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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PATENTE DE CORSO / Patrick O'brian
A PATENTE DE CORSO / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

Depois de ser afastado da marinha por um delito que não cometeu, Jack Aubrey aceita a oferta de seu amigo Maturin, enriquecido ao receber uma herança, de assumir o comando da mítica Surprise para fazer o corso pelo canal da Mancha. Depois de alguns extraordinários êxitos na luta contra os franceses, Aubrey parece em uma posição que não pode ser melhor para que seu cargo lhe seja restituído, e para consegui-lo aceita entrar na política. Mas uma parte importante do romance centra-se em Maturin, que parece a ponto de conseguir reabilitar seu matrimônio, ainda que para isso deva viajar para a Suécia onde, conforme suas últimas notícias, sua esposa tem um novo amante. O tema da droga (Maturin esteve experimentando o láudano e a folha de coca) é outro dos pontos centrais do relato, assim como a música, neste caso as aberturas operísticas italianas.


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CAPÍTULO 1
Desde que Jack Aubrey foi expulso da Armada, desde que seu nome foi apagado da lista de capitães de navio e sua antiguidade foi invalidada, parecia que vivia em
um mundo completamente distinto. Ainda que tudo fosse familiar, dos odores da água do mar e da lona alcatroada da exárcia até o suave balanço da coberta sob seus
pés, tudo havia perdido sua essência e ele tinha a impressão de ser um estranho.
Outros oficiais expulsos por um conselho de guerra estavam pior do que ele, como, por exemplo, os dois que haviam subido a bordo com apenas um baú para ambos. Comparado
com eles Aubrey era muito afortunado e, ainda que isto podia proporcionar-lhe sossego, não contribuía para levantar-lhe o ânimo. Tampouco contribuía para isso que
não houvesse cometido o delito pelo qual lhe haviam sentenciado.
Apesar de tudo, era inegável que Jack Aubrey não estava em uma situação desesperada. A Armada havia vendido sua velha mas bonita fragata Surprise, que Stephen Maturin
comprara para convertê-la em um barco de guerra privado (quer dizer, um barco corsário), para perseguir ao inimigo, e ele tinha o comando.
A fragata estava ancorada com uma só âncora em um porto isolado em que um grande banco de areia e as bruscas mudanças da maré o tornavam perigoso. Os comerciantes
e os oficiais da Armada evitavam o lugar, enquanto que eram frequentados por contrabandistas e corsários, muitos de cujos rápidos barcos se alinhavam ao longo do
cais. Jack deu a volta ao chegar ao final de um dos passeios que dava mecanicamente pelo lado de estibordo do castelo de popa, olhou para o povoado e voltou a se
perguntar qual era a causa de achar Shelmerston tão parecido com os povoados de piratas e bucaneiros que ainda restavam nas Antilhas e Madagascar, e que tão bem
conheceu quando navegava na Surprise como guarda-marinha. Apesar de que em Shelmerston não havia uma praia de brilhante areia coralínea nem coqueiros flexíveis,
parecia com esses portos; talvez a semelhança consistisse nas tabernas chamativas, o ambiente em que predominavam a desordem e o dinheiro fácil, o grande número
de prostitutas e o fato de dar a impressão de que somente uma brigada recrutadora sumamente valente e bem armada tentaria agir ali. Jack também viu que dois botes
zarpavam da costa em direção à Surprise e que os dois competiam para chegar primeiro; contudo, em nenhuma estava o doutor Maturin, o cirurgião da fragata (poucos
sabiam que também era seu dono), que devia subir a bordo esse dia. Em uma o timoneiro era uma belíssima jovem ruiva, recém chegada ao povoado, que se mostrava muito
contente de encontrar-se ali e a quem os tripulantes admiravam muito e a cujos gritos agudos respondiam com tal heroísmo que um deles rompeu um remo. Ainda que não
podia dizer-se que Jack Aubrey frequentasse o trato com prostitutas, tampouco observava o celibato. Desde sua juventude a beleza havia sido para ele fonte de prazer,
e essa jovem animada e tão entusiasmada era exageradamente bonita; contudo, limitou-se a considerar isto com objetividade e, em tom inexpressivo, indicou para Tom
Pullings:
- Não deixe que essa mulher suba a bordo e admita só a três dos melhores.
Voltou a dar passeios pensativo enquanto Pullings, o contramestre, o condestável e Bonden, seu própio timoneiro, testavam os marinheiros. Todos eles tinham que subir
a exárcia, largar e aferrar uma joanete enquanto se contava o tempo com um relógio de areia, depois descer e apontar um canhão, depois disparar com um mosquete em
uma garrafa pendurada de um penol e, por último, fazer um nó de envergue frente a uma multidão de excelentes marinheiros. Em geral, dotar de tripulação a um barco
do rei era algo difícil que se conseguia com a ajuda das brigadas recrutadoras, rogando humildemente que os barcos recrutadores trouxessem um grupo de homens, ainda
que fossem desajeitados delinqüentes, e enviando marinheiros para navegar de um lado a outro do canal para sacar tripulantes dos mercantes que iam de regresso à
Inglaterra ou recrutando homens nos povoados costeiros; contudo, raras vezes tinha-se êxito e havia que zarpar com cem tripulantes a menos dos necessários. Mas para
o capitão da Surprise armar a fragata em Shelmerston era como armá-la no paraíso, pois ali se recebiam de imediato os apetrechos que se encomendavam aos dispostos
e competitivos provedores cujos armazéns bem sortidos ficavam junto ao cais e, ademais, não era necessário recrutar homens forçosamente nem rogar-lhes que se alistassem
depois de reunidos com o toque do tambor. Há muito tempo os marinheiros sabiam que Jack Aubrey era um capitão audaz e que tinha tanta sorte em conseguir butins que
o chamavam de Jack Aubrey o Afortunado; e quando se difundiu a notícia de que sua fragata, que navegava de maneira extraordinária quando habilmente manobrada, converter-se-ia
em um barco corsário que estaria sob seu comando, muitos tripulantes de barcos corsários correram em tropel para oferecer-lhe seus serviços. Jack podia escolher
aos marinheiros, algo que nunca lhe ocorrera quando estava a bordo dos barcos do rei em tempo de guerra, e agora lhe faltavam somente três para completar o número
de tripulantes que estimava adequado. Muitos dos marinheiros e suboficiais eram antigos tripulantes da Surprise que haviam sido licenciados depois de atracar a fragata
na dar-se e que provavelmente haviam se esquivado das brigadas recrutadoras desde então, ainda que Jack suspeitava que vários haviam desertado dos barcos do rei
e que, em alguns casos, o haviam feito com ajuda de seus amigos íntimos (como Heneage Dundas) ao comando deles. Naturalmente, alguns tripulantes eram fiéis seguidores
seus, como seu dispenseiro e seu timoneiro e alguns quantos homens mais que não nunca o haviam abandonado. Vários dos marinheiros que não conhecia procediam de mercantes,
mas a maioria eram contrabandistas e tripulantes de barcos corsários, marinheiros de primeira curtidos que não estavam habituados à disciplina e muito menos ao cerimonial
que a rodeava (ainda que quase todos tenham sido recrutados forçosamente alguma vez), mas estavam dispostos a servir às ordens de um capitão a quem respeitavam.
Nesse momento, aos olhos dos tripulantes de barcos corsários Jack era mais respeitável do que ele supunha. Ainda que tenha perdido peso, ainda era muito largo de
ombros e parecia exageradamente alto; tinha um aspecto mais velho e sua cara rosada e de expressão alegre agora estava mais delgada e tinha um gesto grave com um
toque de ferocidade, pelo que qualquer um que conhecesse bem a rudeza dos marinheiros quando lhe via compreendia que não podia faltar a respeito de um homem com
uma cara assim, pois se alguém o ofendesse ele golpearia sem avisar e as consequências seriam terríveis.
Provavelmente a Surprise era a embarcação em serviço de sua categoria que tinha uma tripulação mais eficiente e profissional, o que podia encher de alegria ao seu
capitão; contudo, ainda que ao observar isto Jack havia sentido certa satisfação e tanta alegria como podia hospedar seu coração, nenhum destes sentimentos era profundo.
Parecia que o coração de Jack Aubrey havia endurecido para poder suportar sua desgraça sem se romper, e esse endurecimento o transformara em um homem tão pouco capacitado
para experimentar emoções como um eunuco.Talvez esta explicação fosse simples demais, mas a verdade era que em outro tempo o capitão Aubrey, como seu herói, Nelson,
e muitos de seus contemporâneos, chorava com facilidade (chorara de alegria no tope de um mastro do primeiro barco que esteve sob seu comando, umedecia com suas
lágrimas a parte inferior de seu violino quando tocava fragmentos exageradamente comoventes e havia soluçado nos funerais de muitos de seu companheiros de tripulação,
tanto no mar como em terra) e agora tinha tão pouca sensibilidade e os olhos tão secos como era possível a um homem. Quando se despediu de Sophie e das crianças
em Ashgrove Cottage só sentiu um nó na garganta, pelo que sua despedida parecera rude e sem afeto; e, por outro lado, desde que subira a bordo não tocara o violino,
que ainda permanecia em seu estojo forrado de lona alcatroada.
- Estes são os três melhores marinheiros, senhor, com sua permissão - disse o senhor Pullings, tirando o chapéu -. Harvey, Fisher e Whitaker.
Os três se tocaram a testa com a mão. Eram contrabandistas e excelentes marinheiros (do contrário não teriam passado nas exageradamente duras provas) e, como eram
primos, tinham o mesmo nariz comprido, a mesma cara curtida pelos elementos e o mesmo gesto astuto. Aubrey lhes olhou com certa satisfação e disse:
- Harvey, Fisher e Whitaker, alegro-me de que se encontrem a bordo, mas saibam que só se ficarão se forem do agrado do cirurgião e obtiverem a sua aprovação. - voltou
a olhar para a costa, mas não viu nenhum bote com o cirurgião a bordo, e continuou -: E já conhecem as condições de pagamento e de divisão do butim, assim como as
normas de disciplina e os possíveis castigos, não é?
- Certamente, senhor. O timoneiro nos as leu.
- Muito bem. Podem subir seus baús a bordo.
Começou a dar passeios outra vez enquanto repetia: "Harvey, Fisher, Whitaker". Um capitão tinha o dever de saber os nomes de todos seus homens e conhecer um pouco
sua vida, o que até agora não lhe havia resultado difícil nem mesmo em navios de linha com seiscentos ou setecentos tripulantes. Ainda recordava o nome dos marinheiros
da Surprise, com os quais havia compartido a última viagem pelo Pacífico Sul, e, em alguns casos, muitas outras viagens anos atrás; contudo, lamentavelmente, esquecia
os nomes dos novos marinheiros e inclusive tinha que fazer um esforço para recordar o de seus oficiais. Isto não ocorria com Tom Pullings, que havia servido sob
suas ordens como guarda-marinha e agora era um capitão da Armada Real com meio soldo, um excelente capitão sem esperanças de conseguir um barco, e atualmente era
seu primeiro oficial; tampouco ocorria com o segundo e o terceiro, ambos antigos oficiais do rei, a quem conhecia bastante bem e cujos julgamentos ante um conselho
de guerra recordava claramente (a West lhe haviam processado por bater-se em duelo e a Davidge por um complicado assunto relacionado com a precipitada firma dos
livros de um desonesto contador sem havê-los olhado); mas só podia recordar o nome do contramestre, Bulkeley, por associação de idéias. Por sorte, nenhum carpinteiro
se opunha a que lhe chamassem de Lascas nem nenhum condestável a que lhe chamassem de Mestre Condestável, e, por outro lado, estava seguro de que, com o tempo, lembraria
os nomes dos suboficiais que pouco conhecia.
Caminhava de um lado para outro incessantemente, e olhava para a margem cada vez que girava, até que a aparição de algas na parte superior da corrente da âncora
e o rumor da água o fizeram compreender que devia zarpar ou não poderia aproveitar a maré.
- Senhor Pullings, sairemos ao exterior do banco de areia - disse.
- Sim, senhor - respondeu Pullings e depois gritou -: Senhor Bulkeley, todos a recolher a âncora!
Imediatamente se ouviram as agudas notas da batida do contramestre e o ruído de rápidos passos, o que demonstrava que os homens de Shelmerston conheciam bem o perigoso
banco de areia e o calado da fragata. Os marinheiros ataram o virador e depois colocaram, seguraram e começaram a mover as barras do cabrestante como se todos fossem
veteranos tripulantes da Surprise. E quando o cabrestante começou a girar e a fragata começou a deslizar pelo porto em direção de sua âncora, alguns homens começaram
a cantar: "Gira-a e ela girará, oh, oh!" Isso nunca ocorria quando era uma embarcação do rei, já que na Armada não se permitia que os marinheiros cantassem durante
o trabalho. Pullings olhou fixamente para Jack, que negou com a cabeça e disse:
- Deixe-os cantar.
Até esse momento não se haviam produzido incidentes entre os antigos tripulantes da Surprise e as novas incorporações, e Jack estava disposto a fazer qualquer coisa
para evitar que se produzissem. Tanto ele como Pullings fizeram o quanto puderam misturando os homens das brigadas de artilheiros e das guardas, mas estava seguro
de que o fator mais importante naquela relação estranhamente pacífica entre dois grupos tão diferentes era a situação inusual. Todos, particularmente os tripulantes
veteranos da Surprise, estavam tão desconcertados que não sabiam o que pensar nem o que dizer, e não tinham à mão nenhuma fórmula adequada. Se aquilo durava até
que lhes açoitasse uma tormenta durante três ou quatro dias no canal ou, melhor ainda, até que uma batalha lhes convertesse em um só grupo, havia esperanças de que
na fragata houvesse harmonia.
- Acima e abaixo, senhor! - gritou Weld desde o castelo.
- Gavieiros! - clamou a voz de Jack -. Ouvem-me ai de cima?
Tinham que ser surdos para não lhe ouvir, pois se ouviu claramente chegar o eco de "ai de cima" desde as casas situadas ao fundo da baía.
- Adiante! - continuou -. Larguem a vela! Larguem a vela!
Nesse momento os marinheiros correram para os amantilhos do traquete. A gávea se abriu; os marinheiros de bombordo caçaram as escotas e depois, sem pronunciar palavra,
correram para pegar as adriças. A verga subiu sem dificuldade; o velacho se inchou; a Surprise ganhou velocidade suficiente para poder recolher a âncora e depois,
descrevendo uma suave curva, começou a mover-se em direção ao banco de areia, que tinha um colorido ameaçador em meio da água verde cinzenta e da borda branca.
- Pelo centro do canal, Gillow - ordenou Jack ao homem que levava o leme.
- Pelo centro, senhor - disse Gillow, um marinheiro de Shelmerston, movendo um pouco as cavilhas enquanto olhava para a direita e esquerda.
Quando a Surprise chegou ao alto mar voltou a dobrar suas alas. Os marinheiros deixaram cair a âncora do pescante e lentamente a fragata deu um amplo giro. A manobra
realizada era simples, e Jack a vira milhares de vezes em sua vida, mas se sentiu muito satisfeito de que a realizassem perfeitamente, sem nenhuma erro. Isso foi
muito conveniente, pois fazia bastante tempo que estava indignado com a demora de Maturin e, se bem podia suportar sem se queixar de sua enorme desgraça (ainda que
não se resignasse a ela), as pequenas coisas lhe irritavam muito. Havia deixado uma sucinta nota para Stephen na costa na qual marcava um encontro em outro lugar
ao cabo de quinze dias.
- Senhor Davidge, eu vou para baixo - disse -. Caso veja o almirante dobrar o cabo, avise-me imediatamente, por favor.
O almirante Russell, que vivia em Allacombe, a segunda enseada ao sul, havia informado de que teria vontade de fazer uma visita ao senhor Aubrey durante a tarde,
se o vento e o tempo permitissem, e esperava que o senhor Aubrey passasse a noite em sua casa em Allacombe. Ademais, enviava saldações ao doutor Maturin e anunciava
que teria prazer em vê-lo se estivesse a bordo.
- Imediatamente, senhor - disse Davidge e, em tom vacilante, perguntou -: Como devemos recebê-lo, senhor?
- Como ao capitão de qualquer barco privado - respondeu Jack -. Com guarda-mancebos, é claro, mas nada mais.
Para Jack lhe horrorizava a idéia de que se fizessem as coisas como na Armada Real, pois sempre lhe incomodara ver a imitação de seus costumes nos barcos da Companhia
das Índias Orientais, de outras importantes companhias e de corsários ambiciosos e ainda mais importantes; por isso vestia uma casaca e calças de lã. Porém, ainda
que a Surprise já não tinha galhardete nem fitas douradas nem infantes do marinha nem muitas outras coisas, estava decidido a que as tarefas básicas se realizassem
como em um barco de guerra, e opinava que as duas coisas não eram incompatíveis.
Teria dado um olho da cara para evitar se encontrar com Russell, mas servira sob as ordens do almirante quando era guarda-marinha, tinha-lhe um profundo respeito
e lhe era muito agradecido porque ascendeu ao grau de tenente graças à sua influência. Russell lhe fez o convite tão amavelmente e com tão boa intenção que seria
uma descortesia recusá-lo, mas ele desejava com todas suas forças que Stephen estivesse ali para lhe ajudar durante a tarde. Como não se sentia suficientemente alegre
para se dedicar ao trato social, assustava-lhe ter convidados, sobretudo membros da Armada, e, além disso, horrorizava-lhe o trato compassivo de qualquer um que
não fosse seu amigo íntimo e a cortesia pintada de indiferença e arrogância de quem não simpatizava com ele.
- Killick, Killick! - gritou na grande cabine.
- Que foi... - perguntou Killick em tom mal-humorado de onde estava pendurada a maca de Jack e, para guardar as formas, acrescentou -: senhor?
- Traga-me a casaca verde garrafa e um par de calções decentes.
- Aqui estão, mas não poderá colocá-la antes de dez minutos porque tenho que costurar os botões.
Nem Killick nem Bonden expressaram seu pesar pelo capitão Aubrey ter sido processado e condenado. Tinham o bom tino de tratar os assuntos importantes com uma delicadeza
que Jack, depois de tantos anos de experiência e trato com os marinheiros, sabia como interpretar. Não mostravam sua compaixão abertamente, senão com sua presença
e suas atenções, e Killick aparentava ter um humor pior do que nunca, se isso era possível, para demostrar que nada havia mudado.
Agora ele podia ser ouvido no dormitório da cabine murmurando:
- Maldita agulha despontada... Se me dessem um xelim por cada botão que essa estúpida prostituta de Ashgrove Cottage deixou frouxo, seria um homem rico... Não tem
idéia de como se costura a parte traseira dos botões nos barcos de guerra... E o tom de verde do fio é diferente!
Pouco tempo depois, o capitão Aubrey já tinha posta sua roupa recém arrumada e escovada. Então, completamente só, começou a dar seus habituais passeios pelo castelo
de popa, olhando algumas vezes para terra e outras para o cabo que ficava ao sul.
Desde que Stephen Maturin se convertera em um homem rico, de vez em quando tinha acessos de tacanharia. Durante quase toda sua vida havia sido um homem pobre, às
vezes exageradamente pobre; porém, salvo nos casos em que a pobreza lhe impedira satisfazer suas necessidades básicas, nunca dera importância ao dinheiro.
Mas agora que recebera uma herança de seu padrinho (o melhor amigo de seu pai, primo terceiro de sua mãe, e o último membro de uma família rica), agora que a caixa
forte de seu banqueiro estava tão cheia de cofres de ferro com o ouro de Dom Ramón que quase não se podia fechar a porta, contava até os xelins e os peniques.
Nesse momento atravessava um extenso terreno plano com leves ondulações e sem vegetação, caminhando apressadamente pela curta grama em direção ao sol, que acabava
de sair. Vários chascos de bonita e brilhante plumagem passavam por ambos os lados e inumeráveis calandras voavam por cima de sua cabeça: era um dia esplêndido.
Chegara de Londres no coche lento e descera em Clotworthy para ir caminhando pelo campo até Polton Episcopi, onde lhe esperava seu amigo, o reverendo Nathaniel Martin.
Ali ambos tomariam o coche postal para ir a Shelmerston, de onde nessa tarde, quando a maré subisse, zarparia a Surprise. De acordo com o cálculo de Stephen, deste
modo pouparia onze xelins e quatro peniques; contudo, o cálculo estava errado; Maturin era brilhante em alguns campos, como a medicina, a cirurgia e a entomologia,
mas não era muito hábil com os números, e necessitava de um anjo da guarda e de um ábaco para multiplicar por doze. O erro não tinha importância, porque a questão
não estava relacionada com a avareza mas com a consciência. Para Stephen achava que a riqueza era imoral e que essa imoralidade podia contrariar-se um pouco com
gestos desse tipo e levando uma vida modesta. Mas só um pouco, como ele mesmo admitia. Os acessos eram involuntários e, ademais, ele não era coerente com essa idéia:
por exemplo, há pouco se dera o privilégio de comprar um par de leves botinas feitas por um excelente artesão da rua Saint James e se permitira o luxo de comprar
meias de casimira. Como geralmente usava pesados sapatos de ponteira quadrada com solas de chumbo, que os faziam ainda mais pesados, acreditava que sem chumbo poderia
andar mais agilmente. Sem dúvida, durante as três primeiras milhas caminhou pela grama com muita rapidez, e cheio de satisfação porque se movia com agilidade enquanto
sentia o odor dos verdes campos em primavera inundando o ar. Mas na frente dele, a um estádio de distância, havia um homem cuja figura erguida e escura contrastava
com o terreno completamente horizontal e de cor clara onde só havia amorfos rebanhos de ovelhas e altas nuvens movendo-se devagar desde o oeste-sudeste. Também ele
ia para o largo caminho que haviam formado ao passar os rebanhos e alguma carroça de pastor que deixara seu rastro, mas andava muito mais devagar e, além disso,
de vez em quando se detinha e gesticulava com veemência ou dava um salto. Quando Maturin ficou perto o bastante para ouvi-lo, percebeu que ele falava umas vezes
com serenidade, outras com paixão e outras com a aguda voz de uma distinta dama. Era um homem de moderados recursos, a julgar por seus calções azuis e sua casaca
descolorida, e com certa educação, pois uma vez disse com fluidez em grego: "Oxalá que esses malditos cachorros se afoguem com seu própio excremento!" Provavelmente
acreditava estar sozinho, e se incomodaria muito ser ultrapassado por alguém que estava a meia hora escutando-o. Mas era inevitável. Calções Azuis se detinha cada
vez com mais freqüência, e, se não se afastasse do caminho, Stephen o alcançaria ou teria que segui-lo ao seu mesmo passo lento arriscando-se a chegar tarde ao encontro.
Stephen tossiu e inclusive entonou uma canção com voz rouca, mas nada deu resultado, e teria ultrapassado a Calções Azuis tão respeitosamente como pudesse se ele
não se detivesse, houvesse cuspido e o houvesse olhado.
- Traz algum mensagem para mim? - perguntou quando Stephen estava a umas cem jardas de distância.
- Não, senhor - respondeu Stephen.
- Desculpe, senhor - disse Calções Azuis quando Stephen estava muito perto -, mas esperava uma mensagem de Londres e, como disse em casa que ia até o vale, pensei...
Porém, senhor - acrescentou, ruborizando-se -, acho que fiz papel de bobo declamando enquanto andava.
- Oh, não! - exclamou Stephen -. Já vi muitos parlamentares e advogados arengarem para o ar e nunca pensei mal deles. E por acaso Demóstenes não falava para as ondas?
Isto, sem dúvida, é um componente natural de muitas profissões.
- A verdade é que sou escritor - disse Calções Azuis enquanto avançavam juntos.
Depois, em resposta às corteses perguntas de Stephen, explicou que escrevia principalmente contos de estilo gótico que se desenvolviam em tempos antigos.
- A quantidade pela qual o senhor perguntou é tão pequena que me envergonha dizê-la - acrescentou com um olhar triste -. Só publiquei uma vintena. Não é que não
haja escrito pelo menos dez vezes essa quantidade. Aqui, sobre esta mesma grama, criei excelentes contos - disse, dando um salto -, estupendos contos que me fizeram
rir de satisfação (ainda que devo admitir que não sou objetivo ao julgá-los). Mas o senhor deve saber que cada homem tem uma forma peculiar de escrever, e a minha
requer que diga em voz alta os fragmentos enquanto caminho, pois, em minha opinião, o movimento dissipa os maus humores e incrementa o fluxo de idéias. Contudo,
é aí onde está o perigo, pois se se incrementa muito, se crio um fragmento que me satisfaça plenamente, como me acaba de ocorrer agora com o capítulo em que Soonisba
leva Rodrigo ao garrote com o pretexto de que ele atuou maliciosamente e começa a apertar a porca, então estou perdido, porque minha imaginação, isto é, minha mente
não quer se ocupar mais disso, resiste a pô-lo por escrito e talvez por obrigação escreva simplesmente uma série de frases insossas. Só posso ter êxito se logro
estabelecer uma boa relação, quer dizer, e perdoe a expressão, fazer um coitus interruptus com minha musa e correr logo para casa para pegar a caneta e consumar
a ação; mas não consigo fazer o meu editor compreender isto. Disse que o trabalho intelectual era diferente do manual, e que no segundo caso só com engenho e aplicação
se podia derrubar um bosque e carregar a água de um oceano, mas no primeiro... Mandou me dizer que a imprensa estava paralizada e que necessitava imediatamente das
vinte páginas que lhe prometera. Calções Azuis repetiu a citação em grego e depois acrescentou -: Aqui devemos nos separar, senhor, a menos que lhe convença a vir
ver o vale.
- Por acaso é um antigo vale druida? - perguntou Stephen, sorrindo e movendo a cabeça de um lado para outro.
- Druida? Oh, não, em absoluto! Porém, conforme A maldição dos druidas e o espectro dos monumentos neolíticos, talvez haja algo feito pelos druidas. O vale é apenas
um lugar onde me sento para contemplar as abetardas.
- As abetardas? - perguntou Stephen, escrutinando o rosto do homem com seus olhos claros-. As Otis tarda?
- As mesmas.
- Não vi nenhuma na Inglaterra - disse Stephen.
- A verdade é que hoje em dia são raras; contudo, quando era menino as via em pequenas revoadas muito parecidas a rebanhos de ovelhas. Mas ainda existem. São criaturas
de costumes arraigados e as observo desde que era muito jovem, como meu pai e meu avô. No vale poderei lhe mostrar uma fêmea chocando, e é muito provável que vejamos
dois ou três machos.
- Fica muito longe?
- A menos de uma hora se caminharmos depressa. Afinal de contas, terminei o capítulo.
Stephen olhou seu relógio. Martin tinha um profundo conhecimento das abetardas e lhe perdoaria por chegar tarde por essa causa, mas Jack Aubrey tinha a idéia do
tempo própia dos marinheiros, e dava uma enorme importância à pontualidade. A perspectiva de se enfrentar com Jack Aubrey, que media sete pés de altura e estaria
cheio de raiva mal reprimida depois de esperar duas longas horas, cento e vinte minutos, fez com que vacilasse; mas não por muito tempo. "Alugarei um coche de quatro
cavalos em Polton Episcopi e assim pouparei tempo", pensou.
O Marquês de Granby, a única pousada de Polton, tinha um banco junto à parte externa da parede na qual batia o sol da tarde, e nesse banco, flanqueado por um rosal
trepador e uma madressilva, cochilava Nathaniel Martin. Acima de Martin, sob a lateral, as andorinhas construíam seus ninhos e de vez em quando deixavam cair bolinhas
de barro que se depositavam sobre ele; fazia tanto tempo que se encontrava ali que tinha uma grossa capa sobre o ombro esquerdo. Percebia o leve impacto, o som de
suas asas, as mudanças de tonalidade de seus gorgeios e as graves notas que chegavam de um campo cheio de corvos situado a certa distância do bebedouro da pousada;
contudo, não despertou de todo até que ouviu o grito:
- Olá, companheiro de tripulação!
- Querido Maturin! - exclamou -. Quanto me alegro de ver-lhe! Mas... - acrescentou, olhando-o de novo - espero que não tenha sofrido nenhum acidente.
A cara de Maturin, que geralmente tinha um colorido amarelado, estava agora rosada e o suor que corria por ela havia feito sulcos na capa de poeira que a cobria.
- Não, meu amigo. Lamento tanto... me envergonha tanto que o senhor haja tido que esperar... Peço que me perdoe. - Sentou-se ofegando e continuou -: Porém, quer
que lhe conte o que me atrasou?
- Sim, por favor - respondeu Martin e depois, dirigindo a voz para o interior pela janela, gritou -: hospedeiro, por favor, traga para o cavalheiro uma jarra de
cerveja, uma pinta de cerveja tão fria como for possível!
- Você não vai acreditar, estive em um vale de onde pude ver uma abetarda deitada sobre seus ovos a menos de cem jardas. Nós estávamos no vale e olhávamos para fora
por entre as altas ervas. Com o telescópio de um cavalheiro pude ver-lhe um olho: é de um brilhante colorido marrom amarelado. Após um tempo que estávamos lá, ela
se levantou e se afastou para se reunir com dois machos enormes e uma cegonha; depois desapareceu pela ladeira, e fomos ver o ninho sem medo. Ah, Martin, ouvi como
os pintinhos diziam "pio, pio, pio" dentro daqueles bonitos e enormes ovos. Dou minha palavra de que pareciam os apitos de um contramestre.
Martin juntou as mãos, mas, antes de poder emitir algo mais que um grito de assombro e admiração, chegou a cerveja, e Stephen disse:
- Hospedeiro, por favor, prepare um coche para que nos leve a Shelmerston assim que termine de beber - me esta magnífica cerveja, já que provavelmente o coche postal
já deve ter partido faz tempo.
- Oh, senhor! - exclamou o hospedeiro zombando de sua ingenuidade -. Não há nem nunca houve um coche de aluguel em Polton Episcopi. Oh, não! E o coche postal agora
deve estar chegando a Wakeley.
- Então, um par de cavalos, ou uma carruagem, ou uma carreta.
- Senhor, o senhor esquece que hoje há mercado em Plashett e não resta nenhuma carruagem nem nenhuma carreta no povoado. E duvido que reste algum cavalo, mas podem
montar ambos na mula de Waites, ainda que o ferreiro lhe deu um remédio ontem à noite. Vou perguntar à minha mulher, pois Anthony Waites é como se fosse seu primo.
Houve uma pausa durante a qual se ouviu da escada a voz de sua mulher, que perguntava: "Para que querem ir a Shelmerston?". Depois o hospedeiro regressou com uma
expressão satisfeita, como a de alguém a quem lhe ocorreu o que mais temia, e anunciou:
- Não, cavalheiros; sem esperanças de conseguir um cavalo e a mula de Waites morreu.
Caminharam em silêncio durante um tempo até que Stephen comentou:
- Depois de tudo, só serão umas poucas horas.
- Mas tem que levar em conta a maré - disse Martin.
- Oh, meu Deus, havia me esquecido da maré! - exclamou Stephen -. E os marinheiros lhe dão muita importância.
Quando haviam avançado mais um quarto de milha-, prosseguiu:
- Acho que nas notas que lhe escrevi recentemente não lhe dei toda a informação que desejava.
Isso era verdade. Stephen Maturin estava relacionado com os serviços secretos, tanto estatais como navais, e fazia tanto tempo que sua vida dependia de que mantivesse
segredos, que era resistente a escrever qualquer coisa. Além disso, não gostava de manter correspondência.
- Nada disso.
- Se tivesse boas notícias para dar-lhe - continuou Stephen -, com muito gosto lhe teria dado imediatamente; mas devo dizer que seu opúsculo, o excelente opúsculo
contra a prostituição e os açoites na Armada tornou quase impossível que voltem a lhe oferecer alguma vez o posto de capelão de um barco. E lamento dizer-lhe que
ouvido isso em Whitehall.
- Foi isso mesmo que o almirante Caley disse à minha esposa faz alguns dias - disse Martin, suspirando -. Que se assombrava de minha temeridade. Apesar de tudo,
acho que era meu dever fazer algum tipo de protesto.
- Sem dúvida, foi um ato de valentia fazê-lo - opinou Stephen -. Agora quero falar-lhe do senhor Aubrey. O senhor se informou de seu julgamento e de sua condenação,
não é?
- Sim, e senti uma grande indignação. Eu lhe escrevi duas vezes, mas rasguei as duas cartas porque temia me entrometer e lhe ferir com minha inoportuna compaixão.
Foi um grave erro da justiça. O senhor Aubrey está tão capacitado para idear uma fraude na bolsa como eu; ou inclusive menos, porque conhece muito pouco o mundo
do comércio e ainda menos o das finanças.
- E o senhor sabe que foi expulso da Armada?
- Não me diga! - exclamou Martin surpreendido.
Uma carreta passou por seu lado e o que a conduzia lhes olhou com a boca aberta, e inclusive se voltou completamente para ver-lhes durante mais tempo.
- Apagaram seu nome da lista de capitães de navio na sexta-feira seguinte.
- Creio que isso esteve a ponto de matá-lo - afirmou Martin, olhando para um lado para ocultar sua emoção -. A Armada significava tudo para o senhor Aubrey. Expulsar
um homem tão valente e honorável...
- A verdade é que acabou com sua alegria de viver - confirmou Stephen enquanto avançavam lentamente -. Mas tem uma grande força e uma esposa admirável...
- Uma esposa é um grande consolo para um homem - afirmou Martin, e em sua cara grave apareceu um sorriso.
Diana, a esposa de Stephen, não era nesse momento um consolo para ele mas motivo de dor, uma dor umas vezes leve e outras tão aguda que era quase insuportável, mas
permanente.
- Podem se dizer muitas coisas a favor do matrimônio. Além do mais, têm filhos em comum. Tenho esperanças de que esteja bem, sobretudo porque ao mesmo tempo que
o expulsaram da Armada venderam sua fragata, a Surprise, e alguns de seus amigos a compraram, a converteram em um barco de guerra privado e deram o comando para
ele.
- Meu Deus! A Surprise agora é um barco corsário, Maturin? Sabia que a Armada a ia vender, mas ignorava que... Achava que os barcos corsários eram tão pequenos como
os piratas, geralmente bergantins ou lugres de dez ou doze canhões, e tão desprezíveis como eles.
- Realmente, a maioria dos que operam no canal respondem a essa descrição, mas há barcos de guerra privados mais importantes que fazem viagens ao estrangeiro. Nos
anos noventa havia um barco corsário francês de cinqüenta canhões que causou graves danos ao comércio com o Oriente e, sem dúvida, recordará esse barco tão veloz
que perseguimos durante dias e quase capturamos quando regressávamos de Barbados, um barco de trinta e dois canhões.
- Verdade, verdade! Era o Spartan. Mas era estadunidense, não é verdade?
- E o que tem a ver?
- Esse país é tão extenso que um pensa que tudo o que há lá é maior, inclusive os barcos corsários.
- Diga-me, Martin, posso lhe pedir algo? - perguntou Stephen depois de uma breve pausa.
- Por favor.
- As conotações da palavra "corsário" desagradam aos marinheiros, e aplicada à Surprise poderia parecer ofensiva. De toda forma, não é um barco corsário comum. Em
um comum os marinheiros se alistam sabendo que se não conseguirem nenhum butim, não receberão dinheiro; não recebem mais do que a comida e o único dinheiro que obtêm
é o dos butins. Por isso são rebeldes e violentos, dedicam-se ao saque e despojam de tudo e sem piedade as suas infortunadas vítimas. Conforme dizem, alguns são
tão malvados e cruéis que jogam pela borda os prisioneiros que não podem pagar seu própio resgate e cometem muitos abusos e estupros. Na Surprise, em troca, tudo
se rege pelas normas da Armada: os marinheiros recebem um pagamento e o capitão Aubrey só aceita marinheiros de primeira que, em sua opinião, tenham bom caráter,
e recusa a todos os que não prometam se submeter à disciplina naval. O capitão zarpará de imediato com a atual tripulação para fazer duas curtas viagens, uma para
o oeste e outra para o norte, provavelmente pelo Báltico, e depois deixará em terra os homens que não sejam adequados. Tendo em conta tudo isso, talvez seja melhor
que se refira a ela como "barco de guerra particular" ou, no caso de que isto lhe desagrade, como "barco com patente de corso".
- Agradeço por sua advertência e tentarei não ofender ninguém. Mas não terei muitas ocasiões de referir-me a ela de uma maneira ou de outra, pois, ainda que seja
muito diferente de um desses barcos comuns... quero dizer, uma dessas desprezíveis embarcações, nem mesmo no barco de guerra privado onde haja mais ordem necessitarão
um capelão. Não é verdade?
Seu desejo de que a resposta fosse negativa se refletiu em sua delgada cara de sacerdote sem benefício eclesiástico com expressão angustiada, e a Stephen deu tanta
lástima que disse:
- Infelizmente; como você bem sabe, os marinheiros têm uma absurda superstição: que um pastor a bordo traz má sorte, e neste tipo de viagem a sorte é tudo. Essa
é a razão pela qual tantos homens querem navegar com Jack Aubrey o Afortunado. Contudo, pedi a você que viesse comigo a Polton não por vontade mas porque queria
saber se seus projetos e seus desejos variaram desde que nos vimos pela última vez, ou se gostaria que perguntasse ao senhor Aubrey se deseja contratá-lo como ajudante
de cirurgião. Depois destas viagens preliminares, a Surprise zarpará com destino à América do Sul e, naturalmente, em um viagem tão longa é preciso que haja dois
homens que possam prestar cudados médicos. Seus conhecimentos de medicina excedem os de qualquer ajudante de cirurgião, e prefiro mil vezes ter um ajudante que seja
também um companheiro instruído e, além disso, um naturalista. Eu lhe rogo que pense nisso e lhe agradeceria que me desse uma resposta dentro de duas semanas, ao
final da primeira viagem.
- A designação depende só do senhor Aubrey? - inquiriu o senhor Martin com o rosto radiante.
- Sim.
- Então, por que não corremos um pouco? Como vê, o caminho é descendente até onde alcança a vista.
- Coberta! - gritou o serviola do tope de um mastro da Surprise -. Três... quatro barcos à vista pela amura de estibordo!
Não podiam ser vistos da coberta porque os ocultava uma colina ao norte do cabo Penlea, mas o serviola, um homem da localidade, podia vê-los perfeitamente, um pouco
depois, acrescentou em tom coloquial:
- São navios de guerra e me parece que pertencem à esquadra de Brest. Vão dobrar o cabo, mas não há porque se preocupar pois não há corvetas nem fragatas.
Isso significava que não lhes acompanhavam corvetas nem fragatas que poderiam haver-se separado deles para recrutar à força marinheiros dos barcos ancorados frente
a Shelmerston.
Momentos mais tarde apareceram por trás de Penlea: primeiro dois navios de setenta e quatro canhões, depois um de três pontes, provavelmente o Caledônia, que levava
o estandarte de um vice-almirante da Esquadra vermelha no traquete; depois outros dois de setenta e quatro canhões e, por último, sem dúvida, o Pompee. Viraram em
sucessão e, com um vento apropriado para aplicar as joanetes a vinte e cinco graus pela amura, avançaram para o alto mar formando uma linha tão reta como se a houvessem
traçado com uma régua, cada um a dois cabos de distância do precedente. Sua simples beleza era capaz de comover a qualquer marinheiro, e também de ferir profundamente
a um excluído desse mundo. Isso teria que acontecer cedo ou tarde, e Jack se alegrou de que o primeiro golpe não houvesse sido mais forte.
Muitos fatores contribuiram para sua tristeza, e um dos mais importantes foi a imediata constatação de que podia ser vítima da instituição à qual havia pertencido;
contudo, não era propenso a analisar seus sentimentos e, quando a esquadra desapareceu, seguiu dando passeios de um lado para outro até que ao fazer um giro viu
no porto um lugre içando o velame e uma pequena figura sentada na proa agitando no ar algo branco. Pediu emprestado o telescópio de Davidge e viu que quem agitava
aquilo era Stephen Maturin. O lugre virou para atravessar o banco de areia com as velas amuradas para estibordo e Stephen se viu obrigado a abandonar seu lugar e
se sentar no meio da embarcação, sobre uma armadilha de lagostas, porém, apesar de tudo, seguiu dando gritos agudos e agitando seu lenço. Depois Jack observou com
surpresa que lhe acompanhava o pastor Martin e supôs que vinha fazer-lhe uma visita.
- Bonden - disse -, o doutor chegará dentro de pouco junto com o senhor Martin. Avise a Padeen para o caso de ser necessário arrumar a cabine de seu amo e prepare
tudo para que ambos subam a bordo com os pés secos, se for possível.
Ainda que os cavalheiros estivessem acostumados à vida no mar, tinham algum problema mental, certa falta de desenvolvimento que lhes impedia aprender suas peculiaridades
e, portanto, eram como eternos marinheiros de água doce. Sobretudo o doutor Maturin havia caído inumeráveis vezes quando tentava subir em um barco desde o bote em
que se encontrava; contudo, desta vez todos estavam preparados para ajudar-lhe, e fortes braços o subiram para o convés, aonde chegou ofegando. Então Jack Aubrey
exclamou:
- Ah, já chegou, doutor! Quanto me alegro de ver-te! - e, apertando a mão do pastor, acrescentou -: Meu querido senhor Martin! Bem-vindo de novo a bordo. Espero
que esteja bem.
Martin parecia ter frio e estar exausto, e, em realidade, a úmida brisa marinha havia atravessado sua delgada casaca durante a viagem desde a costa até ali e, ainda
que respondeu sorrindo que estava bem, não podia evitar que lhe estalassem os dentes.
- Vamos abaixo - acrescentou Jack -. Permita-me oferecer-lhe algo quente. Killick, traga uma cafeteira cheia de café e se apresse.
- Jack - disse Stephen -, peço humildemente perdão por chegar tarde. A culpa é só minha, por me permitir satisfazer o desejo de ver abetardas. Eu lhe estou infinitamente
agradecido por nos esperar.
- Não tem importância - respondeu Jack -. Tenho um encontro esta tarde com o almirante Russell e não zarparei até que comece a baixa-mar. Killick, Killick! Apresente
meus respeitos ao capitão Pullings, que está na bodega, e diga-lhe que subiram a bordo alguns amigos seus.
