado---nã sua próxima confrontação com Ãngela Monti.
Possivelmente ela era uma mentirosa. Era quase com certeza uma traidora. Primeiramente duvidara das informações de de Vroorne a respeito do Professor Monti se encontrar em desgraça, e de Ãngela ter mentido para o utilizar como um meio de elevar o pai. E mesmo depois de possuir a prova de que Ãngela estava a colaborar com de Vroorne: para destruir a Ressurreição Dois, Randall recusara-se a acreditar. Aliás as premissas pareciam não se encaixar bem. Afinal de contas porque iria ela ajudar a arruinar um projecto quando essa destruição significaria, por seu turno, a ruína total do bem amado progenitor? A não ser que... e isso era uma forte possibilidade a considerar... a não ser que afinal o Professor Monti não fosse o bem amado pai que ele supunha. Por tudo o que Randall sabia, parecia na realidade possível que Ãngela odiasse o pai, procurando o ensejo para poder arruinar o projecto que se construíra a partir da descoberta de Ostia Antica.
De qualquer modo, fossem quais fossem os motivos dela, o que permanecia de pé amargamente era o facto da sua armadilha ter funcionado e demonstrado inegavelmente que era Ãngela a informadora do Dorninee de Vroome, a traidora da Ressurreição Dois. Ora uma vez tendo digerido essa verdade premente, deixara de duvidar que ela fosse uma mentirosa que o estivesse simplesmente a desfrutar como uma pessoa útil aos seus malévolos propósitos. Sim, não podia duvidar das palavras do Reverendo de Vroorne. Todavia... todavia, na tarde do dia anterior e na noite que a antecedera, a sua intimidade com Ãngela fora total, uma entrega como nunca tivera com outra mulher. Em tão curto espaço de tempo, fora levado a amá-la e a confiar nela como jamais confiara noutra qualquer mulher. Era-lhe impossível crer que ela tivesse não só traído o projecto como ainda o seu amor por ela. No entanto, era também impossível explicar a prova provada da revelação que tivera em Westerkerk.
Bom, fosse como fosse, dentro de alguns minutos íria saber a temerosa verdade. Receava-a, mas tinha que a conhecer custasse o que custasse.
Sentia desejo de estrangular Ãngela por ter sabotado a tremulante fé que adquirira recentemente. Mas se o fizesse seria como cometer um suicídio. Era uma confrontação sem esperança. Uma luta onde não haveria sobreviventes.
Os elevadores estavam a ser todos utilizados. Alguns metros mais além, viu que alguns clientes se serviam de uma escada rolante. Não podia esperar. Estugou o passo até lá. Pôs o pé no primeiro degrau e segurou-se ao corrimão.
Deixando o último lanço da escada rolante no quarto andar, procurou à esquerda e à direita o seu caminho até deparar com um aviso que dizia: EXPRESS BAR/EXPRESS BUFFET.
Entrou numa portada em molinete, para entrada controlada de uma só pessoa de cada vez, aceitando um bilhete amarelo de uma ocupada empregada-o bilhete ou conta onde depois a máquina registadora faria o furo adequado para avaliação daquilo que encomendaria. Em frente, num comprido balcão onde se encontravam as comidas, viu Ângela sossegadamente com um tabuleiro na mão. Estava a inspeccionar a ementa, suspensa de uma parede por trás do balcão: warme gerechten, koude gerechten, limonade, koffie, thee, gebak.
Aproximou-se dela pela parte de trás e pediu-lhe: -Encomenda-me apenas chá, sem mais nada. Vou arranjar um lugar para nos sentarmos.
Antes que ela o pudesse cumprimentar, Randali voltou-lhe as costas para não ter que enfrentá-la. As bonitas mesas em fórmica colorida do centro do «snack» estavam cheias. Do outro lado havia um balcão recurvado, provido de bancos altos, onde não faltava lugar. Elevou-se até ficar sentado num dos bancos, de costas voltadas para o bar onde a comida era servida.
A espera pareceu-lhe interminável. -Bom dia, meu querido-era Ãngela. -Bom dia -respondeu friamente.
Tirou"lhe o tabuleiro, onde. se encontrava o chá para ele e café e torradas com manteiga para ela, segurando"o entre os dois para não ter que a beijar, até que ela trepou para o banco. Depois colocou o tabuleiro em cima do balcão e manteve-se ocupadíssimo a deitar açúcar no chá e a mexer desesperadamente o loiro líquido dentro da chávena, incapaz de a olhar de frente.
-Que se passa Steve? Estás muito estranho esta manhã. Randall resolveu-se finalmente a olhar aquele lindo rosto, sondando aqueles belos olhos verdes, que nas suas profundezas escon" diam a traição, olhos que naquele momento exprimiam a desorientação.
Sentiu-se doente, nauseado, sem saber o modo como começar o que tinha para lhe dizer.
- Steve, porque é que me fitas dessa maneira? -De que maneira?
- Assim, friamente.
0 tormento só terminaria quando despejasse o que havia para dizer. Com voz tremente, começou:
-Ãngela, soube ontem à noite uma coisa a teu respeito, unia coisa que preciso de esclarecer. - Respirou profundamente e lançou depois a acusação directa. - Mentiste--me a respeito de teu pai.
0 rosto de Ãngela coloriu-se.
- Menti-te? Quem é que disse que eu te menti? Que parvoíces te contaram?
- Fizeste-me acreditar que teu pai estava impedido de poder trabalhar para a Ressurreição Dois por políticas e ciúmes de superiores. Contaste-me que ele não se podia avistar comigo nem cooperar com outros membros do nosso projecto devido a esses superiores o manterem constantemente ocupado em escavações remotas, em Pella, no Egipto. Convenceste--me que teu pai era obrigado a curvar-se às ordens para poder manter a cátedra na Universidade de Roma. Mas ontem ouvi algo que contraria completamente as tuas versões.
-E o que foi que ouviste? Podes fazer o favor de me dizer?
- A voz dela tremelicava, tal como a dele tremera no início da conversa.
- Ouvi que o teu pai não foi enviado para proceder a nenhumas escavações arqueológicas. Teu pai foi demitido da Universidade de Roma, isto é impuseram-lhe uma aposentação compulsória e vive agora escondido, em semi-reclusão, algures num dos subúrbios romanos. E essa situação mantem"se quase desde a descoberta de Ostia Antica.
Randall hesitava em dizer o resto, mas ela insistiu.
- Steve, que mais ouviste dizer?
- Que teu pai foi obrigado a aposentar-se por ter lesado os interesses de uns pobres campónios. Comprou dolosamente o terreno das escavações da Ostia Antica para guardar a totalidade dos cinquenta por cento sobre a descoberta. Se tivesse alugado apenas os terrenos só receberia vinte cinco por cento. A verdade só se tornou conhecida depois das escavações quando os antigos donos se dirigiram ao ministério para se queixarem de terem sido burlados. 0 ministério abafou o caso para não ser pasto das revelações da imprensa, reembolsando os camponeses a suas próprias expensas para eles não falarem. Teu pai teve que se sujeitar a pedir a aposentação para não perder pelo menos a pensão do Estado. Suponho que concordou em não se associar ao projecto da Ressurreição Dois, mantendo-se afastado. De modo a protegê-lo, na tua qualidade de filha, passaste a mentir a respeito das ocupações dele. Todavia ainda consigo compreender essa parte da tua mentira, a outra parte que não compreendo é que se torna a meus olhos imperdoável, Ãngela.
-Que outra parte?
-Até eu aparecer, evitaste sempre cooperar com o projecto. Logo que eu surgi, consideraste que eu era o grande agente de publicidade contratado pela Ressurreição Dois. Viste em mim alguém capaz de dar celebridade e fama ao Professor Augusto Monti, promovendo-o de tal maneira aos olhos do mundo inteiro que fosse impossível o governo italiano mantê-lo no exílio virtual em que se encontra, de tal modo que as competentes autoridades jamais se atrevessem a tocar no escândalo de Ostia Antica. A publicidade e a fama limpariam por completo o nome de teu pai, restaurando-o em todos os títulos. Para atingires esse fim não hesitaste em servir-te deliberadamente de mim, mentindo-me e utilizando-me como um fantoche.
Separou--os uma imensidão de silêncio, mas os olhos de Ãngela não paravam de o fitar.
-Acreditas que me servi de ti?-perguntou.
-Nem sei bem em que acreditar. Tenho de procurar a verdade.
-Acreditas então que fiz amor contigo, na tua cama e no meu quarto, que deixei que penetrasses o meu corpo só porque queria aliciar-te, seduzir-te de forma a que fosses um fantoche ao serviço da minha família?
-Escuta Ângela...
-Quem te disse que menti, que me servi de ti? Quem te contou que meu pai foi aposentado compulsoriamente por ter cometido uma fraude, um crime? Quem, quem te disse tais coisas?
-Estive ontem à noite com o Domince Maertin de Vroorne. Olhou-a cuidadosamente para ver a reacção do rosto dela àquela revelação. Mas na cara dela só se revelou a surpresa. Talvez surpresa por saber que se encontrara com de Vroorne.
-De Vroorne?- murmurou Ãngela.
- Sim, encontrei- me com ele ontem à noite. 0 Reverendo mandou-me buscar. Bem, mas o resultado da nossa entrevista pode esperar um momento. 0 ponto fulcral é o facto de Dominee nos querer destruir. Para essc fim, coligiu arquivos sobre certas personalidades essenciais da Ressurreição Dois. Possui um cadastro muito completo sobre o teu pai e sobre ti. Divulgou-me certo conteúdo desses arquivos. Ãngela, agora que já sabes o que se passou, acredita que não teria dado crédito a essas coisas se não fora algo mais grave que soube.
-Algo mais grave? 0 quê?
-já lá vamos. Primeiramente, preciso de obter uma resposta que ainda não me deste. Ãngela, o que de Vroorne me contou... é ou não verdade?
-Mentira, completamente mentira-disse Ãngela com a voz a tremer.-Se é que te menti, as mentiras foram de somenos importância, mentiras incapazes de causarem mal, que esclareceria quando te conhecesse melhor. Mas o que de Vroome te disse de meu pai... que meu pai cometeu uma fraude... é uma descarada mentira. Não passa de uma difamação.
- Se o que ouvi não é verdade, Ãngela, qual é então a verdade?
- Conheces as leis italianas sobre arqueologia. Muito embora o governo fosse proprietário da maior parte do terreno demarcado de Ostia Antica, os terrenos ao longo da faixa litoral não lhe pertenciam nem estavam sob o seu controlo, precisamente as terras onde meu pai queria proceder a escavações. Essa área, constituida por alguns hectares era propriedade privada. Meu pai ofereceu aos proprietários, dois irmãos e uma irmã uma alternativa - alugar as terras ou comprá-las.
- E teu pai contou aos proprietários aquilo de que andava à procura? - perguntou Randall.
- Evidentemente. Os donos pensaram que ele era maluco. Não quiseram arriscar-se a entrar num jogo que lhes parecia insensato, vão, incapaz de produzir dividendos. Manifestaram-se desejosos de vender as terras estéreis, sem uso e não hesitaram. 0 que fizeram foi especular aumentando o preço, de tal maneira que meu pai encontrou dificuldades para conseguir a soma suficiente para obter o título da propriedade.
-Então onde é que de Vroorne: conseguiu arranjar a ideia de que a acção de teu pai foi de natureza irregular?
-Do Dr. Fernando Tura, claro está. Quando meu pai fez a descoberta, o Dr. Tura ficou louco de ciúmes. Então informou os antigos donos da terra sobre o que tinham perdido com a venda do título de propriedade. Convenceu-os a irem--se queixar às autoridades, protestando que haviam sido enganados, que meu pai não lhes contara nada sobre a verdadeira utilização das terras, falando, pelo contrário, de um uso muito diferente. Os membros do ministério foram obrigados a proceder a uma investigação cuidadosa, realizando uma acareação à porta fechada, onde se provou que tudo o que meu pai fizera fora correcto, não havendo fundamento para as acusações. Existem provas escritas do caso, se o governo aceder a revelá-las, poderei mostrar-tas.
-E quanto a teu pai, Ãngela?
-Ficou satisfeito de ter sido ilibado. Mas acontece ser uma pessoa extremamente sensível. A pressão das investigaçoes, principalmente o facto de alguns dos seus amigos terem dado crédito às acusações constituiu para o meu pai o cúmulo das provações. Mesmo antes de ter sido ilibado, resignou do cargo que ocupava na universidade e recolheu-se num isolamento voluntário. Não quis ter mais nada a ver com as políticas profissionais. Havia atingido o grande objectivo da sua vida e bastava-lhe.
-Ainda se encontra retirado?
-Sim. Vive a vida de um recluso, devotando--se a estudar e escrever. Continua a manifestar a sua amargura a respeito das capelinhas acadêmicas, e também não manifesta interesse em entrar em contacto com as pessoas que desenvolveram a sua descoberta. Pensa que o anúncio mundial do seu achado será uma prova concludente. Mas o Dr. Tura, a fim de justificar o seu vil procedimento, nunca cessou de dar voz às suas atoardas e difamações, aproveitando-se para murmurar em toda a parte o escândalo.
Parece não haver dúvidas que de Vroome ouviu esses boatos e se dirigiu ao Dr. Tura, aceitando como verdades as difamações para o seu arquivo, como se se tratasse de verdades irrefutáveis. E porque não? Como tu próprio disseste, Steve, de Vroome pretende destruir o nosso projecto e todas as pessoas a ele ligadas. Porque é que eu me incomodei a um encontro contigo em Milão depois de ter recusado avistar"me com outros membros do teu pessoal? Simplesmente para ter a certeza de que possuías a história fidedigna do papel que meu pai representou na descoberta arqueológica de Ostia Antica. Se, tal como meu pai acredita, o anunciar mundial da descoberta falará por si mesmo, nesse caso eu, como sua filha, tinha que me certificar que as declarações fossem completas e correctas.
-Porque é que anuiste a vir para Amesterdão como consultora?
Pelos lábios de Ãngela passou um pálido sorriso.
-Não foi para me utilizar de ti. Não existe a mais pequena necessidade de me servir de ti. Convidaste-me e eu aceitei. Aceitei não para me assegurar de que meu pai obtivesse mais publicidade. A que terá, e a que j à tem, são mais do que suficientes. A posição dele é inamovível. Aceitei porque... porque me afeiçoei a ti imediatamente... e desejei estar junto de ti.
Randall sentiu-se comovido, mas não podia deixar embalar-se assim. Ainda estava por fazer a mais grave das acusações. A partir do momento em que proferisse o que se tomava necessário, as relações entre os dois acabariam para sempre. 0 nome de Ãngela Monti correspondia ao código do apóstolo Mateus. Era ela a traidora, e tinha que ser informada daquilo que ele descobrira antes do caso ser revelado ao Inspector Heldering, ao Dr. Deichhardt, George Wheeler e aos outros.
0 que ela acabara de dizer? Ah, sim, que se deslocara para Amesterdão para estar junto dele.
-Ãngela, haverá qualquer outra razão que te tenha levado a juntares-te ao projecto?
-Qualquer outra razão? Não, não houve outra. -Levantou uma das sobrancelhas com uma expressão intrigada -Que outra razão poderia haver?
-Realizares alguma coisa por alguém, fora de teu pai e do afecto por mim.
-Por alguém? 0 que é que...
Não. Não havia qualquer processo de amortecer o choque.
0 golpe tinha que ser directo.
-Ãngela, porque é que trabalhas dentro do nosso projecto como uma informadora do Dominee de Vroome? Porque é que estás a fornecer os segredos da Ressurreição Dois ao nosso maior inimigo?
Randall nunca tinha visto um rosto expressando maior espanto. Não era pânico nem receio, apenas espanto. Os lábios dela movimentaram-se durante momentos sem que a voz fosse capaz de os acompanhar. Mas por fim as palavras conseguiram soltar-se-lhe da garganta.
-Como? 0 que é que disseste? Repetiu o que havia dito, acrescentando:
- Possuo provas irrefutáveis de que estás ao lado de de Vroorne.
-Steve, querido, de que raio estás a falar? Enlouqueceste ou quê?
Randall não podia deixar-se convencer assim.
- Ontem à tarde enviei um memorando confidencial a doze pessoas que fazem parte do nosso projecto. Uma dessas cópias do memorando chegou às mãos de de Vroome. Foi precisamente o teu exemplar que chegou às mãos do Domince. É um facto incontestável, Ãngela, sei exactamente o que digo e não pode ser negado.
0 espanto dela cada vez parecia mais genuino.
-Memorando? Que memorando é que eu dei a de Vroome? Bem digo eu que enlouqueceste. Não conheço de Vroome. Nunca o vi mais gordo ou mais magro na minha vida. E também não estou nada interessada em conhecê-lo. Que interesse teria? Diz-me, que interesse teria em conhecer esse homem? Steve, deves ter perdido a razão. Que trapalhadas estás tu a dizer?
-Vou-.te explicar sucintamente as coisas. Ouve com atenção. Rudemente, Randall contou"lhe o que se passara com o primeiro memorando que fora entregue ao Dominee de Vroorne, do segundo documento que dispusera como uma armadilha, e do modo como vira um exemplar do memorando com o nome de código que lhe destinara a ela, Mateus, em cima da secretária do Reverendo de Vroorne.
-0 memorando com o nome de código Mateus foi-te entregue em mão própria, Ãngela. Tenho um protocolo assinado por ti. Lembras-te agora?
-Sim, estou a lembrar-me. Recebi o documento... deixa"me pensar bem... sim, estou a recordar-me. Depois de teres saído do meu quarto adormeci e quando acordei vi que já era muito tarde. Fiquei aborrecida com o tempo perdido e corri para KrasnapoIsky a fim de realizar algum trabalho que me distraísse. Dirigi-me ao gabinete que Miss Dunn me tinha primeiramente destinado e comecei a mudar os meus arquivos para o outro gabinete. Depois chegou um guarda da segurança interna... sim... agarrei no memorando que ele me entregava e lancei"lhe um vista de olhos para ver se era importante. Não me pareceu de consideração prioritária. Coloquei-o numa das pastas de arquivo e levei-o para o gabinete de Lori. Na segunda gaveta do arquivo havia espaço e eu coloquei a pasta, juntamente com os outros documentos que tinha trazido, nessa gaveta. Lembro-me perfeitamente de ter feito exacta" mente isso. Ainda deve lá estar.
Randall avaliou o que ela lhe tinha dito. Ou Ãngela estava a ser de uma impecável honestidade ou era a mais consumada mentirosa que jamais encontrara na vida. Contudo a explicação da sua honestidade parecia fraca.
- Ãngela, só havia uma cópia do memorando com o nome de Mateus. Estás a dizer-me que se encontra no ficheiro do escritório, mas eu garanto-te que a vi no gabinete de de Vroorne.
Parece-me óbvio que o documento não se pode encontrar ao mesmo tempo no teu arquivo e na posse de Domince.
- Lamento, mas não te posso explicar as coisas de outra maneira. Posso ir mostrar-te já o meu exemplar.
-Muito bem, vamos lá ver.
Quando desceram dos bancos altos do bar, Ãngela fitou-o abertamente.
-Não acreditas em mim, pois não?
-Só te posso dizer aquilo que vi... e vi de Vroome mostrar-me esse exemplar do memorando.
-Steve, não serás capaz de pensar que a minha ligação com esse horrível de Vroome não faz qualquer sentido? Ele pretende arruinar a Ressurreição Dois e desacreditar o Novo Testamento Internacional. Pelo contrário, eu só desejo auxiliar o projecto a singrar para que o mundo aceite a nova Bíblia. Pelo menos, se não por amor de ti, com certeza para ver que o nome de meu pai e a sua descoberta sejam coisas devidamente honradas. Porque é que iria colaborar com um homem que pretende destruir o meu pai juntamente com toda a outra gente?
-Não sei. Haverão imensas coisas que eu desconheço a respeito do Professor Monti ou de Ãngela Monti. Por tudo o que posso saber, talvez afinal de contas desprezes o teu pai.
- Oh, Steve! -exclamou ela com o desespero a vibrar--lhe na voz. Ãngela agarrou na malinha de mão, enquanto Randall agarrava nos tickets para ir pagar à caixa. -Bom... vou-te mostrar que continuo a ter o meu memorando no ficheiro.
Em silêncio, meteram-se no elevador até ao piso térreo dos armazéns Bijenkorf. Atravessaram o Dam e dez minutos depois encontravam-se no gabinete que fora destinado a Lori Cook e que Ãngela ocupava.
Enquanto Randall ficava encostado à secretária com o rosto fechado, sombrio, Ãngela dirigiu-se a um dos dois ficheiros metálicos, destravando-o e puxou para fora a segunda gaveta, começando a passar as pastas do arquivo.
-Arquivei na letra M... Memorandos do Seviço de Relações Públicas.-Abriu os dois batentes metálicos que marcavam a letra M, desfolhou qualquer coisa lá dentro, e depois com voz profundamente desapontada disse: -Mas não está nada dentro da pasta. Tenho a certeza que... - Freneticamente começou a procurar em todas as letras. - Talvez me tenha enganado e tenha colocado a pasta noutra letra qualquer. Espera um bocadinho, encontrarei o documento num instante.
Passaram alguns minutos, e o documento sem aparecer. Ãngela endireitou-se, tendo estampado no rosto o pânico pela perda sofrida.
Randall não perdera as suspeitas sobre a honestidade daquela mulher amada.
-Tens a certeza que arquivaste o documento?
-Penso que sim-disse, já com uma nota de insegurança na voz, - Depois de me ter mudado do antigo gabinete estes arquivos estavam todos espalhados em cima da secretária e eu comecei a arrumá-los...
-Entrou alguém no escritório antes de fechares o ficheiro à chave?
-Se alguém en ... ? Sim! Sim! Não te mencionei as visitas ontem à noite ao jantar porque não me pareceram importantes. -Encaminhou-se para a secretária. -Vieram várias pessoas procurar por ti. Eu... Deixa-me assentar ideias... tentei ser o mais eficiente possível e por isso escrevi o nome de todas as Pessoas que vieram aqui ou que fizeram chamadas telefónicas. -Abriu uma das gavetas da secretária, tirou um bloco-notas e dobrou a capa. - Jessica Taylor entrou durante breves segundos. Disse que tinha estado a realizar um trabalho para ti e vinha ver se precísavas de mais alguma coisa. Informei-a que tinhas saído e que não sabia onde te encontravas.
-Estava no andar de baixo com o Inspector Heldering a examinar se todos os exemplares do memorando tinham sido entre-
gues.-Fez um gesto na direcção do bloco-notas.-Quem foram as outras pessoas que vieram cá?
Ãngela percorreu a lista com o dedo.
- Elwin Alexander e... - Suspendeu abruptamente o que ia a dizer e a consulta ao bloco. -Agora me estou a recordar! Que estúpida fui em me ter esquecido! 0 seu nome está aqui, escrevi-o. Olha, Steve, olha aqui...
0 dedo voltou-lhe a correr pela página do bloco-notas até ao fim, onde tinha um nome escrito a lápis: Dr. Florian Knight.
- Knight? - espantou-se Randall.
-Sim, foi o Dr. Knight -disse Ãngela com evidente alívio. Graças a Deus que posso esclarecer as coisas. Agora vais acreditar-me. Sim, o Dr. Knight entrou quando eu estava a arquivar. Queria falar-te. Disse.-me que tinha estado numa conferência publicitária contigo e que tu havias prometido entregar-lhe certo material para o orientar a respeito do tipo de informações que desejavas dele. Prometeste-lhe alguma coisa?
- Sim.
- Como tu não te encontravas, o Dr. Knight viu os arquivos em cima da secretária e disse que talvez tivessem alguma coisa que lhe interessasse. Mostrou-me o seu cartão de segurança de primeiro plano, como o meu e o dos outros consultores, de modo que pensei não haver qualquer razão para recusar o que pedia. Começou a remexer nas pastas e declarou-me que o material que queria talvez estivesse no teu gabinete, mas pediu então que lhe emprestasse o último memorando, porque tendo-se deslocado para Amesterdão à última hora pretendia estar a par dos teus planos. Garantiu-me que de manhã, quando te viesse de novo procurar, me entregaria o documento, junto com uns outros que levou e que lhe serviriam de orientação.
-E entregou o documento de manhã?
Ãngela deu uma vista de olhos pelo tampo da secretária, perturbada.
- Ao que parece, não. Deve ainda ter o memorando em seu poder.
-Não, não o deve ter-murmurou Randall sombriamente.
- Quem o tem é o Reverendo Maertin de Vroorne. – Fechou um dos punhos e deu uma pancada seca na palma da outra mão. -0 Dr. Florian Knight! Maldição! Eu já devia saber que era assim.
- Saber o quê? -Não importa agora.
- Cometi qualquer erro em emprestar"lhe o memorando? -Isso agora também já não tem importância. Não poderias compreender o que estava ou não errado.
- Steve, mas agora já sabes que nada tenho a ver com o Domince Maertin de Vroorne. Com certeza que acreditas em mim. Vem, irei contigo ao gabinete do Dr. Knight. Ele dir-te-á na minha frente o que se passou e talvez dê qualquer explicação sobre o assunto.
-Não necessito das explicações dele-disse Randall amargamente.
Interiormente, Randall amaldiçoava o seu sentimentalismo. A partir do momento em que ouvira dizer que Knight odiava o Dr. Jeffries e a Ressurreição Dois, confissão tanto mais fidedigna porque lhe fora feita por Valerie Hughs naquela taverna londrina, não devia ter autorizado o pedante erudito de Oxford a juntar-se ao projecto. Desde o princípio devia ter sabido que Knight era uma ovelha ranhosa, o único com probabilidades de se vender para recuperar o dinheiro que julgava ter perdido com o lançamento da nova Bíblia. Randall lembrou,se de ter pensado nele no dia anterior, lembrou-se de não lhe ter precisamente enviado um memorando, por exclusão na lista, na vã esperança de que o sabotador fosse outra pessoa qualquer. Mas, afinal de contas, o sabotador era sem dúvida o Dr. Florian Knight. Maldição.
Ãngela aguardava.
-Vamos ao encontro do Dr. Knight?
-Não há necessidade que tu vás.-tentou sorrir.-Ãngela, perdoa-me por não ter confiado em ti. A única coisa que te posso dizer é que... que te amo muito.
Ela refugiou-se nos braços que ele lhe abria, fechou os olhos e premiu os lábios desesperadamente contra os dele. Quando o longo beijo terminou, murmurou:
- Steve, eu amo-te mais, muito mais do que o amor que tu serás capaz de me dedicar.
Randall sorriu.
- Isso é o que veremos. - Desprendeu"se a custo dos braços dela. - Agora vou conversar com o Dr. Florian Knight. Tenho que ter uma entrevista com ele a sós.
Em passos rápidos, seguiu pelo corredor e entrou, depois, no gabinete do Dr. Knight.
Não estava.
A secretária disse como quem pede desculpa:
-Lamento, mas o Dr. Knight telefonou a dizer que não vinha hoje.
-Onde é que está.
-A trabalhar no hotel onde se hospeda. 0 Hospício S. Luchesio.
-Hospício quê?
-Vou escrever-lhe a direcção. S. Luchesio. Fica em Waldeck Pyrmontlaan, número nove. Quase todos os clérigos e teólogos do nosso projecto se encontram lá hospedados. É um hotel muito estranho.
Randall não tinha tempo para lhe perguntar onde é que estava a estranheza do local. Limitou-se a agarrar no papel com a morada e encaminhou-se para o porta.
Mas antes de chegar ao limiar, ouviu a voz da secretária perguntar:
-Quer que telefone ao Dr. Knight a anunciar a sua visita? -Não. Prefiro fazer-lhe uma surpresa.
Era na verdade um estranho hotel.
A primeira vista, o S. Luchesio decepcionava. Parecia"se com um vulgar prédio de apartamentos, um prédio moderno, de cinco andares, edificado numa ampla rua.
0 S. Luchesio era algo de que Randall nunca ouvira falar -um pequeno hotel construido exclusivamente para eclesiásticos católicos e pastores protestantes com as respectivas famílias que estivessem em trânsito por Amesterdão. Servia também de alojamento a várias freiras.
Theo, que como sempre conduzia RandalI, provara-sc um centro informativo precioso. Durante os doze meses anteriores, Theo fora uma espécie de ponte móvel de transporte para vários eclesiásticos, bem como para teólogos seculares, entre o KrasnapoIsky e o S. Luchesio. Conhecia pois muito bem o local, e a pergunta de Randall desencadeou um verdadeiro dilúvio de pormenores.
0 S. Luchesio -nome adoptado em honra do primeiro seguidor de S. Francisco de Assis na Porciúricula, tinha sido construído em 1961. 0 hotel clerical tinha trina e quatro quartos e cinquenta camas. 0 custo de urna cama com pequeno-ahnoço incluído era de catorze florins por dia. Theo explicara-lhe que a sala logo a seguir ao átrio servia como sala de comer às horas das refeições e como sala comum de orações durante o resto do tempo. Para o efeito, ao longo das paredes existiam uns compartimentos em madeira com um pequeno oratório e uma cadeira. Quando das refeições as cadeiras eram conduzidas para a longa mesa central, o que lhe conferia o aspecto de uma espécie de refeitório monástico. Do outro lado do átrio, segundo a explicação de Theo, encontrava-se a capela privativa do hotel. À entrada da porta estavam suspensas duas sotainas especiais, para os celebrantes católicos e protestantes. Num pequeno gabinete lateral, que funcionava como sacristia, encontravam-se os paramentos e apetrechos destinados à celebração da missa.
Theo parara o Mercedes-Benz em frente do hotel e RandalI, em passadas vigorosas, atravessara o passeio e entrara no S. Luchesio.
0 átrio não oferecia nada a aparência de um vulgar átrio
de hotel, pelo contrário, parecia-se com a sala de estar de uma residência particular, uma sala tornada confortável pelos extremos cuidados de uma dona de casa irrepreensível. As paredes circundantes tinham pequenos painéis de ripas de madeira, em castanho, onde se dispunham almofadas de couro acolchoadas. Randall observou que serviam para encostos quando os visitantes se sentassem nos banquinhos dispostos por baixo. Nas paredes viam"se quadros com cenas bíblicas, uns em tela outros de pano bordado, como nas tapeçarias, que davam um maravilhoso efeito colorido ao ambiente. Em frente do átrio ficava a recepção-uma simples secretária atrás da qual se sentava muito empertigada uma matrona que devia orçar pelos cinquenta e tantos.
0 ambiente exsudava por todos os poros um ar de asseio, pureza, bondade.
Não, na verdade não se adequava ao propósito fero que ali o conduzira, pensou RandalI, ao propósito de defrontar um teólogo para o desmascarar. Para lhe dizer que não passava de um reles filho da puta e de um nojento traidor.
Randall dirigiu-se à secretária.
-Precisava de ver o Dr. Florian Knight. Trabalhamos os dois juntos.
A grave e altiva recepcionista levou a mão ao telefone. -0 Dr. Knight espera-o?
-É provável.
-Vou ligar para o quarto. Diz-me o seu nome, faz favor. Depois de ter dado o nome, Randall dirigiu-se nervosamente para o limiar do salão que servia de local de oração e de sala de jantar, observando distraído a enorme mesa central, as cadeiras e as divisórias de madeira. Depois voltou para junto da recepção, precisamente quando a hirta matrona colocava o auscultador do telefone no descanso.
-0 Dr. Knight está no quarto. Fica no piso quatro. Esperá-lo-á à porta do elevador.
De facto o Dr. Knight encontrava-se no corredor quando Randall saiu no quarto andar. Olhou~o e considerou que não obstante o seu aspecto fosse o mesmo daquele homem que encontrara numa cama em Londres e que ainda na véspera vira na conferência com o seu pessoal, tinha contudo um ar diferente. Pela primeira vez, desde que Randall o conhecera, não exibia aquele rosto fechado, façanhudo, irado, de pessoa permanentemente contra o mundo. Mostrava-se calmo e senhor de si. Enquanto se dirigiam para o quarto, Randall pôde também notar que o homem manifestava um senso de preocupação bastante profundo.
0 quarto de Knight no S. Luchesio era ainda mais pequeno do que o do apartamento de Londres. Mas estava impecavelmente limpo e tinha um aspecto austero, muito semelhante ao da cela de um monge num convento. Tinha uma cama estreita, uma mesa dobrável, um armário para guardar fatos e, num canto, uma bacia destinada às abluções. Por baixo da alta janela, quase, em forma de seteira, estava uma cadeira solitária.
-Aproveite a cadeira- ofereceu Knight, com um tom relativamente hospitaleiro e menos brusco do que era hábito.- Oferecer-lhe-ia de boa"vontade uma bebida se não fora o caso do álcool ser expressamente proibido neste hotel franciscano. Se não fosse tal proibição acharia o lugar decentemente confortável. Os bons irmãos hospitaleiros gerem o hotel como se S. Francisco de Assis fosse o director executivo. E dado que o santo se preocupava mais em fazer sermões aos passarinhos do que em falar com os bípedes huM'anos, os criados, num arremedo, resolvem também tratar os hóspedes de uma maneira chilreante. É tudo muito encantador.
Depois, quando já se tinha sentado na beira da cama, acrescentou:
- Lamento muito que se tenha deslocado até aqui, Mr. Randall. Estava na disposição de ir amanhã até ao KrasnapoIsky, pondo-me incondicionalmente ao seu serviço. Seja como for, está aqui. Em que posso ser-lhe útil? Algo de especial.
- Sim, muito especial até - respondeu Randall martelando 1 as palavras.-E é um assunto que lhe diz essencialmente respeito.
-Muito bem. Pois aqui estou às suas ordens, meu caro. Randall decidiu não desperdiçar palavras. Dir-lhe-ia o que
tinha a dizer sem rodeios.
- Dr. Knight, ontem, no termo de uma dia de trabalho, o senhor pediu certo material de arquivo emprestado a Miss Monti, a minha secretária. Entre esse material encontrava-se um inemorando confidencial escrito por mim. Ora, algumas horas mais tarde o mesmo memorando estava nas mãos do Domince Maertin de Vroorne, inimigo declarado do nosso projecto.
Calou-se, esperando qualquer reacção extemporânea do Dr. Knight, reacção de surpresa ou negação, mas o erudito oxfordiano não deixou transparecer qualquer emoção. Tirou calmamente do bolso uma caixinha de pastilhas para refrescar a boca, que estendeu urbanamente a RandalI, depois de ter aberto a tampa. Perante a negativa do publicista, metendo na boca um dos pequenos comprimidos de menta, Knight disse:
- Lamento ouvir-lhe dizer isso, mas também lhe posso garantir que em nada me surpreende.
Randall, apanhado de chofre, olhou-o aturdido.
- Não se sente surpreendido?
- Bom, embora não esperasse que de Vroome tivesse o documento, a verdade é que não excluía também a hipótese de lhe poder ir parar às mãos. A minha surpresa é em saber que o senhor descobriu a tramoia. Tem a certeza de que é o Reverendo de Vroome quem tem o memorando?
-Absoluta. Tive ontem à noite uma entrevista com de Vroorne e vi-lhe o documento na mão.
-E não tem dúvidas de que fosse o memorando que eu pedi emprestado a Miss Monti?
-Nenhuma. Era exactamente o mesmo memorando-disse Randall um bocado desconcertado pela forma naturalíssima com que Knight aceitava o seu papel de traidor. - Vou-lhe revelar a forma como pude determinar com exactidão a veracidade do documento e a forma como a pista do roubo me conduziu até si.
0 mais rapidamente que pôde, Randall revelou os nomes de código utilizados na elaboração dos exemplares do memorando, com alguns pormenores sobre a conversa que tivera com de Vroome e o que se passara com Ãngela Monti. Quando terminou, o seu olhar continuou fixado no Dr. Knight. 0 teólogo inglês continuava a chupar calmamente a sua pastilha de menta, mas Randall reparou que a mão pousada na borda da cama tremia ligeiramente.
- Vamos lá ver agora o que tem a dizer do caso.
- Muito inteligente da sua parte - disse Knight com admiração.
- E muito pouco inteligente da sua. De facto posso até dizer que a sua atitude foi sumamente estúpida. Desde o momento em que soube que o seu livro deixava de ser publicável devido ao aparecimento do Novo Testamento Internacional, considereí-o um perigo, mas um perigo que se poderia correr. Mas eu devia ter compreendido que uma pessoa tão amargurada contra o nosso projecto e tão necessitada de dinheiro seria capaz de tudo para nos derrubar.
0 peqeno tique nervoso da mão de Knight acentuou-se. Tremia agora visivelmente.
- Soube então tudo o que havia a saber a meu respeito, hem?
- Sim, desde o princípio. Desde Londres. Mas fiquei tão impressionado pelas suas habilitações, pelo seu valor potencial para o projecto... que... juntamente com o pedido de Valerie...
Ah! Valeríe...
uvi ... pus de parte quaisquer d' das e persuadi-me que o senhor, apesar de tudo seria uma pessoa de inteira confiança, incapaz de urna traição. Estava enganado. Traiu-nos. Vou voltar ao KrasnapoIsky e relatar tudo o que sei.
-Não-disse o Dr. Knight com rapidez, quase com frenesi.
0 seu frio exterior britânico começara a desintegrar-se, a abrir fendas. Aos olhos de Randall começou a deparar-se um espectáculo como o do retrato de Dorian Gray; ainda em vida aquele rosto começou a encher-se de rugas, a mostrar um evidente aspecto de envelhecimento gradual.-Não, não lhes diga- suplicou. -Não permita que eles me ponham fora do projecto!
- Que não os deixe porem-no fora? - inquiriu Randall espantado. -Mas o senhor admitiu ter entregue o memorando a de Vroome...
-Não entreguei nada directamente a de Vroorne, nada, acredite no que lhe digo. Se fui fraco, se de qualquer maneira traí as suas esperanças, foi em pequenas coisas, de maneira quase inofensiva. Mas tudo isso já passou, modificou"se. Agora já podem confiar em mim absolutamente. Sou inteiramente devotado à Ressurreição Dois. 0 projecto é a minha vida. Não posso permitir que me separem deste trabalho. Tenho que continuar.
Levantou-se e começou a medir o pequeno aposento, torcendo as mãos nervosamente.
Estupidificado pela reacção, Randall observava-o de boca aberta. As contradições do comportamento e das palavras do Dr. Knigth não faziam sentido. Randall decidiu que o homem era um doente, um histérico. Tinha que o levar para um caminho racional.
-Vejamos, Dr. Knight, como pode o senhor dizer que é inteiramente devotado à Ressurreição Dois quando ainda não passou muito tempo depois de ter admitido que entregou os nossos segredos a de Vroorne? Espera então que nós mantenhamos um traidor no nosso seio?
-Não sou nenhum traidor! -exclamou com veemência o Dr. Knight. Chegou-se para Randall e ficou"lhe na frente dominando-o com a sua magra figura de asceta.-Então não é capaz de compreender? Pretendi ser um traidor. Comecei a dar o primeiro passo nessa senda, mas depois não pude... foi-me impossível logo que a verdade me foi revelada... Foi-me impossível. E agora têm que me deixar continuar no trabalho. Matar"me-ei se não me permitirem que fique!
- Mas de que raio está o senhor a falar? Nada disso faz sentido. É completamente ridículo. Basta de o aturar...
Fez um gesto para se levantar, mas as mãos de Knight, como garras, fizeram-lhe pressão sobre os ombros.
- Não... não... espere, RandalI, tem que me dar uma oportunidade. Vou-lhe explicar tudo. VouAhe despejar tudo o que sei e então fará sentido. Estava com receio, mas afinal vejo que é necessário ou tudo estará perdido. Por favor, ouça o que tenho para lhe dizer.
Só depois de Randall se ter de novo ajeitado na cadeira é que o Dr. Florian Knight se retirou de junto dele, voltando a sentar-se na borda da cama, a tentar dominar a agitação que o tomara, a tentar pensar na maneira de transformar os pensamentos em palavras. Finalmente, com certos sinais de acalmia, fixou os olhos no chão e começou:
-Logo que o senhor chegou aqui, tentei ocultar o que se passa. Pensei que a minha franqueza nua e crua o desarmaria e abriria caminho para um entendimento... bem uma confissão que fosse capaz de o satisfazer sobre a minha participação num erro, numa coisa má, mas sem ser um traidor. Pensei que lhe poderia provar que estava modificado a respeito da minha forma de encarar o projecto e da minha necessidade de continuar na Ressurreição Dois. Mas afinal vi que o senhor me continuava a julgar um vira-casacas, o que me levaria a ser demitido. Sim, considero agora que não pode haver maneira de evitar confessar-lhe toda a verdade. De resto, penso que também não existe qualquer razão sólida para proteger os outros...
Os outros. Randall apurou o ouvido.
... E que já não há qualquer razão para ter medo de lhe revelar o que se passou ontem à noite e esta manhã.-Olhou para Randall.-Se ainda pensa que não faz sentido...
- Vamos, continue.
- Obrigado. A respeito da minha amargura, da minha zanga contra o Dr. Jef`fries, não posso desmentir que seja verdade. Foi uma indiscrição da querida Valerie falar-lhe no caso, mas não posso perfeitamente perdoar"lhe. A maior vocação de Valerie são os esforços que tem feito, quase sempre, para me salvar do meu próprio mau gênio e... -sorriu como que envergonhado -...e salvar-me por amor dela também. Mas nunca deixei de lhe ser devotado. Sim, foi ela que me pediu para que me juntasse à Ressurreição Dois. Concordei, mas não pelas razões que ela pensava. Vim para aqui, tal como o senhor suspeitou, com sentimentos que me tomavam indigno de confiança. Sabia que a Ressurreição Dois tem inimigos. E sabia perfeitamente quem eles eram. Li a entrevista de Plummer com Maertin de Vroome, e os dois artigos que ele publicou dentro da mesma linha de opiniões. Não tinha planos definidos, inas cá bem no fundo da minha mente pensava que como membro da Ressurreição Dois poderia encontrar modo de me salvar.
- Salvar... Quer dizer obter dinheiro?
- Bem... sim. De certa maneira sim. Bem, já que temos de usar de franqueza, pensava que o dinheiro seria a minha única salvação. Tinha"me sido recusado o dinheiro por causa do Novo Testamento Internacional, dinheiro que me restauraria a audição, dinheiro que me permitiria casar com Valerie e poder sustentá-la, vivendo a minha vida com propriedade e de harmonia com o que um estudioso merece.
-E vai daí procurou Cedric Plummer?
-Não foi necessário. Foi Plummer quem me procurou. Ou, para ser mais exacto, foi alguém era representação de Plummer. Randall ergueu uma das sobrancelhas.
-Alguém? Do KrasnapoIsky?
- sim.
Randall procurou no bolso do casaco e tirou o gravador miniatural.
- Se não se importa?...
- Vai gravar as minhas palavras? Para quê?
- Se houve outras pessoas envolvidas no caso...
- Estou a ver. Ajudará a ilibar"me, não é?
- Não posso garantir isso, Dr. Knight. Mas se na verdade tem uma defesa legítima, será de toda a vantagem em que eu grave a nossa conversa, para o caso de se tomar necessário. Se não ficar satisfeito com a história, limparei a gravação à sua frente... e poderá então contar as coisas aos editores em primeira mão.
- Acho justo. - Esperou que Randall ajustasse o volume e colocasse o aparelho no chão, entre a cama e a cadeira. Knight olhou para o gravador. - 0 meu júri. Ajudar-me"á a inspiração para me confessar e defender tão completa e desapaixonadamente quanto possível.
-Estava-me a contar a maneira como quando chegou a Amesterdão, depois das verificações no KrasnapoIsky, foi abordado por outra pessoa sem ser Plummer...
-Sim, alguém que, não sei como, sabia tudo a respeito da minha situação, acerca do meu livro não publicável sobre Cristo, sobre o meu defeito auditivo, enfim sobre a minha ira, necessidades e falta de dinheiro. Esse alguém sugeriu-me que talvez houvesse um meio de reaver o dinheiro que me devia ter cabido. Dessa vez não anui. Todavia, durante o meu curto tempo de estadia em Amesterdão, tomei o hábito de copiar todo e qualquer material secreto recebido, ou que passava ao meu alcance. Tornei-me cuidadoso em ouvir tudo o que pudesse, tomando notas e ocultando-as. Não dei um passo na minha vingança a não ser quando de novo fui abordado. Quis saber quanto valeriam os meus serviços. Em troca, perguntaram-me o que tinha para oferecer. Impulsivamente, numa experiência, mostrei o meu pequeno arquivo de material da Ressurreição Dois à pessoa que me abordara. Quase logo a seguir proporcionaramme uma entrevista com Plummer, que me informou graciosamente ter sido perfeitamente útil o material cedido.
-Foi então dessa maneira que eles souberam da data da nossa declaração pública e dos nossos planos para a transmitirmos ao mundo via Intelsat, não é verdade?
- Sim. Tudo útil, segundo Plummer me disse, mas não era suficiente. Queriam que eu continuasse a obter mais notas e memorandos para os servir, mas, o mais importante de tudo, desejavam um exemplar da nova Bíblia ou pelo menos um sumário do conteúdo da nova Bíblia, isto é do Pergaminho Petrónio e do Papiro Jacob, coisas em que eu trabalhara mas que não conseguira ver totalmente. Plummer disse-me que havia uma outra maneira de o material ser obtido...
-Por Hennig! -exclamou Randall.
- Como?
-Não importa. Continue. - mas não queriam correr riscos. Pretendiam ter uma dupla certeza. Foi então que Plummer me anunciou o preço que estavam dispostos a pagar. Era... era uma quantia esmagadora. Uma soma que seria a solução para todos os meus problemas. Verdadeiramente irresistivel. Concordei em lhes entregar a nova Bíblia, ou pelo menos transcrições das novas descobertas que ela contivesse. Prometi-lhes a entrega da Bíblia para ontem.
Mais uma vez Randall manifestou a sua surpresa e confusão.
- Como é que esperava deitar as mãos a um exemplar?
0 livro encontra-se fechado a sete chaves e na maior segurança no çofre- forte do impressor. Todas as páginas de provas da edição especial antecipada estão em cofre.
0 Dr. Knight agitou um dedo em discordância.
- Nem todas. Mas não nos afastemos da minha cronologia. Anteontem tentei obter uma cópia da nova Bíblia, mas falhei. Claro que não a pude entregar conforme o combinado, e tive que convencex o meu contacto, provando a minha boa-vontade. Assim, fiz uma busca nas minhas notas e em documentos obtidos, entre eles figurava o seu memorando com o código do apóstolo Mateus.