- Antes que venha nosso querido Tom - anunciou Stephen -, eu gostaria de resolver um assunto. Na Surprise faz falta um ajudante de cirurgião, sobretudo porque é
provável que eu me ausente durante a primeira parte da viagem, e, como sabe, o senhor Martin é muito competente nesse campo. Se dé seu consentimento, ele me acompanhará
na qualidade de ajudante.
- Como ajudante de cirurgião, em lugar de pastor?
- Exatamente.
- Eu gostaria de voltar a ter o senhor Martin entre nós, especialmente se for se ocupar de questões médicas. - Então se voltou para Martin e acrescentou -: Devo
dizer-lhe, senhor, que nem mesmo os tripulantes de um barco do rei gostam da idéia de que haja um pastor a bordo, e que aos de um barco com patente de corso, que
prestam mais atenção às superstições pagãs, provavelmente lhes desgostaria muito, ainda que não duvido de que em caso de acidente lhes agradaria que lhes enterrassem
com dignidade. Sob a condição de que o senhor esteja inscrito como ajudante de cirurgião no rol da fragata, eles poderão desfrutar do melhor de ambos os mundos.
Pullings chegou correndo e lhes deu uma cordial boas-vindas; Padeen, com seu tosco inglês, tratou de averiguar se o doutor queria pôr seu colete de flanela, e Davidge
mandou dizer que o cúter do almirante se abordaria com a fragata ao cabo de cinco minutos.
O cúter do almirante se aproximou pelo lado de bombordo para evitar as cerimônias, e com a mesma simplicidade os marinheiros desceram Stephen pelo costado como se
fosse um saco de batatas.
- obrigado por ter a amabilidade de me convidar, senhor - disse -, mas me envergonha apresentar-me em público com esta roupa. Não tive tempo de trocar-me desde que
cheguei.
- Está muito bem assim, doutor; muito bem. Só estaremos Polly minha pupila, a quem já conhece, e o almirante Schank, a quem conhece melhor ainda. Esperava que nos
acompanhasse o almirante Henry, que sabe muito de medicina, pois agora tem muito tempo livre, mas tinha um compromisso. Contudo, mandou-lhe muitas saldações e me
deu seu último livro, um estupendo livro, certamente, para que lhe entregasse.
O estupendo livro se intitulava An Account of the Means by which Admiral Henry has Cured the Rheumatism, a Tendency to Gout, the Tic Douloureux, the Cramp, and other
Disorders; and by which a Cataract in the Eye was removed, e Stephen olhava os desenhos enquanto escutava as declinações sobre um tema de Pergolesi que Polly tocava,
uma encantadora jovem cujo cabelo negro e cujos olhos azuis traziam à sua mente a vivida recordação de Diana. Nesse momento o almirante Schank se despertou e disse:
- Meu Deus! Acho que me fiquei transposto. De que estávamos falando, doutor?
- Estávamos falando de balões, senhor, e o senhor tentava recordar os detalhes do aparelho que há ideado para eliminar o inconveniente, o péssimo inconveniente de
que subam muito.
- Sim, sim. Eu lhe desenharei.
O almirante era conhecido por todos na Armada como Polipasto porque havia feito uma engenhosa maca que podia inclinar-se, subir e descer à vontade da pessoa que
estava deitada nela, ainda que fosse um enfermo débil, com ajuda de moitões de duas ou três roldanas, e havia inventado muitas outras coisas. Desenhou um balão com
uma rede de cordas ao redor da coberta e explicou que estava desenhada para diminuir o volume do gás por meio de um sistema de polias e, portanto, sua capacidade
de se elevar.
- Mas não funcionou - disse -. A única forma de não subir demais, como o pobre Senhouse, a quem ninguém voltou a ver, ou Charlton, que se congelou, é deixar escapar
um pouco de gás, ainda que se fizer frio durante o dia é provável que um desça com tanta rapidez que se choque fortemente e se despedace, como o pobre Crowle, seu
cachorro e seu gato. Já andou em balão alguma vez, Maturin?
- Andei em um; quer dizer, estive dentro da nacela, mas era muito obstinado e não subia, assim que desci. Então se elevou impulsionado pelo vento, com só meu companheiro
dentro, e aterrizou no condado de Roscommon depois de cruzar três campos. Como agora estão na moda outra vez, quero fazer outra tentativa e espero ver de perto os
abutres plairando.
- O balão era de ar quente ou estava cheio de gás?
- Era de ar quente, mas a grama não estava tão seca como deveria e uma fina chuva caía em rajadas por todo o país, assim que não teríamos logrado que se mantivesse
no ar nem mesmo soprando como o bóreas.
- É melhor assim. Se se houvesse elevado e a bolsa se houvesse incendiado, como ocorre amiúde, o senhor teria passado seus últimos minutos lamentando sua temeridade.
São objetos muito perigosos, Maturin, e, ainda que não nego que um balão bem amarrado e elevado a três ou quatro mil pés de altura pode ser um excelente posto de
observação para um general, acho que só os delinqüentes convictos deveriam subir neles.
Depois de uma pausa, o almirante Schank perguntou:
- Que houve com Aubrey?
- O almirante Russell o levou para a biblioteca para lhe mostrar uma maquete do Santíssima Trindade.
- Queria que o trouxesse aqui de novo, pois já passaram vários minutos desde a hora da janta e Evans se há assomado duas vezes. Ademais, se não me servem a comida
na hora acostumada, parece que tenho abutres dentro e sou capaz de despedaçar meus companheiros como os leões da Torre. Detesto a impontualidade, e o senhor, Maturin?
Polly, minha querida, acha que seu guarda há tido algum problema? O relógio soou faz muito tempo.
Na biblioteca, os dois homens observavam a maquete.
- Todas as pessoas com as que falei opinam que o processo levado a cabo pelo Ministério contra o senhor - disse o almirante Russell -, isto é, contra seu pai e seus
sócios, é o pior que já se viu na Armada desde que mataram legalmente ao pobre Byng. Tenha a segurança de que meus amigos e eu faremos todo o possível para que seja
readmitido.
Jack fez uma inclinação de cabeça, ainda que estava seguro de que isso era o pior que se podia fazer e que além de mau era inútil, já que o almirante e seus amigos
pertenciam à oposição. Nesse momento ia expressar seu agradecimento como era devido, mas o almirante, levantando a mão, disse:
- Nem uma palavra. Mas o que realmente queria lhe dizer é que evite cair no abatimento. E não se afaste de seus amigos, Aubrey, pois quem não o conhece bem poderia
interpretá-lo como uma prova de que se sente culpado e, ademais, só lhe serviria para ficar melancólico e ter maus pensamentos. Não se afaste de seus amigos. Conheço
alguns homens que se incomodaram com sua recusa, e ouvi o mesmo de alguns outros.
- Agradeço que hajam tido a amabilidade de me convidar - disse Jack -, mas se houvesse aceitado, eu os teria comprometido. Atualmente há uma competição muito acirrada
pelos barcos e pelas ascensões, e não gostaria que meus amigos tivessem problemas de nenhum tipo com o Almirantado. Com o senhor as coisas são diferentes, senhor,
já que o senhor não aspira ao comando de um barco e, além do mais, um almirante da Esquadra branca que já recusou um título não deve temer a ninguém, nem mesmo ao
Almirantado. Mas seguirei seu conselho com respeito a...
- Oh, senhor, na cozinha há um alvoroço! - exclamou Polly da porta -. A janta estava meio servida quando o relógio deu a hora, e já falta a metade outra vez. Ademais,
Evans e a senhora Payne estão discutindo no corredor.
- Meu Deus! - exclamou o almirante, olhando para o relógio da biblioteca, um regulador silencioso -. Aubrey, devemos correr como lebres.
O jantar se desenrolou em um ambiente agradável e, ainda que o suflê havia conhecido tempos melhores, o clarete, um Latour, era quase perfeito. Quando o relógio
deu a badalada seguinte, Polly se despediu. A graça com que fez a reverência e inclinou a cabeça trouxe de novo à mente de Stephen a nítida imagem de Diana, em quem
a graça substituía a virtude, ainda que ela era honorável conforme suas própias normas de conduta (que eram muito rigorosas com relação a algumas coisas). Stephen
notou com agrado que Polly se ruborizou quando ele lhe abriu a porta, algo que para ela ainda lhe parecia estranho porque era muito jovem e tinha pouca experiência.
Quando todos os homens voltaram a se sentar, o almirante Russell pegou uma carta do bolso e disse:
- Aubrey, sei que o senhor mantém viva a lembrança de Nelson e por isso quero lhe entregar esta carta. Espero que lhe traga boa sorte em sua viagem. Ele me a mandou
em 1803, quando eu estava com lorde Keith no estreito de Sonda e ele se achava no Mediterrâneo. lhe vou a ler primeiro, não por orgulho mas porque a escreveu com
a mão esquerda, naturalmente, e é possível que o senhor não possa entendê-la. Depois do habitual começo, diz assim:
Aqui estou, ao arbítrio desses homens de Toulon, e todos desejamos com veemência ver-nos frente a frente. Acredito que sobrarão alguns chapéus quando o hajamos conseguido.
O senhor é sempre uma pessoa amável e, como disse o comodoro Johnstone do general Meadows, "não duvido que o dia da batalha o senhor será uma agradável companhia
para seus amigos, mas muito desagradável para seus inimigos". Desejo que sempre me considere como um dos melhores dos primeiros, querido Russell.
Então entregou a carta ainda aberta por em cima da mesa.
- Oh, que carta mais bonita! - exclamou Jack, olhando-a com sincera satisfação -. Acredito que ninguém nunca escreveu uma carta tão bonita. Posso realmente ficar
com ela, senhor? Eu lhe estou muito agradecido. Guardarei-a como um tesouro. Obrigado de novo, senhor - acrescentou, dando um férreo aperto de mãos ao almirante.
- Esses tipos que asseguram que podem lançar a primeira pedra dirão o que queiram de Nelson - comentou Polipasto -, mas inclusive eles têm que admitir que ele sabia
como dizer as coisas. Meu sobrinho Cunningham era um dos guardas-marinhas do Agamenon e Nelson lhe disse: "Há três coisas na vida que deve recordar sempre, jovem:
a primeira é que deve obedecer as ordens incondicionalmente, sem tratar de julgar se são apropiadas ou não; a segunda é que deve considerar inimigos a todos os homens
que falem mal de seu rei; a terceira é que deve odiar aos franceses como ao diabo".
- Admirável! - exclamou Jack.
- Mas provavelmente não se referia a todos os franceses - disse Stephen, que admirava a França não napoleônica.
- Acredito que sim - replicou Schank.
- Talvez as implicações fossem muito extensas - disse Russell -, mas também o eram suas vitórias. E verdadeiramente, em geral, os franceses não têm nada de bom.
Dizem que um pode aprender muitas coisas sobre um país por seus provérbios, e quando os franceses querem descrever algo muito sujo dizem "sujo como um pente", o
que dá uma idéia bastante clara de sua higiene pessoal; quando têm outras coisas em que pensar dizem que têm "outros gatos que açoitar", o que é um ato inumano,
quando vão mudar de bordo um barco, a ordem que dão é "à Dieu vai", ou seja, "temos que nos aventurar e confiar em Deus", o que reflete seus rupestres conhecimentos
de navegação e é o mais absurdo que já ouvi.
Jack contou ao almirante Schank que Nelson lhe havia pedido uma vez que lhe passasse o sal da forma mais cortês que podia imaginar, e que em outra ocasião lhe havia
dito: "Não interessam as manobras, o que importa é atacar com decisão". Stephen ia dizer que provavelmente havia bons franceses, como, por exemplo, os que haviam
feito aquele sublime clarete, mas o almirante Russell, depois de ficar absorto em suas meditações alguns momentos, comentou:
- É possível que haja excessões, porém, em geral, eu os acho insuportáveis, quer sejam de classe alta ou baixa. Foi um capitão francês, um homem de excelente família,
que me fez a pior trapaça que me fizeram em uma guerra, uma trapaça tão suja como um pente francês.
- Por favor, contem-nos - rogou Jack, acariciando a carta em segredo.
- Eu lhes farei um breve resumo, pois vai zarpar quando mude a maré e não quero entretê-lo. O fato ocorreu no final da última guerra com os Estados Unidos, em 1783,
quando estava ao comando da Hussar (minha querida Hussar), uma fragata muito parecida com a sua Surprise, ainda que não navegava de bolina com tanta rapidez. Nelson
estava na mesma base naval, ao comando do Albemarle, e nos dávamos muito bem. Eu estava patrulhando ao norte do cabo Hatteras, em águas de pouca profundidade, em
meio de um frio vento do norte-noroeste e a névoa que costuma ter no mês de fevereiro, e de repente, no oeste, vi um barco com as velas amuradas para estibordo.
Avancei em direção dele e quando estava muito perto, apesar da espessa névoa, pude ver que tinha mastros provisórios muito bem colocados e alguns buracos na alheta;
assim que, quando apareceu na haste a bandeira inglesa por cima da francesa, pensei que isso significava que era uma presa de um de nosso navios. Supus que teria
sofrido graves danos durante a captura, que estaria em perigo e que os tripulantes necessitariam de ajuda.
- Isso não podia significar outra coisa.
- Sim podia, meu amigo! - exclamou o almirante -. Podia significar que o barco estava ao comando de um pilantra, um desprezível pilantra. Aproximei a fragata do
costado de sotavento para perguntar aos gritos que necessitavam e subi no parapeito com o alto-falante para que pudessem me ouvir apesar do rumor do vento. Então
vi que no convés havia muitos tripulantes, uns duzentos ou trezentos, não um pequeno número, como é habitual nas presas, e nesse momento sacaram os canhões e viraram
para que o barco estivesse perpendicular à fragata com a intenção de derrubar o gurupés, disparar-lhe de proa a popa e depois abordá-la. No convés havia montes de
tripulantes sorridentes e silenciosos que esperavam para saltar na abordagem. Com o alto-falante ainda na mão gritei: "Leme a barlavento!", e meus homens tiveram
a sensatez de soltar as velas de proa antes que eu tivesse tempo de dar a ordem. A Hussar obedeceu imediatamente, e por isso não a alcançaram a maioria dos devastadores
disparos, se bem que estragaram o traquete e arrancaram a maior parte dos amantilhos de estibordo. Ambas embarcações tinham a proa para sotavento e os costados quase
juntos, e meus homens dispararam com fúria pesadas balas de canhão contra os marinheiros que tentaram nos abordar, o que deu um magnífico resultado, e então gritei:
"À abordagem!". Ao ouvi-lo esse pilantra moveu o leme e o barco virou em redondo e começou a navegar com o vento em popa. Nós o perseguimos disparando-lhe constantemente,
e depois de uma hora de encarniçado combate, diminuiu a freqüência de seus disparos, virou a estibordo e se afastou para barlavento com as velas amuradas para bombordo.
Seguimos ele para forçá-lo a aproximar mais a proa do lugar de onde soprava o vento, porém, por desgraça, o traquete esteve a ponto de cair pela borda e o gurupés
também, assim que não podíamos orçar até que não os assegurássemos. Mas o conseguimos por fim e, quando já estávamos perto do barco francês, a névoa se dissipou
e vimos a barlavento um navio de grandes dimensões, que, conforme soubemos mais tarde, era o Centurião, e a sotavento uma fragata, a Terrier. Seguimos avançando
apesar de tudo e duas horas depois estávamos do seu lado disparando-lhe uma descarga. Eles nos dispararam dois canhonaços, mas depois arriaram a bandeira. O barco
resultou ser A Sybille, uma embarcação de trinta e oito canhões, ainda que seus homens houvessem jogado uma dúzia pela borda durante a perseguição, e com trezentos
e cinqüenta tripulantes mais alguns marinheiros norte-americanos supernumerários. O pilantra que estava ao comando era o conde de Kergariou, Kergariou de Socmaria,
se não recordo mal.
- E o que o senhor lhe fez, senhor? - perguntou Jack.
- Silêncio - disse o almirante, virando a vista para Schank -. Polipasto adormeceu. Saiamos de fininho e depois os levarei de regresso para a fragata. O vento é
favorável e assim não desperdiçarão nem um minuto da maré.
CAPÍTULO 2
A alvorada surpreendeu à Surprise muito longe, entre as cinzas e solitárias águas que eram seu lar. Soprava um forte vento do sudoeste favorável para abrir as joanetes;
havia nuvens baixas e a chuva chegava em rajadas ocasionais; mas o dia prometia ser bom. Apesar de que ser muito cedo, a fragata já usava as joanetes desdobradas,
pois Jack se propunha se afastar da rota habitual dos barcos que iam ou vinham das diferentes bases navais, porque não desejava que recrutassem à força os seus homens,
e sabia que nenhum oficial do rei poderia resistir à tentação ante tão grande número de escolhidos marinheiros de primeira. Tampouco desejava ter que apresentar-se
em um barco do rei para mostrar seus documentos, fazer um resumo de sua carreira e, possivelmente, receber um tratamento desconsiderado, familiar demais ou ofensivo.
Como na Armada não só havia homens com uma grande delicadeza natural ou adquirida, já havia tido que suportar algumas descortesias e, ainda que confiava acostumar-se
a elas com o tempo, nesse momento estava, por assim dizer, excessivamente sensível.
- Mova-se, Joe - disse o suboficial encarregado dos sinais, enquanto girava o relógio de areia que indicava as guardas.
Então uma figura embuçada avançou alguns passos e tocou as três badaladas da guarda da alvorada. O ajudante de oficial de derrota levantou a barquilha e informou
de que a velocidade era de seis nós e duas braças, uma velocidade que poucos barcos podiam igualar nessas condições e talvez nenhum pudesse superar.
- Senhor West, vou descer um pouco - disse Jack ao oficial de guarda -. duvido que este vento se mantenha, mas parece que o dia será muito agradável.
- Sim, senhor - disse West, inclinando a cabeça para se esquivar de uma lufada de espuma, pois as ondas chocavam contra a amura de estibordo da Surprise, que navegava
de bolina com rumo sul-sudeste, e avançavam em direção à popa lançando salpicos que se misturavam com a chuva -. Que agradável é estar em alto mar outra vez!
Agora, na primeira etapa da viagem, Jack Aubrey era três pessoas em uma. Era o capitão da fragata, naturalmente; era o oficial de derrota, quer dizer, o responsável
pela navegação, entre outras coisas, porque não havia dado sua aprovação a nenhum dos muitos candidatos que haviam se apresentado; e também era o contador. Geralmente,
os oficiais ao comando dos barcos enviados para fazer explorações também desempenhavam a função de contador, mas Jack nunca o havia feito e, ainda que como capitão
havia tido que supervisionar aos contadores e firmar seus livros, assombrava-se com o volume e a complexidade das contas agora que devia fazê-las detalhadamente.
Na grande cabine entrava luz suficiente para trabalhar pelas janelas de popa, uma série de janelas de vidro que formavam uma curva de lado a lado da fragata e que
lhe produziam certo prazer inclusive nos momentos mais tristes de sua vida. O mesmo lhe produzia a própia cabine, uma habitação exageradamente bonita que tinha um
único ângulo reto (o piso era curvo, o teto era curvo e os lados eram inclinados) e media vinte e quatro pés de largura e catorze de comprimento, pelo que dispunha
de mais espaço que todos os oficiais juntos. E isso não era tudo, pois a grande cabine se comunicava com outras duas menores, das quais uma era um refeitório e outra
um dormitório. Mas Jack havia cedido a cabine-refeitório para Stephen Maturin e no momento em que o café da manhã chegou, depois de revisar a terceira parte das
faturas, comprovantes e notas de embarque, assinalou a porta com a cabeça e perguntou:
- Está acordado o doutor?
- Não se ouve nenhum ruído, senhor - respondeu Killick -. Ontem à noite estava morto de cansaço, como um cavalo fustigado. Mas talvez este aroma o desperte, como
já aconteceu amiúde.
O aroma, uma mistura do odor do café com o bacon, salsichas e pão torrado, havia lhe despertado em muitas latitudes, pois Jack, como a maioria dos marinheiros, era
ultraconservador em questões culinárias e geralmente, inclusive em viagens longas, havia levado galinhas, porcos, uma cabra silvestre e sacos de café verde e havia
conseguido ter quase o mesmo desjejum (salvo as torradas) no Equador e nos círculos polares. Stephen considerava essa refeição o principal sinal de civilização dos
ingleses, mas desta vez nem sequer o odor do café logrou despertá-lo. Tampouco o lograram os ruídos da limpeza do castelo de popa justo acima de sua cabeça, nem
os apitos com que ordenaram aos marinheiros guardar suas macas quando soaram as sete badaladas ou com que os chamaram para desjejuar quando soaram as oito, aos que
seguiu, como sempre, o ruído de gritos e passos apressados. Continuou dormindo enquanto o vento amainava gradualmente e enquanto a fragata virava para estibordo,
uma manobra acompanhada de muitos gritos e dos ruídos produzidos ao se mover as braças e ao fazer aduchas. Só na entrada da guarda da manhã que Stephen apareceu,
bocejando e estirando-se, com os calções desabotoados no joelho e a peruca na mão.
- Que Deus e Maria o bendigam, cavalheiro - cumprimentou-lhe Padeen, que o estava esperando.
- Que Deus, Maria e são Patrício lhe bendigam, Padeen - respondeu Stephen.
- Quer que lhe traga uma camisa limpa e água para se barbear?
Stephen refletiu alguns momentos enquanto acariciava seu queixo.
- Pode trazer a água - respondeu -, pois o tempo é aprazível, o movimento leve e o perigo mínimo. Contudo, com respeito à camisa - acrescentou, alçando a voz para
que o ouvisse apesar da conversa de um grupo de homens que trabalhavam onze polegadas acima dele -, com respeito à camisa, já tenho posta uma e não penso tirá-la.
Mas pode dizer a Killick que faça o favor de trazer-me uma cafeteira cheia.
Isto último o disse ainda mais alto e em inglês, porque provavelmente Killick, que era sumamente xereta, o ouviria.
Pouco tempo depois, barbeado e reanimado, o doutor Maturin subiu para o convés, quer dizer, saiu de sua cabine pela porta dianteira, avançou pelo corredor até o
convés e depois subiu pela escada para o castelo de popa, onde o capitão, o ajudante do oficial de derrota, o contramestre e o condestável conversavam animadamente.
Foi até o coroamento e, recostado nele, sob a luz do sol, percorreu com o olhar toda a fragata até a proa, umas quarenta jardas, e depois olhou mais além do gurupés.
O dia era realmente agradável, mas o vento era fraco, e apesar da Surprise ter muito velame desdobrado navegava escassamente a dois ou três nós e com a coberta pouco
inclinada.
Tudo lhe parecia igual como sempre, desde os tensos cabos dos aparelhos até as curvas das brancas velas iluminadas pelo sol que do alto projetavam sua escura sombra,
e tardou algum tempo em descobrir qual era a principal diferença. Não era a falta de uniformes, porque, exceto nos navios insígnias e alguns outros ao comando de
capitães muito rigorosos, os oficiais se vestiam usualmente com variada roupa de trabalho salvo quando o capitão lhes convidava para comer em sua cabine ou tinham
que realizar algum ato formal, e os marinheiros sempre se vestiam como queriam; tampouco era a falta do típico estandarte de um barco de guerra ondeando no tope
de um mastro, o que nunca haveria notado. A diferença era que não havia no castelo de popa infantes da marinha, com suas casacas de colorido escarlata formando um
chamativo retângulo que contrastava com a pálida coberta e as distintas tonalidades do mar, e tampouco adolescentes, nem grumetes nem cadetes, quem ocupavam muito
lugar, eram difíceis de fazer calar e nem sempre cumpriam suas tarefas mas proporcionavam alegria. Contudo, havia alegria e se notava muito mais que em um navio
da Armada Real sob o comando de um capitão igualmente estrito (os marinheiros riam nos cestos das gáveas, no corrimão e no castelo), mas era uma alegria diferente.
Stephen estava refletindo sobre a diferença quando Bonden chegou à popa para arrumar a bandeira, uma bandeira vermelha que havia se enganchado.
- Os marinheiros se alegraram muito com a carta de Nelson, senhor - disse Bonden depois de trocar comentários sobre o vento e a possibilidade de pescar bacalhaus
com um fio de pescar e um anzol -. Eles a consideram um bom sinal.
Nesse momento o contramestre chamou com apitos a Bonden e a todos os outros marinheiros para que baixassem o cúter azul pelo lado, e Jack foi até a popa.
- Bom dia - Stephen lhe cumprimentou-. Sinto por não lhe ter visto n a hora do café da manhã, mas dormi como o homem que, conforme Plutarco, correu sem parar a maratona
para Atenas o teria feito se não tivesse morrido, a pobre criatura. Martin ainda dorme, apesar das bolhas que tem. Meu Deus, como corremos! Temíamos tanto perder
a fragata! E nas empinadas colinas às vezes me puxava pela mão.
- Bom dia, doutor - cumprimentou Jack -. Uma bonita manhã, não acha? Então o senhor Martin está a bordo. Achava que ele havia ido para sua casa para arrumar seus
assuntos, e que se reuniria conosco quando voltássemos a Shelmerston.
- Não tive tempo de falar contigo ontem à tarde e à noite eu dormi antes que baixasse. Mas nem sequer agora, ainda que não estamos sentados à mesa jantando com o
almirante, podemos falar confidencialmente - disse em voz baixa, olhando para o leme da Surprise, colocado justo diante do mastro mezena, a dez pés de distância
da popa; junto dele se encontravam o timoneiro e o suboficial que governava a fragata e, próximos deles, um grupo de marinheiros que subiam rápido pelos amantilhos
do pau mezena para levar as armas para o cesto da gávea, e o oficial de guarda, o qual se encontrava junto ao cabrestante.
- Vamos para baixo - propôs Jack.
- Mesmo aqui - disse Stephen -, inclusive neste lugar da fragata aparentemente impenetrável, poucas coisas são ditas que não cheguem ao conhecimento de todos, de
uma maneira mais ou menos distorcida, em todos os cantos ao cair da noite. Não digo que haja ninguém mau ou mal-intencionado a bordo, mas os marinheiros já ouviram
falar da carta de Nelson. Sabem, quer dizer, acreditam saber que um grupo de sócios representados por mim compraram a Surprise e que entre eles se encontra meu antigo
paciente o príncipe William. Além disso, sabem que Martin desempenhará as funções de cirurgião em vez das de pastor, já que o obrigaram a pendurar o hábito quando
o acusaram de ter relações com uma mulher. Conhece este caso, verdade, Jack?
- Ouvi falar dele.
- Foi a mulher do bispo. E como já não veste o hábito é incapaz de trazer-nos má sorte. Com relação à sua presença aqui, eu lhe disse que lhe daria um adiantamento
do pagamento, como você amavelmente me deu há muito, muito tempo, e que lhe sugeria que fosse para sua casa e subisse a bordo com seu baú da próxima vez que estivéssemos
no porto; contudo, preferiu enviar o adiantamento para sua esposa e ficar a bordo. Acredito que está em uma situação desesperada, pois não tem nenhuma forma de ganhar
a vida nem esperança de que o nomeiem capelão de nenhum barco do rei desde que escreveu o desafortunado opúsculo. Por outro lado, tem um sogro antipático e se regressar
corre o risco de ser preso por não pagar as dívidas. Como só vamos navegar por quinze dias, está disposto a suportar o incômodo de não ter uma camisa para trocar
e usar sapatos gastos, pois há a possibilidade de que consigamos um butim. Eu lhe expliquei o sistema de divisão, porque ele não o entendia, e diz que se contentaria
com quatro peniques. Mas estou impaciente para lhe dizer outras coisas mais importantes. Por que não subimos para o cesto da gávea quando esses homens terminarem
seu trabalho?
- Tardarão um pouco ainda - disse Jack, que havia subido outras vezes ao cesto da gávea com Stephen -.Talvez seja melhor dar uma volta ao redor da fragata no esquife
quando terminem as práticas de tiro com os canhões; quero ver como está a exárcia.
- Pensa em fazer práticas de tiro com os canhões?
- Oh, sim! Não viu como baixavam pelo costado o cúter azul com os alvos? Agora que estamos em um lugar afastado das rotas mais frequentadas quero ver como os novos
marinheiros disparam com munições de verdade. Quero que façam meia dúzia de séries antes do almoço, competindo os marinheiros de estibordo com os de bombordo. Indubtavelmente,
reforçará a moral.
- Os alvos já foram colocados, senhor - disse da porta da cabine Pullings, que em contraste com Jack Aubrey estava realmente animado, como um cachorro terrier ao
qual houvessem mostrado um rato.
Stephen tinha a impressão de que seu amigo não se importaria que os alvos se afundassem por si mesmos, e durante a primeira parte da prática essa idéia se confirmou.
Fazia tempo que perdera a alegria provocada pela carta de Nelson e a amabilidade do almirante, e a melancolia voltou a lhe invadir. Mas a melancolia não era acompanhada
de um comportamento desacertado, pois Jack Aubrey tinha um grande sentido do dever e sempre era estrito e meticuloso em seu barco. Stephen notou que já não lhe comoviam
o odor da mecha de combustão lenta, nem o terrível estrondo que faziam os canhões ao disparar, nem os chiados que faziam ao retroceder nem a fumaça da pólvora que
se amontoava na coberta. Também notou que Pullings, que estimava a Jack Aubrey, olhava-o com angústia.
O que Stephen não observou foi que as práticas de tiro com os canhões e os mosquetes foram muito más, pois essas atividades costumavam ter lugar pela tarde, quando
todos os tripulantes eram chamados a ocupar seu posto de combate, e o dele, por ser cirurgião, ficava abaixo, onde atendia aos feridos. Não sabia que anteriormente
os tripulantes da fragata manejavam os canhões de forma extraordinária nem sabia apreciá-lo. Desde o começo de sua carreira naval, e sobretudo desde que tomou pela
primeira vez o comando de um barco, Jack Aubrey estava convencido de que disparar os canhões com rapidez e precisão influía mais em uma vitória que tê-los polidos,
e seguiu guiando-se por esse princípio nas sucessivas embarcações que teve sob seu comando. Como havia passado mais tempo ao comando da Surprise que das outras,
havia logrado que seus tripulantes alcançassem a excelência. Em boas condições, a fragata disparava três certeiras descargas em três minutos e oito segundos, o que,
em sua opinião, nenhum outro barco da Armada Real podia igualar e muito menos superar.
Ainda que a Surprise já não fosse uma embarcação do rei, ainda estavam a bordo todos os antigos canhões (Cruel Assassino, Billy o Saltitante, Escupefuego, Morte
Súbita, Tora Cribb e os demais). Também estavam muitos dos artilheiros, mas com o fim de conseguir uma tripulação unida, isto é, evitar no possível a inimizade e
as divisões que sempre se produziam, Jack e Pullings haviam distribuído os novos marinheiros entre os veteranos, e o resultado disso era que disparavam de maneira
lenta e imprecisa. A maioria dos corsários estavam mais acostumados a abordar os barcos inimigos que a disparar-lhes a distância (especialmente porque os canhonaços
estragavam a mercadoria da presa), e por essa razão muito poucos podiam apontar com um mínimo de precisão. Muitos antigos tripulantes da Surprise lançavam furtivas
olhadas ao capitão, porque costumava ser um crítico implacável, mas não notavam em seu rosto nenhuma reação, senão impassibilidade.
Jack falou uma só vez e foi para um marinheiro novo que estava muito perto de um canhão.
- O artilheiro que está junto ao canhão número seis: James! Separe-se ou perderá um pé durante o retrocesso!
Os marinheiros dispararam o último canhonaço. Então limparam e voltaram a carregar o canhão, atacaram a carga e o sacaram de novo.
- Bem, senhor... - disse Davidge, vacilante.
- Vamos ver o que fazem os de bombordo, senhor Davidge - ordenou Jack.
- Guardem os canhões! - gritou Davidge e depois acrescentou -: Todos a mudar de bordo!
Os tripulantes recém chegados não eram hábeis no manejo dos canhões, mas eram excelentes marinheiros e correram tão rápido como os da Surprise para pegar as escotas,
as amuras, as bolinas, as braças e os gradis que lhes correspondiam. E imediatamente se ouviram as conhecidas ordens: "Leme para bombordo! Soltar amuras e escotas!".
Mas imediatamente depois da ordem "Girar a vela maior!" se ouviram desde o tope de um mastro os gritos: "Coberta! Barco à vista a onze graus pela amura de bombordo!".
Inclusive do convés o barco podia ser visto, que navegava com o vento em popa a grande velocidade. Era óbvio que o serviola estava olhando as práticas de tiro em
vez do horizonte. A Surprise virou para sotavento e Jack ordenou inclinar o velacho e depois, com o telescópio pendurando, subiu ao cesto da gávea. Dali podia ver
o casco, e sem necessidade do telescópio Jack podia identificá-lo: era um grande cúter, um dos leves e velozes barcos de duzentas ou trezentas toneladas que usavam
os contrabandistas e quem os perseguiam. Jack pensou que estava muito arrumado para ser um barco que fazia contrabando, muito elegante; pouco depois viu pelo telescópio
um estandarte de navio de guerra recortando-se sobre a vela maior. O cúter se encontrava em uma posição vantajosa, mas provavelmente a Surprise o adiantaria navegando
com o vento ao largo; contudo, isso significaria ir para a rota usual dos barcos, onde aumentava a possibilidade de que algum capitão de um potente navio de guerra
detivesse a fragata e levasse muitos mais tripulantes que o de um cúter. Por outro lado, era impossível escapar navegando de bolina, já que a quilha de uma embarcação
de exárcia de cruz não podia formar com a direção do vento um ângulo menor que a quilha de um cúter.
Regressou para a coberta e falou com o oficial de guarda.
- Senhor Davidge, ficaremos em pairo até que o cúter chegue e depois continuaremos as práticas. Esteja preparado para desdobrar as gáveas e içar a bandeira.
Então se ouviu um burburinho de desaprovação, isto é, algo mais forte que um burburinho perto das caronadas do castelo de popa, onde ficavam os marinheiros novos,
que não desejavam que os recrutassem à força. Um deles disse:
- É o Viper, senhor, a embarcação mais veloz navegando com o vento em popa.
- Silêncio! - gritou Davidge, dando no homem um golpe na cabeça com o alto-falante.
Jack desceu e depois de alguns momentos mandou buscar Davidge.
- Ah, senhor Davidge! - exclamou -. Comuniquei a West e a Bulkeley algo que não disse ao senhor: neste barco não se permitem os açoites nem os insultos. Não há lugar
para oficiais com mão de ferro em um barco de guerra particular.
Ao ver a expressão de Jack, Davidge reprimiu seus desejos de responder. Nesse momento Jack Aubrey lhe parecia um oficial com mão de ferro disposto a descarregar
um forte golpe em qualquer pessoa.
Killick trouxe silenciosamente uma respeitável casaca azul sem os galões, as fitas e os botões que se usavam na Armada. Jack o pôs e começou a ordenar os documentos
que teria que apresentar em caso de que lhe ordenassem subir a bordo do cúter. Alçou a vista quando Stephen entrou e, com um sorriso forçado, disse:
- Pelo que vejo, também trouxe papéis.
- Escute-me, meu amigo - disse Stephen, aproximando-o do mirante de popa -. Tive que lutar com minha consciência para trazer isto, porque se subentendia que foi
redigido para ser usado somente na viagem para a América do Sul. Mas o carpinteiro me disse que o Viper está sob o comando de um homem que acaba de ser nomeado substituto,
um tipo pretencioso, rude e tirânico, e acredito que se lhe provoca, como temo que o fará, você vai se comprometer e não poderemos fazer a viagem para a América
do Sul nem para nenhuma outra parte.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack, lendo o documento, que era uma carta do Almirantado em que se proibia recrutar à força aos tripulantes da fragata -. Admiro seu bom
julgamento. Procurei no Boletim Oficial da Armada e vi que quem está ao comando do Viper é o filho de Dixon, aquele pilantra de Porto Horn. Acredito que me teria
sido difícil não lhe quebrar a cara caso mostrasse uma atitude arrogante. Meu Deus, como isso me tranqüiliza!
Apesar disso, Jack teve que usar toda sua capacidade de se controlar, que era maior do que pensava, para evitar esbofetear o jovem. Perdera a sensação de prazer,
mas a susceptibilidade, a irritabilidade e a raiva permaneciam intactas ou se acentuavam às vezes, exceto nos períodos de apatia, e esse não era um deles. Quando
o Viper estava muito perto da Surprise, o substituto ordenou que se aproximasse por sotavento e que o capitão subisse a bordo com seus documentos rápido como um
raio. Depois disparou um canhonaço para a frente da proa para reforçar a ordem.
Jack cruzou a distância que os separava no bote que rebocava os alvos e depois subiu a bordo do Viper (só teve que subir dois degraus pelo costado, porque esse tipo
de barco se afundava muito na água). Cumprimentou aos que estavam no castelo de popa e o jovem encarregado da guarda, um ajudante do oficial de derrota, tocou seu
chapéu com a mão mecanicamente, disse que o capitão estava ocupado e que receberia ao capitão Aubrey mais tarde; depois reiniciou a conversa com o escrevente do
capitão. Então se pôs a caminhar de um lado a outro enquanto falava com afetada parsimônia.
Na Armada os guardas-marinhas dos cúteres eram famosos por seus maus modos, e os do Viper eram exemplares nesse sentido; recostados na borda com as mãos nos bolsos
e olhando-o fixamente, murmuravam e riam entre os dentes. Mais adiante estavam agrupados os suboficiais do cúter, que o olhavam com silencioso desprezo; também havia
um marinheiro que navegou com ele durante muitos anos e que permanecia imóvel, com um cabo aduchado na mão e uma expressão de horror.
Um pouco depois o capitão do Viper lhe recebeu no cubículo que fazia a função de cabine. Dixon estava sentado atrás de uma escrivaninha e não ofereceu uma cadeira
para Jack. Ele lhe odiava desde os remotos dias passados em Menorca, e quando avistou a Surprise começou a preparar frases sarcásticas e sumamente agressivas. Porém,
ao ver que Jack enchia o reduzido espaço com seu robusto corpo (que parecia ainda maior porque teve que inclinar-se para passar pela porta) e ao notar sua expressão
grave e a autoridade que emanava dele, o jovem Dixon não cumpriu sua resolução. Quando Jack tirou alguns objetos de cima de um escaninho e se sentou nele, não disse
nada. Logo, depois de folhear os documentos, limitou-se a dizer:
- Vejo que tem uma tripulação muito grande, senhor Aubrey. Terei que tirar-lhe uma vintena de homens mais ou menos.
- Estão protegidos.
- Bobeiras! Não podem estar protegidos. Os marinheiros dos barcos corsários não estão protegidos.
- Leia isto - disse Jack, pondo-se de pé diante dele e recolhendo os outros documentos.
Dixon o leu, voltou a lê-lo e o pôs a contraluz para ver a filigrana, enquanto Jack olhava pelo escotilhão como se moviam os chapéus de lona alcatroada dos tripulantes
de seu bote.
- Bem - disse Dixon finalmente -, acho que não há nada mais o que falar. Pode ir.
- O que disse? - perguntou Jack, inclinando-se para ele.
- Disse que não há nada mais o que falar.
- Adeus, senhor.
- Adeus, senhor.
Os tripulantes do bote o receberam com amplos sorrisos, e quando estavam perto da Surprise um dos homens de Shelmerston gritou para os companheiros que os olhavam
por cima das macas:
- Companheiros, estamos protegidos!
- Silêncio no bote! - gritou com tom imperativo o timoneiro.
- Silêncio de proa a popa! - gritou o oficial de guarda quando começaram a se propagar os gritos de alegria.
Jack ainda dedicava tanta atenção ao documento de Stephen e suas possíveis implicações que quase não notou a algaravia. Desceu rapidamente para a cabine e, apenas
colocou os documentos no lugar correspondente, ouviu um alvoroço ainda maior, pois todos os marinheiros de Shelmerston e os antigos tripulantes da Surprise que eram
desertores subiram correndo para os amantilhos de barlavento para ver o Viper, que havia mudado a orientação das velas e começava a ganhar velocidade.
Um suboficial gritou:
- Um, dois, três!
Então todos exclamaram:
- Ah, ah, ah!
Depois começaram rir como loucos dando-se palmadas no traseiro.
- Basta! - gritou Jack com uma voz apropiada para o cabo Horn -. Maldito bando de tontos! Acaso isto é um prostíbulo? Ao próximo marinheiro que se dê uma palmada
no traseiro lhe despedaçarei a açoites! Senhor Pullings, desça o esquife do doutor pelo costado imediatamente, por favor, e prepare três alvos a mais.
- Stephen - disse, deixando de mover os remos, quando estavam a umas duzentas jardas da fragata -. Faltam-me palavras para expressar meu agradecimento por essa proibição.
Se esse jovem mesquinho houvesse levado algum de nossos velhos companheiros de tripulação que são desertores, e estou convencido de que não deixaria a todos, teriam
corrido o risco de que os enforcassem, ou pelo menos de que lhes dessem várias centenas de açoites. Ademais, teríamos que ficar brincando sempre de gato e rato com
os navios do rei, porque, apesar de que, por senso comum, um geralmente se mantém fora da rota das esquadras, não pode ficar seguro de que se esquivará dos barcos
que patrulham. Acho que não devo perguntar como o conseguiu.
- Mas lhe contarei de toda maneira porque quando se requer discrição você é como uma tumba - replicou Stephen -. Na viagem para a América do Sul espero estabelecer
algumas relações que sejam úteis para o Governo, e o Almirantado sabe disto semi-oficialmente e também que não posso chegar lá em um barco ao qual lhe tiram os tripulantes;
por isso me deram essa proteção. Eu teria contado muitas coisas que queria lhe dizer se não fosse porque estávamos longe e não eram adequadas para escrevê-las em
uma carta. - Stephen fez uma pausa, olhou para uma distante gaivota e depois continuou -: Agora escute-me bem, Jack, porque vou usar toda minha capacidade mental
para tentar explicar como estão as coisas atualmente. É difícil, pois não tenho total controle sobre o que posso dizer nem sobre o que me disseram confidencialmente
e, por outro lado, não lembro de tudo o que lhe contei durante esse horrível período, pois tenho muitos detalhes confusos na mente. Apesar disso, incluindo o que
obviamente sabe, eu lhe direi qual é a situação a grosso modo. O argumento para demostrar sua inocência era que Palmer lhe estava muito agradecido e para corresponder
ao seu favor lhe contou que se havia firmado um tratado de paz, que subiria o preço das ações na bolsa e que era aconselhável que comprasse determinados títulos
antes da subida. O argumento para demostrar sua culpa era que não existia ninguém chamado Palmer e que você mesmo difundiu esse rumor; em resumo, que você manipulou
fraudulentamente o mercado de valores. Naquele momento não pudemos apresentar Palmer e, além disso, não era possível ganhar o caso com o juiz que o instruía. Mas
mais tarde, e agora cheguei a uma parte da qual acho que sabe pouco ou nada, alguns de meus colegas e eu, com ajuda de um caçador de ladrões sumamente inteligente,
encontramos o cadáver de Palmer.
- Mas então...
- Jack, eu lhe rogo que não me peça que seja mais explícito nem interrompa o fio de meu pensamento. Como disse, não sou um agente secreto livre e tenho que avançar
com muito cuidado por meu caminho. - Fez outra pausa e ficou pensativo um momento enquanto o bote se movia lentamente entre as ondas -. Palmer foi morto por seus
chefes, os homens que o haviam encarregado de lhe enganar, porque um cadáver, sobretudo um cadáver mutilado, não pode comprometê-los. Seus chefes são ingleses que
ocupam altos cargos na administração inglesa e espiões ao serviço da França, mas neste caso seu propósito era fazer dinheiro. Queriam manipular fraudulentamente
o mercado de valores e que parecesse que era outra pessoa quem o havia feito. Um desses homens era Wray... Não me interrompa, Jack, eu lhe peço. Como ele conhecia
perfeitamente seus movimentos e sabia que estava a bordo do barco com bandeira branca, traçou um plano em que se sucediam vários acontecimentos e o levou a cabo
com assombroso êxito. Porém, apesar de que isso era óbvio depois do ocorrido, nunca teríamos descoberto que Wray e seu amigo eram os principais promotores se um
ofendido espião a serviço da França, neste caso um francês, não os houvesse delatado.
Stephen ficou refletindo um pouco, depois pegou do bolso um grande diamante azul que ocupava a metade da palma de sua mão e, muito devagar, girou-o para que brilhasse
sob a luz do sol. E continuou:
- Jack, vou lhe dizer uma coisa: o francês era Duhamel, aquele homem que vimos em Paris. Diana tentou que nos liberassem usando este bonito objeto, e parte do acordo
ao qual chegamos quando fugimos foi que o devolveriam. Duhamel o trouxe e, além disso, em pagamento a um serviço que lhe prestei, não só me revelou o nome de Wray
e o de seu colega Ledward, Edward Ledward, como também lhes armou uma armadilha tão boa como a que Wray fez para você. Como ambos eram membros de Button's, ele se
reuniu com eles na rua Saint James, justo diante do clube, e enquanto eu os observava da janela do Black's, ele lhes entregou um feixe de notas e recebeu um relatório
sobre os movimentos da Armada e do Exército ingleses e sobre as relações da Inglaterra com o reino da Suécia. Meus colegas e eu cruzamos a rua pouco tempo depois,
mas lamento, lamento profundamente ter que confessar que estragamos o caso. Quando perguntamos por Wray e seu amigo nos negaram a entrada porque eles não queriam
receber visitas. Por desgraça, um de meus acompanhantes tratou de entrar à força e provocou um alvoroço, assim que quando conseguimos a apropiada ordem judicial,
eles haviam escapado; ainda que não saíram pela cozinha nem pela porta que dava para o estábulo, já que tínhamos homens postados ali, mas por uma pequena clarabóia
que havia no teto. Depois foram caminhando pelos parapeitos das sacadas até Mother Abbott's, onde uma das meninas lhes deixou entrar pensando que estavam brincando.
Esconderam-se e, até o momento, nenhum dos encarregados do caso descobriu onde. É provável que Ledward suspeitasse que estava em perigo, pois meus colegas não encontraram
nada revelador entre seus documentos. Eles pensam que, possivelmente, tinha há tempos um engenhoso plano para escapar. Wray, em troca, não foi tão cauteloso, e pelos
documentos que encontraram em sua casa é evidente que estava implicado no caso da bolsa e que se beneficiou muito dele. O informe que entregaram a Duhamel é sumamente
comprometedor, porque contém alguns dados que só podem proceder do interior do Almirantado. Bem, acho que lhe disse tudo o que posso. Resta acrescentar que meus
colegas, que sempre pensaram que haviam cometido uma indiscrição com respeito a esses condenados títulos e ações, agora estão convencidos de sua inocência.
Durante os últimos dez minutos o coração de Jack havia batido com força e rapidez crescentes e agora parecia que lhe enchia o peito. Jack respirou fundo e, controlando
até certo ponto o tom de sua voz, perguntou:
- Isso significa que é possível que me reabilitem?
- Se houvesse justiça neste mundo, estou seguro de que o fariam, meu amigo - respondeu Stephen -. Mas não deve pensar que isso ocorrerá realmente nem conceber muitas
esperanças, pois Ledward e Wray ainda não foram capturados e não podem ser julgados. Possivelmente alguém que ocupa um cargo mais alto do que eles os está protegendo,
pois é estranho que alguns sejam resistentes a se mover... O caso é que os ministros não querem que a oposição se informe desse espantoso escândalo, e talvez considerem
mais importante uma raison d'état que uma ação injusta contra um indivíduo, especialmente se esse indivíduo não tem influência política; ainda que o contrário também
é possível. E com respeito a isso, permita-me dizer que a influência do general Aubrey é nefasta. Além do mais, quem tem autoridade é resistente a admitir os erros
que cometeu. Por outro lado, qualquer amigo lhe aconselharia que não se desesperasse e, sobretudo, que não se deixasse vencer pelo desânimo. Como disse nosso querido
Burton, não deve permanecer inativo nem ficar só. A solução, se existir, é a atividade, a atividade no mar.
- Lamento ter estado tão triste esta manhã - disse Jack -. A verdade é que... Não é que me queixe, Stephen, mas a verdade é que tive um sonho que parecia tão real
que ainda agora tenho a impressão de que é algo tangível. No sonho eu via tudo o relacionado com o caso, o julgamento e o que seguiu depois, e depois me dava conta
de que estava sonhando, o que me produziu um enorme regozijo e um grande alívio. Acho que foi minha imensa alegria que me despertou, mas inclusive então me parecia
que ainda estava no sonho e procurei esperançado minha velha casaca do uniforme.
Subiu os remos e terminou de dar a volta ao redor da fragata enquanto observava a exárcia. Reconhecia que Stephen tinha razão em tudo o que havia dito, e na parte
irracional de seu ser uma suave luz dissipou sua infelicidade.
Quando remava em direção à fragata disse:
- Alegro-me de que tenha visto Duhamel outra vez. Eu simpatizava com ele.
- Era um bom homem - observou Stephen -. E a devolução do diamante, quando estava cortando os laços que o uniam ao seu país para ir ao Canadá, é um dos atos de generosidade
mais assombrosos que já vi. Tenho muita pena.
- O pobre homem não morreu, não é?
- Não teria mencionado seu nome se estivesse vivo. Atendendo ao meu pedido Heneage Dundas ia levá-lo para a América do Norte, onde pensava ficar para se estabelecer
na província de Quebeque, junto a um rio no qual abundam as trutas. Transformou sua nada desprezível fortuna em ouro e a colocou em uma faixa que levava presa na
cintura. Quando foi para subir no navio em Spithead, onde as águas eram turbulentas, caiu entre ele e o bote, como me ocorreu algumas vezes. Sua fortuna o afundou
e não foi possível resgatá-lo.
- Sinto muito - disse Jack, e começou a remar um pouco mais forte.
Refletiu sobre se devia falar de Diana e do diamante ou não, pois lhe parecia que deixar de fazê-lo não era uma reação humana normal, mas pensou que o assunto era
muito delicado, que poderia cometer um desacerto e que era melhor guardar silêncio até que Stephen voltasse a mencioná-lo.
Quando estavam de novo a bordo da fragata, ordenou que pegassem os outros alvos. Agora se importava com os disparos da guarda de bombordo; os disparos foram um pouco
melhores e os acompanharam duras críticas, conselhos e inclusive elogios desde o castelo de popa. Depois Jack consentiu em que a Surprise disparasse outra vez as
duas baterias a uma distância muito menor, mas foram disparos a intervalos, em sucessão de proa a popa, porque as balizas eram muito velhas para suportar o impacto
do fogo simultâneo e só o fariam em caso de emergência. Como nos barcos de guerra privados havia que poupar a pólvora porque era uma substância muito cara, na maioria
deles o fogo das baterias, tanto a intervalos como de outra maneira, era algo exageradamente raro, e os tripulantes pensaram que se fazia para celebrar seu triunfo
sobre o Viper. O capitão e o condestável puseram fim à celebração disparando os canhões de proa, dois canhões longos de nove libras com o calibre perfeito, feitos
de bronze e assombrosamente precisos, propriedade de Jack Aubrey. Ambos dispararam aos restos dos alvos que as baterias haviam destroçado e que ainda se mantinham
flutuando, e ainda que nenhum o fez admiravelmente, os dois provocaram calorosos gritos de júbilo. Quando Jack se aproximava da popa, Martin disse para Stephen:
- O capitão se parece cada vez mais com o homem que era, não acha? Ontem pela tarde ele me surpreendeu muito.
A infelicidade de Jack desaparecera, mas ainda estava preocupado e angustiado. Além das tediosas e necessárias reflexões que fizera sobre os problemas locais e legais
o recrutamento da tripulação que podia originar (não era tão resistente e otimista como há um ano atrás), não advertira que era difícil, quase impossível, conseguir
uma tripulação homogênea. Tampouco advertira que os anos que os tripulantes da Surprise haviam trabalhado em equipe e haviam manejado o mesmo canhão com os mesmos
companheiros os haviam situado acima do nível normal. Os marinheiros procedentes de barcos corsários eram muito fortes e tinham brio, e era provável que nas práticas
de tiro sem disparos reais (as que faziam geralmente porque a pólvora era muito cara) sacassem e guardassem os canhões com brio; contudo, era evidente que necessitariam
de meses ou mesmo de anos para ter a rapidez, a coordenação e a capacidade de reduzir o esforço ao mínimo que haviam convertido os tripulantes da Surprise no terror
de seus inimigos. Entretanto, ele teria que encomendar os canhões às antigas brigadas que os manejavam ou mudar sua estratégia. Em vez de tentar debilitar o seu
oponente a distância, procurando derrubar um de seus mastaréus para depois se situar diante da proa ou da popa e fazer uma devastadora descarga e finalmente, se
fosse necessário, abordá-lo, poderia seguir o conselho de Nelson: "Atacar com decisão". Mas Nelson dera esse conselho no início da última guerra, quando os franceses
e os espanhóis eram muito inferiores no manejo dos canhões e na execução das manobras. Contudo, atualmente, se uma embarcação tentasse se aproximar de um barco inimigo
por barlavento quando o vento era fraco e o mar calmo, expunha-se a que este crivasse sua proa com os disparos de uma bateria durante vinte ou trinta minutos sem
lhe permitir responder, pelo que quando chegasse a abordar-se com ele teria tantos danos que poderia ser capturada, quer dizer, o caçador seria caçado. Por outra
parte, Jack fizera as práticas de tiro quando estava ao comando de barcos do rei e ainda que, naturalmente, gostasse de capturar mercantes e barcos corsários do
inimigo, seu objetivo principal era apresar, queimar, afundar ou destroçar seus barcos de guerra. Agora a situação era distinta; agora suas presas mais cobiçadas
eram mercantes ou barcos corsários, intactos se possível, e isso requeria um enfoque diferente. Certamente, sem nenhuma dúvida, ele gostaria de entrar em combate
com um barco francês ou norte-americano de similar potência, um duro combate que não tivesse como motivo a obtenção de ganhos, já que se um barco corsário apresasse
uma fragata inimiga alcançaria a glória. Porém, infelizmente, ainda que a Surprise fosse veloz, sobretudo navegando de bolina, tinha poucas possibilidades de alcançar
a glória porque pertencia a outra era. Só restavam cinco fragatas de vinte e oito canhões na Armada Real, e dessas cinco, quatro já não estavam em serviço. A maioria
das fragatas atuais deslocavam mais de mil toneladas de água e levavam trinta e oito canhões de dezoito libras e, ademais, caronadas; assim que a Surprise tinha
uma potência tão pouco adequada para lutar contra elas como para lutar contra um navio de linha. Levava canhões de doze libras (e se não houvessem reforçado os vaus
de bateria para suportá-los teria que usar canhões de nove libras) e, apesar de sua dotação estar completa, conforme o estipulado pela Armada Real, tinha menos de
duzentos tripulantes, enquanto que as grandes fragatas norte-americanas tinham mais de quatrocentos. Porém, afinal de contas, era uma fragata e seu capitão não alcançaria
a glória se capturava uma embarcação de classe inferior, como um barco correio, ainda que fosse o mais potente, ou uma corveta, tanto se levasse aparelho de navio
como se não. - Talvez seria melhor voltar a pôr as caronadas - disse.
Em outro tempo, além dos canhões de proa, a Surprise só tinha caronadas, alguns objetos pequenos, largos e curtos que se pareciam mais a um morteiro que a um canhão
e eram leves e fáceis de manejar (uma caronada que podia disparar uma bala de trinta e duas libras só pesava dezessete quintais, enquanto que um canhão de trinta
e duas libras pesava trinta e quatro). Isso permitia à fragata lançar em cada bombardeio balas que pesavam conjuntamente 456 libras. Não obstante, não podia disparar
com precisão esse conjunto de balas que pesava 456 libras, e tampouco muito longe, porque eram armas de curto alcance. Mas o manejo de uma caronada não requeria
muita habilidade e, ainda que se lançavam grandes balas produziam um terrível efeito e podiam destruir ou afundar uma presa, se disparassem potes de metralha podiam
cortar a exárcia do inimigo e limpar eficientemente a coberta, sobretudo se estava cheia do marinheiros dispostos a abordá-la. Considerando que em cada pote havia
quatrocentos fragmentos de ferro, uma bateria de catorze caronadas podia disparar mais de quatro mil, e quatro mil pequenas balas cruzando a coberta de um barco
a 1674 pés por segundo produziam um efeito terrível, mesmo quando os marinheiros que as disparavam fossem inexpertos.Talvez essa fosse a melhor solução, ainda que
significaria descartar os aspectos mais importantes de um combate entre dois barcos: colocar com grande habilidade as armas na posição correta, disparar os canhões
mais precisos por separado e a grande distância, aumentar a freqüência dos disparos a medida que o inimigo se aproximava e crivá-lo no paroxismo da batalha, quando
ambas embarcações lutavam penol a penol entre espessas nuvens de fumaça e incessantes gritos.
"Mas isso faz parte de um mundo completamente diferente - se disse -, e não acredito que tenha a sorte de voltar a vê-lo; contudo, comunicarei a Stephen o que penso."
Quando era capitão de barcos do rei, Jack Aubrey nunca havia falado com ninguém deste tipo de assuntos. Sempre havia guardado silêncio sobre as questões estratégicas
e as táticas adequadas para sustentar um combate, ainda que não porque seguisse nenhuma teoria, mas porque lhe parecia óbvio que um capitão estava ao comando de
um barco para mandar e não para pedir conselho ou presidir um comitê. Conhecia capitães que formaram conselhos para consultá-los sobre assuntos de guerra, e o resultado
quase sempre fora uma prudente retirada ou a falta de um ataque decisivo. Mas agora as coisa eram diferente: já não estava ao comando de um barco do rei mas de um
que pertencia ao doutor Maturin. Em toda sua mente, salvo na parte mais superficial, tinha a idéia de que era impossível que Stephen pudesse ser o dono da Surprise;
mas isso era um fato, e ainda que desde o início ambos haviam acordado que ele atuaria como antes, quer dizer, que só o capitão teria a autoridade, achava justo
consultar algumas coisas com o dono.
- Sei muito pouco de batalhas navais - disse Stephen depois de ter escutado atentamente os argumentos contrários e a favor das caronadas -, pois apesar de ter participado
em Deus sabe quantas, quase sempre o fiz em um lugar afastado, abaixo da linha de flutuação, esperando aos pobres feridos ou atendendo-os, assim que não vale a pena
que expresse minha opinião. Mas neste caso lhe perguntaria: Por que não tenta assobiar e chupar cana? Por que não adestra os novos tripulantes no manejo dos grandes
canhões durante mais tempo e depois usa as caronadas se vê que isso não dá resultado? Sugiro isso porque, se não entendi mal, não quer que umas brigadas sejam formadas
só por antigos tripulantes da Surprise e outras só pelos novos tripulantes.
- Exatamente. Essa seria a melhor maneira de fazer uma inadequada divisão entre os tripulantes, pois de um lado estariam os bons artilheiros e do outro, os desajeitados.
Provavelmente terão ciúmes uns dos outros, ainda que, assombrosamente, demostraram pouco até agora, e tenho que fazer qualquer coisa para evitar que aumentem, pois
só um barco em harmonia é um barco de guerra eficiente. Mas fazer disparos alegremente, sem ter nada em conta, somente para que os artilheiros desajeitados cheguem
a ser bons seria muito caro.
- Escute-me, meu amigo - disse Stephen -. Admiro seu afã por poupar inclusive um penique a nossa sociedade; mas também o deploro, porque em ocasiões o dinheiro poupado
é menos importante que o fim ao qual se destina. Às vezes me parece que tenta poupar mais que o devido, mais que o conveniente para nossa causa. Não vou lhe ensinar
nada sobre sua profissão, mas se gastar uma dúzia de barris de pólvora diários pode ajudar a tomar uma decisão sobre uma questão tão importante, eu lhe peço por
favor que os gaste. Por um lado, muito amiúde hás comprado pólvora para seus barcos com o dinheiro obtido com as presas; por outro, qualquer observador imparcial
estimaria que esse gasto é insignificante. Além disso, ao pensar nos canhões e nas outras peças de artilharia, deve considerar que poupamos muito graças à malícia
de Pullings, pois não tivemos que comprar as caronadas.
Tom Pullings tinha tanta malícia em terra como seu capitão, e, como a ele, o haviam enganado vilmente. Mas conhecia muito bem o que poderia se chamar o mundo oculto,
o dos medíocres oficiais de baixa graduação, como os ajudantes de contramestre e seus assistentes, que sempre ficavam com um pé na costa e outro no mar, e ainda
que em todos os assuntos ordinários era muito honesto pensava, como muitos de seus amigos, que as propriedades do Governo eram um mundo à parte. Acompanhara Stephen
quando a Armada vendeu a Surprise, comeu suntuosamente com muitos amigos no porto e, quando soube com certeza qual era o destino da fragata, falou em particular
com os que estavam encarregados por ela e lhes disse que os canhões eram antiquados, que tanto o segundo reforço como o astrágalo da boca eram diferentes do estabelecido
pela regulamentação atual e, além do mais, que não lhe surpreenderia que depois de um considerável desgaste estivessem em tão más condições que só pudessem lançar
lascas de metal ou talvez não pudessem ser usados nunca mais. Seus amigos o entenderam perfeitamente e, apesar do dono da Surprise não ter recebido dinheiro em troca
de que a fragata levasse seus própios canhões até Shelmerston, entregaram-lhe como gratificação um conjunto de caronadas também defeituosas que agora eram uma pequena
parte das cento e sessenta toneladas de lastro e estavam armazenadas na parte anterior e posterior do coberta inferior, em um lugar relativamente alto com o fim
de que lhe dessem estabilidade.
- A verdade é que não - disse Jack, sorrindo, e depois de um momento continuou -: O conceito de moral dos membros da Armada é raro, e em alguns casos me custaria
defini-lo. Apesar disso, acredito que quase todos os marinheiros sabem onde traçar a linha entre um ato aleivoso e um tradicional acordo amistoso. Ademais, Tom partiu
com algo, mas não deixou sem nada os outros, pelo menos não sem lascas de metal, e, em minha opinião, esse não é um ato delitivo. Isso me lembra outra coisa: os
castigos em um barco de guerra privado. Já sabe o que penso com respeito aos açoites e que odeio ter que ordenar que os dêem. Ocorreu-me pôr em prática o que costuma
ser feito neste tipo de barco, que os própios marinheiros ditem a sentença.
- Imagino que não serão muito duros com seus companheiros - anotou Stephen.
- Mas são sim, sabe? Nos grandes motins de 1797, os marinheiros mantiveram a ordem em seus barcos, e se algum tinha má conduta, quero dizer, má conduta de acordo
com seu critério, preparavam um gradeado para açoitar-lhe. Não era raro que a sentença fosse de duzentas, trezentas ou quatrocentas chicotadas.
- Mas me parece que você decidiu não fazê-lo.
- Sim. É muito difícil, como bem sabe, que uma tripulação combinada se dê bem no início, e penso que se houver discórdia entre os marinheiros veteranos e os novos,
em caso de que tenham que ditar sentença contra um dos antigos tripulantes da Surprise poderiam impor-lhe um castigo excessivamente duro, e eu não gostaria de ver
nenhum de meus homens açoitado de uma forma assim.
- Confiemos em que o fato de disparar juntos e constantemente os canhões lhes convertam em amigos. Amiúde observei que os atos violentos e o ruído estrondoso fomentam
a camaradagem e levantam os ânimos.
Quanto aos atos violentos e o ruído estrondoso, o cirurgião da Surprise e seu ajudante tiveram ocasião de senti-los nos dias seguintes. Jack tomou a palavra de Stephen
e não só os tripulantes dedicaram a última parte da guarda da manhã a fazer fogo de verdade, como quando recebiam a ordem de ocupar seus postos faziam preparativos
de combate e algumas vezes disparavam de uma só vez as baterias de ambos os lados, cujas chamas atravessavam uma densa nuvem de fumaça que parecia um vulcão adormecido.
Martin era um homem tranqüilo e Maturin era quase igual. Ambos detestavam aquele ruído ensurdecedor, não só o que faziam as repetidas explosões como também o produzido
pelas carretas quando rodavam rapidamente para sacar ou guardar os canhões e o ruído dos passos apressados dos marinheiros que iam e vinham da santa-bárbara e dos
paióis das balas. Também detestavam as letais peças de artilharia e lhes molestava muito que tudo isso durasse até quase a entrada da guarda do segundo quartilho,
em um momento em que a fragata entrava em águas que tinham muito interesse para um naturalista. O ruído a bordo da Surprise era tão forte que nenhuma ave, nenhuma
medusa nem nenhum caranguejo do mar permanecia nas águas rodeadas pela mesma linha do horizonte que ela; e, além do mais, eles tinham que ficar na coberta inferior,
no posto que deviam ocupar durante as batalhas e também nas práticas, já que muitos desafortunados marinheiros eram levados ali com hematomas, queimaduras, dedos
das mãos e dos pés triturados e, às vezes, inclusive com alguma perna quebada.
Em ocasiões Stephen subia pela escada até a escotilha de popa e olhava para da proa para a popa para observar a atividade do convés. Sentia satisfação ao ver Jack
correndo de um canhão para outro entre a fumaça, umas vezes iluminado pelas grandes línguas de fogo e outras com o aspecto de um enorme fantasma. Jack dava muitos
conselhos aos gritos para os artilheiros ou indicava para os mais lerdos a posição correta ou segurava um aparelho para sacar um canhão ou movia uma alavanca para
apontar outro, sempre com um olhar atento, e punha uma expressão satisfeita quando a bala atingia o alvo e os artilheiros festejavam.
As práticas provocavam muita tensão, pois eram uma excelente imitação de uma batalha real. Os canhões disparavam com tanta rapidez que logo começavam a se mover
caprichosamente, a dar grandes saltos e a retroceder com grande violência. Em uma ocasião, rompeu uma retranca e o aparelho que o sustentava o Billy o Saltitante
por um lado e, como havia forte marejada e soprava o vento do sudoeste, o bloco letal que formavam o canhão e a carreta teria rodado sem controle pelo convés se
Padeen, que era extraordinariamente forte, não o houvesse calçado com um alavanca até que seus companheiros lograram amarrá-lo. Trabalharam tão rápido como puderam,
mas Padeen teve que ficar todo o tempo fazendo força com a mão esfolada sobre o canhão quente, tão quente que o sangue fazia um som sibilante ao correr pelo metal.
Bonden, o chefe da brigada, levou-o para baixo chorando de dor, e enquanto avançavam se ouvia como o consolava com a voz forte e clara que costuma ser usada com
os enfermos, os estrangeiros (Padeen nesse momento entrava em ambas classificações) e outras pessoas que não são exatamente um nem outro.
- Não se preocupe, companheiro - tentou tranqüilizá-lo -. O doutor lhe curará imediatamente. Que aspecto mais raro tem! Cheira a bife grelhado, companheiro. Estou
seguro de que ele salvará sua mão e lhe acalmará a dor.
Depois, estendendo o braço para cima porque Padeen era muito mais alto, enxugou suavemente as lágrimas que corriam por suas bochechas.
O doutor combateu a dor, uma dor terrível, dando-lhe uma considerável dose de láudano, a tintura de ópio, um de seus remédios mais apreciados.
- Aqui tem a substância mais parecida com a panacéia que existe - disse em latim para seu ajudante, enquanto sustentava no ar um frasco com um líquido ambarino -.
Às vezes eu mesmo a tomo e comprovei que tem um admirável efeito em casos de insônia, ansiedade mórbida, feridas dolorosas, dor de dentes e de cabeça e inclusive
enxaqueca.
- Poderia ter acrescentado "em caso de ter o coração partido", mas continuou -: Como provavelmente terá notado, administrei ao paciente uma dose de acordo com seu
peso e a intensidade da dor. Dentro de pouco, se Deus quiser, verá como o rosto de Padeen recobra seu habitual gesto benévolo e, alguns minutos depois, como cai
sem dar-se conta em um estado de inconsciência produzido pelo ópio. Este é o componente da farmacopéia que tem mais valor.
- Tenho certeza de que é - disse Martin -. Porém, não é censurável tomar ópio? Não há a probabilidade de ficar viciado?
- A censura somente a fazem alguns poucos homens descontentes, sobretudo os jansenistas, que também condenam o vinho, a boa comida, a música e a companhia feminina.
Inclusive são contra o café, por Deus! Suas objeções só são válidas no caso de algumas pobres almas que têm pouca força de vontade, as quais também podem se converter
com facilidade em vítimas das bebidas alcoólicas, praticamente carecem de moral e amiúde têm outros vícios. Nos outros casos não causam mais dano do que fumar. -
Colocou a tampa de cortiça no frasco, comprovou que tinha armazenadas dois garrafões dos quais poderia voltar a enchê-lo e prosseguiu -: Faz um tempo que deixaram
de dar esses horríveis golpes, assim que poderíamos subir ao castelo de popa para fumar um charuto. Acho que ali não porão obstáculos a um pouco mais de fumaça.
Como se sente agora, Padeen?
Padeen, a quem o latim havia apaziguado sua mente e o remédio, sua dor, sorriu, mas não disse nada. Quando Stephen repetiu a pergunta em irlandês sem melhores resultados,
pediu a Bonden que lhe amarrasse o braço na maca para que não o movesse e depois se encaminhou para o castelo de popa.
Assombrou-se de que estivesse vazio, mas por fim viu West nos amantilhos do pau mezena olhando fixamente para o cesto da gávea do maior, onde o capitão e Pullings
tinham seus telescópios dirigidos para barlavento.
- Tal vez hajam visto uma andorinha do mar Cáspio - disse Martin -. O senhor Pullings viu seu desenho no livro de Buffon que eu tinha aberto na câmara dos oficiais
e disse que achava tê-las visto com freqüência nestas latitudes.
- Vamos subir pela exárcia e lhes faremos uma surpresa - propôs Stephen, sentindo de repente uma extraordinária alegria.
A tarde era muito agradável e fresca, o céu estava dourado para o oeste, formavam-se ondas de intenso colorido azul e espuma branca nos lados da fragata e em seu
rastro. Vários antigos tripulantes da Surprise, que haviam sido pacientes seus durante muitos anos, aproximaram-se da popa correndo pelo corrimão e gritando:
- Não olhe para baixo, senhor!
- Não se agarre aos enfrechates! Agarre-se com as duas mãos aos amantilhos, os cabos grossos!
- Devagar, senhor!
- Faça o que faça, não se solte durante o balanço!
Pouco depois alguns angustiados marinheiros agarraram seus pés por baixo e os colocaram cada vez mais acima até situá-los a uma grande altura, já que o mastro maior
da Surprise era o de um navio de trinta e seis canhões. Imediatamente dois rostos radiantes apareceram pela boca de lobo do cesto da gávea.
- Não se apressem; suas pernas ainda não se adaptaram ao movimento do mar! Este não é momento para jogos. Dê-me a mão.
Então subiu a Stephen para a plataforma e depois a Martin. Stephen se assombrou uma vez mais da força de Jack, pois ainda que seu peso era razoável, 125 libras escassas,
Martin era muito mais robusto e, apesar disso, Jack o havia subido de um puxão e sem esforço, como se pegasse pelo cangote um cachorro de tamanho médio, passando-o
pela boca de lobo e depois largando-o de pé no piso.
O que olhavam não era uma andorinha do mar Caspio, mas um barco que não estava muito distante.
- Que presunsos são os capitães das corvetas de dezoito canhões! - exclamou Pullings em tom incômodo -. Olhem como navega essa a toda vela! Só lhe falta desdobrar
as monterillas{1}! Aposto meia coroa que em cinco minutos perderá as alas da joanete de proa.
- Gostaria de vê-la, senhor? - perguntou Jack, oferecendo a luneta para Martin.
Martin o aproximou de seu único olho e imediatamente viu um petrel, mas guardou silêncio. Depois de uma pausa, exclamou:
- Há disparado um canhão! Posso ver a fumaça! Mas não se atreverá a nos atacar, não é?
- Não, não. É um dos nossos - afirmou, e nesse momento ouviram o canhonaço -. É um sinal para que paremos.
- Não seria possível fingir que somos surdos e começar a navegar em direção contrária? - inquiriu Stephen, que temia outro encontro.
- A maioria dos capitães de barcos de guerra privados se esquivam dos que realizam um serviço público - respondeu Jack -, e se me ocorreu fazer isso mesmo quando
a avistamos. Mas como já virou cinqüenta graus para barlavento e trocou de rumo, pensei que provavelmente nos havia reconhecido, e se não nos detemos depois de ouvir
um canhonaço, e este é o segundo, é possível que dê um mau informe sobre nós, e então poderíamos perder a patente de corso. A Surprise é muito fácil de se reconhecer
por seu mastro maior. Pode ser reconhecida a dez milhas de distância, como um urso com um dedo polegar inchado. Tom, acho que deveríamos usar o pequeno mastaréu
de reserva para navegar regularmente e colocar este para fazer determinadas perseguições.
Pullings não respondeu. Inclinou-se mais e mais para frente com o telescópio até que o apoiou na grade do cesto da gávea para poder enfocá-lo melhor, e imediatamente
gritou:
- Senhor, senhor, é a Tartarus!
Jack pegou seu telescópio e depois de um momento, no tom que empregava quando expressava sua alegria, exclamou:
- Sim! Posso ver o chamativo colorido azul de seu mastaréu - acrescentou e, depois de ouvir outro canhonaço, prosseguiu -: Já se identificou, e dentro de pouco começará
a fazer sinais. William sempre teve habilidade para usar as bandeiras.
Então, projetando a voz para abaixo, gritou:
- Senhor West, por favor, vamos nos aproximar da corveta com as maiores desdobradas! E diga ao encarregado dos sinais que se prepare!
Depois, quando viu aparecer uma distante fileira de bandeiras, seguiu falando com quem estava no cesto da gávea.
- Sim, aí está. Que fileira! Provavelmente poderá lê-la sem o livro, Tom.
Pullings fora o tenente encarregado dos sinais sob o comando de Jack e recordava grande parte da lista de memória.
- Tentarei, senhor - disse e em voz alta, lentamente, leu -: "Bem-vindos...". Repito: "Bem-vindos... Alegro-me em ver-lhes... Rogo capitão jantar... Tenho mensagem...
Espero...". Agora está soletrando algo: "DOT". O guarda-marinha que faz os sinais não sabe ortografia...
No castelo de popa, o ajudante do suboficial encarregado dos sinais, um marinheiro de Shelmerston, perguntou:
- Que querem dizer os da corveta com DOT?
- Se referem ao nosso médico, que não é um barbeiro-cirurgião comum mas um autêntico doutor com peruca e bastão de empunhadura de ouro.
- Não sabia - disse o marinheiro de Shelmerston, fixando a olhar no cesto da gávea.
- Não sabe muito, companheiro - disse o suboficial, mas não em tom depreciativo.
- A corveta que se aproxima está sob o comando do senhor Babbington - disse Stephen para Martin -. Lembra-se do senhor Babbington daquela partida de críquete?
- Oh, sim! - respondeu Martin -. Fez alguns cortes muito oportunos, e o senhor me disse que havia jogado com a equipe de Hambledon. Ficarei encantado em voltar a
vê-lo.
Pouco depois voltou a vê-lo. As duas embarcações se puseram em pairo, mas não muito perto uma da outra porque havia marejada. O capitão da Tartarus, muito cortesmente,
situou-a a sotavento da fragata e, com a cara avermelhada pela alegria e os esforços, gritou para Jack que não descesse os botes dos botalós porque a Tartarus tinha
nas alhetas gavietes que desceriam o cúter em uma fração de segundo.
- Muito bem, William! - gritou Jack em tom tranqüilo, com uma voz que pôde ser ouvida do outro lado da faixa de água de cem jardas que os separava -. Mas minha visita
será curta porque tenho que percorrer uma longa rota para o sul e é provável que faça mau tempo!
O cúter desceu, produzindo salpicos, e transportou aos convidados pela faixa de água. Jack esqueceu que não estava em situação de dar ordens e, para evitar as cerimônias,
disse ao guarda-marinha que o governava:
- Pelo costado de bombordo, por favor.
Mas se corrigiu quando engataram o croque do cúter e deu preferência a Stephen e Pullings, que eram oficiais do rei a momentânea situação estranha foi esquecida
devido aos gritos do doutor Maturin, que protestava com indignação porque haviam preparado uma guindola para que subisse a bordo seco e sem angústia.
- Isto é uma injúria! Por que fizeram distinção comigo? Acaso não sou um veterano navegante, um curtido homem do mar?
Mas seu tom mudou porcompleto quando o deixaram sobre a coberta e viu que seu antigo companheiro de tripulação James Mowett estava ali para receber-lhe.
- Ah, James Mowett, quanto me alegro de ver-lhe! Porém, o que faz aqui? Achava que era o primeiro oficial da Illustrious.
- Eu sou, senhor. William Babbington vai levar-me para Gibraltar.
- Claro, claro! Diga-me, como vai seu livro?
A alegria que se refletia na cara de Mowett diminuiu ligeiramente de intensidade.
- Bem, senhor, os editores são uns malditos... - começou a dizer.
Nesse momento Babbington o interrompeu para dar as boas-vindas ao doutor, e depois conduziu a todos para a cabine enquanto falava e ria. Lá encontraram a senhora
Wray, uma jovem gorducha e de pernas curtas que agora parecia muito bonita porque havia se ruborizado ao sentir uma mistura de sentimentos, alegria por vê-los e
vergonha porque eles a haviam visto. Nenhum dos presentes se surpreendeu, pois todos se conheciam muito bem, especialmente os três mais jovens, que haviam viajado
com Jack como guardas-marinhas quando estava ao comando de seu primeiro barco, e sabiam que Babbington amava a Fanny Harte (que era o nome dela antes de se casar
com o senhor Wray), mais que a qualquer outra de suas inumeráveis amadas. Era possível que lhes parecesse um pouco arriscado que Babbington navegasse em alto mar
com a esposa do vice-secretário interino do Almirantado, mas sabiam que era rico em terra e que os votos de seus familiares no Parlamento eram suficientes para protegê-lo
e conseguir que só o admoestassem por má conduta profissional. Ademais, todos sabiam mais ou menos que reputação Wray tinha. Ali a única pessoa surpresa, preocupada
e incômoda era Fanny. Como Jack Aubrey a aterrorizava, sentou-se o mais longe possível dele, entre Stephen e um canto. Entre o ruído das potentes vozes Stephen a
ouviu murmurar:
- ... Parece uma situação estranha, não é?, e quase comprometedora, porque estou muito longe de terra... Sinto-me incômoda... Vim por razões de saúde... O doutor
Gordon insistiu em que devia fazer uma curta viagem pelo mar... Naturalmente, minha criada me acompanha... Oh, sim! Alegro-me de ver ao capitão Aubrey bastante bem
depois do que o pobre homem deve de ter passado... Parece um pouco mais velho, mas disso ninguém se assombraria, e esquivo... Terei que sentar-me junto a ele durante
a janta? Bem, William tem uma carta de sua esposa e talvez isso suavize sua atitude.
- Minha querida Fanny - disse Stephen -, ele não necessita suavizar sua atitude. Sempre sentiu simpatia pela senhora, e ainda que alguém pudesse lançar a primeira
pedra, nunca seria ele que faria. Porém, diga-me uma coisa: a última vez que falamos do capitão Babbington a senhora se referiu a ele como Charles, o que me assombrou
apesar de saber que tem vários nomes e que prefere esse aos outros.
- Não, não! - exclamou Fanny, ruborizando outra vez -. Esse dia estava perturbada e minha mente era, por assim dizer, um mar de confusões. Haviamos ido ao baile
de fantasias na casa da senhora Graham, eu fantasiada de ovelha escocesa e William de herdeiro ao trono. Oh, meu Deus, como ele ria! Por isso segui chamando-lhe
de Charles depois. Tinha um aspecto tão bonito com suas anaguinhas! Acho que o senhor pensará que sou muito tonta e simples, mas me alegro de que me haja dito que
o capitão me tem simpatia. Agora me sentarei junto dele com prazer. Espero que o pudim de sebo não esteja pouco cozinhado. William insistiu em que o preparassem
para ele e garante que se pode fazer num instante em uma panela de pressão, mas quando eu era menina, os pudins demoravam horas para cozinharem.
A janta foi muito alegre, e nela abundaram os risos e as anedotas. Ademais, do ponto de vista puramente culinário, para quem vinha da Surprise pareceu sumamente
oportuna. Nesse momento nem o capitão nem os oficiais da fragata tinham cozinheiro; Jack com o fim de poupar, Stephen por distração e os oficiais porque estavam
na miséria não haviam subido a bordo suas própias provisões, assim que tinham que viver das da fragata, e como ainda estava em águas britânicas, não bebiam grogue
senão cerveja de má qualidade, que cada dia ficava pior. Na grande cabine a única refeição abundante era o desjejum, o que Killick havia conseguido graças a sua
autoridade. Durante a janta Babbington contou que a Tartarus havia perseguido por dois dias e duas noites uma escuna norte-americana muito veloz que provavelmente
tentava violar o bloqueio e chegar a Brest ou Lorient.
- Mandei amarrar guindalezas e cabos delgados aos topes como o senhor costumava fazer, senhor - relatou -. E realmente acredito que a teríamos alcançado se a gávea
maior e o velacho não se soltassem das relingas ao mesmo tempo. Mas pelo menos a obrigamos a se desviar de sua rota por trezentas ou quatrocentas milhas para o sul,
e terá que voltar a passar as mesmas penalidades antes de avistar a costa francesa.
- Senhor Mowett, o que ia me dizer dos editores? - perguntou Stephen durante uma pausa na qual faziam lugar na mesa para o pudim e se passavam uns para os outros
o vinho que o acompanharia (vinho de Fontignan e Canary).
- Ia dizer-lhe que são uns malditos vadios.
- Que horror! - exclamou Fanny -. E vão a locais especiais ou...?
- Quer dizer que são impontuais - disse Babbington.
- Oh!
- Sim. Supunha-se que o livro ia sair no glorioso primeiro de junho, mas adiaram a saída para o dia de Trafalgar, e agora dizem que atrairá mais ao público se for
publicado no aniversário de Camperdown. Contudo, isto tem a vantagem de que posso polir o que escrevi e acrescentar um novo poema.
- Recite algum fragmento do novo poema, Mowett - rogou Pullings.
- Sim, por favor! - pediram Babbington e Fanny.
- Bem - disse Mowett com uma mistura de modéstia e satisfação -. É bastante comprido. Com sua licença, senhora - acrescentou, fazendo uma inclinação de cabeça para
Fanny -, só recitarei os versos do final. O poema faz referência a uma batalha e estes versos narram o momento em que começa a matança:
Rápido deslizam pelo mar as ligeiras esquadras
E ambas, olhando-se com desaprovação, agora muito perto estão
"Rápido, façam preparativos de combate", grita o
 contramestre com sua escandalosa voz.
"Rápido, façam preparativos de combate", replica
uma voz em cada um dos navios cheios.
As faces se tornam pálidas pelo extraordinário medo.
Tudo se detém um momento em meio de um
grande assombro, de um sepulcral silêncio e de
inconscientes olhares.
Um estrondo que se produziu em algum lugar da proa e que se parecia com um disparo de um canhão de doze libras lhe interrompeu, mas só por um momento.
A morte vai de um navio para outro com sua letal guadanha.
Em todas os castelinhos os demônios da morte se retorcem
e os demônios da matança deslizam pela
massa de água pintada de púrpura,
abrem suas destruidoras mandíbulas e bebem com
fruição o sangue que corre...
- Senhor, com sua licença! - irrompeu um assustado guarda-marinha alto e pálido da porta da cabine -. O senhor Cornwallis me ordenou lhe dizer que a máquina de pressão
estourou.
- Há alguém ferido? - perguntou Babbington, pondo-se de pé.
- Acredito que ninguém morreu, senhor, mas...