-Estou a ver.
-Claro está que não ficaram satisfeitos. Que-riam a Bíblia. Fui positivo em que poderia obter um exemplar nessa mesma noite, isto é, quanto a nós, ontem à noite.
-Mas não pôde...
- Pelo contrário. Pude e fi"lo. Randall estremeceu.
- Obteve o Novo Testamento Internacional?
- Sim, com poucas dificuldades. Veja bem, Mr. RandalI, nem todas as páginas de provas da edição se encontram em cofre. Cada teólogo chefe tem o seu exemplar. 0 Dr. Jeffries tem uma cópia. Não se esqueça, as nossas relações continuam ainda a ser íntimas. jeffries possui um enorme quarto no primeiro piso, quarto a que eu tenho acesso para poder consultar os seus livros de referências. Sabia que ele tinha o exemplar do Novo Testamento numa pasta que tem um cadeado que só se abre por meio de combinação de letras, tal e qual como um cofre-forte. Mas o Dr. Jefries; é um homem distraído, tornando-se um hábito comum escrever todas as coisas para lhe ajudarem a memória. Passei uma busca subtil ao quarto dele para obter a combinação. Tal como esperava estava escrita numa pequena agenda. Decorei-a. Ele projectava sair anteontem à noite, mas à última hora cancelou o encontro que tinha. Mas a saída ficou adiada para ontem. Esperei que ele saísse, depois entrei-lhe no quarto. Abri a pasta e tirei as provas encadernadas do Novo Testamento Internacional. Levei o livro para fora do hotel e fui direito a uma loja de fotocópias, uma loja que descobrira antes e que sabia estar aberta à noite. Mandei fotocopiar as páginas com o material anotado, com a tradução do Pergaminho Petrónio e do Evangelho Segundo Jacob. Voltei ao quarto do Dr. JeIfries e coloquei as provas na pasta. Depois regressei a este quarto com as minhas fotocópias.
Randall sentiu-se vacilar.
-E entregou-lhes o material?
0 Dr. Knight mais uma vez agitou o dedo espetado em ar de reprovação.
- Estive quase... cheguei a levantar o telefone para fazer uma chamada para o meu contacto, entregando as fotocópias por trinta moedas. Mas, como sabe, sou aquilo que sou e não me posso furtar a esse destino... sou um estudioso, um erudito muito curioso, acima de poder ser um negociante prático. De modo que não fui capaz de resistir a ler primeiro o Evangelho Segundo Jacob antes de lhes entregar o documento.
- Leu-o então... - pronunciou Randall pausadamente. E que aconteceu depois?
- 0 milagre - disse o Dr. Knight com simplicidade. -0 quê?
- Aconteceu a minha comunicação com o Senhor e o milagre que se seguiu, Mr. RandalI, se me conhecesse bem saberia que sou um homem profundamente interessado na religião, sem ser todavia um homem intensamente religioso. Encarei sempre Cristo, a Sua Missão, a partir de um ponto de vista exterior, objectivamente, como um estudioso. Nunca me aproximei d'Ele suficientemente, nem 0 admiti dentro do meu coração. Mas na noite passada li o Jacob neste quarto, sentado exactamente nesta cama e chorei, vi o Cristo verdadeiro pela primeira vez, pela primeira vez senti aSua fé e misericórdia. Fui apanahado pela tempestade mais violenta que desde sempre experimentei, Poderá compreender-me?
Randall fez um gesto positivo com a cabeça, incapaz de pronunciar qualquer palavra.
Com palavras cada vez mais fluentes e mais veementes, o Dr. Florian Knight continuou:
- Depois de ler deixei-me cair de costas sobre a cama e fechei os olhos. Fiquei positivamente sufocado de amor por Cristo, de uma fé esmagadora da Sua pregação e avassalado pelo desejo de Lhe ser útil. Devo ter adormecido. No meu sono, ou talvez em certo interlúdío em que despertei durante a noite... não sei bem... vi Jesus, toquei-lhe. a fímbria da túnica, ouvi-O falar-me... a mím... dizer-me algumas das palavras que Jacob, irmão do Senhor, registou para a posteridade. Roguei"lhe que me perdoasse os pecados cometidos e os por cometer mas pensados. Prometi a Nosso Senhor devotar-lhe a minha vida. Jesus, na sua infinita misericórdia, lançou-me a Sua bênção, dizendo-me que a partir de então tudo seria justo na minha vida. É possível que veja em tal episódio, no sonho a dormir ou no sonho acordado, uma espécie de alucinação, de loucura... Também pensei que poderia estar a ser louco ou lunático, se não fora aquilo que se seguiu.
0 Dr. Knight, possivelmente mergulhado na introspecção calou-se.
RandalI, observando a forte emoção que se havia apoderado do seu interlocutor, e ávido de conhecer o que se tinha passado, acicatou-o:
-0 que foi que se seguiu, Dr. Knight?
- 0 inacreditável - murmurou a pestanejar. - Bom, acordei esta manhã muito cedo, embora a luz do sol já penetrasse a jorros por essa janela que está por cima de si. Todo eu estava empapado em suor, mas senti-me expurgado de toda a mesquinhez. Sentia.me em paz. Deixei-me ficar na cama a saborear essa paz... foi nessa altura que ouvi distintamente um som doce, meigo, extraordinário, um passarito a chilrear no peitoril da janela. Um passarito, ouvi um passarito a trinar a sua canção, eu que em muitos anos nunca ouvira, nunca fora capaz de poder ouvir semelhante coisa... eu que durante anos mal podia ouvir a voz de um ser humano, mesmo que ele estivesse junto de mim, se não me gritasse... eu que era surdo há tempo imemorial, estava a ouvir um passarito a cantar e sem ter o aparelho auditivo nos ouvidos... porque nunca durmo com o aparelho posto. Olhe para ele, ali está na mesinha de cabeceira, precisamente no sítio onde ontem à noite o deixei... já não preciso dele... o senhor não deu por isso... mas o facto é que ouvi todas as palavras que pronunciou neste quarto. Ouvi-as claramente, facilmente, sem ter que fazer o mínimo esforço. Esta manhã fiquei positivamente doido de contentamento. Depois de ouvir o passarinho, saltei da cama e acendi o meu rádio de transistores, deliciando-me com a música que me inundava o ser. Abri a porta do quarto de par em par, e pude ouvir as criadas que estavam lá fora no corredor, a conversarem, e eu podia-as ouvir perfeitamente. Tinha-me oferecido de corpo e alma a Cristo e Jesus tinha-me ouvido, escutara as minhas preces e curara-me. Eis o milagre. Acredita-me agora, Randali?
-Acredito, Florian - respondeu RandalI, profundamente comovido. Pensou no que iria ouvir a seguir e não teve que esperar muito.
- Quando consegui recompor-me totalmente, fiz a chamada telefónica. Falei ao meu contacto, disse"lhe que estava pronto a vé-lo, em vez de ir trabalhar. Encontrei-me com ele na oculta residência que possui em Amesterdão, avisandoo de que me tinha sido impossível obter a cópia da nova Bíblia para lhe entregar. Lamentei que lhe tivesse feito essa promessa e que me arrependia até do material que já lhe havia entregue. Pedi--lhe que me entregasse aquilo que lhe havia dado, o seu memorando com o nome do discípulo Mateus. Respondeu-me que era impossível, que se encontrava já noutras mãos. Presumivelmente devia ter já chegado ao conhecimento de de Vroorne, embora eu não tenha a certeza.
- Sim, já estava na posse do Dominee.
- Depois, essa pessoa... o meu contacto... instigou-me a que continuasse a tentar obter um exemplar da Bíblia para lhe entregar. Disse.lhe que a ideia se me tornara repugnante. Respondeu-me que me pagariam mais do que tinha sido combinado. Retorqui-lhe que não estava interessado no negócio. Tornou"se então ameaçador, garantindo-me que a não ser que cooperasse procederia à minha denúncia. Frisei-lhe que não me importava nada com as ameaças e voltei-lhe as costas. Regressei aqui ao hotel e destruí as fotocópias que mandara tirar do Novo Testamento Internacional, para ter a certeza de que o conteúdo ficaria fora do alcance de de Vroorne. Pouco de-pois anunciaram-me a sua visita. Pode pois ajuizar agora o quanto devo ao novo livro, ao projecto e porque roguei para não consentir que me despedissem. Tenho que ficar, que ajudar uma obra tão extraordinária.
Enquanto ouvira, Randall fora reflectindo. Não podia estar em causa a maneira como -se por meios miraculosos ou psicológicos - o aparelho auditivo do Dr. Knight fora restaurado. Em certo sentido, na verdade, acontecera um autêntico milagre. Se o milagre de Lori Cook havia sido ou não uma fraude, era coisa que já não interessava. 0 milagre do Dr. Knight era prova suficiente do poder da mensagem contida na nova Bíblia. Mas, segundo garantiu a si mesmo, era um milagre que nunca revelaria pessoalmente aos editores. Não deixaria que o caso fosse explorado para obtenção de maiores vendas do Novo Testamento Internacional. Estava disposto a aconselhar o Dr. Knight a manter também segredo, a continuar a usar o seu aparelho auditivo até que a Bíblia tivesse sido apresentada ao público com todo o êxito. Tor" nava-se mais do que evidente que o Dr. Knight passara a ser uma pessoa a quem se poderia confiar totalmente. A sinceridade do homem não oferecia a mais leve dúvida. Só faltava uma coisa.
-Florian, se deseja ficar connosco e ajudar à nossa obra, deve denunciar-me agora quem é o traidor que se encontra entre nós, a pessoa que contactou consigo e que colabora com de Vroome.
- Não, essa pessoa na verdade não colabora directamente com de Vroorne, nem sequer tenho a certeza de que o conheça pessoalmente. É um íntimo amigo de Cedric Plummer. Foi uma coisa quc me saltou à vista a primeira vez que me levou à presença do jornalista. Encontramo-nos no clube nocturno Fantasio. Os dois tipos fumaram umas cachimbadas de haxixe. Pareceram"rne mais do que íntimos. Tenho a certeza que o meu contacto deu os nossos segredos a Plummer e que foi este, por sua vez, quem os levou a Maertin de Vroome.
- Talvez tenha razão. Agora o nome do homem que colabora com Plummer... Quem é o traidor da Ressurreição Dois? Tem que mo dizer,
- Pergunta-me quem é o Judas? - Knight parou por breves momentos. - É Hans Bogardus, o bibliotecário do projecto. É ele o homem que deve ser corrido como um leproso. Não quero ver o nosso Cristo crucificado de novo e para sempre.
De regresso ao primeiro andar do Grande Hotel KranapoIsky, Steve Randall enfiou direito ao seu gabinete.
No escritório da recepcionista, Ãngela Monti levantou inquisitorialmente os olhos das teclas da máquina de escrever, perguntando-lhe:
-Foi o Dr. Florian Knight?
- Não.
- Sinto-me contente. Então quem é o traidor?
- De momento não discutamos isso, Ãngela. Falamos mais tarde. Por favor faz-me uma ligação para o Dr. Deichhardt. Se não o encontrares, liga-me para George Wheeler.
Randall entrou no seu gabinete. Tirou o mínigravador do bolso, ligou-o, fez girar em sentido contrário a fita magnética
505 Irving Wallace / A PALAVRA
da «cassete» durante alguns minutos, a seguir premiu o botão do movimento normal, ouviu a gravação, voltou novamente atrás, tornou a escutar atentamente., fazendo parar a fita de quando em vez para apagar certas informações secretas. Finalmente, satisfeito, desligou a máquina, meteu-a na pasta e esperou que Angela fizesse soar o intercomunicador,
Por fim, demasiado impaciente para aguentar a espera agarrou na pasta e entrou no escritório de Ãngela, precisamente no momento em que esta pousava o auscultador no descanso.
- Lamento, Steve. Nenhum deles se encontra no Kras. Ambos saíram de Amesterdão. A secretária do Dr. Deichhardt disse-me que os editores partiram para a Alemanha, para Maitiz, a fim de terem esta manhã urna reunião com Hennig.
- Ela disse quando é que estarão de volta a Amesterdão?
- Perguntei-lhe isso mesmo. Não sabe. Possivelmente não lhe disseram nada.
RandalI, entredentes, proferiu uma maldição. Teria que realizar sozinho todo o trabalho sujo. Sabia perfeitamente que o crítico encontro com Bogardus não podia esperar. Estavam em causa coisas da mais extraordinária importância,
- Obrigado, Ãngela. Até logo.
Saiu do corredor, voltou à direita lá ao fundo, e acabou por parar diante de uma porta marcada Kamer 190. No painel superior da porta estava pintada a palavra BIBLIOTECA em cinco línguas e logo por baixo em cursivo, Hans Bogardus.
Randall rodou a maçaneta e entrou.
Hans Bogardus estava sentado a uma imensa secretária onde se empilhavam rimas de livros. Estava atentamente debruçado para um volume e, de quando em vez tomava umas notas. 0 seu comprido cabelo loiro, cor de palha, caía"lhe para a frente ocultando parcialmente o rosto. Ao som da porta a abrir"se e a fechar-se, levantou vivamente a cabeça. Os seus traços jovens e de natureza efeminada manifestaram surpresa. Principiou um movimento para se levantar, mas um gesto imperioso de Randall impediu que consumasse a acção.
- Não vale a pena levantar- sc - disse RandalI, sentando-se sem cerimónias na cadeira em frente dele, no outro lado da secretária.
Quando Randall começou a colocar a pasta em cima da atravancada secretária e a abri-Ia, olhou directamente para o jovem bibliotecário holandês. Como sempre, Steve achou Bogardus repulsivo. Com excepção dos olhos protuberantes de rã e dos lábios carnudos e salientes, a cara do bibliotecário era quase plana, com os buracos das duas narinas a quererem representar um nariz. A cor da pele era de um branco pálido, deslavado, quase albino.
-Como passa, Mr. Randall? -perguntou Bogardus na sua vozinha de falsete.
Randal, sem perder tempo a responder, apontou para a pasta.
- Tenho uma coisa para si.
Bogardus olhou inquisitivamente para a pasta.
-A Bíblia final impressa em Mainz... Será que já chegou? -Não, ainda não chegou. Mas posso desde já dizcr-lhe, Hans, que quando chegar não será você quem lhe porá a vista em cima.
As pálidas pálpebras de Bogardus abriram-se e fecharam-se várias vezes. Passou a ponta da língua pelos proeminentes lábios.
- Como... Eu não... Que raio quer dizer com isso?
- Precisamente isto - disse, Randail, tirando o minigravador da pasta e colocando-o em frente de Bogardus, ao mesmo tempo que premia a tecla play. -A primeira voz que ouvir é a do Dr. Florian Knight. A outra pertence--me. A gravação foi feita há menos de uma hora.
A voz do Dr. Knight começou a ouvir-se com inequívoca fidelidade. Randall inclinou-se para a frente, ajustou o volume, e recostou-se depois na cadeira cruzando os braços enquanto ia observando as reacções do bibliotecário.
Gradualmente, nos dolorosos e lentos segundos que foram decorrendo enquanto a confissão do Dr, Knight ia enchendo a sala pejada de livros, a cara descolorida de Hans Bogardus começou a tingir-se de uma cor indecisa. Pinceladas de cor-de"rosa apareceram-lhe nas chatas maçãs do rosto, mas sem que ele fizesse o mais leve movimento. Como em contraponto ao discurso do Dr. Knight só se ouvia o seu respirar apressado, penoso.
A fita estava quase no fim e ouviu-se então a concludente acusação final. A voz do Dr. Knight soou cheia de solenidade.
0 nosso Judas? É Hans Bogardus, o biblíotecario do projecto.
É ele o homem que deve ser corrido, como um leproso. Não quero ver o nosso Cristo crucificado de novo e para sempre.
Depois do arranhar final da fita a desbobinarse, indicando o fim da gravação, Randall inclinou-se, tocou no botão marcado stop e guardou o gravador na pasta.
Foi com frieza que fitou o olhar parado do bibliotecário.
- Importa-se de ir desmentir o que acaba de ouvir em frente do Dr. Knight, perante a junta reunida dos editores e na presença do Inspector Heldering?
Hans Bogardus não respondeu.
- Muito bem, Bogardus, você foi apanhado. Felizmente para nós que aquilo que você entregou ao seu amigo Cedrie Plummer, com destino às mãos do Dominee de Vroorne, foi de pouquíssimo valor. Mas claro está que não obterá mais nada, e muito menos ainda um exemplar da edição especial da Bíblia. Vou fazer com que Heldering envie para aqui um guarda dos serviços de segurança para o vigiar... Até conseguir contactar com Deichhardt ou Wheeler hoje mesmo em Mainz de modo a que eles o despeçam.
Randall ficou à espera de urna histérica ejaculação de desmentido, de uma demente cena de defesa, ainda que a prova tivesse sido insofismável.
Mas o homem não abriu a boca.
Pouco depois começou a esboçar-se um sorriso no rosto chato do holandês, sorriso que tinha algo de satânico.
- 0 senhor é maluco, Randall. Esses seus patrões... essa gente não se atreve a despedir-me.
Estava a acontecer algo de inesperado, de totalmente deslocado em relação a tudo o que se havia passado.
-Pensa então que não o despedirão? Suponha que nós...
- Sei que não me despedirão - interrompeu Bogardus com
decisão. - Não, não se atreverão a despedír-me quando ouvirem aquilo que descobri. Continuarei no meu emprego até que queira ir-me embora de livre vontade. E posso dizer-lhe que- não faço tenções de partir sem levar um exemplar da Bíblia comigo.
Randall decidiu que o jovem holandês tinha o juízo avariado. Não valia a pena estar a gastar saliva com aquele imbecil. Levantou-se.
-Muito bem, vamos lá procurar saber se o despedem ou não, Vou fazer unia ligação telefónica para Deichhardt ou Wheeler em Mainz...
Hans Bogardus inclinou-se para a frente, continuando a sorrir para Randall com o ar de um diabrete de baralho de cartas de poker.
-Sim, vá lá telefonar, mas quando falar com eles não se esqueça de uma coisa. Diga-lhes que Hans Bogardus, com o seu gênio, descobriu na Bíblia deles aquilo que todos os cientistas, eruditos de textos comparados e teólogos foram demasiado cegos para verem, Diga-lhes que Hans Bogardus descobriu uma deficiência fatal, uma fífia, na nova Bíblia, um deslize que pode destruí-la, revelando-a como urna falsificação. É um deslize que se for revelado ao mundo lançará toda a obra completamente. por terra. Será a ruína total do projecto. E sem dúvida que revelarei essa brecha vulnerável no tremendo edifício se me forçarem a deixar o cargo que ocupo.
0 tipo era completamente doido, não havia dúvida. No entanto, o jovem holandês falava com convicção absoluta; tanta convicção que Randall voltou a deixar-se cair na cadeira, Recordou-se de Naorni lhe ter dito certa ocasião que Hans Bogardus tinha um cérebro gênero computador, que podia detectar fosse o que fosse.
-Urna deficiência fatal na nova Bíblia? Como pode ser isso se se trata de uma obra que ainda não o autorizaram a ler, que nem sequer viu?
- Pode crer que já li o suficiente, Durante uni ano mantive-me sempre alerta. Olhei, investiguei, ouvi, fui reunindo todas as peças de interligação da obra. Não se esqueça que sou o bibliotecário, que sou eu quem referencio os livros de texto. Chegaram-me pedidos para investigar uma palavra, um período, um parágrafo, uma citação. A parte de leão está guardada, mas não se esqueça que vi muitos bocados separados do quebra-cabeças. É verdade que certas partes essenciais me foram vedadas, a mim e a outros. Não é menos verdade que desconheço o conteúdo exacto da descoberta de Ostia Antica. Não sei noventa por cento do texto, mas sei que diz respeito a material até agora desconhecido acerca de Cristo, com pormenores do seu ministério ter sido alargado na terra. Sei no entanto, de certeza, que a nova obra apresenta Jesus como tendo estado em vários lugares fora da Palestina, e que um desses lugares foi Roma.
Randal sentia-se impressionado, ao mesmo tempo que experimentava um certo respeito pelo bibliotecário.
-Muito bem, Hans. Vamos supor que o pouco que conhece é exacto. Pretende que eu acredite que esse pouco contém para si inforinações suficientes para poder ter descoberto algo de errado, de díspar, aquilo a que chama uma fifia...
-Unia fifia fatal. - _seja, uma fífia fatal que escapou aos maiores peritos do mundo, aos homens que leram o texto total, que o traduziram e estudaram atentamente durante anos?
- Precisamente. Esses homens possuem uma visão de funil, só vêem aquilo que querem ver, porque consideraram o texto com a estreita visão da fé. Posso dizer-lhe que casos desses aconteceram já antes em Amesterdão. Entre 1937 e 1943 foram descobertos seis novos, e até então desconhecidos, quadros pintados por Verincer, um pintor do século XVII. Foram descobertos por um homem chamado Hans van Meegeren e vendidos por oito milhões de florins - cerca de três milhões de dólares - aos maiores museus e coleccionadores de arte do mundo. Os críticos e os peritos louvaram os Vermeer como autênticos, sem sequer verem que as mãos do Cristo de uma das telas eram a reprodução das próprias mãos de Meegeren, que as cadeiras de uma outra tela eram as cadeiras do moderno estúdio dele, que os óleos utilizados nas telas continham resina sintética, que antes de 1900 não existia. Ora Vermeer tinha morrido em 1675. Os quadros eram falsifica" ções, falsificações que mais tarde vieram a lume. Mas fosse quem fosse que tivesse olhos para a verdade não necessitaria de ver toda uma tela dos Vermeer forjados para encontrar o deslize. Teria sido suficiente um quarto de centímetro para analisar a resina sintética. Pois bem, eis o paralelo, a mim, sem estar obcecado, bastou~me um quarto de centímetro do quadro da vossa Bíblia para ver que se tratava de uma falsificação.
Uma vez que o ouvira até ali, Randall decidiu ir um bocado mais longe.
- E tendo descoberto esse... esse chamado deslize, apressou-se a desvendá-lo a Plummer e a de Vroome?
Bogardus hesitou.
-Não, não revelei nada. Ainda não revelei.
- Porque não?
- Trata-se de... de um assunto pessoal.
Randall apoiou as mãos abertas no tampo da secretária e, com um súbito impulso, levantou-se.
- Muito bem, agora tenho a certeza que mente. Se tivesse encontrado algo de errado na Bíblia, iria direitinho fazer a revelação a Plummer. Não é verdade que ele lhe costuma pagar substancialmente o preço da traição?
Bogardus saltou da cadeira como se fosse impelido por uma mola. 0 seu rosto chato era urna massa congestionada de um cor-de-rosa pálido e nos olhos fuzilava-lhe a ira de uma pessoa que fosse ultrajada na sua honra.
- Cedric não me paga nada! 0 que lhe faço é por amor! Randall sentiu-se estarrecer de nojo, Bom, de qualquer modo ali estava a ligação dos factos, Considerou Bogardus e Plummer a viverem um romance de amor. Tinha tocado sem dúvida um nervo de alta tensão carregado de homossexualidade.
Bogardus voltou à posição inicial.
-Mantive até agora em segredo aquilo que descobri, não revelando fosse o que fosse a Cedric. Sei perfeitamente o valor que teria para ele. Seria até mais importante do que a nova Bíblia. Se o Cedric pudesse escrever sobre a fifia, se a tornasse pública, seria... famoso e rico... mas eu tenho mantido o caso em segredo porque... como é que se costuma dizer?... Ah, ponho as barbas de molho. Porque ultimamente o Cedric não se tem mostrado tão carinhoso comigo como ao princípio, e... eu sei... pressinto que me tem sido infiel, com alguém que é mais jovem e mais atraente. Cedric tem-me dito que quando tudo isto estiver acabado me levará numa viagem de férias ao Norte de África. Uma viagem que se fará depois de eu lhe ter entregue a nova Bíblia. Sim, a nova Bíblia tem sido suficiente para que de momento o possa conservar para mim. Mas para o caso das coisas se passarem de forma diferente, continuo a ter um trunfo na manga com aquilo que descobri pessoalmente e que será o bastante para demolir todo este edifício.
Randall sentira-se enojado e ao mesmo tempo tocado pela piedade perante o desespero que vibrava na voz do holandes, desespero de alguém que receia perder o ente amado. Mas começava também a imaginar que validade poderia haver na reivindicaçao do bibliotecário sobre o ter conhecimento de algo de errado no Novo Testamento Internacional, algo que pudesse ser uma matéria de descrédito. Bogardus poderia estar a mentir, a jogar com uma coisa que manietasse de medo os editores, impedindo-os de o despedirem e forçando"os a entregarem-lhe o texto do livro. Não havia outra possibilidade a não ser lançar um desafio directo ao traidor.
- Hans...
0 holandês, ainda imerso no seu desespero de amor pela possível perfídia de Plummer, estava abstracto como alguém fechado numa concha, esquecido de que não se encontrava sozinho.
- Hans, você não me forneceu nenhuma razão para que eu não relate o que sei aos editores e para que eles não o ponham imediatamente na rua. Você gabou-se de ter encontrado uma discrepância numa passagem da nova Bíblia. Julgo que é o que pretende insinuar com a sua fífia. Se na verdade encontrou tal prova, chegou o momento para a revelar ou então para calar essa boca. Naquilo que me toca, penso que você não encontrou nada que me impeça de fazer com que o ponham no olho da rua.
- Ah, pensa então que não? -perguntou Bogardus com ar feroz.
Mas não acrescentou mais nada.
Randall hesitou.
-Continuo à espera.
Hans Bogardus, passando a língua pelos lábios secos, continuava silencioso.
-Muito bem, agora tenho a certeza que você não só é um traidor como um fala barato. Acabou-se. Vou tomar providências para que o ponham na rua como um cão.
Deu meia volta e começou a caminhar para a porta.
- Oiça! - gritou subitamente Bogardus, que se levantou com a rapidez do raio, embargando o passo a Randail. -Pode ir dizer-lhes para me porem na rua, mas não deve dizer-lhes só isso. Não interessa nada que eles saibam ou não. Seja como for já é muito tarde para eles, Diga-lhes que verifiquem o papiro número 9, a quarta linha a começar de cima. Ainda ninguém conseguiu ver o que isso significa excepto eu. Se eu entregasse este segredo ao Cedric seria o fim da Ressurreição Dois. Mas... -parou para respirar ruidosamente -...prometo nunca revelar o que sei se eles me entregarem a Bíblia imediatamente. De outra forma estarao completamente perdidos.
-Hans, o que eles vão fazer é escorraçarem-no daqui para fora ainda hoje.
-Fale-lhes no papiro número 9, quarta linha... E verá.
Randall afastou o homossexual do seu caminho, abriu a porta e saiu.
Perfeitamente, ia ver.
Uma hora depois já tinha visto.
Randall estava sentado à sua secretária, corri o telefone no ouvido, seguro pelo ombro, esperando que a telefonista dos escritórios de Karl Hermig, em Mairiz, localizasse George Wheeler.
Enquanto esperava ia passando nova vista de olhos às folhas de papel dactilografadas com as notas que obtivera. Representavam o que conseguira saber sobre a «fífia fatal» de Bogardus no papiro número 9, linha 4, do Evangelho Segundo Jacob.
Tinha-lhe sido dificultoso adquirir as informações. Por um lado, Randall não era um erudito nem um estudioso. Por outro lado não tinha acesso aos fragmentos originais guardados no cofre forte da cave. E a acrescentar a todo esses óbices, fosse corno fosse não sabia ler aramaico. A última coisa é que constituíra o principal impedimento, visto ter-se lembrado de repente que possuía um jogo completo de fotografia tiradas por EdIund aos papiros, o único jogo de fotografias existentes. 0 material encontrava-se bem fechado no seu arquivo privativo.
Estudara atentamente o perfeito close-up do fragmento marcado com o número 9, mas claro que se lhe mostrara indecifrável e desprovido de significado com os seus gatafunhos, pontos e caracteres cheios de arrebiques, a maioria ainda por cima pouco nítidos. Mas a impressãa estava acompanhada por urna lista dos títulos dos capítulos e pelos respectivos números dos parágrafos, designando onde cada uma das linhas em aramaico figurava nas traduções do Evangelho Segundo Jacob. 0 Papiro Número 9, linha 4, correspondia a Jacob 23:26 na edição inglesa do Novo Testamento Internacional.
Uma vez que não lhe tinham permitido ficar com uma cópia da Bíblia que havia lido, Randall concentrou ideias para ver quem teria um exemplar à mão. Os editores estavam longe de Amesterdão.
0 Dr. Knight havia destruido as suas fotocópias. Nessa sequência, Randall lembrou. se que o Dr. Knight havia utilizado as páginas das provas contidas na pasta do Dr. Jcffries.
Conseguira localizar o professor de Oxford no seu gabinete e o teólogo mostrara-se encantado em poder cooperar. Ummm... jacob 23:66... Ummm, vamos lá ver. Randall acabara por se retirar do gabinete com a linha traduzida: «Na sua fuga de Roma, Nosso Senhor, juntamente com os discípulos caminhou durante toda essa noite através das abundantes terras de cultivo do Lago Fueinus, um imenso pantanal que fora mandado secar e dragar por Cláudio César e que os romanos amanhavam com os maiores cuidados». Simples, fácil de compreender, perfeitamente inocente.
Onde é que estava a fatal fífia que Bogardus tinha descoberto e mencionado?
Os judeus haviam sido escorraçados de Roma em 49 A.R., e Jesus com eles. Aquilo tinha-se passado no ano da morte de Cristo, o último ano da sua vida, Segundo Jacob. 0 que é que havia de errado naquilo?
Sem revelar aquilo que procurava, Randall recrutara Elwin Alexander e jessica Taylor para lhe descobrirem tudo o que houvesse a respeito do Imperador Cláudio, da expulsão Judaica de de Roma em 49 A.D. e sobre aquelas terras de cultivo que outrora haviam sido os pantanais do Lago Fucinus, próximo de Roma. Os seus investigadores tinham rebuscado as obras dos antigos escritores - Tácio, Suetónio, Dion Cássio, o grupo que traçara a História Augusta, bem como os historiadores modernos, tanto anteriores como posteriores a Gibon. Em resumo ' a equipa de publicitários de Randall acabara por lhe entregar fotocópias de todo o material que haviam investigado.
Catando minuciosamente por entre todo aquele material, repentinamente Randall sentira os olhos ficarem--lhe presos a uma data. Abalado, reconheceu imediatamente qual o deslize fatal a que Bogardus se referia.
0 Lago Fucinus, perto de Roma, havia sido uma grande bacia de água sem saída para o mar. Regularmente, quando chegava a estação das chuvas na antiga Roma, as águas do Fucinus elevavam-se acima do nível do leito, transbordavam e empapavam as terras circundantes, transformando-as em pantanais.
0 Imperador Cláudio contratara engenheiros para dragarem e secarem o lago permanentemente. Esses engenheiros desenvolveram um colossal plano. Fora uma tarefa formidável. Foi escavado um túnel de 4 827 metros a partir do Lago Fucinus, através da rocha viva de uma montanha adjacente, para canalizar a água até ao rio Ciris. 0 Imperador Cláudio deslocara trinta mil trabalhadores que, durante um decénio, escavaram e construíram o túnel de drenagem. Logo que ficou completado, as águas do lago foram totalmente despejadas no rio e depois do lago seco a depressão, bem como as terras pantanosas circundantes, converteramse em belíssimas terras de agricultura.
Segundo o Evangelho de Jacob, Jesus caminhara por essas terras agrícolas, que outrora haviam sido o Lago Fucinus, em 49 A.D. Ora, segundo os historiadores romanos, Cláudio César só
mandara escoar as águas do lago, transformando as terras pantanosas em terras de cultivo no ano 52 A.D.
A fífia, a fífia descoberta por Bogardus.
Jesus, fugitivo, passara pelas terras secas do lago em 49, apesar do facto irrefutável do lago existir ainda nessa data, só vindo a ser esvaziado da sua água três anos depois de Cristo ter morrido.
0 anacronismo, a discrepância no Evangelho Segundo Jacob ali estava bem à vista para quem a quisesse ver. Possivelmente ninguém ainda se dera conta do deslize com excepção do bibliotecário. No entanto, se a passagem fosse sublinhada, mostrada a todo o mundo, sem a mínima sombra de dúvida que as gentes ficariam tão perturbadas como Randall estava naquele momento. Devia haver uma explicação para aquele deslize.
Ainda à espera da chamada para Mainz a fim de falar com George Wheeler, Randall pensava que o editor não teria dificuldades em resolver o problema com justiça. E uma vez o caso sanado, Bogardus poderia ser despedido imediatamente e a Ressurreição Dois estaria finalmente a salvo das garras rapaces do Domince de Vroorne.
A telefonista alemã do complexo impressor de Hennig estava de novo a falar:
-Herr Wheelcr já foi avisado. Em breve estará a atender o telefone.
Depois ouviram-se uma série de arranhadelas e clicks e, logo a seguir, a voz de Wheeler a chegar aos tímpanos de Randall como um trovão.
-Alô! Quem fala daí... Steve Randall? -Eu mesmo, George. Tenho que...
-Arrancaram-me precisamente a uma reunião importantis-sima. Disseram-me que era uma chamada de urgência. Que raio pode haver que seja assim tão importante? Não será coisa que possa esperar até eu regressar?
Não obstante a irritação manifestada por Whecler, Randall persistiu:
-Não, George, não é coisa que possa esperar. É na verdade importantíssimo. Deparou-se-nos aqui um problema tremendo a resolver.
-Se se trata de algo ligado à publicidade...
-É uma coisa que diz respeito a todo o projecto em si, que se relaciona com a Bíblia. Vou informá-lo rapidamente. Ontem à noite encontrei-me com o Reverendo Maertin de Vroorne.
-Como? Você encontrou"se com de Vroorne?
- Exactamente. Foi ele que me mandou procurar. Senti-me tão curioso que fui.
- Foi um passo perigoso. 0 que é que o homem queria?
- Contar-lhe-ei os pormenores quando você voltar. A coisa que interessa...
- Steve, escute, amanhã falaremos sobre o caso. - A voz de Wheeler tinha uma entoação de pressa, - Agora tenho que me ir juntar aos outros editores e a Hennig. Estamos numa reunião de emergência. Ocorreu um caso insólito. Falamos depois...
- Parece-me que sei perfeitamente o que é essa emergência - interrompeu Randall. - Descobri que Plummer e de Vroorne estão a tentar fazer chantagem com Hennig. Possuem provas de que ele foi um dos nazis queimadores de livros em 1933.
Do outro lado do fio veio uma exclamação de surpresa. -Como é que descobriu isso?-perguntou Whecler. -Fui informado por de Vroorne..
- Esse filho da mãe...
-0 que é que vocês vão fazer a respeito do caso? - perguntou RandalI, curioso.
- Ainda não temos a certeza. De Vroome possui os negativos e algumas fotocópias, mas a verdade é que as fotografias podem mentir. Neste caso particular as fotografias deslustram a verdade dos factos. Nessa altura Karl Hennig era ainda uma criança, mal acabara de entrar para a escola prepratória. Para ele, os outros estavam a divertir-se nas ruas e quis juntar-se à diversão. Que rapaz não se sentiria tentando a atirar ao fogo com as obras maçudas que figuravam nas selectas? De nenhuma maneira foi um nazi, nem sequer fez parte das juventudes Hitlerianas. Mas se a coisa for revelada, distorcida, tornada objecto de sensacionalismo... Bem, você que é um homem da publicidade sabe muito como é...
-Bem sei. 0 quadro apresenta-se negro. Prejudicará as vendas.
- Bom, mas nada será revelado - garantiu Wheeler em tom convicto. - Temos vários planos para amordaçar os nossos inimigos. Uma coisa é certa: de modo nenhum pagaremos o preço exigido por de Vroome. Não lhe entregaremos antecipadamente o nosso segredo seja porque preço for.
- Foi precisamente por isso que lhe telefonei, George. Acabo de descobrir uma situação similar de chantagem precisamente aqui no KrasnapoIsky. E pretendo saber até...
- Qual situação de chantagem? 0 que é que se passa por aí? Resumindo, Randall contou-lhe como, durante a reunião com de Vroome, acabara por ser levado a descobrir a identidade do traidor ao projecto.
-E quem é ele? -quis saber avidamente o editor.
- 0 nosso bibliotecário. Hans Bogardus. Estive com ele ainda não há uma hora. Confessou. Mas está disposto a...
- Está despedido! - urrou Whceler. - Você disse- lhe que estava despedido, não é verdade
- Não... um momento, George.
- Vá procurá-lo e diga-lhe imediatamente que vai para o olho da rua. Diga-lhe que a autorização lhe foi dada pessoalmente pelo Dr. Deichhardt e por George Wheeler. Mande chamar Heldering e os seus guardas e atire para a valeta esse filho da puta do Bogardus com um bom pontapé no cu.
- Não é assim tão simples como isso, George. Foi essa a razão porque lhe telefonei.
-0 que é que quer dizer com essas palavras?
- Está a tentar fazer chantagem pessoalmente. Afirma ter descoberto uma prova insofismável que desafia a autenticidade do Evangelho Segundo Jacob. Diz que entregará essa prova ao seu amante, Cedric Plummer... não se admire são essas relações que os ligam... e diz que fará explodir a Ressurreição Dois como um barril de dinamite se o despedirem.
- Que raio está você para aí a dizer, Steve? Que prova é essa? Randall agarrou no seu maço de notas e leu a Wheeler a passagem de Jacob sobre o Lago Fucinus e as investigações feitas aos historiadores romanos e aos mais modernos sobre o mesmo caso.
- Ridículo! - explodiu Wheeler. - Temos os maiores peritos que existem no mundo... peritos na datação dos documentos, em crítica aos textos, em língua aramaica e eruditos na história romana e do povo judaico. Foram anos de trabalho. Cada uma das palavras, frase, período, parágrafo de Jacob foram estudados através lentes de aumentar, foram analisados pelos olhos mais sabedores do globo terrestre, pesados pelos cérebros mais evoluídos do mundo. E todos eles, unanimemente, sem uma única excepção, aprovaram o Evangelho Segundo Jacob, autenticaram-no sem vaci, lações. Por isso, quem é que acreditará num bibliotecário maricas falando de um erro impossível?
- George, é possível que não acreditem nem ouçam um bibliotecário maricas e minhocas, apagado, mas com certeza que todo o mundo acreditará e ouvirá o Domince Maertin de Vroome, se for ele a obter o segredo.
-Pois bem, o Domínce não obterá nada, porque não há nada a obter. Não existe qualquer erro. 0 achado de Monti é real. A nossa Bíblia é à prova de todas as contingências.
- Então como é que você explica o caso do nosso Novo Testamento descrever Jesus a passear através de uni lago seco perto de Roma que na verdade só foi drenado três anos depois da data apontada no nosso Evangelho?
- Tenho a certeza que você ou Bogardus devem estar errados. Enganaram-se. Não há a mínima dúvida quanto a isso. - Fez unia pausa. - Está bem, está bem, só para lhe sossegar o espírito, leia-me novamente esse material... devagarinho. Um momento... Vou procurar um lápis e um bocado de papel. All right, leia-me lá essa coisa sem pés nem cabeça.
Randall leu o mais lentamente possível, destacando bem as palavras.
- É tudo, George - disse quando terminou.
- Obrigado. Vou mostrar aos outros. Mas isto não nos levará a parte alguma. Pode esquecer o caso. Continue a proceder como habitualmente. Primeiro vamos resolver o nosso problema aqui.
- Okay - proferiu Randall, sentindo-se tranquilo. - Então vou prosseguir com o despedimento de Bogardus. Farei com que o Inspector Heldering o escolte até fora do hotel, para nunca mais entrar.
Do outro lado do fio fezse silêncio, um silêncio curto. Logo a seguir, aos ouvidos de Randall chegou uma voz vacilante:
-A respeito de Bogardus... evidentemente que o vamos correr daí para fora. Mas, depois de ter reflectido, julgo que essa atitude deve ser assumida por nós. Isto é... um empregado como Bogardus não está sob a sua alçada. 0 Dr. Deichhardt gosta que em tais assuntos as coisas se façam o mais correctamente possível. Sabe como são os alemaes. Vou dizer-lhe o que deve fazer.
Por hoje esqueça-se do que há a respeito do Bogardus. Continue a fazer o seu trabalho. Amanhã, quando regressarmos, cumpriremos o nosso dever. Penso que é a melhor maneira de agir. Pronto, agora é melhor voltar para a reunião a fim de resolvermos este problema mais imediato com Hennig... Ummm... a propósito, Steve, grato pela sua vigilância. Em Amesterdão colmataremos essa brecha no dique. Merece um bónus. E quanto a esse... esse lago... como é o nome dele... ah, Fucinus... bom, esqueça-o. E Wheeler desligara.
Randall desligou também o telefone.
Todavi a, cinco minutos depois, sem se ter mexido da sua cadeira rotativa, Randall não fora ainda capaz de esquecer o Lago Fucinus.
Tentou determinar o que é que o perturbava. E descobriu.
Fora a modificação no tom de voz de George Wheeler e a mudança de atitude do editor quanto ao despedimento de Hans Bogardus. Em termos rudes, Wheeler quisera primeiramente o bibliotecário imediatamente posto fora do Krasnapoisky. Mas depois de ter sabido da descoberta e da ameaça de Bogardus, Wheeler tornara-se de súbito menos insistente a respeito do despedimento imediato.
Estranho. Mas havido algo que perturbava ainda mais Randall: a maneira casual como Wheeler pusera de parte o anacronismo que Bogardus descobrira. Wheeler não o refutara com quaisquer factos novos e concludentes. Simplesmente levantara a ponta da carpete e varrera o lixo incómodo para debaixo. Evidentemente, Wheeler não era um teólogo ou um erudito, por isso havia a esperar dele respostas fidedignas. Mas, pensou RandalI, melhor seria que alguém descobrisse muito depressa uma explicação para a discrepância.
Empertigou-se na cadeira. Ele, Steve Randali, era em si mesmo um dos guardiães da Fé, da nova Fé. Tanto na sua qualidade de ser humano como de homem da publicidade, não podia vender fosse o que fosse ao mundo (ou que fosse contrário ao senso do seu espírito de verdade) se não pudesse ter respostas exactas a dar a todas as perguntas que se levantassem.
Ora ali, na sua secretária, estava uma pergunta. A fífia de Bogardus. A credibilidade do projecto poderia ser destruída se não lhe fosse dada resposta.
É verdade que era uma coisinha pequeníta.- todavia...
Pela mente passou-lhe um velho, muito velho, adágio. De quem era? De George Herbert... ou talvez de Benjamin FranMin. Por falta de um cravo se perde a ferradura, por falta de uma ferradura se perde o cavalo, por falta de cavalo se perde o cavaleiro. Pois bem, aquele cavaleiro não se perderia.
Ia começar por verificar a solidez de todos os cravos que seguravam a ferradura.
Randall lançou mão do tefelone.
- Ãngela, faz urna ligação para Naorni Durin. Diz-lhe que pretendo uma passagem de avião para Paris dentro das mais próximas duas horas. Diz-lhe para me arranjar uma entrevista ainda esta tarde com o Professor Henri Aubert no laboratório dele.
- Outra viagem? É alguma coisa importante, Steve?
- Apenas investigações. Mais umas pesquisas.
Randall estava mais urna vez em Paris, no Centre National des Recherches Scientifiques da Rue Ulm, onde o Professor Aubert tinha o seu gabinete e os seus laboratórios.
Naquele momento, sentados nos extremos opostos de um sofá Louis XVI, enfrentavam-se, enquanto Aubert abria a pasta de arquivo que. um contínuo lhe acabava de entregar.
Antes de considerar o conteúdo da pasta, Aubert coçou uma das suas bastas sobrancelhas, reflectindo-se-lhe no rosto uma certa contrariedade.
- Não posso compreender, Monsieur RandalI, porque é que quer que reveja uma segunda vez os resultados dos testes aos papiros Monti. Não lhe posso dizer nada de diferente sobre as anteriores explicações que lhe facultei quando o recebi pela primeira vez.
-Apenas pretendo ter a certeza de que não descurou nada.
0 professor continuou a não se mostrar satisfeito com a explicação.
-Nunca poderia descurar fosse o que fosse, especialmente a respeito dos papiros Monti.-Olhou atentamente para Randali, estudando-o. -Haverá qualquer coisa que o preocupe particularmente?
Randall admitiu:
-Para lhe ser franco, existe uma certa confusão à cerca da tradução de uma folha designada como Papiro Número 9.- Randall agarrou na pasta que tinha pousado no chão junto ao sofá, abriu-a e tirou a fotografia feita a partir do negativo de Oscar EdIund ao Papiro Número 9. - É esta precisamente disse, estendendo a fotografia ao Professor.
-Um belo espécime. -Aubert encolheu os ombros resignadarnente num gesto autenticamente gaulês.-Pois muito bem. Vou então rever os nossos testes sobre os papiros.
Randall voltou a meter a fotografia na pasta, encheu o cachimbo e foi puxando lentas fumaças, enquanto observava o professor a percorrer atentamente os relatórios das experiências. Aubert retirou da pasta duas folhas de papel amarelado e leu-as cuidadosamente. Depois de um intervalo, encarou de novo Randail.
- Os sumários aos nossos testes com o carbono-14 confirmam aquilo que o senhor já sabe. Os papiros em causa são absolutamente autênticos. Derivam do século 1 e podem com lógica ser localizados em 62 A.D., altura em que Jacob escreveu sobre a fibra prensada chamada papiro,
Randall tinha que ter uma dupla certeza. Durante a viagem para Paris documentara-se.
- Professor, têm havido certas autoridades na matéria que se mostram altamente críticas quanto as experiências com o carbono-14. Por exemplo, G. E. Wright mandou analisar por três vezes um bocado de madeira muito antiga, obtendo três datas diferentes tão distanciadas como de 746 A.C. a 289 A.C. E depois que o Dr. Libby anunciou os testes feitos aos Documentos do Mar Morto em 1951, alguém escreveu, um ano depois, em The Scientific Ame7can, julgar que haviam muitas «contradições perturbantes e fraquezas» a respeito do sistema de datação pelo radiocarbono, e que o processo estava ainda longe de ser «tão funcional como uma máquina de lavar pratos». 0 senhor considerou todas as margens possíveis de erro?
0 Professor Aubert sorriu.
-Claro que sim. Considerei. E, evidentemente, os críticos tinham razão, pelo menos aqueles que o senhor mencionou e que falaram de largas margens de erro no decênio dos anos cinquenta. Nesses tempos, através dos nossos testes, podíamos determinar a datação de um objecto num espaço de cinquenta anos desde a verdadeira data. Mas gradualmente, com melhoramentos introduzidos, com condições mais favoráveis, conseguimos determinar a data de um objecto antigo com uma ligeiríssima margem de vinte e cinco anos desde a origem. -Pôs de parte a pasta de arquivo. -Se tem quaisquer apreensões a respeito da autenticidade do Papiro Número 9, pode pô-las de parte. Tenho os meus relatórios sobre as experiências e a minha longa experiência em consegír interpretá-los. É mais do que suficiente. De facto, modéstia à parte, a minha palavra deve ser suficiente para o sossegar. Monsicur RandalI, pode confiar em mim.
-Poderei? -perguntou Randall de chofre. Não pensara deliberadamente em expor cruamente as suas dúvidas, mas estava demasiado em causa para que tentasse camuflar a verdade. - Tem a certeza que posso confiar completamente em si?
0 Professor Aubert, que principiara a levantar-se, preparando-se para dar a entrevista por finda, voltou a deixar-se cair no sofá. As suas feições aquilinas tinham enrijecido.
- Monsieur, quer-me explicar o que é que está a querer insinuar?
Randall viu que tinha ido longe demais para recuar, por isso prosseguiu:
- Insinuo que o Professor poderá não ter sido completamente honesto para mim. Principalmente naquilo que me contou de si próprio da primeira vez que nos encontrámos.
0 Professor Aubert fitou Randall durante um segundo. Quando voltou a falar fê-lo cautelosamente, perguntando:
- Posso saber ao que pretende referir-se?
- Empenhou muito da sua nova fé no futuro. Nessa altura disse-me que conseguira finalmente dar a sua esposa o filho que ela tanto desejava. Mas desde então soube por certa fonte secreta que o senhor se submeteu a uma vasectomia; que voluntariamente, há já vários anos, se tornou estéril por meio de uma operação aos testículos, de modo que... não pode... seria incapaz de engravidar uma mulher.
Aubert mostrava~se visivelmente abalado.
-A sua fonte, Monsieur... Quem lhe deu tal informação? -0 Dominee Maertin de Vroorne, que parece ter procedido a investigações íntimas sobre muitas pessoas relacionadas com o nosso projecto. Foi ele quem me deu semelhante informaçao a seu respeito.
-E acreditou nele? Afinal de. contas, Monsieur, viu a minha mulher, Gabrielle, Viu com os seus olhos que ela estava em adiantado estado de gravidez.
A conversa estava a tomar-se cada vez mais melindrosa e difícil para Randail. Não obstante, estava decidido a prosseguir. -Professor Aubert, eu não disse que a sua mulher não podia dar à luz um filho. Disse que, segundo de Vroorne, o senhor não lhe podia dar um filho, embora me tivesse dito que podia. -Hesitou, mas acabou por acrescentar: -Acredite que só lhe estou a mencionar isto devido a estarmos a discutir o grau de confiança.
0 Professor Aubert abanou a cabeça, quase como se fosse para si mesmo, e pareceu perder algo da sua rigidez.
- Pois muito bem. Tem razão. Se o que pretende, no entanto, tiver de depender a minha palavra, pode confiar nela sem a mais sombra de dúvida. E essa confiança não pode admitir excepções.
0 que o seu informador lhe disse é verdadeiro. Submeti-me à operação chamada vasectomia há muito tempo, foi uma tonteria da minha parte. Sou na verdade estéril. Incapaz de engravidar uma mulher. No entanto, trata-se de uma coisa que geralmente uma pessoa não gosta de andar a propalar publicamente, e que nada tem a ver com a integridade da minha palavra de honra.
0 que é importante e se mantém é a verdade do que lhe disse sobre a influência que o Petrónio e o Jacob tiveram sobre o renovar da minha fé. Quer quanto à autenticidade do pergaminho e dos papiros, quer quanto à fé fui"lhe franco e verdadeiro. Posso acrescentar que foi também verdade ter informado Gabrielle que desejava um filho tanto ou mais do que ela. E por isso... disse-lhe para buscar a maneira de poder engravidar.
Randall sentiu-se envergonhado de ventilar tal assunto e foi tomado de um sentimento de asco quanto ao Dominee de Vroorne por o obrigar a desconfiar dos seus colegas.
- Professor Aubert, peço-lhe desculpa. Lamento profundamente ter duvidado da sua palavra.
0 cientista francês tentou sorrir, mas não conseguiu mais do que um esgar doloroso.
-Foi perfeitamente compreensível a sua atitude dadas as circunstâncias especiais. Agora já se sente satisfeito?
- Sim, inteiramente satisfeito - respondeu RandalI, preparando-se para partir. - Queria ter a certeza que a escrita do papiro era do tempo de Cristo, e o senhor garantiu-me aquilo que desejava saber.
Mais uma vez o Professor Aubert se empcrtigou e tomou um tom estritamente profissional.
- Pardon, Monsieur RandalI, mas julgo que não me compreendeu. Eu não lhe garanti que a escrita nos papiros fosse do tempo de Cristo, mas apenas que os papiros remontam a esse tempo. 0 nosso processo de datação por intermédio do radiocarbono pode autenticar os papiros, mas não o que neles se contém. Os nossos testes mostraram que o material utilizado para o Evangelho Segundo Jacob - incluindo nesse exemplo o que se encontra representado no Papiro Número 9 - remonta na verdade a esse período. Quanto à mensagem escrita no papiro... embora tenha a certeza de que é também autêntica, devo contudo informá-lo que não pertence ao meu sector de estudos, não faz parte da minha especialidade científica.
Tal distinção nunca até então ocorrera a Randali. Apanhara-o completamente de surpresa.
- Bem... então a que sector, a que especialidade pertence? Quem é que autentica a grafia, o processo de escrita? -Trata-se de um processo que requer grande número de
especialistas. Com notoriedade para o trabalho de dois cientistas especializados. Um deles examinara o papiros à luz de uma lâmpada ultra-violeta para ver se contém antigos sinais de outros símbolos gráficos, evidentemente para determinar se alguém utilizou um velho papiro eliminando--lhe a antiga escrita. Outro cientista, um químico, fará uma análise química aos pigmentos da tinta. Por exemplo, no caso particular de que falamos, Jacob usou um cálamo cortado em diagonal para obter uma ponta aguçada.
0 cálarno foi molhado em noir de fumée-negro de fumoum secular processo de obtenção de tinta de que se conseguia a ligação por meio de qualquer forma de aglutinante. Essa tinta pode ser analisada para se saber se pertence ao período geral de 62 A.D.
-Mas quem é que procede à análise da escrita propriamente dita, ao estilo concordante?
- Eruditos de grande experiência, teólogos, comentadores especializados. Esses homens comparam os fragmentos de aramaico com outros escritos na mesma liguagem que já foram autenticados. Examinarão se o texto foi escrito no lado certo do papiro e não no verso ou na contra-folha. Mas claro que o critério mais impor" tante será a qualidade e estilo - ou uso corrente - da antiga linguagem, sem que possa haver um deslize. Deve saber com certeza que cada época fornece um estilo peculiar que a torna sui generis textualmente. - 0 Professor Aubert ensaiou um sorriso. -Mas claro está que tudo isso foi já feito para perfeita equipas de peritos para verificarem a escrita. Não vejo nenhuma razão pela qual se possa duvidar desses homens.
-Tem toda a razão. No entanto, digamos que eu sou pouco razoável e teimoso. Supunhamos que eu tenha ainda uma pequena dúvida. Como poderia eu vê-Ia dissipada?
-Muito simples. Teria de ir consultar o mais proeminente perito do mundo em aramaico. Só assim as suas dúvidas poderiam desaparecer por completo.
-E quem é o maior perito do mundo em aramaico? -Existe um que leva a palma a todos os outros. Claro que há muitos outros excelentes e de confiança, como o Dr. Bernard jeffríes, da Ressurreição Dois, ou o Reverendo Maertin de Vroome, da facção oposicionista. Mas bem acima deles ergue-se a figura ímpar do Abade Mitros Petropoulos do mosteiro de Simopetra no Monte Athos.
-Abade Petropoulos... - Randall franziu a testa num evidente esforço para se lembrar de qualquer coisa. -0 nome não me é familiar. E o Monte Athos ainda menos. Onde fica?
-Um dos últimos lugares verdadeiramente exóticos que ainda existem no nosso mundo moderno. Athos é uma comunidade rnonástica independente que se ergue numa península remota da Grecia, cerca de 300 quilómetros a norte de Atenas, através do Mar Egeu. Trata-se de um território diminuto e com autogoverno que engloba vinte mosteiros de religão, grega ortodoxa, governado por um Santo Sínodo em Karyes composto por um representante de cada mosteiro. A comunidade religiosa do Monte Athos foi estabelecida há cerca de mil anos, provavelmente no século IX, por Pedro o Athonita, e foi a única comunidade cristã que sobreviveu ao domínio islâmico ou otornano. No começo do nosso século haviam, segundo creio, quase oito mil monges nos montes da península de Athos. Hoje, poucos mais haverão do que três mil.
Tudo aquilo era novidade para Randall e tinha um estranho som de bizarria, de exotismo.
-Esses monges... que raio fazem eles nesse sítio?
-0 que é que fazem os monges em qualquer lado? Rezam. Procuram o êxtase, a unicidade com Deus. Buscam a revelação divina. Presentemente no Monte Athos existem duas seitas. Uma cenobítica, ortodoxa, austera, rígida, conforme com os votos de pobreza, castidade e obediência total às regras da disciplina. A outra seita é idiorrítmica, mais flexível, mais democrática, permitindo o dinheiro, os haveres pessoais, o conforto. Claro que o Abade Petropoulos é um monge cenobita. No entanto, a sua grande reputação em aramaico tornou-o numa pessoa mais mundanal. Estuda tanto quanto ora; tal como muitos outros monges, ensina, pinta ou devota-se à jardinagem quando não está ocupado nas suas devoções.
- já se encontrou com o Abade? - perguntou Randall. -Não, nunca vi pessoalmente, mas falei com ele em certa ocasião pelo telefone-parece uma incoerência, mas muitos dos mosteiros têm telefone-e de vez em quando correspondo-me com ele. 0 Monte Athos é um perfeito armazém de manuscritos antigos-pelo menos existem nas suas bibliotecas dez mil manuscritos de grande antiguidade-e por várias vezes, quando acontece serem descobertos pergaminhos medievais esquecidos, o Abade Petropoulos tem recorrido a mim para lhes fazer os necessários testes. Sim, sei perfeitamente, por tudo o que tenho ouvido às mais altas autoridades na matéria que o Abade é a maior autoridade em aramaico do primeiro século da era cristã.
Durante aquela última parte da exposição do Professor Aubert, Randall tinha rebuscado na sua pasta e localizado a lista do pessoal especializado que tinha trabalhado ou que ainda trabalhava no Hotel KrasnapoIsky em Amesterdão. Percorreu a lista reservada aos peritos e tradutores de nomeada internacional empregues no projecto. Entre os nomes não figurava o do Abade Mitros Petropoulos. Randall olhou para o professor.
-É estranho, mas o nome do abade não figura na lista dos consultores passados ou presentes que trabalharam para a Ressurreição Dois. Ora aqui temos nós a descoberta arqueológica religiosa mais importante de toda a história, escrita precisamente em aramaico.
0 professor tem"me estado a falar do maior perito do mundo em aramaico e todavia ele nunca fez parte do nosso projecto. Tem alguma ideia conclusiva sobre o facto de nunca terem consultado o abade?
-Tenho a certeza de que foi consultado em qualquer altura -disse o Professor Aubert, mas revelando pouca convicção no tom de voz.-Sería inconcebível para uma descoberta como o Papiro Jacob que o abade não tivesse visto os originais. Deve haver qualquer explicação.
-Mas que explicação, pergunto eu?
-Fale ao Dr. Deichhardt ou a Monsícur Wheeler. Foram eles que contrataram os tradutores. Devem saber alguma coisa. Ou então procure o Professor Monti. Esse com certeza que será a fonte informativa mais segura.
- Claro que sim - respondeu Randall devorado pela incerteza. Lembrou-se de repente que seria impossível poder falar com Whceler ou com qualquer outro dos editores que se encontravam em Mainz. Quanto ao Professor Monti, no seu retiro em Roma, era também difícil de conseguir. Outra ideia repentina lhe perpassou pela mente. - Professor Aubert, acabo de ter uma ideia que pode ajudar a esclarecer o caso relativamente ao Abade Petropoulos. Posso servir-me do seu telefone?
0 Professor Aubert levantou-se do sofá e indicou-lhe o telefone em cima da secretária.
-Pode usar o meu telefone e ficar à vontade. Tenho que ir entregar esta pasta ao arquivo geral e ver o que se está a passar no laboratório, Dentro de dez minutos estarei de volta. Quer que peça à minha secretária para lhe fazer a chamada?
-Se não se importar... queria falar para a nossa sede de Amesterdão, mais particularmente com Miss Ãngela Monti.
Randall estava a falar com Angela ao telefone havia já alguns
segundos. Presumira que queria saber se houvera qualquer problema no escritório que requeresse a sua atenção. Naquele momento, como que por casualidade, lançara a pergunta que lhe queimava a língua.
-A propósito, Ãngela, há mais uma coisa que te quero perguntar. Depois de teu pai ter realizado o achado levou-o para consultar a qualquer perito destacado em aramaico - ou isso foi coisa que os editores tivessem apenas feito após a concessão do governo italiano?
- Claro que sim, meu pai fez examinar o papiro por peritos em aramaico. Meu pai sabe suficiente aramaico para ter podido avaliar do valor da descoberta, mas claro que não confiou apenas nele. Tinha que saber a opinião dos mais proeminentes eruditos em línguas semitas.
- Só em Roma? Ou resolveu consultar eruditos noutras partes do mundo?
- Fez consultas em toda a parte. Era uma coisa necessária. Sabes bem os resultados. - Ocorreu um curto silêncio. - Porque perguntas isso, Steve?
- Apenas curiosidade.
- Apenas curiosidade?---. Conheço-te melhor do que pensas, Steve. Diz-me porque é que estás preocupado a respeito do aramaico?
Decidiu que não havia nenhuma razão para lhe ocultar o segredo. Naquela mesma manhã ela provara ser uma pessoa de absoluta confiança.
-Bem, não tenho tempo para entrar em pormenores. Consegui encontrar o traidor ao nosso projecto. Não, não era o Dr. Knight. Foi outra pessoa. Soube da boca dessa pessoa que parece haver... bem... uma tradução errónea do aramaico... algo que poderá criar uma discrepância inexplicável no texto.
-Não! É impossível! Não pode ser! 0 texto dos papiros foi analisado por muitos especialistas em aramaico, os melhores do mundo.
-Pois bem, é isso precisamente que me preocupa-disse Randall.-Parece que não foram consultados os melhores especialistas do mundo. Acabei de saber aqui em Paris pela boca do Professor Aubert, que o erudito em aramaico mais destacado do mundo é o Abade Mitros Petropoulos, que dirige um dos mosteiros do Monte Athos, na Grécia. Pois não fui capaz de encontrar o nome dele na lista das pessoas que trabalham para a Ressurreição Dois. 0 seu nome díz-te alguma coisa?
- 0 Abade Petropoulos? Evidentemente que sim. Conheci-o pessoalmente. Meu pai sabia muito bem que ele era o mais proemínente erudito em aramaico e por isso, há cinco anos, fomos, eu e meu pai, ao Monte Athos pedir a opinião do Abade. Foi da maior hospitalidade e bondade para nós.
-0 teu pai mostrou-lhe os papiros?
- Exactamente. Foi uma experiência inesquecível. 0 mosteiro... não me lembro do nome... era tão pitoresco... Bem, o Abade levou muito tempo a examinar e analisar a escrita. Tivemos que ficar no mosteiro durante uma noite ... comendo aquela horrível cornida- penso que era polvo cozido ... até o Abade ter completado, no dia seguinte, o seu exame. 0 monge ficou totalmente esfuziante com a descoberta. Disse que nada havia sobre a terra comparado com o Evangelho Segundo Jacob, assegurando-lhe a mais completa autenticidade.
-Ainda bem. Podes crer que foi muito bom ouvir-te essas palavras-disse RandalI, evidentemente aliviado. -A única coisa que me intriga é a razão que levou Deichhardt a escolher o Dr. Jeffries em vez de preferir o Abade Petropoulos para fiscalizar a tradução final do documento. Penso que se o abade é o mais erudito dos eruditos, devia ser ele a pessoa ideal para o serviço.
-Eles tentaram, Steve. Meu pai recomendou o Abade Petropoulos, e os editores quiseram contratálo, mas ele tinha entrado num prolongado período de jejum e com a ajuda da dieta muito limitada do mosteiro, das condições insalubres, da água poluída, etc., enfraquecera de tal maneira que adoeceu gravemente. Quando eu e meu pai nos avistámos com ele ainda mostrava sintomas de fraqueza. Bom, em suma, quando foi indicado o trabalho de tradução, o abade estava demasiado doente para poder deixar o Monte Athos e vir para Amesterdão, e os editores também não podiam esperar que melhorasse. Tiveram que se satisfazer com a verificação dos papiros pelo Abade Petropoulos. Não hesitaram em recorrer a outros tradutores, tidos aliás mundialmente como distintas autoridades em aramaico.
- Isso explica tudo - rematou Randall.
- Pronto. Diz-me agora quando é que deixas de te preocupar desnecessariamente e voltas para os meus braços?
- Podes apostar que vou voltar direitinho para os teus braços. Até logo à noite, querida.
Depois de ter desligado, Randall sentiu-se melhor. Se o Abade Petropoulos tinha autenticado a escrita no papiro, tal como o Professor Aubert autenticara o material para determinação da data, não havia mais problemas a levantar nem perguntas a fazer. Se Hans Bogardus tinha encontrado uma discrepancia no texto, devia ser coisa sem importância resultante de qualquer obscuridade de tradução. Randall tinha que deixar exames ulteriores para a competência dos editores e dos respectivos teólogos consultores. Quanto a si, tinha realizado trabalho suficiente e experimentava urna sensação de segurança de que o Novo Testamento Internacional - e a sua nova fé - estivesse bem protegido dos ataques inimigos.
Cinco minutos depois, pasta debaixo do braço, estava à espera à porta do gabinete do Professor Aubert para agradecer ao cientista a sua generosa perda de tempo e prestimosa colaboração.
Logo que avistou o Professor, agradeceu-lhe efusivamente.
- Vou voltar para Amesterdão. Já está tudo esclarecido.
- Ah, bon, sinto"me satisfeito - disse o cientista. - Permita-me acompanhá-lo até à porta. - Quando começou a caminhar pelo comprido corredor, o Professor voltou-se para Randall. Soube por Mademoiselle Menti que o Abade Petropoulos sempre trabalhou sobre o projecto para os editores?
- Não, não exactamente para o projecto - respondeu Randall. -Mas há cinco anos, o abade viu e examinou os papiros contendo o Evangelho Segundo Jacob, autenticando a escrita. De facto o Professor Menti e a filha, Ãngela Monti, fizeram uma viagem à Grécia e passaram dois dias juntos do Abade Petropoulos no mosteiro do Monte Athos, enquanto ele examinava o texto em aramaico.
0 Professor Aubert olhou vivamente para RandalI, -Dísse-me: que Mademoiselle Monti foi com o pai visitar o abade ao mosteiro do Monte Athos?
- Exactamente.
- Visitaram juntos o Monte Athos?
- Sim Miss Monti e o pai estiveram lá juntos,
-Foi Miss Monti quem lhe disse isso? -perguntou o Pro~ fessor Aubert com incredulidade.
- Sim, foi ela quem me disse.
0 Professor Aubert atirou a cabeça para trás e soltou uma vigorosa gargalhada.
- Pas possible.
Randall olhou atónito para o cientista,
- Que raio de graça poderá haver no que eu disse?
0 Professor Aubert tentou conter a vontade de rir. Acabou por passar o braço pelos ombros de Randall.
- Tem graça porque Mademoiselle Monti quis pregar-lhe uma partida. Esteve... como é que se diz em inglês?... esteve a pulling your leg... a desfrutá-lo.
Randall mantinha-se de cenho fechado. -Não compreendo.
-Vai já compreender. Quem quer que conheça alguma coisa a respeito do Monte Athos lhe dirá que seria completamente impossível a Miss Monti visitá-lo. Nem há cinco anos nem nunca poderia ter posto o pé na península, Não lhe falei no caso antes? Essa é uma das razões porque o Monte Athos é um único no mundo. Jamais foi permitido que alguma mulher atravessasse a fronteira daquela comunidade monástica. Num milhar de anos, nunca nenhuma mulher lá foi consentida.
- Corno?
- É a pura verdade, Monsieur Randall. Desde o século nono, devido aos votos de castidade, de modo a reduzirse a tentação sexual, as mulheres foram proibidas no Monte Athos. Na verdade, com excepção dos insectos, borboletas e aves selvagens, que não podem ser controlados, foram até proibidas as fêmeas de qualquer espécie. No Monte Athos existem galos mas não galinhas, bois mas não vacas, carneiros mas não ovelhas. Há gatos e cães, mas não fêmeas da sua espécie. A população é totalmente masculina. Nunca lá nasceu nenhuma criança. 0 Monte Athos é uma terra sem mulheres. Por isso lhe posso assegurar que se Mademoiselle Monti lhe disse que tinha lá estado, estava a desfrutá-lo.
-Pelo contrário, falava-me com toda a gravidade-disse Randall com voz quase sumida.
Observado o rosto de Randall, o Professor Aubert deixou de rir.
- Talvez não tivesse ouvido bem. Talvez ela quisesse dizer que foi com o pai até à Grécia e o Professor Monti foi depois sozinho ao Monte Athos...
-Nenhum deles viu o abade-disse Randall sombriamente -e o abade nunca pôs os olhos no aramaico traçado nos papiros. -Fez uma pausa.-Mas garanto-lhe que há-de verificar os documentos, porque serei eu quem vai ter com ele. Professor Aubert, como é que se consegue chegar ao Monte Athos?
Cerca de dois dias depois, incrivelmente, Steve Randall encontrou-se de súbito projectado praticamente para a Idade Média. Era um princípio de tarde banhado pelo loiro e glorioso sol grego. Havia acabado de chegar ao seu destino, o mosteiro de Simopetra, um velho, vetusto edifício construido em pedra e madeira, com galerias e balcões salientes, como que suspensos à beira da alcantilada penedia, mil e duzentos pés acima do Mar Egeu.
Transportava um saco de mão, leve, cheio com uma muda de roupas interiores e alguns artigos destinados aos seus arranjos de «toilette», que havia comprado à pressa em Paris, sem esquecer, claro está, a sua preciosa pasta. Nesse momento atravessava um pátio poeirento e servia-lhe de guia o irmão-porteiro, Padre Spanos, um monge de meia idade, envergando uma sotaina púrpura.
0 irmão-porteiro fora recebê-lo logo que ele se tinha apeado da vesga azêrnola, em que se fizera conduzir até ao cimo do monte por um guia nativo, o jovem Vlahos, sempre cercado por um forte cheiro a alho e queijo cabreiro.
- Siga-me, siga"me - cantava-lhe ao ouvido a voz de tenorino do Padre Spanos no seu rude inglês.
E RandalI, já sem fôlego, seguia o ágil monge para o interior do mosteiro de Simopetra, subindo arrastadamente os desconjuntados e íngremes degraus de madeira.
Lá ao longe soou algo como um martelo a bater contra uma bigorna, mas um som que tinha algo de cana rachada ou de sino com uma brecha.
Randall parou, admirado com o som, perguntando: -Que é isto?
Tendo já chegado ao cimo das escadas, o Padre Spanos disse para baixo:
-A segunda chamada para o semandron. É um martelo de madeira a bater contra uma prancha de cipreste, a convidar os nossos cem irmãos à oração. A primeira chamada faz-se à meia-noite. A segunda agora, depois da refeição do meio-dia. AgOra é para as vésperas. A terceira congregaçao de orações é feita pouco antes do anoitecer.
Randall tinha chegado, finalmente, ao cimo da escadaria.
- Quanto tempo vai demorar este período da liturgia? -Três horas. Mas não tenha medo. Não terá que esperar
tanto pelo Abade Petropoulos. Ele espera"o. As suas devoções serão abreviadas. - 0 monge descerrou os lábios num sorriso. - Está esfomeado, não é verdade?
- Bem...
- Tem a refeição preparada. Quando acabar de comer o abade já estará despachado. Venha.
Randall percorria agora atrás do Padre Spanos um comprido e largo corredor, desagradavelmente húmido, com as paredes caiadas. A distâncias certas, a monotonia do corredor era quebrada por colunas bizantinas e por um que outro fresco representativo de qualquer santo com os seus prescrutadores olhos protuberantes como em todos os ícones. Entraram finalmente na sala de recepção ou de hóspedes, pouco diferente de uma cela monacal, embora muito mais ampla. No centro via-se uma comprida mesa e dois bancos ao correr, de cada lado, de madeira bem brunida. No meio da mesa estava colocado um prato de estanho, na frente um jarro do mesmo metal que, como tampa, tinha a cncimá-lo uma rotunda maçã. De um lado do prato havia um garfo de ferro, de limpeza duvidosa, e do outro uma larga colher de madeira.
0 Padre Spanos indicou a Randall o lugar à mesa que estava posto.
-Agora coma descansado. Depois da refeição, o abade recebê-lo-á no seu gabinete, que fica na porta ao lado.
- Como está o Abade? Ouvi dizer que tem estado bastante doente nestes últimos cinco anos.
- Sim, tem andado adoentado. Perturbações intestinais. Teve um período de febre tifóide. Mas é muito rijo e resistente.
0 clima, a vida espiritual, as ervas secas medicinais, e o poder derivado do toque dos sagrados ícones têm feito voltar a força ao corpo do Abade Petropoulos. Já está praticamente curado.
- Nestes anos mais recentes fez alguma viagem fora do Monte Athos?
- Não. Bom, quer dizer, foi duas vezes a Atenas. Mas projecta muito em breve viajar para além da Grécia. -0 Padre Spanos, voltou-se e bateu as mãos com vigor. -Um acólito vai servi-lo.
- Padre, antes de se ir embora, mais uma pergunta. Ouvi dizer que é vedada a entrada a mulheres nas santas comunidades da península. É verdade?
0 Padre Spanos, fez um sinal confirmativo com a cabeça e disse num tom cheio de solenidade:
-0 édito foi decretado há dez séculos. Nenhuma fêmea, humana ou animal, conspurcou jamais as nossas comunidades. Houve três excepções. Certa vez, em 1345, um rei Sérvio trouxe a sua mulher até à praia, Em tempos mais recentes, a Rainha Isabel da Rornénia aproximou-se de um mosteiro, o mesmo fazendo Lady Strafford de Recliff, mulher de um embaixador inglês, mas ambas foram expulsas. Para além de tais tentativas instigadas pelo Diabo, nunca uma mulher esteve no Monte Athos. Posso apresentar-lhe um exemplo. Em 1938 faleceu neste mosteiro o nosso venerável irmão Mihailo Tolto, com a respeitável idade de 82, anos. Viveu e morreu sem nunca ter posto os olhos numa mulher em toda a sua vida.
-Como é que isso foi possível?
-A mãe do Padre Tolto morreu ao dar à luz, Foi trazido em bebé, com quatro horas de existência. Foi crescendo e aqui atingiu a idade varonil, a idade madura e a velhice sem nunca ter visto uma mulher. Mais um exemplo. -0 sorriso de dentes cerrados do monge reapareceu. -Um ginecólogo grego, saturado das suas doentes, quis ter a certeza de que podia fugir à perseguição delas para poder repousar e conseguir a paz. Veio passar as férias ao Monte Athos. Sabia muito bem que aqui estaria a salvo de qualquer mulher, Profunda verdade. Não sofremos as tentaçôes de Eva. Somos nós apenas, os irmãos e Deus, Espero que aprecie a sua humilde refeição.
Logo que o padre Spanos se foi embora, surgiu um acólito, envolto numa longa batina, que principiou a servir o almoço a Randall. A comida era simples: papas de aveia, peixe cozido, queijo de ovelha seco, hortaliça, pão negro, café turco e uma laranja. Tanto Angela como o guia VIahos, haviam-no preparado para o polvo cozido, mas Randall sentiu-se contente de não ter sido contemplado com semelhante prato. 0 jarro, cheio de um forte vinho tinto, conferiu mais sabor a tudo aquilo que comia.
No entanto, o pensamento de Randall não estava posto na comida mas sim em tudo aquilo que acontecera em Paris dois dias antes.
Angela Monti voltara-lhe a trair a confiança. Mentira-lhe. Contara-lhe que visitara o Monte Athos, que era talvez o único lugar do mundo onde nunca poderia ter posto os pés.
Durante toda a sua árdua viagem, sentira-se cheio de uma raiva interior, dírigida principalmente contra Ãngela. Aprendera a amá-la e tinha acreditado naquela italiana. Na semana anterior, quando pensara que ela era uma mentirosa e uma traidora, Ãngela provara-lhe que nenhuma das acusações era verdadeira. Fora imensa a satisfação sentida, passando a amá-la e a confiar nela ainda mais do que antes. De repente... aquela mentira estúpida,
Nos seus piores momentos, em viagem da França para a Grécia, nos diálogos íntimos que travara com ela, chamara-lhe selvaticamente mulher sem escrúpulos, traidora descarada. Normalmente seria incapaz de tratar qualquer mulher, ainda que fosse urna prostituta, em termos tão cruéis, mas não podia conter a raiva pelo enorme desapontamento. Fora principalmente através do seu amor por Ãngela que mais se radicara numa nova fé de essência religiosa que o levara a crer devotadamente nos outros.
Quando a sua viagem terminara-por ironia numa terra onde as mulheres não eram admitidas -aquela particular mulher ainda lhe dominava o pensamento. Se fisicamente Ãngela nunca estivera naqueles lugares, espiritualmente conseguira ultrapassar os mil anos de proibição dos monges e estava presente através os pensamentos que lhe dedicava. Gradualmente, invocando-a com os olhos da memória, Randall sentiu que a ira se desfazia. Tentou inventar desculpas para a mentira dela, porque continuava a amá-la... mas não foi capaz de encontrar a mais leve desculpa.
Decidiu afastá-la do pensamento, varrê"la da ideia.
Passou em revisão os acontecimentos daqueles últimos três dias que o haviam conduzido àquela península isolada do Egeu onde só o sexo masculino imperava.
Recordou a tarde da passada sexta-feira em Paris, depois da mentira de Ãngela... diacho, livra-te dela, arreda--a do teu pensasamento, procede como um homem livre, concentra-te... quando, num súbito impulso, resolvera submeter o anacronismo descoberto por Bogardus ao julgamento final do maior perito do mundo em aramaico.
Depois, passara a manhã de sábado a tratar das formalidades de conseguir um convite, depois uma licença, para visitar o Monte Athos. Sem o prestígio e o peso político do Professor Aubert, tal solicitação demoraria semanas e ser conseguida. Com os telefonemas feitos por Aubert, a licença demorara poucas horas. A Repartição Eclesiástica do Ministério dos Negócios Estrangeiros concedera-lhe o seu diamonitirion, passaporte especial para visitar a República Independente de Athos, prometendo que o documento estaria à espera dele em Salónica. Aubert entrara em contacto com um seu colega da Universidade de Salónica, que, por seu turno, entrara em contacto com o Abade Petropoulos em Karyes, na península de Athos, para uma entrevista. 0 Abade concordara em receber Randall no mosteiro de Simopetra. Depois de tudo tratado, os complexos arranjos para a viagem haviam sido realizados a toda a velocidade.
Urna vez estabelecido o seu itinerário, Randall fizera duas chamadas telefónicas para Amesterdão. Telefonara para o Hotel Victória a fim de deixar recado a Ãngela Monti que estaria ocupado durante cinco ou seis dias numa missão especial. A seguir ligara para Goerge L, Wheeler no Hotel KrasnapoIsky, mas fora informado que o editor ainda se encontrava em Mainz, muito ocupado em tratar de tudo com Hermig. Randall deixara apenas uma mensagem quase em código a dizer que se tinha ido avistar com o Abade Petropoulos a respeito da discrepância de Bogardus e que estaria de volta dentro de dois dias a fim de preparar a campanha publicitária para o dia em que deveria ser anunciado ao mundo o grande acontecimento,
Nesse mesmo sábado, entrara no aeroporto de Orly, em Paris, a bordo de um jacto da Olimpic Airways com destino a Salónica, na Grécia. 0 avião percorrera a distância em menos de quatro horas. Percorrendo as largas avenidas de Salónica, ladeadas por casas de tipo greco-moirisco e com inumeráveis igrejas bizantinas de permeio, fora buscar o seu passaporte ao Consulado Americano, fizera reservas finais para o resto da viagem e passara uma noite de ínsónia do Hotel Mediterrânico.
De manhã cedo, entrara a bordo de um sujo barco de cabotagem movido a óleos pesados, que deitava um cheiro nauseabundo, para a viagem de oito milhas até Daphni, o porto oficial que servia o Monte Athos. Em Daphni, numa esquadra policial de pitoresco telhado de telhas encarnadas, um oficial, envergando urna capa de veludo tendo bordada a águia bicéfala bizantina, saía branca gomada e borlas na ponta dos revirados sapatos, carimbara-lhe o passaporte. Depois, ao abrigo do telheiro que servia de alfândega, monges de longos cabelos haviam-lhe inspeccionado a bagagem. A porta, um monge - parecia-lhe ainda incrível! - apalpara-lhe com vigor os peitos e as partes pudendas, explicando: «Para termos a certeza de que não é uma mulher disfarçada de homem.»
Tendo passado pela alfândega com a bagagem e o sexo aprovados, Randall encontrara-se com o guia, avisado com antecedência para o ir esperar a Daplini. 0 jovem grego, VIalios, guia e recoveiro ao mesmo tempo, vestia-se sumariamente, irias nos pés calçava uns cómicos sapatos feitos de tiras de pneu, que lhe serviam para trepar os alcantis quase a pique. VIalios tinha já alugado um engaze, embarcação particular, para os transportar durante a curta distância marítima até ao desembarcadouro de Simopetra. 0 tal barco particular acabara por se mostrar ser um ligeiro esquife de duvidoso poder de flutuação. No entanto, com o patrão ao leme, em adiantado estado de embriaguez, ele e Vialios abrigados do sol pesado como chumbo sob um incrível toldo de pano encerado que devia ser contemporâneo da guerra greco-turca, lá conseguiram chegar a salvo até ao embarcadouro de madeira situado entre ameaçadores rochedos, mesmo no sopé das arribas onde se erguia o mosteiro, semelhante aos mosteiros budistas da cidade sagrada de Lhasa no Tibete, alcandorado lá no cimo do monte, quase debruçado sobre o mar.
VIahos encetara então uma prolongada discussão para o aluguer de dois machos. Escarranchados sob o dorso das alimárias, lá foram subindo a árdua e escalvada montanha pelo trilho precário que caracoleava mesmo à beira da penedia lôbrega. Após vinte minutos de ascensão, descansaram uni bocado numa capelinha votiva onde havia um ícone representando a Virgem ladeada por S. Joaquim e St.a Ana. Enquanto enchiam os cantis de água fresca caindo em cascata pelo flanco da montanha, VIalios explícara-lhe que Simopetra significava Rochedo de Prata e que o mosteiro lá no cimo, para onde subiam, havia sido fundado em 1363 por um eremita bafejado por uma visão divina.
Mas a única visão de Randall fora escapar ileso da perigosíssima viagem pelo estreito caminho rochoso talhado face ao abismo, balançado agoniativamente pelo passo de uma alímáría caprichosa, a sofrer o enervante sol, que o mordia com os seus penetrantes raios, Visão de encontrar a solidez e a segurança do mosteiro, espécie de paraíso perdido que o esperava ao cimo do caminho. Cinquenta cansativos minutos mais tarde tinham chegado ao cimo, e para além de verdes hortas em declive lá estava finalmente a aprumada parede do mosteiro, com os seus balcões e galerias salientes. No limiar daquilo que parecia uma ponte movediça medieval encontrava-se o irmão"porteiro apressando-se a ir ao encontro dos viandantes.
Durante todo aquele exótico pesadelo, Randall pensara e tornara a pensar que ia finalmente saber como é que Jesus, segundo Jacob, pudera ser capaz de ter passado alegadamente pelas terras de cultivo de um lago romano que só fora esvaziado do seu conteúdo de água três anos após a segunda crucificação!
Tratava-se de uma busca maluca, quixotesca. Afinal porque diabo empreendera aquela viagem? Não lhe fora difícil responder à interrogação: procedera assim por desejar conservar viva a sua nova fé, uma fé que mal acabara de nascer e que era ainda tão periclitante,
- Mr. Randall...
Voltou~se repentinamente, como que acordado de um sonho, para se dar conta de que o padre Spanos estava ao lado dele. -...se quiser fazer o favor, o Abade Mitros Petropoulos
vai agora recebê-lo. É hábito tratá"lo por Padre.
Randall entregou ao acólito o saco de viagem e, conservando a pasta, seguiu o padre Spanos até ao gabinete do Abade.
0 aposento em que entrara era surpreendentemente espaçoso e recebia luz a jorros. As paredes estavam cobertas por frescos religiosos que, embora de presença vigorosa, tinham algo de rudes. Abundavam os ícones representando o arcanjo Gabriel, Cristo e a Virgem. Do tecto pendia um impressionante candelabro de estanho e por toda a parte se viam lampadários de óleo, metálicos. A uma mesa redonda, onde se viam espalhados alguns papéis e abertos alguns volumosos livros medievais, estava uma figura patriarcal, que decerto teria setenta anos ou mais.
Na cabeça tinha um chapéu típico, parecido com um fez, utilizado pelos monges ortodoxos. Envolvia-lhe o corpo magro unia pesada túnica negra, decorada com várias caveiras e tíbias cosidas ao hábito, conjunto que sc completava por umas pesadas botas de campónio. Era um scccrdote grego relativamente baixo e frágil. Não obstante o alvo cabelo comprido e as volumosas barbas e imponente bigode, ainda se lhe via a pele empergaminhada. 0 abade usava umas exóticas lunetas de lentes quadradas, como Randall nunca fora capaz de ver.
0 padre Spanos apresentou o patriarca e retirou-se sem fazer ruído.
Aquele septuagenário decrépito era o Abade Mitros Petropoulos.
-Bem-vindo a Simopetra, Sr. Randall. Espero que a viagem não tenha sido muito fatigante.-A voz do patriarca era amável, bondosa, repousante.
- Sinto-me honrado por ser recebido neste mosteiro, Padre. -Prefere que conversemos em francês ou italiano, ou o meu inglês será suficiente para si?
Randall sorriu.
- Evidentemente em inglês... embora neste momento sinta enormes desejos de saber aramaico.
- Ah, o aramaico... acredite que não é assim tão formidável como muita gente imagina. Claro que me é difícil ser juiz em tal matéria, porque devotei toda a minha vida ao estudo dessa linguagem. Peço-lhe que se sente. - 0 Abade sentara-se entretanto numa cadeira de espaldar liso como que a convidar Randall a fazer o mesmo, e este não se fez rogado, tomando lugar noutro assento ao lado do patriarca. 0 Abade prosseguiu: - Espero que nos dê a honra de descansar esta noite entre nós antes de regressar a Salónica.
- Se não for incómodo...
- Sentimo- nos sempre contentes com os nossos hóspedes, que não são muito frequentes. Claro que irá achar as nossas acomodações um tanto desconfortáveis. Para já quero avisá-lo que as banheiras são desconhecidas no nosso mosteiro. Costumamos dizer: «Quem se lavou uma vez no espírito de Cristo não precisa mais de se lavar.» Mas verá que os nossos colchões são limpos e que as camas não têm pulgas nem percevejos.
- Padre Petropoulos, devo dizer-lhe que o meu único interesse reside no aramaico.
- Sim, evidentemente. A linguagem falada por Nosso Senhor. A humilde linguagem, sem beleza própria, mas que todavia se mostra como a mais sábia do mundo na sua articulação. Sim, o aramaico. Uma língua semita. Deriva de Aram, nome das terras altas da Síria e Mesopotâmia, onde era falada pelo povo aramaico. Era um povo de nómadas que começaram a estabelecer-se como colonos no norte da Palestina, incluindo a Galileia, depois do quinto século antes de Cristo. Quando Cristo nasceu, cresceu e se fez homem era a linguagem comum do pobre povo galileu.
0 hebraico, era mais uma língua falada pelas pessoas de instrução. No tempo de Cristo, o hebraico era falado pelos sacerdotes, estudantes, doutores e juizes, ao passo que o aramaico era a língua das massas, e também usada pelos que comerciavam. Todavia, o hebreu e o aramaico são línguas interligadas, poderíamos dizer que são primas.
-De que mancíra mais pronunciada diferem uma da outra? -Não é de fácil explicação -disse o Abade Petropoulos, cofiando a longa e alva barba. -Como é que hei-de dizer?...
0 hebreu e o aramaico, possuem o mesmo alfabeto de vinte e dois caracteres ou sinais escritos. Mas apenas consoantes. Nenhuma das línguas têm caracteres para as vogais. Todavia, quando faladas, as línguas contêm mais sons fonéticos do que os permitidos no alfabeto. De modo que., quando da fala as línguas passam à escrita, os sons desaparecidos, ou vogais, passam a ser indicados por marcas ligadas às sequentes consoantes. Uma pessoa a escrever em hebreu e outra em aramaico traçarão as mesmas consoantes para as mesmas palavras -mas cada uma acrescentará marcas diferentes, ligeirissimamente diferentes, para cada vogal. Por exemplo, se Jacob escrevesse Senhor ou Meu Deus em hebreu, a palavra seria figurada como Eli, ao passo que em aramaico escreveria Elia Fiz-me perceber?
- Bem... sim, julgo que consegui compreender.
- No fundo não tem importância. Segundo penso o que o trouxe aqui foi o antigo aramaico, não é verdade?
- Exactamente.
- Ora vamos lá saber. Sr. RandalI, devo dizer- lhe que além da limitada informação recebida de Salônica sobre a sua visita para que eu examine um papiro com caracteres escritos pertencendo ao aramaico do século 1, nada mais sei a respeito das razões que o trouxeram até nós.
-Padre, já ouviu falar na Ressurreição Dois?
- Ressurreição Dois?
-É o nome de código para uma empresa destinada à publicação de uma Bíblia, com sede em Amcsterdão. Um grupo de editores juntou-se para apresentação ao mundo de uma nova versão do Novo Testamento baseado num momentoso achado arqueológico feito nos arredores de Roma há cerca de meia dúzia de anos...
- Sim, evidentemente - interrompeu o Abade Petropoulos. Estou agora a coordenar ideias, Um erudito bíblico da Grã-Bretanha... Jeffries... Dr. Jeffries... fez-me um convite para colaborar na tradução de um achado em língua aramaica. Não foi muito explícito, mas no pouco que me contou por carta havia uma nota bastante intrigante. Se nessa ocasião não estivesse doente, talvez me tentasse a aceitar. Mas foi impossível. Sr. RandalI, poderá revelar-me do que se trata? Garanto-lhe que a sua confidência não ultrapassará estas paredes.
Sem a mínima hesitação, nos cinco minutos seguintes Randall desvendou ao patriarca os pontos principais do Pergaminho Petrónio e do Evangelho Segundo Jacob.
Quando se calou, os olhos do Abade brilhavam como dois carbúnculos.
- Poderá ser? - murmurou. - Será verdade ter acontecido um tal milagre?
- Pode ser, Padre. É verdade, mas uma verdade que depende essencialmente da sua avaliação de um fragmento intrigante dos papiros encontrados na escavação de Ostia Antica.
- Trata-se de obra de Deus, e eu sou Seu humilde servidor. Randall colocou a pasta em cima dos joelhos, abriu-a e procurou a fotografia ampliada tirada por EdIund ao Papiro Número 9. Logo que a teve na mão, disse:
-A descoberta foi feita em Ostia Antica, urna antiga estância marítima perto de Roma, pelo Professor Augusto Monti, o célebre arqueólogo italiano. Fui levado a julgar que o Professor Monti e uma sua filha tinham vindo a Simopetra há cinco anos para que lhes autenticasse a descoberta. Só anteontem soube que teria sido impossível a filha do Professor Monti visitar o Monte Athos...
- Absolutamente impossível.
- ...Mas pensava que talvez o Professor Monti, sozinho, tivesse vindo consultá-lo, Padre.
A comprida barba branca do Abade moveuse de um lado para o outro.
-Não, ninguém com esse nome me consultou. Pelo menos...
- quedou-se pensativo, como sc estivesse a lembrar-se de algo. Foi Monti que disse? Um arqueólogo da Universidade de Roma?
- Precisamente.
- Sim, lembro-nie agora de uma troca de correspondência. Talvez há quatro ou cinco anos. Talvez antes. Esse professor de Roma queria que eu fosse seu convidado, pagava-me todas as despesas para eu me deslocar a Roma a fim de autenticar certo papiro ararnaíco. Estava demasiado ocupado para poder vir ao Monte Athos. Depois--- lembro-me também agora... quando o Dr. Jeffries me convidou para colaborar na tal tradução, referiu-se a um arqueólogo italiano que descobrira dois documentos notáveis do século 1. Mas, quanto a ter-me encontrado pessoalmente com o Professor Monti aqui em Athos ou fosse onde fosse... não, nunca tive a boa fortuna de o conhecer.
- Estou a ver que não - disse Randall, tentando ocultar o seu azedume. - Só queria ter a certeza. - Pousou de novo a pasta no chão, mas exibiu a fotografia do Papiro 9, bem como unia cópia da tradução inglesa definitiva do texto em aramaico. -Foi isto que me trouxe a Athos para lhe mostrar. Padre, permita-me que lhe explique o problema que envolve este fragmento que estou certo poderá resolver.
Omitindo os pormenores sobre Bogardus e sobre o papel que desempenhava na Ressurreição Dois, Randall explicou o mais sucintamente possivel que certa pessoa, na altura em que o Novo Testamento Internacional estava já nas máquinas de impressão, descobrira por acidente um anacronismo, uma discrepância, na tradução da passagem descrevendo a fuga de Jesus através um vale fértil onde outrora existira o Lago Fucinus.
-No entanto, segundo os historiadose romanos -concluiu Randall-o Lago Fucinus só três anos mais tarde foi drenado.
0 abade compreendera a explicação, pedindo:
-Permita-me que veja a tradução. Randall entregou-lha.