- Desculpem-me - disse Babbington a seus convidados -. Tenho que ir dar uma espiada.
- Detesto os inventos estrangeiros - interveio Fanny durante a angustiante pausa.
- Não morreu ninguém - explico Babbington ao regressar -. Ademais, o cirurgião diz que as queimaduras que têm os homens não são importantes e que se curarão dentro
de um mês, mais ou menos. Mas lamento ter que dizer, senhor, que o pudim se espalhou uniformemente por cima do cozinheiro, seus ajudantes e a coberta. Eles pensaram
que ele cozinharia mais rápido se pusessem uma tampa de ferro na válvula de segurança.
- Foi uma lástima o que ocorreu com o pudim - disse Jack quando estavam de novo na cabine da Surprise -. Mas o jantar, em conjunto, foi um dos que mais desfrutei
em minha vida. E ainda que Fanny Harte não seja Escila nem Caribdis, ambos se amam muito, e afinal de contas isso é o que importa. Quando William se dirigia para
Pompey, passou por Ashgrove Cottage para perguntar a Sophie como estava e ela lhe deu uma nota para que me entregasse em caso de que nos encontrassemos. Em casa
todos estão bem e minha sogra é menos incômoda do que poderia imaginar. Diz que me maltrataram e que tanto Sophie como eu merecemos sua benevolência. Não é que haja
pensado nem por um momento que sou inocente, senão que aprova o que acredita que fiz. Diz que faria o mesmo se tivesse oportunidade, como qualquer outra mulher que
preze o seu capital... Isso que está tocando não é A marselhesa, não é?
Há um tempo, Stephen estava tocando suavemente duas ou três frases musicais com variações, de uma forma semiconsciente que não obstava sua capacidade de falar nem
de escutar.
- É, ou tenta ser, a passagem da obra de Mozart que tinha em mente o músico francês quando a compôs. Mas me esqueci de algo ...
- Stephen, não toque nem uma nota mais, eu lhe rogo - pediu Jack -. Se não se me escapa, poderei interpretá-lo exatamente.
Tirou de um puxão o pano que cobria o estojo de seu violino, o afinou com rapidez e começou a interpretar justamente esse fragmento. Depois de alguns momentos, Stephen
o acompanhou e, quando os dois se sentiram totalmente satisfeitos, deixaram de tocar. Depois de afinar bem os instrumentos e atritar as cordas com colofônio, interpretaram
de novo a passagem, a tocaram ao revés, fizeram variações e floreios e às vezes um improvisava uma melodia e o outro o seguia, e vice-versa. Ficaram tocando até
que um solavanco a sotavento quase fez Stephen cair do assento, o que fez com que seu violoncelo emitisse um chiado.
Ainda que Stephen se recompôs imediatamente e as cordas e o arco não sofreram danos, desapareceu a fluidez rítmica e pararam de tocar.
- É melhor assim - sentenciou Jack -. Dentro de pouco ia começar a desafinar. Estou esgotado porque durante as práticas com os canhões corri de um lado para outro
sem parar, fazendo o trabalho que geralmente realizam meia dúzia de guardas-marinhas, cada um encarregado de um grupo de canhões. Nunca me dera conta de que essas
pequenas bestas eram tão úteis. Agarre-se forte! - acrescentou enquanto segurava Stephen, que ia cair de novo, ainda que desta vez estava de pé -. Suas pernas ainda
não se adaptaram ao movimento do mar?
- Não é uma questão das pernas se adaptem ao movimento do mar - respondeu Stephen -. Os movimentos da fragata são bruscos e violentos. Nestas circunstâncias, até
um crocodilo cairia se não tivesse asas.
- Profetizei que ia fazer mau tempo esta noite - disse Jack, caminhando para o barômetro -, mas talvez seja pior do que pensei. É conveniente que nos preparemos
para a tormenta também aqui abaixo. Killick, Killick!
- Senhor? - disse Killick, assomando-se imediatamente com um pedaço de tecido alcochoado sob o braço.
- Guarde no paiol do pão o violoncelo do doutor e meu violino junto com esse artigo.
- Sim, senhor. Guardar no paiol do pão o violoncelo do doutor e seu violino junto com o "objeto".
No início de seu matrimônio, Diana havia presenteado Stephen com uma magnífica mostra da arte e do engenho dos fabricantes de escrivaninhas. Podia ser um atril para
as partituras, e geralmente se usava como tal, mas também podia se converter, por meio de várias alavancas e tabuleiros reclináveis, em um lavatório, em uma pequena
mas útil escrivaninha, um estojo de remédios ou uma estante. Ademais, tinha em total sete gavetas e compartimentos secretos e continha um astrolábio, um relógio
de sol, um calendário perpétuo, muitos frascos de vidro trabalhado e escovas e pentes do marfim. Mas o que mais Killick gostava era que as dobradiças, os adornos
das fechaduras, as molduras e chapas de proteção das portas, as tampas dos frascos e todos os outros accesórios eram de ouro maciço. Killick o venerava (o pedaço
de tecido alcochoado era o primeiro dos três envoltórios com que o protegia do mau tempo) e pensava que o nome que o capitão lhe dava era inapropiado e tinha conotações
depreciativas. Achava que "objeto" era o nome adequado, já que não tinha nenhuma relação com os urinóis mas tinha muita com a santidade, por exemplo em "objeto sagrado",
e há anos tratava de impô-lo.
Jack permaneceu ali alguns momentos, mexendo-se levemente com o balanço e o cabeceio. Tinha os lábios franzidos como se fosse assobiar, mas não tinha em sua mente
nenhuma melodia senão um conjunto de cálculos relativos à posição, as correntes, a força do vento e a mutável pressão barométrica, e os comparava com os do passado
imediato e com muitos outros de similar natureza feitos nessa parte do Atlântico. Pôs uma casaca curta, subiu ao castelo de popa e voltou a fazer cálculos, de maneira
mais instintiva, em contato direto com o vento e o mar. Os marinheiros já haviam baixado os mastaréus, as escotilhas já estavam tapadas com barras, as lanternas
com portinhola colocados e os botes presos com cabos duplos. Então disse a Davidge:
- Quando chamarem os homens da guarda de bombordo, ordene-lhes rizar as gáveas. Avise-me se o vento mudar. O capitão Pullings vai substitui-lo, não é assim?
- Sim, senhor.
- Então, comunique-lhe o que eu disse. Boa noite, senhor Davidge.
- Boa noite, senhor.
Quando regressou à cabine, comentou:
- Provavelmente é esta a tempestade a que me referia quando disse que uma batalha ou uma tormenta uniam fortemente uma tripulação mista. Queria não ter falado como
um tonto. Queria que ninguém tivesse achado que desejava uma tormenta realmente violenta.
- A tataravó de meu padrinho, que vivia em Ávila, em uma casa que mostrarei a você e a Sophie quando a guerra acabar, conheceu santa Teresa, e a santa lhe disse
que se derramavam mais lágrimas pelos dons concedidos que pelos negados.
CAPÍTULO 3
Era realmente a tormenta que havia pedido em suas preces. Durante três dias o vento aumentou de intensidade e mudou de orientação até que por fim se fixou ao chegar
ao este-nordeste e ficou soprando sem variar um só grau durante duas guardas. Depois começou a rolar de forma errática para o leste e o oeste, ganhando mais força
em cada vez, enquanto a Surprise avançava com o velacho aferrado e com uma vela de mau tempo aberta no estai do pau mezena. Foi então, pouco depois das três da madrugada,
muito avançada a guarda de meia e quando a chuva caía como um grosso manto sobre o convés, quando Thomas Pullings saiu da maca, pôs a capa de lona alcatroada e subiu
a escada para ver como Davidge contornava o temporal. A maioria dos marinheiros de guarda estavam no convés, sob a escada do castelo, protegendo-se da chuva, dos
jorros de água do mar e da espuma, mas os quatro homens que levavam o leme e o oficial que estava situado atrás deles rodeando com um braço o mastro mezena, as três
coisas asfixiantes lhes batiam de frente e tinham que manter a cabeça alta para poder respirar. Davidge era um marinheiro experiente e competente que havia visto
algumas marejadas terríveis durante sua vida, porém, apesar disso, pondo as mãos ao redor de sua boca e colando-as na orelha de Pullings, gritou:
- Bastante bem, obrigado! Mas pensava em chamar o capitão porque cada vez que vira um pouco, o leme estremece como se os cabos que seguram a prancha deslizassem
por ele ou roçassem em algo.
Pullings se colocou entre os marinheiros que estavam no leme, todos eles de Shelmerston, agarrou as cavilhas e esperou até que uma grande onda fez mudar de bordo
a fragata ao chocar contra ela por sotavento. Então sentiu o conhecido estremecimento, sorriu e gritou:
- Este é um dos ardis que faz quando o tempo é assim. Sempre faz. Podemos deixá-lo descansar em paz.
Nesse momento uma longa série de brilhantes relâmpagos iluminou a parte inferior das negras nuvens e a fragata; ouviram-se ensurdecedores trovões; e o vento rolou
bruscamente, inchando a vela de estai e fazendo mudar de bordo a Surprise cinqüenta graus e avançar para uma parte do mar onde as ondas eram muito maiores e rápidas.
Quando a fragata afundou a proa pela primeira vez as verdes águas chegaram ao castelo. Desceu com tanta força e se inclinou tanto que Jack, profundamente adormecido
na maca depois de trinta e seis horas no convés, foi lançado violentamente contra os vaus que ficavam acima de sua cabeça.
"Duvido que volte a se estabilizar", pensou Pullings. À luz da bitácula podia ver-se a mesma triste expectativa nos rostos dos marinheiros que levavam o leme. Tudo
o que seguiu pareceu ocorrer muito devagar: o gurupés e parte do castelo emergiram como uma negra baleia em meio do redemoinho de espuma, e a enorme massa de água
que estava no convés se lançou para a popa, inundando o castelo de popa e fazendo cair o anteparo da cabine para dentro. Sob a luz dos relâmpagos quase contínuos
podiam ver-se grupos do marinheiros de guarda agarrados às cordas de segurança, que há tempo estavam colocadas de proa a popa entre os canhões. Antes de que a água
terminasse de sair pelos embornais do castelo de popa, Jack Aubrey subiu a escada em camisa de dormir.
- Pode mudar de bordo? - perguntou, e sem esperar resposta pegou o leme.
Pelas leves vibrações que se produziam entre os impactos das sucessivas ondas contra a prancha, soube imediatamente que a fragata respondia como sempre o fizera.
Desceu a vista para olhar a bússola e viu que o sangue que corria pelo vidro da bitácula a havia pintado de vermelho.
- Está ferido, senhor - disse Pullings.
- Maldita seja! - exclamou Jack, virando o leme para esquivar o vento -. Larguem o velacho! Eei, os de proa, movam-se! Soltem os palanquins do traquete!
Esse foi o último dos terríveis e caprichosos açoites da tormenta. Quando a guarda mudou, o vento voltou a rolar até o este-nordeste e levou as nuvens que ocultavam
a lua. Então pôde ver-se um horrível espetáculo: a verga da cevadeira, o botaló da bujarrona e outros haviam caído, a espicha e a verga traquete estavam desprendidas
e o botaló da carangueja, assim como numerosos cabos, estavam rompidos. A situação era deprimente mas não desesperada, pois não havia morrido nenhum marinheiro e
entrara pouca água embaixo, ainda que a cabine estava úmida e quase vazia e carecia de intimidade, pois o anteparo havia caído. Mas na hora do café da manhã a fragata
navegava a uns cinco nós só com as gáveas desdobradas e com um vento entre fraco e moderado. Os fogos da cozinha estavam de novo acesos e Killick recuperara o moedor
de café, que provavelmente alguma absurda rajada de vento arrastou para a bodega quando o ajudante do carpinteiro desceu para ver a sentina.
Jack Aubrey tinha ao redor da cabeça uma sangrenta venda que lhe cobria um olho. Geralmente usava seu comprido e loiro cabelo preso atrás da nuca com uma larga cinta,
mas até agora não havia tido tempo de tirar-lhe o sangue coagulado e as mechas endurecidas apontavam em todas as direções, o que lhe dava um aspecto inumano. Contudo,
sentia-se satisfeito da maneira como os tripulantes haviam se comportado, pois não protestaram pela escassez de provisões nem por passar três dias comendo somente
bolachas e queijo e bebendo cerveja de má qualidade; não vacilaram ao receber a ordem de subir na exárcia; não trataram de esconder-se embaixo, e nunca puseram má
cara. Por isso o olho que lhe restava descoberto tinha um olhar benévolo.
- É assombroso que em tantos anos no mar nunca tenha visto nenhum carpinteiro incompetente - disse durante o café da manhã -. Já vi alguns contramestres, porque
normalmente se comportam como tiranos e deixam os marinheiros maus. Inclusive a alguns condestáveis a quem nem sempre se pode convencer de que aceitem mudanças ainda
que sejam mínimos. Mas a nenhum carpinteiro. Parece que nasceram com o ofício aprendido. O senhor Bentley já reparou a espicha e quase já terminou de colocar o botaló
de bombordo, assim que podemos... Que demônios estão gritando os marinheiros no convés?
Inclinou-se para olhar para frente por debaixo do castelo de popa e viu que todos os marinheiros encarregados de reparar as velas estavam de pé e gritavam para o
serviola que estava no tope.
- Peço desculpas por não ter tocado, senhor - disse Pullings, mas não há nada onde tocar. Há um barco a sotavento, senhor, e ainda não se lhe vê o casco.
- Ainda não se vê o casco? - perguntou Jack -. Então teremos tempo para terminar de tomar o café. Sente-se, Tom, e permita-me servir-lhe uma xícara. Tem um sabor
um pouco estranho, mas pelo menos está quente.
- Sim, está quente, senhor - disse Pullings e depois, voltando-se para Stephen, acrescentou -: Suponho que debe ter passado uma noite horrível, doutor, pois sua
cabine está desfeita, se me permite dizê-lo.
- Admito que houve um momento em que cheguei a me sentir muito mal - confessou Stephen -, quando me pareceu ver em sonhos a um malvado que havia deixado a porta
aberta e que estava exposto a que a umidade me alcançasse. Mas depois me dei conta de que não havia porta e me preparei mentalmente para dormir.
Enquanto terminava o café da manhã, os tripulantes da Surprise guindaram os mastaréus. Logo perceberam que a presa não era importante, porém, apesar disso, Jack
ordenou metodicamente abrir velas até que a Surprise fez aparecer ondas de proa de considerável tamanho e a água que passava sussurrando por seus costados descreveu
uma grande curva e formou uma esteira profunda e reta como se a fragata perseguisse um galeão de Manila. Tinha o vento pela alheta de estibordo e agora só podia
usar abertas as alas baixas. Essa era a primeira vez que Jack a governava desde que haviam saído de Shelmerston e a primeira vez que os novos tripulantes viram o
que ela era capaz de fazer. Para todos os que estavam a bordo lhes agradava sua rapidez, mas não só isso como também sua audácia, a forma com que lançava longe a
água que passava sob a proa. O vento era mais fraco, mas soprava perpendicularmente à corrente e às ondas, provocando que a água fizesse estranhos movimentos; apesar
disso, a fragata se movia pelas agitadas águas com mais leveza do que nenhuma outra embarcação. Quando soaram as quatro badaladas da guarda da manhã, um tripulante
jogou a nacela da barquilha e comprovou que a velocidade era de dez nós e todos deram vivas. Ainda que era pouco provável que houvesse problemas, Jack ordenou que
chamassem os marinheiros para almoçar cedo, mas um grupo de cada vez, e muitos deles regressaram a seus postos com toda a comida que podiam para não perder nada.
Sabiam desde o princípio que a presa era uma embarcação que estava em más condições com velas triangulares, e à medida que se aproximava todos achavam mais provável
que fosse a corveta de Babbington. No traquete, que estava intacto, estavam desdobradas a vela traquete, o velacho, e numerosas bujarronas, e os tripulantes se esforçavam
para pôr um mastro provisório, ainda que isso não serviria de nada, pois ainda que colocassem nele uma vela maior, a fragata não tardaria em ultrapassar ao barco.
Provavelmente teria ultrapassado à Tartarus quando ainda estava intacta, mas assim, em tão más condições e, sobretudo, navegando a um largo, não podia competir com
a Surprise.
- Então isso é que é uma escuna - disse Martin quando ele e Stephen a observavam do castelo -. Porém, como sabe?
- Porque tem dois mastros. Estão tratando de colocar o segundo.
- Mas os bergantins, os sloops, as balandras, as galeotas e os dogres também têm dois mastros. Qual é a diferença?
- O maçarico-real real e o comum têm algumas semelhanças, e os dois têm duas asas, mas os bons observadores percebem a diferença que há entre eles.
- Eles se diferenciam no tamanho, no canto e na faixa ao redor do olho.
- Essas mesmas diferenças, com excessão da voz, encontram-se entre as embarcações de dois paus. Uma pessoa familiarizada com elas distingue imediatamente o equivalente
da faixa ao redor do olho, as linhas das asas e os dedos semipalmados - acrescentou Stephen não sem certa satisfação.
- Talvez eu chegue a distingui-las com o tempo - disse Martin -. Mas também são parecidos os lugres e os barcos destinados à pesca do bacalhau e do arenque - acrescentou
e, depois de meditar, continuou -: É muito estranho que em tantos dias só tenhamos encontrado este barco, sem contar os dois navios de guerra que vimos e os sardinheiros
que encontramos diante do cabo Lizard. Lembro que o canal ficava abarrotado de barcos. Havia enormes comboios que às vezes ocupavam várias milhas, pequenos grupos
de embarcações e barcos isolados.
- Acho que há rotas marítimas estabelecidas de acordo com os ventos e o tempo de um lado a outro do oceano - disse Maturin -. Essas rotas podem ser seguidas sem
preocupação, como um cristão pode caminhar pela rua Sackville, atravessar a ponte Carlisle, passar pelo Trinity College e chegar ao Stephen Green, morada de dríadas
que rivalizam em beleza; contudo, o capitão Aubrey procurou evitá-las, como fizeram, sem dúvida, os barcos dedicados ao contrabando que o desagradável capitão do
cúter procurava. E aposto que essa escuna é um deles.
Maturin estava errado nisso. A escuna era uma embarcação veloz e poderia fazer contrabando, mas alguém que a observasse com mais atenção observaria que parecia uma
presa recuperada, ou a ponto de ser recuperada, pois enquanto os escassos tripulantes se esforçavam para colocar os brandais e a verga da gávea maior, vários homens
mais e três mulheres que estavam junto ao coroamento gritavam e agitavam a mão no ar.
A Surprise se aproximou da escuna, parou junto dela de maneira que impedia que o vento inchasse suas velas e disparou um canhonaço para barlavento. Então a escuna
arriou a bandeira.
- Companheiros de tripulação! - gritou Jack -. Todos sabem os termos de nosso acordo: o homem que roube ou maltrate a algum prisioneiro ou saqueie a escuna será
tirado da fragata e levado ao cúter azul.
Mas a escuna, a Merlin, não era uma presa recuperada, e tampouco um barco corsário independente apesar do que dizia seu capitão, um estadunidense de Luisiana que
falava francês. Dos relatos prolixos e concordantes dos prisioneiros liberados se desprendia que a escuna era a companheira de uma embarcação muito maior, o Spartan,
um barco armado por um consórcio franco-estadunidense que tentava minar o comércio dos aliados com as Antilhas.
Jack conhecia muito bem o Spartan, pois o havia perseguido durante dois dias e duas noites, com bom tempo e também com muito mau tempo. A opinião que tinha de seu
capitão como marinheiro era excelente, e, contudo, surpreendeu-se ao se informar de que durante sua última viagem havia capturado nada menos que cinco presas: dois
barcos de Port Royal carregados de açúcar, que por sua lentidão haviam se separado do comboio ao qual pertenciam durante a noite, e três barcos que faziam o comércio
com as Antilhas com carregamentos ainda mais valiosos, de anil, café, pau campeche, ébano, madeira tintórea e couros, os quais haviam se aventurado a navegar sozinhos
confiando em sua velocidade. E se surpreendeu ainda mais ao saber que atracaram os cinco no porto Horta, em Faial, e haviam embarcado na escuna os seus capitães,
os comerciantes que representavam a companhia e as esposas de alguns deles que os acompanhavam na viagem, para que os levasse para a França, onde deveriam fazer
as diligências necessárias para conseguir o resgate, tanto dos barcos como dos carregamentos.
- Por que não regressou ao seu país rapidamente com um butim tão estupendo? - perguntou Jack -. Nunca havia visto a um barco privado ter tanto êxito em uma viagem
curta... e tampouco em uma longa.
A resposta era óbvia, mas ninguém a encontrou até essa tarde. O capitão da escuna não dava nenhuma informação e seus poucos tripulantes tampouco podiam fazê-lo porque
desconheciam o plano geral. Por outro lado, Jack e Pullings estavam muito ocupados com os antigos e os novos prisioneiros e o aprovisionamento da presa.
O capitão estadunidense, os comerciantes e suas esposas haviam subido a bordo da fragata imediatamente, e o correto era que Jack os convidasse para almoçar; e, além
disso, aproximava-se a hora em que os oficiais costumavam almoçar. Contudo, Jack não dispunha de uma cabine onde poder agasalhá-los e, ainda que a tivesse, não tinha
nada que pôr na mesa.
- Senhor Dupont, agradeceria que me fizesse um favor - disse Jack ao capitão norte-americano quando foi levado discretamente para a popa para que mostrasse a documentação
da Merlin.
- Com prazer farei o que esteja em minha mão, senhor - respondeu Dupont, olhando com desconfiança a figura que tinha diante de si -. Farei tudo o que possa, dentro
de minhas escassas possibilidades.
Os capitães de barcos corsários tinham fama de cruéis e rapaces, e Jack, exageradamente magro e alto, sem se lavar, com cabelos hirsutos e loiros brilhando em sua
cara sem barbear, com a venda ainda mais ensangüentada devido à recente atividade e com mechas de cabelo endurecidos pelo sangue pendurando ao redor da cara como
se fossem de uma peruca de mulher mal pintada, era uma figura imponente, ante a qual haviam retrocedido as esposas dos comerciantes apesar de serem acostumadas à
vida no mar.
- A verdade é que temos escassez de provisões e seria um descrédito para a fragata e para mim ter que oferecer ao senhor e a essas damas uma refeição consistente
em carne de vaca salgada, ervilhas secas e uma cerveja de tão má qualidade que quase não se pode beber.
- Peça-me o que queira, senhor, lhe rogo - disse Dupont, que temia algo muito mais desagradável -. Disponho de muitas provisões, ainda que o chá quase já acabou.
E apesar de meu cozinheiro ser negro, não carece de habilidade. Eu o comprei de um homem que rendia culto ao seu estômago.
Esse era um estranho culto, mas o capitão e os oficiais da Surprise, depois de ter suportado uma tormenta por tantos dias e de ter comido pouco mais que o pão da
fragata durante esse tempo, pensaram que talvez tivesse fundamento. Inclusive os convidados tiveram uma agradável surpresa, pois, apesar do cozinheiro negro sempre
lhes fizera coisas boas, agora havia se esmerado e a torta de maçã era digna de elogio e o vol au vent fez semicerrar os olhos das damas.
Os oficiais da Surprise atribuíram isto à sua alegria e gratidão por Killick. Quanto subiu a bordo, Killick, que era quem se ocupava desse tipo de assuntos por ser
o dispenseiro do capitão, o havia agarrado pelo braço e, ao mesmo tempo que fazia um gesto que indicava a retirada das algemas de um homem, para ocaso dele não estar
compreendendo bem, dissera lentamente:
- O senhor, livre. - queria fazê-lo entender que no momento que pusera um pé em um barco britânico deixara de ser um escravo e tocando-lhe no peito repetiu -: O
senhor, livre.
O cozinheiro negro respondeu:
- Desculpe, senhor, mas meu nome é Smith.
Mas falou tão baixo por medo de ofendê-lo que suas palavras, em meio do alvoroço, quase não se ouviram.
A refeição teve lugar na câmara dos oficiais e Jack Aubrey, agora apresentável, sentou-se em um extremo da comprida mesa e Pullings no outro. Quando por fim terminou,
Stephen e o homem que estava sentado à sua direita foram até o lado de sotavento do castelo de popa, onde fumaram cigarros feitos ao estilo espanhol e conversaram
nessa língua, pois o homem, Jaime Guzmán, era um espanhol originário de Ávila, quer dizer, de Castelo Velho e, além do mais, sócio da companhia gaditana propietária
da maior parte do carregamento de madeira tintórea que um dos barcos capturados levava, o William and Mary. Tagarelava um pouco de inglês, mas há muito tempo não
se comunicava de jeito nenhum com seus captores. Era um homem comunicativo, e depois de semanas sem falar, agora sua loquacidade era quase alarmante.
- Essas mulheres, essas odiosas mulheres, não me deixaram desfrutar disto nem ao menos na viagem de ida - disse, expelindo a fumaça pela boca e pelo nariz -. São
como voluptuosas civetas, mas me parecem muito desagradáveis. Uma vez tive a intenção de ajudá-las a melhorar, mas logo pensei que quem dá pão a cachorro alheio
perde o pão e o cachorro. Nenhuma dessas pessoas teria sido bem recebida em Ávila; a tataravó de seu padrinho nunca teria consentido em recebê-las. - Guzmán falou
da Ávila de sua juventude e isso o levou a fazer comentários sobre a cidade de Almadén, onde seu irmão se ocupava da parte comercial da exploração de minas de mercúrio,
e sobre Cádis, a cidade descuidada e depravada onde Guzmán se estabelecera.
- Dom Esteban - prosseguiu -, eu sou católico, como o senhor, e gosto muito de presunto, mas em Cádis não se pode encontrar presunto. Por que? Porque lá todos são
cristãos novos, metade mouros ou metade judeus. Não é possível dar-se bem com eles, como meu irmão comprovou. São desonestos, têm duas caras e, como a maioria dos
andaluzes, têm uma desmedida ambição por dinheiro.
- Dizem que quem deseja fazer-se rico em um ano morrerá enforcado em seis meses - comentou Stephen.
- Não é freqüente que enforquem essas pessoas tão rápido - seguiu Guzmán -. Mas vou lhe contar o caso de meu irmão. Obviamente, ele tem que mandar mercúrio para
o Novo Mundo, pois sem ele não se pode extrair ouro, e quando a Inglaterra e a Espanha estavam em guerra se enviava em fragatas. As fragatas eram apresadas com freqüência
devido à traição dos malvados funcionários de Cádis, que comunicavam aos judeus de Gibraltar a data em que zarpavam e inclusive a quantidade de bolsas que levavam,
pois o senhor deve saber, Dom Esteban, que o mercúrio se transporta em bolsas de pele de ovelha de meio quintal. Agora que a guerra mudou, não podemos prescindir
das fragatas, e muito menos dos navios de linha; assim que meu irmão, pressionado por todos os lados, depois de esperar durante anos decidiu fretar o mais potente
e confiável barco corsário da costa, um barco que o nome de Azul, de dimensões similares a esta fragata, para levar cento e cinqüenta toneladas para Cartagena. Cento
e cinqüenta toneladas, Dom Esteban! Seis mil bolsas! O senhor pode imaginar seis mil bolsas de mercúrio? - Ambos estiveram alguns momentos tratando de imaginar seis
mil bolsas de mercúrio e depois Guzmán continuou -: Mas me parece que esses homens agiram agora com a mesma má fé. O capitão do Spartan sabia muito bem que o Azul
ia zarpar há oito dias e que vai fazer escala nos Açores.Talvez já a tenha pegado. Mas o importante é outra coisa, algo que sei porque os oficiais do Spartan são
menos discretos que o senhor Dupont: que no final do mês a fragata norte-americana Constitution e uma corveta chegarão aos Açores vindos do sul e o Spartan e sua
flotilha de presas se unirá a elas para regressar para os Estados Unidos sob sua proteção.
Jack Aubrey tinha a rara virtude de escutar os relatos sem interromper, e nesta ocasião inclusive esperou para ouvir os comentários.
- Eu lhe contei isto tal como me relataram, Jack. Tenho razões para acreditar que Guzmán, que deseja ansiosamente a reintegração do Santo Ofício, está equivocado
com respeito aos judeus de Gibraltar; contudo, não é improvável que o consórcio franco-estadunidense conheça a existência desse carregamento de mercúrio. Por outro
lado, acho que a boa fé de Guzmán está fora de toda dúvida. Que acha do que disse sobre a Constitution?
- Se o senhor Hull ainda está ao comando, é provável que chegue na data prevista. É famoso por sua pontualidade. Certamente, não podemos lutar contra ela, pois leva
quarenta e quatro canhões de vinte e quatro libras e dispara um bombardeio de 768 libras. Seus gabaritos são como os de um navio de linha e a chamam A Invencível.
Contudo...
Continuou falando enquanto cruzava por sua mente a carta marinha da zona do Atlântico compreendida entre os trinta e cinco e os cinqüenta graus de latitude norte,
com os Açores no centro. O Spartan patrulharia a área situada entre São Miguel e Santa Maria pela parte de onde vinha o vento, pois assim teria vantagem em relação
ao Azul quando aparecesse, e nessa época do ano o vento soprava do oeste ou do noroeste. Era possível que a recente borrasca houvesse detido ao Azul ou que o tivesse
feito avançar, mas provavelmente haveria atrasado à Constitution, o que era um fator fundamental do plano que estava ideando; o plano para fazer o capitão do Spartan
acreditar que a Surprise era o Azul, pelo menos o tempo suficiente antes de entabular combate. Pensou sucessivamente nas datas, o recente temporal, a provável velocidade
do Azul, que navegava sem pressa ainda que a tripulação fosse eficiente, e a posição atual da Surprise, e lhe pareceu que se a fragata avançasse cento e vinte e
cinco milhas diárias havia possibilidades de que chegasse lá a tempo. Não muitas, mas valia a pena fazer o esforço.
"Se o vento seguir soprando com força", pensou. Ultimamente o barômetro havia tido subidas e descidas erráticas e era impossível fazer uma previsão do tempo, assim
que só o que podia fazer era continuar navegando snela.
Uma vez mais, Stephen ouviu as palavras "não há nem um momento a perder" e depois Jack correu para o convés para ordenar a Pullings que pusesse imediatamente todos
os marinheiros a fazer os trabalhos de reparação da Merlin. Quando regressou, perguntou a Stephen:
- Teria a amabilidade de servir de intérprete, se faço perguntas sobre o Azul a esse cavalheiro?
Por suas relações e sua profissão, Guzmán sabia muito mais de barcos que um homem de terra adentro comum, e a informação que deu sobre o Azul foi convincente: que
tinha três mastros, aparelho de brigue-barca e um calado de quinhentas toneladas. Também foi a descrição que fez: estava pintado de um bonito colorido azul e tinha
as portalós negras, como as de um barco de guerra. Jack meditou sobre isso. Embora pôr exárcia de brigue-barca na Surprise não apresentava dificuldade, porque quase
o único necessário era substituir as vergas da mezena e a sobremezena por velas triangulares no mastro mezena, essa viagem era só uma prova e a fragata levava muito
poucas provisões. Quanto às portalós negras, era uma sorte, pois a fragata já as tinha, nunca havia deixado de ser pintada ao estilo de Nelson, em quadros brancos
e negros; contudo, os costados azuis eram farinha de outro saco.
- Chamem ao senhor Bentley - ordenou.
Depois, quando o carpinteiro chegou, perguntou:
- Quanta tinta azul temos, senhor Bentley?
- Tinta azul, senhor? Apenas temos suficiente para dar ao cúter duas demãos finas, muito finas.
Jack permaneceu pensativo um momento e depois disse:
- Stephen, por favor, pergunte se o azul é escuro ou claro;.
Quando soube que o Azul era de claro, tão claro como o céu na alvorada, voltou-se para o carpinteiro para lhe perguntar de quanta tinta branca dispunham. A resposta
foi quase tão desalentadora como a anterior: apenas um quintal.
- Bem, bem - disse Jack -. Faremos o que possamos. Diga-me, senhor Bentley, como está a escuna?
- Oh, senhor! - exclamou o carpinteiro, e seu rosto se iluminou -. Logramos pôr-lhe um estupendo mastro maior usando quase o melhor mastaréu que tínhamos com um
dado colocado na base e dando um ou outro retoque na enora.
- O senhor e seus ajudantes trabalharam muito, senhor Bentley.
- Trabalhado? Mais que as abelhas.
No dia seguinte também trabalharam como as abelhas, porque enquanto Jack dava seu passeio noturno pelo convés, havia encontrado a solução para o problema de mudar
o aspecto externo da Surprise. Necessitavam várias demãos de tinta branca para tapar as faixas negras que ficavam por cima e por baixo da faixa branca com as portalós
negras, e com a tinta que tinham só podiam dar uma demão na metade de um custado, o que não seria suficiente para cobrir o negro. Mas se pudesse pintar uma lona...
Se pudesse estender muito bem uma lona branca sobre os costados, alguém com boa vontade podia conseguir que muito pouca quantidade rendesse muito.
Assim que se fez de dia chamaram os homens que limpavam a coberta, Jack teve uma longa conversa com o veleiro para averiguar qual era a lona mais fina e mais branca
e se era abundante. Tiveram que sacrificar certa quantidade de lona do número 8, mas a maior parte da que escolheram estava quase passada e só servia para reparar
os joanetes e os sobrejoanetes, pois a Surprise havia sido vendida com todos seu apetrechos e em sua última missão pela zona tropical do Pacífico a lona para as
velas havia se desbotado com o sol e gastado.
Quando o convés estava seco (pois somente se suspendia a limpeza da fragata em caso de uma iminente batalha), os marinheiros desenrolaram a lona, mediram-na, voltaram
a medir, estenderam-na de uma ponta a outra do casco pela parte exterior, marcaram-na com precisão, voltaram a estendê-la, cortaram-na e a pintaram. Fizeram o trabalho
no castelo de popa, que cobriram por completo, já que à velocidade da fragata e com o mar tão agitado não podiam pintar a lona amarrada por fora do casco. Por outro
lado, o castelo estava muito cheio e no convés, além dos botes e das plataformas em que ficavam apoiados deixarem pouco espaço livre, sempre havia homens no corrimão,
porque o tempo era muito variável e o bendito vento do nor-nordeste, ainda que ainda fosse forte, havia rolado tanto durante a noite que soprava em uma direção que
fazia necessário puxar constantemente das braças e as bolinas e mover o leme com sumo cuidado para que a fragata navegasse o melhor possível.
Portanto, quando Stephen subiu para o convés encontrou a popa da fragata muito cheia e os tripulantes muito ocupados. Como ocorria amiúde, havia passado boa parte
da noite acordado, pensando em Diana ao mesmo tempo que via nítidas imagens dela, entre as quais destacava uma em que conduzia seu cavalo a uma enorme cerca ante
a qual haviam retrocedido muitos homens e saltava por cima dela sem pensar duas vezes. Havia tomado seu remédio habitual às duas da madrugada, havia dormido até
muito tarde e se despertou aturdido. O café o despertou, e ficaria sentado um pouco mais para bebê-lo se não houvesse olhado seu relógio e percebesse que teria que
estar cumprindo com sua obrigação, que era atender aos enfermos com Martin; Padeen, seu ajudante temporal, não tardaria em golpear uma bacia de cobre junto ao mastro
maior cantando: "Que os enfermos se reunam neste lugar se querem se consultar com o nosso querido doutor!". E o diria cantando porque gaguejava ao falar, mas podia
cantar muito bem.
Apesar disso, primeiro Stephen queria ver o céu, dar bom dia para seus companheiros e saber se a Merlin ainda os acompanhava. Quando terminou de subir a escada,
enquanto notava uma sensação de calor e olhava a brilhante luz do sol, o luminoso céu e uma torre de velas de um branco resplandecente que quase chegava até ele,
apagou o sorriso do rosto ao ouvir frases em tom desaprovatório:
- Senhor, afaste-se, senhor!
- Retroceda, doutor! Retroceda, pelo amor de Deus!
- Vai tropeçar na lata!
Os marinheiros novos eram tão veementes como os antigos tripulantes e muito mais grosseiros (um deles lhe chamou de asno), pois muito logo compreenderam o que estava
em jogo; tinham enormes desejos de combater com o Spartan e faziam diligentemente os preparativos para a luta, ainda que não fosse mais que uma hipótese.
- Quieto! - gritou Jack, pegando-o pelos cotovelos -. Não se mova! Padeen, Padeen, traga outros sapatos para seu amo! Oviu?
Quando os sapatos chegaram, Stephen os pôs. Então olhou as faixas pintadas de azul que se estendiam até o coroamento e os rostos de expressão mal-humorada e compassiva
ao mesmo tempo que estavam voltados para ele e exclamou:
- Oh, sinto muito, Jack! Não deveria ter olhado para o céu! - e acrescentou -: Padeen, pelo que vejo, sua cara inchou outra vez.
Com efeito, sua cara havia inchado. O pobre homem, que tinha a bochecha tão inflamada que a pele estava brilhante, limitou-se a responder com um gemido.
Soaram as cinco badaladas e Padeen começou a golpear a bacia e a cantar a cançãozinha com uma voz apagada. Apesar de que na Surprise, como em todos os barcos, havia
certo número de hipocondríacos, os homens estavam tão atentos ao seu trabalho e o faziam com tanto afã que Padeen foi o único paciente que compareceu à enfermaria.
Stephen e Martin o olharam com pena porque fazia tempo que suspeitavam que tinha incrustada a dente do siso e sabiam que nesse caso não podiam fazer nada. Então
o doutor Maturin lhe tomou o pulso, voltou a olhar o interior de sua boca e a garganta, deu-lhe uma generosa dose de seu remédio habitual, amarrou-lhe um lenço ao
redor da cara e o dispensou de suas tarefas.
- Isso é quase a panacéia - disse Martin, referindo-se ao láudano.
- Pelo menos faz algo - disse Stephen, encolhendo os ombros e abrindo os braços -. Não podemos fazer nada mais... - acrescentou e depois de uma pausa continuou -:
outro dia encontrei uma palavra que não conhecia e que me encantou: psychopannychia. Significa o sono do mundo durante a noite. Provavelmente o senhor a conhece
há tempos por seus estudos de religião.
- Associo a palavra com o nome de Gauden - disse Martin -, que pensava que isso era errôneo.
- Eu a associo com a idéia de bem-estar - disse Stephen, acariciando a garrafa -, um bem-estar profundo e duradouro, ainda que não sei se alguma doutrina aprova
esse estado. Vamos ao castelo? Não acredito que nos molestem ali.
Estavam todos muito ocupados para incomodá-los. Pintavam a lona e a faixa branca na parte posterior da serviola no lado de barlavento, inclinados perigosamente para
fora das portalós. A coberta do castelo estava inclinada onze ou doze graus para o sol, e a temperatura ali era muito agradável, em contraste com o longo inverno
inglês que acabava de passar.
- O mar é azul, o céu é azul, as nuvens são brancas e tudo brilha - disse Stephen -. Que outra coisa pode ser mais agradável? Um pouco de espuma das ondas de proa
não tem importância, além do mais, é refrescante. Ademais, o calor do sol penetra até os ossos.
Depois do almoço, que foi frugal e rápido e que todos abordaram sem muito apetite, os marinheiros voltaram ao seu trabalho, e desta vez se sentaram comodamente em
almofadas de fio. A Merlin, que até então navegara como devia fazê-lo, na esteira da fragata e a um cabo de distância, a ultrapassou, pois era mais rápida que ela
navegando de bolina e alcançou oito nós de velocidade, enquanto a Surprise navegava a seis. Quando passou junto da fragata o capitão informou aos gritos de que pescavam
tantas cavalas quanto queriam, mas nem mesmo isso, que era o passatempo preferido dos marinheiros (e algo muito conveniente quando a comida era escassa) logrou afastar
sua atenção do trabalho. Alguns dos novos marinheiros tinham conhecimentos de navegação e a maioria dos antigos tripulantes da Surprise sabiam onde a fragata devia
situar-se para ter possibilidades de encontrar o Spartan a tempo, e por essa razão haviam visto com satisfação que os oficiais mediam a altura do sol ao meio-dia,
que Davidge dizia: "Doze em ponto, senhor, com sua permissão. Quarenta e três graus e cinqüenta e cinco minutos de latitude norte" e que o capitão replicava: "Obrigado,
senhor Davidge".
Isso significava que deviam avançar seis graus de latitude em três dias. Ainda que talvez fosse necessário mudar de bordo um pouco para o oeste, coseguiriam se a
fragata navegasse a uma velocidade média de cinco nós, e até agora, desde que se havia medido a velocidade, o resultado fora superior a seis. Provavelmente entrariam
em combate, um combate proveitoso, na quinta-feira, e todos pensavam que era uma estupidez perder a oportunidade de lutar contra o Spartan para pescar um punhado
de cavalas, sobretudo se eram espanholas.
Contudo, entre duas mãos de tinta, Bonden correu para a proa com uma cesta cheia de cabos e Stephen e Martin, sustentando em meio dos dois uma série de tiras de
um lenço vermelho a modo de isca, começaram a sacar as cavalas do mar. Já tinham a cesta meio cheia quando conceberam esperanças de pescar bonitos ao ver vários
perseguirem as cavalas, e nesse momento se ouviu um grito:
- Homem ao mar!
- Movam as escotas! - gritou Jack, saltando por cima das faixas pintadas e subindo para o anteparo cheio de macas.
Os marinheiros foram pegar os cabos que lhes correspondiam com rapidez mas com muito cuidado, e um minuto depois se ouviu o ensurdecedor ruído dos golpes das velas
quando o vento deixou de inchá-las. Jack olhou atentamente para o homem, um dos pintores, que se inclinara demais para fora, e viu que estava nadando. Também viu
que a Merlin virava para bombordo e que seus homens lançavam um bote na água desde a popa, assim que voltou a abotoar a casaca que estava a ponto de tirar.
- Girem o velacho! - gritou.
A Surprise começou a ganhar velocidade imediatamente, o que para todos acharam estranho depois de haver-se acostumado ao seu rápido e rítmico movimento.