-Veja a quarta e quinta linhas.
0 Abade leu primeiro a tradução para si e voltou depois a lê-.Ia a meia-voz.
-«Na sua fuga de Roma, Nosso Senhor... ummm... juntamente com os seus discípulos... ummm... caminhou durante toda essa noite através das abundantes terras de cultivo do Lago Fucinus, um imenso pantanal que fora mandado secar e drenar por Cláudio César e que os romanos amanhavam com os maiores cuidados.»
- Ficou pensativo. - Bom, se me permite verei agora o aramaico de onde foi feita esta tradução.
Randall entregou a fotografia ao abade. 0 idoso sacerdote grego olhou pala a fotografia, fez uma careta e fitou Randail. -Isto é apenas uma reprodução. Tenho que ver o papiro original.
-E é isso justamente o que eu não tenho. Os editores nunca me permitiriam a mim, nem a ninguém, viajar com o documento original. 0 papiro é de um valor incalculável. Mantêm"no bem seguro num cofre-forte especial em Amesterdão.
0 Abade Petropoulos mostrou o seu desapontamento. -Então a tarefa que me destina torna-se duplamente difícil.
Ler aramaico, esses caracteres minúsculos, já oferece dificuldade bastante, mas examíná-los numa reprodução e tentar traduzi-los acuradamente, é quase impossível.
-Mas esta fotografia foi tirada com infravermelhos, para fazer realçar os caracteres mais apagados c...
- Não importa, Sr. Randall. A reprodução é uma coisa em segunda mão. Constitui uma perturbação para os meus olhos já cansados.
-Padre, não poderá pelo menos tentar ler o que a fotografia mostra?
- Sim, tenho intenções de tentar. Com certeza que tentarei -levantou-se cora um resmungo, abriu uma gaveta, de onde tirou urna grande lente de aumentar e aproximou-se de uma lâmpada de secretária.
Randall observou atentamente o Abade a curvar-se mantendo a fotografia do papiro voltada para a luz e observando-a com a lente. Durante vários minutos o sacerdote ortodoxo grego ficou concentrado no exame da fotografia, parecendo esquecido da presença de Randall. Finalmente colocou a lente em cima da mesa e recostou-se na cadeira, para voltar a agarrar na tradução e lê-Ia mais urna vez.
Sem pronunciar palavra, estendeu a tradução a Randall e, cofiando a barba, avaliou mais urna vez a fotografia.
- Como sabe, o Dr. jeffries e os seus colegas tiveram a enorme vantagem de trabalhar com o documento original. Tendo isso em conta, a excelência da tradução parece-me inegável. Se assím for, então o códice ou pergaminho deste fragmento deve ser legitirriamente considerado como a mais extraordinária e tremenda descoberta da história cristã.
- A respeito disso não tenho a menor dúvida - concordou Randall. - A minha dúvida reside no seguinte: será exacta a tradução do aramaico?
Perdido em obscuros pensamentos, o Abade Petropoulos contínuava a cofiar a barba.
-Tanto quanto posso avaliar pela fotografia, a tradução é absolutamente exacta. Mas claro que não posso jurar, não posso empenhar a minha palavra em garanti-Ia. Muitos dos caracteres em aramaico, como pode observar, estão bastante sumidos, quase desaparecidos, manchados pelo decorrer dos séculos. Várias palavras, precisamente nas linhas em questão, são pouco legíveis.
-Bem sei, Padre, mas no entanto...
Ignorando as palavras de RandalI, o Abade prosseguiu:
-É sempre assim com documentos muito antigos. Um leigo não pode compreender tais problemas. Primeiramente, estamos a lidar com a matéria física: o papiro. Qual o papiro que foi usado num manuscrito como este? Este papel para escrita era manufacturado da medula formada pelo caule da planta chamada papiro, que se encontrava na região egípcia do Nilo. 0 caule era cortado em tiras, e duas camadas dessas tiras eram coladas juntas transversalmente. 0 papiro resultante não era mais durável do que o nosso moderno Papel bond vulgar, não significando com certeza que tivesse possibilidades de poder sobreviver nove séculos. Em climas húmidos, o papiro desintegrava-se. Em climas secos podia sobreviver mais, mas tornandose extremamente quebradiço, prestes a desfazer-se em fragmentos ou em pó mal se tocasse com um dedo. 0 fragmento de papiro que me mostrou em fotografia está provavelmente tão quebradiço, tão gasto que a escrita deve estar quase obscura. Além disso, no século I, o aramaico era escrito numa caligrafia de forma quadrada, cada letra ou caractex escritos separadamente. Em resultado disso, as letras não estavam individualmente ligadas. 0 leigo poderá ser levado a pensar que isso as tornará mais fáceis de distinguir e ler. Pelo contrário, é mais fácil ler uma palavra na qual as letras compósitas estejam ligadas em escrita fluente e cursiva, mas infelizmente, as palavras interligadas e a caligrafia cursiva só apareceram no século IX. Tais são os obstáculos que se levantam, ainda mais avolumados quando a avaliação tem de ser feita através de uma reprodução.
- No entanto, esse aramaico foi lido, completamente traduzido.
-Sim, tal e qual como os três mil e cem fragmentos e antigos manuscritos do Novo Testamento que existem espalhados pelo mundo - oitenta em papiros e duzentos em caracteres unciais, ou sejam em letras maiúsculas - e que também foram traduzidas com êxito. Mas foram traduzidos depois de superadas dificuldades gigantescas.
Randall insistiu.
-Aparentemente, nestes papiros, as dificuldades foram superadas. 0 evangelho Segundo Jacob foi traduzido, Disse-me estar crente em se tratar de uma tradução cuidada. Como explica então a discrepância no texto?
-Existem várias explicações possíveis. Não sabemos se em
62, Jacob seria suficientemente instruído para poder ter escrito o evangelho pelo seu próprio punho. É possível que fosse. Mas provavelmente, para ganhar tempo, ditou o documento a um escriturário, um dos escribas de grande prática no tempo, apondo apenas a sua assinatura. Este papiro pode representar aquilo que o escriba escreveu originalmente, ou pode ser um exemplar extra, uma cópia-urna das duas outras cópias que Jacob disse ter enviado a Barnabé e Pedro-traçado por qualquer outro escriba. Ouvindo o que lhe estava a ser ditado, o escriba pode ter percebido alguma coisa mal, interpretando mal, escrevendo o erro no papiro. Lembre-se que em aramaico, um simples ponto por cima ou por baixo de uma palavra, ou um ponto colocado em posição errada, pode mudar por completo o sentido da palavra. Por exemplo, há uma palavra em aramaico que pode querer significar «morto» ou «aldeia», dependendo unicamente do lugar em que seja colocado um Ponto, Um erro de tal teor pode ser muito bem a causa do anacronismo, Ora, na verdade, ao escrever ou ditar a biografia de Cristo, treze anos depois da morte do Senhor, a memória de Jacob pode ter falhado sobre por onde e como Nosso Senhor partiu de Roma.
-Acredita em tal?
- Não - respondeu o Abade. - Este material era demasiado precioso, mesmo naquele tempo, para poder permitir um erro humano de tanta negligência.
- Então que pensa que possa ter acontecido?
- Julgo que a explicação mais provável poderá ser que os modernos tradutores - com o devido respeito pelo Dr. Jeffries e e pelos seus colegas - cometeram um erro ao verterem o aramaico em inglês e noutras línguas contemporâneas. Tal erro pode ser derivado de duas razões fundamentais.
- E quais são essas razões?
- A primeira é porque muito simplesmente não conhecemos hoje todas as palavras em aramaico que Jacob sabia em 62. Não sabemos o completo vocabulário aramaico. Não existe nenhum dicionário para tal língua e até nós não nos chegou nenhum. De modo que, ao passo que temos definido com êxito muitas palavras, cada papiro que vai sendo descoberto nos apresenta palavras desconhecidas que ainda não havíamos visto antes. Lembro-me de uma descoberta feita na gruta de Murabba'at, no deserto da Judeia que me pediram para ajudar a traduzir. 0 achado consistia em contratos legais traçados em aramaico e escritos em 130 A.D., bem como duas cartas escritas em aramaico pelo chefe judeu rebelde, Bar-Kokhba, que foi responsável pela revolta de 132 A.D. contra o domínio de Roma. Continham numerosas palavras aramaicas que nunca tinha visto anteriormente.
- Como pôde então traduzi-Ias?
- Da mesmíssima maneira como o Dr. Jeffries e os colegas dele traduziram algumas das palavras desconhecidas que com certeza encontraram no papiro Jacob: por comparação com as palavras do texto conhecidas, tentando compreender o significado e sentido que o escritor do texto original pretendeu instilar na obra e também por similaridade com formas gramaticais familiares.
0 que estou a dizer é que por vezes se torna impossível exprimir uma língua antiga em palavras modernas. Em certas alturas, a tradução torna-se mais um caso de interpretação. Mas essa espécie de interpretação pode levar ao cometimento de erros, de enganos.
0 Abade confiou a barba pensativamente, para logo a seguir continuar.
- A segunda ratoeira, Sr. Randail, é que cada palavra aramaica poderá ter vários significados. Por exemplo, existe uma palavra em aramaico que significa «inspiração», «instrução» e «felicidade». Qual a definição, segundo o verdadeiro uso da palavra pelo autor, é precisamente o que um tradutor tem que decidir. Ora a decisão do tradutor tem que ser ao mesmo tempo subjectiva e objectiva. Subjectivamente, deve pesar a justaposição das várias palavras numa linha ou em algumas linhas. Objectivamente, deve tentar ver que um ponto ou um traço, outrora inseridos, podem estar delidos. É tão fácil passar por cima, julgar erradamente, cometer um erro. Os seres humanos não são infalíveis. Pelo contrário, são susceptíveis de cometerem erros. Os tradutores da Versão do Novo Testamento do Rei Jacob trabalharam a partir de antigos textos gregos e contudo referiram-se a Jesus como «seu Filho», quando na verdade o antigo grego não tinha palavra como «seu». Procedeu-se a uma correcção na Versão Modelo Revista, passando a ler-se «um Filho». Tal modificação foi provavelmente mais exacta, mas evidentemente que alterou o significado da referência relativamente a Jesus.
-Poderá uma coisa dessas ter acontecido nesta tradução? -É possível. 0 aramaico foi traduzido para se ler que Nosso Senhor «caminhou através das abundantes terras de cultivo do Lago Fucinus, que fora mandado secar ... » Se substituir «abundantes terras de» por «abundantes terras em redor» ou «terras próximas» e «fora mandado secar» por «seria mandado secar», o o significado transforma-se por completo.
-Julga possível que as palavras tivessem sido mal traduzidas?
-Julgo que é a explicação mais provável.
-E se não estiverem mal traduzidas? Se se tratar de uma tradução fiel?
-Nesse caso consideraria com suspeita a autenticidade do Evangelho Segundo Jacob.
-Mas se for na verdade apenas um erro de tradução? -Considerarei o novo evangelho como exacto e como a mais
momentosa descoberta da história humana.
Randal inclinou-se para a frente na sua cadeira.
-Padre, não pensa que valerão a pena todos os esforços que se fizerem para que na verdade se saiba se o novo evangelho é ou não o achado mais momentoso da história humana?
0 Abade Petropoulos mostrou um ar de confusão. -0 que é que está a tentar dizer-me?
- Sugiro que amanhã de manhã se desloque comigo a Amesterdão a fim de examinar o papiro original e para nos dizer de uma vez por todas se será uma descoberta verídica ou, na pior das hipóteses, um achado espúrio.
-Quer que eu vá consigo para Amesterdão?
-Amanhã. As suas despesas serão pagas. 0 mosteiro será contemplado com uma generosa contribuição. Mas, mais importante do que tudo, a autenticação de um perito mundialmente consagrado como o Abade Petropoulos colocará o Novo Testamento Internacional acima de toda a suspeita,
0 Abade, com ar pensativo, acenou positivamente com a cabeça. -Sim, o último ponto é o mais importante. Será na realidade um trabalho de Deus. Sim, Sr. RandalI, a viagem a Amesterdão é possível. Mas não amanhã.
- Magnífico! - exclamou Randall. - Quando poderá então encetar a viagem?
-Há muito tempo que projecto assistir, como representante da nossa república monástica de Monte Athos, a um conselho ecurnénico da Igreja Ortodoxa Grega, que será presidido pelo meu superior e amigo, Sua Santidade o Patriarca de Constantinopla. É imperativo que esteja presente às sessões juntamente com os metropolitas da igreja. Devemos fazer todos os esforços possiveis para mantermos unidos os nossos oito milhões de fiéis. A sessão inaugural do conselho terá lugar em Helsínquia de hoje a sete dias. Está marcado que eu parta de Atenas para Helsínquia de hoje a cinco dias.
0 velho Abade levantou-se com lentidão. Randall teve a certeza que por detrás da mata pilosa que escondia as feições do sacerdote havia um rasgado sorriso de satisfação.
-De modo que, Sr. Randall -continuou o Abade-, estou a considerar partir daqui um dia antes, isto é dentro de quatro dias, e fazer um pequeno desvio, Afinal de contas, penso que Amesterdão pode também ser considerado como um caminho para HeIsínquia, não é verdade? Sim, lá estarei para verificar com os meus olhos o vosso papiro original e para lhe dizer se fomos vísitados por um verdadeiro milagre divino ou se se trata de unia mistificação... Sr. Randall, agora creio que prefere repousar um pouco antes de jantar. Vamos-lhe preparar o nosso acepipe favorito como preito da honra. já alguma vez comeu polvo cozido?
Randall esperava, após regressar a Amesterdão e ao seu trabalho no Hotel KrasnapoIsky três dias depois, ir encontrar George L. Wheeler e os outros editores furiosos com ele devido à vadiagem.
Em vez disso, a reacção de Wheeler apanhou-o completamente desprevenido pela surpresa.
Randall regressara a Amesterdão na noite anterior-tinha partido do Monte Athos ao alvorecer de segunda-feira e chegado a Amesterdão na terça à noite-com a intenção de se defrontar imediatamente com Wheeler, seguindo"se a cena mais penosa com Angela Montí. Mas a viagem de regresso, a desconfortável e traiçoeira descida da montanha sobre o dorso de um macho, o desconjuntado bote alugado, o sebento e ronceiro «ferry» de cabotagem, o jacto de Salónica para Paris, a mudança em Orly para o avião de Amesterdão, a corrida de táxi desde o aeroporto de Schiphol até ao hotel onde estava hospedado, haviam-no massacrado por completo.
Entrara no seu quarto e completamente abalado de fadiga resolvera adiar o confronto com Wheeler e Angela. Ficara tão exausto que nem sequer fora capaz de tomar banho, limitara-se a estender-se em cima da cama e dormira ininterruptamente até de manhã.
Dirigindo-se ao seu gabinete no KrasnapoIsky, decidira que ainda não estava preparado para ter uma explicação com Ãngela. Existiam outras prioridades. Haviam dois testes de fé a fazer: o da validade da Palavra e o da honestidade de Ãngela. E a Palavra tinha prioridade.
Fez uma ligação interna para Ãngela da sala de recepção dos editores, a anunciar-lhe a sua presença, cortando cerce as palavras calorosas que ela lhe disse, ao mesmo tempo que lhe explicou que ia estar ocupado com os editores durante todo o dia (e como não passava de um subterfúgio e não queria encará-la quando fosse para o escritório, pedira-lhe para ir proceder a determinada investigação na Natherlands Bijbelgenooschap, a Sociedade Bíblica Holandesa). Quanto a um encontro para a noite, foi evasivo. Seria possível que os editores quisessem a sua presença, segundo disse, mas veria o que podia fazer e avisava-a depois.
Uma vez arrumado, de momento, o caso com Ângela, dirigira-se ao gabinete privativo de Wheeler, preparado para o pior, e ficara verdadeiramente surpreendido.
Impulsivamente, Randall desatara imediatamente a falar, sem dar ao editor tempo para o interromper, revelando onde estivera e o que andara a fazer nos últimos cinco dias.
Wheeler escutara-o com um interesse cheio de benevolência, respondendo de uma maneira congratulatória:
-Não, meu caro RandalI, de modo nenhum me senti preocupado por você ter negligenciado o seu trabalho de promoção. Aliás nenhum de nós ficou aborrecido. Penso que é de longe mais importante que se convença de que connosco nada há de errado. Afinal de contas, não poderíamos, nem quereríamos, que se entregasse de corpo e alma ao lançamento de um produto sem acreditar nele cem por cento.
-Obrigado, George. Logo que o Abade Petropoulos vir o fragmento e o aprovar, ficarei totalmente convertido.
-Isso é uma outra coisa em que lhe estamos gratos. Desde início pretendemos poder deslocar Petropoulos do seu eremitério, para apor o duplo selo da autenticidade na tradução do documento, mas as nossas diligências malograram-se sempre. Você conseguiu aquilo que para nós foi impossível, e só podemos estar"lhe agradecidos pela sua iniciativa. Não que tenhamos quaisquer dúvidas a respeito dos papiros, mas porque constituirá para nós uma honra ter o Abade associado a este projecto. Será também uma satisfação enorme podermos libertá-lo a si de qualquer ulterior dúvida ou preocupação.
-É muita bondade da sua parte, George. Vou começar a preparar o trabalho e posso desde já garantir-lhe que estará pronto para o dia do anúncio ao mundo.
- 0 dia do anúncio ao mundo... Bem, sentir-nos-emos aliviados quando isso tiver acontecido e passado. Entretanto, embora tenhamos que nos manter vigilantes, julgo que agora poderemos respirar fundo.
- Excelente. Como diacho poderemos respirar com tantas complicações à nossa volta? - perguntou Randall.
- Quanto a Hennig, penso que arquitectámos um plano praticável para o proteger da chantagem de Plummer. Quanto ao Judas entre nós, esse bastardo do Hans Bogardus, despedimo-lo. Puserno-lo no olho da rua logo que regressámos de Mainz.
- Despediram-no?
- Oh, fez um arranzel dos demónios, deu por paus e por pedras, ameaçou-nos de revelar tudo, como já havia feito consigo, avisou-nos que iria expor a fífia fatal a Plummer e a de Vroorne e que nos arruinaria desde o momento em que lançássemos a nossa Bíblia ao público. Respondemos-lhe que o caminho estava livre para proceder como quisesse, mas que os esforços dos seus amiguinhos não lhes valeriam de nada. Uma vez que vissem a Bíblia, ficariam logo crentes que era invencível. Seja como for, pusemos o Bogardus na rua.
Randall nunca se sentira tão impressionado. 0 facto dos editores não terem medo das revelações de Hans Bogardus e estarem prontos a facilitar ao Abade Petropoulos o exame dos papiros, quase que restaurava por completo a fé de Randall no projecto. Havia contudo uma última pergunta a fazer.
- George, tenho a fotografia do papiro número 9 na minha pasta...
- Você não devia andar a transportar por toda a parte uma coisa tão preciosa. Devia manter essa fotografia fechada na segurança do seu ficheiro.
-É o que vou fazer a seguir. Mas desejava compará-la com o fragmento do papiro original que se encontra no cofre-forte da cave. Pretendo ver se o original é na verdade tão fácil de ler. Por outras palavras, gostaria de conhecer aquilo em que o Abade vai trabalhar.
-Pretende então dar uma vista de olhos pelo original? Pois com certeza que estará à sua disposição, se isso o fizer feliz. Não há problemas. Vou fazer um telefonema para Groot, no cofre-forte da cave e dir-lheei para retirar o original, de forma a que possa ser lido. Depois poderá descer e ver com os seus próprios olhos. Mas aviso-o desde já que não há muito que ver. Tentar perceber alguma coisa de um fragmento de papiro com tantos séculos de existência é quase impossível, a não ser que seja um perito como Jeffries ou Petropoulos. Todavia, olhando-o sempre ficará a fazer uma ideia do que é um manuscrito de 62 A.D. portanto as palavras, as verdadeiras palavras que foram escritas pelo irmão de Jesus, Será uma coisa que no futuro terá orgulho em contar aos seus netos junto à lareira. Muito bem, vou ligar para Groat, depois desceremos à cave.
Tudo aquilo ocorrera antes das dez da manhã.
Naquele preciso momento, oito minutos depois das dez, Randall e Wheeler estavam encerrados no elevador a descerem às entranhas do KrasnapoIsky, onde, numa das caves, fora construído um cofre-forte especial para segurança dos tesouros que fariam com que a Ressurreição Dois e o Novo Testamento Internacional fossem uma realidade para o mundo.
0 elevador especial interno parou suavemente, as portas automáticas deslizaram nas suas calhas, e Randall seguiu Wheeler pela cave. À porta foram saudados pelo rasgado cumprimento de um guarda de segurança, sentado numa cadeira, tendo atravessada nos joelhos uma carabina de precisão,
A cave tinha algo de soturno e lôbrego e os ruídos dos passos reverberavam em eco pela abaulada abóbada. Acabando de voltar a esquina de um segundo corredor, ficaram praticamente ofuscados pela intensa luz que brilhava lá no fim.
-0 cofre -explicou Whe-eler.
já à porta, Randall pôde observar a tremenda aparência da blindagem de aço, cheia de manivelas e volantes, do gigantesco cofre-forte, avultando o dial dos números de registo e combinação em brilhante metal cromado. A espessa porta de aço estava escancarada.
Subitamente, dos arcanos do cofre, saiu quase a correr a figura pesadona e maciça de um homem, projectando-se com se fosse uma catapulta humana.
Surpreendidos, Randall e Wheeler detiveram-se e ficaram de boca aberta ao reparar que, o chínó do homem estava posto às três pancadas, mexia-se-lhe a escovinha do bigode num tique de excitação, e tinha o casaco escuro aberto deixando ver o brunido cabo de uma pistola a sair do coldre peitoral. Era Mr. Groat, o curador do cofre-forte.
0 curador escorregou mesmo na frente deles, e o martelar dos seus sapatos para conseguir manter-se de pé empecilharam-lhe as palavras que tentava proferir.
Wheele.r agarrou-o pelos onabros. -Groat, que diabo se passa?
- Mijnheer Wheeler. - gritou Groat. - Help! Ik ben bestolen! Politie!
Wheeler abanou-o com rudeza.
- Diabo, homem, fale inglês! Spreek Engels!
- Socorro ... precisamos de ajuda - arquejou o volumoso holandês. - Eu ... nós... nós fomos roubados... A polícia... temos que chamar a polícia!
-Dianho, Groat, lembre-se que todo este lugar está cheio com a nossa própria polícia - disse-lhe Wheler iradamente. - 0 que é que sucedeu? Recomponha-se e conte-nos o que aconteceu.
Groat foi atacado por um espasmo de tosse, que finalmente conseguiu controlar.
- 0 papiro... o papiro número 9... perdeu-se... desapareceu! Foi roubado!
-Está doido! Não pode ser! -berrou o editor,
-Procurei por toda a parte... por toda a parte-murmurou Groat. -Não se encontra na gaveta que lhe foi destinada... nem nas outras gavetas... não está em nenhuma delas... não sc encontra em lado nenhum.
-Não acredito nisso-disse Wheeler rispidamente. -Vou eu próprio procurar.
Wheeler dirigiu-se com rapidez para o interior do cofre-forte, levando colado aos seus calcanhares o atarantado curador. Randall seguíu-os vagarosamente, tentando compreender, juntar todos os fragmentos daquele quebra-cabeças.
Chegando à entrada do cofre forte, Randall observou atentamente aquele gigante de aço à prova de fogo e à prova de roubo. Tinha pelo menos seis metros de comprimento por três de largura. As paredes laterais eram construídas de cimento armado e lâminas de aço, vendo-se nelas uma vasta disposição de gavetas metálicas. Quatro lâmpadas fluorescentes no tecto de cimento iluminavam brilhantemente uma comprida mesa rectangular metálica, onde se viam uma dezena ou mais de placas de vidro perfeitamente lisas.
Depois a atenção de Randall voltou-se para as actividades a que se entregavam Wheeler e o curador do cofre.
Groat estava a tirar para fora, uma das amplas gavetas metálicas, enquanto Wheeler examinava o conteúdo. Daquela gaveta o par deslocou-se para a mais próxima e à medida que a busca decorria, o editor parecia cada vez mais frustrado e apoplético.
Imaginando se haveriam quaisquer outras áreas na câmara onde o papiro se pudesse encontrar fora do seu lugar habitual, ou até escondido em qualquer local escuso, Randall voltou a examinar o cofre. Na parede da esquerda estavam dois ventiladores, lá muito no alto, e por baixo deles, ao nível dos olhos, uma série de mostradores e comutadores, sem dúvida destinados ao controlo da humidade destinada aos valiosos papiros de pergaminho. 0 chão de cimento estava escrupulosamente limpo.
Randall apramou-se, enquanto o editor, com a cara fechada e de aspecto preocupado, ombro a ombro com o estarrecido curador, depois das suas buscas se dirigiram para junto dele.
- É impossível, mas na verdade não se encontra-disse Wheeler com voz rouca de emoção. - 0 Papiro Número 9, desapareceu.
- Só esse? - perguntou Randall incrédulo. - E quanto aos outros. Ainda lá estão?
- Foi o único que desapareceu - disse Wheeler, tremendo numa mistura de raiva e frustração. -Tudo o mais está no seu lugar. - Abriu caminho à bruta entre Randall e Groat para inspeccionar a fechadura e as trancas da espessa e maciça porta.
- Nenhumas marcas, nenhuma arranhadela na pintura. Não foi forçada.
Randall interveio para perguntar ao curador:
-Quando é que viu pela última vez o papiro número 9?
- Ontem à noite - respondeu o aterrado Groat. - Ontem à noite, quando fechei o cofre-forte para ir para casa. Todas as noites antes de sair faço uma inspecção ao material em todos as gavetas a fim de ter a certeza de que está tudo em ordem e também para verificar as condições gerais, para saber se o humificador está a funcionar como deve ser.
-Desde essa altura até há pouco esteve aqui alguém a visitar o cofre?- perguntou Wheeler façanhudamente.
-Ninguém, nem uma só pessoa, até que os senhores chegaram aqui -respondeu Groat.
-E quanto aos guardas que Heldering mantém aqui de serviço? -quis saber Randall.
- Ser-lhes-ia impossível - respondeu o curador. - Não possuem quaisquer meios para poderem entrar no cofre. Não lhes é fomecida a combinação para abertura.
-E quem é que possui essa combinação a não ser o senhor? - inquiriu Randall.
Wheeler meteu-se de permeio naquela parada de perguntas e respostas.
- Posso dizer-lhe as pessoas que têm acesso ao cofre-forte. São apenas sete. Groat, evidentemente. Heldering. Os cinco editores - Deichhardt, Fontaine, Gayda, Young e eu. Mais ninguém.
- Poderia alguém ter roubado os números que servem à combinação do cofre? - perguntou Randall.
- Não - respondeu Wheeler sem vacilar. Os números da combinação nunca foram escritos. Todos nós os decorámos. Abanou a cabeça. - Impossível... é daquelas coisas que não podem ter acontecido. Incrível. É o mistério mais danado que tenho encontrado na minha vida. Tem de haver uma solução simples para o caso, porque volto a repetir que é daquelas coisas que não podem ter acontecido.
-Mas aconteceu-disse Randall-, e, por coincidência, a um fragmento de papiro em que estamos tão interessados, precisamente aquele que vínhamos observar.
-Estou-me marimbando para o fragmento que é-uivou Wheeler. - 0 facto é que não nos podemos dar ao luxo de perder seja qual for. Meu Deus, poderá ser um autêntico desastre. Os materiais nem sequer nos pertencem. São do governo italiano. São tesouros nacionais. Logo que termine o contrato de empréstimo, a concessão que nos foi dada, temos de entregar os documentos na íntegra. Mas isso ainda não é o pior. 0 pior de tudo é que precisamos de todas as partes dos papiros originais para apoiarem publicamente a autenticidade do nosso Novo Testamento Internacional.
-Especialmente o Papiro Número 9-disse Randall calmamente.-É esse precisamente o que está em causa.
As sobrancelhas de Wheeler encresparam"se.
-Não está nada e está tudo em causa, Porque raio fazermos excepções?
- Porque Plummer e de Vroorne denunciarão ao mundo a fífia nesse particular fragmento, e toda a Bíblia estará em causa, a menos que o Abade Petropoulos possa ver o fragmento e nos venha dar a resposta que desejamos.
Wheeler deu um palmada na testa.
-Petropoulos! Tinha-me esquecido dele. Quando é que ele vem fazer a verificação?
-Amanhã de manhã.
- Inferno! Bem... você tem que o fazer adiar a viagem. Envie-lhe um telegrama. Diga-lhe que o exame tem de ser adiado. Diga-lhe que nos manteremos em contacto com ele em HeIsínquia. Randall sentiu um baque no coração.
-George, isso não está ao meu alcance. 0 Abade deve estar já a caminho de Amesterdão.
-Diacho, Steve, é necessário que o detenha. Não temos nada para lhe mostrar. Agora vamos deixar de perder mais tempo. Tenho que ir participar o caso a Heldering, bem como a Deichhardt e aos outros. 0 nosso principal trabalho será sabermos onde se encontra o fragmento e recuperá-lo.
- A policia de Amesterdão - titubeou Groat temos que a avisar.
Wheeler voltou-se para o curador com a ira estampada no rosto.
- Você está doido? Se permitíssemos que a policia se misturassc nisto estávamos liquidados. Seria o fim do nosso sistema de segurança. De Vroorne viria a conhecer tudo e mais alguma coisa. Perderíamos a corrida. Todos os bípedes da Ressurreição Dois serão submetidos a um interrogatório de terceiro grau, mas será estritamente um trabalho interno. Não haverá nenhum gabinete, nenhum escaninho, nenhuma secretária, ficheiro e armário que não seja voltado de pernas para o ar. Mesmo os aposentos onde vive o nosso pessoal, tudo será investigado minuciosamente até recuperarmos o documento. Groat, você fique aqui, no cofre.
0 guarda de segurança também não se deve mexer do seu lugar. Vou subir para dar o alarme. E você... você Randall... tem que fazer saber a Petropoulos que não o podemos receber, pelo menos por enquanto.
Dez minutos depois, quando Randall regressou ao seu escritório, ainda profundamente perturbado devido aos acontecimentos, encontrou um sobrescrito junto do calendário da sua secretária. Era um radiograma enviado de Atenas.
Estava assinado Abade Mitros Petropoulos.
0 Abade estava já a caminho de Amesterdão e desejoso de poder examinar o fragmento. Chegaria na manhã seguinte às 10h50. Interiormcnt -, Randall soltou um gemido, 0 perito dos peritos, o reestaurador da fé, estava a caminho. Já não podia ser detido. E não havia a fifia de Bogardus para se lhe mostrar, não havia o nada para lhe apresentar, absolutamente nada.
Randall sentiu-se doente. Não de frustração... mas de desconfiança.
Na manhã seguinte, tendo chegado ao Aeroporto de Schiphol meia hora antes, Steve Randall sentou-se no balcão do «snack» a fazer horas para ir esperar o Abade Mitros Petropoulos do mosteiro de Simopetra, no Monte Athos, que chegaria no voo da Air France.
Bebendo a sua chávena de café-a terceira daquela manhãRandall contemplou pensativo e sombrio um ponto perdido para além dos espelhos do balcão.
Sentia-se mais deprimido do que nunca. Não fazia a mais leve ideia daquilo que iria dizer ao Abade, com excepção da verdade sobre o desaparecimento do Papiro NúmeTo 9, uma verdade que os editores pretendiam ocultar. Randall não podia pensar em qualquer desculpa e muite menos em mentir. Estava decidido a contar a verdade e a desfazer-se em desculpas por ter feito deslocar a Amesterdão para nada o idoso sacerdote. Podia perfeitamente imaginar qual seria a decepção do Abade quando lhe contasse o que havia a respeito da perda do fragmento. Imaginava também se o velho eclesiástico não alimentaria algumas suspeitas, tal como desde o dia anterior lhe acontecia a ele, RandalI, suspeitas que lhe devoravam a mente.
Sim, a verdade é que a tremenda busca do dia anterior para recuperação do fragmento redundara em fracasso.
Helderíng e os seus homens haviam interrogado todas as pessoas que trabalhavam na Ressurreição Dois. Tinham também esquadrinhado eficientemente todos os escaninhos nos aposentos dos dois andares do KrasnapoIsky que pertenciam ao projecto. Tinham organizado uma comprida lista de cada uma das pessoas ligadas ao empreendimento que não viviam no Rras, procedendo também a rusga nos respectivos quartos e casas, desde o monacal quarto do Dr. Knight no Hotel San Luchesio, até ao sumptuoso quarto de Angela Monti no Vict6ria. Tinham procedido a buscas no apartamento do curador Groat, e RandalI, por sua conta e risco, introduzira-se no quarto de Hans Bogardus enquanto o bibliotecário estava ausente.
Ora o Inspector Heldering e os seus agentes de nada haviam sabido e nem vestígios haviam encontrado do Papiro Número 9. Os editores, que se tinham recusado a entrar em pânico ou a desistirem, haviam-se fechado com Heldering na sala de conferências até à meia-noite. 0 mistério adensara-se ainda mais para toda a gente ligada ao projecto. Para Randall, só as suspeitas se tinham adensado.
Na noite anterior retirara-se sozinho para a sua «suite» do Amstel. Ãngela telefonara"lhe. Trocara-lhe as voltas a todas as perguntas sobre o que estava a suceder, mentindo que tinha gente à espera dele, para uma conferência, na sala de espera. Finalmente prometera-lhe encontrar-se com ela na noite seguinte. Ora o encontro com Angela nessa mesma noite era mais um acontecimento penoso a acrescentar a todos os outros, um acontecimento que sabia não poder adiar por mais tempo.
E toda a noite matutara. Continuava ainda a cismar ali sentado ao balcão do «snack» do aeroporto de Schiphol. Era demasiado para poder ser uma coincidência. 0 fragmento desaparecera precisamente na altura em que se procederia à prova provada da sua autenticidade. Mal ousara conjecturar como é que o fragmento podia ter desaparecido. Recordara-se a si próprio persistentemente que a perda do papiro constituía um tremendo prejuízo para os cinco editores, prejudicava-os tanto como prejudicava a fé dele, Randall, numa religião renovada. Sem aquele fragmento eles seriam homens perdidos, vulneráveis, tal como para ele a perda significava o ruir da fé. 0 desaparecimento do importante documento não podia ser um trabalho interno... mas, de qualquer maneira, não podia ser também um trabalho lançado do exterior.
Em desafio a toda a lógica, a sombra da desconfiança e da suspeita devorava Randall.
Subitamente, de um altifalante disfarçado no tecto, saiu uma voz que dizia insistentemente: «Mr. Steve Randall! Solicitamos a sua presença no InUchtingen... no balcão do serviço informativo. Mr. Steve Randall ... »
0 que seria?
Apressadamente, Randall pagou a conta e saiu em largas passadas do «snack», dirigindo-se para o balcão das informações no átrio do Schiphol.
Deu o nome a uma das simpáticas holandesas que estavam atrás do balcão.
A moça procurou num cacifo e surgiu depois com uma mensagem, que lhe entregou.
Randall leu: «Mr. Steve Randall. Telefone imediatamente para Mr. George L. Wheler no Grande Hotel KrasnapoIsky. É urgente.»
Segundos depois, Randall estava ao telefone, esperando que a secretária de Wheeler ligasse para o «bess.
Randall conservou o auscultador bem encostado ao ouvido, sem saber o que iria surgir dali, mas sabendo com toda a certeza que o voo da Aír France n.o 912, precedente de Paris, onde vinha o Abade Petropoulos, chegaria dentro dos mais próximos quatro minutos.
A voz profunda de Wheeler chegou"lhe do outro extremo da linha. Mas, estranhamente, não era uma voz severa e quase selvagem, era, pelo contrário, uma voz alegre, saltitante, cheia de júbilo.
- Steve?... Está aí? Tenho grandes novas para lh transmitir! Formidáveis novas! Encontrámos a coisa... localizámos o papiro perdido!
0 coração de Randall deu-lhe um sacão dentro do peito.
- Encontraram?
- Parece uma coisa inacreditável, mas a verdade é que não foi roubado, nem sequer tirado do cofre. Esteve sempre lá dentro enquanto andávamos todos à procura dele, Que nie diz a isto? Sabe bem corno a procura do docurnento se transformou num verdadeiro desespero. Já não sabíamos para onde nos voltar. Há cerca de uma hora, sugeri que voltássemos a procurar no cofre. Mas dessa vez, quis que todas aquelas gavetas de metal e lâminas de vidro fossem retiradas completamente desmontadas. Empenhamos dois serralheiros civis no trabalho. E quando a gaveta 9 foi retirada e colocada no chão, encontrámos o desaparecido, encontrámos o nosso Papiro Número 9! 0 que aconteceu foi o seguinte: a retaguarda da gaveta ganhou uma folga e a chapa subiu uns milímetros na calha. 0 fragmento do papiro, dentro das folhas protectoras de acetato de celulose, não sabemos bem como, deslizou pela fenda e ficou em posição fora do alcance da vista entre a armação e a parede de cimento armado. Foi em tão crítica posição que fornos encontrar a preciosidade, e, graças a Deus, estava intacta, sem sofrer qualquer acidente. Que tal, Steve? Que pensa disto?
- Que penso? - disse Randall atónito. - Bom, penso que foi urna coisa maravilhosa.
-De modo que pode trazer-nos o seu Abade Petropoulos.
0 Papiro está aqui à espera dele. Estamos prontos para a sua decisão final.
Randall pousou o telefone no descanso e apoiou a cabeça por momentos contra a parede da cabina, sentindo-se aliviado, mas ao mesmo tempo confuso.
Lá fora soavam os altifalantes.
«Voo número 912 da Air France. 0 avião acaba de aterrar, vindo de Paris.»
Apressou-se a ir para a área de espera por onde os passageiros teriam de passar depois de saírem da alfândega.
Estava preparado para enfrentar o Abade, para enfrentar a verdade, e... mais uma vez... para se refugiar na nova fé.
Era uma cena curiosa aquela a que estava a assistir, reflectiu Randall.
Estavam dentro do cofre"forte, todos eles, na cave do Hotel KrasnapoIsky, e estavam reunidos ali, suspensos, há mais de vinte minutos. 0 foco de atenções da assembleia era a única pessoa naquele aposento que estava sentada: o Abade Mitros Petropoulos, superior do mosteiro de Simopetra, no Monte Athos.
0 Abade, com o seu barrete eclesiástico quase em forma de fez, com a sua ampla batina negra e a branca barba quase a roçar a borda da mesa, estava debruçado para a folha de papiro, de cor acastanhada, que fora retirada da pasta protectora de acetato de celulose e estava naquele momento prensada entre duas lâminas de vidro. Encontrava-se completamente embrenhado na sua análise aos quase delidos caracteres em aramaico escritos em espessas colunas no papiro. De vez em quando, quase com um gesto ausente, lançava mão da poderosa lente de aumentar e estudava mais detalhadamente determinada palavra. Por várias vezes pôs de parte o papiro para consultar uns livros raros de consulta dispostos sobre a mesa, depois agarrava na caneta de tinta permanente e rabiscava qualquer nota no bloco que se encontrava ao seu lado direito.
Atrás do abade, a respeitosa distância, o Dr. Deichhardt George Wheeler, Monsicur Fontaíne, Sír Trevor Young e Signore Gayda observavam-no tensamente. Ainda atrás dos editores, o curador Groat mantinha-se empertigado com um ar solene e algo protector.
RandalI, cercado pelo Dr. jeffries, Dr. Knight, Professor Sobrier e Monsenhor Riccardi, encontrava-se na interior do perímetro da casa-forte, absorvido naquele espectáculo que comportava um só actor.
Randall pensava se todos os espectadores não passariam, de repente, finda a análise, a serem participantes de urna verdadeira tragédia. Haviam-se passado vinte e cinco... vinte e seis tremendos minutos que pareciam uma eternidade.
De repente, o Abade Petropoulos mexeu-se. 0 frágil dorso do eclesiástico ortodoxo grego endireitou-se, encostou-se para trás na cadeira. Cofiou a barba e voltou-se olhando firmemente para os editores.
-Pois muito bem, estou satisfeito.
0 silêncio havia sido quebrado, e contudo mais ninguém se atrevia a pronunciar palavra.
0 abade sintetizou:
-A discrepância pode perfeitamente ser explícada. Foi cometido um pequeno erro, um erro compreensivel, mas não obstante, um erro, aquando da leitura do original araniaico e, por consequência, incidindo na tradução. Uma vez feita a necessária correcção, mais ninguém poderá duvidar do texto. É de facto autêntico, para além de qualquer dúvida.
As tensas feições dos cinco editores, onde se viam carnarinhas de suor, distenderam-se como se lhes tivessem tirado dos ombros um peso de cem arrobas de martirio.
Logo se apressaram a correr para o Abade, cada um querendo ser inerecedor de apertar a mão àquele ancião que acabava de os salvar da ruina.
- Excelente, excelente! - exclarmou o Dr. Deichhardt. Padre Superior, e agora quanto ao erro que descobriu ... ?
0 Abade Petropoulos agarrou no bloco-notas,
-0 perturbante período em aramaico foi originalmente lido pelos vossos tradutores com o seguinte significado: «E na sua fuga de Roma, Nosso Senhor, juntamente com os discípulos, carni" nhou, durante toda essa noite através de abundantes terras de cultivo do Lago Fucinus, um imenso pantanal que fora mandado secar e dragar por Cláudio César e que os romanos amanhavam com os maiores cuidados.» Vários dos quase invisíveis traços rabiscos e pontinhos foram sem dúvida negligenciados, mas correcta~ mente interpretados e inseridos no texto como mandam as regras, dão-nos a oportunidade de vermos a existência de palavras diferentes que, por conseguinte, modificam o sentido. Lidas correctamente as palavras aramaicas formam a seguinte oração: E na sua fuga de Roma, Nosso Senhor, juntamente com os discípulos, caminhou durante toda essa noite através as abundantes terras de cultivo perto do Lago Fucinus, que seria mandado secar e dragar por Cláudio César e que os romanos amanhariam com os maiores cuidados. Estão a ver, «caminhou através as abundantes terras de cultivo perto», foi lido e traduzido por engano como «caminhou através as abundantes terras de cultivo do», e «que seria mandado secar», foi lido por engano como, que fora mandado secar».
0 Abade pôs de parte ao seu bloco.
-De modo que temos o mistério esclarecido, Tudo está bem quando acaba em bem, meus senhores. Devo acrescentar, que considero o facto de ter podido ver este papiro de jacob como um dos mais comoventes momentos de toda a minha já longa vida. Toda a descoberta em si representa o ponto mais alto da história espiritual do homem. 0 texto irá alterar, para melhor, o rumo de toda a cristandade. Agradeço-lhes a oportunidade que me deram para me sentir mais próximo da pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.
-Nós é que lhe estamos muito agradecidos! -exclamou o Dr. Deichhardt, enquanto, juntamente com Wheeler, ajudava o idoso sacerdote e levantar-se da cadeira. Pouco depois o editor alemão anunciou:
- Agora vamos para o andar de cima comer um digno e alegre almoço comemorando este momento histórico que acabámos de viver. Padre Superior, peço-lhe o favor de aceitar o nosso convite, antes de seguir para o conselho ecurnénico, em HeIsínquia.
- De boa-vontade e sentindo-me muito honrado por tão amável convite - respondeu o Abade.
Wheeler agarrou no bloco"notas abandonado pelo Abade Petropoulos.
-Terei de chegar à mesa um bocado atrasado, tenho que telefonar urgentemente para Herr Hennig em Mairiz. Temos que mandar parar todo o trabalho das oficinas de encadernação. Temos que mandar corrigir todas as traduções com essa página impressa de novo em cada uma das edições.
- Sim, sim, é uma coisa que deve ser feita imediatamente - concordou o Dr. Deichhardt. - Diga a Hennig que não podemos sofrer atrasos. Pagaremos horas extraordinárias aos operários e subsidiaremos os gastos extras do complexo impressor.
Quando começaram a debandar do cofre-forte, Randall e os do seu grupo afastaramse para deixar passar o Abade e os editores. Ao passar junto de RandalI, o Abade fez uma breve paragem.
- Mr. RandalI, agora pode verificar por si aquilo que lhe disse quando em Simopetra me mostrou a fotografia do papiro. A fotografia nem por sombras é tão clara corno o original. De resto falta-lhe a dimensão de profundidade, não revelando por isso mesmo marcas de identificação impressas no papiro. É frequente, para uma pessoa como eu que vivo há tanto tempo entre documentos antigos, os originais oferecerem o que nenhuma reprodução poderá oferecer.
- Padre, sinto-me muito satisfeito por ter tido oportunidade de verificar o original. Sem dúvida que ajudou a resolver um tremendo problema.
0 Abade sorriu.
- Os encómios sobre o caso são partilhados por nós dois. Depois, o Abade e os editores foram-se embora, seguidos por Sobrier e Riccardi. Finalmente, Randall encontrou-se dentro do cofre com um perturbado Dr, jeffries, um beatifico Dr. Knight e um afadigado curador Groat, que se preparava para arrumar todas as coisas nos seus lugares.
Quando o volumoso curader se preparava para meter o papiro na sua capa de celulose, o Dr. jcffries deteve-o.
- Um momento, Mr. Groat. Antes de arrumar esse papiro deixe-me dar mais uma vista de olhos a essa confusa coisa.
0 Dr. leffries dirigiu-se à mesa, voltou a colocar o bocado de papiro entre as lâminas de vidro, observado atentamente pelo Dr. Knight e por Randall.
Obviamente, o Dr. jeffries mostrava-se aborrecido. A responsabilidade pela equipa de tradutores que haviam procedido à final solução dos documentos pertcncera.-Ihc inteiramente. Ter sido apanhado num erro tão crasso fora sem dúvida um grave golpe para o seu cgo. jeffrics colocara o pince-nez a cavala sob a cana do nariz e estava a olhar atentamente para o papiro.
RandalI, que ainda não tinha conseguido ver o controverso papiro, debruçou-se para dar uma olhadela mais de perto. Tratava-se de uma larga folha de papel acastanhado, enrugado, cheio de manchas, ténue, quebradiço, com as margens a desfazerem-se. Tinha dois buraquitos desiguais como se tivessem sido feitos pelas traças, mas o mais surpreendente era a clareza da escrita em aramaico. A olho nu, e sem ser urna pessoa treinada no estudo de tais documentos, Randall podia perfeitamente abranger porções completas das espessas colunas cheias de traços e rabiscos.
-Ummm... ummm... não compreendo - murmurou o Dr, Iffiries. -Nunca conseguirei compreender como pude enganar-me na leitura deste período. Agora, que tenho oportunidade de o ver de novo, parece"me tão claro, tão fácil de traduzir, como aconteceu ao Abade, que até me espanta. Existem umas quantas manchas duvidosas, claro está, mas mesmo assim posso ler as palavras correctarnene. - Abanou zangadamente a cabeça. - Deve ser da minha idade, da idade e dos meus olhos cada vez mais fracos...
- Foi o senhor quem traduziu esta parte? - perguntou Randall,
-Sim - suspirou o Dr. Jeffries.
-Mas no seu grupo houve mais quatro pessoas que verificaram a tradução depois de completada. Eles também erraram na leitura do período.
- Unurun... é verdade. Todavia, o...
-0 erro colectivo deve-se a que colegas a trabalharem com urna pessoa possuindo a reputação do Dr. Jeffries estão sujeitos a deixar-se intimidar -interrompeu o Dr. Knight, com uni certo ar crítico. - Se o Dr. Bernard Jeffries emite uma opinião, ela torna-se decreto, lei, ordem, que poucos eruditos se atreveriam a contestar. Tudo depende do imenso respeito devido à erudição do Dr. Jeffries.
0 Dr. Jeffries fungou.
-A erudição e o estudo requerem vista apurada. A minha vista deixou de ser apurada. Não quero empreender mais projectos deste modo. De facto-voltou"se para o seu protegido -chegou a altura de dar lugar aos jovens. Pessoas com olhos jovens e mentes mais ágeis. Florian dentro em breve devo abandonar a minha cátedra em Oxford. Devo deslocar-me para Genebra a fim de assumir responsabilidades completamente diferentes. Quando me demitir procurarão sem dúvida saber a minha opinião e recomendação para o preenchimento do lugar. Florian, lembrar-meei da promessa que lhe fiz porque, além de tudo o mais não conheço ninguém com mais aptidões.
0 Dr. Knight baixou a cabeça.
- A boa opinião que tem a meu respeito é tudo o que quero e desejo, Dr. Jeffries. Este foi um dia auspicioso - disse indicando o papiro. - 0 que na verdade interessa é a maravilha e portento deste achado. Tal como disse o Abade Petropoulos, mudará o rumo do cristianismo.
Randall apontou para a folha de papiro.
- Dr. leffries, são então estas as linhas que o Abade acabou de traduzir, não é verdade?
- As linhas complicativas? Sim, são estas mesmas.
Randall curvou-se aproximou os olhos do papiro, examinando atentamente os ténues caracteres.
- Espantoso, são muito mais distintas e fáceis de ler do que a fotografia tirada. - Endireitou-se. - A que é que se deve tal fenómeno? Pensava que a fotografia a infravermelhos se destinava precisamente a restaurar antigos manuscritos que não podiam ser decifrados com facilidade, tornando-os muito mais claros do que os originais. Não é assim?
- Eu hesitaria em generalizar essa opinião - respondeu o Dr. Jeffries com manifesto desinteresse.
- Julgo que ouvi afirmar o caso a EdIund. Se assim for, então o negativo tirado a infravermelhos tem de ser mais fácil de ler do que o original em cima desta mesa.
- Para exactidão, o erudito recorre sempre ao original disse o Dr. Jeffries impacientemente. - Não há possibilidades de distorção. Bom... já basta deste maldito negócio. Vamos para cima participar no almoço para esquecermos as mágoas de um mau trabalho numa boa refeição.
Subiram os três no elevador até ao primeiro andar onde Randail, desistindo de assistir ao almoço, deixou a companhia dos dois eruditos e se dirigiu ao seu gabinete. Ao penetrar no gabinete de recepção, sentiu algo de desconfortável ao pensar que nessa noite teria de enfrentar Ângela. Mas naquele momento a secretária estava vazia e Randall lembrou-se que na noite anterior a encarregara de outro trabalho de pesquisa na Sociedade Bíblica Holandesa.
Confortado pelo pensamento de que poderia pelo menos estar só -livre de momento de Ãngela, Wheeler e todos os outros entrou no gabinete, tirou o casaco, aliviou o colarinho, acendeu o cachimbo e começou a passear lentamente de um lado para o outro.
Na Zaal G, a sala de jantar, os editores e os seus convidados estavam a comemorar. Sozinho, no seu escritório, Randall não se sentia com a mínima disposição para celebrações, pelo menos por enquanto.
Havia algo de escrupuloso, algo de errado, que ainda o preocupava, e queria definir melhor qual eram as suas dúvidas.
Hans Bogardus havia lançado o espectro de nuvens sombrias de tempestade sobre o projecto ao ameaçar a revelação de uma discrepância no Evangelho de Jacob, mas há pouco, no cofre-forte da cave, um perito inatacável, acima de toda a suspeita, um sacerdote vindo de um canto remoto da Grécia, de uma península do Mar Egeu, explicava tudo claramente, afastando o anacronismo, e proclamando a nova Bíblia absolutamente prístina e autêntica. Sim, na verdade, mas o que na realidade preocupava Randall era o que teria acontecido entre a descoberta de Bogardus e a autenticação do Abade Petropoulos.
No Monte Athos, o Abade mostrara-se relutante, reticente em avaliar uma fotografia tirada ao papiro em questão, mas nessa altura parecera ficar também convencido de que o documento fora excelentemente traduzido por uma equipa de eruditos chefiada pelo Dr. Jeffries. Ora alguns dias depois, o Abade debruçara-se sobre o original do papiro e, sem a menor hesitação, avaliara que o aramaico não fora traduzido com exactidão, e que o Novo Testamento era por conseguinte um documento para além de toda e qualquer suspeita.
0 que é que modificara a avaliação do Abade? Uma nova visão do papiro... ou... um novo papiro para ver?
Sim, era aquela a parte diabólica de todo o caso, o desaparecimento, o incrível desaparecimento do Papiro Número 9, no momento exacto em que se tomara vital fosse examinado pela maior autoridade mundial em aramaico. Coincidência? Talvez. Bem, mas depois seguira-se o não menos espantoso reapareciniento do papiro, a sorte incrível da sua recuperação, precisamente na altura da chegada do Abade. Outra coincidência? Talvez.
Bem... talvez. Talvez. Era estranho quanto ao delido aramaico num antigo papiro, estranho como um simples milímetro de um rabisco deslocado mais à esquerda ou mais à direita, aqui ou ali, podiam estabelecer a diferença entre uma mistificação profana e uma verdade divina. A simples localização de um pequeno rabisco, que não fora visto anteriormente, mas que os olhos do Abade haviam encontrado, fazia ressurgir a fortuna e boa-sorte para os cinco editores religiosos. De quão pouco dependiam as fortunas e os futuros dos homens.
Mas a fotografia era o que mais preocupava Randall. Se o Abade fora incapaz de distinguir os caracteres que na fotografia formavam as palavras do texto, devia, normalmente, ter ainda mais dificuldades em fazer a avaliação pelo original. Randall disse para com os seus botões que nada daquilo fazia sentido. Estava quase certo de que um negativo a infravermelhos conferia a qualquer fotografia mais clareza do que a um original delido pelo tempo. No entanto, as palavras na fotografia decalcada do negativo a infravermelhos eram infinitamente mais ténues do que no original que acabara de observar.
Não, aquilo não fazia sentido. Ou, possivelmente, até talvez fizesse sentido demais.
Randall aproximou-se do seu ficheiro à prova de fogo e abriu-o. Destrancou a barra de segurança e puxou a gaveta, onde arquivara finalmente a fotografia, sob insistência de Wheeler.
A pasta de arquivo contendo as fotografias tiradas por EdIund à descoberta do Professor Monti-o único jogo de reproduções existentes no edifício-estava mesmo na sua frente. Randall abriu a pasta e tirou a primeira fotografia da fila. Não era a Número 9, mas sim a Número 1. Desconcertado -estava a pensar que quando procedera ao arquivo da controversa fotografia a colocara em primeiro lugar-, começou a catar todas as fotografias apressadamente: a pertencente ao Papiro Número 9 era a última da fila - a primeira contando inversamente.
Pensou que não era caso para suspeita. já anteriormente se enganara várias vezes na ordem de arquivar documentos. 0 mais provável, pois, seria ter metido a fotografia do Papiro Número 9 na pasta sem ter visto onde a colocara.
Levou a fotografia do papiro para cima da secretária e sentou-se para a observar melhor.
0 Dr. Jeffries, quando tinham ficado a sós no cofre-forte, indícara-lhe quais as linhas em aramaico do original que haviam desencadeado a controvérsia. Randali percorreu a fotografia com os olhos e localizou-as facilmente. Os seus olhos não se podiam afastar delas, como se estivesse hipnotizado.
Aquelas linhas eram as mesmas de antes, mas, de certa maneira, não pareciam as mesmas.
Piscou os olhos. Apresentavam-se-lhe muito mais claras do que quando as examinara no Monte Athos. Pelo menos pareciam-lhe mais claras. Diacho, eram de facto tão ou mais legíveis do que o papiro original que ainda há momentos vira na casa-forte. Se aquela fosse a fotografia que tinha mostrado ao Abade PetroPoulos no Monte Athos, o sacerdote teria sem dúvida podido ler os caracteres com facilidade, na verdade muito mais facilmente do que fora capaz de decifrar o original.
Randall atirou a fotografia para cima da secretária e esfregou os olhos.
Estariam os olhos a enganá-lo? Seria aquela a mesma fotografia que sempre tinha sido. Ou seria o seu velho cinismo, aquele cinismo que Bárbara, a sua mulher, que o seu infortunado pai, que ele próprio sempre haviam odiado, aquele cinismo, descrença autodestruidora em qualquer coisa de valor, que estava a regressar, que de novo se espalhara por todo o seu ser corno um cancro em desenvolvimento? Pesava os seus sentimentos.
Seria a dúvida que persistia no seu ser um desejo honesto de encontrar a verdade ou um hábito enraizado de rejeitar a fé? Teria razão para a renovação das suas suspeitas ou estava a viciar-se no seu cepticismo sem fundamento que acabava por se tomar um hábito de desvirtuar todas as coisas, por mais sagradas que fossem?
Inferno! Havia um meio de saber a resposta.
Levantou-se impulsivamente da cadeira, agarrou na fotografia e vestiu o casaco.
Havia uma pessoa que tinha a resposta. Uma pessoa, a única que tirara a fotografia, óscar EdIund, o fotógrafo da Ressurreição Dois. E era óscar EdIund a quem ele ia procurar imediatamente.
Hora e meia depois, Randall desceu do táxi que o havia conduzido à morada de EdIund, encontrando-se a olhar para um típico prédio holandês do século XIX, de três andares, situado no cais conhecido como Nassaukade.
Randall tinha sido informado que era aquela a casa alugada pela Ressurreição Dois para alojamento de alguns dos seus homens a trabalharem no projecto. Albert Kramer, Paddy O'Neal e Elwin Alexander, entre outros, partilhavam os oito quartos da residência, sendo também habitada por óscar EdIund, que dispunha igualmente de certos compartimentos onde montara a câmara escura.
0 táxi que transportara Randall não pudera levá-lo mesmo até à entrada da porta. 0 espaço para estacionamento estava ocupado por um «sedan» encarnado de aspecto oficial, tendo ao volante, à espera, um motorista uniformizado. A medida em que se aproximava da moradia, Randall observava o «sedan» pintado de encarnado, conjecturando no que quereriam dizer as palavras pintadas na carroceria: Heldhaffig, Vastberaden, Barmhartig.
0 motorista pareceu adivinhar os pensamentos de RandalI, porque na altura em que ele passou junto da porta, lhe perguntou cortesmente:
- 0 senhor é americano?
Como Randall tivesse feito um aceno afirmativo com a cabeça, o homem prosseguiu:
- Bom, as palavras que o intrigam pintadas no veículo querem dizer em inglês: «Heróica, Decidida, Prestimosa». São a divisa da brigada de incêndios de Amesterdão. Este é o carro oficial do comandante dos bombeiros.
- Muito obrigado pela explicação - agradeceu Randail, preparando-se para entrar na porta da escada, ao mesmo tempo que pensava qual a razão do carro do comandante de bombeiros se encontrar naquele local.
Randall acabava de ultrapassar o limiar quando viu a porta interior abrir-se e surgir EdIund, com o rosto mais melancólico do que nunca, na companhia de um homem uniformizado, de grande arcaboiço. Embora estivesse absorvido numa troca de palavras com o comandante de bombeiros, EdIund viu logo Randall e fez-lhe um gesto para esperar um pouco.
Randall ficou no último degrau, à espera, ainda mais intrigado, até que finalmente Edlund trocou um aperto de mão com o comandante da brigada de incêndios. Ao passar por Randall, o oficial levou a mão ao quépi num cumprimento, desceu os degraus e tomou lugar no «sedan» encarnado.
EdIund apressou-se ao encontro de RandalI, que lhe disse: -Desculpe, eu devia ter telefonado primeiro para saber se estava muito ocupado. -Depois, apontando para o «sedan» que iniciara a marcha, perguntou: - Há alguma novidade?
EdIund passou a mão pelo cabelo corrde-cenoura e respondeu desconsoladamente:
- Complicações, nada mais do que complicações. Desculpe se estou mal-humorado. 0 cavalheiro que viu sair daqui é o comandante da brigada de incêndios de Amesterdão. Veio me entregar o relatório sobre o sinistro. 0 onderbrandnwester
-0 quê?
- Um dos chefes de grupo de incêndios e alguns bombeiros estiveram aqui até de madrugada e realizaram uma investigação.
- Olhou para Randall interrogativamente. - Não sabia? Desculpe, ser tão precipitado. Ontem à noite, nas traseiras da casa, declarou-se um breve foco de incêndio...
- Ficou alguém ferido?
- Não. Felizmente ninguém. Nessa altura, afortunadamente, não havia viva alma aqui. Estávamos todos no Kras para uma especial reunião nocturna que foi convocada.
- Uma reunião nocturna especial? Com que fim?
- Foram os editores que nos convocaram, mas quando chegámos estavam apenas representados pelo Dr. Deíchhardt e por Miss Dunn. Pregaram-nos um sermão sobre a necessidade de trabalharmos com mais rapidez. Nada de importante, apenas conversa barata.
-E foi enquanto vocês estavam no Kras que o incêndio se declarou?
- Sim -respondeu EdIund sombriamente. - Um vizinho viu fumo a sair da casa e fez uma chamada de alarme para a estação de Nieuwe Achtergracht, Em poucos minutos chegou cá uma bomba e um carro auxiliar. Na altura em que eu, Paddy e Elwin regressámos já o fogo tinha sido dominado, mas tive que me conservar a pé até tarde para assistir à investigação às origens do incêndio.
Randall deu uma vista de olhos inquisitiva pelo edifício. -A vossa casa não me parece muito afectada.
- Não, o fogo foi confinado ao lugar onde se originou. 0 foco de incêndio deu-se na minha câmara escura e na outra dependência fotográfica, mas foi apagado antes de se poder propagar. Todavia causou prejuízos grandes nas minhas instalações fotográficas.
-Então os únicos locais afectados foram as suas instalações fotográficas?
- Apenas elas. Queimada mais de metade da câmara escura e alguns prejuízos no resto das instalações. Vou-lhe mostrar. Passaram por um pequeno «hall» de entrada, onde se manifestava um intenso cheiro a cozinhados, seguiram por uma sala de tecto alto, aparentemente a sala de estar, com os cortinados verdes e sofás de veludo, onde pairava um aroma distinto de tabaco, e chegaram a um aposento da retaguarda, onde predominava um cheiro a coisas queimadas, a fumo.
Via-se uma sólida porta de carvalho arrombada à machadada, onde avultava uma complicada fechadura de batentes e volantes semelhante à da casa-forte do Krasnaplosky. Uma outra porta interior apresentava-se semicarbonizada.
-Eis as minhas instalações fotográficas, ou tudo o que resta delas - disse EdIund. - Não se pode divisar grande coisa até reparação da instalação eléctrica, mas esta parte das instalações destinava-se à ampliação das fotografias, emulsões, secagem, etc. As paredes são de mosaico, e é sobre aquela mesa de fórmica que abro os rolos de filmes. E aquelas tinas e cuvetes... bem, isto para si já não interessa. Está a ver aquele canto? A parede da direita e o equipamento estão carbonizados. A parede do fundo foi bastante afectada e as cortinas de separação do outro quarto arderam completamente. Se quiser fazer o favor de me acompanhar...
EdIund passou para outro quarto, levando Randall na sua peugada. A um canto via-se uma prensa metálica de metal, com as peças quase fundidas devido às chamas. 0 outro quarto, espécie de arquivo, fora o que sofrera mais danos: víam-se restos contorcidos de câmaras de filmes, reflectores descamados e um ficheiro semiderretído, Era um nota trágica de devastação.
Com um trejeito de impotência perante a calamidade EdIund lançou um olhar pelo quarto.
- Ao que parece o sinistro começou por aqui. Que razia. Além de tudo o mais foi realmente unia má altura para este estúpido fogo. Terei que trabalhar vinte e quatro horas por dia para compensar as perdas.
-Qual foi a origem do sinistro? -perguntou Randail?
- A princípio, o subchefe, de bombeiros insistiu que tinha sido um acto de vandalismo. Mostrei-lhe que era impossível. Estas instalações foram desenhadas e construidas, na parte da residência que sofreu uma completa remodelação, com o fim expresso de arranjar uma área de segurança. Como pode observar seria Impossivel alguém entrar por aquela porta especial, que aliás os bombe,íros tiveram que arrombar à machadada para conseguirem passar com as mangueiras. Os vândalos não poderiam ter penetrado, nem nenhum piromaníaco conseguiria abrir a porta salvo conhecendo o combinação.
- E quantas pessoas conheciam a combinação?
-Eu, claro está. Mais ninguém pode utilizar estes quartos...
- deteve-se, aparentemente a reflectir. - Bom, suponho que haverá outras pessoas na Ressurreição Dois que conheçam a combinação, uma vez que mandaram construir as instalações para eu utilizar.
Penso que o Inspector Helderíng deve ter os números que faziam accionar o dispositivo do disco. Talvez a combinação fosse também conhecida pelo Dr. Deichhardt: e pelos outros editores. Ao fim e ao cabo, acabei por convencer o subchefe dos bombeiros que não podiam ter sido vândalos. Seria impossivel que pudessem penetrar nestes quartos.
- E se os vândalos conseguissem entrar mercê de alguém da Ressurreição Dois?
EdIund olhou atentamente para Randall.
-Também tomei isso em consideração. Mas é uma coisa sem pés nem cabeça. Porque é que alguém do projecto havia de querer destruir o fruto do nosso trabalho?
- Sim, na verdade porque é que alguém da Ressurreição Dois teria interesse em fazer uma coisa dessas?... - repetiu Randail, mais para si do que para ser ouvido por EdIund.
-De modo que os peritos dos bombeiros prosseguiram com a investigação às causas, e há pouco o comandante trouxe-me o relatório. Embora não esteja absolutamente conclusivo, o comandante está convencido que o sinistro se ficou a dever a um curto-circuito. -Edlund tapou o nariz com a ponta dos dedos.- Cheira muito mal aqui. Vamos embora.
Deixaram as carbonizadas instalações fotográficas de EdIund e passaram para a sala de estar. 0 fotógrafo tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu a Randall. Este declinou a oferta e Ediund tirou um cigarro, meteu"o na boca e acendeu-o com um isqueiro.
-Lamento estar a aborrecê-lo com este dramazito, principalmente quando o senhor se deslocou hoje aqui pela primeira vez para me dar o prazer da sua visita. As circunstâncias obrigam-me a ser um anfitrião muito mal amanhado. Bom, precisa alguma coisa de mim, Steve?
- Sim. Uma coisa sem importância de maior. - Apontou para o sobrescrito que tinha na mão. - Pretendo que me deixe dar uma vista de olhos pelo negativo que fez do Papiro Número 9.
Ediund reagiu de maneira verdadeiramente desanimadora.
- Mas... isso constituiu precisamente uma das partes da perda que sofri. Bem viu lá dentro as máquinas e o ficheiro completamente arruinados. Todo o meu jogo de negativos se desfez em cinzas e fumo. Nem um só ficou para amostra. Lamento muito, mas como vê não posso atender o seu pedido, por muito simples que seja. Mas claro que o caso não é grave, tomei já disposições para fazer um novo jogo de negativos aos papiros e pergaminho. Amanhã vou estar muito ocupado na casa-forte do Kras. Depois de amanhã terei já os filmes revelados, para lhe mostrar tudo o que quiser ver. Não se trata propriamente de unia perda irremediável para os nossos serviços. Não se preocupe.
- Não estou Preocupado - respondeu Randall cautelosamente. -0 facto é que tenho um jogo de fotografias relativas aos seus primeiros negativos. Queria apenas comparar esta fotografia que aqui tenho com o negativo do Papiro Número 9... para verificar se na fotografia não terá qualquer falha em relação ao negativo original.
EdIund mostrou-se espantado.
-Mas claro que sim, tudo o que havia no negativo tem que estar na fotografia. Porque raio havia de haver qualquer diferença? Fui eu próprio quem fez a revelação e as ampliações, e costumo tomar sempre muito cuidado para que...
-Oscar, não me interprete mal-atalhou rapidamente Ranrall. - Não estou a pôr em dúvida a técnica e honestidade do seu trabalho. Bom, acontece que ao passar revista a todas as cópias houve urna que não me pareceu da mesma qualidade... bem... isto é tão nítida, tão precisa como as outras.
- Qual delas? A Número 9? Não pode ser. São todas iguaizinhas, da mesma qualidade, com o mesmo papel, o mesmo grão, a mesma intensidade de luz, a mesma exposição, tudo da mesma maneira. Tem a fotografia aí consigo, não é verdade. Deixe-ma ver.
Randall tirou a fotografia ampliada do sobrescrito e passou-a a EdIund.
-Aqui está.
0 sueco examinou brevemente a fotografia.
-Nada vejo de errado. A mesma qualidade das outras. Tudo nesta cópia é claro. Lamento, Steve, mas esta não é diferente em nada das outras cópias que fiz.
-Você usou a técnica dos infravermelhos nesta cópia, não foi assim?
-Com certeza.
-Diga-me, porquê infravermelhos?
-Julgava que sabia a razão. Uma vez que se tenha de fotografar um objecto que esteja, pelo menos em parte, ilegível, terá que se proceder à técnica dos infravermelhos. Os métodos ordinários não conseguem fazer realçar o que não pode ser visto com clareza, mas os infravermelhos arrancam tudo das profundidades. Os papiros reflectem a radiação de infravermelhos que os ilumina e assim tanto o negativo como a cópia tornam-se mais legíveis.
-Foi dessa forma que fez a fotografia que tem aí nas mãos? -havia uma nota de hesitação na voz de Randall.-óscar, examine bem a fotografia. Foi na verdade você que a fez? Será capaz de jurar que é obra sua?
Em vez de olhar para a fotografia que tinha nas mãos, EdIund fitou gravemente Randall.
- Steve, de que é que está a falar? Claro que sim, fui eu que fiz esta fotografia. A quem mais é que permitiriam fazê-la? Sou o único fotógrafo contratado pela Ressurreição Dois, o único com absoluta aprovação e com passe de segurança, o único contratado para realizar os trabalhos de arte para o departamento de publicidade que você comanda, 0 que é que o leva a pôr em dúvida que tivesse sido eu o autor desta fotografia?
-Precisamente porque ela se me afigura diferente das outras. Não possui a mesma qualidade ou... ou estilo.
- Qualidade? Estilo? Nem sequer sei o que pretende com essa conversa. - Com gestos de aborrecimento, EdIund levantou a fotografia para a examinar, voltando-se para aproveitar melhor a luz. A verificação era agora mais prolongada e cuidadosa.
- Oscar, veja bem as linhas quatro e cinco da primeira coluna - recomendou Randall.
- Muito bem. Estão excelentes, Perfeitamente legíveis. -Ora aí é que bate o ponto -retorquiu RandalI, pensando se devia revelar a EdIund o verdadeiro motivo da sua preocupação, se lhe havia de dizer que na primeira vez que o Abade Petropoulos examinara a cópia fotográfica aquelas linhas se apresentavam mais indistintas, tal como as do próprio papiro. Mas que a partir do exame feito pelo eclesiástico grego na casa"forte da cave do KrasnapoIsky, tanto o papiro corno a fotografia - estranhamente fora de ordem no seu arquivo - haviam adquirido uma nova clareza fenomenal. Contudo decidiu não fazer de momento nenhuma revelação, fazendo apenas crer ao fotógrafo que já vira o papiro anteriormente. - óscar, quando vi o papiro pela primeira vez essas linhas eram as mais difíceis de ler, estavam quase indecifráveis. Tornava-se impossível divisaremse os traços e rabiscos em aramaico à vista desarmada. Mas agora, nessa fotografia, pode ver"se tudo com a mesma nitidez. É urna coisa que não faz sentido.
- Para si não faz sentido, mas faz para um fotógrafo experimentado. Quando me fornecem algo como o fragmento de um papiro que possua duas ou três áreas na supexfície que estejam muito delídas, baças ou manchadas, emprego uma técnica especial, a que se pode chamar de bloqueio, isto é, se utilizar uma grande exposição para dar realce a linhas ou zonas delidas também darei uma exposição excessiva ao resto do texto legível. Para evitar isso, concentro luz em certos sectores e bloqueio as restantes zonas. Assim, as partes que necessitam de um terço da exposição de luz, relativamente aos pontos a fazer sobressair, são dispostas de modo a que recebam exposição normal. Com tal técnica consigo obter um negativo uniforme e legível, com a consequente aplicação dessas qualidades na cópia. Vou-lhe mostrar.
Ergueu a fotografia e aproximou-se de Randa11. -Aqui-apontava com o dedo-pode ver perfeitamente o que consegui com a minha técnica de maior exposição, fazendo destacar a quarta e quinta linhas para que se vejam claramente.
Havia uma outra zona deste papiro, segundo me recordo, que estava bastante enegrecido e ilegível até que eu... -a voz morreu-lhe na garganta, e ele fitou de olhos arregalados a parte inferior da coluna em caracteres aramaicos.-Ê estranho -murmurou.
- 0 que é que tem de estranho? - perguntou Randall.
- Esta outra zona aqui ao fundo. Tem demasiada exposição... o processo de bloqueio para gradação da luz é deficiente. A protecção plástica transparente para bloquear a luz tem a função de cortar a intensidade da iluminação das zonas onde não há necessidade de exposição em demasia... não parece um trabalho meu... uma coisa assim tão tosca. Tenho a certeza... ou pelo menos tinha a certeza, de ser mais equilibrado em tal género de trabalho. Verifiquei centenas de vezes as fotografias e sempre me senti satisfeito. Sim, eis aqui uma zona com demasiada exposição e sem necessidade disso. Isto é, a olho nu, para qualquer leigo, a coisa passará despercebida, mas para mim tem uma clareza extraordinária. Não posso compreender.
RandalI, suavemente, tirou-lhe a fotografia das mãos.
- óscar, talvez você não tivesse sido o autor desta reprodução, quem sabe?
- É minha, porque fui eu que fiz todo esse trabalho - respondeu canhestramente Ediund, como quem se procura convencer.
- E no entanto, um trabalho tão pobre não parece meu. É estranho que tal coisa tenha acontecido.
- Sim, ultimamente no projecto têm acontecido coisas muito estranhas.
Randall teria querido acrescentar que era estranho como algw mas linhas da reprodução fotográfica, muito delidas à vista no Monte Athos, se tinham transformado milagrosamente, em Amesterdão, em linhas perfeitamente legíveis. Que era estranho que certo papiro tivesse desaparecido no mesmíssimo dia em que o desejara ver, para reaparecer convenientemente no dia seguinte. Que era estranho como um negativo que ele queria comparar com a cópia fotográfica tivesse sido consumido pelo fogo horas antes. Que era estranho como a perfeita técnica fotográfica de EdIund, tivesse sido tão mal aplicada naquela fotografia, exactissimamente na Número 9 da série dos papiros relativos ao Evangelho Segundo Jacob.
Para Randall levantaram-se todas aquelas perguntas mas sem conseguir obter respostas satisfatórias. Evidentemente que óscar EdIund, sem o crucial negativo, e com a inabalável convicção de ser o único fotógrafo da Ressurreição Dois, jamais lhe poderia fornecer a resposta de que precisava.
Randall viu que a não ser que alguém, em qualquer local, apoiasse as suas dúvidas ou as afastasse de uma vez para sempre, teria de se devotar à Ressurreição Dois com uma fé cega. Mas também sabia que seria difícil, senão impossível, possuir essa fé cega quando os olhos teimavam em abrir-se-lhe. Mas a abrirem-se para quê?
Naquele mesmo instante, absorveu um pensamento, um pensamento que lhe atravessou o cérebro corno um relâmpago, e os seus olhos arregalaram-se para uma possível solução que até então lhe havia passado completamente desapercebida, a mais óbvia de todas as soluções,
-õscar, importa-se que utilize o seu telefone?
-Há um no corredor, mesmo atrás dessa parede da direita. Telefone à vontade. Bom, e agora, se me desculpar e der licença, tenho muitas limpezas a fazer.
Randall agradeceu ao mestre-fotógrafo, esperou que ele saísse da sala e dirígiu-se depois ao telefone situado em cima de uma mesinha no corredor, marcando o número da Ressurreição Dois.
Disse à operadora do P.B.X. que queria falar ao Abade Mitros Petropoulos, Poucos segundos depois estava ligado à secretária do Dr. Deichhardt.
-Daqui fala Steve Randall. 0 Abade Petropoulos ainda aí se encontra?
- Está sim, Mr. Randall. Acaba precisamente de almoçar com os editores e estão agora todos reunidos em conferência no gabinete do Dr. Deichhardt.
- Pode fazer a ligação lá para dentro? Queria falar com o Abade.
-Lamento muito, Mr. RandalI, mas recebi instruções para não fazer ligações telefónicas para o gabinete nem consentir interrupções sejam de que ordem forem.
-Espere, julgo que quanto a mim é um caso diferente. Fui eu quem trouxe o Abade a Amesterdão. Faça a ligação. Trata-se de um assunto importantíssimo.
-Não posso, Mr. Randall. A ordem do Dr. Deichhardt: foi sem excepções.
Exasperado, Randall deu um novo rumo à conversa. -Está bem. Quanto tempo mais estará o Abade aí?
-0 Dr. Deichhardt acompanhará o Abade Petropoulos ao aeroporto dentro de quarenta e cinco minutos.
-Perfeito. Estarei aí dentro de trinta minutos. Pode fazer o favor de tomar conta de um recado e entregá-lo ao Abade logo que ele saía do gabinete?
-Ás suas ordens.
- Díga-lhe... - pensou bem no recado, e depois dítou-o lenta e distintamente: - Diga-lhe que Steve Randall gostaria de lhe falar por breves minutos antes de ele partir para o aeroporto de Schiphol. Diga-lhe que lhe agradecia muito se fosse ao meu gabinete. Diga-lhe que pretendo... agradecer-lhe de novo pessoalmente e despedir-me dele. Tomou conta?
A secretária respondeu que sim. Randall, satisfeito, desligou o telefone. Depois, apressadamente, saiu da moradia para apanhar um táxi.
Vinte minutos mais tarde estava de novo no seu escritório no Krasnapoisky, desejoso de mostrar ao Abade Petropoulos a intrigante fotografia do Papiro Número 9.
Entrou no escritório preparado para esperar a entrada do Abade, quando viu que não se encontrava sozinho.
No meio do aposento estava George L. Wheeler, mas um Wheeler que Randall nunca antes tivera oportunidade de conhecer. A rude cara de lua-cheia do editor não arvorava o seu disfarce de caixeiro viajante cheio de urbanidade. Pelo contrário impava de ira. Ao ver entrar Randall avançou, dominando-o com o seu maciço arcaboiço, plantado na sua frente.
- Onde é que você tem estado? - rugiu.
Um pouco intimidado pela inesperada agressividade do homem que o contratara, Randall hesitou.
- Bem, pretendi obter algumas fotografias publicitárias e...
- Não me embale com essas patranhas. Sei muito bem onde é que tem estado, Foi procurar o EdIund. Saiu de lá agora mesmo.
- Exactamente. As instalações fotográficas de EdIund, foram devoradas por um incêndio e nós...
- Sei tudo a respeito desse estúpido incêndio. 0 que eu quero saber é o que você andava a cheirar por ali. Você não foi lá para obter quaisquer fotografias publicitárias. Foi lá porque continua a andar a cheiricar por toda a parte como um rafeiro a respeito dessa coisa disparatada do Papiro Número 9.
- Ainda alimentava algumas dúvidas e por isso pretendi verificar determinada coisa.
- junto do EdIund. E como ele não o pôde auxiliar, você decidiu -voltar a agarrar-se às saias do Abade Petropoulos.
0 tom de voz de Wheeler era colérico. -Muito bem, estou aqui para lhe dizer que hoje não terá oportunidade de ver o Abade, nem hoje nem nestes tempos mais próximos, Partiu para o aeroporto há dez minutos. E se você alimenta quaisquer ideias de contactar com ele em Helsínquia ou no Monte Athos, perca-as de uma vez por todas. 0 Abade foi sabiamente aconselhado para não ver ninguém, não falar com quem quer que seja, incluindo o nosso próprio pessoal, a respeito de tudo o que possa envolver o Evangelho Segundo Jacob. Devo acrescentar que ele concordou com todo o coração, porque também ele deseja preservar a obra de Deus daqueles que no interior, tanto quanto do exterior, querem solapar o projecto Ressurreição Dois.
-George, um momento, eu não quero solapar seja o que for. Quero somente estar certo de que tudo o que apoiamos é autêntico.
-0 Abade ficou satisfeito com a autenticidade que verificou, e nós estamos também satisfeitos. Posto isto, que raio de coisa pretende você fazer?
-Tento apenas satisfazer-me a mim próprio. Afinal de contas, também faço parte desta operação...
-Então, com um milhão de diabos, proceda justamente como unia pessoa que faz parte da organização! -berrou Wheeler, com o rosto lívido de ira contida. -Proceda como um dos nossos e não corno uma pessoa pertencente à brigada de demolição de de Vroorne. Foi você que trouxe aqui o Abade Petropoulos para verificar o papiro, e ele observou os documentos originais e deu-os como genuínos. Que raio pretende você mais?
Randall não respondeu.
Wheeler avançou mais um passo na direcção de Randall. -Vou-lhe dizer o que nós pretendemos: substituí-lo! Simplesmente substituí-lo, mas sabemos no entanto que essa substituição criaria demoras que não podemos suportar. De modo que concordamos que se você cumprir o seu serviço estritamente, sem andar a meter o nariz nos nossos assuntos, continuaremos a alinhar consigo. Contratamo-lo, e por uma soma choruda, para você lançar a nossa Bíblia ao público em condições ideais, mas não o contratámos para andar a fazer investigaçoes sobre o obra. A nova Bíblia foi já objecto de milhares de investigações pelos homens mais qualificados do mundo, homens que sabem muito bem aquilo que fazem. Não o contratámos também para andar a desempenhar o papel de Advogado do Diabo. Lá fora existem já de Vroomes a mais para esse trabalho sem ser preciso que você lhes dê uma ajuda. Você está aqui com um único fim: vender a nossa Bíblia ao público por meio de uma publicidade excelentemente orientada. Fui pois escolhido para lhe recordar qual é o seu verdadeiro trabalho no nosso projecto, e parece-me melhor que o faça... que nos dê o préstimo do seu trabalho especializado a nada mais.
-É isso mesmo que eu pretendo também-disse Randall sem se alterar.
- Não estou interessado naquilo que você pretende ou não.
0 que me interessa são os resultados. 0 que queremos são resultados positivos, Ouça-me bem. Sabemos perfeitamente quem destruiu as instalações fotográficas de EdIund, Sabemos perfeitamente que foram certos rufiões de de Vroorne...
-:- De Vroome? Como é que ele ou algum dos seus homens podiam entrar nas instalações?
- Não importa como, o que interessa é que o fizeram, Foi de Vroorne, tem que aceitar a nossa palavra a respeito do caso. A partir de agora não vamos correr mais riscos com esse bandalho radicalista. 0 homem está a tornar-se desesperado e é capaz de tudo e mais alguma coisa. Decidimos vibrar-lhe o golpe final. Resolvemos pela última vez modificar a data da nossa declaração ao mundo. Daqui a oito dias, na sexta-feira dia 5 de Julho. Tenho estado reunido com o seu pessoal nesta passada hora. Mudámos já as datas para a declaração no Palácio Real e para a transmissão via Intelsat. Mandámos recolher e estanios a ajustar os telegramas e convites à imprensa. Estamos a dispor as coisas para que sejam publicados artigos ante~declaração pública de modo que o público possa estar alertado e atento a observar um grande acontecimento dentro de uma semana, a partir de amanhã. Ordenámos a Hennig que envie Bíblias mesmo sem encadernação para o seu pessoal logo que estejam prontas com a devida rectificação. Queremos que o departamento de publicidade-o que o abrange a si também-passe a trabalhar dia e noite na preparação do dia em que a obra for anunciada. Queremos ter tudo pronto na altura exacta em que seguirmos para o Palácio Real a fim de falarmos ao mundo da nossa Bíblia. Está a ouvir, Steve? Que nada mais interfira com o seu trabalho a partir deste momento.
-Muito bem, George.
Wheeler deu uma rápida volta e dirigiu-se para a porta do gabinete, mas logo que lá chegou voltou-se para trás.
- Steve, seja o que for que você anda a buscar, acredite que não encontrará, porque o que você procura não existe. Acredite na minha palavra. Portanto, deixe-se de andar a caçar fantasmas e conf ie em nós.
Desapareceu. E Randall continuou a ficar com as suas interrogações mas sem as respectivas respostas. Mas, repentinamente, viu que Wheeler o havia deixado ficar com mais alguma coisa: com um fantasma.
Um mais. Aliás o último que lhe poderia fornecer as respostas.
Pela primeira vez se sentiu em pulgas por se avistar nessa noite com Ãngela Monti.
Randall trabalhara até tarde com o pessoal do seu departamento e só às dez horas da noite pôde finalmente sair do Krasnapolsky para o seu encontro, por tanto tempo adiado, com Ãngela Monti.
Ansiava tanto quanto temia aquele encontro. Desde que soubera em Paris como Ãngela o andava a enganar -desde a sua viagem ao Monte Athos, durante a qual todo o seu ser se revoltara profundamente contra ela-muita água correra sob as pontes, os acontecimentos haviam-se multiplicado e ao mesmo tempo a sua ira fora cedendo, sem contudo ceder um sentimento de desconfiança. Se pudesse escolher continuaria a adiar sine die aquele momento vital em que a verdade iria ter predominância. Mas infelizmente não tinha alternativa, tornava"se imperativo que a defrontasse, Daquela reunião dependia muita coisa.
Quando RandalI, relutantemente, fez soar os nós dos dedos contra a porta do Quarto 105 do Victória Hotel, estava preparado para se encontrar com ela fria e desapaixonadamente, num confronto directo até ao âmago do problema. Todavia, quando a porta se abrira para revelar aquela figura vincadamente feminina, com o seu cabelo bem penteado, negro como as asas de um corvo, os seus sedutores olhos verdes como as ondas do Mediterrâneo, a linha do voluptuoso corpo moldada pelo penteador, quase que se esquecera de todas as suas resoluções. Correspondera com ardor ao abraço e beijo dela, perturbado pelo perfume que se evolava daquela mulher querida, sentindo um bem estar indizível ao contacto com aqueles seios erectos, pontudos que pareciam querer-lhe penetrar no peito como arietes de desejo. Correspondera-lhe com todo o calor, mesmo tentando dominar-se. Finalmente conseguira desenvencilhar-se, com rudeza, do terno amplexo de Ãngela e entrara no confortável aposento.
Seguira-se uma conversa banal - as investigações que ele lhe mandara fazer e os novos prazos para o programa de apresentação ao mundo que o obrigavam a dobrada actividade - e ela arranjara-lhe um uísque duplo, com água e deitara para ela um balão de conhaque. Randall sentirase incapaz de enveredar sem mais preânibulos no Taccuse, e cada momento que ia passando tornava mais difícil de começar o ataque directo contra a honestidade moral dela, com todas as implicações que o caso englobava.
Randall tentara manter o tom da conversa centrado sobre rnatérías profissionais. Nada fácil. Finalmente abordara um tema dedicado a fotografias, à grande variedade de que se necessitava para a campanha de promoção. Disse que aguardara que EdIund pudesse haverse com tais requisitos mas infelizmente o fotógrafo sueco sofrera um acidente quanto ao seu material. Randall contou a Angela o incêndio nas instalações fotográficas de EdIund e o atraso que aquilo representava para o projecto. Finalmente lembrara-lhe que durante o primeiro encontro dos dois em Milão ela prometera mostrar-lhe uma colecção de cópias fotográficas que possuía respeitante às escavações do pai em Ostia Antica.
- Tens essas fotografias contigo? - perguntara-lhe. - Estou especialmente interessado em ver algumas fotos que o teu pai possa ter tirado aos papiros de Jacob na altura em que fez o achado, ou melhor ainda, se for possível, grandes planos e ampliações dos papiros depois de devidamente tratados e colocados nas lâminas de vidro,
Sim, ela fizera-se acompanhar para Amesterdão por uma colecção variada de fotos. Dirigira-se depois a um armário e dele tirara uma pasta com umas dezenas de fotografias que espalhara no centro da carpete verde, mesmo a meio do quarto.
Naquele momento, tendo já decorrido meia hora desde o momento fatal do encontro, estavam os dois sentados no chão, lado a lado, ele sem casaco, examinando as séries de fotografias.
Para RandalI, o registo visual da escavação representava algo de fascinante. Entre outras coisas, aquelas reproduções ofere" ciam-lhe a primeira oportunidade de ver o Professor Monti, um homem baixinho, mas bem entroncado, com uma espécie de rosto querubínico que é normal ver-se em todos os italianos tocadores de realejo. Viam-se alguns trabalhadores italianos, posando ao bom sol romano, junto das trincheiras das escavações. Passou umas quantas fotos que representavam Ãngela e sua irmã Clarettaalta, magra, menos bela do que Ãngela-junto ao pai, no local das escavações, depois do triunfo da grande descoberta. Haviam umas quantas fotografias do Professor Augusto Monti a mostrar os seus achados, mas o aramaico dos papiros perdia-se na distância, carecendo de clareza. Sim, havia ali de tudo um pouco, exceptuando aquilo que Randall procurava com tanto afã,
Passou a última fotografia e olhou para Ãngela.
- Excelente, Ãngela, muitas delas servem perfeitamente os fins da nossa campanha publicitária. Voltaremos a examiná"las no fim da semana e reproduziremos algumas que se apresentem de melhor qualidade e sejam mais representativas.
Os verdes olhos de Ãngela observaram-no.
- Na verdade não me pareces muito entusiasmado.
-Não, nada disso. São na verdade fotografias aproveitáveis. Bom... a verdade é que tinha esperança de que houvesse algumas ampliações e primeiros planos dos papiros.
- Lembro-me perfeitamente que existiam uns grandes planos dos papiros. Meu pai costumava examinar com atenção algumas dessas fotografias no remanso do seu gabinete de trabalho. Mas isso foi antes do achado ser autenticado e concedido, mediante contrato, pelo governo italiano aos editores. Meu pai é habilitado em aramaico, de modo que era capaz de interpretar os papiros tal como podia perfeitamente ler italiano, alemão ou inglês. Posso até dizer que praticamente gravou na memória cada uma das linhas, cada um dos caracteres, tal era o orgulho e o amor pela descoberta ímpar.
-E onde é que se encontram agora essas reproduções em grande plano?
-Não sei. Procureí~as para as trazer comigo quando vim para Amesterdão. Mas não, fui capaz de encontrar uma única. Perguntei a meu pai, mas ele é daquele tipo de sábios distraídos. Não se lembrava do que tinha sido feito de tais reproduções. No fundo julgo que também não se interessava um pepino com elas. Tinha-as gravadas nas circurivoluções cerebrais. Julgo que as tenha dado ao ministério e que este provavelmente, as tenha cedido ao Dr. Deichhardt. -Teve um vislumbre de esperança, a transparecer-lhe no olhar e na voz: - Porque é que não perguntas, ao Dr. Deichhardt?
- Sim, vou ver se lhe pergunto.
- Bom, mas de toda a maneira penso que possuis um jogo de fotografias dos papiros tiradas por EdIund.
- Apenas tenho... bem, trata-se de urna coisa sem impor~ tância. Queria ver algumas outras reproduções.
Ela contemplou-o interrogativainente. Randall evitou encontrar-lhe os olhos, ocupando-se afadigadamente a reunir as fotos espalhadas na carpete e a metê-las na pasta.
Depois de ter completado a tarefa, viu que Angela ainda continuava a estudá-lo atentamente.
- Steve, porque é que me tens evitado? - perguntou-lhe calmamente.
- Tenho-te evitado?
- Sim. Alguma coisa aconteceu. Quando é que voltas a amar-me como dantes?
Randall sentiu que um frio lhe percorria a espinha, uma sensação dolorosa que lhe empedernia todos os músculos do corpo. Com idêntica calma, embora forçada, respondeu:
- Quando puder acreditar em ti de novo, Angela. -Não acreditas em mim agora?
- Não, Ãngela, não posso acreditar em ti - respondeu-lhe francamente.
Finalmente aquilo tinha sucedido. As perigosas palavras haviam sido proferidas. Sentia-se aliviado, como se lhe tivessem tirado de cima arrobas de peso incómodo, mas mais uma vez se sentia possuído pela cólera, uma cólera tanto mais exacerbada quanto era justa.
Ãngela manteve-se silenciosa, sem qualquer acção visível.
0 seu belo rosto, com excepção das pálpebras que batiam a movimentos regulares, continuava imóvel.
-Muito bem, foste tu que quiseste saber, de modo que agora é melhor prosseguir, despejar o saco todo.
Ela aguardou em silêncio.
-Não acredito em ti, pela razão muito simples de não poder acreditar, de me ser impossível continuar a crer em ti. Ãngela, mentiste-me na semana passada. já antes me havias mentido, mas então uma mentira sem importância, talvez uma mentirazita piedosa. Mas desta vez a tua mentira é imensa e de uma importância de que nem sequer te dás conta.