O bote da Merlin, com o homem resgatado a bordo, aproximou-se da fragata e os marinheiros lhes advertiram aos gritos que não tocassem seus costados, assim que os
tripulantes engancharam o croque na proa. Pullings subiu a escada seguido de alguns homens com bolsas e do homem empapado objeto da preocupação de todos, um antigo
tripulante da Surprise chamado Joe Plaice. Mas o homem não foi bem recebido apesar de ter muitos amigos e inclusive parentes a bordo nem ninguém lhe felicitou por
estar vivo.
- Acho que este marinheiro de água doce também deixou cair a maldita broxa - disse um de seus companheiros de tripulação quando passou por seu lado.
- É conveniente que vá se trocar, Plaice - disse Jack friamente -. Espero que, apesar de seus imprudentes costumes, ainda tenha roupa seca.
Depois, alçando a voz, deu uma série de ordens para que a fragata voltasse a pôr-se em movimento. Parecia que algo imprevisto havia estragado as joanetes, mas o
que ocorria era que o vento havia amainado.
- Como vai, Tom? - perguntou, assinalando a Merlin com a cabeça.
- Suave como a seda, senhor - respondeu Pullings -. É estanque, navega de bolina com rapidez e vira com facilidade.
Porém, senhor, as mulheres criaram um grave problema, pois insistem em que as levemos para a Inglaterra imediatamente. Ameaçaram de se queixarem de nós para que
nos julguem e nos deportem para Botany Bay.
- Achei ouvi-las gritar quando nos avisou de que havia cavalas - disse Jack -. Pode dizer-lhes que tudo terminará logo. Não podemos ficar em alto mar nem mais um
dia depois da quinta-feira ou teremos que comer os cinturões e as solas dos sapatos. De toda maneira, terei que reduzir as rações dos marinheiros. Porém, ainda que
nos restasse, acho que não teríamos oportunidade de encontrar o nosso homem depois da quinta-feira. Além do mais, acredito que o último dia em que poderíamos achá-lo
é na quinta-feira, ou talvez antes.
- Com respeito aos cinturões e aos sapatos, senhor - explicou Pullings -, tomei a liberdade de trazer-lhe algumas provisões nessas bolsas. Eles as deram voluntariamente
- acrescentou ao ver que Jack o olhava com receio, pensando que havia comparecido à sua mente a palavra "pilhagem".
- Obrigado, Tom - respondeu Jack, pensativo, e imediatamente deu um passo para frente e arranhou um brandal enquanto assobiava -. Se o vento voltar a rolar para
o norte e a soprar com força, e espero e rogo que assim seja...
- Amém, senhor - disse Pullings arranhando ele também o brandal.
- Provavelmente lhe deixaremos para atrás, mas não avance a uma velocidade muito alta para se manter junto de nós, quer dizer, que seja superior à que as gáveas
podem suportar. Nos encontraremos nos 37° 30' N e 25° 30' O. E obrigado pelas provisões.
- Nos 37° 30' N e 25° 30' O, senhor - disse Pullings e passou por cima do coroamento.
Apesar dos assobios e dos arranhões no brandal (não houve nenhum marinheiro que não seguisse o exemplo de seu capitão), o vento amainou durante o dia e a noite,
assim que a Merlin não só não se ficou para trás como seus tripulantes tiveram que arriar todas as velas, exceto a traquete, em que fizeram dois rizes para que se
mantivesse em sua posição.
- Avançamos com dificuldade - anunciou Davidge na câmara dos oficiais -, ainda que, pelo aspecto que tinha o dia, teria jurado que o vento ia rolar para o norte.
O capitão opinou o mesmo, apesar das estranhas oscilações do barômetro. Talvez um brinde aos Bóreas nos ajudasse.
Verteu ponche nas taças (entre as provisões que Pullings havia trazido havia uma garrafa de conhaque para cada oficial) e exclamou:
- Cavalheiros, aos Bóreas!
- Aos Bóreas! - repetiu West -. Mas que sopre com moderada intensidade, não com tanta que seja necessário usar as gáveas aferradas na guarda da alvorada.
- Aos Bóreas! - exclamou Stephen -. Mas eu gostaria que não soprasse durante uma hora mais ou menos pela manhã, pois assim o senhor Aubrey poderia dar-se o prazer
de nadar e o senhor Martin e eu o de pegar espécimes no bote. Esta tarde atravessamos uma autêntica flotilha de medusas ainda não descritas e nenhuma podia ser colhida
com a rede.
- Nós lhe agradecemos muito as cavalas e os bonitos - interveio de novo West -, mas acho que os homens que estão a bordo desta fragata não deixariam de avançar nem
uma milha para o sul nem por todas as medusas do mundo. Não, não deixariam de avançar nem cem jardas ainda que lhes pusessem um barril de ostras em cada mesa.
Sem embargo, na terça-feira apareceu o sol sobre o mar opalescente, cuja superfície só se movia onde o bote formava uma pequena esteira, e iluminou aos cirurgiões,
que olhavam o fundo do mar através das translúzidas águas e recolhiam pequenos organismos e algas flutuantes. Jack Aubrey não se deu o prazer de nadar, ainda que
desejasse muito fazê-lo porque passara a noite sem dormir, tratando de forçar a fragata a avançar apesar do vento fraco e que a cada meia hora, quando se media a
velocidade, desenrolava-se menos corda da barquilha, até que chegou um momento em que nem um só nó se separou do carretel, pese a os esforços do suboficial encarregado
dos instrumentos.
Jack não nadou e quando houve luz suficiente começou a organizar a colocação de plataformas nos costados. Pouco depois do café da manhã, a fragata ainda tinha todas
as velas flácidas, mas parecia uma colméia outra vez.
- Isto é perfeito! - gritou Jack para que Pullings pudesse ouvir-lhe da Merlin, que se encontrava paralela à fragata a um quarto de milha de distância e virava um
pouco para evitar afastar-se -. Isto é o que pedi em minhas preces!
- Que Deus o perdoe! - murmurou Killick na reconstruída cabine, a poucos pés abaixo dele.
- Agora poderemos terminar de cobrir a faixa negra superior e começar a tapar a inferior. Poderemos chegar até as placas de cobre.
Essas palavras podiam enganar a alguns dos mais tontos marinheiros de Shelmerston, mas não aos que navegavam há tempos com o capitão Aubrey, que fizeram sinais com
a cabeça ou sorriram uns para os outros porque sabiam muito bem que, às vezes, um capitão tinha que falar assim, igual a um pastor que tinha que pregar aos domingos.
Ainda que eles não acreditassem, não deixaram de perseguir seu objetivo, e apesar de que a calmaria lhes fizera perder o entusiasmo que tinham no início, seguiram
trabalhando com afinco. Pensavam que se a fragata tinha a possibilidade, ainda que fosse remota, de chegar aos Açores na quinta-feira, não seria culpa sua que não
estivesse preparada para lográ-lo. Ao meio-dia a lona já estava colocada sobre as faixas negras superior e inferior, estendida e presa com pregos de cobre por cima
e por baixo da linha de flutuação, e para consegui-lo fora necessário mover os canhões alternativamente de um lado e de outro do convés para inclinar a fragata.
Os marinheiros usaram até a última gota de tinta azul e a estenderam calmamente com o fim de cobrir a maior parte da superfície possível. Ainda que a pintura azul
não a cobria toda, isso não tinha importância, porque por debaixo se viam a sujeira e as manchas formadas pela gordura da cozinha, como era habitual nos barcos.
Guzmán, no bote de Stephen, disse que a fragata e o Azul se pareciam com duas gotas de água.
Agora o único que faltava era pôr-lhe aparelho de brigue-barca e tirar-lhe o mastaréu de popa, que era muito alto e facilmente reconhecível, mas Jack tinha pensado
deixar essa operação para o último momento porque esse aparelho faria diminuir a velocidade, que naquele momento era o mais importante.
Sem dúvida era o mais importante; contudo, ao meio-dia a fragata estava imóvel e apenas havia avançado oitenta milhas desde a última medição. E a situação foi pior,
muito pior, quando o vento por fim começou a soprar, porque vinha do sul e pela proa, e ademais aumentava de intensidade hora após hora.
A Surprise, como era seu dever, avançava com o vento em contra dando bordejadas, mas os marinheiros faziam girar as pesadas vergas e ajustavam as velas o melhor
possível sem entusiasmo.
Stephen e Martin subiram para a coberta quando ouviram pela segunda vez o grito "Todos a mudar de bordo!" depois de terem passado um longo tempo observando os crustáceos
pelágicos, alguns deles ainda não descritos e, portanto, desconhecidos da ciência.
- Que agradável é estar em movimento outra vez! - exclamou Stephen -. Que saltos dá a fragata!
Então notou que Jack Aubrey tinha um olhar sombrio e franzia a boca tratando de conter sua raiva. Também se deu conta de que os marinheiros que estavam no convés
e na popa tinham uma expressão triste e que o silêncio era geral. Quando ouviu o grito "Leme para bombordo!", murmurou:
- Voltemos para baixo.
Sentaram-se sob a luz que entrava pelas grandes janelas de popa, e quando Killick entrou Stephen lhe disse:
- Por favor, Killick, conte-me qual é a situação.
- Bem, senhor; pelo que eu vejo - começou Killick -, seria melhor que recolhêssemos tudo e regressássemos para casa. Aqui estamos, tentando avançar para barlavento
tão rápido como podemos. Trabalhamos duríssimo e os marinheiros viram a fragata a cada meia hora, e quanto avançamos? Não mais de uma milha por hora para o sul.
E se o vento aumentar muito de intensidade e tivermos que tirar as joanetes, perderemos terreno. Ainda que a fragata navega muito rápido de bolina, às vezes deriva
um pouco, e se o vento chega a ser muito forte, retrocederá parte do que já avançou para o sul.
- Mas se o vento nos atrasa, também atrasará ao Azul, não é assim? - perguntou Martin.
- Oh! - gritou Killick de tal maneira que parecia uivar -. Porém, o senhor não vê que o Azul navega rumo oeste, que vai de Cádis para São Miguel? Portanto, tem o
vento pelo través. Pelo través - repetiu, assinalando o lado da fragata para que a explicação fosse mais clara -. E aí estão esses sacanas que vão com as velas aferradas.
Têm os braços cruzados, cospem para sotavento como se fossem deuses e fazem navegar seu barco, nossa presa de lei, a seis ou sete nós como se tal coisa...
Então a indignação afogou suas palavras.
Foi o mesmo Killick que, com a cara sorridente, aproximou-se da maca de Stephen na manhã seguinte, na manhã da quarta-feira, e sacudiu as cordas que o seguravam
enquanto repetia:
- O capitão lhe manda saldações e pergunta se quer ver...
Quando Stephen desceu da maca notou que a coberta estava inclinada pelo menos vinte e cinco graus. Depois de pôr os calções e uma horrível e velha casaca verde apoiando-se
contra o anteparo, emergiu, e a brilhante luz do dia lhe fez pestanejar.
A Surprise estava abatida, a borda de sotavento coberta de espuma e a água caía a jorros desde o pescante de proa. Como o vento era muito forte e chegava justamente
pela proa, não se podiam desdobrar as alas, porém, graças ao velho costume de Jack de amarrar ao cesto da gávea guindalezas e cabos delgados como contraestais, a
fragata podia levar desdobradas as joanetes e navegava a grande velocidade. Os marinheiros, muito alegres, estavam agrupados no corrimão de barlavento e no castelo,
onde se ouviam risos.
- Ah, já está aqui, doutor! - exclamou Jack -. Bom dia. Não acha maravilhoso? O vento rolou levando um negro aguaceiro pouco depois de que se deitou, começou a soprar
do sudoeste na guarda da alvorada e acredito que rolará outra vez para o noroeste. Mas venha comigo. Cuidado com o degrau.
Levou Stephen, que ainda pestanejava e estava aturdido, até o coroamento.
- Ali está - disse -. Por isso lhe despertei.
A princípio Stephen não podia distinguir nada, mas depois se deu conta de que as águas mais próximas por sotavento estavam completamente infestadas de baleias. Havia
um grande bando de baleias azuis que as atravessavam em uma direção, passando por cima, por debaixo e por entre as baleias cinzentas de outra bandada que as cruzavam
em direção contrária. Onde quer que olhasse via figuras gigantescas e escuras que saiam da água ofegando e agumas vezes ficavam flutuando na flor de água e outras,
a maioria, voltavam a mergulhar imediatamente, e ao fazê-lo podiam ver-se suas enormes barbatanas por cima da superfície. Algumas passaram tão perto que ele pôde
ouvir sua respiração: a exalação que parecia uma explosão e a forte inalação.
- Meu Deus! - exclamou -. Meu Deus! Que maravilha da criação!
- Alegro-me muito de que tenha visto - disse Jack -. Dentro de cinco minutos teria sido tarde demais.
- Queria ter avisado a Martin.
- Já está aqui, no cesto da gávea do mezena, como pode ver.
Efetivamente, ali estava o intrépido Martin, e ambos agitaram os lenços para se cumprimentar. Quando Stephen foi guardar o seu, olhou de soslaio para o sol, que
se encontrava à esquerda, não muito longe do horizonte, o que significava que a fragata navegava para o sul, como todos desejavam ansiosamente. Sem temor a equivocar-se
disse:
- Eu lhe felicito por ter conseguido o vento favorável.
- Muito obrigado - disse Jack, sorrindo mas negando com a cabeça -. Bem, melhor tarde do que nunca. Vamos tomar café.
- Parece que não tem muitas esperanças - disse Stephen na cabine, tratando equilibrar uma xícara.
- Confesso que não muitas - confirmou -. Mas acredito que poderemos percorrer a distância que nos falta se o vento rolar para o norte e se mantiver. Bem, se não
desprender nada - acrescentou tocando o tabuleiro da mesa.
Nada havia se desprendido quando fizeram as medições do meio-dia e comprovaram que a Surprise avançara oitenta e sete milhas para o sul, a maioria delas desde o
início da guarda da alvorada. Ainda que o vento era um pouco mais; fraco, seguia rolando, e pouco depois do almoço se desdobraram as primeiras alas. Todos os marinheiros
observaram com atenção como se inchavam, e pouco depois, quando se fez a medição com a barquilha e ouviram informar: "Dez nós e três braças, senhor com sua permissão",
todos riram satisfeitos no corrimão de barlavento e no castelo.
Na fragata, todos menos Padeen voltaram a ficar alegres e a ter esperanças. Pela manhã Stephen lhe pusera um cataplasma com o fim de que expulsasse o pus que possivelmente
tinha; ao meio-dia lhe dera sopa a colheradas e lhe pusera outra; mas agora, na guarda da tarde, a dor era mais intensa. Padeen se levantou da maca, aproximou-se
do estojo de remédios e se administrou láudano ele mesmo. Ficou pensativo olhando o frasco, um frasco comprido e delgado com marcas de um lado, e, depois de refletir
entre um acesso de dor e outro, meteu-lhe na jaqueta e foi até a cabine do Martin. Não havia ninguém naquela parte da fragata, porém, ainda que tivesse alguém, passaria
desapercebido, porque servia a Martin além de ao doutor. Ao chegar lá pegou a garrafa de conhaque de Martin, encheu o frasco de láudano com uma mistura de conhaque
e água até a marca onde o remédio chegava anteriormente, voltou a pôr a garrafa e o frasco em seu lugar e se meteu de novo na maca. Estava sozinho porque a maioria
dos marinheiros se encontravam acima observando com satisfação o avanço da fragata e além disso, acabava de se ouvir o grito "Barco à vista!" procedente do tope
de um mastro e todos os que estavam ocupados na bodega, a parte da coberta inferior onde se guardavam as amarras da âncora e da bodega de proa também haviam subido.
O barco se achava a umas cinco milhas a sotavento e já se via desde o convés; contudo, a Surprise tinha tanto velame aberto e a água do mar varria o castelo com
tanta freqüência que não era fácil vê-lo, nem sequer dos cestos das gáveas. Mas Jack, sentado na cruzeta do maior, por cima da joanete, (um lugar que conhecia desde
sua juventude, desde que era um guarda-marinha nessa mesma fragata), podia ver todo o horizonte. Ainda que o barco tinha aparelho de navio, estava seguro de que
não era o Spartan, sobretudo porque navegava muito ao norte. Apesar de portar bandeira espanhola, o mais provável é que fosse britânico, pois era construído ao estilo
britânico, com a proa quadrada. Provavelmente era um barco que fazia o comércio com as Antilhas. Havia começado a desdobrar velas desde que ambas as embarcações
haviam se avistado uma à outra, e nesse momento Jack o viu mudar de bordo repentinamente para sotavento com o velame golpeando porque o mastaréu de sobremezena se
desprendera.
Se quisesse, a Surprise podia mudar de bordo e chegar do seu lado em meia hora, porém, ainda que era possível que fosse uma presa de lei, essa meia hora era muito
valiosa para desperdiçá-la. Moveu a cabeça de um lado para o outro, trocou de posição na cruzeta e dirigiu o telescópio para o norte. A Merlin podia ser vista bem
na guarda da manhã, mas agora não era mais que um ponto no horizonte.
Regressou para o convés apoiando os pés nos delgados amantilhos, que se curvavam sob seu peso, e depois saltou do parapeito para uma caronada e desta para o castelo
de popa. Aproximou-se da bitácula enquanto os tripulantes o observavam em silêncio, olhou a bússola e disse:
- Muito bem. Não mudaremos.
Não iam mudar o rumo e os marinheiros, ao se informarem, sofreram uma decepção. Alguns suspiraram de tristeza e imediatamente se ouviu um rumor geral que parecia
a respiração de duas ou três baleias próximas, mas não era um rumor de desaprovação nem de descontentamento.
Quando terminou a tarde, o vento diminuiu mais de intensidade, voltou a rolar e se fixou no oeste-noroeste, quase pela alheta da fragata. À medida que amainava,
os tripulantes da Surprise abriam mais velas, e apareceram sucessivamente as alas superiores e inferiores, as sobrejoanetes, a sobrecevadeira, que raras vezes se
usava, todas as bujarronas e uma nuvem de velas de estai. Era digna de se ver e nesse momento todos os marinheiros a admiraram por sua formosura, não só por ser
um meio para alcançar um fim. Mas Jack, que observava as monterillas1, compreendeu que isso não serviria de nada quando, movendo-se para o oeste, o sol se metesse
atrás de um grande banco de nuvens que havia a estibordo. Inclusive percebeu que antes de trocar de guarda teriam que arriar muitas velas para evitar ter que chamar
os marinheiros no meio da noite se ocorresse uma brusca mudança do vento, pois, apesar do vento ter se fixado na direção noroeste, poderia mudar de intensidade.
Era importante que todos os marinheiros passassem uma noite tranqüila, pois haviam trabalhado muito duro desde que a terrível borrasca a semana anterior lhes açoitara,
e ainda que, em geral, estavam animados, não se sentiriam assim que se levassem três dias perseguindo a um inimigo que pudessem ver, pois em tal caso poderiam seguir
trabalhando sem comer nem descansar. Ademais, Jack viu que alguns estavam exaustos. Seu própio timoneiro estava abatido e parecia mais velho. Geralmente, os marinheiros
não dormiam muito e não era conveniente despertá-los pela noite enquanto descansavam, especialmente antes de uma batalha.
Sempre tiveram poucas possibilidades de entabular um combate no dia seguinte, e agora tinham ainda menos, mas só um tonto provocaria que diminuissem ainda mais ou
as eliminassem depois de tanto trabalho e de ter adiantado tanto. Por outro lado, tampouco era conveniente ser muito precavido, pois isso só poderia ser levado a
cabo se a Surprise chegasse a se situar em algum ponto entre São Miguel e Santa Maria por barlavento. "Tenho que levar em consideração todas estas coisas", pensou
Jack caminhando de um lado para outro. O resultado de sua reflexão foi que durante a noite a Surprise, em vez de navegar com as joanetes aferradas e com um riz nas
gáveas como era o habitual, devia fazê-lo com as joanetes desdobradas. A fragata fizera um notável avanço durante o dia e, se navegasse ainda que fosse a cinco nós
pela noite, ainda poderia percorrer um total de duzentas milhas desde as medições do meio-dia desse dia até as do dia seguinte, e, portanto, avistariam o rochedo
situado na parte leste de São Miguel.
- Jack, acabo de fazer uma adaptação de um dueto de Sammartini para violino e violoncelo - disse Stephen, levantado a vista do papel pautado -. Gostaria de tocá-lo
depois do jantar? Killick nos prometeu que trará purê de ervilhas da cozinha e torradas com queijo feitas por ele mesmo.
- É longo?
- Não.
- Então, com muito prazer. Mas quero deitar-me cedo. Tom está na escuna, e me encarregarei da guarda de meia.
Como muitos marinheiros, Jack Aubrey havia adquirido desde muito cedo o hábito de dormir quase quando punha a cabeça no travesseiro, mas essa noite não foi assim.
O motivo não era outra vez a tortura da recordação de sua desgraça ou a dos julgamentos que tinha pendentes já fazia tempo e que poderiam causar-lhe a ruína; o motivo
era que, apesar de seu cansaço físico e mental, deslizava pela superfície de seu presente imediato escutando o som da água ao passar pelos costados da fragata, os
rangidos do casco e a onipresente voz do vento ao passar através dos tensos cabos da exárcia. Ao mesmo tempo, seguia mentalmente as passagens da peça musical que
havia tocado, ainda que em ocasiões se distraía e ouvia as badaladas, e em todo momento sabia como soprava o vento. Encontrava-se em um estado estranho, muito estranho,
descansando tanto como se estivesse adormecido e mais tranqüilo e alegre que em nenhum outro momento desde o julgamento.
Já estava levantado e vestido quando Bonden foi chamá-lo e imediatamente subiu para o convés.
- Bom dia, senhor West - cumprimentou, olhando para a lua corcunda, que se destacava nitidamente no céu.
- Bom dia, senhor - disse West -. Tudo vai bem, mas o vento amainou um pouco. É um alívio que haja chegado, senhor.
- Dê a volta no relógio! - ordenou o suboficial que estava governando a fragata.
Então Plaice, reconhecível por seu ofego, avançou e tocou oito badaladas.
Enquanto a guarda mudava, Jack observou a tabuinha de navegação. O vento não havia mudado de direção nem um só grau, ainda que, como ele sabia muito bem, amainara,
e o resultado da medição da velocidade era com mais freqüência inferior a seis nós.
Mesmo que o vento soprasse do noroeste, a noite era cálida e quando Jack foi até o coroamento viu com satisfação que a esteira era comprida e luminosa. Aquela era
a primeira esteira fosforescente que via esse ano.
Escutou os habituais informes: na sentina havia seis polegadas de água (muito pouca, apesar da forte tempestade, porque a fragata era estanque) e a velocidade, conforme
a última medição com a barquilha, era quase de sete nós. Então pensou que o vento ia aumentar de intensidade.
A guarda não podia transcorrer mais tranqüilamente. Não foi necessário ordenar que movessem as escotas e as braças. Somente se moveram os homens que levavam o leme
e os suboficiais que se ocupavam dos instrumentos e só se ouviram os serviolas falando uns com os outros, a medição feita com a barquilha e as badaladas. De vez
em quando algum marinheiro ia até a proa, mas a maioria deles ficou agrupada no castelo, alguns falando em voz baixa e outros dormindo sobre uma prancha de madeira
não muito dura.
Jack passou a maior parte dela olhando o hipnótico movimento da esteira, milha depois de milha, ou olhando passar as bem conhecidas estrelas. De vez em quando aumentava
a força do vento, e em uma ocasião pôde apontar na tabuinha "sete nós", mas seu aumento nunca foi tão grande para causar mudanças no velame nem alterou o prazeroso
movimento da fragata, pelas escuras águas sob a noite debilmente iluminada pela lua e as estrelas, salvo para fazê-lo ainda mais agradável.
Às quatro da madrugada Davidge o substituiu, acompanhado pelo grupo de marinheiros da guarda de estibordo, e, depois de dar ordem para que o chamassem ao mesmo tempo
que aos homens que limpavam o convés, desceu e imediatamente caiu em um profundo sono.
Quando amanheceu subiu para o convés outra vez. O vento seguia quase igual ao que havia deixado, só havia rolado um pouco para oeste, e a maior parte do céu estava
limpo e somente a estibordo se viam nuvens e névoa. Os homens que limpavam o convés, fedorentos e sem se lavar nem se pentear, já estavam agrupados ao redor das
bombas, e Vênus, que acabava de aparecer em cima do horizonte sobre o céu azul claro, parecia mais nítida em comparação com eles. Depois de dar os bons dias para
os oficiais que estavam no castelo de popa, Jack disse:
- Senhor Davidge, hoje limparemos o convés somente com esfregões e depois a secaremos. Depois, aproveitando que os incapacitados ainda estarão aqui, pois provavelmente
não tardarão mais de dez minutos em bombear a água, começaremos a desdobrar mais velas.
Essa era uma das vantagens de uma tripulação dessa classe: com as únicas excessões do cirurgião e seu ajudante, todos, inclusive os homens que limpavam a coberta,
que estavam isentos de fazer guarda, eram marinheiros de primeira e conheciam com perfeição seus ofícios. Entre estes homens estavam o veleiro e seus ajudantes,
o armeiro, o condestável e seus ajudantes, o carpinteiro e seus ajudantes, o toneleiro e todos os outros que realizavam trabalhos especializados. Enquanto Jack subia
sem pressa pela exárcia de barlavento do cesto da gávea do maior ou mesmo mais acima, com tanta facilidade e despreocupação com a altura como um homem que subia
a escada do ático de sua casa, pensou que outra vantagem era que os tripulantes estavam desejosos de agradá-lo, mas não forçados pela disciplina mas por medo de
serem recusados, algo que não havia visto nunca durante os anos passados no mar. Faltava aproximadamente uma hora para que os marinheiros subissem as macas para
o convés e, sem necessidade de empurrá-los, insultá-los nem açoitá-los, as poriam no anteparo devidamente enrolados em cinco minutos, e em muitos dos barcos do rei
isso era impensável.
- Bom dia, Webster - disse Jack ao serviola que estava na cruzeta da joanete.
- Bom dia, senhor - respondeu Webster, movendo-se pelos amantilhos de sotavento para deixar a cruzeta livre -. Não vi nada pelo oeste, mas talvez com seu telescópio...
Era um bom telescópio, um Dolland acromático. Jack se sentou na cruzeta, cuidadosamente o dirigiu para o oeste e percorreu com a vista o semicírculo limitado pelo
horizonte, mas onde devia estar São Miguel havia um banco de nuvens ameaçadoras, nuvens negras com frisos roxos e cinzas que pareciam impenetráveis. Depois de um
tempo baixou o telescópio, pendurou-o no ombro, cumprimentou com a cabeça o serviola e regressou para a coberta.
Ali, enquanto repassava mentalmente as cifras obtidas durante o percurso noturno, mandou desdobrar mais velas. Muito antes que os marinheiros subissem as macas,
a Surprise superou os oito nós de velocidade, e quando Jack desceu para fazer novamente os cálculos em um papel e extrapolá-los para a carta marítima, tendo em conta
o abatimento e a margem de erro, disse: "É absurdo que esteja tão ansioso. Pareço uma velha".
- Coberta! - gritou Webster desde o tope do mastro -. Terra a trinta e cinco graus pela amura de estibordo!
Sua aguda voz, depois de atravessar o ruído que faziam os marinheiros movendo-se de um lado para o outro e falando mais do que era habitual em um barco do rei, entrou
pela porta aberta da cabine de Jack, que, pela carta marítima que tinha em frente e a bússola delatora pendia de um vau justo acima de sua cabeça, soube que o cabo
Ribeira de São Miguel estava situado ao sul-sudoeste, exatamente a trinta e cinco graus pela amura de estibordo.
Nesse momento ouviu que golpeavam uma das jambas da porta e imediatamente West entrou.
- Terra à vista, senhor - anunciou -. A trinta e cinco graus pela amura de estibordo. Pude vê-la um momento desde o convés porque a névoa está se dissipando. Acho
que está a umas dez léguas de distância.
- Obrigado, senhor West - disse Jack -. Irei vê-la dentro de um momento.
Pouco depois o contramestre tocou o apito para chamar todos os marinheiros para desjejuar, e no mesmo momento Stephen entrou correndo, como se houvesse esperado
para ouvir esse som.
- Por Deus, Jack diga-me que terra é essa! - gritou para que sua voz pudesse ser ouvida apesar do estrondoso ruído de passos -. Espero que não seja o cabo Fly-Away.
- A menos que o cabo Fly-Away se encontre exatamente dez léguas ao sul-sudoeste. este cabo está na parte nordeste de São Miguel - explicou Jack, mostrando-lhe a
carta marítima com as réguas paralelas sobre as linhas que delimitavam a posição.
- Contudo, não parece entusiasmado.
- Estou contente, mas não entusiasmado. Meus sentimentos estão muito estranhos, vão e vêm. De qualquer maneira, este é só um pequeno passo e ainda nos resta muito
para percorrer.
- Com sua licença, cavalheiros - interrompeu Killick -. Aqui lhes trago um par de peixes voadores recém pescados que devem ser comidos quentes.
- Os peixes voadores frescos têm uma suave textura - disse Stephen, começando a comer -. Importa-se de me passar o pão, Jack? Diga-me uma coisa, disse que este cabo
está na parte nordeste da ilha?
- Sim. Chama-se Ribeira e há uma grande cruz colocada nele que espero que vejamos dentro de uma ou duas horas.
- Supunha que, se tivéssemos sorte e chegássemos a São Miguel (que não é mais que um ponto no vasto oceano), bordejaríamos a costa ocidental e nos situaríamos em
um lugar a meio caminho entre São Miguel e Santa Maria por barlavento.
- Indubtavelmente, esse é o lugar em que queremos situar-nos, mas devemos chegar a ele desde o leste, como se viéssemos de Cádis. Minha idéia é chegar até os 37°
30' N ou um pouco mais além; depois, esquivando Formigas, mudar de bordo para o oeste; e depois, com a esperança de encontrar o Spartan nos esperando, isto é, esperando
ao Azul, mudar de bordo para barlavento como se quiséssemos fazer escala em Horta.
- Quais são nossas possibilidades agora?
- Quase tudo depende do vento do sul que nos atrasou na terça-feira. Se soprava aqui também, mas não com tanta força como para obrigar ao Azul a pôr-se em pairo,
o haverá feito avançar rapidamente para o oeste e, por isso, chegaremos tarde demais. Se não soprava aqui ou se soprava do sudoeste procedente das ilhas, é possível
que encontremos ao Spartan esperando. Mas tanto se o encontrarmos como se não, poderá ver São Miguel, e se bordejarmos as ilhotas e os arrecifes de Formigas poderá
ver algas e criaturas muito curiosas. - Fez uma pausa e depois prosseguiu -: Diga-me, Stephen...
Ia continuar perguntando: "Já teve alguma vez a impressão de que o que faz não é real, de que está representando um personagem e que o que parece ser o presente
realmente não tem importância? Isto ocorre com freqüência ou é um sinal de má saúde ou mesmo o princípio da loucura?". Contudo, pensou que isso pareceria uma queixa
e o mudou para:
- Como está Padeen?
- Ainda tem a cara muito inchada, mas sua fortaleza é assombrosa.
- Querem outro peixe voador? - perguntou Killick -. Estão caindo aos montes no convés.
Durante a guarda da manhã, a maior parte dos tripulantes olharam para São Miguel quando não estavam ajustando as velas ou fazendo silenciosas práticas de tiro com
os canhões sem balas. A ilha de São Miguel estava cada vez mais perto e se via cada vez mais claramente, e ao meio-dia, justo pelo través, todos puderam ver a grande
cruz recortando-se sobre o céu.
O vento havia rolado para o oeste e havia amainado, pelo que o resultado da última medição com a barquilha indicou só cinco nós; contudo, isso não os desanimou,
pois as medições do meio-dia (cujo resultado todos ouviram muito bem) indicaram que haviam percorrido duzentas e dez milhas desde o meio-dia de um dia ao do seguinte.
Uma vez mais, todos deram vivas e, uma vez mais, Padeen não pôde escutá-los, já que estava na coberta inferior guardando o frasco de láudano, que desta vez havia
completado com mais quantidade de líquido.
- O senhor Bulkeley se ocupou de preparar os cabos e os moitões, assim que não acredito que nos leve muito tempo.
Também deviam trocar o mastaréu de joanete maior, e assim que os marinheiros terminaram de almoçar começaram a tediosa tarefa de subir as vergas necessárias; uma
dura tarefa, porque os botes estavam colocados em cima delas e antes tinham que pendurá-los nas vergas do mastro maior e do traquete e depois descê-los. Stephen
e Martin, que tinham uma especial habilidade para ficar no meio quando se faziam manobras desse tipo, mas que resistiam a ficar na coberta inferior em um dia como
aquele (especialmente agora que podiam ver muitas das aves que costumam se aninhar nos arrecifes), decidiram ir-se para o castelo com suas almofadas e seus cabos
para pescar.
- Agora vamos muito mais devagar - observou Martin.
- Fiz esse mesmo comentário ao capitão - explicou Stephen -, mas ele me disse que não me preocupasse; isto se deve a estarmos a sotavento da ilha e dentro de uma
hora mais ou menos estaremos navegando tão rápido como sempre.
Quando a Surprise começou a rebocar o esquife, a pinaça e o bote, já havia dobrado o cabo de Madrugada, e perto dali, seguindo uma rota que logo cruzaria a sua,
navegava um atuneiro de São Miguel pintado de cores escandalosas.
- Mudem de orientação o velacho! - gritou Jack.
A Surprise perdeu velocidade consideravelmente e o atuneiro mudou o rumo para corresponder ao óbvio convite do capitão.
- Digam ao doutor que venha - ordenou e depois, quando o doutor chegou, perguntou -: Doutor, sabe falar português, não é?
- Falo bastante bem - confirmou Stephen.
- Então, por favor, compre-lhes pescado se têm e pergunte que ventos sopraram por aqui esta semana. Se considerar oportuno, pergunte também pelo Spartan, mas o que
realmente é importante saber é se o vento, sobretudo o que soprava na terça-feira, vinha do sul e se era forte.
O barco se abordou com a fragata. Subiram as cestas com pescado (prateados bonitos de quase três pés de comprimento) e desceram com moedas contadas cuidadosamente
e em voz alta para evitar erros. Então o doutor Maturin passou a conversar com o capitão do barco e enquanto isso West e Davidge desceram a falua e os dois cúteres.
Jack foi para sua cabine, e lá Stephen lhe deu as más notícias: na terça-feira soprava o vento do sul e era muito forte, e, no dia anterior, o tio do capitão do
atuneiro vira passar um brigue-barca com rumo oeste, como se fosse de Cádis para Faial. Mas o velho cavalheiro não mencionou o nome da embarcação e, além de dizer
que usava bandeira espanhola, não dera mais detalhes dela.
- Bem, bem... - disse Jack -. Pelo menos fizemos o possível para conseguir. Mas vamos beber uma cerveja para celebrar o pescado que comeremos. Não há nada melhor
que uma rodela de bonito grelhada. Killick, Killick! Traga duas latas de cerveja e bolachas para que desça melhor.
A essa hora do dia a cerveja fria não lhes resultou desagradável, e enquanto bebiam Jack disse:
- Se fosse supersticioso, diria que eu mesmo provoquei isto por elogiar tanto o percurso de ontem, o fato de ter avistado terra exatamente onde havia previsto e
o tempo excepcionalmente bom.
- Não lhe ouvi elogiar nada.
- Mas o destino sim. Creia-me, Stephen, esse tipo de coisas não são simplesmente contos de velhas viúvas nem uma bobagem como passar por debaixo de uma escada. Acredito
que debe-se tratar o destino ou a sorte, ou como queira que se chame, com o devido respeito. Os homens não devemos alardear e tampouco desesperar-nos, porque isso
não estaria bem; assim que pode rir se quiser, mas penso em continuar a mudança do aparelho e patrulhar a zona compreendida entre São Miguel e Santa Maria durante
o resto do dia. Amanhã, depois de ter desfeito a troca, poderemos ir para casa e, se quiser, passaremos por Formigas e lhe deixaremos em terra entre uma mudança
da maré e outra.
A Surprise, convertida agora em uma brigue-barca de cor azul claro, navegava lentamente com o vento em contra entre as duas ilhas. Na metade da guarda de primeiro
quartilho chegou à posição que o capitão considerava ideal, mas o Spartan não apareceu. Na realidade, ninguém tinha esperanças de encontrá-lo, pois muitos marinheiros
entendiam um pouco o português e, combinando uns com os outros o que haviam compreendido, chegaram à conclusão acertada. Seu respeito por Jack Aubrey fez com que
trocassem o aparelho da fragata com grande rapidez e precisão e não protestassem nem deixassem de fazer as coisas com prontidão, enquanto a fragata navegava de um
lado para outro, dando trabalhosamente muitas voltas, umas mais lentas e outras mais rápidas. Essas voltas não eram muito diferentes das que dava o capitão, que
percorria milhas caminhando do coroamento até um parafuso que ficava do outro lado do corrimão, um parafuso prateado ao qual o salto de seu sapato lhe havia dado
brilho ao girar.
Essa tarde não passaram em revista. Nos casos como esse, os marinheiros passavam a guarda do segundo quartilho tocando música e cantando no castelo, mas esse dia
a passaram conversando tranqüilamente e desfrutando da cálida tarde.
O sol se pôs, criando uma luz rosácea durante um tempo; os marinheiros desceram as macas; a guarda mudou, e começaram as tarefas noturnas de rotina na fragata, que
navegava alternativamente para o norte e para o sul com os botes a reboque. De acordo com as normas de Jack, os tripulantes deveriam ter subido os botes a bordo;
mas estavam cansados e desalentados e no dia seguinte, para a viagem de regresso, teriam que pôr tudo o que haviam mudado como estava antes, teriam que fazer esse
trabalho pesado duas vezes, assim que Jack deixou as coisas como estavam.
Quando estava sentado em sua escrivaninha na grande cabine começou uma nova página de uma carta que escrevia para Sophie, uma espécie de diário que ela também poderia
ler:
Minha querida Sophie:
Aqui estamos, ao sul de São Miguel, navegando pelas águas quentes como o leite. Queria que aí o tempo fosse a metade de bom que é aqui. Se é assim, a roseira amarela
do muro que dá para o sul estará florescendo. Espero ver-lhe dentro de mais ou menos uma semana, porque iniciaremos a viagem de regresso amanhã. Não tivemos tanta
sorte como pensávamos na viagem, porém, como lhe disse, capturamos uma valiosa presa, a Merlin, e os novos tripulantes se adaptaram muito bem.
Stephen diz que raras vezes viu uma tripulação mais sã (na lista de enfermos só figura Padeen, que tem dor de dentes) e atribui isso ao fato de que têm muito pouco
o que comer e só tomam cerveja. Neste momento ele e Martin estão nos botes que vão a reboque pegando insetos fosforescentes com uma rede e uma peneira e tenho que
confessar que...
Interrompeu a carta e deixou de um lado a caneta ao ouvir algo parecido a um canhonaço. Um instante depois voltou a se ouvir o ruído e Jack subiu correndo para o
convés, onde se encontravam Davidge e West com os telescópios apoiados na borda de sotavento.
- Justo pelo través, senhor - informou West -. Agora disparam de novo.
- Estão a dez milhas de distância - afirmou Davidge quando o ruído chegou por fim até onde se achavam.
- E pelo menos a meia milha de distância um do outro - acrescentou West.
Houve uma comprida pausa na qual observaram com grande atenção o horizonte ao leste, uma pausa durante a qual o barco que estava à esquerda disparou duas vezes e
o da direita, que estava ao sul, três.
- Senhor Davidge, situe a fragata com o vento em popa - ordenou Jack.
- Quer que suba os botes a bordo, senhor? - presumiu Davidge.
- Ainda não, porém, por favor, suba ao doutor - respondeu Jack antes de descer correndo para buscar sua luneta.
A fragata virou devagar com a suave brisa e dirigiu a proa para o leste. Jack podia ver uma grande extensão do mar desde a verga do traquete e, ao olhar pela luneta
de noite, comprovou que era verdade o que antes lhe parecia quase certo: aquilo era um combate entre dois barcos. O perseguidor navegava na esteira do perseguido,
a meia milha de distância, e ambos disparavam com grande precisão; o primeiro com os dois canhões de proa e o segundo com os dois de popa e provavelmente um do castelo
de popa. A lua não sairia até passadas algumas horas, mas sua luz já se difundia ao redor do zênite e, quando Jack, que tinha enfocado o primeiro barco com a luneta,
viu um clarão, notou que o perseguido era uma brigue-barca. O clarão do canhão do castelo de popa (realmente havia um canhão no castelo de popa) iluminou a carangueja
e pôde ver que o barco não tinha sobremezena. Jack comprovou isso outra vez e depois gritou:
- Convés! Convés! Todos a mudar de bordo!
Era possível que os barcos fossem de nacionalidade francesa e britânica, ou estadunidense e britânica, ou francesa e espanhola, e que sua certeza de que o perseguido
era o Azul e o perseguidor o Spartan não tivesse mais fundamento que seu desejo de que assim fosse; contudo, quase nenhum barco de guerra da Armada Real usava aparelho
de brigue-barca, e raras vezes o usavam os de outras armadas. De qualquer maneira, ainda que estivesse equivocado, só perderiam uma noite de descanso.
De baixo ouviu então os berros do contramestre e os gritos: "acima, acima! Levantem-se, dorminhocos!".
Desceu da verga e tomou o governo da fragata. Sabia perfeitamente como navegava melhor com esse vento, o único vento que não era desfavorável para ela em seu atual
estado, sem uma sobremezena. Agora navegava com o vento em popa e levava desdobradas a cevadeira, a traquete com as alas de ambos os lados, a gávea e a joanete maiores
com suas alas e a sobrejoanete maior.
- E os botes, senhor? - perguntou Davidge em tom ansioso -. Quer que os subamos a bordo?
- Não. Com o vento em popa, perderíamos mais tempo do que pouparíamos. Mas vejo que já trouxe o doutor. Doutor, quer vir comigo ao cesto da gávea do traquete para
ver o que passa? Bonden, ajude ao doutor e traga-me o estojo com o telescópio especial.