Randall esperou que ela dissesse alguma coisa, que se defendesse, que o interrogasse, mas Angela parecia mais desgostosa do que perturbada.
Randall prosseguiu:
-Mentiste-me a respeito do Monte Athos. Disseste"me que tinhas ido lá com teu pai para verem o Abade Petropoulos. Contaste-me que o Abade tinha examinado e autenticado os papiros. Recordas-te? Pois bem, foram umas mentiras descaradas, Ãngela. Descobri porque eu próprio fui ao Monte Athos. Sabes que estive na semana passada no Monte Athos?
-Sim, Steve, sei perfeitamente.
-Tinha que acabar com aquilo de uma vez por todas.
- É verdade, eu estive no Monte Athos, mas tu é que nunca estiveste. Num espaço de mil anos nunca uma mulher, nunca uma fêmea, estiveram na Península Athonita. As mulheres são proibidas no local. Tu nunca lá estiveste, tal como o teu pai nunca lá pôs também os pés. 0 Abade Petropoulos nunca se avistou com teu pai-sem sequer havia tido o mínimo vislumbre dos papiros até esta manhã. Serás capaz de negar o que estou a dizer?
-Não, Steve, não posso. -A voz dela era coisa, um murmúrio imperceptível. -Na verdade menti-te.
-Nesse caso como esperas que eu possa acreditar em ti, confiar em ti... acreditar em mais alguma coisa que me digas? Ãngela fechou os olhos e passou a mão pela testa, depois fitou angustiadamente os olhos em Randall.
- Steve, eu... eu não sei como me hei-de aproximar de ti. Há tanto de ti que é só intelecto e não alma, coração. Só o teu coração podia compreender que às vezes uma mentira é a coisa mais leal, mais salvadora que se pode dizer à pessoa que se ama. Steve, quando me telefonaste de Paris, o meu coração estava a compreender-te a adivinhar o que se passava contigo, a sentir-te na tua natureza inquisitiva, uma natureza que é a minha maior preocupação e a parte que menos aprecio em ti.
- E então, que parte detestável de mim será essa? - perguntou ele agressivamente.
- 0 teu cinismo. 0 teu cinismo irracional, defensivo, autoprotector. Sim, talvez ele te sirva de escudo e te proteja de seres ferido. Mas sem dúvida que é também um sentimento contrário à vida, uma coisa que te impede de atingires a plenitude da vida porque fica de permeio entre ti e ela, uma coisa que te impede de aceitares ou de ofertares um amor profundo. Um verdadeiro amor. Uma coisa sem fé não pode amar. Ouvi-te a voz quando me telefonaste de Paris e percebi que de novo estavas envolvido em dúvidas a respeito da autenticidade de meu pai. Imaginei"te a perderes a pequena parcela de confiança que tinhas conseguido obter. Estavas de novo a transformar-te no Stcve Randall a quem se torna impossível uma identificação com os pais, com a mulher, com a filha, com toda a gente. Bom, adivinhei que ali estavas tu, frente a cem por cento de provas da autenticidade conferida pelos mais respeitados e experientes eruditos e peritos do mundo sobre motivos bíblicos, tentando da novo lançar o descrédito sobre o milagre que meu pai desenterrou das entranhas da terra em Ostia Antica. Ali estavas tu em Paris... no Monte Athos... sempre à procura de alguma coisa, de alguém, ainda que fosse o Diabo, que pudesse concordar contigo e justificar a razão do teu cinismo. A verdade é que não podia aguentar mais esse teu estado de espírito. Queria parar com as dúvidas de uma vez para sempre. Não por amor de meu pai, podes crer, mas por amor de ti. De modo que disse a primeira coisa que me veio à cabeça. Recordava-me do nome do Abade Petropoulos num mosteiro do Monte Athos, eu tinha escrito à máquina as cartas que meu pai lhe enviou. Mas nada sabia sobre o Monte Athos e as suas regras, de modo que me envolvi numa mentira descarada. Gato escondido com o rabo de fora. Sim, menti"te, estava pronta a mentir, a dizer-te que havíamos estado no Monte Athos, a dizer-te fosse o que fosse para te impedir de arruinares a única coisa que podia dar um sentido à tua existência. Como se tu estivesses neuroticamente obsessionado pela ideia de realizar aquilo que o Reverendo de Vroome não tem conseguido fazer-destruir a Ressurreição Dois; toda uma vida de trabalho e a grande obra da vida de meu pai; uma nova esperança para a humanidade; as nossas relações de amor e destruires-te até a ti próprio. Foi o que eu tentei impedir com a minha inocente mentira, Steve. Obviamente, falhei. Foste ao Monte Athos, prosseguiste impulsivamente e quando o Abade discordou de ti e apoiou a nós e à grande obra, mesmo assim ainda não estás satisfeito. Mesmo que os factos te mostrem onde está a verdade e onde se encontra o erro, mesmo assim tens que prosseguir na tua dúvida. Desta vez desconheço aquilo de que andas à procura, mas vejo perfeitamente que não estás nada interessado nas fotografias que te mostrei, Andas à procura de qualquer outra coisa... seja o que for... algo que te diga que tens razão para a tua descrença, para não confiares. Mesmo agora podia mentir outra vez para te fazer parar essas buscas negativas, mentiria, se fosse preciso, um milhão de vezes para te impedir dessa autodestruição.
Falara ininterruptamente, em torrente, e mostrava-se sem fôlego, fraca, desanimada. Angela procurou as mãos de Randall sem palavras, afagou-as, levou-as ao peito e olhou-lhe para o rosto para tentar compreender o que ele ocultava.
Finalmente, mais calma, voltou a falar.
- Steve, amo-te. Faria fosse o que fosse para fazer com que me amasses... para te dar fé, fé em mim e naquilo que eu creio... no projecto. Com uma tal fé poderias finalmente conhecer o amor... mas não só por mim, mas amor por ti mesmo. Ser-te-á possível?
Randall sustentou-lhe firmemente o olhar. -Sim, é possível.
- Como? Que posso eu fazer? já te disse que estou disposta a fazer aquilo o que for que me peças.
- Tudo? - perguntou ele suavemente. - Pois muito bem, quero que amanhã me leves para Roma.
-Para Roma?
- Quero conhecer o teu pai.
- Meu pai... - repetiu ela sumidamente. - É importante para ti?
-Quero conhecer o homem que descobriu a Palavra. Quero mostrar-lhe uma fotografia, fazer-lhe uma pergunta. Ele é a última ligação. 0 fim da linha. Depois de me encontrar com ele serei obrigado a parar. É o que pretendes, não é verdade? Queres que eu pare, hão é? Queres que eu tenha fé?... Pois bem, Ãngela, depende de ti, está nas tuas mãos. Levas-me até junto de teu pai?
-Isso... isso resolverá quaisquer dúvidas que alimentas a meu respeito?
- Sim.
-Muito bem, Steve. É... é um erro, mas também é uma coisa que tem de ser feita. Iremos amanhã para Roma de avião. Vais conhecer o Professor Augusto Monti. Encontrar-te-ás com ele frente a frente. Talvez isso solucione tudo.
Naquela sexta-feira, quase ao fim da manhã, quando o avião a jacto da Alitália, procedente de Amesterdão, parara finalmente numa das pistas do aeroporto Leonardo da Vinci, situado a certa distância da Cidade Eterna, e enquanto caminhavam pela rampa de cimento que levava à alfândega dominada pelos carabinierí, indicada por uma placa com uma seta onde se lia Controllo Passaporti, Randall sentia-se avassalado por um sentimento de grande satisfação. Ãngela rendera-se finalmente aos seus desejos.
Tinham seguido o carregador, impecável no seu fato de zuarte azul, que transportava as bagagens (Steve não renunciara contudo em levar a sua preciosa pasta) pelo grande átrio envidraçado que levava ao exterior, «hall» gigantesco atravancado por uma multidão ruidosa de passageiros e visitantes. Entraram num dos táxis que esperavam o afluxo de passageiros, passaram junto à gigantesca estátua de Leonardo da Vinci, deixando para trás as placas que indicavam ROMA e que arvoravam o brasão da grande metró" pole italiana, os grandes cartazes publicitários da Pepsi-Cola, Linhas Aéreas Etíopes, Visitem Israel, Telefunken, Olívetti. Passaram por verdes pinheirais e por campos não menos verdes, hortas onde avultavam os vegetais que fazem o orgulho dos romanos. Passaram pelo mercado de comestíveis conhecido como Cassa del Meroato, pelos apartamentos moderníssimos do subúrbio de San Paolo, pelo Cinodromo, pista para corridas de galgos e pelas ruínas do Forum e do Coliseu. Durante aquela meia hora de corrida do táxi até ao Hotel Excelsior, Randall sentíra-se invadido por um senso crescente de excitação.
Aquele sítio, simultâncamente antiquíssimo e moderno, era o local onde tudo começara. Em Roma, muitos séculos depois, o povo lembrar-se-ia ainda que fora ali que a Ressurreição Dois começara e onde se iniciara o renascimento da fé. Sim fora ali que a esperança, mais uma vez, se sobrepusera a um mundo materialista e sórdido. Tudo isso seria possível - Randall orara para que fosse possível-se a última dúvida negra fosse finalmente afastada pela única pessoa pertencente ao projecto que até essa altura estivera escondida de tudo e de todos.
Tendo deixado Ãngela, segurando a sua pasta no parque privativo de automóveis no Hotel Excelsior, Randall apressara-se a entrar no átrio do complexo a fim de se registar para a estada de uma noite. Uma vez colocada a sua bagagem na «suite», quarto n.406, que lhe designaram, descera as escadas para se juntar a Ãngela e acompanhá-la à villa da família Monti, onde o Professor Augusto Monti, o recluso, os esperava.
Saindo do Hotel, atravessando o parque privativo ao encontro de Ãngela, que se encontrava agora a esperá-lo na Via Vittorio Veneto, Randall sentiwse como se caminhasse dentro de um alto-forno. Era meio-dia e Roma era uma autêntica fornalha batida pela intensidade do sol de Verão.
Ãngela alugara um carro com motorista. Este era um italiano sem idade, compacto, que se apresentara a si mesmo como Giuseppe. 0 automóvel era um Opel de quatro portas, estilo «sedan», que felizmente possuía instalação de ar condicionado, imune ao calor exterior por ter as janelas todas cuidadosamente fechadas.
Sentados no lugar traseiro, Angela olhou atentamente para RandalI, sem o mínimo sorriso no lindo rosto, perguntando-lhe:
- Estás pronto? Agora vamos ao encontro de meu pai.
-Mais uma vez, Àngela, muito obrigado.
Ela falou rapidamente em italiano ao condutor, acabando de lhe dar a direcção em inglês.
-Para a Villa Bellavista, que fica logo a seguir da Via Belvedere Montello.
0 carro integrara-se a seguir no trânsito da Via Veneto, seguindo o seu rumo ao encontro do Professor Monti.
Randall respirou fundo e pensou: «Finalmente».
A corrida levou quarenta minutos, talvez quarenta e cinco. Randali foi tendo um vislumbre das praças e ruas que iam atravessando: Piazza Barberini, Via dei Tritone, Piazza Vavour, Viale Vaticano, que levava à cidade do Vaticano. Logo a seguir a Via Aurélia, deixando Roma. Depois a Via Boccea, o campo vendo-se apenas algumas casas espalhadas por aqui e por ali ou pequenos aglomerados que formavam lugarejos campestres.
Uma viragem apertada para a direita. A Via Belvedere Montello. 0 Opel afrouxava, até acabar por parar.
-Pronto, cá estamos, Villa Bellavista -anunciou Ãngela. Randall olhou pela janela do automóvel. Por trás de um gradearnento de ferro, pintado de verde, montado sobre um pequeno muro pintado a ocre, cercada por verdes maciços ajardinados, parcialmente oculta por renques de ciprestes e pinheiros, via-se uma mansão de dois andares.
Ãngela falou ao condutor e este seguiu ao longo do gradeamento até chegar a um grande portão, que foi prestamente escancarado por um porteiro já idoso. 0 porteiro levou a mão ao boné num cumprimento, que Ãngela retribuiu, enquanto Giuseppe seguia pela álea onde os pneus chiaram no saibro. Segundos depois pararam em frente da porta principal da residência, a que dava acesso uma escadaria, seguida por uma ampla alpendrada.
Giuseppe saíra rapidamente do carro e apressara-se a abrir-lhes a porta das traseiras. RandalI, agarrando na sua pasta, levando consigo a grande mistura de emoções diversas- antecipação, apreensão, subiu os degraus da escadaria com Angela. Na grande porta, ela nem sequer se preocupou em tirar quaisquer chaves da mala, o batente estava aberto, foi só empurrar. Randall seguiu-a.
Encontraram-se num amplo átrio com o chão de mosaicos em artísticos losangos. A direita via-se uma escada. A esquerda uma sala de espera, um aposento enorme de tecto em abóbada. 0 mobiliário incluía dois pianos de cauda, vários sofás e muitos candeeiros de pé alto.
Randall pensou que se tratava de uma residência demasiado pomposa para um professor aposentado,
Ãngela conduziu-o até junto do sofá mais próximo da porta, mas Randall não se sentou, ficou de pé, rígido a olhar para duas coisas que se confundiam.
Em frente via-se uma janela, rasgão de luz estranho no ambiente, urna vez que estava armada de sólidas grades de ferro. Ao mesmo tempo duas pessoas penetraram na sala: eram duas mulheres, ainda jovens, metidas em uniformes azul-marinho, com toucas de enfermeira e aventais brancos por cima dos uniformes.
Espantado Randall voltouse para Angela, olhando-a interrogativamente. Ela acenou-lhe com a cabeça.
- Sim, é aqui que meu pai vive. Esta casa é um asilo para pessoas com desarranjos mentais.
Quinze minutos depois, sozinho e a medir a sala em largas passadas, Steve Randall ainda não se recompusera completamente da revelação de Ãngela.
Até àquele dia parecera-lhe sempre perfeitamente lógico pensar que o Professor Augusto Monti se aposentara e tivera de ir viver em semí-reclusão nos arredores de Roma por motivos políticos. Até mesmo na altura em que ali chegara, a Villa Bellavista se lhe afigurara uma residência privada, o perfeito e luxuoso retiro para um arqueólogo eminente que tinha feito uma descoberta fabulosa. De facto a Villa havia sido outrora a mansão dos arredores de Roma de urna rica família, vendida alguns anos antes a um grupo de psiquiatras italianos e convertida numa casa di cura, um sanatório para pessoas mentalmente afectadas. Os médicos haviam mantido a casa dentro da sua traça e mobiliário tanto quanto possível, por pensarem que uma tal atmosfera de intimidade caseira só seria benéfica para as pessoas aos seus cuidados.
Todavia, apesar de todos os disfarces, continuava a ser, em linguagem chá, um manicómio, o sítio onde o Professor Monti se encontrava há mais de um ano - talvez como o seu mais destacado paciente, muito embora sumido na sombra de uma das mais terríveis doenças.
Tudo aquilo fora revelado a Randall por Ãngela nos primeiros momentos carregados de emoção que se haviam seguido à revelação inicial.
Ãngela havia-lhe dito:
-Agora poderás compreender todas as minhas evasivas e mentiras. Ainda não há um ano meu pai estava perfeitamente bem de saúde e era uma pessoa normalíssima principalmente com uma mente completamente lúcida. De um dia para o outro sofreu um tremendo colapso mental. Tornou"se um introvertido, desorientado, desinteressando -se desde então de todas as coisas. Não podia fazer tal revelação a ninguém, nem aos editores, e a ti também não. Se tal notícia de soubesse teria sido distorcida pelos inimigos de meu pai ou pelos inimigos do nosso projecto e eu não podia deixar que tal acontecesse. Foi por isso que me mantive sempre como uma barreira entre meu pai e aqueles que queriam contactar com ele. Mas na noite passada vi finalmente que não te podia deter sobre aquilo que procuravas. Estive tentada a contar-te tudo imediatamente, evitando esta viagem, mas receei que pensasses que estava de novo a mentir. De modo que fiz como desejavas, trouxe-te a Roma, à Villa Bellavista para veres com os teus próprios olhos. Steve, confias agora em mim?
-Para sempre, minha querida. -Tomara-a nos braços carinhosamente, comovido e envergonhado. -Angela, lamento muito, podes crer que ninguém lamenta mais do que eu. Espero que me possas desculpar.
Ela fora prestes em perdoá-lo, porque conseguira compreender as suspeitas que ele alimentara, mas ainda acrescentara:
- Além disso, trouxe-te aqui para que te encontrasses com meu pai obedecendo ainda a uma outra razão. Habitualmente ele costuma encontrar-se naquilo que parece ser um estado de abstracção total mas por vezes, muito raramente, mostra uns breves intervalos de lucidez. Quase sempre, quando eu e minha irmã o visitamos, meu pai se encontra fora de qualquer realidade, mas por vezes surge uma centelha de entendimento, um rápido relâmpago do seu antigo ser normal. Tenho esperança, para teu descanso, que quando lhe mostrares a fotografia e lhe fales talvez consigas tocar-lhe nalguma corda sensível que lhe recorde o passado. Dessa forma isso poderia remover a tua última incerteza a respeito do Evangelho Segundo Jacob, e fazer algum bem ao meu pobre pai.
-Muito obrigado, Ãngela. Mas na verdade não esperas nenhum reconhecimento por parte de teu pai, pois não?
- Infelizmente será o mais provável. Contudo, nunca se sabe. Existem tantos mistérios acerca da mente humana. Bom, agora vou subir sozinha para o ver a sós. Espera aqui, não demorarei muito. Depois, vou pedir a alguém que te leve até junto dele. E Ãngela retirou-se.
Randall continuava a medir o aposento em largas passadas, de um lado para o outro tentando imaginar porque é que um professor como Augusto Monti-com um inteligência tão viva toda a sua vida-pudera, da noite para o dia, mergulhar na escuridão da loucura. Para si constituía um grande embaraço, nunca antes tivera que lidar, fosse da forma que fosse, com uma pessoa mentalmente doente. Não fazia a mínima ideia do que devia esperar nem de como se comportar. Todavia, invadido por uma ligeira esperança de que o Professor pudesse-através de qualquer palavra, qualquer sinal-despertar para um reconhecimento do Papiro Número 9, Randall sabia que tinha que prosseguir com aquele encontro.
Repentinamente viu que Ãngela tinha entrado na sala, mas não estava só, era acompanhada por um enfermeira, alta, ossuda, mas, ainda jovem.
Enquanto a enfermeira permanecia à porta, Angela encaminhou-se para ele, com o rosto invadido pela tristeza quase chorosa. -Como está o teu pai?-quis saber Randall.
- Completamente calmo, sereno. - Afogando um soluço, acrescentou: - Mas não me reconheceu.
Fazia um tremendo esforço para não chorar, mas as lágrimas acabaram por rebentar dos seus olhos. Randall passou-lhe um braço pelos ombros, tentando confortá-la. Ãngela, perturbada, procurou um lencinho na malinha de mão e secou os olhos, para depois fitar RandalI, forçando um sorriso:
- Está... está sempre assim. Pronto, não te preocupes querido, isto passa. Steve, podes ir agora vê-lo. Não tenhas medo, ele é inofensivo. Calmo. Tentei falar-lhe de ti, mas não sei se ele compreendeu. Mas deves tentar. Vai com a enfermeira, a Signora Branchi, que te ensinará o caminho. Vou estar ocupada enquanto espero por ti. Tenho que fazer uma chamada para casa para dizer à Lucrezia... é a nossa governanta... que a minha irmã chega hoje de Nápoles, com os filhos para me ver.
RandalI, depois de Ãngela ter feito as apresentações seguiu a enfermeira, caminhando os dois por um corredor irrepreensivelmente asséptico. A meio do caminho a Signora Branchi tirou de um dos bolsos da bata um volumoso molhos de chaves.
-Este é o quarto do Professor Monti-anunciou detendo-se junto de uma porta. Depois reparando que esta estava escancarada, mostrou-se repentinamente preocupada.-A porta devia estar fechada.-Meteu a cabeça dentro do quarto c voltou-se depois para Randall com evidente alívio. -Está lá uma das criadas, que veio recolher a louça do almoço.
Segundos depois, a servente, com uma bata de cor diferente da da Signora Branchi, saiu do quarto transportando um tabuleiro com loiça. A enfermeira fez-lhe uma pergunta em italiano, a que a criada respondeu respeitosamente, seguindo depois, muito aprumada, pelo corredor.
A Signora Branchi olhou para Randall.
- Perguntei-lhe como está o Professor. Respondeu-me que se encontra como é costume, sentado em frente da janela, a olhar. Agora o senhor já pode entrar. Vou apresentá-lo e depois deixá-los-ei sozinhos. De quanto tempo precisa para falar com ele?
-Francamente, não sei -respondeu Randall nervosamente. -0 Dr. Venturi prefere que as visitas não excedam dez a quinze minutos.
-Muito bem, então conceda-me quinze minutos.
A Signora Branchi abriu a porta e introduziu Randall. Para surpresa de Randall o aposento não tinha em nada o aspecto de um quarto hospitalar. Havia esperado um quarto semelhante àquele que seu pai ocupara no hospital de Oak City. Em vez disso estava a observar um aposento que era um combinado de quarto de cama, biblioteca e sala de estar de um apartamento privado.
A imediata impressão de Randall foi a de uma clausura, ensolarada, confortável, mesmo acolhedora, equipada com ar condicionado. Num dos lados do quarto estava um leito, tendo ao lado uma mesinha de cabeceira provida do respectivo candeeiro.. Uma portinha parcialmente aberta revelava um amplo quarto de banho de chão em azulejos azuis. No canto oposto do quarto, por baixo de um moderno quadro a óleo pendurado na parede, via-se uma decorativa secretária, com a sua cadeira de couro. Em cima da secretária estavam várias molduras com fotografias, uma delas mostrando uma senhora de idade com as orelhas adornadas por compridos brincos (provavelmente a falecida esposa do professor), mais dois retratos das filhas, Claretta e Ãngela e um dos netos. No centro do aposento encontrava-se um cadeirão de braços, estofado, uma mesinha onde estava um vaso com uma planta decorativa, e duas outras cadeiras simples. Pela ampla janela podia ter-se um vislumbre dos jardins. Somente as estreitas barras de ferro do lado exterior perturbavam a serenidade da paisagem, ao mesmo tempo que as paredes assepticamente brancas denunciavam o toque de clínica psiquiátrica.
Junto da janela baloiçando-se mecanicamente, quase perdido nas profundezas da ampla cadeira de balanço, via-se um homem baixito, de idade, todavia com um rosto ainda fresco, onde avultavam tufos de cabelos brancos das espessas sobrancelhas, um homem de olhos quase líquidos fixados num ponto distante do horizonte: com ligeiríssimas modificações, o mesmo homem que Randall tivera ocasião de observar na noite anterior quando Ãngela lhe mostrara as fotografias de Ostia Antica.
A Signora Branchi tinha-se entretanto dirigido à cadeira de baloiço, tocando levemente na manga da camisa de desporto usada pelo ocupante.
- Professor Monti - dise ela baixinho e carinhosamente como se estivesse a falar com uma pessoa adormecida que pretendesse acordar -, tem aqui um visitante que veio da América.
A enfermeira fez um sinal a Randail, que rodeou a cadeira de baloiço e se colocou em frente do professor.
- Professor Monti, este é o senhor Randall. Está interessado no seu trabalho.
0 Professor Monti observou o mover de lábios da enfermeira com certo interesse, mas sem se dar conta da presença de Randali, tanto pela sua expressão parada como pelo silêncio que manteve. A Signora Branchi afastou-se, dizendo:
- Mr. RandalI, agora vou deixá-los a sós. Se precisar de mim há uma campainha ao lado da cama. Se não me mandar chamar voltarei dentro de quinze minutos.
Randall aguardou que ela saísse, ouviu a porta fechar-se e a lingueta correr na fechadura, e finalmente sentou"se numa cadeira sem braços em frente da pequena figura de homem sumida na cadeira de balanço.
Entretanto, o Professor Monti dera-se já conta da presença do visitante e estava agora a olhá-lo silenciosamente, mas sem curiosidade.
Randall voltou a apresentar-se.
- Chamo-me Steve Randall e sou de Nova Iorque. Sou amigo de sua filha Ãngela. Creio que ela já lhe falou de mim.
- Ãngela -repetiu o Professor Monti, sem todavia aparentar qualquer espécie de reconhecimento na realidade daquele nome. Limitara-se simplesmente a repetir um nome como uma criança a aprender um i ogo novo.
RandalI, algo impotentemente, prosseguiu:
-Estou certo que a sua filha lhe explicou a minha ligação com a Ressurreição Dois e o trabalho que estou a realizar para promover o seu achado.
Sentia-se como se estivesse a dirigir-se à parede de límpida alvura que se encontrava por trás do professor no outro extremo do quarto. Teve um impulso em direcção à cama para tocar para a Signora Branchi e sair a correr daquele local. Não obstante, compulsivamente, manteve-se a falar, relatando a maneira como o editor George L. Wheeler o contratara e levara para Amesterdão. Falou da excitação que ele o outro pessoal do projecto sentiam ao aproximar do dia em que a descoberta seria revelada ao mundo através da palavra impressa do Novo Testamento Internacional, a enorme felicidade que os documentos encontrados pelo professor em Ostia Antica proporcionaria a toda a gente pelo Globo.
A medida em que Randall falava o Professor Monti tornava-se mais atento. Embora absorto, incapaz de falar, parecia estar a responder de certa maneira ao discurso de Randall. Parecia tão alerta como o podia estar qualquer ancião em rápido processo de senilidade a um monólogo de um estranho, numa língua de que não percebesse metade das palavras.
Randall animou-se. Aquele podia muito bem ser o momento lúcido há tanto esperado, despertado devido a ser levado a um campo familiar. Talvez fosse ainda um dia de sorte, um dia feliz.
- Professor, vou dizer-lhe exactamente porque me encon" tro aqui.
- Sim?...
- A sua descoberta foi autenticada. 0 Novo Testamento revisto e corrigido foi traduzido em quatro línguas principais. A Bíblia está quase pronta para ser entregue ao público, com excepção... - hesitou, para logo a seguir continuar com decisão.
-Só existe ainda um problema e eu tenho esperança que o professor me ajude a resolvê"lo.
- Sim.
Randall observou a cara do professor, onde transparecia uma genuína curiosidade, ou pelo menos parecia. Randall sentiu"se definitivamente encorajado.
Para resumir, Randall agarrou na pasta, accionou o botão do minigravador e tirou a fotografia crucial.
-Entre nós, várias pessoas encontraram um erro desorientador na tradução. Agora, vou dizer-lhe aquilo que me perturba. -Randall avaliou a fotografia. -Tenho aqui uma fotografia tirada ao Papiro Número 9, um dos papiros que o senhor encontrou em Ostia Antica. 0 que me perturba é que esta fotografia é de certa maneira diferente da primeira que vi do Papiro Número 9. A minha preocupação é de que o Papiro tenha sido alterado por alguém, ou tenha sido substituído por outro qualquer papiro.
0 Professor Monti debruçou-se, com aspecto compreensivo, na cadeira.
- Sim?...
Satisfeito, Randall continuou:
-Agora deixou de haver maneira de saber se esta fotografia representa o papiro original que o senhor descobriu ou se repre" senta um papiro alterado. 0 negativo original foi consumido pelo fogo. No entanto, Professor Monti, Ãngela disse-me que o senhor viveu tão intimamente com cada um dos preciosos fragmentos que tem impressos na mente os mínimos pormenores todos os pontinhos, traços e rabiscos. Ãngela pensa que o senhor poderá saber imediatamente se esta fotografia será na verdade uma reprodução exacta do papiro que descobriu em Ostia Antica... ou se representa apenas uma folha alterada ou substituta. É um caso da mais elevada importância, Professor Monti, que saibamos a verdade. Pode dizer-me se esta fotografia representa o papiro que descobriu em Ostia Antica?
Estendeu a fotografia ao professor, que lhe pegou cuidadosamente, mas com mãos trementes. Durante vários segundos o professor ignorou a fotografia que tinha nas mãos, olhando fixamente para RandalI, enquanto se balançava sem paragem.
Finalmente, parecendo lembrar-se daquilo que tinha nas mãos, os seus olhos moveram-se para a fotografia. Lentamente, levantou a reprodução, ajustou-a em determinado ângulo, de modo que os raios do sol escoando-se pela janela gradeada, pudessem banhá-la por completo. Na cara redonda esboçou-se a sombra de um sorriso gradual, e Randall fitou-o, sentindo um baque de esperança renovada.
Decorreram segundos do mais completo mutismo. 0 Professor Monti deixou descair a fotografia, até a pousar nos joelhos, sem deixar de olhá-la. Os seus lábios começaram a mexer-se, e Randall esticou-se para não perder nem um som. A voz saiu pouco audível, aos arranques, balbuciante:
- É verdade, verdade, fui eu que escrevi isso. - Levantou a cabeça e contemplou Randall. -Eu sou Jacob o Justo. Fui testemunha desses acontecimentos. - Parou. Depois os lábios volta" ram a mexer-se e a voz saiu-lhe mais alta e clara. -Eu Jacob de Jerusalém, irmão de Nosso Senhor Jesus Cristo, herdeiro do Senhor, o mais velho dos irmãos sobreviventes do Senhor e filho de José de Nazaré, em breve serei levado perante o Sinédrio e perante o Sumo Sacerdote Ananias, eu acusado de comportamento sedicioso devido à minha chefia dos seguidores de Jesus na nossa comunidade.
Randall dcixou-se cair para trás, pesadamente, na cadeira.
- Meu Deus - gemeu para si mesmo - o velhote julga-se Jacob de Jerusalém, irmão de Jesus Cristo.
0 Professor Monti erguera os olhos para o tecto, prosseguindo com uma voz rouca, que se ia tomando mais fervorosa à medida que falava:
- Os quatro outros filhos de José o carpinteiro, irmãos sobreviventes do Senhor e meus, são Judá, Simão, Josias e Judas, e todos estão para lá das fronteiras da Judeia e Idumeia, e resto eu para falar do filho primogénito e mais amado.
0 Professor Monti estava a recitar, no seu inglês com sotaque, uma das primeiras partes do papiro em aramaico que havia sido incluído no Evangelho Segundo Jacob, do Novo Testamento Internacional. Mas existia algo de inesperado, quase fantástico na recitação, e Randall detectou aquilo que era estranho, o elemento novo no texto. 0 Professor Monti, ao discriminar os nomes dos irmãos de Jesus e Jacob, estava a preencher uma parte perdida do terceiro papiro, uma parte que se desintegrara ou dissolvera, acabando por desaparecer depois de quase dois mil anos.
Era inexplicável, exceptuando uma possibilidade: que o Professor tivesse tão calhado no âmbito bíblico que se tivesse lembrado dos nomes dos irmãos do Senhor por intermédio de outras fontes, do Evangelho Segundo S. Mateus, dos Actos dos Apóstolos, de primitivos historiadores da Igreja como Eusébio, englobando-os no seu recital.
-Eu, Jacob o justo, irmão de Nosso Senhor...
0 Professor Menti continuava sem paragem com a sua demente declamação.
Esmagado de pena por aquele velhote para o qual não existiam esperanças, condoído da pobre Ãngela, Randall ficou ali grudado à cadeira ouvindo cheio de tristeza.
As palavras do Professor Monti foram-se tornando indistintas. Por fim calou-se, e os seus olhos fixaram-se de novo sem expressão na janela, no jardim, na imensidão ignorada...
Suavemente, quase com carinho, Randall tirou a fotografia do colo do velhote e voltou a metê-la na pasta. Desligou o gravador, e viu as horas no relógio de pulso. A Signora Branchi estaria de volta dentro de um ou dois minutos.
Levantou-se, agarrando na pasta.
-Obrigado, Professor Monti, pelo tempo que me concedeu e pela sua prestimosa colaboração.
Para completa surpresa de RandalI, o professor levantou-se urbanamente da cadeira de baloiço. Ainda aparentava menos altura. Passou em frente de Randall e dírigiu-se à secretária, onde se sentou, parecendo momentaneamente esquecido daquilo que se propusera fazer, para logo a seguir abrir urna gaveta de onde tirou uma folha de papel branco e um toco de lápis.
Fez vários traços no papel, examinou o trabalho feito, avaliando-o, e pareceu ter ficado contente consigo próprio. Depois agarrou na folha de papel e estendeu-a a Randall.
-É para si-disse.
Randall aceitou o papel, pensando sobre o que o Professor poderia ter desenhado naquela folha.
- É um presente - murmurou o Professor Monti. - Uma coisa que o salvará. Um presente de Jacob.
Randall olhou para a folha de papel, onde se via um desenho rudimentar.
Tanto quanto Randall podia ver, tratava-se de um esboço infantil, primitivo e enigmático de um peixe atravessado por um dardo.
Era aquele o presente de Jacob, um talismã que salvaria RandalI, como o professor tinha prometido, Randall tentou imaginal qual seria o significado na mente conturbada do Professor Monti. Suspirou. Nunca saberia e de resto era coisa que parecia já ter deixado de interessar.
Randali ouviu a porta do quarto abrir-se, depois da lingueta correr.
Meteu rapidamente a folha de papel dobrada, no bolso do casaco, agradecendo de novo, gentilmente, ao Professor a colaboração e o dispêndio de tempo, depois deixou o pai de Ãngela sentado à secretária e foi ao encontro da enfermeira Branchi, que o esperava no limiar.
Ao chegar ao corredor, ficou a olhar enquanto a enfermeira fechava cuidadosamente a porta à chave. A seguir, a Signora Branchi voltou-se para ele e disse:
-Agora vou levá-lo até junto da Signorina Monti.
Mas Randall ainda não estava preparado para se ir embora. Pela cabeça passara-lhe mais uma ideia.
- Signora Branchi, tenho estado a pensar se haverá na clínica qualquer médico... qualquer psiquiatra que tenha vindo a assistir à evolução da doença do Professor Monti. Isto é, um médico que se tenha devotado ao caso do Professor. Haverá algum em exclusivo?
-Evidentemente que sim. Na nossa clínica temos sete médicos privativos e o director clínico é o Dr. Venturi, precisamente quem tem observado o Professor Monti desde que ele foi admitido em Bellavista. 0 gabinete dele fica próximo.
-Seria possível avistar-me com ele por alguns minutos? -Aguarde um bocadinho. Vou ver se ele está livre.
0 Dr. Venturi podia recebe-lo.
0 director clínico era um homem semicalvo, do tipo absolutamente italiano, com um rosto simpático, olhos escuros, límpidos, nariz arqueado e umas mãos que nunca estavam quietas. Não tinha aparência de um médico, mas Randall pensou que o facto se devia a envergar o seu fato civil, em vez de usar uma bata branca.
Quando Randall o interrogou a respeito da bata branca, o Dr. Venturi explicou:
- A habitual bata clínica marca uma distância entre médico e doente, e quanto a mim essa separação não é desejável. Pretendemos que os nossos conturbados clientes se sintam em pé de igualdade com os médicos que os tratam. Torna-se importantíssimo para nós que todos os doentes inclusive o Professor Monti, não se sintam diferentes relativamente aos seus médicos. Queremos que os nossos doentes confiem em nós, que estejam ligados a nós como amigos.
0 gabinete do Dr. Venturi oferecia um aspecto tão pouco médico quanto a sua pessoa. Sentado numa cadeira de retorcidos, figurando flores, do outro lado da secretária estilo Império, Randall encontrou-se no meio de um aposento mobilado com sofás modernos, luxuriantes plantas e quadros abstractos.
Num último e desesperado esforço para conseguir obter qualquer pista que o ajudasse a resolver o mistério do Papiro Número 9, relatara ao Dr. Venturi o encontro, sem êxito, com o Professor e a mania deste se julgar Jacob o justo, irmão de Jesus Cristo; acabando por perguntar:
-Antes da minha visita o Professor já alguma vez se tinha comportado assim?
0 Dr. Venturi, mexendo nos variados objectos que se encontravam em cima da secretária para ter as mãos ocupadas, respondeu:
-Frequentemente, e posso dizer-lhe que é comportamento muito intrigante para nós. Aliás perfeitamente inconsistente com os sintomas gerais dele. Normalmente uma pessoa perturbada que se julga um Messias - ou o irmão de Jesus, como é o caso - é habitualmente um paranóico com um complexo de superioridade. Por outro lado, o Professor Monti tem perda de memória e sintomas catatónicos relacionados com a histeria e baseados em sentimentos de culpa. 0 facto dele sofrer alucinações seria clinicamente compreensível, mas normalmente um doente no seu estado não se imbuiria na identidade de uma pessoa exaltada como Jesus ou Jacob, seria mais ajustável que tivesse um sentimento de culpa forjado em qualquer mal feito precisamente a qualquer dessas duas personagens religiosas, Jesus e Jacob, dada a sua habitual depressão e pacifismo. 0 comportamento dele hoje para consigo, actuando como o irmão de Jesus, continua a ser incompreensível para mim. Mas, evidentemente, nós sabemos muito pouco do passado interior do Professor Monti, da sua psique, e é pouco provável que tenhamos oportunidade de vir a saber mais.
Randall remexeu"se na sua cadeira.
- Pretende dizer-me que não sabe nada a respeito do ambiente profissional do Professor Monti e sobre as suas escavações arqueológicas?
- Ah, Mr. RandaU, sabe então tudo a respeito da descoberta de Monti em Ostia Antica? Não podia falar no caso a não ser... -Faço parte do projecto, Dr. Venturi.
-Não sabia. jurei à filha nunca falar do caso a estranhos e sempre fui fiel à palavra dada.
-0 que é que sabe sobre o trabalho do Professor?-perguntou Randall.
-De facto, muito pouco. Quando me chamaram para me ocupar do caso, claro está que o nome do Professor Monti me era já familiar. É um nome aliás muito conhecido em Itália. Pelas filhas soube que havia realizado escavações perto de Ostia Antica que têm uma magna importância nos sectores da história bíblica e da teologia. Disseram-me que o achado constitui a pedra angular de uma nova Bíblia.
- Mas o senhor desconhece a substância do achado do Professor, não é verdade ?
- Sim, desconheço. Está a tentar dizer-me que se tivesse conhecimento poderia compreender melhor as suas alucinações em julgar-se Jacob, irmão de Cristo?
- Doutor, talvez ajudasse a iluminar o problema com uma nova luz. Sem dúvida que o achado de Ostia Antica serviu de base única para uma nova Bíblia completamente diferente.
- Já suspeitava isso. Recentemente, no nosso matutino romano R Messaggero, li um artigo dividido em três partes, da autoria de um jornalista inglês... não me lembro do nome...
- Cedric Plummer?
- Exactamente, Plummer. Os artigos eram vagos, compridos e bastante carecidos de factos, e diziam respeito a preparativos secretos, em Amesterdão, para a publicação de uma nova Bíblia, uma versão baseada em novos achados e apoiada pelos conservadores da Igreja de modo a poderem manter o status quo. Eram uma coisa deveras intrigante, mas estavam tão carregados de diz-se e de especulações que achei difícil levá-los a sério.
-Mas pode levar o caso a sério-garantiu Randail.
- Ah, então essa futura Bíblia é na sua maior parte da res- , ponsabilidade do nosso doente, hem? -Distraidamente, o Dr, Venruri mudou a data do seu calendário de secretária, para logo a seguir voltar a corrigir a posição da folha. - Que infelicidade o, Professor Menti não poder gozar dos frutos do seu trabalho.'. Quanto às suas alucinações, ao passo que essa Bíblia nos pode esclarecer melhor sobre elas, duvido que ele possa ter qualquer significado do ponto de vista médico. Durante o seu encontro com o Professor sucedeu mais alguma coisa digna de menção?
- Não, mais nada digno de nota. - Repentinamente lembrou-se do peixe desenhado e levou a mão ao bolso. - Exceptuando isto -desdobrou o desenho e mostrou-o ao médico - , o Professor Menti fez este desenho e ofereceu-mo antes de sair, dizendo que, era um presente que poderia ser a minha salvação.
-Ah , o peixe! - exclamou o Dr. Venturi, com ar de quem,,.., está a par do caso.
Nem sequer pegou na folha de papel que Randall lhe estendia, em vez disso abriu uma das gavetas da secretária, rernexendo', numa pasta de arquivo que abriu e de onde tirou seis folhas de,, papel, que colocou em cima da secretária à vista de RandalI. Todas, aquelas folhas exibiam a mesma variante do peixe atravessado pela seta, iguais ao esboço que Randall tinha na mão.
- Como vê, possuo a minha colecção pessoal da arte do Professor Monti. Sim, ele fez estes desenhos como prendas ocasionais' dcdicadas a mim ou às enfermeiras que o tratam. Ora parece-me que o seu instinto artístico se limita a um único objecto: o peixe. Está obcecado por ele. Desconhecemos, desde que está aos nossos cuidados, que tenha feito qualquer outro desenho com tema diferente. Somente o peixe.
- Deve ter qualquer significado - murmurou Randall. - Tem alguma teoria sobre o que o professor tentará comunicar por esta forma?
- Corri certeza, mas não posso imaginar com precisão o que será, exceptuando que o peixe se relaciona intimamente com as alucinações do Professor em ter vivido no século I da nossa era.
Como sem dúvida deve saber, os primeiros seguidores de Cristo, os cristãos primitivos quando perseguidos e acossados, empregaram o símbolo do peixe para se identificarem secretamente uns aos outros. A origem desse santo e senha visual é interessante. Para os discípulos de Cristo, os pioneiros do cristianismo, o Messias era conhecido como «jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador», o que traduzido em grego, a língua usada pelas forças de ocupação romanas, deu Iesous Christos, Theou, Uios, Soter. As iniciais dessas cinco palavras gregas, em conjunto soletravam-se I-CH-TH-U-S, por corruptela popular ICTHY-a palavra grega peixe. Hoje mesmo chamamos ao estudo dos peixes ictiologia. De modo que, como pode apreciar, as iniciais do nome de Jesus Cristo e os seus títulos dão a correspondência de peixe-o símbolo da identificação do culto entre os cristãos perseguidos pelas autoridades para se darem a conhecer entre si,
-Fascinante -concordou Randall, que examinou mais uma vez o desenho. -Mas quanto ao dardo... não faz parte do símbolo, pois não?
-De facto não-respondeu o Dr. Venturi, apressando-se a a guardar os seis desenhos na gaveta da secretária. -Parece ser um acrescento inteiramente devido à personalidade artística do Professor Monti. A lança, seta, dardo e arpão, o que quer que seja, afigura-se um símbolo negativo. No entanto, quem pode saber o que na verdade se passa na mente do Professor? Ao julgar-se Jacob, o irmão, estará a revelar a fraternal rivalidade para com Jesus -o peixe - atravessando-O com um dardo? Ou pensará se a lança ou seta atravessando o símbolo de seu irmão constitui uma arma espetada no seu próprio ser? Não podemos saber. Na verdade julgo que tal símbolo, como muitas outras relacionadas com o Professor Monti, continuarão a ser um profundo mistério.
0 Dr. Venturi localizou um artístico cachimbo e uma bolsa de tabaco, perguntando cortesmente:
-Importa-se que fume cachimbo?
Randall tirou também do bolso o cachimbo e o tabaco. Depois de terem trocado as qualidades de tabaco e de terem tirado, apreciativamente algumas fumaças, voltaram ao Professor Monti. Mas então Randall recuou no tempo para perguntar.
-Há quanto tempo se encontra o Professor na sua clínica? Se não constituir uma violação da palavra empenhada, será possível que me diga também quais as circunstâncias que levaram ao seu ínternarnento nesta casa de saúde?
-As circunstâncias? -repetiu o Dr. Venturi soltando urna pensativa baforada de fumo. -Bem, a verdade é que a história do caso é confidencial, mas quando Angela Monti me avisou que traria o senhor aqui, pediu-me ao mesmo tempo que tanto eu como o pessoal fôssemos claros e francos para si a respeito do estado mental do pai...
Randall apressou-se a dizer:
- Ãngela encontra-se lá em baixo na sala de espera. Se desejar podemos falar com ela?
- Não há necessidade. Ora deixe-me ver... o meu envolvimento no caso começou pouco mais ou menos há um ano e dois meses. Nessa altura fui notificado por um colega meu, médico pessoal da família Monti, que se requeriam urgentemente os meus serviços de psiquiatra para um dos doentes dele, que se encontrava no Policlínico, um hospital no complexo da universidade. 0 doente era o Professor Augusto Monti. Sofrera um súbito colapso nervoso, que se revelava agudíssimo. Fui vê-lo, examinei-o cuidadosamente e fiz o meu diagnóstico.
-Exactamente o que foi que levou o professor a ter que ser hospitalizado?
Distraidamente, o Dr. Venturi colocou o cachimbo no cinzeiro, voltou a pegar nele, tornou a pousá-lo, depois pegou num lápis e começou a fazer rabiscos num livro de receitas.
- Quer saber com exactidão quais foram as circunstâncias que levaram ao internaniento do Professor Monti, não é verdade? Dois dias antes do colapso sofrido pelo professor, como vim a saber depois, o arqueólogo cumpria ainda com excelente capacidade física e mental os seus deveres de rotina na Universidade de Roma.
Ensinava os seus alunos na classe de arqueologia e procedia às normais reuniões do curso e consultas com os elementos ligados à Aula di Archeologia. Estava a preparar um requerimento para a concessão de poder empreender uma nova escavação em Pella. Nesse dia, como em muitos outros dias da sua carreira, mantinha uma programa de entrevistas e de recepção de visitantes.
- Que espécie de visitantes?
-A espécie habitual que normalmente são recebidos por um arqueólogo famoso. Por vezes recebia colegas e professores de arqueologia estrangeiros, ou até mesmo entidades governamentais. Não estava isento de contactar com vendedores do último grito sobre equipamentos científicos ligados ao sector arqueológico, de receber estudantes em vias de completarem os cursos ou editores de jornais e revistas dedicadas à arqueologia. Não sei quais foram as suas exactas actividades nesse dia específico; é possível que a filha, Signorina Monti, lhe possa dar mais pormenores. Tudo o que sei é que o Professor Monti se manteve na universidade durante quase toda a manhã desse dia. Por uma ou duas vezes saiu por ter entrevistas marcadas, mas regressou logo a seguir ao complexo universitário para continuar a trabalhar no remanso do seu gabinete. Ao cair da noite, como não tivesse chegado ainda a casa para jantar, a Signorina Monti telefonou para um dos contínuos e pediu-lhe para lembrar ao Professor que eram horas de ir para casa. 0 contínuo subiu as escadas e dirigiu-se para o gabinete do Professor Monti, no departamento de arqueologia. Bateu à porta, mas não obteve resposta. Admirou-se uma vez que no interior do gabinete havia luz. Resolveu entrar a todo o transe e foi encontrar o Professor Monti sentado à secretária-com esta num estado de desordem incrível-a balbuciar coisas incoerentes, isolado num mundo perdido, proferindo pouco mais ou menos a mesma espécie de palavras sem nexo que há pouco lhe ouviu. Pouco depois Monti calou-se e caiu num tremendo estado de estupor. 0 contínuo, assus" tado, dirigiu-se ao telefone e avisou a Signorina Monti, que mandou seguir para a universidade uma ambulância.
Randall sentiu um estremecimento ao tentar figurar a cena, e calculando qual deveria ter sido a dor de Angela quando fora encontrar o pai naquela situação.
-Depois do choque, o Professor mostrou-se alguma vez coerente ou, antes, as coisas que dizia formavam algum sentido?
- Nunca durante este ano e dois meses em que dura a doença. Para usar de uma figura de retórica - um sopro apagou-lhe repentinamente a luz da razão. Desde então perdeu qualquer elo de ligação com o mundo real.
-Não há esperanças de o poder fazer voltar à normalidade? -É impossível dizer uma coisa dessas. Quem sabe o que o futuro nos trará em matéria de ciências, de medicamentos psiquiátricos para obtenção de curas ou quais as evoluç5es que surgirão em matéria de bioquímica relacionada com as anormalidades mentais? Presentemente nada possuímos que possa justificar termos esperanças de cura. Pode ter a certeza que tentámos tudo o que foi possível no caso. Vários dias depois, consegui a transferência do Professor Monti para aqui, iniciando logo várias formas de tratamento -psicoterapia, medicação farmacológica e electrochoques sob anestesia. Sem resultados práticos. Actualmente os nossos esforços destínam-se a mantê-lo confortável, em paz, sem problemas no que se refere ao sono. Encorajamo-lo a manter-se ocupado, convidando-o a frequentar a nossa oficina de terapêutica ocupacional, a participar em artesanato e a utilizar-se da nossa piscina, mas o professor tem revelado pouco interesse. Na maioria das vezes senta-se perto da janela a olhar para o exterior ou a ouvir música. Vê também televisão, embora tenha dúvidas que consiga absorver o que vê.
- Ãngela... isto é Miss Monti, pensa que o pai tem por vezes momentos de lucidez.
0 Dr. Venturi encolheu os ombros.
- É filha... consola-a tal pensamento e nós não estamos interessados em contradizê-la.
- Percebo - disse Randall pensativamente. - E quanto a visitas? 0 Professor Monti tem recebido outras visitas sem ser as filhas?
- Não. Quer dizer, as suas visitas são as filhas, os netos, quando estão em férias e, no aniversário natalício do doente, a governanta da sua casa.
- Ninguém estranho?
- Não. Ninguém estranho pode ser admitido - garantiu o Dr. Venturi. - Algumas pessoas pediram liçença para visitá-lo, mas foi-lhes negada. As filhas do Professor tomaram a decisão de que a presença do pai aqui, bem como a sua infeliz perturbação mental, deviam ser objecto de segredo, tanto quanto possível. Só os familiares directos do Professor, ou pessoas que acompanham a família podem ter licença para visitar o nosso doente.
- Mas quanto a estranhos... - persistiu Randall. - 0 senhor falou-me há pouco de alguns que pediram licença para visitar o Professor. Lembra-se de quem eram eles?
0 Dr. Venturi tirou o cachimbo da boca.
- É difícil lembrar-me de nomes. As pessoas que se dirigiram à clínica a solicitar autorização para visita eram uns quantos amigos íntimos e colegas da universidade. Foi-lhes dito simplesmente que o Professor sofria de uma depressão nervosa e que era fundamental o mais restrito repouso. Foram várias as pessoas que se nos dirigiram nos primeiros meses e que não obtiveram licença de visita. A partir daí nunca mais fomos importunados.
- Mais ninguém? - perguntou Randall. - Não houve quaisb
quer tentativas de visita recentes?
-Bom, já que menciona isso... houve alguém e recordo o facto por se tratar de uma pessoa muito conhecida.
-Quem? -perguntou RandalI, não podendo esconder o seu interesse.
-Um clérigo eminente, o Reverendo Maertin de Vroorne. Fez-me um pedido por escrito para visitar o Professor. Devo dizerAhe que fiquei impressionado. 0 Reverendo invocou relações de amizade com Monti, mas fui pouco depois informado que não se tratava de amizade entre as duas celebridades. Tive esperanças que uma visita de Maertin de Vroorne pudesse estimular o doente, de modo que enviei o pedido às filhas. A Signorina Ãngela e a Signora Claretta recusaram firmemente a permissão, de modo que informei o Reverendo que o Professor não podia receber visitas. Na verdade o senhor é o primeiro estranho que obteve licença para poder visitar o Professor Monti desde o seu internamento nesta clínica. - 0 psiquiatra lançou um olhar para o relógio-calendário que tiquetaqueava em cima da secretária. -Tem mais perguntas que queira fazer, Mr. Randall?
- Não - respondeu RandalI, levantando-se. - Muito obrigado. Nada mais há que queira perguntar... e nada mais a saber.
A viagem de volta a Roma, no Opel de Giuseppe: com ar condicionado, foi sombria.
No assento traseiro, com Ãngela bem agarrada a ele, um relutante Randall foi forçado a repetir o que ocorrera durante a entrevista com o Professor e depois com o Dr. Venturi.
Ãngela, sem se alargar muito, recordou com saudade os belos tempos em que o pai era um homem mentalmente saudável, falando da sua apurada inteligência e do gosto do seu intelecto, pelas coisas superiores da vida. Rematou dizendo, com palavras de mágoa, que era pena o pai não poder disfrutar da maravilha que o seu achado produziria na humanidade.
-Ele teve já a alegria de poder vibrar com a descoberta que fez, porque pÔde avaliar aquilo que ia oferecer ao mundo.
- És uma amor - disse Ãngela beijando-lhe o rosto. - Um autêntico amor cheio de ternura.
Ãngela convidou-o a jantar em casa dela, juntamente com a irmã e os sobrinhos. Randall sentiu"se quase tentado em aceitar, mas depois reconsiderou.
- Não, obrigado. Penso que será melhor que te reúnas com a tua família em absoluta intimidade. - Depois disto teremos tempo de sobra para estar juntos. Além disso, tenho que voltar para Amesterdão. Começou a fase final para o lançamento. E a propósito, Wheeler deve estar a soprar de raiva por não ter comparecido hoje no gabinete.
-Partes de avião esta noite?
-Talvez ao fim da noite. Tenho que pôr em dia alguma correspondência pessoal e vou aproveitar enquanto estou em Roma. Logo que regresse a Amesterdão já não terei tempo para me coçar. Devo cartas aos meus pais e à minha irmã. Também tenho correspondência de negócios privados, tal como arranjar as coisas definitivamente com Jim McLoughlin, o tipo do Instituto Raker de que te falei. 0 meu advogado ainda não o localizou. Pensei pois que era melhor escrever pessoalmente a McLoughlin, talvez a carta lhe seja entregue. Sim, tenho alguns assuntos de correspondência para arrumar. Devo seguir para Amesterdão no último voo da noite.
- Bom, parece-me que será melhor que Giuseppe te leve primeiro ao Excelsior, depois levar-me-á a casa.
Randall deu instruções ao motorista, e voltou-se depois para Ãngela.
-E tu, partes amanhã de manhã para Amesterdão? Ela contemplou-o com um sorriso travesso.
-Não, vou amanhã à noite, se o meu patrão não me despedir. Pretendo fazer umas compras com a minha irmã e quero levar os meus sobrinhos aos jardins Borghese c talvez faça umas visitas a algumas pessoas amigas. Se não te importas terás a tua secretária amanhã à noite, está bem?
-Não está lá muito bem, mas estarei à tua espera impacientemente.
Ãngela estudava-o agora com atenção, já sem sorrir.
- Steve, há uma coisa que quero saber...
- Diz.
-Logo que chegues a Amcsterdão, o que é que vais fazer?
- 0 que vou fazer? Lançar-me ao trabalho, claro está. Vou trabalhar como um moiro para pôr o projecto em funcionamento.
- Olhou-a melhor, vendo"lhe o ar de preocupação estampado no rosto, e compreendeu onde ela queria chegar. - Oh, queres saber se eu vou... continuar a tentar saber o que é que há com o fragmento do papiro... com a fotografia? Não, Ãngela, parou. Teu pai era a derradeira pista. Cheguei a um beco sem saída. Ainda mesmo que quisesse continuar, desconheço qual o caminho a seguir. Vou arrumar definitivamente a minha caracterização à Sherlock Holmes e voltar ao trabalho de promoção da nova Bíblia. Vou-me devotar por completo a vender ao mundo a Palavra.
-Mesmo alimentando dúvidas?
- Ãngela, foi isso que me trouxe aqui a Roma. Sempre alimentei dúvidas a respeito dos mistérios, tal como sempre tive latente um pedacinho de fé. Conheces a oração de Ernest Renan? «ó Deus, se é que Deus existe, salva a minha alma, se é que tenho alma.» Assim estou eu exactamente hoje.
Angela soltou uma gargalhada cristalina.
- E podes viver com isso?
-Tenho que viver. Não me é dada escolha. -Deu umas pancadinhas nas costas da mão de Ãngela. - Não te aflijas. Hei-de prosseguir o meu caminho'. Pronto, cá estamos no Excelsior. Bem, querida, mais um beijo, até amanhã.
Depois de ter saído do Opel, sempre mantendo segura a pasta, ficou a observar o carro a confundir"se com o trânsito geral e penetrou no átrio do hotel, onde a temperatura era amena. Parou por momentos no balcão da recepção para que lhe dessem a chave e dirigiu-se a seguir para os elevadores.
Uma das máquinas acabava justamente de chegar ao piso térreo e estava a vomitar os passageiros. Ficou ao lado da porta até o elevador estar vazio. Entrou e o seu dedo estava quase a premir o botão que indicava o quinto andar, quando teve a percepção de haver mais alguém dentro da gaiola, alguém que estendeu o braço por cima do seu ombro para carregar no botão do quarto andar. Ora o braço estendido estava envolto naquilo que parecia a fazenda preta e brilhante de uma sotaina.
Quando as portas se fecharam automaticamente e o elevador começou lentamente a sua ascensão, Randall voltou-se e encarou o seu companheiro de viagem.
Suspendeu a respiração.
Na sua frente, ultrapassando-o com a imponência da sua altura, envolto na mesma sotaina negra, via"se a cara cadavérica e quase sem lábios do Dominee Maertin de Vroorne.
0 Reverendo dirigiu-lhe o arremedo de um sorriso. -Voltamos então a encontrar-nos, Mr. Randall. Confio que a sua visita desta tarde ao Professor Monti tenha sido proveitosa.
Desconcertado pelo descaramento do homem, Randall perguntou asperamente:
-Como diabo sabe que fui visitar o Professor?
- Veio a Roma para o ver, tal como eu pretendi antes de si. Muito simples, como vê. Além disso, tomei como um dos meus mais sagrados deveres mantê-lo em observação constante, Mr. Ran, dail. Desde a nossa entrevista, tenho vindo a observá-lo nos seus movimentos cada vez com mais interesse e também cada vez com mais respeito. 0 senhor é, tal como eu imaginei desde o principio, um investigador da verdade. Não existem muitas pessoas preocupadas em procurar a verdade. Mas o senhor é um dos poucos preocupados com essa busca. Quanto a mim, também sou, como sabe, um ardente investigador da verdade. Sinto-me encantado por saber que a nossa busca, neste especial caso, é a mesma e que os nossos caminhos convergem. Talvez tenha chegado para nós a altura, aqui na Cidade Eterna, de termos mais uma conversazinha pessoal.
Randall sentiu-se enrijecer, todos os seus sentidos vibraram em alerta.
- Conversarmos a respeito de quê?
- Ora, a respeito da falsificação do Evangelho Segundo jacob e a respeito da falsificação do Pergaminho Petrónio.
-0 que é... que lhe dá tanta certeza de que se trata de falsificações?
-Porque acabo de ver o próprio falsificador e soube pormenores sobre a intrujice... Bem, Mr. Randail, cá estamos no meu andar. Confio em que queira também sair aqui...
Randall estava sentado, em profundo estado de espanto, no esplendor da vasta e luxuosa suite ocupada pelo Dominee de Vroome no Hotel Excelsior.
Autenticamente estupidificado pela declaração objectiva do clérigo, Randall trotara docilmente atrás dele, no quarto andar, percorrendo o atapetado corredor até entrar na sumptuosa sala de espera.
Randall quisera acreditar que se tratava de qualquer truque, de um joguinho que o Reverendo quisesse jogar com ele. Mesmo pensando na sua disposição céptica a respeito do projecto, das suas dúvidas e reticências, Randall queria naquele momento duvidar das palavras do inimigo da Ressurreição Dois. Infelizmente não podia. Algo no tom de voz do Dorninee, quando lhe falara no elevador dissera a Randall que, finalmente, estava à beira de alcançar a tão procurada verdade.
Continuava sentado, silencioso, absorto, no seu cadeirão de braços forrado a veludo, sem tirar os olhos, como que hipnotizado, do Domince.
0 clérigo, logo a seguir à entrada no aposento, perguntara-lhe se queria que desse ordem ao snack para trazer alguma coisa de comer, por exemplo hors-doeuvres, recomendando-lhe até o caviar Beluga ou o prosciutto di Parma.
Randall abanara a cabeça negativamente, incrédulo com a calma e descontracção do sacerdote.
Finalmente, o Dominee de Vroorne, perguntara"lhe:
- Então aceitará certamente uma bebida, não é verdade? Sem esperar resposta, o Reverendo encaminhara-se silencioso como um felino até ao frigorífico embutido num artístico móvel, que fazia parelha com o resto da mobília rococó, examinando os rótulos das garrafas que estavam numa prateleira, por cima.
Continuando de costas voltadas para Randall perguntara com toda a naturalidade.
-0 que é que deseja tomar, Mr. Randall? Quanto a mim vou beber um pouco de conhaque misturado com água mineral.
- Para mim, se quiser fazer o favor, Scotch-on-the-rocks. -Muito bem.
Enquanto preparava as bebidas, de Vroorne prosseguira com a conversa:
- Tal como o senhor me apontou na nossa entrevista, Mr. RandalI, reconheço agora que a maior parte das pessoas, o pessoal, que trabalha na Ressurreição Dois, são criaturas decentes, homens de profunda espiritualidade. Pessoas que acreditam na essência da Palavra, tal como eu creio. Mas encontram.-se de tal maneira famintos em que haja uma renovação universal da fé que se têm submetido por completo àqueles que os manipulam, que lhes puxam os cordelinhos. Permitiram que os comercialistas, os mexcantilistas os cegassem, lhes colocassem uma venda nos olhos, dobrando-se sem raciocinar aos famintos do poder religioso, pessoas que são capazes de usar todos os meios para sobreviverem. - Fez uma longa pausa, para depois concluir: - Sim, capazes de utilizarem todos os meios, até mesmo a falsificação.
De Vroome voltou-se finalmente para RandalI, atravessando de novo a carpete oriental com dois copos nas mãos.
- Não tenha dúvidas, Mr. Randall. 0 senhor tem seguido a pista certa. Existe um falsificador. Ouvimo.-lo. Vimo-lo.
Chegou junto à mesinha de café e colocou o copo de uísque em frente de Randall. Depois sentou-se confortavelmente no sofá ao lado de RandalI, erguendo o seu copo de conhaque numa espécie de brinde.
- Bebamos à vontade.
Bebericou o conhaque, notando que Randall não tocara no seu copo. Acenou a cabeça num gesto de compreensão.
Colocou o copo que tinha na mão em cima da mesinha, arranjou as dobras da sotaina em volta das pernas, e olhou firmemente para Randall.
-Quer os factos, não é verdade? Como é que descobrimos o falsificador? Não tínhamos meios de o localizar, embora tivesse.- mos a certeza de que ele existia, ou que pelo menos existira. Não, não fomos nós que o encontrámos. Pelo contrário, foi ele que nos procurou. A isca, involuntária, foi a série de artigos publicada por Cedric Plummer sobre o cisma entre as igrejas cristãs, falando dos seus esforços para uma reforma, artigos que esmiuçaram os preparativos da hierarquia ortodoxa para publicação de um Novo Testamento drasticamente revisto e com base em certa descoberta, não anunciada publicamente, feita em Itália. Os artigos de Plummer, como sabe, foram publicados internacionalmente, e um dos principais jornais a publicá-los na tradução italina foi o Il Messaggero, jornal romano de grande circulação.
Randall pensou que até então tudo aquilo soava e veracidade. Ainda não havia uma hora que o Dr. Venturi lhe mencionara os artigos do Il Messaggero.
0 Dominee de Vroonie prosseguiu.
- Como deve imaginar, Plummcr recebeu um considerável número de cartas em resposta aos seus sensacionais artigos. Ora uma dessas cartas, escrita num papel barato e sem referencias especiais, foi enviada a Plummer ao cuidado do jornal romano, juntamente com muitas outras, para o London Daily Coui*r, onde Gcdric Plummer é correspondente. Por seu turno, o diário londrino enviou automaticamente para o hotel de Plunimer em Amesterdão um tremendo maço de missivas. Ao passo que o nosso amigo jornalista Pluminer tem muitas outras limitações e falhas, o desrespeito pelo público não é uma das suas fraquezas, pelo contrário lê todas as cartas que lhe são endereçadas. Foi pois com particular atenção que devorou uma missiva em especial com selos e carimbos dos correios de Roma. Leu-a e releu-a. Tratava-se de uma carta, em extremo provocadora, escrita por um cavalheiro que se dizia francês, morando há vários anos exilado em Roma. Não assinava a carta com o seu nome verdadeiro, mas sim com um divertido e autodepreciativo pseudónimo: Duca Minimo. Mr. Randall, a língua italiana é-lhe familiar?
- Não - respondeu Randall.
- Bom, Duca Minimo, equivale literalmente a Duque de Nada ou, mais precisamente, em linguagem popular, significa Zé Ninguém. Um contraponto excelente ao conteúdo da carta que representava algo, algo de muito positivo. Devo acrescentar que o autor da carta não forneceu endereço a Plummer, com excepção de indicar Fermo Posta, Posta Centrale, Roma - Caixa Postal Geral ou posta restante da Estação Central dos Correios de Roma. Agora vamos ao conteúdo da missiva...
Como que a fazer aumentar o suspense, o Dominee levou de novo o copo aos lábios antes de prosseguir:
- ... que parecia bom demais para ser verdadeiro. Esse expatriado francês em Roma escrevia que havia lido os artigos de Plummer com grande interesse. Exactamente as suas palavras: com grande interesse, sem tirar nem pôr. Uma afirmação ímpar, mas sem contestação. Seguia dizendo que quanto à nova Bíblia - o Novo Testamento Internacional, como o homem pensava que se chamaria
- se baseava numa escavação feita pelo arqueólogo italiano, Professor Augusto Monti, da Universiade de Roma, no perímetro da velha cidade de Ostia Antica, escavação que tinha sido levada a efeito há seis anos. Os trabalhos do Professor Monti tinham levado a uma descoberta extraordinária, um novo evangelho escrito em aramaico por Jacob o justo, irmão de Jesus e implicando ser um evangelho anterior em data a qualquer outro evangelho dentro dos cânones existentes. juntamente com esse novo quinto evangelho, Monti tinha também encontrado fragmentos de um antigo pergaminho romano oficial enviado de Jerusalém para Roma, um documento contendo um terso relato sobre o julgamento de Jesus. Duca Minimo, escrevia que fora com base nesse achado que o Novo Testamento Internacional tomara forma, mas dizia também que toda essa base para a nova Bíblia não passava de uma mentira, garantia que a descoberta do Professor Monti nada mais era do que uma falsificação cuidadosa e erudita que levara muitos anos a preparar. 0 Duca Minimo garantia que a nova descoberta arqueológica era uma falsificação por ter sido ele o falsificador e dizia orgulhosamente que a autenticação e aceitação dos documentos o colocavam na primeira fila dos mistificadores literários, excedendo tudo o que no passado fora feito no capítulo por Ireland, Chatterton, Psalmanazer ou Wise.
Os calmos olhos de Dominee de Vroorne procuraram observar qualquer reacção em RandalI, reacção que não transpareceu no seu rosto.
-Sem dúvida que o nosso correspondente se mostrava uma pessoa sabedora -acrescentou de Vroome.
Absorvido como estava, Randall manteve-se calado na ânsia de ouvir o que se seguiria.
-Para concluir o conteúdo da carta, o exilado francês dizia a Plummer que estava pronto a revelar todo o seu papel de rnistificação e a tornar a falsificação pública na véspera do anúncio da nova Bíblia ao mundo. Escrevia que se Plummer quisesse saber pormenores sobre a falsificação e conhecer o preço em que ele avaliava as provas da sua habilidade, estava pronto a encontrar-se com Cedric e a negociar com ele em terreno neutral. Par esse encontro preliminar, estava preparado para receber Plummer sozinho, numa dada data e num certo local de Paris, se Plummer lhe enviasse um bilhete de avião de Roma para Paris e volta à Cidade Eterna, juntamente com uma determinada quantia para passar a noite e se alimentar. Era deste teor, Nir. Randall, a carta que Cedric Plummer me entregou.
Randall agarrou no seu copo de uísque. Finalmente estava bem precisado de um trago. Depois perguntou:
-E o Dominee acreditou naquilo que a missiva dizia?
- A princípio não. Claro que não. 0 mundo está cheio de maníacos religiosos. Normalmente, eu teria até ignorado uma tal carta. Todavia, quanto mais a estudava, mais ia admitindo a possibilidade que talvez o seu autor estivesse a falar verdade. Raciocinei que a missíva continha algo que lhe conferia um aspecto de veracidade. 0 autor dizia que a descoberta do Professor Monti fora feita perto de Ostia Antíca. Até então, embora soubéssemos o papel desempenhado pelo Professor desconhecíamos por completo o local exacto do achado, um segredo cuidadosamente guardado pela Ressurreição Dois. Todos nós, que estávamos fora do caminho tomado pela nova descoberta, sabíamos que o achado fora feito em Itália, mas desconhecíamos por completo a exacta localização. Era um caso sugestivo e impressionante, algo que merecia a pena ser verificado, e que estava perfeitamente apto a verificar imediatamente, por meio de certos associados que tenho aqui em Roma.
Logo que forneci a esses informadores o nome da escavação - perto de Ostia Antica-essas pessoas puderam confirmar"me que na verdade fora nas vizinhanças de Ostia Antica que o Professor Monti realizara uma importante descoberta bíblica, ainda que mantida em segredo. Pude igualmente verificar, pela primeira vez, que até o titulo da nova Bíblia era da maior precisão. Pelo menos o título tinha sido até então mantido em exclusivo pela chefia do vosso projecto. Seria possível que certas pessoas de influência, mesmo fora do sancta sanctorum da Ressurreição Dois, soubessem o segredo, mas que isso seria impossível a um obscuro exilado francês na cidade de Roma. Não, não podia ignorar um tal pormenor. Mesmo que o chamado Duca Minimo, não fosse o falsificador, mesmo que tivesse obtido a sua informação por vias terceiras, sem dúvida que o seu conhecimento do assunto devia ser tomado a sério. Se ele não fosse a imediata fonte do conhecimento da falsificação, certamente que se devia manter em contacto com a pessoa ou pessoas que a tinham concebido. Impossível ter duas opiniões, valia bem a pena travar conhecimento com o homem, atendendo até ao modesto investimento financeiro que comportava. De modo que instrui Cedric Plummer para lhe escrever para a posta restante de Roma manifestando interesse em ouvir o que o alegado falsificador teria a dizer, concordando com a data, o dia e hora e o local do encontro, enviando-lhe ao mesmo tempo o bilhete de avião ida-e-volta e o dinheiro para as despesas de alojamento e de alimentação. Plummer assim fez, e na data acordada partiu para Paris de modo a estar presente ao encontro.
- Quer dizer... que Plummer se encontrou realmente com esse homem?
- Sim, encontrou-se com ele.
Randall bebeu uma grande golada de uísque.
- Quando?
-Fez hoje uma semana.
- Onde?
- No Père-Lachaise em Paris. -Onde é que isso fica?
-0 cemitério du Père-Lachaise... não ouviu falar do local?
- perguntou de Vroorne com surpresa. - É o cemitério mais célebre de Paris onde estão sepultadas tantas grandes figuras do passado, como Heloisa e Abelardo, Chopin, BaIzac, Sarab Bernhardt, Colette... 0 nosso falsificador tinha escrito que estaria à espera de Plummer, exactamente às duas horas da tarde, em frente da escultura de Jacob Epstein que domina o sepulcro de óscar Wilde. Admito que todo o caso parece rodeado de um cenário teatral. Todavia a escolha teve também a sua razão de ser. Para uma pessoa notória, um falsificador confesso, o lugar afigura-se o mais conveniente para uma entrevista íntima e sem ouvidos indiscretos. Visitei o Père-Lachaise em certa ocasião um sítio imenso, calmo, isolado, feito de colinas, veredas, florestas de choupos e de acácias. Perfeito e verdadeiramente intrigante para um sensacionalista como Plummer.
-E eles encontraram-se então nesse local, Plummer e o falsificador? -apressou Randall.
- Sim, encontraram-se - respondeu de Vroome - , mas não junto à sepultura de óscar Wilde como fora previamente combinado. Quando Plummer chegou ao cemitério, um guarda perguntou-lhe se se chamava Cedric Plummer e entregou-lhe um sobrescrito que alguém deixara para lhe ser entregue. Dentro do sobrescrito havia uma folha de papel com uma nota rabiscada por Duca Minimo. 0 homem mudara o local da entrevista, avisando Plummer para seguir até junto da sepultura de Honoré BaIzac. Parece que havia muita gente junto do sepulcro de óscar Wilde. Plummer achou aquele pormenor excepcionalmente poético. BaIzac descrevera com a sua pena magistral imensos trapaceiros e patifórios. Naquela altura ainda conseguira chamar até junto da sua última morada um homem que possivelmente seria um dos maiores falsários de toda a história. Plummer comprou um mapa turístico do cemitério, marcou o caminho até à tumba de BaIzac e não teve dificuldade em encontrá-la. E no sítio encontrou,se também com o falsificador,
0 Domince de Vroome parou, acabou o seu conhaque e considerou o seu copo vazio, bem como o de Randali, nas mesmas condições.
-Mais um uísque, Mr. Randall?
-Nada de nada... com excepção da sua história. 0 que é que aconteceu?
-Como sempre, o devotado jornalista que é Plummer escreveu extensas notas do encontro. Eu li-as. Em essência falavam do verdadeiro nome do falsário, ou do homem que a si próprio assim se proclamava: Robert Lebrun. Plummer descreveu-o como um homem de idade-avaliou cerca de oitenta e três anos-mas sem vestígios de senilidade, perfeitamente alerta, de cabeça fria e esclarecida, cabelo castanho já ralo, olhos cinzentos, com uma catarata num deles. óculos. Nariz pontiagudo, mento de prógnato, boca quase sem dentes, rosto profundamente marcado por fundas rugas. Provavelmente de altura média, segundo avaliação de Plummer, mas parecendo baixinho devido a curvatura para a frente.
0 andar do homem tem um jeito estranho, mais arrastado do que coxeante, devido a ter uma perna artificial, coisa em que não gosta nada de falar. A sua origem e ambiente conferem certo fundamento à história contada.
-E qual é essa origem?
-Paris. Nado e criado em Momparnasse. Não disse muita coisa a Plummer. Ficaram ali, junto do túmulo de BaIzac, ao sol e Lebrun manifestou-se fatigado a breve trecho. Contou que na sua juventude trabalhara como aprendiz de gravador. Era pobre e queria ganhar dinheiro para ele, para a mãe, irmãos e irmãs e por isso começou a fazer imitações. Acabou por ver que tinha um certo jeito para falsificações e por isso começou a forjar passaportes falsos, deslocou-se depois para falsificar pequenas notas, formou-se em imitador de cartas históricas, manuscritos raros, fragmentos de bíblias medievais com iluminuras e finalmente atreveu-se a forjar um documento governamental sem a necessária preparação para tal espécie de coisas. Desconheço os pormenores, mas sei que foi descoberto, preso, julgado e, devido a possuir já no cadastro uns quantos crimes, embora menores, do mesmo teor, foi considerado incorrigível e condenado a prisão na notória colónia penal da Guiana Francesa, A vida em tais paragens tomou-se um inferno vivo para o jovem Lebrun. As autoridades prisionais nada fizeram para o reabilitar e ele tomou-se mais rebelde e recalcitrante do que nunca, tendo de sofrer os efeitos dessa rebeldia.
0 exílio em paragens tão nefastas desarticulou-o. Em dada altura, depois de reclusão numa das três ilhas ao largo da costa da Guiana, que mais tarde se tomaram conhecidas como o arquipélago da Ilha do Diabo, Lebrun esteve à beira de se suicidar. Foi nessa ocasião que passou a ter a protecção de um cura católico frances uma padre da ordem da Congregação do Espírito Santo, que se deslocava a St. Jean para visitar as colónias penais das ilhas duas vezes por semana. 0 sacerdote interessou-se por Lebrun, levou-o lentamente para a religião e a fé, facultando,lhe leituras espirituais edificantes. Gradualmente a vida de Lebrun foi ganhando propósito e alcance de conhecimentos, verdadeiro escopo. Finalmente, de-pois de passar três anos na colónia penal da Guiana, deparou-se a Lebrun certa espécie de oportunidade para receber o almejado perdão. Plummer não obteve muitos pormenores sobre o caso, mas soube, todavia, que tal oportunidade acabou por se malograr, a sua fé foi traída e Lebrun tornou-se cada vez mais irritadiço, mais amargurado e anti-social do que nunca. Especialmente contra a religião.
Randall estava confuso. -Não compreendo.
-Desculpe por não esclarecer ponto tão crucial, mas na verdade sei muito pouco a respeito disso. Tudo o que Lebrun revelou foi que o sacerdote em quem confiara, esse clérigo, fora portador de uma proposta do governo francês. Se Lebrun se oferecesse para certa empresa perigosa ou para determinada experiência, conseguindo sobreviver, ser-lhe-ia concedida amnistia e libertação da colónia penal. Lebrun mostrou-se relutante em oferecer-se como voluntário, mas fê-lo encorajado pelas palavras do padre. Sobreviveu ao empreendimento à custa de perder uma perna, mas considerou que mesmo a tal preço merecia a pena a liberdade. Sucede que a amnistia que o clérigo prometera a Lebrun, em nome do governo francês não foi concedida. Lebrun foi de novo atirado para o seu inferno tropical. A partir desse dia negro da traição, Lebrun votou-se à vingança. Contra o governo peuro? Não. Contra o sacerdócio, contra o clero, contra toda a religião - devido à decepção sofrida por meio da religião em que acreditara. Foi assim que consumido pelo ódio, votado de alma e coração à vingança, concebeu o seu tortuoso plano, um plano que se destinava a transformar em escárnio os crentes em Cristo e a vibrar um golpe fatal contra o clero, fosse qual fosse a sua fé.
- A falsificação de um novo evangelho - murmurou Randail.
- Sim, isso e uma falsificação arranjando uma fonte pagã para dar testemunho do julgamento de Cristo que ele passara a detestar. Iria devotar todo o resto da sua vida a preparar a mistificação, levando o público a acreditar nela, acabando finalmente por expor a mentira, mostrando assim a falsidade da fé religiosa e a credulidade e facilidade com que os fiéis podem ser enganados. Entre 1918, quando foi atirado de volta para a sua cela na colónia penal da Guiana, e 1953, altura em que os franceses puseram termo ao terrível inferno tropical, Robert Lebrun preparou a sua tremenda vingança. Embrenhou-se profundamente na Bíblia, na erudição bíblica e na história do cristianismo no primeiro século. Finalmente, depois de 38 anos de reclusão, a sua prisão terminou com a eliminação da colónia penal da Guiana pelo governo francês. Lebrun regressou a França, libertado, um homem livre, mas ao mesmo tempo um ex-condenado obsessionado pela vingança contra a Igreja.
-E empreendeu então a sua genial falsificação?
- Imediatamente, não - respondeu o Domince de Vroome. Antes de mais precisava de dinheiro. Reatou a sua vida clandestina de falsário, transformando-se numa autêntica fábrica de passaportes falsos. Continuou também com os seus profundos estudos das Sagradas Escrituras, de Jesus, dos primitivos tempos cristãos, iniciando-se na aprendizagem do aramaico. Sem dúvida que mostrou ser um autodidacta brilhante, verdadeiro gênio em erudição bíblica. Finalmente conseguiu juntar dinheiro suficiente para adquirir os materiais antigos de que necessitava. Com tais materiais os seus conhecimentos e o seu ódio abandonou a França para estabelecer residência em Roma e para se desenvolver secretamente em aperfeiçoamento de papiros e pergaminhos, para aquilo que devia ser a falsificação de maior êxito em toda a história, Foi com enorme satisfação que, há uma dezena de anos, completou o seu trabalho.
Randall estava totalmente hipnotizado, demasiado intrigado para manifestar por mais tempo qualquer desconfiança.
- E Monti? - perguntou. - Onde é que o Professor Monti entrou no caso? Esse Lebrun conheceu Monti em Roma?
- Não, no princípio Lebrun não conheceu pessoalmente o Professor Monti. Mas, evidentemente, no curso dos seus estudos sobre arqueologia bíblica Lebrun familiarizou-se com o nome de Monti. E então, certo dia, depois de ter finalizado a sua falsificação, e quando se debatia com o problema magno de saber onde e como iria enterrar os documentos, deparou-seAhe subitamente um artigo radical escrito pelo Professor Monti para um jornal versado em problemas arqueológicos.
Randall fez um aceno positivo com a cabeça.
- Sim, o artigo controversial escrito pelo Professor Monti sobre a possibilidade de se encontrar o perdido documento Q em Itália em vez de na Palestina ou no Egipto.
-Exactamente -disse o Dominee de Vroorne, impressionado. - Estou a ver que tem tirado sério proveito do seu trabalho, Mr. Randa11. Mas evidentemente que tem tido a boa influência da filha do Professor Monti. Bem, prosseguindo, certo dia, quando estava na Biblioteca Nacional, Lebrun leu o artigo de Monti e imediatamente juntou todos os fios soltos da sua meada. Dos lugares sugeridos por Monti para uma possível futura descoberta, um deles era o sítio de velhas ruínas soterradas ao longo da linha do litoral perto de Ostia. Depois de um estudo meticuloso do local, Robert Lebrun arranjouse de maneira a sepultar a sua falsificação profundamente debaixo da terra entre as ruínas de uma vila romana do século I.
0 cepticismo de Randall veio ao de cima.
-Como é que lhe foi possível fazer tal coisa sem ter sido descoberto?
- Fê-la - respondeu o clérigo com firmeza. - Não sei como, e o homem não revelou a Plummer os meios de que se serviu. Mas continuo a pensar que Lebrun era e é capaz de tudo e mais alguma coisa. Acima de tudo, como já deve ter considerado, foi sempre um homem de paciência infinita. Uma vez enterradas as falsificações do papiro e do pergaminho, deixou que passassem alguns anos a fim de permitir que o vaso selado e o plinto de pedra se tornassem parte integrante das ruínas, de modo a absorverem as devastações do tempo e parecerem tão velhas como o conteúdo do seu interior. Durante esse período, o governo italiano autorizara escavações em Ostia Antica, e Lebrun manteve-se de atalaia, com esperança de que o seu trabalho de falsário fosse desenterrado por acidente. Mas essas escavações não foram suficientemente amplas. Entretanto, o Professor Monti continuava a publicar os seus artigos radicais, fazendo publicidade das suas opiniões a respeito do documento Q poder ser encontrado em Itália. Em resultado deles estava a ser severamente criticado e ridicularizado pelos seus colegas mais conservadores. Sabendo de todas as polémicas e criticas e conhecedor de todas as controvérsias intestinas, Lebrun pensava que o Professor Monti se mostrasse suficientemente acicatado pelos ataques dos seus colegas, atirando-se para as ruínas de Ostia Antica a fim de provar que as suas projecções em matéria arqueológica não eram simples fantasias. Lebrun decidiu então que era chegado o tempo de agir. De modo que há sete anos, tal como o homem revelou a Plummer no cemitério parisiense, resolveu fazer uma visita ao Professor Monti na Univer" sidade de Roma. E, depois dessa iniciativa, a artimanha psicológica de Lebrun acabou por alcançar os mais positivos resultados.
-Quer dizer que Monti se mostrou receptivo? -perguntou Randall espantado. - Mas receptivo e reactivo a quê?
-A um fragmentozinho de papiro com caracteres aramaicos que Lebrun levou consigo -respondeu o Dominee de Vroorne. Lebrun não deve ser subestimado. Lerribre-se que é diabolicamente inteligente. Retirou dois pedacinhos ao Papiro Número 3 do Evangelho Segundo Jacob, material de partes diferentes, com aspecto de corroídas, para fazer com que a folha de papiro enterrada parecesse ter sido comida pelo tempo ou pelos bichos e por conseguinte mais verdadeira. Um dos dois pedaços estava praticamente intacto e o outro, embora mais envelhecido e deteriorado ainda apresentava caracteres visíveis. Foi precisamente esse fragmento que mostrou ao Professor Monti. Claro que Lebrun previa que o Professor lhe perguntaria corno é que o fragmento chegara à sua posse, Explicou pois que era um estudioso amador da história romana do século I, que há muito tempo vinha a preparar um livro a respeito de Roma e das suas colónias asiáticas nesse particular período. Relatou ainda que costumava, durante os fins de semana, visitar os locais antigos envolvidos no primitivo comércio romano com o mundo exterior. Ora dado que Ostia fora um porto de mar activo no tempo de Tibério e de Cláudio, Lebrun havia lá passado incontáveis fins de semana a cirandar pelas redondezas tentando visionar o porto como ele fora dois mil anos antes, tudo isso a fim de poder recolher dados concretos para o seu livro, pelo menos foi o que ele disse ter contado a Monti. Explicou ao Professor que, devido à sua assídua frequência da área, passara a ser uma figura popular entre as gentes de Ostia, por isso mesmo, certo domingo ao entardecer, fora abordado por um garoto italiano que lhe mostrava um souvenir para venda: precisamente o fragmento do papiro apresentado ao Professor.
- Mas... e o Professor não manifestou curiosidade em saber como é que o rapazito obtivera o fragmento? - interrompeu Randall.
- Claro que manifestou. Mas, meu caro, lembre~se que Lebrun tinha uma resposta para tudo. Disse que o rapazelho, juntamente com outros amigos, costumavam brincar a escavar cavernas nas colinas e montes da região, e que uma semana antes haviam achado um pequeno pote de barro que se desfez em pedaços quando tentaram abri"lo. Dentro do pote viam-se alguns bocados de papel acastanhado. A maior parte dos fragmentos de papel tinham-se desfeito em pó quando lhes tocaram, mas salvaram-se uns bocados que os moços utilizaram como notas de banco para brincarem aos mercados. Depois de se fartarem de brincar os fragmentos foram atirados fora, mas o pequeno vendedor de recordações resolvera ficar com o fragmento que exibia para venda, pensando que poderia obter uns tostões com ele, habituado com estava a que várias pessoas comprassem as coisas mais disparatadas. Lebrun contou ao Professor que ficara com o bocado de papiro por uma soma irrisória, sem ter a certeza do valor do objecto. Ao regressar ao seu apartamento de Roma examinara então detalhadamente o fragmento, dando-se nessa altura conta do possível significado pelo seu traqueio com antigos manuscritos. Depois resolvera apresentar o pedaço de papiro ao Professor Augusto Monti, autoridade arqueológica da Universidade de Roma, de modo a obter uma autenticação. De acordo com o relato de Lebrun, Monti mostrou"se céptico, ainda que manifestasse interesse. Pediu a Lebrun que deixasse ficar na sua posse o fragmento durante uma semana, de modo a poder estudá-lo. A partir de aqui já pode perfeitamente imaginar o que aconteceu a seguir,
Randall tinha ouvido a exposição do clérigo com toda a atenção. Tal como durante tanto tempo pusera sérias reservas à história da Ressurreição Dois, antepunha também naquele momento as mais sérias reservas à história de Lebrun. Ambas tinham os seus pontos fracos e fortes. Mas só uma das versões devia ser a verdadeira.
- Domince, o meu único interesse é saber o que é que Lebrun imaginou a seguir,
Os olhos de de Vroome consideraram-no.
- Bom, está a mostrar-se tão céptico como o Professor Monti se mostrou a princípio. - Sorriu. - Mas acredito que se convencerá, tal como ele se mostrou convencido na semana seguinte a ter-lhe sido confiado o fragmento do papiro. Quando, na data combinada, Lebrun se dirigiu de novo à universidade, Monti recebeu-o com toda a cortesia e fechou-se com ele no seu gabinete. Monti não escondeu a sua exaltação. Lebrun contou a Plummer que o Professor estava verdadeiramente fora de si, anunciando-lhe que estudara cuidadosamente o fragmento e que estava mais do que satisfeito sobre a sua autenticidade. 0 fragmento aparentava ser um bocado pertencente a um códice de um Novo Testamento primitivo, antecedente a qualquer outro existente e conhecido. Sem dúvida que era anterior aos mais antigos evangelhos conhecidos, anterior ao evangelho escrito por Marcos à volta do ano 70 e ao evangelho escrito por Mateus por volta do ano SO. Ora se aquele fragmento sobrevivera, outros deveriam ter sobrevivido também. 0 Professor disse a Lebrun. sem rebuços que se fossem encontrados mais fragmentos poderiam vir a representar a mais incrível descoberta bíblica de toda a história. Se Lebrun estivesse pronta a levá-lo ao local, Monti obteria as autorizações necessárias e iniciaria as suas pesquisas. Lebrun mostrou-se pronto a cooperar, mas impôs duas condições: primeiro que se as escavações provassem ter êxito o Professor Monti entregar"lhe-ia metade dos proventos que obtivesse; a outra condição foi de que seria mantido como um sócio na sombra, a sua intervenção no caso seria mantida em segredo e o seu nome nunca seria pronunciado nem registado por Monti. Para acalmar a estranheza manifestada pelo Professor, contou-lhe que era um exilado em Itália e que na França possuía um cadastro não muito desejável devido a certos crimes praticados na mocidade. Claro que não revelou a Monti a verdadeira amplitude do seu cadastro criminal, disse-lhe apenas que não queria publicidade à volta do seu nome, com medo que as autoridades italianas viessem a saber o «curriculum» policial em França expulsando-o de Itália como persona non grata. 0 Professor acabou por concordar com as duas condições impostas, firmando-se o acordo da sociedade secreta entre os dois.
-E Monti iniciou as suas escavações em Ostia Antica? -Exactamente, no local indicado por Lebrun. Após um ano de preparativos, o Professor Augusto Monti começou as escavações.
Três meses depois tropeçou positivamente com o plinto de pedra escavado, oco, que continha o segundo pote ou vaso de cerâmica selado, aquele em que se encontrava o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrónio. E hoje, seis anos depois, o mundo está prestes a ser contemplado com o seu quinto evangelho e com o seu Jesus histórico através do Novo Testamento Internacional.
- Domince, estou a pensar que afinal sempre quero beber mais um uísque. Aceito a sua oferta de há bocado - disse Randall respirando fundo.
-Penso que também estou precisado de beber mais um conhaque.
Enquanto de Vroorne agarrava nos dois copo vazios e se dirigia para o aparatoso frigorífico, RandalI, nervosamente, carregou o fornilho do seu cachimbo com tabaco da bolsa de couro. Procurara durante algum tempo aquela porta para a verdade mas naquele momento, que a tinha escancarada diante de si, ainda não via as coisas muito claramente do outro lado. Confuso, exprimiu o seu desapontamento em voz alta.
-Reverendo, essa não pode ser a história toda. Falta alguma coisa. Há tantas coi...
Sem se voltar, enquanto manipulava as bebidas, o Dominee de Vroorne replicou:
-De forma nenhuma lhe contei a história toda, ainda falta o desfecho-na verdade dois desfechos-um relacionado com Lebrun e Monti e outro com Lebrun, Plummer e eu próprio.
0 sacerdote acabou de deitar as bebidas e regressou com o scotch-on-the-rocks para Randall e com o seu conhaque misturado com água mineral. Depois de ter pousado os copos na mesinha, ajeitou-se confortavelmente no canto do sofá e prosseguiu o seu relato.
- Segundo Robert Lebrun, depois da descoberta ter sido autenticada e vendida aos editores da Ressurreição Dois, o Professor Monti entregou-lhe religiosamente metade dos lucros provenientes do achado. Lembre-se porém que o objectivo primevo de Lebrun. não era o dinheiro. 0 seu principal objectivo era ver a descoberta aceite pela Igreja, expondo depois a mistificação de modo a poder gozar a vingança final. Ano após ano esperou pela publicação do Novo Testamento Internacional. Sempre que esteve à beira de perder algo do sua infinita paciência, foi acalmado pela certeza dada pelo Professor Monti de que o achado estava a ser traduzido e preparado para livro, obra que muito em breve iria ser apresentada ao mundo. Era esse o momento que Lebrun esperava com tanto afã. Logo que a descoberta fosse tomada pública, Lebrun sairia da sombra para provar também publicamente que não passava de uma mentira e que a Igreja não era mais do que uma gigantesca fraude. Mas no ano passado, algo de muito significativo sucedeu a Lebrun. 0 falsário tinha já gasto a maior parte do dinheiro que recebera do Professor, gastara-o principalmente com prostitutas que calcurriam as ruas e estava muito perto da penúria. Mas dado estar já habituado à penúria, não foi essa a razão do seu acto seguinte. Aquilo que o levou a marcar uma nova entrevista com o Professor Montí alicerçou-se num verdadeiro caso de amor. Na sua idade tão avançada quanto airada, Lebrun acabara por se apaixonar violentamente por uma das prostitutas que povoam os jardins Borghese. Era uma mulher ainda nova, pateta e venal, que com certeza não podia ter qualquer outro interesse no velho sátiro a não ser ele poder fornecer-lhe certos confortos, mesmo satisfazer"lhe luxos. Lebrun confessou francamente a Plummer que estava desesperado por possuí-Ia, vendo só uma solução no caso: fazer chantagem.