Como o velacho estava aferrado, desde o cesto da gávea do traquete havia boa vista.
- Ali! - exclamou Jack -. Viu? Não tem sobremezena e isso significa que seu aparelho é de brigue-barca, já que com este vento pelo través o capitão haveria desdobrado
a sobremezena se a tivesse. Isso é o lógico. Se quiser lhe digo o que penso que ocorreu e espero que minha suposição esteja certa.
- Sim, por favor.
- Penso que o Azul se pôs em pairo na terça-feira, que o Spartan, ainda que navegasse rumo leste para encontrá-lo, derivou para o norte mais do que devia, e que
se avistaram na última hora desta tarde. Suponho que o Azul orçou para fugir porque nessa posição navega com mais rapidez, mas que o Spartan além de mais veloz e
conseguiu chegar a uma posição da qual seus canhões podem alcançá-lo. Acredito que desde então estão disparando os canhões quase continuamente com a esperança de
derrubar algo.
- Que acha que ocorrerá?
- Se o Azul não conseguir derrubar algo do Spartan, o barco o alcançará e ambos começarão a disparar-se com as baterias. Então tudo dependerá principalmente da habilidade
que tenha cada um para manejar as armas, ainda que se o Spartan puder aproximar-se o suficiente sem perder nenhum pau importante, não há dúvida de que suas caronadas
de quarenta e duas libras sacarão as tripas do Azul.
- Não vamos ser meros espectadores, não é?
- Penso que não, mas duvido que possamos alcançar-lhes antes de que o Spartan, pois assim eu o chamo, alcance ao Azul, porque navegamos com o vento em popa e nenhuma
embarcação, nem mesmo a Surprise, pode avançar muito rápido nestas condições. Com um pouco de sorte, poderemos entrar em combate com ele pouco depois, sabe?, pois
como devemos avançar pelo sul para segui-los, teremos o vento pela alheta e poderemos desdobrar mais velas. É possível que entabulemos combate com ele e que o capturemos.
Houve uma pausa.
- Me alegro de não ter trocado os canhões longos por caronadas, como pensei em fazer uma vez - acrescentou -, porque assim poderemos disparar-lhe a distância em
vez de aproximar-nos de suas caronadas de quarenta e duas libras. Se temos que persegui-lo, soltarei os botes e deixarei Bonden e um punhado de bons marinheiros
na pinaça. Porém, naturalmente, há centenas de possibilidades. O Azul pode orçar e cruzar pela frente do Spartan disparando-lhe de proa a popa e depois abordá-lo
em meio da fumaça. Podem suceder centenas de coisas.
Nesse momento guardaram silêncio e o mesmo fizeram os marinheiros que abarrotavam o castelo, justo debaixo deles, e que contemplavam a distante batalha enquanto
os barcos avançavam lentamente para o oeste na escura noite, que parecia ainda mais escura em contraste com os clarões dos canhões. O perseguidor deu uma guinada
para disparar a bateria e com o resplendor todos viram que tinha aparelho de navio.
- Aposto cem libras que é o Spartan.
- Por que essa luneta é especial? - perguntou Stephen.
- Porque tem a lente dividida em duas e, por isso, se vêem duas imagens. Se as imagens se separam, isso quer dizer que o barco está se afastando, e se se sobrepõem,
isso significa que se aproxima.
Passou uma hora, uma hora e meia, e muito lentamente o perseguidor percorreu o vão que havia deixado de avançar ao dar a guinada, começou a encurtar a distância
que o separava do outro barco. Agora disparava com os canhões de proa e da Surprise se via a meio caminho do horizonte.
O estrondo dos canhões e seu eco se ouviam quase continuamente desde que os dois barcos chegaram a ficar quase paralelos e se formou uma espessa nuvem de fumaça
justo detrás do Azul. Era realmente o Azul, pois Jack vira pelo telescópio seus costados de cor azul claro com o resplendor do bombardeio do Spartan, uma devastadora
descarga. Quando o Spartan se encontrava a meia milha por barlavento, o Azul virou bruscamente como se fosse situar-se com o vento em popa e depois voltou a dirigir
a proa para o outro lado. Então o Spartan disparou contra a desprotegida popa. Jack achou que a distância era muito grande para que os disparos das caronadas fossem
efetivos e que o Spartan não estava tão bem governado como da última vez que o vira, já que avançou um vão muito grande antes de orientar as velas para seguir perseguindo
o Azul.
- Talvez consiga escapar - disse Jack, alçando a voz -. É possível que o Spartan tenha perdido um mastro.
Mas algo estranho havia ocorrido. Parecia que o Azul não se movia e Jack dirigiu para ele seu telescópio especial. A imagem não mudava, depois o barco ficou imóvel.
Ademais, viam-se luzes movendo-se de um lado para o outro do convés, e ainda que o Spartan estivesse se aproximando por fim, os tripulantes do Azul estavam descendo
não um bote, mas dois.
- Meu Deus! - exclamou Jack -. Ele encalhou em Formigas!
Até agora a presa navegara para o sul, e Jack havia mudado o rumo de acordo com isso; contudo, agora mandou arriar velas de modo que só ficassem abertas a traquete
e a maior, a mínima quantidade de velame desdobrado que a fragata devia usar, e mudou o rumo cinco em graus.
Seguiu observando a batalha de pé no cesto da gávea, com as mãos apoiadas na grade, e a via cada vez mais de perto. A lua saiu e iluminou as brancas e enormes nuvens
de fumaça, e Jack viu com assombro que o Spartan se aproximava do costado do Azul mais distante da Surprise, o costado de estibordo, e seus tripulantes engatavam
nele os ganchos e o abordavam.
Desceu para a coberta rapidamente, ordenou que subissem os baús com as armas e os poucos faróis que restavam e depois foi correndo para a proa. Nas distantes águas
a batalha alcançou seu ponto culminante: cada barco disparou três ensurdecedoras descargas seguidas, as duas últimas quase simultâneas. Depois se ouviram alguns
canhonaços e tiros de mosquete e depois se fez o silêncio. Jack viu então que muitos homens saltavam das portalós iluminadas do Azul para os botes situados junto
ao costado de bombordo e se afastavam remando, aparentemente tratando de se ocultar do Spartan.
Ao voltar ao castelo de popa gritou:
- Todos os marinheiros a popa!
Quando os homens se reuniram ali, explicou:
- Companheiros de tripulação, o Azul encalhou em Formigas! O Spartan tem enganchados os ganchos em seu costado e nós vamos capturar a ele e a sua presa nos botes.
Senhor West, ordene ao armeiro que entregue a todos pistolas, sabres e machados de abordagem conforme sua vontade. Eu irei na frente na falua e me seguirão o senhor
Smith no cúter azul e o senhor Bulkeley no vermelho. Abordaremos o Azul, lembrem, o Azul, pelo pescante de proa. O senhor Davidge irá na pinaça, o senhor Bentley
no esquife e o senhor Kane no bote, e os três o abordarão pelo pescante de popa. Todos os botes estarão unidos de proa a popa por um cabo. Abordaremos o Azul, atravessaremos
o convés, como a ponte de Nelson, recordam?, e depois atacaremos os tripulantes do Spartan pela proa e pela popa. Não profiram nem um só som, nem um só, enquanto
nos aproximamos, mas gritem quando abordarem o barco, e quando estejam a bordo a contra-senha será "Surprise!". Atenção - acrescentou, alçando a voz, ao ouvir o
primeiro burburinho -: que não se ouça nenhum som até que estejamos lá. Senhor West, lamento dizer-lhe que o senhor deverá ficar na fragata com dez homens. Terá
que aproximar-se de nós quando façamos um sinal com três lanternas, mas nunca a menos de meia milha. Partiremos dentro de cinco minutos.
Foi para a cabine buscar seu sabre, pôs por escrito as ordens que dera a West para se fosse morto ou a expedição fosse um desastre e depois desceu para a falua.
A escuridão se encheu de sussurros que confirmaram sua idéia de que os homens que o rodeavam tinham muitos brios. Participara de muitos ataques surpresa, mas em
nenhum vira tanta fúria nem tão grande expectativa, ainda que talvez "fúria" não fosse a palavra mais apropiada.
- Prontos? - perguntou com voz suave para cada embarcação.
E de cada uma chegou a resposta: "prontos, senhor".
- Adiante - ordenou.
Havia pequenas ondas que vinham do sul e o vento soprava pela popa. Os botes deslizavam com rapidez pelo mar sem mais ruído que os rangidos da bancada e do tolete
e o burburinho dos remos. Aproximavam-se cada vez mais e se mantinham juntas. Quando percorriam as últimas cem jardas, Jack estava quase seguro de que um monte de
metralha ia sair de repente da coberta inferior do Azul, na qual havia muita luz e se viam marinheiros caminhado de um lado para outro. Inclinou-se para frente e
disse em voz baixa:
- Mais rápido agora. Mais rápido.
Então desembainhou o sabre e, quando Bonden situou a falua debaixo do pescante de proa do Azul, subiu nele de um salto. Depois saltou por cima da borda e, dando
um forte grito, caiu no castelo, ocupado somente por três cadáveres. Imediatamente a multidão de homens que vinha atrás dele o empurrou para frente e, ao mesmo tempo,
ouviu as vivas dos homens do outro grupo ao subir a bordo e os gritos: "Surprise! Surprise!".
Alguns marinheiros com expressão horrorizada apareceram pelas três escotilhas iluminadas e imediatamente desapareceram.
- Vamos, vamos, ajudem-me! - gritou Jack passando a correr pelo corrimão e saltando por cima dos ganchos para passar para o Spartan.
Ainda que o ataque fosse totalmente inesperado, vinte e cinco ou trinta tripulantes do Spartan opuseram resistência no castelo de popa, pegando todas as armas que
puderam encontrar e formando uma massa compacta. Um arrancou o sabre da mão de Jack com uma bala de mosquete; outro lhe fez uma fenda em um lado do pescoço com uma
lança e outro muito baixo e robusto lhe deu um soco no queixo, tombando-o para trás sobre um cadáver. Jack se voltou para um lado e disparou com a pistola no homem
robusto. Depois pegou um pedaço da despedaçada borda de uns seis pés de comprimento e arremeteu contra o grupo com inusitada fúria. Os homens retrocederam, tropeçando
uns nos outros, e imediatamente Jack lhes desferiu um forte golpe e derrubou os três. Estava a ponto de dar-lhes outro golpe, um revés, quando Davidge pegou seu
braço e disse:
- Senhor, senhor, eles se renderam, senhor.
- Ah, foi? - perguntou Jack, ofegando. Seu rosto perdeu a expressão feroz -. Tanto melhor. Alto! Parem de lutar! - acrescentou, olhando para um grupo de homens que
estavam no castelo, e depois, deixando cair sua arma, que parecia uma grande jamba de carvalho, perguntou -: Onde está o capitão?
- Morreu, senhor. O Azul o matou. Este é o único oficial que resta.
- O senhor responde por seus homens, senhor? - perguntou Jack ao homem de cara pálida que tinha em frente.
- Sim, senhor.
- Todos exceto os feridos descerão imediatamente para a bodega. Onde estão os tripulantes do Azul?
- Escaparam nos botes antes que nós o abordássemos, senhor. Mas não restavam muitos.
- Senhor Davidge, traga três lanternas da coberta inferior e pendure-as nos amantilhos.
À luz das lanternas pôde ser visto um desolado cenário. Sem dúvida, o Azul havia disparado com grande precisão e as potentes balas do Spartan, disparadas a curta
distância, haviam destruído tudo o que tocaram. As baixas tinham que ser forçosamente grandes, sobretudo na entrecoberta; contudo, pelo que Jack pôde ver ao caminhar
entre os cadáveres, nenhum de seus homens havia morrido, ainda que Webster, que estava dobrado sobre si mesmo, tinha uma ferida no estômago, e o condestável tinha
um braço ensangüentado e seus ajudantes estavam lhe pondo uma tipóia.
- Senhor - disse o jovem -, peço que corte os cabos do barco, pois não poderá manter-se flutuando por mais de cinco minutos. Estávamos esperando terminar de sacar
as últimas bolsas de mercúrio.
- Sinto muito que tenha perdido, Tom - disse Jack Aubrey quando desjejuava na cabine com Pullings, que, tal como haviam acordado, compareceu ao encontro pouco antes
de que saísse o sol -. Foi a melhor surprise que possa imaginar. E não havia outra maneira de fazer as coisas porque, naturalmente, eu não ia meter a fragata entre
esses obstáculos durante a noite. Esses arrecifes são terríveis. O Azul se afundou em um lugar de dez braças de profundidade pouco depois de pegarmos os feridos.
Nunca compreenderei como esse jovem insensato pôde se aproximar dele sem sofrer danos.
- Lamento que o tenham ferido, senhor - respondeu Pullings -. Espero que a ferida não seja tão grave como parece.
- Não tem importância. Inclusive o doutor diz que não tem importância, e quando a fizeram não senti nada. Não foi mais que uma roçadura com a lança. Quase não sofremos
danos, mas o Spartan e o Azul se destruiram um ao outro. Foi a batalha curta mais sangrenta que já vi. As cobertas estavam cheias de sangue, completamente cheias.
No Azul só havia um pequeno grupo de homens capazes de caminhar, um grupo que cabia em dois botes; e no Spartan, além dos feridos, havia duas vintenas de homens.
É verdade que muitos homens foram enviados para tripular as cinco grandes presas, porém, apesar de tudo, houve uma carnificina.
- Aqui está o contramestre, senhor - informou Killick.
- Sente-se, senhor Bulkeley - ordenou Jack -. O que queria lhe perguntar era se temos muitas bandeiras francesas.
- Somente três ou quatro, senhor.
- Então, se quiser, poderia fazer algumas mais. Não digo que tenha que fazê-las, senhor Bulkeley, porque isso suporia ser muito presunsoso, só digo que pense na
possibilidade de fazê-las.
- Sim, senhor. Pensarei nessa possibilidade - disse o contramestre e pediu permissão para se retirar.
- Bem, Tom - continuou Jack -, voltando às presas, não temos nem um minuto a perder. Sei que o doutor proferirá juramentos - acrescentou, olhando pela janela a ilhota,
pela qual Stephen e Martin andavam a gatas depois de ter deixado os feridos com os cirurgiões -, mas zarparemos rumo a Faial tão logo o Spartan esteja em condições
de navegar, e a verdade é que tem muitos cabos e provisões de todo tipo. Avançaremos tão rápido como possamos, a toda vela, porque o final do mês e a Constitution
estão mais perto a cada dia. Navegaremos rumo a Faial, porque as cinco presas do Spartan estão ali, atracadas no porto de Horta. O Spartan aparecerá frente ao porto
acompanhado de um barco que se parece muito com o Azul, e, certamente, não entrará na longa baía porque perderia muito tempo manobrando; contudo, a Merlin, que todos
conhecem muito bem, entrará, disparará duas salvas e dará o sinal de saída. As presas recolherão âncoras e se reunirão conosco em alto mar, onde substituiremos seus
tripulantes, e então as levaremos para a Inglaterra com uma bandeira francesa içada em cada uma para enganar à Constitution se nos encontrarmos com ela. Entende
o que quero fazer, Tom?
CAPÍTULO 4
O doutor Maturin e seu ajudante estavam em uma farmácia e revisaram o que haviam comprado para o estojo de remédios da Surprise.
- Acho que isto é tudo, além da sopa em pó, os retratores duplos e um par de saca-balas para extrair balas de mosquete, que poderemos encontrar na loja de Ramsden.
- Não se esquece do láudano? - perguntou Martin.
- Não. Há uma razoável quantidade a bordo. Mas agradeço por me lembrar.
A razoável quantidade estava distribuída em garrafões de onze galões protegidas por um tecido de vime e o conteúdo de cada uma equivalia a quinze mil doses como
as que administravam normalmente nos hospitais. Stephen pensou nelas com satisfação.
- A tintura de ópio, administrada adequadamente, é um dos remédios mais efetivos que temos - afirmou -, e por isso procuro não ficar nunca snela. Às vezes a uso
eu mesmo como sedante. Porém, sabe de uma coisa, Martin? - perguntou depois aproximar a lista da luz e revisá-la de novo -. Acho que seu efeito diminue. Como está,
senhor Cooper?
- Como está o senhor, senhor? - perguntou o desdentado boticário, e em seu tom e sua pálida cara se notava uma grande satisfação -. Acredito que está surpreendentemente
bem, ah, ah, ah! Quando a senhora Cooper me disse que o cirurgião da Surprise estava na farmácia eu lhe disse: "Vou descer para felicitar o doutor Maturin por sua
surpreendente viagem". Então ela me disse: "Cooper, não acredito que vá tomar a liberdade de brincar com o doutor". E eu lhe repliquei: "Querida minha, nós nos conhecemos
há muitos anos, e ele não se importará que lhe faça uma brincadeira". Eu lhe felicito, senhor, felicito de todo coração.
- Obrigado, senhor Cooper - disse Stephen, apertando sua mão -. Agradeço muito por sua amabilidade.
Quando ambos estavam de novo na rua, Stephen continuou:
- Seu efeito diminue consideravelmente, ainda que não sei o motivo. O senhor Cooper é um homem confiável e usei a tintura que prepara em muitas viagens. Sempre a
preparou da mesma forma, sempre. É feita com bom conhaque em lugar de álcool, assim que esse não é o problema. A explicação tem que ser outra, mas não sei qual,
e como estou decidido a tomar só uma dose moderada, salvo em caso de emergência, tenho que resignar-me a passar uma noite sem dormir de vez em quando.
- Que dose o senhor considera moderada? - inquiriu Martin por curiosidade.
Sabia que a dose normal era de vinte e cinco gotas e vira Stephen dar a Padeen sessenta para poder acalmar sua terrível dor, mas também sabia que tomá-lo habitualmente
podia provocar certo grau de tolerância e queria averiguar se o grau era muito alto.
- Uma dose que não parece muito grande para alguém acostumado a tomá-lo. Não mais de... não mais de mil gotas, mais ou menos.
Martin reprimiu uma exclamação de horror e para ocultar sua expressão chamou um coche que passava.
- Tendo em conta que a chuva parou, o céu está limpo e só temos que caminhar uma milha inglesa, não lhe parece que isto é desnecessário, colega? - perguntou Stephen.
- Querido Maturin, se o senhor houvesse sido tão pobre como eu e durante tão longo tempo, ao fazer por fim fortuna desfrutaria dos luxos da boa vida. Somente os
mesquinhos são incapazes de sentir prazer.
- Bem - disse Stephen; pôs o pacote no coche e depois subiu nele -. Mas espero que o senhor não se torne orgulhoso.
Pararam em Ramsden, arrumaram as provisões que faltavam e se separaram. Martin foi buscar uma tecido que combinasse com um pedaço de seda pintada de sua esposa e
Stephen se foi ao seu clube.
Os porteiros do Black's eram muito discretos, mas eram inconfundíveis seus expressivos sorrisos e reverências, o tom comprazido com que lhe deram bom dia e lhe entregaram
uma nota de sir Joseph Blaine, que era outra vez o chefe do Serviço secreto naval. Nela sir Joseph lhe dava as boas-vindas a Londres e confirmava o encontro dessa
tarde.
"Às seis e meia - pensou Stephen, olhando de soslaio o relógio Tompion que havia no saguão -. Terei tempo para ir ver como está a senhora Broad."
Então olhou para o porteiro do saguão e disse:
- Ben, por favor, guarde-me este pacote até que regresse, e não deixe que me reúna com sir Joseph snele.
Depois perguntou ao cocheiro:
- Conhece o Grapes, no distrito de Savoy?
- A hospedaria que queimou e que estão reconstruindo?
- A mesma.
Se houvesse névoa, como costumava ocorrer nas margens do rio, ou a tarde estivesse avançada, o Grapes haveria sido o mesmo lugar, porque o estavam reconstruindo
sem introduzir nenhuma mudança e Stephen poderia ter encontrado seu quarto com os olhos vendados; contudo, os tijolos novos não tiveram tempo de recobrir-se de uma
capa de sujeira londrina e as janelas sem vidros dos pisos superiores davam ao lugar um aspecto sinistro que não merecia. Até Stephen entrar na sala de estar não
se sentiu como em sua casa. Ali tudo estava sempre muito limpo e, além do odor de gesso fresco, não se observava nenhuma diferença. Conhecia a hospedaria perfeitamente
bem e mantivera reservado um quarto permanentemente durante anos. Era muito tranqüilo e conveniente para os membros da Royal Society, a Sociedade de Entomólogos
e outras organizações de intelectuais, e além disso ele sentia grande estima pela dona.
Nesse momento diminuiu um pouco sua estima pela senhora Broad, pois de um dos pisos superiores chegou sua voz escandalosa em uma profussão de frases em tom furioso.
Os gritos das mulheres sempre o deixavam nervoso, e ficou ali de pé com a cabeça baixa, as mãos atrás das costas e uma expressão de desgosto. Aparentemente tinham
o mesmo efeito nos dois vidraceiros que desceram a escada nesse momento respondendo em tom submisso à torrente de palavras que caía desde cima: "Sim, senhora. Desde
já, senhora. Imediatamente, senhora. Sem falta, senhora". Ao chegar à porta, ambos colocaram bem os chapéus de papel na cabeça, olharam-se com angústia e se afastaram
rapidamente.
Podia-se ouvir como a senhora Broad resmungava enquanto descia a escada:
- Malditos preguiçosos! Radicais! Jacobinos! Pilantras! Canalhas!
Chegou à sala de estar e sua voz subiu ainda mais de tom quando disse:
- Não, senhor, não podemos servir-lhe! A hospedaria não está aberta ainda nem o estará nunca por culpa desses malditos monstros. Oh, meu Deus! Mas é o doutor! Deus
lhe abençoe, senhor. Sente-se, lhe rogo.
Nesse momento sua habitual expressão alegre apareceu em sua cara como o sol assomando por trás de uma nuvem roxa e ela apoiou seus gordos braços no braço de uma
poltrona.
- Então o senhor está na cidade, senhor. Lemos coisas sobre o senhor nos jornais, e na vitrina de Gosling havia desenhos e uma gravura... meu Deus, quantos sucessos!
Espero que ninguém tenha ficado ferido. E como está o capitão? Acho que vou chorar de raiva porque esse sem-vergonha me prometeu instalar as janelas dos pisos superiores,
entre as quais se encontram as de seu quarto, faz três semanas. Três semanas, e como vê, ainda não há janelas. A chuva entrou e estragou os pisos que as meninas
poliram, e isso é suficiente para fazer uma mulher chorar. Mas o senhor não traz nada nas mãos. A que há vindo, senhor? Para brindar pelo novo Grapes?
- Para bendizer a hospedaria e a sua dona, senhora Broad - respondeu Stephen -. E eu gostaria de tomar uma taça de uísque.
A senhora Broad, mais tranqüila, regressou com uma bandeja sobre a qual havia uma torta e copos (ela ia tomar licor de uva vermelha porque estava um pouco rouca)
e um pacote de guardanapos de papel sob o braço. Sentaram-se, um de cada lado da chaminé; o doutor Maturin fez a benção, e a senhora Broad perguntou se tinha notícias
do norte.
Ela e Diana haviam tentado que Stephen ficasse saudável, bem alimentado, vestido de acordo com a estação, com roupas íntimas limpas e com roupa bem escovada, e durante
aquela comprida e infrutuosa campanha haviam chegado a ser amigas, ainda que já desde o início haviam simpatizado. A senhora Broad sabia bastante bem o que ocorria
entre o doutor e a senhora Maturin, mas admitia tacitamente como certa a falsa afirmação de que Diana se havia ido ao norte por problemas de saúde enquanto Stephen
viajava pelos mares.
- Não - respondeu Stephen -, mas é possível que vá ali dentro de pouco.
- Eu tive notícias no dia da Anunciação - disse a senhora Broad -. Um cavalheiro da legação me deu isto - acrescentou, desenbrulhando uma boneca sueca com uma peliça
de marta zibelina -. Ela dizia na nota que comunicasse ao doutor que estavam lhe fazendo uma capa a prova de água em Swainton e que se esquecera de dizer. Também
dizia que teve que tecê-la de forma especial, mas que provavelmente já estará terminada. A peliça é de autêntica marta zibelina - acrescentou, alisando a roupa da
boneca e seu loiro cabelo.
- Ah, é? - perguntou Stephen, pondo-se de pé e olhando a rua pela janela -. De autêntica marta zibelina?
Teria sido melhor romper definitivamente com Diana do que andar de um lado para outro com seu enorme diamante no bolso, como se fosse um talismã, e tremendo ao ouvir
seu nome. Havia amputado muitos membros no passado, e não só literalmente. Do outro lado da rua viu o seu velho amigo, o cachorro do açougueiro, sentado no umbral e coçando-se a orelha com perseverança canina.
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Pegou um pedaço de torta e saiu da hospedaria. O cachorro fez uma pausa, olhou à direita e à esquerda com seus olhos míopes enquanto retorcia o nariz e o viu. Então cruzou a rua subindo e descendo a cabeça e movendo a calda. Stephen o acariciou a cabeça, observou seu horrível sorriso e notou com tristeza a capa com que os anos haviam coberto seus olhos. Depois lhe deu palmadas nas ancas misturadas e gordas e lhe ofereceu o pedaço de torta, que pegou devagar pelo extremo. Imediatamente se separaram. O cachorro regressou para o açougue, onde, depois de olhar ao seu redor, colocou o pedaço de torta intacto debaixo de um monte de lixo e se jogou no solo. Stephen voltou ao Grapes e disse à senhora Broad:
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- No que se refere ao meu quarto, não se preocupe nem um pouco. Não vim para buscar um quarto para mim mas para Padeen, meu servente. Vão operá-lo amanhã em Guy's.
Infelizmente, será uma extração difícil, e não quero que fique em uma sala comum. Provavelmente a senhora terá algum quarto na planta baixa.
- Vão extrair-lhe um dente? Pobrezinho! Sem dúvida, já está preparado um pequeno quarto que se encontra debaixo do seu, mas também Deb pode ficar com Lucy; o que talvez seja melhor, porque o seu quarto é melhor ventilado.
- Padeen é um bom homem, senhora Broad. É do condado de Clare, em Irlanda. Não fala muito inglês e quando fala o pouco que sabe gagueja e demora cinco minutos antes de dizer cada palavra, que com freqüência não é a correta. Contudo, é obediente como um cordeiro e sempre está sóbrio. Agora tenho que deixá-la, porque tenho um encontro do outro lado do parque.
Em seu percurso tinha que passar pela rua Strand, que ficava cheia de gente, e também por Charing Cross, que ficava ainda mais cheia, pois além de três ruas de muito tráfego confluírem para ali, havia caído um cavalo que puxava um carro, obrigando a deter-se ao seu redor carruagens, caleches e diligências, e entre eles e os passageiros que haviam descido passavam ginetes, liteiras e coches pequenos. O cocheiro permanecia sentado sobre a cabeça do animal esperando que o garoto que o ajudava desatasse todas as fivelas desnecessárias. A multidão, entre a qual Stephen passou lentamente, estava de bom humor, e que rodeava ao garoto e ao cavalo dava ao primeiro muitos conselhos em tom humorístico. Era composta por pessoas muito diversas, que se diferenciavam sobretudo pelos uniformes, majoritariamente vermelhos. Aquela maré humana produzia uma...Depois de ser afastado da marinha por um delito que não cometeu, Jack Aubrey aceita a oferta de seu amigo Maturin, enriquecido ao receber uma herança, de assumir o comando da mítica Surprise para fazer o corso pelo canal da Mancha. Depois de alguns extraordinários êxitos na luta contra os franceses, Aubrey parece em uma posição que não pode ser melhor para que seu cargo lhe seja restituído, e para consegui-lo aceita entrar na política. Mas uma parte importante do romance centra-se em Maturin, que parece a ponto de conseguir reabilitar seu matrimônio, ainda que para isso deva viajar para a Suécia onde, conforme suas últimas notícias, sua esposa tem um novo amante. O tema da droga (Maturin esteve experimentando o láudano e a folha de coca) é outro dos pontos centrais do relato, assim como a música, neste caso as aberturas operísticas italianas.
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CAPÍTULO 1
Desde que Jack Aubrey foi expulso da Armada, desde que seu nome foi apagado da lista de capitães de navio e sua antiguidade foi invalidada, parecia que vivia em
um mundo completamente distinto. Ainda que tudo fosse familiar, dos odores da água do mar e da lona alcatroada da exárcia até o suave balanço da coberta sob seus
pés, tudo havia perdido sua essência e ele tinha a impressão de ser um estranho.
Outros oficiais expulsos por um conselho de guerra estavam pior do que ele, como, por exemplo, os dois que haviam subido a bordo com apenas um baú para ambos. Comparado
com eles Aubrey era muito afortunado e, ainda que isto podia proporcionar-lhe sossego, não contribuía para levantar-lhe o ânimo. Tampouco contribuía para isso que
não houvesse cometido o delito pelo qual lhe haviam sentenciado.
Apesar de tudo, era inegável que Jack Aubrey não estava em uma situação desesperada. A Armada havia vendido sua velha mas bonita fragata Surprise, que Stephen Maturin
comprara para convertê-la em um barco de guerra privado (quer dizer, um barco corsário), para perseguir ao inimigo, e ele tinha o comando.
A fragata estava ancorada com uma só âncora em um porto isolado em que um grande banco de areia e as bruscas mudanças da maré o tornavam perigoso. Os comerciantes
e os oficiais da Armada evitavam o lugar, enquanto que eram frequentados por contrabandistas e corsários, muitos de cujos rápidos barcos se alinhavam ao longo do
cais. Jack deu a volta ao chegar ao final de um dos passeios que dava mecanicamente pelo lado de estibordo do castelo de popa, olhou para o povoado e voltou a se
perguntar qual era a causa de achar Shelmerston tão parecido com os povoados de piratas e bucaneiros que ainda restavam nas Antilhas e Madagascar, e que tão bem
conheceu quando navegava na Surprise como guarda-marinha. Apesar de que em Shelmerston não havia uma praia de brilhante areia coralínea nem coqueiros flexíveis,
parecia com esses portos; talvez a semelhança consistisse nas tabernas chamativas, o ambiente em que predominavam a desordem e o dinheiro fácil, o grande número
de prostitutas e o fato de dar a impressão de que somente uma brigada recrutadora sumamente valente e bem armada tentaria agir ali. Jack também viu que dois botes
zarpavam da costa em direção à Surprise e que os dois competiam para chegar primeiro; contudo, em nenhuma estava o doutor Maturin, o cirurgião da fragata (poucos
sabiam que também era seu dono), que devia subir a bordo esse dia. Em uma o timoneiro era uma belíssima jovem ruiva, recém chegada ao povoado, que se mostrava muito
contente de encontrar-se ali e a quem os tripulantes admiravam muito e a cujos gritos agudos respondiam com tal heroísmo que um deles rompeu um remo. Ainda que não
podia dizer-se que Jack Aubrey frequentasse o trato com prostitutas, tampouco observava o celibato. Desde sua juventude a beleza havia sido para ele fonte de prazer,
e essa jovem animada e tão entusiasmada era exageradamente bonita; contudo, limitou-se a considerar isto com objetividade e, em tom inexpressivo, indicou para Tom
Pullings:
- Não deixe que essa mulher suba a bordo e admita só a três dos melhores.
Voltou a dar passeios pensativo enquanto Pullings, o contramestre, o condestável e Bonden, seu própio timoneiro, testavam os marinheiros. Todos eles tinham que subir
a exárcia, largar e aferrar uma joanete enquanto se contava o tempo com um relógio de areia, depois descer e apontar um canhão, depois disparar com um mosquete em
uma garrafa pendurada de um penol e, por último, fazer um nó de envergue frente a uma multidão de excelentes marinheiros. Em geral, dotar de tripulação a um barco
do rei era algo difícil que se conseguia com a ajuda das brigadas recrutadoras, rogando humildemente que os barcos recrutadores trouxessem um grupo de homens, ainda
que fossem desajeitados delinqüentes, e enviando marinheiros para navegar de um lado a outro do canal para sacar tripulantes dos mercantes que iam de regresso à
Inglaterra ou recrutando homens nos povoados costeiros; contudo, raras vezes tinha-se êxito e havia que zarpar com cem tripulantes a menos dos necessários. Mas para
o capitão da Surprise armar a fragata em Shelmerston era como armá-la no paraíso, pois ali se recebiam de imediato os apetrechos que se encomendavam aos dispostos
e competitivos provedores cujos armazéns bem sortidos ficavam junto ao cais e, ademais, não era necessário recrutar homens forçosamente nem rogar-lhes que se alistassem
depois de reunidos com o toque do tambor. Há muito tempo os marinheiros sabiam que Jack Aubrey era um capitão audaz e que tinha tanta sorte em conseguir butins que
o chamavam de Jack Aubrey o Afortunado; e quando se difundiu a notícia de que sua fragata, que navegava de maneira extraordinária quando habilmente manobrada, converter-se-ia
em um barco corsário que estaria sob seu comando, muitos tripulantes de barcos corsários correram em tropel para oferecer-lhe seus serviços. Jack podia escolher
aos marinheiros, algo que nunca lhe ocorrera quando estava a bordo dos barcos do rei em tempo de guerra, e agora lhe faltavam somente três para completar o número
de tripulantes que estimava adequado. Muitos dos marinheiros e suboficiais eram antigos tripulantes da Surprise que haviam sido licenciados depois de atracar a fragata
na dar-se e que provavelmente haviam se esquivado das brigadas recrutadoras desde então, ainda que Jack suspeitava que vários haviam desertado dos barcos do rei
e que, em alguns casos, o haviam feito com ajuda de seus amigos íntimos (como Heneage Dundas) ao comando deles. Naturalmente, alguns tripulantes eram fiéis seguidores
seus, como seu dispenseiro e seu timoneiro e alguns quantos homens mais que não nunca o haviam abandonado. Vários dos marinheiros que não conhecia procediam de mercantes,
mas a maioria eram contrabandistas e tripulantes de barcos corsários, marinheiros de primeira curtidos que não estavam habituados à disciplina e muito menos ao cerimonial
que a rodeava (ainda que quase todos tenham sido recrutados forçosamente alguma vez), mas estavam dispostos a servir às ordens de um capitão a quem respeitavam.
Nesse momento, aos olhos dos tripulantes de barcos corsários Jack era mais respeitável do que ele supunha. Ainda que tenha perdido peso, ainda era muito largo de
ombros e parecia exageradamente alto; tinha um aspecto mais velho e sua cara rosada e de expressão alegre agora estava mais delgada e tinha um gesto grave com um
toque de ferocidade, pelo que qualquer um que conhecesse bem a rudeza dos marinheiros quando lhe via compreendia que não podia faltar a respeito de um homem com
uma cara assim, pois se alguém o ofendesse ele golpearia sem avisar e as consequências seriam terríveis.
Provavelmente a Surprise era a embarcação em serviço de sua categoria que tinha uma tripulação mais eficiente e profissional, o que podia encher de alegria ao seu
capitão; contudo, ainda que ao observar isto Jack havia sentido certa satisfação e tanta alegria como podia hospedar seu coração, nenhum destes sentimentos era profundo.
Parecia que o coração de Jack Aubrey havia endurecido para poder suportar sua desgraça sem se romper, e esse endurecimento o transformara em um homem tão pouco capacitado
para experimentar emoções como um eunuco.Talvez esta explicação fosse simples demais, mas a verdade era que em outro tempo o capitão Aubrey, como seu herói, Nelson,
e muitos de seus contemporâneos, chorava com facilidade (chorara de alegria no tope de um mastro do primeiro barco que esteve sob seu comando, umedecia com suas
lágrimas a parte inferior de seu violino quando tocava fragmentos exageradamente comoventes e havia soluçado nos funerais de muitos de seu companheiros de tripulação,
tanto no mar como em terra) e agora tinha tão pouca sensibilidade e os olhos tão secos como era possível a um homem. Quando se despediu de Sophie e das crianças
em Ashgrove Cottage só sentiu um nó na garganta, pelo que sua despedida parecera rude e sem afeto; e, por outro lado, desde que subira a bordo não tocara o violino,
que ainda permanecia em seu estojo forrado de lona alcatroada.
- Estes são os três melhores marinheiros, senhor, com sua permissão - disse o senhor Pullings, tirando o chapéu -. Harvey, Fisher e Whitaker.
Os três se tocaram a testa com a mão. Eram contrabandistas e excelentes marinheiros (do contrário não teriam passado nas exageradamente duras provas) e, como eram
primos, tinham o mesmo nariz comprido, a mesma cara curtida pelos elementos e o mesmo gesto astuto. Aubrey lhes olhou com certa satisfação e disse:
- Harvey, Fisher e Whitaker, alegro-me de que se encontrem a bordo, mas saibam que só se ficarão se forem do agrado do cirurgião e obtiverem a sua aprovação. - voltou
a olhar para a costa, mas não viu nenhum bote com o cirurgião a bordo, e continuou -: E já conhecem as condições de pagamento e de divisão do butim, assim como as
normas de disciplina e os possíveis castigos, não é?
- Certamente, senhor. O timoneiro nos as leu.
- Muito bem. Podem subir seus baús a bordo.
Começou a dar passeios outra vez enquanto repetia: "Harvey, Fisher, Whitaker". Um capitão tinha o dever de saber os nomes de todos seus homens e conhecer um pouco
sua vida, o que até agora não lhe havia resultado difícil nem mesmo em navios de linha com seiscentos ou setecentos tripulantes. Ainda recordava o nome dos marinheiros
da Surprise, com os quais havia compartido a última viagem pelo Pacífico Sul, e, em alguns casos, muitas outras viagens anos atrás; contudo, lamentavelmente, esquecia
os nomes dos novos marinheiros e inclusive tinha que fazer um esforço para recordar o de seus oficiais. Isto não ocorria com Tom Pullings, que havia servido sob
suas ordens como guarda-marinha e agora era um capitão da Armada Real com meio soldo, um excelente capitão sem esperanças de conseguir um barco, e atualmente era
seu primeiro oficial; tampouco ocorria com o segundo e o terceiro, ambos antigos oficiais do rei, a quem conhecia bastante bem e cujos julgamentos ante um conselho
de guerra recordava claramente (a West lhe haviam processado por bater-se em duelo e a Davidge por um complicado assunto relacionado com a precipitada firma dos
livros de um desonesto contador sem havê-los olhado); mas só podia recordar o nome do contramestre, Bulkeley, por associação de idéias. Por sorte, nenhum carpinteiro
se opunha a que lhe chamassem de Lascas nem nenhum condestável a que lhe chamassem de Mestre Condestável, e, por outro lado, estava seguro de que, com o tempo, lembraria
os nomes dos suboficiais que pouco conhecia.
Caminhava de um lado para outro incessantemente, e olhava para a margem cada vez que girava, até que a aparição de algas na parte superior da corrente da âncora
e o rumor da água o fizeram compreender que devia zarpar ou não poderia aproveitar a maré.
- Senhor Pullings, sairemos ao exterior do banco de areia - disse.
- Sim, senhor - respondeu Pullings e depois gritou -: Senhor Bulkeley, todos a recolher a âncora!
Imediatamente se ouviram as agudas notas da batida do contramestre e o ruído de rápidos passos, o que demonstrava que os homens de Shelmerston conheciam bem o perigoso
banco de areia e o calado da fragata. Os marinheiros ataram o virador e depois colocaram, seguraram e começaram a mover as barras do cabrestante como se todos fossem
veteranos tripulantes da Surprise. E quando o cabrestante começou a girar e a fragata começou a deslizar pelo porto em direção de sua âncora, alguns homens começaram
a cantar: "Gira-a e ela girará, oh, oh!" Isso nunca ocorria quando era uma embarcação do rei, já que na Armada não se permitia que os marinheiros cantassem durante
o trabalho. Pullings olhou fixamente para Jack, que negou com a cabeça e disse:
- Deixe-os cantar.
Até esse momento não se haviam produzido incidentes entre os antigos tripulantes da Surprise e as novas incorporações, e Jack estava disposto a fazer qualquer coisa
para evitar que se produzissem. Tanto ele como Pullings fizeram o quanto puderam misturando os homens das brigadas de artilheiros e das guardas, mas estava seguro
de que o fator mais importante naquela relação estranhamente pacífica entre dois grupos tão diferentes era a situação inusual. Todos, particularmente os tripulantes
veteranos da Surprise, estavam tão desconcertados que não sabiam o que pensar nem o que dizer, e não tinham à mão nenhuma fórmula adequada. Se aquilo durava até
que lhes açoitasse uma tormenta durante três ou quatro dias no canal ou, melhor ainda, até que uma batalha lhes convertesse em um só grupo, havia esperanças de que
na fragata houvesse harmonia.
- Acima e abaixo, senhor! - gritou Weld desde o castelo.
- Gavieiros! - clamou a voz de Jack -. Ouvem-me ai de cima?
Tinham que ser surdos para não lhe ouvir, pois se ouviu claramente chegar o eco de "ai de cima" desde as casas situadas ao fundo da baía.
- Adiante! - continuou -. Larguem a vela! Larguem a vela!
Nesse momento os marinheiros correram para os amantilhos do traquete. A gávea se abriu; os marinheiros de bombordo caçaram as escotas e depois, sem pronunciar palavra,
correram para pegar as adriças. A verga subiu sem dificuldade; o velacho se inchou; a Surprise ganhou velocidade suficiente para poder recolher a âncora e depois,
descrevendo uma suave curva, começou a mover-se em direção ao banco de areia, que tinha um colorido ameaçador em meio da água verde cinzenta e da borda branca.
- Pelo centro do canal, Gillow - ordenou Jack ao homem que levava o leme.
- Pelo centro, senhor - disse Gillow, um marinheiro de Shelmerston, movendo um pouco as cavilhas enquanto olhava para a direita e esquerda.
Quando a Surprise chegou ao alto mar voltou a dobrar suas alas. Os marinheiros deixaram cair a âncora do pescante e lentamente a fragata deu um amplo giro. A manobra
realizada era simples, e Jack a vira milhares de vezes em sua vida, mas se sentiu muito satisfeito de que a realizassem perfeitamente, sem nenhuma erro. Isso foi
muito conveniente, pois fazia bastante tempo que estava indignado com a demora de Maturin e, se bem podia suportar sem se queixar de sua enorme desgraça (ainda que
não se resignasse a ela), as pequenas coisas lhe irritavam muito. Havia deixado uma sucinta nota para Stephen na costa na qual marcava um encontro em outro lugar
ao cabo de quinze dias.