-Chantagem? Fazer chantagem com quem? Com o Professor Monti?
-Claro está. A passagem dos anos não tinha apagado a sua obsessão para desancar a religião como tolice viva e a Igreja como um engano, mas essa mania cedera lugar a um vulcão talvez mais rugidor: a necessidade de dinheiro, dinheiro para poder comprar amor. E assim, em certa data do passado ano, arranjou um encontro privado com o Professor Monti...
-Em que altura do ano passado? -Não tenho a certeza.
Randali fez rápidos cálculos, talvez há um ano e dois meses.
- Poderia ter sido em Maio do ano passado? - perguntou. -Julgo que sim, que a data talvez confira. Seja como for, encontrou-se com o Professor Monti algures fora da Universidade. Insistiu que queria saber quando é que o achado de Ostia seria publicado. Por essa altura a tradução estava em segunda leitura para ser enviada para as tipografias de Hennig em Mainz. Monti assegurou a Lebrun que a Bíblia seria publicada no ano seguinte, ou seja, este ano. Revelou até a Lebrun o nome que a Bíblia iria tomar. Satisfeito, Lebrun lançou então o seu ataque. Disse a Monti que precisava desesperadamente de dinheiro, uma grande quantia, o mais cedo possível e que esperava que o Professor lhe desse o montante de que precisava. Ao que parece, Monti não se deixou comover. Não tinha dinheiro disponível, mas mesmo que o tivesse, não via qualquer razão para ter que o dar a Lebrun. Haviam feito uma combinação e Monti cumprida a sua parte no negócio, pagando a Lebrun o que ele pedira. Não via nenhuma razão para lhe dar mais dinheiro. Lebrun ripostou que existia uma razão de peso, «se não me der mais dinheiro, arrasá-lo-ei a si e arruinarei a Bíblia que esses editores têm em preparação. Exporei ao mundo a sua descoberta como aquilo que ela realmente é... uma falsificação... uma intrujice, e uma mistificação inventada pelo meu cérebro e executada pelas minhas mãos». Será capaz de imaginar o efeito que tais palavras produziram no pobre Professor Monti?
Randall tirou o cachimbo da boca.
-Decerto que Monti não acreditou no homem.
-Claro que Monti não acreditou. Além disso, como é que ele poderia acreditar? Mas Lebrun contou a Plummer que também estava preparado para tal contingência. Fazia"se acompanhar por uma prova inegável da sua falsificção.
- Que prova?
-Não revelou isso a Plummer -respondeu o Dominee de Vroorne.-Mas ao que parece tinha na verdade uma prova incontestável da mistificação, porque quando o Professor Monti a viu ficou como que assombrado por um raio, apoplético, quase em estado de choque. Lebrun, acrescentou: «Se me der o dinheiro que pretendo, entregar-lhe-ei esta prova da falsificação. A sua carreira e a sua reputação manter-se-ão intactas, impolutas e permanecerá a autenticidade do Novo Testamento Internacional. Se recusar, tomarei a prova pública e mostrarei que os documentos Jacob e Petrónio não passam de falsificações habilidosas. 0 que é que diz?» 0 que Monti disse... foi que encontraria maneira de arranjar o dinheiro fosse como fosse e onde fosse.
-E arranjou?
-Nunca teve essa possibilidade, Mr. Randall, como de resto o senhor sabe perfeitamente. Voltou ao seu gabinete privado na universidade. Pode imaginar os seus pensamentos ao ficar ali sentado à sua secretária, só, num estado de pessoa petrificada, sabendo que tinha sido mistificado e que o trabalho de toda uma vida estava à beira de arruinar"se. Estava prestes a cair em desgraça, a ser arrastado na lama, arrastando consigo para a bancarrota os organizadores da Ressurreição Dois e a Igreja mundial. Acabou por sofrer um completo colapso mental, perturbou-se-lhe o entendimento e apagou"se-lhe a razão da luz. Quando Lebrun alguns dias depois tentou contactar com ele, para o pagamento da chantagem, soube que o Professor estava demasiado doente para poder falar fosse com quem quer que fosse. Lebrun não confiou naquilo que lhe foi dito, de modo que realizou ulteriores investigações na universidade e foi informado que Monti se encontrava com licença ilimitada. Não muito certo ainda, Lebrun, uma tarde, seguiu as filhas de Monti até à villa Bellavista, nos arredores de Roma. Quando descobriu que o destino delas era um sanatório para perturbados mentais, foi forçado a aceitar o facto que Monti deixara de lhe poder ser útil.
- Fez qualquer tentativa para falar às filhas do professor?
- Que eu saiba, não - respondeu de Vroorne. - Depois disso, tal como contou a Plummer, Lebrun considerou várias outras vítimas para a chantagem. Pensou em dirigir-se ao ministério italiano da Educação para extorquir dinheiro jogando com o peso do escândalo, mas acabou por ser suficientemente sensato para ver que não tinha força para desafiar o governo. Este Iiinitar-se-ia a prendê-lo, confiscar-lhe-ia a prova da falsificação e abafaria tudo. Pensou em dirigir-se a Amesterdão e apresentar aos editores a prova da sua intrujice, sentindo que eles fariam tudo e mais alguma coisa para protegerem os milhões de dólares que haviam investido no projecto. Mas temeu-lhes também a potência, tirando-lhe a prova e lançando-o para uma cela. Concluiu que o seu extremo recurso seria encontrar alguém, alguém possuindo credenciais sem mácula, que desejasse tanto como ele destruir a Ressurreição Dois. E foi então que tropeçou com os artigos de Cedric Plummcr, e que calculou que encontrara o homem e a sua única esperança. E tinha razão. Na verdade escolhera o caminho certo, batera à porta indicada.
Com a mão a tremer, Randall levou o copo aos lábios e bebeu profundamente.
-Bem, qual foi a conclusão dessa reunião entre Plummer e Lebrun no cemitério de Paris? 0 senhor pagou-lhe e conseguiu obter a prova da falsificação?
0 Domince de Vroorne franziu o'nariz, levantou-se, procurou um charuto na caixa que se encontrava numa mesa de pé alto, dizendo enquanto o acendia:
-Chegamos ao segundo desenlace, muito mais bizarro do que tudo o que o antecedeu.
Calou-se e ficou, pensativo, a rolar o charuto entre os dedos, para prosseguir depois:
-Sim, Plummer negociou um arranjo com Lebrun. enquanto passearam no cemitério de Père-Lachaise. Lebrun deixara a prova da falsificação escondida em certo lugar seguro nas vizinhanças de Roma. Concordou em voltar a Roma para recolher a evidência e esperar que Plummer, provido do dinheiro o fosse procurar na Cidade Eterna. Combinaram um segundo encontro-Lebrun marcou a data, a hora e o local, um café obscuro, fora de mão, que frequentava ocasionalmente. Quando desse segundo encontro, seria permitido a Plummer que examinasse à sua vontade a prova da mistificação e por ela, um relato escrito de toda a trama da intrujice, entregaria a Lebrun uma quantia em dinheiro relativamente modesta.
- Quanto?
Antes de responder, o Domince, imponente na sua estatura, tirou uma grande fumaça do charuto e expeliu depois uma densa nuvem de fumo azulado.
- Lebrun queria cinquenta mil dólares ou o equivalente em dinheiro inglês ou suíço. Plummer regateou com ele. Lebrun acabou por fixar a quantia em vinte mil.
-Bom, o encontro efectuou-se?
-De certa maneira, sim. Mas primeiro deixe-me pô-lo ao corrente de uma mudança nos planos. Quando Plummer regressou a Amesterdão e me contou o que se passara entre ele e Lebrun, fiquei - deixe-me usar esta imagem - extremamente esperançado e hilariante. Mas logo a seguir reconheci que a transacção era demasiado vital para a nossa causa para deixar que Plummer fosse sozinho tratar do caso. Cedric é uni entusiasta e um jornalista, mas não é um perito em papiros, em aramaico, em crítica e avaliação de textos bíblicos. Eu sou um perito em todas essas coisas. Estava certo que a prova da falsificação de Lebrun seria o outro fragmento que ele tinha recortado do vosso Papiro Número 3 e que mantinha intacto. Ou algo de similar, Esperava também que a prova contivesse evidência inegável de ser não genuína mas falsificada. Ninguém mais do que eu estava apto a avaliar tal prova em última instãncia, de longe com mais rigor de que Plummer. Por isso me resolvi a acompanhar Cedric a Roma.
-Quando foi isso?
- Há três dias. Dirigimo-nos ao ponto do encontro. -Em que sítio da cidade?
Pacientemente, de Vroome satisfez a curiosidade de Randall. num pequeno café de estudantes, muito pobre, uma espécie de bar, situado na via que se dirige à Piazza Navona. Na verdade o café fica na esquina da Piazza di Cinque Lune -Praça das Cinco Luas-e da Piazza di S. Appollinare. Um estabelecimento de longe muito menos pitoresco do que os nomes dos locais sugerem. 0 café chama,-se Bar Fratelli Fabri -Bar dos Irmãos Fabri. Um local pouco atraente. Quatro mesas no passeio, em frente, com uma cadeira de verga e um toldo a cair de podre para proteger os clientes habituais dos raios do sol. Duas entradas protegidas por tiras de plástico para as moscas não entrarem-bom aquela espécie de fiadas com contas baru lhentas que geralmente se associam a uma casa de má reputação nos bizarros bairros argelinos ou que ainda guardam as portas dos talhos em certas cidades latinas. Plummer e eu devíamos encontrar-nos com Lebrun à uma hora da tarde. Chegámos quinze minutos antes, levando os vinte mil dólares, ocupámos uma das mesas cá fora, mandámos vir Carpanos e esperámos pela chegada do falsário com a impaciência que bem se pode imaginar.
-Ele apareceu? -perguntou Randall ansiosamente, -Cinco minutos depois da uma, quando já nos começávamos a preocupar, surgiu um táxi na Piazza delle Cinque Lune e os pneus chiaram para uma paragem do outro lado da rua em que o café estava situado. A porta do veículo abriu-se e vimos sair um homem de idade, arrastando a perna, que se dirigiu à janela da frente a fim de pagar ao motorista. Lembro-me de Plummer me ter tocado no braço, dizendo: «É Robert Lebrun, ei-lo» Plummer levantou-se impetuosamente gritou: «Lebrun! Estou aqui!» Lebrun voltou-se, quase caindo devido à perna artificial, fixou um olhar de míope, semicerrando as pálpebras, na nossa mesa e a sua expressão transformou-se por completo. Pareceu ficar agitadissimo, congestionado de ira. Fechou um das mãos e agitou o punho na nossa direcção, gritando colericamente para Plummer: «Você não cumpriu a palavra dada! Afinal não queria publicar nada, pretendia apenas vcnder-me a um desses diabos!» E apontava um dedo na minha direcção. Foi então que me dei conta que tinha envergado a minha sotaina, o uniforme do meu oficio de sacerdote. Um erro idiota. Tinha estado num serviço religioso e não me lembrara de a tirar. 0 velhote pensava que Plummer fizera um pacto com a Igreja, que tentara obter a prova de falsificação para a Igreja. Plummer tentou desfazer o engano, tentou vencer a corrente de trânsito e chegar até junto de Lebrun, mas era demasiado tarde. 0 velhote tinha voltado a meter-se dentro do táxi, e o veículo partira a toda a velocidade. Nenhuma esperança havia de o apanharmos, Nunca mais lhe pusemos a vista em cima, nem conseguimos localizá-lo. Nas listas telefónicas de Roma não existe nenhum Lebrun, nem nenhum registo de conservatória de bairro indicativo desse nome. Evaporou-se corno o fumo. Desapareceu por completo.
-De modo que nada conseguiu-disse Randall.
- Com excepção daquilo que acabo de contar. Todavia, revelei-lhe tudo o que aconteceu, exactamente como aconteceu, contei-lhe todos os nossos segredos, porque sei que alimenta as mesmas suspeitas que eu a respeito da nova Bíblia, e porque o senhor, RandalI, conseguiu urna coisa que a mim me está vedada. Mr. RandalI, foi hoje visitar o Professor Augusto Monti, e Monti é a única pessoa que deve saber o verdadeiro nome do falsário e a sua morada. Só Monti, e mais ninguém, poderá conduzir-nos até Lebrun. e até à prova concludente da falsificação. julga que ele nos ajudará?
Randall tirou o cachimbo da boca, agarrou na pasta e levantou-se.
- Sabe bem que Monti sofreu um colapso nervoso. Sabe que se encontra numa clínica para doentes mentais. Que ajuda nos poderá prestar?
-Mas os seus colegas na universidade informaram-nos que sofre apenas de um distúrbio mental temporário.
-Foi isso que lhes fizeram crer. Não é verdade. Estive com o Professor Monti, Tentei entabular com ele uma conversa racional, mas falhei redondamente. 0 Professor Monti está irremediavelmente louco.
0 Domince de Vroome pareceu acusar o golpe de uma tal revelação.
-Nesse caso, estamos irremediavelmente perdidos, desamparados. - Os seus olhos fixaram-se em Randall. - A não ser que haja mais qualquer coisa que o senhor saiba e que nos possa ajudar. Se assim for, ajudar-nos-á?
-Não!-respondeu Randall. Começou a atravessar o aposento, dirigindo-se para a porta, mas ao passar junto de de Vroorne parou.-Não, não o posso ajudar, e se pudesse não tenho a certeza se o faria. Não estou certo que exista uma pessoa como Robert Lebrun. Mas se na verdade existe, não tenho a certeza se deva ser acreditado, Obrigado pela sua gentileza e pela confiança que depositou em mim, Domince, mas vou regressar a Amesterdão. A minha busca da verdade terminou aqui, em Roma. Não tenho fé no seu Robert Lebrun nem na existência dele. Boa noite.
Mas ao deixar a suite de de Vroorne, percorrendo o corredor daquela ala do quarto andar e ao começar a subir o lanço de escadas até ao seu quarto, no andar de cima, Randall tinha a pesar-lhe na consciência o facto de não ter sido honesto com o clérigo holandês.
Randall tinha consciência de que mentira deliberadamente. Não tinha a mínima sombra de dúvida que, algures na cidade, existia um homem chamado Robert Lebrun, e que esse Lebrun possuía determinada prova da falsificação. Era uma coisa lógica, ajustava"se perfeitamente à sequência dos acontecimentos que já conseguira descobrir.
0 que restava a fazer era procurar Lebrun e obter a prova. Não voltaria ainda a Amesterdão, ainda não. Estava disposto a a fazer um esforço final para desenterrar a verdade, De momento, possuía uma pista, uma pista que talvez o levasse até Lebrun.
Só dependia de urna coisa: do êxito da chamada telefónica que ia fazer para Angela Monti.
No fim da manhã do dia seguinte, na sufocante atmosfera
do Estio romano, Steve Randall, sentado na fresca sala de espera da casa dos Monti, esperava que a governanta lhe trouxesse aquilo que tão ardentemente procurava.
Tudo o que pudesse seguir-se dependeria do telefonema que na noite anterior fizera a Ãngela. Não fora capaz de apanhá-la em casa, pois saíra com a irmã, mas depois da meia-noite ela telefonara-lhe para o Excelsior ao ser informada do telefonema dele.
Randall decidira ocultar-lhe o encontro inesperado que tivera com o Dominee de Vroome, bem como a revelação do clérigo que a extraordinária descoberta de Augusto Monti poderia não passar de uma fraude. Pensou que não havia razão para preocupar Ãngela com a chocante revelação de de Vroome, tanto mais que não fora ainda provada.
Ãngela perguntara-lhe:
-Partes então para Amesterdão pela manhã?
- Provavelmente só à tarde - respondera. - Há mais uma coisa que pretendo ainda fazer da parte da manhã. Uma coisa que, requer a tua colaboração. - Naquele ponto hesitara, para prosseguir tão casualmente quanto possível: - Ãngela, no dia em que o teu pai adoeceu... isto é, no período imediatamente posterior a levarem-no para o hospital... o que é que fizeram dos seus papéis, de todos os documentos que ele tinha no gabinete da universidade?
- Uma semana depois do meu pai ser internado na Villa Bellavista, Claretta e eu dirigimo-nos ao seu gabinete da universidade... ainda me recordo corno foi doloroso tratando-se de alguém muito querido de repente doente... e tirámos tudo o que havia de pessoal nas gavetas da secretária e ficheiros e metemos os objectos em caixas de cartão.
-Guardaram então tudo?
-Sim, todos os papelinhos e outros objectos que serviam pessoalmente ao pai. Com o pensamento animoso de que um dia viesse a precisar das coisas, embora saibamos agora que é pouco provável, transferimos tudo para nossa casa. De facto não tivemos ânimo para proceder a qualquer escolha, limitamo-nos a meter tudo dentro das caixas de cartão e, juntamente com o ficheiro de mão, guardámos as caixas numa arrecadação vaga. Ainda lá estão tal e qual vieram da universidade, nunca tive coragem de lhes mexer, parece-me que seria reabrir uma ferida dolorosa.
- Compreendo perfeitamente, Ãngela. Olha, importar-te-ias que eu fizesse uma busca aos objectos que estavam guardados na secretária de teu pai? Gostaria de dar uma vista de olhos pelos seus pertences de manhã, antes de partir de Roma.
-Não, não me importo. Não há muita coisa para procurar, mas está tudo à tua disposição. -Fizera uma longa pausa. Steve, afinal o que é que procuras?
- Bem, uma vez que o teu pai figurará em destaque nas cerimônias do dia em que o Novo Testamento Internacional vai ser anunciado ao mundo, pensei que pudesse encontrar algumas notas que pudessem falar por ele, dar uma ideia concreta da sua personalidade e ideias.
Angela inanifestara-se encantada,
-Que excelente ideia. Mas há só um óbice, não estarei em casa de manhã, eu e a minha irmã vamos sair com as crianças. Se preferires esperar até que regresse...
Randall interrompera apressadamente.
-Não, acho melhor não perder mais tempo. Posso procurar entre as coisas de teu pai se houver alguém em casa que me deixe entrar.
-Vou dar ordens à Lucrezia para te deixar entrar. Lucrezia é a nossa governanta, desde sempre que está ao serviço da família. Mas há um problema...
- Qual, Ãngela?
-...não poderes ler as notas de meu pai. Apesar de dominar muitas línguas, escrevia sempre as suas notas em italiano. Estou a pensar que se eu estivesse em casa ... mas tu preferes não atrasar o teu regresso, não é verdade? Bom ... ah!... é verdade, a Lucrezia é capaz de traduzir perfeitamente do italiano para o inglês, de modo que se vires alguma coisa de importância, que te interesse ou desperte a atenção podes pedir-lhe que verta para a tua língua. Mas se preferires leva o que quiseres para Amesterdão e quando eu regressar ajudar-te-ei. A que horas vens a minha casa?
- Pode ser às dez horas. Está bem?
- Excelente, A Lucrezia estará à tua espera e irá buscar à arrecadação as caixas com os papéis de meu pai. Queres ver também o ficheiro?
- Tens alguma ideia do que o ficheiro contém?
- Os textos das conferências, discursos e artigos publicados na imprensa da especialidade.
- E o que foi feito da correspondência particular?
- Meu pai fez uma limpeza semanas antes de ter adoecido. Precisava de espaço e rasgou tudo o que não tinha importância. Mas o resto encontra-se no ficheiro, especialmente artigos que podem ser úteis para a campanha de publicidade.
- Penso que sim. Mas de momento penso que esses artigos e súmulas de conferências e discursos levarão muito tempo a consultar. Será melhor deixá-los para mais tarde, depois de ter anunciado o Livro ao mundo, quando pudermos apreciar esse-s papéis os dois juntos.
-Sentir-me-ei imensamente feliz por poder ajudar-te. De modo que amanhã queres apenas ver o que está dentro das caixas?
-Exactamente. Só quero as coisas que estavam na secretária de teu pai.
Ao desligar o telefone sentiu-se penalizado pela mentira dita a Angela, mas consolou-se dizendo a si mesmo que não lhe podia revelar aquilo que procurava, pelo menos por enquanto. De momento só uma coisa importava: encontrar Robert Lebrun.
No dia anterior, enquanto escutara de Vroome, pensara em todas as eventualidades, na possibilidade de haver de verdade um Robert Lebrun e uma pista que o ajudasse a localizar o homem.
0 Dr. Venturi, involuntariamente, fornecera-lhe a primeira pista ao dizer,lhe que o Professor Monti tinha frequentes encontros com pessoas fora da universidade e que no dia em que sofrera o colapso mental acabara precisamente de regressar de uma entrevista com alguém.
A segunda pista fora-lhe fornecida por de Vroorne ao contar que no dia fatal do seu colapso Monti tivera uma entrevista com alguém chamado Robert Lebrun.
Ligadas as duas peças, começavam a dar um certo sentido figurativo ao quebra-cabeças. Era uma pista ténue, construída em palavras alheias e produto de conjectura, mas fosse como fosse constituía uma pista que era possível seguir para localizar o paradeiro de Lebrun.... e chegar à possível verdade.
Naquele momento, na quente manhã, mas gozando a frescura da sala de estar da residência dos Monti, situada perto da Piazza del Popolo, Randall sentia-se bem mais perto de qualquer revelação.
Era uma residência antiga, mas que havia sido remodelada e decorada com gosto. A sala de estar estava mobilada com peças da escola veneziana, em tons verde-ouro, mobílias preciosas e que lhe conferiam um formidável senso de conforto. Lucrezia, a governanta, já entrada em anos e com um daqueles seios desenvolvidos que são produto exclusivo das mulheres latinas em idade canónica e maternal, com um aspecto de irrepreensível asseio, recebera-o falando um inglês mascavado mas muito funcional. Servira-lhe café com bolo caseiro e entregara-lhe um dicionário italiano-inglês e um vocabulário comparado que Ãngela havia deixado. Depois apressara-se a ir à arrecadação buscar as caixas de cartão com os pertences da secretária do professor.
Randall deslocouse até junto da mesa redonda onde Lucrezia colocara a bandeja com o café e serviu-se. Ao mesmo tempo que ia saboreando a negra bebida, pensou que beneficiava já da vantagem de Ãngela e a irmã terem preservado, sem lhes tocar, os objectos pessoais do pai. Mas logo a seguir surgiram as perguntas intimas críticas: Teria o Professor Monti, naquele longínquo dia de Maio de há uns anos e dois meses, deixado na verdade o seu gabinete da universidade para se ir encontrar com Lebrun? E se na verdade tivesse ido, um homem tão ocupado como o Professor Monti teria escrito qualquer apontamento do encontro? Como todos os sábios distraídos não se teria esquecido de tomar apontamento? Ou não teria tido receio, dado o melindre do caso, de registar tal entrevista?
Randall acabara de beber o café quando Lucrezia surgira com uma grande e pesada caixa de cartão. Randall acorrera a ajudá-la, mas antes que o conseguisse já ela colocara a caixa no chão.
-Faça favor de ir procurando nesta caixa, enquanto eu vou buscar outra.
Logo que ela desapareceu, Randall sentou-se na carpete, cruzou as pernas como um ioga e, depois de tirar a tampa da caixa, começou a retirar o conteúdo.
Pôs de parte as pastas azuis cheias de papéis relativos a esquemas de pesquisas, o pesado tinteiro de ônix e vários outros objectos funcionais de secretária.
Um professor com tantas entrevistas pessoais a cumprir, com tantos compromissos, devia normalmente tomar quaisquer apontamentos, talvez numa agenda de secretária ou num bloco notas.
Randall não fazia a mais leve ideia do material que se utilizava em Itália para tais fins - não quisera perguntar a Ãngela - mas devia haver alguma coisa, qualquer registo, qualquer nota solta, a não ser que Monti retivesse tudo no seu cérebro, o que devia ser o mais improvável.
Tirou mais documentos, as últimas cópias dactilografadas para conferências e discursos que nunca chegara a pronunciar, correspondência que parecia requerer resposta e que jamais a obteria.
Randall, cuidadosamente, mergulhou a mão nas profundezas da caixa, rebuscou e tirou depois a mão onde surgiu uma agenda, com uma capa de couro, de cor castanha, com um grande «clip» que apanhava a capa frontal e um certo número de páginas interiores. Na capa podia ler-se, em italiano, em letras douradas, gravadas: Agenda.
As Pulsações do coração de Randall aceleraram-se. Abriu a agenda na página que o «clip» marcfta e leu a data: 8 Maggio. Na página, de. linhas, estavam marcadas as horas do dia: manhã, tarde e noite. Várias das linhas estavam preenchidas, ao que parecia pela caligrafia do Professor Monti.
Os olhos de Randall percorreram lentamente as linhas da agenda de secretária, estudando atentamente cada uma das anotações feitas.
10.00 horas . . . Conferenza con professori
12.00 horas . . . Pranzo con professori
14.00 horas . . Visita del Professore Pirsche alla Facoltà
Verificou o sentido das principais palavras por intermédio do dicionário italiano-inglês. Não lhe fornecia qualquer pista: uma conferência com professores, um almoço com alguns professores da faculdade e Monti aguardando a visita de um professor estrangeiro (aparentemente alemão-pelo nome) ao seu gabinete.
Os olhos de Randall continuaram a seguir a página e, subitamente, parou: 16.00 horas
Appuntamento com R.L. da Doney. Importante.
Randall ficou como que petrificado. Com lentidão, traduziu.
16.00 significa quatro horas da tarde. R. ligava com Robert. L. com Lebrun.
Doney... era com certeza o Donney's, café-restaurante mundialmente famoso - o gran caffè de Roma - situado na Via Vittorio Veneto, perto do hotel Excelsior.
Appuntamento con R.L. da Doney. Importante. Significava pura e simplesmente - Encontro com Robert Lebrum no Doney. Importante.
Impressionado, Randall considerou que já tinha descoberto aquilo que procurava.
Naquela tarde de Maio do ano transacto o professor havia anotado que deveria ir encontrar"se com Robert Lebrun ao café Doney. Fora precisamente naquele local, segundo de Vroorne, que Lebrun revelara ao Professor Monti a sua alegada falsificação, e fora a partir desse momento que Monti começara a resvalar para a névoa da demência.
Uma ténue indicação do passado recente, mas uma indicação fidedigna.
Randall colocou a agenda na caixa lançou apressadamente as outras coisas por cima, e levantou-se.
Lucrezia entrava na sala de estar transportando uma segunda caixa.
-Esta caixa só tem livros científicos, jornais, nada mais - anunciou.
Rápido, Randall atravessou a sala ao encontro da governanta. -Obrigado, Lucrezia, já não preciso de ver o conteúdo dessa caixa. Encontrei aquilo que buscava. Mil agradecimentos.
Prantou um sonoro beijo na rubicunda face da governanta e deixou-a, de boca aberta, enquanto se precipitava para a porta.
Randall saiu do táxi em frente da porta do Excelsior, mas
não entrou, passou para além do sumptuoso pórtico, para além do grupo de motoristas, sem nada que fazer, que conversavam animadamente ao sol e parou, depois, no passeio a observar o local onde Robert Lebrun, há um ano e dois meses atrás, fizera a tremenda revelação ao Professor Monti.
0 café Doney estava dividido em dois sectores. A parte do restaurante era lá dentro, projectando-se por uma extensão que formava parte do andar térreo do Hotel ExccIsior. Quanto ao café, cujas mesas estavam colocadas fora, formando uma esplanada, ocupavam o resto do comprimento do passeio da Vittorio Veneto, desde o parque de estacionamento do hotel até à mais próxima esquina.
0 café Doney consistia em duas longas filas de mesas e cadeiras. De um lado mesas encostadas às grandes vidraças que formavam o corpo principal do restaurante depois uma passagem a meio, não muito larga, e do outro lado mais mesas quase encostadas aos carros estacionados, projectando-se para o cimento da Vittorio Veneto, onde o trânsito tem uma intensidade que se mantém quase durante as 24 horas do dia. A passarelle entre os dois corpos de mesas do café servia para passagem dos peões e estacionamento dos criados.
Contemplando o célebre ponto de reunião romano exposto ao calor impiedoso do sol, Randall sentiu-se grato que o Doney tivesse dois soberbos e ampos toldos que davam uma sombra convidativa. Ãquela hora, pouco antes do meio-dia de sábado, o café revelava-se um sítio convidativo, quase propicio à caçada que Randall estava a desenvolver.
Pelas mesas, espalhados, viam"se poucos clientes e na sua maioria turistas, pelo menos com aparência disso. 0 cenário constituía quase uma natureza morta, e até mesmo aqueles que se movimentavam o faziam de uma maneira estudadamente lenta. Sim, pensou Randall, tratava-se daquele inferno tórrido que era Roma em fins de junho, urna atmosfera que tendia a anular tanto a ambição como a iniciativa de uma vida dinâmica.
Com a limitada informação que possuía, Randall considerou qual a melhor forma de proceder. Há um ano c dois meses atrás, lembrou-se, fora Robert Lebrun quem marcara o local de encontro ao Professor Monti, logo o falsário devia ser frequentador do local. Se a sua dedução estivesse certa, era muito possível que Lebrun fosse uma figura conhecida dos criados que serviam no Doney.
Randall observou vários dos sonolentos criados. Todos eles envergavam um casaco curto branco, espécie de jaqueta, com dragonas azuis, franjadas, calças pretas com uma lista de veludo lustroso, camisas brancas e gravatas pretas. Junto à primeira fila de cadeiras da esplanada, da parte de dentro do passeio, vislumbrou um homem já entrado em anos, com um todo de autoridade na figura. 0 homem envergava uma jaqueta azul e tinha um lacinho preto, em vez da gravata dos outros criados, para além de um ar de energia como quem estivesse habituado a chefiar. Randall deduziu que devia ser o chefe dos criados da esplanada.
Randall atravessou a faixa de passagem, sentindo o imediato alivio da sombra do toldo, e foi-se sentar numa das mesas de esquina, voltado para o trânsito. Após um ligeiro compasso de espera, um dos criados deu fé da sua presença e apressou-se a chegar até junto da mesa que ocupara, apresentando-lhe a colorida lista que trazia na mão.
Ao abrir a ementa, Randall perguntou casualmente: -0 chefe-de-mesa está perto?
-Si. -0 criado voltou-se para o sítio onde sc encontrava o homem da jaqueta azul e chamou: - Júlio!
0 chefe, Júlio, avançou para o local com tanta rapidez quanta lhe permitiam as suas pernas, trazendo já em riste a caneta e o bloco de apontamentos.
-As suas ordens, senhor,
RandalI, com ar distraído, percorreu a lista. Todas as coisas figuravam em duplicado, um dos lados para os menus em italiano e o outro em inglês. Os olhos de Randall foram atraídos pelo titulo de Gelati, e logo abaixo Granita dí limone- limonada - 500 liras.
-Quero uma limonada -pediu Randall. Júlio tomou nota.
-Mais nada?
- Não.
Júlio tirou a folha de apontamento, estendeu o pedido ao criado e apressou-se a retirar a lista.
- Ali, é verdade - disse Randall casualmente - queria mais uma coisa, se fosse possível. Mas não tem nada a ver com a vossa lista. - Randall levou a mão ao bolso interior do casaco, tirou a carteira e puxou três enormes notas de 1000 liras. - Sou um escritor americano e necessito de unias certas informações. Talvez mas possa dar.
A empedernida face profissional do cliéfe de criados manifestou vincos de interesse, Os olhos cravaram"se nas liras que Randall tinha na mão.
-Talvez seja possível, Signor. Sentir-me-ei contente se puder ajudá-lo.
Randall dobrou as notas e nieteu-as na mão do chefe. -Júlio, há quanto tempo trabalha você no Doney?
-Há cinco anos, Signor. -Ao mesmo tempo meteu apressadamente as notas no bolso, murmurando: - Grazie.
-Estava a trabalhar aqui em Maio do ano passado? Ou estaria nessa altura em férias?
-Estava a trabalhar aqui... um pouco antes da verdadeira estação do turismo, mas mesmo assim uma altura em que estamos sempre cheios -respondeu, agora com um sorriso amigável a bailar-lhe nos lábios.
-Vou dizer-lhe aquilo que procuro saber. Estou a realizar um trabalho de investigação e pretendo encontrar uma pessoa que não veio há muito tempo e que, segundo me disseram é frequentadora do Doney. Um amigo meu encontrou-se com essa pessoa aqui, em Maio do ano passado, e foi por esse amigo que obtive a informação da pessoa que procuro ser cliente deste café. Você conhece normalmente os frequentadores assíduos?
Júlio gabou-se.
-Claro que sim. Não por se tratar do meu trabalho, mas porque também se torna inevitável entrar em relações e conhecer os nossos devotados clientes. Conheço-os a quase todos pelo nome e até sou capaz de saber descrever o carácter e a vida de cada um deles. É precisamente isso que toma a minha ocupação tão compensadora. Quem é a pessoa que o senhor procura?
- Um francês, mas que reside em Roma há muito tempo. Não faço a menor ideia do ritmo da sua frequência do Doney, mas o meu amigo disse-me que costuma vir aqui, ou pelo menos costumava. -RandalI, tomou fôlego e disse depois rogando mentalmente que as palavras que ia proferir fosse o seu «abre-te sesamo»: - Chama-se Robert Lebrun.
0 chefe não reagiu. Lentamente repetiu:
- Lebrun...
- Robert Lebrun - insistiu Randall.
0 chefe franziu a testa, vasculhando no seu cérebro.
- Estou a ver se me lembro... - Calou-se, aparentemente receoso de ter que voltar a desembolsar a gorgeta. - ...Mas não funciona. De facto não temos nenhum cliente regular com esse nome. Se tivéssemos com certeza que me lembraria.
Um véu de tristeza obscureceu a alma de Randall. Tentou lembrar-se da descrição de Lebrun feita pelo Domince de Vroome. -Se eu lhe disser como ele é talvez se lembre...
-Diga, por favor.
- Deve andar pelos oitenta anos. Usa óculos. Tem uma cara muito enrugada. É quase corcunda. Deve ter pouco mais ou menos a sua altura. A descrição ajuda alguma coisa?
Júlio manifestava o mesmo ar de ignorância e apreensão.
- Sinto muito, mas bem vê, são tantos...
Repentinamente Randall lembrouse de outra coisa que poderia ser importante.
-Espere, há uma coisa que você teria de notar à viva força.
0 homem coxeia ao andar por ter uma perna artificial. Imediatamente a cara de Júlio se iluminou.
- Sim, temos um cliente assim. Não sabia que ele era francês devido ao seu italiano ser tão impecável, devo dizer até que é um perfeito espelho de cavalheiro romano. Mas o nome dele não é Lebrun. Na verdade não sei qual o verdadeiro nome dele, exceptuando aquele que ele nos dá. Depois de tornar demasiados cálices de Pernod ou Negroni, desata a brincar e diz que o seu nome é Totí, Enrico Toti. Trata-se de unia graça romana. Não compreende?
- Não.
Júlio apontou com o dedo para além da Via Vittorio Veneto.
- Nos jardins BQrghese, entre as muitas estátuas que adornam as áleas, há uma, uma enorme escultura de um homem nu, numa atitude heróica, colocada sobre um plinto de mármore quadrado.
0 homem nu só tem uma perna, está encostado a um rochedo e o coto da perna que lhe falta confunde-se com o rochedo. Na base da estátua há unia inscrição onde se lê: En?*o Totí. Diz também que morreu em 1916. Esse Toti, embora tendo uma só perna, apresentou-se como voluntário para o exército italiano durante a guerra contra o Império Austro"11ungaro. Mas claro que foi rejeitado. No entanto, voltou a apresentar-se vezes sem conta, até que os superiores do exército deixaram de lhe recusar o alistamento, Pois Toti, com a sua perna e o seu coto, lutou bravamente e foi consíderado como um grande herói italiano. Por isso o nosso cliente brincalhão, quando está já um pouco bebido, gosta de dizer que o seu nome é Toti e que foi um herói de nomeada. Para nós, aqui no Doney, é o único nome com que o relacionamos.
-Toti? Bom, não tem nenhumas parecenças com Lebrun, pois não?-Claro que ele pode ter os nomes que quiser. Repentinamente Randall viu que o chefe, pensativamente,
exibia um rasgado sorriso, como alguém que se está a lembrar de uma coisa engraçada.
-Alguma novidade, Júlio?
-Lembrei-me agora de um outro nome. Parece uma tolice, mas...
-Um outro nome? Refere-se a esse Toti?
- Uma coisa tonta, muito tonta. Mas as raparigas da vida, que andam a calcorrear as ruas em volta dos jardins Borghese... Compreende, hem ... ? derarn-lhe um outro nome, puseram-lhe uma alcunha por ele ser tão intelectual e pretender ser tão elegante, quando na verdade é um pobre de Deus que só merece compaixão. Chamam-lhe... -Júlio, não pôde conter um risinho-_Duca Mínimo, que significa Duque de Nada. É com essa alcunha que elas o arreliam.
RandalI, excitado, agarrou o braço de Júlio.
- É ele sem dúvida, o homem que eu procuro! Toti aliás Duca Mínimo aliás Roberto Lebrun.
- Sinto-me contente, Signor - disse Júlio, sentindo que as suas 3 000 liras estavam a salvo.
- Ele continua ainda a frequentar o Doney? - quis saber Randall.
- Continua. É um dos nossos mais fiéis clientes quase todas as tardes quando o tempo está bom. Vem cá para tomar o seu aperitivo todas as tardes às cinco horas, antes da hora de ponta, manda vir o Pernod 45 ou o Negroni, diz umas quantas graças e entretem-se a ler o jornal.
-Esteve cá ontem?
- Ontem não trabalhei no turno que abrange as cinco da tarde. Hoje é que estou nesse turno. Mas um momento que vou ja saber... Júlio dirigiu-se a três criados que estavam um pouco afastados
e fez-lhes uma qualquer pergunta, Os homens riram-se e acenaram as cabeças vigorosamente.
0 chefe regressou até junto de Randall a sorrir.
-Sim, Toti... ou Lebrun como o senhor lhe chama... esteve aqui ontem à hora habitual. É muito provável que hoje também venha tomar o seu aperitivo às cinco.
- Excelente - exclamou Randall - melhor do que bom. Levou de novo a mão ao bolso interior, extraiu a carteira e tirou dela uma nota de 5 000 liras. Meteu a nota na mão do espantado Chefe, dizendo: - Júlio, trata-se de uma coisa muito importante para mim...
-Obrigado, Signor, muito obrigado. Se puder fazer mais alguma coisa creia que estou ao seu dispor.
-Bom, virei aqui quando faltar um quarto para as cinco. Quando Toti chegar, mostre"mo. Eu tratarei do resto. Se acontecer o homem vir mais cedo do que o costume, telefone para mim, estou hospedado no Excelsior, 0 meu nome é Steve Randall. Não se esquece? Steve Randall.
-Não esquecerei o seu nome, Sir... Steve Randall.
-Só mais uma coisa, Júlio. Como é que o nosso comum amigo Toti ou Lebrun chega aqui todos os dias? Vem de táxi ou a pé?
- Chega sempre a pé.
- Então deve viver nas vizinhanças. Não conseguiria percorrer grande distância com uma perna artificial, pois não?
-Com certeza que não.
- Muito bem - disse Randall, levantando-se. - Obrigado por tudo, Júlio. Até logo às cinco horas.
- Então, Sir, não torna a sua limonada gratinada?
- Não, ofereço-lha a si, com os meus cumprimentos.
Teve que esperar umas inquietas cinco horas nos seus aposentos do quinto andar do Excelsior.
Tentara concentrar-se no pensamento daquilo que se iria seguir. Quando chegara ao quarto lançara a pasta para cima da cama e extraíra dela a correspondência que carecia de resposta mais imediata. Depois instalara-se à mesa de tampo de vidro situada junto da janela e lançara-se ao trabalho.
Escrevera uma carta de rotina, como o pode fazer um filho afectuoso, ao pai e à mãe, incluindo saudades à irmã, Clare, e ao tio Herman, endereçando-a para Oake City. Rabiscara uma curta missiva, mais de carácter turístico, descrevendo paisagens e ambientes, do que propriamente paternal a sua filha Judy, em S. Francisco. Iniciara uma carta para ser entregue a Jim McLoughlin (onde quer que ele estivesse), explicando que a firma Randall Associates o tentara localizar durante várias semanas para lhe fazer saber que circunstâncias imperativas e ponderosas (não mencionando a venda às Empresas Cosmos, de Towery) forçavam a firma a não poder tomar conta dos serviços acordados com o Instituto Raker. Todavia, não fora capaz de finalizar a missiva, acabando por rasgá-la em rail pedaços.
Devido a não ter respondido às últimas cartas do seu advogado, considerara fazer um telefonema para Thad Crawford, em Nova lorque, mas imediatamente se dera conta de que lhe faltava a paciência. Embora não sentisse apetite, telefonara para o serviço de refeições aos quartos e encomendara um almoço ligeiro, mas o almoço ligeiro transformara-se numa refeição - cannelloni com cogumelos e frango estufado com molho de tomate e pimentos que comera compulsivamente devido ao aumento de ansiedade, à medida que as horas iam passando.
Pensara também fazer saber a Ãngela que continuava em Roma, mas acabara por se decidir contra tal telefonema por não querer dizer-lhe mais mentiras nem ir enchê-la de apreensões. Considerara ligar para Amesterdão para explicar os motivos da sua vadiagem, uma vez que faltavam apenas seis dias para o anúncio do Novo Testamento Internacional, mas acabara por resolver adiar a chamada - e o desencadear da inevitável ira de George Weeler - até ter-se encontrado com Robert Lebrun.
Por muito que tentasse não pensar em Lebrun, não conseguira afastar o homem dos seus pensamentos. Percorrera, em largas e impacientes passadas, o espaço do seu quarto, até saber de cor todos os pormenores do desenho fabuloso da carpete oriental que revestia o chão, os objectos existentes e todas as cores que o cercavam. E de cada vez que voltava as costas à janela e percorria o aposento em sentido inverso, via o seu rosto cheio de vincos de preocupações reflectir-se no espelho da parede fronteira.
Há pouco mais de duas semanas que chegara a Amesterdão para realizar um trabalho vital e para aprender por si mesmo o significado da fé. Todavia, tinha passado metade desse tempo deslocando-se a Roma naquele momento dramático - a -realizar esforços tendentes a aniquilar a única coisa em que seria possível crer com todo o seu ser.
Tudo começara com a fifia de Bogardus. Mas talvez que aquela ânsia de extermínio tivesse sido mantida viva por causa a fíiía Randall. A fifia RandalI, como Ãngela lhe apontara, como todas as pessoas relacionadas com ele, por isto ou por aquilo, já várias vezes lhe haviam chamado a atenção... uma fifia, uma falha fomentada por um cinismo inflexível. De modo que a sua perseguição era loucura, a menos que o seu raciorialismo fosse honesto. E o seu racionalismo repousava no facto substancial de uma pessoa ter fé sem se subordinar a uma crença mística absoluta, cega, sem objecções. Sim, acreditava que uma pessoa devia considerar uma realidade tangível.
E todo aquele ciclo vicioso o conduzira de novo a Robert Lebrun, fosse como fosse, em Lebrun repousava a derradeira resposta.
Naquele momento, sentado a uma das mesas da esplanada do Doney- preocupado e inquieto -continuava devorado pelos mesmos pensamentos. já não sabia bem se desejava que Lebrun aparecesse ou não. Só tinha a certeza que desejava que se o encontro tivesse de se dar, pelo menos que tudo terminasse o mais breve possível.
Durante todo o tempo que já decorrera desde que se sentara na esplanada, quando faltava um quarto para as cinco, Randall consultava o relógio de minuto a rninuto, exasperado porque o ponteiro percorresse tão lentamente o mostrador.
Passavam seis minutos das cinco. Inclinou-se para pegar no copo e beber mais um trago do seu Dubonnet e, nesse preciso momento, viu que Júlio, o chefe de mesa, se dirigia na sua direcção.
Em voz baixa, mantendo-se rigidamente perfilado, Júlio disse-lhe:
-Signor RandalI, ele está cá.
- Onde?
-Atrás de mim, nesta mesma fila de mesas, na terceira a contar do fundo, nas minhas costas. Pode com certeza reconhecê-lo. Olhe.
Júlio afastou-se um pouco e Randall olhou.
Era exactamente como de Vroorne o descrevera, mas de certa maneira todo o seu conjunto se manifestava ainda mais carregado.
0 homem afigurava-se ainda mais baixito e mais corcovado do que Randall esperava. Cabelo castanho, ralo, o rosto sulcado por uma rede de rugas que formavam profundos vales e escavadas ravinas. Os óculos redondos, de aros de tartaruga e grossas lentes. Envergava um fato claro, de Verão, mas com o casaco apenas colocado sobre os ombros, no estilo tão peculiar dos italianos e dos jovens aspirantes a actores de cinema. Tinha um ar de pessoa envelhecida, mas não de fragilidade. Estava absorvido na leitura de um jornal e na mesa, em frente dele, via-se um copo.
Randall levantou-se impulsivamente.
Ao chegar ao seu destino, afastou um pouco a cadeira em frente do ocupante da mesa e sentou-se sem cerimónias. -Monsieur Robert Lebrun, espero que me dê o prazer de aceitar uma bebida e que me permita apresentar-me.
Lebrun baixou um pouco o jornal e fixou Randall com uns olhos que mostravam uma sombra de impaciência. Os seus lábios húmidos movimentaram-se, mostrando uns dentes postiços mal fixados que se removiam dentro da boca, e foi numa voz rouca, como o crucitar de um corvo, que perguntou:
-Quem diabo é você?
- Chamo-me Steve Randall. Ocupo-me de publicidade e sou escritor. Americano, de Nova Iorque. Tenho estado aqui à espera de o conhecer.
-E o que é que pretende? Chamou-me Lebrun... Onde é que ouviu esse nome?
Os modos do francês eram tudo menos cordiais, e Randall viu que tinha de apressar as suas explicações.
-Soube que o senhor foi em tempos amigo do Professor Augusto Monti, isto é que foram uma espécie de sócios numa empresa arqueológica.
- Monti? 0 que é que sabe de Monti?
- Sou amigo íntimo de uma das filhas dele. Na verdade ainda ontem mesmo me avistei com o Professor Monti.
Lebrun mostrou-se imediatamente interessado, mas cauteloso. -Diz que viu Monti? Se assim foi, quer ter a bondade de me dizer em que sítio.
Tudo okay, pensou Randall. Começava o primeiro teste. -Na Villa Bellavista. Visitei-o, falei com ele e falei depois com o médico que o trata, o Dr. Venturi. - Randall hesitou, mas...
Irving Wallace
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