- Senhor Davidge, eu vou para baixo - disse -. Caso veja o almirante dobrar o cabo, avise-me imediatamente, por favor.
O almirante Russell, que vivia em Allacombe, a segunda enseada ao sul, havia informado de que teria vontade de fazer uma visita ao senhor Aubrey durante a tarde,
se o vento e o tempo permitissem, e esperava que o senhor Aubrey passasse a noite em sua casa em Allacombe. Ademais, enviava saldações ao doutor Maturin e anunciava
que teria prazer em vê-lo se estivesse a bordo.
- Imediatamente, senhor - disse Davidge e, em tom vacilante, perguntou -: Como devemos recebê-lo, senhor?
- Como ao capitão de qualquer barco privado - respondeu Jack -. Com guarda-mancebos, é claro, mas nada mais.
Para Jack lhe horrorizava a idéia de que se fizessem as coisas como na Armada Real, pois sempre lhe incomodara ver a imitação de seus costumes nos barcos da Companhia
das Índias Orientais, de outras importantes companhias e de corsários ambiciosos e ainda mais importantes; por isso vestia uma casaca e calças de lã. Porém, ainda
que a Surprise já não tinha galhardete nem fitas douradas nem infantes do marinha nem muitas outras coisas, estava decidido a que as tarefas básicas se realizassem
como em um barco de guerra, e opinava que as duas coisas não eram incompatíveis.
Teria dado um olho da cara para evitar se encontrar com Russell, mas servira sob as ordens do almirante quando era guarda-marinha, tinha-lhe um profundo respeito
e lhe era muito agradecido porque ascendeu ao grau de tenente graças à sua influência. Russell lhe fez o convite tão amavelmente e com tão boa intenção que seria
uma descortesia recusá-lo, mas ele desejava com todas suas forças que Stephen estivesse ali para lhe ajudar durante a tarde. Como não se sentia suficientemente alegre
para se dedicar ao trato social, assustava-lhe ter convidados, sobretudo membros da Armada, e, além disso, horrorizava-lhe o trato compassivo de qualquer um que
não fosse seu amigo íntimo e a cortesia pintada de indiferença e arrogância de quem não simpatizava com ele.
- Killick, Killick! - gritou na grande cabine.
- Que foi... - perguntou Killick em tom mal-humorado de onde estava pendurada a maca de Jack e, para guardar as formas, acrescentou -: senhor?
- Traga-me a casaca verde garrafa e um par de calções decentes.
- Aqui estão, mas não poderá colocá-la antes de dez minutos porque tenho que costurar os botões.
Nem Killick nem Bonden expressaram seu pesar pelo capitão Aubrey ter sido processado e condenado. Tinham o bom tino de tratar os assuntos importantes com uma delicadeza
que Jack, depois de tantos anos de experiência e trato com os marinheiros, sabia como interpretar. Não mostravam sua compaixão abertamente, senão com sua presença
e suas atenções, e Killick aparentava ter um humor pior do que nunca, se isso era possível, para demostrar que nada havia mudado.
Agora ele podia ser ouvido no dormitório da cabine murmurando:
- Maldita agulha despontada... Se me dessem um xelim por cada botão que essa estúpida prostituta de Ashgrove Cottage deixou frouxo, seria um homem rico... Não tem
idéia de como se costura a parte traseira dos botões nos barcos de guerra... E o tom de verde do fio é diferente!
Pouco tempo depois, o capitão Aubrey já tinha posta sua roupa recém arrumada e escovada. Então, completamente só, começou a dar seus habituais passeios pelo castelo
de popa, olhando algumas vezes para terra e outras para o cabo que ficava ao sul.
Desde que Stephen Maturin se convertera em um homem rico, de vez em quando tinha acessos de tacanharia. Durante quase toda sua vida havia sido um homem pobre, às
vezes exageradamente pobre; porém, salvo nos casos em que a pobreza lhe impedira satisfazer suas necessidades básicas, nunca dera importância ao dinheiro.
Mas agora que recebera uma herança de seu padrinho (o melhor amigo de seu pai, primo terceiro de sua mãe, e o último membro de uma família rica), agora que a caixa
forte de seu banqueiro estava tão cheia de cofres de ferro com o ouro de Dom Ramón que quase não se podia fechar a porta, contava até os xelins e os peniques.
Nesse momento atravessava um extenso terreno plano com leves ondulações e sem vegetação, caminhando apressadamente pela curta grama em direção ao sol, que acabava
de sair. Vários chascos de bonita e brilhante plumagem passavam por ambos os lados e inumeráveis calandras voavam por cima de sua cabeça: era um dia esplêndido.
Chegara de Londres no coche lento e descera em Clotworthy para ir caminhando pelo campo até Polton Episcopi, onde lhe esperava seu amigo, o reverendo Nathaniel Martin.
Ali ambos tomariam o coche postal para ir a Shelmerston, de onde nessa tarde, quando a maré subisse, zarparia a Surprise. De acordo com o cálculo de Stephen, deste
modo pouparia onze xelins e quatro peniques; contudo, o cálculo estava errado; Maturin era brilhante em alguns campos, como a medicina, a cirurgia e a entomologia,
mas não era muito hábil com os números, e necessitava de um anjo da guarda e de um ábaco para multiplicar por doze. O erro não tinha importância, porque a questão
não estava relacionada com a avareza mas com a consciência. Para Stephen achava que a riqueza era imoral e que essa imoralidade podia contrariar-se um pouco com
gestos desse tipo e levando uma vida modesta. Mas só um pouco, como ele mesmo admitia. Os acessos eram involuntários e, ademais, ele não era coerente com essa idéia:
por exemplo, há pouco se dera o privilégio de comprar um par de leves botinas feitas por um excelente artesão da rua Saint James e se permitira o luxo de comprar
meias de casimira. Como geralmente usava pesados sapatos de ponteira quadrada com solas de chumbo, que os faziam ainda mais pesados, acreditava que sem chumbo poderia
andar mais agilmente. Sem dúvida, durante as três primeiras milhas caminhou pela grama com muita rapidez, e cheio de satisfação porque se movia com agilidade enquanto
sentia o odor dos verdes campos em primavera inundando o ar. Mas na frente dele, a um estádio de distância, havia um homem cuja figura erguida e escura contrastava
com o terreno completamente horizontal e de cor clara onde só havia amorfos rebanhos de ovelhas e altas nuvens movendo-se devagar desde o oeste-sudeste. Também ele
ia para o largo caminho que haviam formado ao passar os rebanhos e alguma carroça de pastor que deixara seu rastro, mas andava muito mais devagar e, além disso,
de vez em quando se detinha e gesticulava com veemência ou dava um salto. Quando Maturin ficou perto o bastante para ouvi-lo, percebeu que ele falava umas vezes
com serenidade, outras com paixão e outras com a aguda voz de uma distinta dama. Era um homem de moderados recursos, a julgar por seus calções azuis e sua casaca
descolorida, e com certa educação, pois uma vez disse com fluidez em grego: "Oxalá que esses malditos cachorros se afoguem com seu própio excremento!" Provavelmente
acreditava estar sozinho, e se incomodaria muito ser ultrapassado por alguém que estava a meia hora escutando-o. Mas era inevitável. Calções Azuis se detinha cada
vez com mais freqüência, e, se não se afastasse do caminho, Stephen o alcançaria ou teria que segui-lo ao seu mesmo passo lento arriscando-se a chegar tarde ao encontro.
Stephen tossiu e inclusive entonou uma canção com voz rouca, mas nada deu resultado, e teria ultrapassado a Calções Azuis tão respeitosamente como pudesse se ele
não se detivesse, houvesse cuspido e o houvesse olhado.
- Traz algum mensagem para mim? - perguntou quando Stephen estava a umas cem jardas de distância.
- Não, senhor - respondeu Stephen.
- Desculpe, senhor - disse Calções Azuis quando Stephen estava muito perto -, mas esperava uma mensagem de Londres e, como disse em casa que ia até o vale, pensei...
Porém, senhor - acrescentou, ruborizando-se -, acho que fiz papel de bobo declamando enquanto andava.
- Oh, não! - exclamou Stephen -. Já vi muitos parlamentares e advogados arengarem para o ar e nunca pensei mal deles. E por acaso Demóstenes não falava para as ondas?
Isto, sem dúvida, é um componente natural de muitas profissões.
- A verdade é que sou escritor - disse Calções Azuis enquanto avançavam juntos.
Depois, em resposta às corteses perguntas de Stephen, explicou que escrevia principalmente contos de estilo gótico que se desenvolviam em tempos antigos.
- A quantidade pela qual o senhor perguntou é tão pequena que me envergonha dizê-la - acrescentou com um olhar triste -. Só publiquei uma vintena. Não é que não
haja escrito pelo menos dez vezes essa quantidade. Aqui, sobre esta mesma grama, criei excelentes contos - disse, dando um salto -, estupendos contos que me fizeram
rir de satisfação (ainda que devo admitir que não sou objetivo ao julgá-los). Mas o senhor deve saber que cada homem tem uma forma peculiar de escrever, e a minha
requer que diga em voz alta os fragmentos enquanto caminho, pois, em minha opinião, o movimento dissipa os maus humores e incrementa o fluxo de idéias. Contudo,
é aí onde está o perigo, pois se se incrementa muito, se crio um fragmento que me satisfaça plenamente, como me acaba de ocorrer agora com o capítulo em que Soonisba
leva Rodrigo ao garrote com o pretexto de que ele atuou maliciosamente e começa a apertar a porca, então estou perdido, porque minha imaginação, isto é, minha mente
não quer se ocupar mais disso, resiste a pô-lo por escrito e talvez por obrigação escreva simplesmente uma série de frases insossas. Só posso ter êxito se logro
estabelecer uma boa relação, quer dizer, e perdoe a expressão, fazer um coitus interruptus com minha musa e correr logo para casa para pegar a caneta e consumar
a ação; mas não consigo fazer o meu editor compreender isto. Disse que o trabalho intelectual era diferente do manual, e que no segundo caso só com engenho e aplicação
se podia derrubar um bosque e carregar a água de um oceano, mas no primeiro... Mandou me dizer que a imprensa estava paralizada e que necessitava imediatamente das
vinte páginas que lhe prometera. Calções Azuis repetiu a citação em grego e depois acrescentou -: Aqui devemos nos separar, senhor, a menos que lhe convença a vir
ver o vale.
- Por acaso é um antigo vale druida? - perguntou Stephen, sorrindo e movendo a cabeça de um lado para outro.
- Druida? Oh, não, em absoluto! Porém, conforme A maldição dos druidas e o espectro dos monumentos neolíticos, talvez haja algo feito pelos druidas. O vale é apenas
um lugar onde me sento para contemplar as abetardas.
- As abetardas? - perguntou Stephen, escrutinando o rosto do homem com seus olhos claros-. As Otis tarda?
- As mesmas.
- Não vi nenhuma na Inglaterra - disse Stephen.
- A verdade é que hoje em dia são raras; contudo, quando era menino as via em pequenas revoadas muito parecidas a rebanhos de ovelhas. Mas ainda existem. São criaturas
de costumes arraigados e as observo desde que era muito jovem, como meu pai e meu avô. No vale poderei lhe mostrar uma fêmea chocando, e é muito provável que vejamos
dois ou três machos.
- Fica muito longe?
- A menos de uma hora se caminharmos depressa. Afinal de contas, terminei o capítulo.
Stephen olhou seu relógio. Martin tinha um profundo conhecimento das abetardas e lhe perdoaria por chegar tarde por essa causa, mas Jack Aubrey tinha a idéia do
tempo própia dos marinheiros, e dava uma enorme importância à pontualidade. A perspectiva de se enfrentar com Jack Aubrey, que media sete pés de altura e estaria
cheio de raiva mal reprimida depois de esperar duas longas horas, cento e vinte minutos, fez com que vacilasse; mas não por muito tempo. "Alugarei um coche de quatro
cavalos em Polton Episcopi e assim pouparei tempo", pensou.
O Marquês de Granby, a única pousada de Polton, tinha um banco junto à parte externa da parede na qual batia o sol da tarde, e nesse banco, flanqueado por um rosal
trepador e uma madressilva, cochilava Nathaniel Martin. Acima de Martin, sob a lateral, as andorinhas construíam seus ninhos e de vez em quando deixavam cair bolinhas
de barro que se depositavam sobre ele; fazia tanto tempo que se encontrava ali que tinha uma grossa capa sobre o ombro esquerdo. Percebia o leve impacto, o som de
suas asas, as mudanças de tonalidade de seus gorgeios e as graves notas que chegavam de um campo cheio de corvos situado a certa distância do bebedouro da pousada;
contudo, não despertou de todo até que ouviu o grito:
- Olá, companheiro de tripulação!
- Querido Maturin! - exclamou -. Quanto me alegro de ver-lhe! Mas... - acrescentou, olhando-o de novo - espero que não tenha sofrido nenhum acidente.
A cara de Maturin, que geralmente tinha um colorido amarelado, estava agora rosada e o suor que corria por ela havia feito sulcos na capa de poeira que a cobria.
- Não, meu amigo. Lamento tanto... me envergonha tanto que o senhor haja tido que esperar... Peço que me perdoe. - Sentou-se ofegando e continuou -: Porém, quer
que lhe conte o que me atrasou?
- Sim, por favor - respondeu Martin e depois, dirigindo a voz para o interior pela janela, gritou -: hospedeiro, por favor, traga para o cavalheiro uma jarra de
cerveja, uma pinta de cerveja tão fria como for possível!
- Você não vai acreditar, estive em um vale de onde pude ver uma abetarda deitada sobre seus ovos a menos de cem jardas. Nós estávamos no vale e olhávamos para fora
por entre as altas ervas. Com o telescópio de um cavalheiro pude ver-lhe um olho: é de um brilhante colorido marrom amarelado. Após um tempo que estávamos lá, ela
se levantou e se afastou para se reunir com dois machos enormes e uma cegonha; depois desapareceu pela ladeira, e fomos ver o ninho sem medo. Ah, Martin, ouvi como
os pintinhos diziam "pio, pio, pio" dentro daqueles bonitos e enormes ovos. Dou minha palavra de que pareciam os apitos de um contramestre.
Martin juntou as mãos, mas, antes de poder emitir algo mais que um grito de assombro e admiração, chegou a cerveja, e Stephen disse:
- Hospedeiro, por favor, prepare um coche para que nos leve a Shelmerston assim que termine de beber - me esta magnífica cerveja, já que provavelmente o coche postal
já deve ter partido faz tempo.
- Oh, senhor! - exclamou o hospedeiro zombando de sua ingenuidade -. Não há nem nunca houve um coche de aluguel em Polton Episcopi. Oh, não! E o coche postal agora
deve estar chegando a Wakeley.
- Então, um par de cavalos, ou uma carruagem, ou uma carreta.
- Senhor, o senhor esquece que hoje há mercado em Plashett e não resta nenhuma carruagem nem nenhuma carreta no povoado. E duvido que reste algum cavalo, mas podem
montar ambos na mula de Waites, ainda que o ferreiro lhe deu um remédio ontem à noite. Vou perguntar à minha mulher, pois Anthony Waites é como se fosse seu primo.
Houve uma pausa durante a qual se ouviu da escada a voz de sua mulher, que perguntava: "Para que querem ir a Shelmerston?". Depois o hospedeiro regressou com uma
expressão satisfeita, como a de alguém a quem lhe ocorreu o que mais temia, e anunciou:
- Não, cavalheiros; sem esperanças de conseguir um cavalo e a mula de Waites morreu.
Caminharam em silêncio durante um tempo até que Stephen comentou:
- Depois de tudo, só serão umas poucas horas.
- Mas tem que levar em conta a maré - disse Martin.
- Oh, meu Deus, havia me esquecido da maré! - exclamou Stephen -. E os marinheiros lhe dão muita importância.
Quando haviam avançado mais um quarto de milha-, prosseguiu:
- Acho que nas notas que lhe escrevi recentemente não lhe dei toda a informação que desejava.
Isso era verdade. Stephen Maturin estava relacionado com os serviços secretos, tanto estatais como navais, e fazia tanto tempo que sua vida dependia de que mantivesse
segredos, que era resistente a escrever qualquer coisa. Além disso, não gostava de manter correspondência.
- Nada disso.
- Se tivesse boas notícias para dar-lhe - continuou Stephen -, com muito gosto lhe teria dado imediatamente; mas devo dizer que seu opúsculo, o excelente opúsculo
contra a prostituição e os açoites na Armada tornou quase impossível que voltem a lhe oferecer alguma vez o posto de capelão de um barco. E lamento dizer-lhe que
ouvido isso em Whitehall.
- Foi isso mesmo que o almirante Caley disse à minha esposa faz alguns dias - disse Martin, suspirando -. Que se assombrava de minha temeridade. Apesar de tudo,
acho que era meu dever fazer algum tipo de protesto.
- Sem dúvida, foi um ato de valentia fazê-lo - opinou Stephen -. Agora quero falar-lhe do senhor Aubrey. O senhor se informou de seu julgamento e de sua condenação,
não é?
- Sim, e senti uma grande indignação. Eu lhe escrevi duas vezes, mas rasguei as duas cartas porque temia me entrometer e lhe ferir com minha inoportuna compaixão.
Foi um grave erro da justiça. O senhor Aubrey está tão capacitado para idear uma fraude na bolsa como eu; ou inclusive menos, porque conhece muito pouco o mundo
do comércio e ainda menos o das finanças.
- E o senhor sabe que foi expulso da Armada?
- Não me diga! - exclamou Martin surpreendido.
Uma carreta passou por seu lado e o que a conduzia lhes olhou com a boca aberta, e inclusive se voltou completamente para ver-lhes durante mais tempo.
- Apagaram seu nome da lista de capitães de navio na sexta-feira seguinte.
- Creio que isso esteve a ponto de matá-lo - afirmou Martin, olhando para um lado para ocultar sua emoção -. A Armada significava tudo para o senhor Aubrey. Expulsar
um homem tão valente e honorável...
- A verdade é que acabou com sua alegria de viver - confirmou Stephen enquanto avançavam lentamente -. Mas tem uma grande força e uma esposa admirável...
- Uma esposa é um grande consolo para um homem - afirmou Martin, e em sua cara grave apareceu um sorriso.
Diana, a esposa de Stephen, não era nesse momento um consolo para ele mas motivo de dor, uma dor umas vezes leve e outras tão aguda que era quase insuportável, mas
permanente.
- Podem se dizer muitas coisas a favor do matrimônio. Além do mais, têm filhos em comum. Tenho esperanças de que esteja bem, sobretudo porque ao mesmo tempo que
o expulsaram da Armada venderam sua fragata, a Surprise, e alguns de seus amigos a compraram, a converteram em um barco de guerra privado e deram o comando para
ele.
- Meu Deus! A Surprise agora é um barco corsário, Maturin? Sabia que a Armada a ia vender, mas ignorava que... Achava que os barcos corsários eram tão pequenos como
os piratas, geralmente bergantins ou lugres de dez ou doze canhões, e tão desprezíveis como eles.
- Realmente, a maioria dos que operam no canal respondem a essa descrição, mas há barcos de guerra privados mais importantes que fazem viagens ao estrangeiro. Nos
anos noventa havia um barco corsário francês de cinqüenta canhões que causou graves danos ao comércio com o Oriente e, sem dúvida, recordará esse barco tão veloz
que perseguimos durante dias e quase capturamos quando regressávamos de Barbados, um barco de trinta e dois canhões.
- Verdade, verdade! Era o Spartan. Mas era estadunidense, não é verdade?
- E o que tem a ver?
- Esse país é tão extenso que um pensa que tudo o que há lá é maior, inclusive os barcos corsários.
- Diga-me, Martin, posso lhe pedir algo? - perguntou Stephen depois de uma breve pausa.
- Por favor.
- As conotações da palavra "corsário" desagradam aos marinheiros, e aplicada à Surprise poderia parecer ofensiva. De toda forma, não é um barco corsário comum. Em
um comum os marinheiros se alistam sabendo que se não conseguirem nenhum butim, não receberão dinheiro; não recebem mais do que a comida e o único dinheiro que obtêm
é o dos butins. Por isso são rebeldes e violentos, dedicam-se ao saque e despojam de tudo e sem piedade as suas infortunadas vítimas. Conforme dizem, alguns são
tão malvados e cruéis que jogam pela borda os prisioneiros que não podem pagar seu própio resgate e cometem muitos abusos e estupros. Na Surprise, em troca, tudo
se rege pelas normas da Armada: os marinheiros recebem um pagamento e o capitão Aubrey só aceita marinheiros de primeira que, em sua opinião, tenham bom caráter,
e recusa a todos os que não prometam se submeter à disciplina naval. O capitão zarpará de imediato com a atual tripulação para fazer duas curtas viagens, uma para
o oeste e outra para o norte, provavelmente pelo Báltico, e depois deixará em terra os homens que não sejam adequados. Tendo em conta tudo isso, talvez seja melhor
que se refira a ela como "barco de guerra particular" ou, no caso de que isto lhe desagrade, como "barco com patente de corso".
- Agradeço por sua advertência e tentarei não ofender ninguém. Mas não terei muitas ocasiões de referir-me a ela de uma maneira ou de outra, pois, ainda que seja
muito diferente de um desses barcos comuns... quero dizer, uma dessas desprezíveis embarcações, nem mesmo no barco de guerra privado onde haja mais ordem necessitarão
um capelão. Não é verdade?
Seu desejo de que a resposta fosse negativa se refletiu em sua delgada cara de sacerdote sem benefício eclesiástico com expressão angustiada, e a Stephen deu tanta
lástima que disse:
- Infelizmente; como você bem sabe, os marinheiros têm uma absurda superstição: que um pastor a bordo traz má sorte, e neste tipo de viagem a sorte é tudo. Essa
é a razão pela qual tantos homens querem navegar com Jack Aubrey o Afortunado. Contudo, pedi a você que viesse comigo a Polton não por vontade mas porque queria
saber se seus projetos e seus desejos variaram desde que nos vimos pela última vez, ou se gostaria que perguntasse ao senhor Aubrey se deseja contratá-lo como ajudante
de cirurgião. Depois destas viagens preliminares, a Surprise zarpará com destino à América do Sul e, naturalmente, em um viagem tão longa é preciso que haja dois
homens que possam prestar cudados médicos. Seus conhecimentos de medicina excedem os de qualquer ajudante de cirurgião, e prefiro mil vezes ter um ajudante que seja
também um companheiro instruído e, além disso, um naturalista. Eu lhe rogo que pense nisso e lhe agradeceria que me desse uma resposta dentro de duas semanas, ao
final da primeira viagem.
- A designação depende só do senhor Aubrey? - inquiriu o senhor Martin com o rosto radiante.
- Sim.
- Então, por que não corremos um pouco? Como vê, o caminho é descendente até onde alcança a vista.
- Coberta! - gritou o serviola do tope de um mastro da Surprise -. Três... quatro barcos à vista pela amura de estibordo!
Não podiam ser vistos da coberta porque os ocultava uma colina ao norte do cabo Penlea, mas o serviola, um homem da localidade, podia vê-los perfeitamente, um pouco
depois, acrescentou em tom coloquial:
- São navios de guerra e me parece que pertencem à esquadra de Brest. Vão dobrar o cabo, mas não há porque se preocupar pois não há corvetas nem fragatas.
Isso significava que não lhes acompanhavam corvetas nem fragatas que poderiam haver-se separado deles para recrutar à força marinheiros dos barcos ancorados frente
a Shelmerston.
Momentos mais tarde apareceram por trás de Penlea: primeiro dois navios de setenta e quatro canhões, depois um de três pontes, provavelmente o Caledônia, que levava
o estandarte de um vice-almirante da Esquadra vermelha no traquete; depois outros dois de setenta e quatro canhões e, por último, sem dúvida, o Pompee. Viraram em
sucessão e, com um vento apropriado para aplicar as joanetes a vinte e cinco graus pela amura, avançaram para o alto mar formando uma linha tão reta como se a houvessem
traçado com uma régua, cada um a dois cabos de distância do precedente. Sua simples beleza era capaz de comover a qualquer marinheiro, e também de ferir profundamente
a um excluído desse mundo. Isso teria que acontecer cedo ou tarde, e Jack se alegrou de que o primeiro golpe não houvesse sido mais forte.
Muitos fatores contribuiram para sua tristeza, e um dos mais importantes foi a imediata constatação de que podia ser vítima da instituição à qual havia pertencido;
contudo, não era propenso a analisar seus sentimentos e, quando a esquadra desapareceu, seguiu dando passeios de um lado para outro até que ao fazer um giro viu
no porto um lugre içando o velame e uma pequena figura sentada na proa agitando no ar algo branco. Pediu emprestado o telescópio de Davidge e viu que quem agitava
aquilo era Stephen Maturin. O lugre virou para atravessar o banco de areia com as velas amuradas para estibordo e Stephen se viu obrigado a abandonar seu lugar e
se sentar no meio da embarcação, sobre uma armadilha de lagostas, porém, apesar de tudo, seguiu dando gritos agudos e agitando seu lenço. Depois Jack observou com
surpresa que lhe acompanhava o pastor Martin e supôs que vinha fazer-lhe uma visita.
- Bonden - disse -, o doutor chegará dentro de pouco junto com o senhor Martin. Avise a Padeen para o caso de ser necessário arrumar a cabine de seu amo e prepare
tudo para que ambos subam a bordo com os pés secos, se for possível.
Ainda que os cavalheiros estivessem acostumados à vida no mar, tinham algum problema mental, certa falta de desenvolvimento que lhes impedia aprender suas peculiaridades
e, portanto, eram como eternos marinheiros de água doce. Sobretudo o doutor Maturin havia caído inumeráveis vezes quando tentava subir em um barco desde o bote em
que se encontrava; contudo, desta vez todos estavam preparados para ajudar-lhe, e fortes braços o subiram para o convés, aonde chegou ofegando. Então Jack Aubrey
exclamou:
- Ah, já chegou, doutor! Quanto me alegro de ver-te! - e, apertando a mão do pastor, acrescentou -: Meu querido senhor Martin! Bem-vindo de novo a bordo. Espero
que esteja bem.
Martin parecia ter frio e estar exausto, e, em realidade, a úmida brisa marinha havia atravessado sua delgada casaca durante a viagem desde a costa até ali e, ainda
que respondeu sorrindo que estava bem, não podia evitar que lhe estalassem os dentes.
- Vamos abaixo - acrescentou Jack -. Permita-me oferecer-lhe algo quente. Killick, traga uma cafeteira cheia de café e se apresse.
- Jack - disse Stephen -, peço humildemente perdão por chegar tarde. A culpa é só minha, por me permitir satisfazer o desejo de ver abetardas. Eu lhe estou infinitamente
agradecido por nos esperar.
- Não tem importância - respondeu Jack -. Tenho um encontro esta tarde com o almirante Russell e não zarparei até que comece a baixa-mar. Killick, Killick! Apresente
meus respeitos ao capitão Pullings, que está na bodega, e diga-lhe que subiram a bordo alguns amigos seus.
- Antes que venha nosso querido Tom - anunciou Stephen -, eu gostaria de resolver um assunto. Na Surprise faz falta um ajudante de cirurgião, sobretudo porque é
provável que eu me ausente durante a primeira parte da viagem, e, como sabe, o senhor Martin é muito competente nesse campo. Se dé seu consentimento, ele me acompanhará
na qualidade de ajudante.
- Como ajudante de cirurgião, em lugar de pastor?
- Exatamente.
- Eu gostaria de voltar a ter o senhor Martin entre nós, especialmente se for se ocupar de questões médicas. - Então se voltou para Martin e acrescentou -: Devo
dizer-lhe, senhor, que nem mesmo os tripulantes de um barco do rei gostam da idéia de que haja um pastor a bordo, e que aos de um barco com patente de corso, que
prestam mais atenção às superstições pagãs, provavelmente lhes desgostaria muito, ainda que não duvido de que em caso de acidente lhes agradaria que lhes enterrassem
com dignidade. Sob a condição de que o senhor esteja inscrito como ajudante de cirurgião no rol da fragata, eles poderão desfrutar do melhor de ambos os mundos.
Pullings chegou correndo e lhes deu uma cordial boas-vindas; Padeen, com seu tosco inglês, tratou de averiguar se o doutor queria pôr seu colete de flanela, e Davidge
mandou dizer que o cúter do almirante se abordaria com a fragata ao cabo de cinco minutos.
O cúter do almirante se aproximou pelo lado de bombordo para evitar as cerimônias, e com a mesma simplicidade os marinheiros desceram Stephen pelo costado como se
fosse um saco de batatas.
- obrigado por ter a amabilidade de me convidar, senhor - disse -, mas me envergonha apresentar-me em público com esta roupa. Não tive tempo de trocar-me desde que
cheguei.
- Está muito bem assim, doutor; muito bem. Só estaremos Polly minha pupila, a quem já conhece, e o almirante Schank, a quem conhece melhor ainda. Esperava que nos
acompanhasse o almirante Henry, que sabe muito de medicina, pois agora tem muito tempo livre, mas tinha um compromisso. Contudo, mandou-lhe muitas saldações e me
deu seu último livro, um estupendo livro, certamente, para que lhe entregasse.
O estupendo livro se intitulava An Account of the Means by which Admiral Henry has Cured the Rheumatism, a Tendency to Gout, the Tic Douloureux, the Cramp, and other
Disorders; and by which a Cataract in the Eye was removed, e Stephen olhava os desenhos enquanto escutava as declinações sobre um tema de Pergolesi que Polly tocava,
uma encantadora jovem cujo cabelo negro e cujos olhos azuis traziam à sua mente a vivida recordação de Diana. Nesse momento o almirante Schank se despertou e disse:
- Meu Deus! Acho que me fiquei transposto. De que estávamos falando, doutor?
- Estávamos falando de balões, senhor, e o senhor tentava recordar os detalhes do aparelho que há ideado para eliminar o inconveniente, o péssimo inconveniente de
que subam muito.
- Sim, sim. Eu lhe desenharei.
O almirante era conhecido por todos na Armada como Polipasto porque havia feito uma engenhosa maca que podia inclinar-se, subir e descer à vontade da pessoa que
estava deitada nela, ainda que fosse um enfermo débil, com ajuda de moitões de duas ou três roldanas, e havia inventado muitas outras coisas. Desenhou um balão com
uma rede de cordas ao redor da coberta e explicou que estava desenhada para diminuir o volume do gás por meio de um sistema de polias e, portanto, sua capacidade
de se elevar.
- Mas não funcionou - disse -. A única forma de não subir demais, como o pobre Senhouse, a quem ninguém voltou a ver, ou Charlton, que se congelou, é deixar escapar
um pouco de gás, ainda que se fizer frio durante o dia é provável que um desça com tanta rapidez que se choque fortemente e se despedace, como o pobre Crowle, seu
cachorro e seu gato. Já andou em balão alguma vez, Maturin?
- Andei em um; quer dizer, estive dentro da nacela, mas era muito obstinado e não subia, assim que desci. Então se elevou impulsionado pelo vento, com só meu companheiro
dentro, e aterrizou no condado de Roscommon depois de cruzar três campos. Como agora estão na moda outra vez, quero fazer outra tentativa e espero ver de perto os
abutres plairando.
- O balão era de ar quente ou estava cheio de gás?
- Era de ar quente, mas a grama não estava tão seca como deveria e uma fina chuva caía em rajadas por todo o país, assim que não teríamos logrado que se mantivesse
no ar nem mesmo soprando como o bóreas.
- É melhor assim. Se se houvesse elevado e a bolsa se houvesse incendiado, como ocorre amiúde, o senhor teria passado seus últimos minutos lamentando sua temeridade.
São objetos muito perigosos, Maturin, e, ainda que não nego que um balão bem amarrado e elevado a três ou quatro mil pés de altura pode ser um excelente posto de
observação para um general, acho que só os delinqüentes convictos deveriam subir neles.
Depois de uma pausa, o almirante Schank perguntou:
- Que houve com Aubrey?
- O almirante Russell o levou para a biblioteca para lhe mostrar uma maquete do Santíssima Trindade.
- Queria que o trouxesse aqui de novo, pois já passaram vários minutos desde a hora da janta e Evans se há assomado duas vezes. Ademais, se não me servem a comida
na hora acostumada, parece que tenho abutres dentro e sou capaz de despedaçar meus companheiros como os leões da Torre. Detesto a impontualidade, e o senhor, Maturin?
Polly, minha querida, acha que seu guarda há tido algum problema? O relógio soou faz muito tempo.
Na biblioteca, os dois homens observavam a maquete.
- Todas as pessoas com as que falei opinam que o processo levado a cabo pelo Ministério contra o senhor - disse o almirante Russell -, isto é, contra seu pai e seus
sócios, é o pior que já se viu na Armada desde que mataram legalmente ao pobre Byng. Tenha a segurança de que meus amigos e eu faremos todo o possível para que seja
readmitido.
Jack fez uma inclinação de cabeça, ainda que estava seguro de que isso era o pior que se podia fazer e que além de mau era inútil, já que o almirante e seus amigos
pertenciam à oposição. Nesse momento ia expressar seu agradecimento como era devido, mas o almirante, levantando a mão, disse:
- Nem uma palavra. Mas o que realmente queria lhe dizer é que evite cair no abatimento. E não se afaste de seus amigos, Aubrey, pois quem não o conhece bem poderia
interpretá-lo como uma prova de que se sente culpado e, ademais, só lhe serviria para ficar melancólico e ter maus pensamentos. Não se afaste de seus amigos. Conheço
alguns homens que se incomodaram com sua recusa, e ouvi o mesmo de alguns outros.
- Agradeço que hajam tido a amabilidade de me convidar - disse Jack -, mas se houvesse aceitado, eu os teria comprometido. Atualmente há uma competição muito acirrada
pelos barcos e pelas ascensões, e não gostaria que meus amigos tivessem problemas de nenhum tipo com o Almirantado. Com o senhor as coisas são diferentes, senhor,
já que o senhor não aspira ao comando de um barco e, além do mais, um almirante da Esquadra branca que já recusou um título não deve temer a ninguém, nem mesmo ao
Almirantado. Mas seguirei seu conselho com respeito a...
- Oh, senhor, na cozinha há um alvoroço! - exclamou Polly da porta -. A janta estava meio servida quando o relógio deu a hora, e já falta a metade outra vez. Ademais,
Evans e a senhora Payne estão discutindo no corredor.
- Meu Deus! - exclamou o almirante, olhando para o relógio da biblioteca, um regulador silencioso -. Aubrey, devemos correr como lebres.
O jantar se desenrolou em um ambiente agradável e, ainda que o suflê havia conhecido tempos melhores, o clarete, um Latour, era quase perfeito. Quando o relógio
deu a badalada seguinte, Polly se despediu. A graça com que fez a reverência e inclinou a cabeça trouxe de novo à mente de Stephen a nítida imagem de Diana, em quem
a graça substituía a virtude, ainda que ela era honorável conforme suas própias normas de conduta (que eram muito rigorosas com relação a algumas coisas). Stephen
notou com agrado que Polly se ruborizou quando ele lhe abriu a porta, algo que para ela ainda lhe parecia estranho porque era muito jovem e tinha pouca experiência.
Quando todos os homens voltaram a se sentar, o almirante Russell pegou uma carta do bolso e disse:
- Aubrey, sei que o senhor mantém viva a lembrança de Nelson e por isso quero lhe entregar esta carta. Espero que lhe traga boa sorte em sua viagem. Ele me a mandou
em 1803, quando eu estava com lorde Keith no estreito de Sonda e ele se achava no Mediterrâneo. lhe vou a ler primeiro, não por orgulho mas porque a escreveu com
a mão esquerda, naturalmente, e é possível que o senhor não possa entendê-la. Depois do habitual começo, diz assim:
Aqui estou, ao arbítrio desses homens de Toulon, e todos desejamos com veemência ver-nos frente a frente. Acredito que sobrarão alguns chapéus quando o hajamos conseguido.
O senhor é sempre uma pessoa amável e, como disse o comodoro Johnstone do general Meadows, "não duvido que o dia da batalha o senhor será uma agradável companhia
para seus amigos, mas muito desagradável para seus inimigos". Desejo que sempre me considere como um dos melhores dos primeiros, querido Russell.
Então entregou a carta ainda aberta por em cima da mesa.
- Oh, que carta mais bonita! - exclamou Jack, olhando-a com sincera satisfação -. Acredito que ninguém nunca escreveu uma carta tão bonita. Posso realmente ficar
com ela, senhor? Eu lhe estou muito agradecido. Guardarei-a como um tesouro. Obrigado de novo, senhor - acrescentou, dando um férreo aperto de mãos ao almirante.
- Esses tipos que asseguram que podem lançar a primeira pedra dirão o que queiram de Nelson - comentou Polipasto -, mas inclusive eles têm que admitir que ele sabia
como dizer as coisas. Meu sobrinho Cunningham era um dos guardas-marinhas do Agamenon e Nelson lhe disse: "Há três coisas na vida que deve recordar sempre, jovem:
a primeira é que deve obedecer as ordens incondicionalmente, sem tratar de julgar se são apropiadas ou não; a segunda é que deve considerar inimigos a todos os homens
que falem mal de seu rei; a terceira é que deve odiar aos franceses como ao diabo".
- Admirável! - exclamou Jack.
- Mas provavelmente não se referia a todos os franceses - disse Stephen, que admirava a França não napoleônica.
- Acredito que sim - replicou Schank.
- Talvez as implicações fossem muito extensas - disse Russell -, mas também o eram suas vitórias. E verdadeiramente, em geral, os franceses não têm nada de bom.
Dizem que um pode aprender muitas coisas sobre um país por seus provérbios, e quando os franceses querem descrever algo muito sujo dizem "sujo como um pente", o
que dá uma idéia bastante clara de sua higiene pessoal; quando têm outras coisas em que pensar dizem que têm "outros gatos que açoitar", o que é um ato inumano,
quando vão mudar de bordo um barco, a ordem que dão é "à Dieu vai", ou seja, "temos que nos aventurar e confiar em Deus", o que reflete seus rupestres conhecimentos
de navegação e é o mais absurdo que já ouvi.
Jack contou ao almirante Schank que Nelson lhe havia pedido uma vez que lhe passasse o sal da forma mais cortês que podia imaginar, e que em outra ocasião lhe havia
dito: "Não interessam as manobras, o que importa é atacar com decisão". Stephen ia dizer que provavelmente havia bons franceses, como, por exemplo, os que haviam
feito aquele sublime clarete, mas o almirante Russell, depois de ficar absorto em suas meditações alguns momentos, comentou:
- É possível que haja excessões, porém, em geral, eu os acho insuportáveis, quer sejam de classe alta ou baixa. Foi um capitão francês, um homem de excelente família,
que me fez a pior trapaça que me fizeram em uma guerra, uma trapaça tão suja como um pente francês.
- Por favor, contem-nos - rogou Jack, acariciando a carta em segredo.
- Eu lhes farei um breve resumo, pois vai zarpar quando mude a maré e não quero entretê-lo. O fato ocorreu no final da última guerra com os Estados Unidos, em 1783,
quando estava ao comando da Hussar (minha querida Hussar), uma fragata muito parecida com a sua Surprise, ainda que não navegava de bolina com tanta rapidez. Nelson
estava na mesma base naval, ao comando do Albemarle, e nos dávamos muito bem. Eu estava patrulhando ao norte do cabo Hatteras, em águas de pouca profundidade, em
meio de um frio vento do norte-noroeste e a névoa que costuma ter no mês de fevereiro, e de repente, no oeste, vi um barco com as velas amuradas para estibordo.
Avancei em direção dele e quando estava muito perto, apesar da espessa névoa, pude ver que tinha mastros provisórios muito bem colocados e alguns buracos na alheta;
assim que, quando apareceu na haste a bandeira inglesa por cima da francesa, pensei que isso significava que era uma presa de um de nosso navios. Supus que teria
sofrido graves danos durante a captura, que estaria em perigo e que os tripulantes necessitariam de ajuda.
- Isso não podia significar outra coisa.
- Sim podia, meu amigo! - exclamou o almirante -. Podia significar que o barco estava ao comando de um pilantra, um desprezível pilantra. Aproximei a fragata do
costado de sotavento para perguntar aos gritos que necessitavam e subi no parapeito com o alto-falante para que pudessem me ouvir apesar do rumor do vento. Então
vi que no convés havia muitos tripulantes, uns duzentos ou trezentos, não um pequeno número, como é habitual nas presas, e nesse momento sacaram os canhões e viraram
para que o barco estivesse perpendicular à fragata com a intenção de derrubar o gurupés, disparar-lhe de proa a popa e depois abordá-la. No convés havia montes de
tripulantes sorridentes e silenciosos que esperavam para saltar na abordagem. Com o alto-falante ainda na mão gritei: "Leme a barlavento!", e meus homens tiveram
a sensatez de soltar as velas de proa antes que eu tivesse tempo de dar a ordem. A Hussar obedeceu imediatamente, e por isso não a alcançaram a maioria dos devastadores
disparos, se bem que estragaram o traquete e arrancaram a maior parte dos amantilhos de estibordo. Ambas embarcações tinham a proa para sotavento e os costados quase
juntos, e meus homens dispararam com fúria pesadas balas de canhão contra os marinheiros que tentaram nos abordar, o que deu um magnífico resultado, e então gritei:
"À abordagem!". Ao ouvi-lo esse pilantra moveu o leme e o barco virou em redondo e começou a navegar com o vento em popa. Nós o perseguimos disparando-lhe constantemente,
e depois de uma hora de encarniçado combate, diminuiu a freqüência de seus disparos, virou a estibordo e se afastou para barlavento com as velas amuradas para bombordo.
Seguimos ele para forçá-lo a aproximar mais a proa do lugar de onde soprava o vento, porém, por desgraça, o traquete esteve a ponto de cair pela borda e o gurupés
também, assim que não podíamos orçar até que não os assegurássemos. Mas o conseguimos por fim e, quando já estávamos perto do barco francês, a névoa se dissipou
e vimos a barlavento um navio de grandes dimensões, que, conforme soubemos mais tarde, era o Centurião, e a sotavento uma fragata, a Terrier. Seguimos avançando
apesar de tudo e duas horas depois estávamos do seu lado disparando-lhe uma descarga. Eles nos dispararam dois canhonaços, mas depois arriaram a bandeira. O barco
resultou ser A Sybille, uma embarcação de trinta e oito canhões, ainda que seus homens houvessem jogado uma dúzia pela borda durante a perseguição, e com trezentos
e cinqüenta tripulantes mais alguns marinheiros norte-americanos supernumerários. O pilantra que estava ao comando era o conde de Kergariou, Kergariou de Socmaria,
se não recordo mal.
- E o que o senhor lhe fez, senhor? - perguntou Jack.
- Silêncio - disse o almirante, virando a vista para Schank -. Polipasto adormeceu. Saiamos de fininho e depois os levarei de regresso para a fragata. O vento é
favorável e assim não desperdiçarão nem um minuto da maré.
CAPÍTULO 2
A alvorada surpreendeu à Surprise muito longe, entre as cinzas e solitárias águas que eram seu lar. Soprava um forte vento do sudoeste favorável para abrir as joanetes;
havia nuvens baixas e a chuva chegava em rajadas ocasionais; mas o dia prometia ser bom. Apesar de que ser muito cedo, a fragata já usava as joanetes desdobradas,
pois Jack se propunha se afastar da rota habitual dos barcos que iam ou vinham das diferentes bases navais, porque não desejava que recrutassem à força os seus homens,
e sabia que nenhum oficial do rei poderia resistir à tentação ante tão grande número de escolhidos marinheiros de primeira. Tampouco desejava ter que apresentar-se
em um barco do rei para mostrar seus documentos, fazer um resumo de sua carreira e, possivelmente, receber um tratamento desconsiderado, familiar demais ou ofensivo.
Como na Armada não só havia homens com uma grande delicadeza natural ou adquirida, já havia tido que suportar algumas descortesias e, ainda que confiava acostumar-se
a elas com o tempo, nesse momento estava, por assim dizer, excessivamente sensível.
- Mova-se, Joe - disse o suboficial encarregado dos sinais, enquanto girava o relógio de areia que indicava as guardas.
Então uma figura embuçada avançou alguns passos e tocou as três badaladas da guarda da alvorada. O ajudante de oficial de derrota levantou a barquilha e informou
de que a velocidade era de seis nós e duas braças, uma velocidade que poucos barcos podiam igualar nessas condições e talvez nenhum pudesse superar.
- Senhor West, vou descer um pouco - disse Jack ao oficial de guarda -. duvido que este vento se mantenha, mas parece que o dia será muito agradável.
- Sim, senhor - disse West, inclinando a cabeça para se esquivar de uma lufada de espuma, pois as ondas chocavam contra a amura de estibordo da Surprise, que navegava
de bolina com rumo sul-sudeste, e avançavam em direção à popa lançando salpicos que se misturavam com a chuva -. Que agradável é estar em alto mar outra vez!
Agora, na primeira etapa da viagem, Jack Aubrey era três pessoas em uma. Era o capitão da fragata, naturalmente; era o oficial de derrota, quer dizer, o responsável
pela navegação, entre outras coisas, porque não havia dado sua aprovação a nenhum dos muitos candidatos que haviam se apresentado; e também era o contador. Geralmente,
os oficiais ao comando dos barcos enviados para fazer explorações também desempenhavam a função de contador, mas Jack nunca o havia feito e, ainda que como capitão
havia tido que supervisionar aos contadores e firmar seus livros, assombrava-se com o volume e a complexidade das contas agora que devia fazê-las detalhadamente.
Na grande cabine entrava luz suficiente para trabalhar pelas janelas de popa, uma série de janelas de vidro que formavam uma curva de lado a lado da fragata e que
lhe produziam certo prazer inclusive nos momentos mais tristes de sua vida. O mesmo lhe produzia a própia cabine, uma habitação exageradamente bonita que tinha um
único ângulo reto (o piso era curvo, o teto era curvo e os lados eram inclinados) e media vinte e quatro pés de largura e catorze de comprimento, pelo que dispunha
de mais espaço que todos os oficiais juntos. E isso não era tudo, pois a grande cabine se comunicava com outras duas menores, das quais uma era um refeitório e outra
um dormitório. Mas Jack havia cedido a cabine-refeitório para Stephen Maturin e no momento em que o café da manhã chegou, depois de revisar a terceira parte das
faturas, comprovantes e notas de embarque, assinalou a porta com a cabeça e perguntou:
- Está acordado o doutor?
- Não se ouve nenhum ruído, senhor - respondeu Killick -. Ontem à noite estava morto de cansaço, como um cavalo fustigado. Mas talvez este aroma o desperte, como
já aconteceu amiúde.
O aroma, uma mistura do odor do café com o bacon, salsichas e pão torrado, havia lhe despertado em muitas latitudes, pois Jack, como a maioria dos marinheiros, era
ultraconservador em questões culinárias e geralmente, inclusive em viagens longas, havia levado galinhas, porcos, uma cabra silvestre e sacos de café verde e havia
conseguido ter quase o mesmo desjejum (salvo as torradas) no Equador e nos círculos polares. Stephen considerava essa refeição o principal sinal de civilização dos
ingleses, mas desta vez nem sequer o odor do café logrou despertá-lo. Tampouco o lograram os ruídos da limpeza do castelo de popa justo acima de sua cabeça, nem
os apitos com que ordenaram aos marinheiros guardar suas macas quando soaram as sete badaladas ou com que os chamaram para desjejuar quando soaram as oito, aos que
seguiu, como sempre, o ruído de gritos e passos apressados. Continuou dormindo enquanto o vento amainava gradualmente e enquanto a fragata virava para estibordo,
uma manobra acompanhada de muitos gritos e dos ruídos produzidos ao se mover as braças e ao fazer aduchas. Só na entrada da guarda da manhã que Stephen apareceu,
bocejando e estirando-se, com os calções desabotoados no joelho e a peruca na mão.
- Que Deus e Maria o bendigam, cavalheiro - cumprimentou-lhe Padeen, que o estava esperando.
- Que Deus, Maria e são Patrício lhe bendigam, Padeen - respondeu Stephen.
- Quer que lhe traga uma camisa limpa e água para se barbear?
Stephen refletiu alguns momentos enquanto acariciava seu queixo.
- Pode trazer a água - respondeu -, pois o tempo é aprazível, o movimento leve e o perigo mínimo. Contudo, com respeito à camisa - acrescentou, alçando a voz para
que o ouvisse apesar da conversa de um grupo de homens que trabalhavam onze polegadas acima dele -, com respeito à camisa, já tenho posta uma e não penso tirá-la.
Mas pode dizer a Killick que faça o favor de trazer-me uma cafeteira cheia.
Isto último o disse ainda mais alto e em inglês, porque provavelmente Killick, que era sumamente xereta, o ouviria.
Pouco tempo depois, barbeado e reanimado, o doutor Maturin subiu para o convés, quer dizer, saiu de sua cabine pela porta dianteira, avançou pelo corredor até o
convés e depois subiu pela escada para o castelo de popa, onde o capitão, o ajudante do oficial de derrota, o contramestre e o condestável conversavam animadamente.
Foi até o coroamento e, recostado nele, sob a luz do sol, percorreu com o olhar toda a fragata até a proa, umas quarenta jardas, e depois olhou mais além do gurupés.
O dia era realmente agradável, mas o vento era fraco, e apesar da Surprise ter muito velame desdobrado navegava escassamente a dois ou três nós e com a coberta pouco
inclinada.
Tudo lhe parecia igual como sempre, desde os tensos cabos dos aparelhos até as curvas das brancas velas iluminadas pelo sol que do alto projetavam sua escura sombra,
e tardou algum tempo em descobrir qual era a principal diferença. Não era a falta de uniformes, porque, exceto nos navios insígnias e alguns outros ao comando de
capitães muito rigorosos, os oficiais se vestiam usualmente com variada roupa de trabalho salvo quando o capitão lhes convidava para comer em sua cabine ou tinham
que realizar algum ato formal, e os marinheiros sempre se vestiam como queriam; tampouco era a falta do típico estandarte de um barco de guerra ondeando no tope
de um mastro, o que nunca haveria notado. A diferença era que não havia no castelo de popa infantes da marinha, com suas casacas de colorido escarlata formando um
chamativo retângulo que contrastava com a pálida coberta e as distintas tonalidades do mar, e tampouco adolescentes, nem grumetes nem cadetes, quem ocupavam muito
lugar, eram difíceis de fazer calar e nem sempre cumpriam suas tarefas mas proporcionavam alegria. Contudo, havia alegria e se notava muito mais que em um navio
da Armada Real sob o comando de um capitão igualmente estrito (os marinheiros riam nos cestos das gáveas, no corrimão e no castelo), mas era uma alegria diferente.
Stephen estava refletindo sobre a diferença quando Bonden chegou à popa para arrumar a bandeira, uma bandeira vermelha que havia se enganchado.
- Os marinheiros se alegraram muito com a carta de Nelson, senhor - disse Bonden depois de trocar comentários sobre o vento e a possibilidade de pescar bacalhaus
com um fio de pescar e um anzol -. Eles a consideram um bom sinal.
Nesse momento o contramestre chamou com apitos a Bonden e a todos os outros marinheiros para que baixassem o cúter azul pelo lado, e Jack foi até a popa.
- Bom dia - Stephen lhe cumprimentou-. Sinto por não lhe ter visto n a hora do café da manhã, mas dormi como o homem que, conforme Plutarco, correu sem parar a maratona
para Atenas o teria feito se não tivesse morrido, a pobre criatura. Martin ainda dorme, apesar das bolhas que tem. Meu Deus, como corremos! Temíamos tanto perder
a fragata! E nas empinadas colinas às vezes me puxava pela mão.
- Bom dia, doutor - cumprimentou Jack -. Uma bonita manhã, não acha? Então o senhor Martin está a bordo. Achava que ele havia ido para sua casa para arrumar seus
assuntos, e que se reuniria conosco quando voltássemos a Shelmerston.
- Não tive tempo de falar contigo ontem à tarde e à noite eu dormi antes que baixasse. Mas nem sequer agora, ainda que não estamos sentados à mesa jantando com o
almirante, podemos falar confidencialmente - disse em voz baixa, olhando para o leme da Surprise, colocado justo diante do mastro mezena, a dez pés de distância
da popa; junto dele se encontravam o timoneiro e o suboficial que governava a fragata e, próximos deles, um grupo de marinheiros que subiam rápido pelos amantilhos
do pau mezena para levar as armas para o cesto da gávea, e o oficial de guarda, o qual se encontrava junto ao cabrestante.
- Vamos para baixo - propôs Jack.
- Mesmo aqui - disse Stephen -, inclusive neste lugar da fragata aparentemente impenetrável, poucas coisas são ditas que não cheguem ao conhecimento de todos, de
uma maneira mais ou menos distorcida, em todos os cantos ao cair da noite. Não digo que haja ninguém mau ou mal-intencionado a bordo, mas os marinheiros já ouviram
falar da carta de Nelson. Sabem, quer dizer, acreditam saber que um grupo de sócios representados por mim compraram a Surprise e que entre eles se encontra meu antigo
paciente o príncipe William. Além disso, sabem que Martin desempenhará as funções de cirurgião em vez das de pastor, já que o obrigaram a pendurar o hábito quando
o acusaram de ter relações com uma mulher. Conhece este caso, verdade, Jack?
- Ouvi falar dele.
- Foi a mulher do bispo. E como já não veste o hábito é incapaz de trazer-nos má sorte. Com relação à sua presença aqui, eu lhe disse que lhe daria um adiantamento
do pagamento, como você amavelmente me deu há muito, muito tempo, e que lhe sugeria que fosse para sua casa e subisse a bordo com seu baú da próxima vez que estivéssemos
no porto; contudo, preferiu enviar o adiantamento para sua esposa e ficar a bordo. Acredito que está em uma situação desesperada, pois não tem nenhuma forma de ganhar
a vida nem esperança de que o nomeiem capelão de nenhum barco do rei desde que escreveu o desafortunado opúsculo. Por outro lado, tem um sogro antipático e se regressar
corre o risco de ser preso por não pagar as dívidas. Como só vamos navegar por quinze dias, está disposto a suportar o incômodo de não ter uma camisa para trocar
e usar sapatos gastos, pois há a possibilidade de que consigamos um butim. Eu lhe expliquei o sistema de divisão, porque ele não o entendia, e diz que se contentaria
com quatro peniques. Mas estou impaciente para lhe dizer outras coisas mais importantes. Por que não subimos para o cesto da gávea quando esses homens terminarem
seu trabalho?
- Tardarão um pouco ainda - disse Jack, que havia subido outras vezes ao cesto da gávea com Stephen -.Talvez seja melhor dar uma volta ao redor da fragata no esquife
quando terminem as práticas de tiro com os canhões; quero ver como está a exárcia.
- Pensa em fazer práticas de tiro com os canhões?
- Oh, sim! Não viu como baixavam pelo costado o cúter azul com os alvos? Agora que estamos em um lugar afastado das rotas mais frequentadas quero ver como os novos
marinheiros disparam com munições de verdade. Quero que façam meia dúzia de séries antes do almoço, competindo os marinheiros de estibordo com os de bombordo. Indubtavelmente,
reforçará a moral.
- Os alvos já foram colocados, senhor - disse da porta da cabine Pullings, que em contraste com Jack Aubrey estava realmente animado, como um cachorro terrier ao
qual houvessem mostrado um rato.
Stephen tinha a impressão de que seu amigo não se importaria que os alvos se afundassem por si mesmos, e durante a primeira parte da prática essa idéia se confirmou.
Fazia tempo que perdera a alegria provocada pela carta de Nelson e a amabilidade do almirante, e a melancolia voltou a lhe invadir. Mas a melancolia não era acompanhada
de um comportamento desacertado, pois Jack Aubrey tinha um grande sentido do dever e sempre era estrito e meticuloso em seu barco. Stephen notou que já não lhe comoviam
o odor da mecha de combustão lenta, nem o terrível estrondo que faziam os canhões ao disparar, nem os chiados que faziam ao retroceder nem a fumaça da pólvora que
se amontoava na coberta. Também notou que Pullings, que estimava a Jack Aubrey, olhava-o com angústia.
O que Stephen não observou foi que as práticas de tiro com os canhões e os mosquetes foram muito más, pois essas atividades costumavam ter lugar pela tarde, quando
todos os tripulantes eram chamados a ocupar seu posto de combate, e o dele, por ser cirurgião, ficava abaixo, onde atendia aos feridos. Não sabia que anteriormente
os tripulantes da fragata manejavam os canhões de forma extraordinária nem sabia apreciá-lo. Desde o começo de sua carreira naval, e sobretudo desde que tomou pela
primeira vez o comando de um barco, Jack Aubrey estava convencido de que disparar os canhões com rapidez e precisão influía mais em uma vitória que tê-los polidos,
e seguiu guiando-se por esse princípio nas sucessivas embarcações que teve sob seu comando. Como havia passado mais tempo ao comando da Surprise que das outras,
havia logrado que seus tripulantes alcançassem a excelência. Em boas condições, a fragata disparava três certeiras descargas em três minutos e oito segundos, o que,
em sua opinião, nenhum outro barco da Armada Real podia igualar e muito menos superar.
Ainda que a Surprise já não fosse uma embarcação do rei, ainda estavam a bordo todos os antigos canhões (Cruel Assassino, Billy o Saltitante, Escupefuego, Morte
Súbita, Tora Cribb e os demais). Também estavam muitos dos artilheiros, mas com o fim de conseguir uma tripulação unida, isto é, evitar no possível a inimizade e
as divisões que sempre se produziam, Jack e Pullings haviam distribuído os novos marinheiros entre os veteranos, e o resultado disso era que disparavam de maneira
lenta e imprecisa. A maioria dos corsários estavam mais acostumados a abordar os barcos inimigos que a disparar-lhes a distância (especialmente porque os canhonaços
estragavam a mercadoria da presa), e por essa razão muito poucos podiam apontar com um mínimo de precisão. Muitos antigos tripulantes da Surprise lançavam furtivas
olhadas ao capitão, porque costumava ser um crítico implacável, mas não notavam em seu rosto nenhuma reação, senão impassibilidade.
Jack falou uma só vez e foi para um marinheiro novo que estava muito perto de um canhão.
- O artilheiro que está junto ao canhão número seis: James! Separe-se ou perderá um pé durante o retrocesso!
Os marinheiros dispararam o último canhonaço. Então limparam e voltaram a carregar o canhão, atacaram a carga e o sacaram de novo.
- Bem, senhor... - disse Davidge, vacilante.
- Vamos ver o que fazem os de bombordo, senhor Davidge - ordenou Jack.
- Guardem os canhões! - gritou Davidge e depois acrescentou -: Todos a mudar de bordo!
Os tripulantes recém chegados não eram hábeis no manejo dos canhões, mas eram excelentes marinheiros e correram tão rápido como os da Surprise para pegar as escotas,
as amuras, as bolinas, as braças e os gradis que lhes correspondiam. E imediatamente se ouviram as conhecidas ordens: "Leme para bombordo! Soltar amuras e escotas!".
Mas imediatamente depois da ordem "Girar a vela maior!" se ouviram desde o tope de um mastro os gritos: "Coberta! Barco à vista a onze graus pela amura de bombordo!".
Inclusive do convés o barco podia ser visto, que navegava com o vento em popa a grande velocidade. Era óbvio que o serviola estava olhando as práticas de tiro em
vez do horizonte. A Surprise virou para sotavento e Jack ordenou inclinar o velacho e depois, com o telescópio pendurando, subiu ao cesto da gávea. Dali podia ver
o casco, e sem necessidade do telescópio Jack podia identificá-lo: era um grande cúter, um dos leves e velozes barcos de duzentas ou trezentas toneladas que usavam
os contrabandistas e quem os perseguiam. Jack pensou que estava muito arrumado para ser um barco que fazia contrabando, muito elegante; pouco depois viu pelo telescópio
um estandarte de navio de guerra recortando-se sobre a vela maior. O cúter se encontrava em uma posição vantajosa, mas provavelmente a Surprise o adiantaria navegando
com o vento ao largo; contudo, isso significaria ir para a rota usual dos barcos, onde aumentava a possibilidade de que algum capitão de um potente navio de guerra
detivesse a fragata e levasse muitos mais tripulantes que o de um cúter. Por outro lado, era impossível escapar navegando de bolina, já que a quilha de uma embarcação
de exárcia de cruz não podia formar com a direção do vento um ângulo menor que a quilha de um cúter.
Regressou para a coberta e falou com o oficial de guarda.
- Senhor Davidge, ficaremos em pairo até que o cúter chegue e depois continuaremos as práticas. Esteja preparado para desdobrar as gáveas e içar a bandeira.
Então se ouviu um burburinho de desaprovação, isto é, algo mais forte que um burburinho perto das caronadas do castelo de popa, onde ficavam os marinheiros novos,
que não desejavam que os recrutassem à força. Um deles disse:
- É o Viper, senhor, a embarcação mais veloz navegando com o vento em popa.
- Silêncio! - gritou Davidge, dando no homem um golpe na cabeça com o alto-falante.
Jack desceu e depois de alguns momentos mandou buscar Davidge.
- Ah, senhor Davidge! - exclamou -. Comuniquei a West e a Bulkeley algo que não disse ao senhor: neste barco não se permitem os açoites nem os insultos. Não há lugar
para oficiais com mão de ferro em um barco de guerra particular.
Ao ver a expressão de Jack, Davidge reprimiu seus desejos de responder. Nesse momento Jack Aubrey lhe parecia um oficial com mão de ferro disposto a descarregar
um forte golpe em qualquer pessoa.
Killick trouxe silenciosamente uma respeitável casaca azul sem os galões, as fitas e os botões que se usavam na Armada. Jack o pôs e começou a ordenar os documentos
que teria que apresentar em caso de que lhe ordenassem subir a bordo do cúter. Alçou a vista quando Stephen entrou e, com um sorriso forçado, disse:
- Pelo que vejo, também trouxe papéis.
- Escute-me, meu amigo - disse Stephen, aproximando-o do mirante de popa -. Tive que lutar com minha consciência para trazer isto, porque se subentendia que foi
redigido para ser usado somente na viagem para a América do Sul. Mas o carpinteiro me disse que o Viper está sob o comando de um homem que acaba de ser nomeado substituto,
um tipo pretencioso, rude e tirânico, e acredito que se lhe provoca, como temo que o fará, você vai se comprometer e não poderemos fazer a viagem para a América
do Sul nem para nenhuma outra parte.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack, lendo o documento, que era uma carta do Almirantado em que se proibia recrutar à força aos tripulantes da fragata -. Admiro seu bom
julgamento. Procurei no Boletim Oficial da Armada e vi que quem está ao comando do Viper é o filho de Dixon, aquele pilantra de Porto Horn. Acredito que me teria
sido difícil não lhe quebrar a cara caso mostrasse uma atitude arrogante. Meu Deus, como isso me tranqüiliza!
Apesar disso, Jack teve que usar toda sua capacidade de se controlar, que era maior do que pensava, para evitar esbofetear o jovem. Perdera a sensação de prazer,
mas a susceptibilidade, a irritabilidade e a raiva permaneciam intactas ou se acentuavam às vezes, exceto nos períodos de apatia, e esse não era um deles. Quando
o Viper estava muito perto da Surprise, o substituto ordenou que se aproximasse por sotavento e que o capitão subisse a bordo com seus documentos rápido como um
raio. Depois disparou um canhonaço para a frente da proa para reforçar a ordem.
Jack cruzou a distância que os separava no bote que rebocava os alvos e depois subiu a bordo do Viper (só teve que subir dois degraus pelo costado, porque esse tipo
de barco se afundava muito na água). Cumprimentou aos que estavam no castelo de popa e o jovem encarregado da guarda, um ajudante do oficial de derrota, tocou seu
chapéu com a mão mecanicamente, disse que o capitão estava ocupado e que receberia ao capitão Aubrey mais tarde; depois reiniciou a conversa com o escrevente do
capitão. Então se pôs a caminhar de um lado a outro enquanto falava com afetada parsimônia.
Na Armada os guardas-marinhas dos cúteres eram famosos por seus maus modos, e os do Viper eram exemplares nesse sentido; recostados na borda com as mãos nos bolsos
e olhando-o fixamente, murmuravam e riam entre os dentes. Mais adiante estavam agrupados os suboficiais do cúter, que o olhavam com silencioso desprezo; também havia
um marinheiro que navegou com ele durante muitos anos e que permanecia imóvel, com um cabo aduchado na mão e uma expressão de horror.
Um pouco depois o capitão do Viper lhe recebeu no cubículo que fazia a função de cabine. Dixon estava sentado atrás de uma escrivaninha e não ofereceu uma cadeira
para Jack. Ele lhe odiava desde os remotos dias passados em Menorca, e quando avistou a Surprise começou a preparar frases sarcásticas e sumamente agressivas. Porém,
ao ver que Jack enchia o reduzido espaço com seu robusto corpo (que parecia ainda maior porque teve que inclinar-se para passar pela porta) e ao notar sua expressão
grave e a autoridade que emanava dele, o jovem Dixon não cumpriu sua resolução. Quando Jack tirou alguns objetos de cima de um escaninho e se sentou nele, não disse
nada. Logo, depois de folhear os documentos, limitou-se a dizer:
- Vejo que tem uma tripulação muito grande, senhor Aubrey. Terei que tirar-lhe uma vintena de homens mais ou menos.
- Estão protegidos.
- Bobeiras! Não podem estar protegidos. Os marinheiros dos barcos corsários não estão protegidos.
- Leia isto - disse Jack, pondo-se de pé diante dele e recolhendo os outros documentos.
Dixon o leu, voltou a lê-lo e o pôs a contraluz para ver a filigrana, enquanto Jack olhava pelo escotilhão como se moviam os chapéus de lona alcatroada dos tripulantes
de seu bote.
- Bem - disse Dixon finalmente -, acho que não há nada mais o que falar. Pode ir.
- O que disse? - perguntou Jack, inclinando-se para ele.
- Disse que não há nada mais o que falar.
- Adeus, senhor.
- Adeus, senhor.
Os tripulantes do bote o receberam com amplos sorrisos, e quando estavam perto da Surprise um dos homens de Shelmerston gritou para os companheiros que os olhavam
por cima das macas:
- Companheiros, estamos protegidos!
- Silêncio no bote! - gritou com tom imperativo o timoneiro.
- Silêncio de proa a popa! - gritou o oficial de guarda quando começaram a se propagar os gritos de alegria.
Jack ainda dedicava tanta atenção ao documento de Stephen e suas possíveis implicações que quase não notou a algaravia. Desceu rapidamente para a cabine e, apenas
colocou os documentos no lugar correspondente, ouviu um alvoroço ainda maior, pois todos os marinheiros de Shelmerston e os antigos tripulantes da Surprise que eram
desertores subiram correndo para os amantilhos de barlavento para ver o Viper, que havia mudado a orientação das velas e começava a ganhar velocidade.
Um suboficial gritou:
- Um, dois, três!
Então todos exclamaram:
- Ah, ah, ah!
Depois começaram rir como loucos dando-se palmadas no traseiro.
- Basta! - gritou Jack com uma voz apropiada para o cabo Horn -. Maldito bando de tontos! Acaso isto é um prostíbulo? Ao próximo marinheiro que se dê uma palmada
no traseiro lhe despedaçarei a açoites! Senhor Pullings, desça o esquife do doutor pelo costado imediatamente, por favor, e prepare três alvos a mais.
- Stephen - disse, deixando de mover os remos, quando estavam a umas duzentas jardas da fragata -. Faltam-me palavras para expressar meu agradecimento por essa proibição.
Se esse jovem mesquinho houvesse levado algum de nossos velhos companheiros de tripulação que são desertores, e estou convencido de que não deixaria a todos, teriam
corrido o risco de que os enforcassem, ou pelo menos de que lhes dessem várias centenas de açoites. Ademais, teríamos que ficar brincando sempre de gato e rato com
os navios do rei, porque, apesar de que, por senso comum, um geralmente se mantém fora da rota das esquadras, não pode ficar seguro de que se esquivará dos barcos
que patrulham. Acho que não devo perguntar como o conseguiu.
- Mas lhe contarei de toda maneira porque quando se requer discrição você é como uma tumba - replicou Stephen -. Na viagem para a América do Sul espero estabelecer
algumas relações que sejam úteis para o Governo, e o Almirantado sabe disto semi-oficialmente e também que não posso chegar lá em um barco ao qual lhe tiram os tripulantes;
por isso me deram essa proteção. Eu teria contado muitas coisas que queria lhe dizer se não fosse porque estávamos longe e não eram adequadas para escrevê-las em
uma carta. - Stephen fez uma pausa, olhou para uma distante gaivota e depois continuou -: Agora escute-me bem, Jack, porque vou usar toda minha capacidade mental
para tentar explicar como estão as coisas atualmente. É difícil, pois não tenho total controle sobre o que posso dizer nem sobre o que me disseram confidencialmente
e, por outro lado, não lembro de tudo o que lhe contei durante esse horrível período, pois tenho muitos detalhes confusos na mente. Apesar disso, incluindo o que
obviamente sabe, eu lhe direi qual é a situação a grosso modo. O argumento para demostrar sua inocência era que Palmer lhe estava muito agradecido e para corresponder
ao seu favor lhe contou que se havia firmado um tratado de paz, que subiria o preço das ações na bolsa e que era aconselhável que comprasse determinados títulos
antes da subida. O argumento para demostrar sua culpa era que não existia ninguém chamado Palmer e que você mesmo difundiu esse rumor; em resumo, que você manipulou
fraudulentamente o mercado de valores. Naquele momento não pudemos apresentar Palmer e, além disso, não era possível ganhar o caso com o juiz que o instruía. Mas
mais tarde, e agora cheguei a uma parte da qual acho que sabe pouco ou nada, alguns de meus colegas e eu, com ajuda de um caçador de ladrões sumamente inteligente,
encontramos o cadáver de Palmer.
- Mas então...
- Jack, eu lhe rogo que não me peça que seja mais explícito nem interrompa o fio de meu pensamento. Como disse, não sou um agente secreto livre e tenho que avançar
com muito cuidado por meu caminho. - Fez outra pausa e ficou pensativo um momento enquanto o bote se movia lentamente entre as ondas -. Palmer foi morto por seus
chefes, os homens que o haviam encarregado de lhe enganar, porque um cadáver, sobretudo um cadáver mutilado, não pode comprometê-los. Seus chefes são ingleses que
ocupam altos cargos na administração inglesa e espiões ao serviço da França, mas neste caso seu propósito era fazer dinheiro. Queriam manipular fraudulentamente
o mercado de valores e que parecesse que era outra pessoa quem o havia feito. Um desses homens era Wray... Não me interrompa, Jack, eu lhe peço. Como ele conhecia
perfeitamente seus movimentos e sabia que estava a bordo do barco com bandeira branca, traçou um plano em que se sucediam vários acontecimentos e o levou a cabo
com assombroso êxito. Porém, apesar de que isso era óbvio depois do ocorrido, nunca teríamos descoberto que Wray e seu amigo eram os principais promotores se um
ofendido espião a serviço da França, neste caso um francês, não os houvesse delatado.
Stephen ficou refletindo um pouco, depois pegou do bolso um grande diamante azul que ocupava a metade da palma de sua mão e, muito devagar, girou-o para que brilhasse
sob a luz do sol. E continuou:
- Jack, vou lhe dizer uma coisa: o francês era Duhamel, aquele homem que vimos em Paris. Diana tentou que nos liberassem usando este bonito objeto, e parte do acordo
ao qual chegamos quando fugimos foi que o devolveriam. Duhamel o trouxe e, além disso, em pagamento a um serviço que lhe prestei, não só me revelou o nome de Wray
e o de seu colega Ledward, Edward Ledward, como também lhes armou uma armadilha tão boa como a que Wray fez para você. Como ambos eram membros de Button's, ele se
reuniu com eles na rua Saint James, justo diante do clube, e enquanto eu os observava da janela do Black's, ele lhes entregou um feixe de notas e recebeu um relatório
sobre os movimentos da Armada e do Exército ingleses e sobre as relações da Inglaterra com o reino da Suécia. Meus colegas e eu cruzamos a rua pouco tempo depois,
mas lamento, lamento profundamente ter que confessar que estragamos o caso. Quando perguntamos por Wray e seu amigo nos negaram a entrada porque eles não queriam
receber visitas. Por desgraça, um de meus acompanhantes tratou de entrar à força e provocou um alvoroço, assim que quando conseguimos a apropiada ordem judicial,
eles haviam escapado; ainda que não saíram pela cozinha nem pela porta que dava para o estábulo, já que tínhamos homens postados ali, mas por uma pequena clarabóia
que havia no teto. Depois foram caminhando pelos parapeitos das sacadas até Mother Abbott's, onde uma das meninas lhes deixou entrar pensando que estavam brincando.
Esconderam-se e, até o momento, nenhum dos encarregados do caso descobriu onde. É provável que Ledward suspeitasse que estava em perigo, pois meus colegas não encontraram
nada revelador entre seus documentos. Eles pensam que, possivelmente, tinha há tempos um engenhoso plano para escapar. Wray, em troca, não foi tão cauteloso, e pelos
documentos que encontraram em sua casa é evidente que estava implicado no caso da bolsa e que se beneficiou muito dele. O informe que entregaram a Duhamel é sumamente
comprometedor, porque contém alguns dados que só podem proceder do interior do Almirantado. Bem, acho que lhe disse tudo o que posso. Resta acrescentar que meus
colegas, que sempre pensaram que haviam cometido uma indiscrição com respeito a esses condenados títulos e ações, agora estão convencidos de sua inocência.
Durante os últimos dez minutos o coração de Jack havia batido com força e rapidez crescentes e agora parecia que lhe enchia o peito. Jack respirou fundo e, controlando
até certo ponto o tom de sua voz, perguntou:
- Isso significa que é possível que me reabilitem?
- Se houvesse justiça neste mundo, estou seguro de que o fariam, meu amigo - respondeu Stephen -. Mas não deve pensar que isso ocorrerá realmente nem conceber muitas
esperanças, pois Ledward e Wray ainda não foram capturados e não podem ser julgados. Possivelmente alguém que ocupa um cargo mais alto do que eles os está protegendo,
pois é estranho que alguns sejam resistentes a se mover... O caso é que os ministros não querem que a oposição se informe desse espantoso escândalo, e talvez considerem
mais importante uma raison d'état que uma ação injusta contra um indivíduo, especialmente se esse indivíduo não tem influência política; ainda que o contrário também
é possível. E com respeito a isso, permita-me dizer que a influência do general Aubrey é nefasta. Além do mais, quem tem autoridade é resistente a admitir os erros
que cometeu. Por outro lado, qualquer amigo lhe aconselharia que não se desesperasse e, sobretudo, que não se deixasse vencer pelo desânimo. Como disse nosso querido
Burton, não deve permanecer inativo nem ficar só. A solução, se existir, é a atividade, a atividade no mar.
- Lamento ter estado tão triste esta manhã - disse Jack -. A verdade é que... Não é que me queixe, Stephen, mas a verdade é que tive um sonho que parecia tão real
que ainda agora tenho a impressão de que é algo tangível. No sonho eu via tudo o relacionado com o caso, o julgamento e o que seguiu depois, e depois me dava conta
de que estava sonhando, o que me produziu um enorme regozijo e um grande alívio. Acho que foi minha imensa alegria que me despertou, mas inclusive então me parecia
que ainda estava no sonho e procurei esperançado minha velha casaca do uniforme.
Subiu os remos e terminou de dar a volta ao redor da fragata enquanto observava a exárcia. Reconhecia que Stephen tinha razão em tudo o que havia dito, e na parte
irracional de seu ser uma suave luz dissipou sua infelicidade.
Quando remava em direção à fragata disse:
- Alegro-me de que tenha visto Duhamel outra vez. Eu simpatizava com ele.
- Era um bom homem - observou Stephen -. E a devolução do diamante, quando estava cortando os laços que o uniam ao seu país para ir ao Canadá, é um dos atos de generosidade
mais assombrosos que já vi. Tenho muita pena.
- O pobre homem não morreu, não é?
- Não teria mencionado seu nome se estivesse vivo. Atendendo ao meu pedido Heneage Dundas ia levá-lo para a América do Norte, onde pensava ficar para se estabelecer
na província de Quebeque, junto a um rio no qual abundam as trutas. Transformou sua nada desprezível fortuna em ouro e a colocou em uma faixa que levava presa na
cintura. Quando foi para subir no navio em Spithead, onde as águas eram turbulentas, caiu entre ele e o bote, como me ocorreu algumas vezes. Sua fortuna o afundou
e não foi possível resgatá-lo.
- Sinto muito - disse Jack, e começou a remar um pouco mais forte.
Refletiu sobre se devia falar de Diana e do diamante ou não, pois lhe parecia que deixar de fazê-lo não era uma reação humana normal, mas pensou que o assunto era
muito delicado, que poderia cometer um desacerto e que era melhor guardar silêncio até que Stephen voltasse a mencioná-lo.
Quando estavam de novo a bordo da fragata, ordenou que pegassem os outros alvos. Agora se importava com os disparos da guarda de bombordo; os disparos foram um pouco
melhores e os acompanharam duras críticas, conselhos e inclusive elogios desde o castelo de popa. Depois Jack consentiu em que a Surprise disparasse outra vez as
duas baterias a uma distância muito menor, mas foram disparos a intervalos, em sucessão de proa a popa, porque as balizas eram muito velhas para suportar o impacto
do fogo simultâneo e só o fariam em caso de emergência. Como nos barcos de guerra privados havia que poupar a pólvora porque era uma substância muito cara, na maioria
deles o fogo das baterias, tanto a intervalos como de outra maneira, era algo exageradamente raro, e os tripulantes pensaram que se fazia para celebrar seu triunfo
sobre o Viper. O capitão e o condestável puseram fim à celebração disparando os canhões de proa, dois canhões longos de nove libras com o calibre perfeito, feitos
de bronze e assombrosamente precisos, propriedade de Jack Aubrey. Ambos dispararam aos restos dos alvos que as baterias haviam destroçado e que ainda se mantinham
flutuando, e ainda que nenhum o fez admiravelmente, os dois provocaram calorosos gritos de júbilo. Quando Jack se aproximava da popa, Martin disse para Stephen:
- O capitão se parece cada vez mais com o homem que era, não acha? Ontem pela tarde ele me surpreendeu muito.
A infelicidade de Jack desaparecera, mas ainda estava preocupado e angustiado. Além das tediosas e necessárias reflexões que fizera sobre os problemas locais e legais
o recrutamento da tripulação que podia originar (não era tão resistente e otimista como há um ano atrás), não advertira que era difícil, quase impossível, conseguir
uma tripulação homogênea. Tampouco advertira que os anos que os tripulantes da Surprise haviam trabalhado em equipe e haviam manejado o mesmo canhão com os mesmos
companheiros os haviam situado acima do nível normal. Os marinheiros procedentes de barcos corsários eram muito fortes e tinham brio, e era provável que nas práticas
de tiro sem disparos reais (as que faziam geralmente porque a pólvora era muito cara) sacassem e guardassem os canhões com brio; contudo, era evidente que necessitariam
de meses ou mesmo de anos para ter a rapidez, a coordenação e a capacidade de reduzir o esforço ao mínimo que haviam convertido os tripulantes da Surprise no terror
de seus inimigos. Entretanto, ele teria que encomendar os canhões às antigas brigadas que os manejavam ou mudar sua estratégia. Em vez de tentar debilitar o seu
oponente a distância, procurando derrubar um de seus mastaréus para depois se situar diante da proa ou da popa e fazer uma devastadora descarga e finalmente, se
fosse necessário, abordá-lo, poderia seguir o conselho de Nelson: "Atacar com decisão". Mas Nelson dera esse conselho no início da última guerra, quando os franceses
e os espanhóis eram muito inferiores no manejo dos canhões e na execução das manobras. Contudo, atualmente, se uma embarcação tentasse se aproximar de um barco inimigo
por barlavento quando o vento era fraco e o mar calmo, expunha-se a que este crivasse sua proa com os disparos de uma bateria durante vinte ou trinta minutos sem
lhe permitir responder, pelo que quando chegasse a abordar-se com ele teria tantos danos que poderia ser capturada, quer dizer, o caçador seria caçado. Por outra
parte, Jack fizera as práticas de tiro quando estava ao comando de barcos do rei e ainda que, naturalmente, gostasse de capturar mercantes e barcos corsários do
inimigo, seu objetivo principal era apresar, queimar, afundar ou destroçar seus barcos de guerra. Agora a situação era distinta; agora suas presas mais cobiçadas
eram mercantes ou barcos corsários, intactos se possível, e isso requeria um enfoque diferente. Certamente, sem nenhuma dúvida, ele gostaria de entrar em combate
com um barco francês ou norte-americano de similar potência, um duro combate que não tivesse como motivo a obtenção de ganhos, já que se um barco corsário apresasse
uma fragata inimiga alcançaria a glória. Porém, infelizmente, ainda que a Surprise fosse veloz, sobretudo navegando de bolina, tinha poucas possibilidades de alcançar
a glória porque pertencia a outra era. Só restavam cinco fragatas de vinte e oito canhões na Armada Real, e dessas cinco, quatro já não estavam em serviço. A maioria
das fragatas atuais deslocavam mais de mil toneladas de água e levavam trinta e oito canhões de dezoito libras e, ademais, caronadas; assim que a Surprise tinha
uma potência tão pouco adequada para lutar contra elas como para lutar contra um navio de linha. Levava canhões de doze libras (e se não houvessem reforçado os vaus
de bateria para suportá-los teria que usar canhões de nove libras) e, apesar de sua dotação estar completa, conforme o estipulado pela Armada Real, tinha menos de
duzentos tripulantes, enquanto que as grandes fragatas norte-americanas tinham mais de quatrocentos. Porém, afinal de contas, era uma fragata e seu capitão não alcançaria
a glória se capturava uma embarcação de classe inferior, como um barco correio, ainda que fosse o mais potente, ou uma corveta, tanto se levasse aparelho de navio
como se não. - Talvez seria melhor voltar a pôr as caronadas - disse.
Em outro tempo, além dos canhões de proa, a Surprise só tinha caronadas, alguns objetos pequenos, largos e curtos que se pareciam mais a um morteiro que a um canhão
e eram leves e fáceis de manejar (uma caronada que podia disparar uma bala de trinta e duas libras só pesava dezessete quintais, enquanto que um canhão de trinta
e duas libras pesava trinta e quatro). Isso permitia à fragata lançar em cada bombardeio balas que pesavam conjuntamente 456 libras. Não obstante, não podia disparar
com precisão esse conjunto de balas que pesava 456 libras, e tampouco muito longe, porque eram armas de curto alcance. Mas o manejo de uma caronada não requeria
muita habilidade e, ainda que se lançavam grandes balas produziam um terrível efeito e podiam destruir ou afundar uma presa, se disparassem potes de metralha podiam
cortar a exárcia do inimigo e limpar eficientemente a coberta, sobretudo se estava cheia do marinheiros dispostos a abordá-la. Considerando que em cada pote havia
quatrocentos fragmentos de ferro, uma bateria de catorze caronadas podia disparar mais de quatro mil, e quatro mil pequenas balas cruzando a coberta de um barco
a 1674 pés por segundo produziam um efeito terrível, mesmo quando os marinheiros que as disparavam fossem inexpertos.Talvez essa fosse a melhor solução, ainda que
significaria descartar os aspectos mais importantes de um combate entre dois barcos: colocar com grande habilidade as armas na posição correta, disparar os canhões
mais precisos por separado e a grande distância, aumentar a freqüência dos disparos a medida que o inimigo se aproximava e crivá-lo no paroxismo da batalha, quando
ambas embarcações lutavam penol a penol entre espessas nuvens de fumaça e incessantes gritos.
"Mas isso faz parte de um mundo completamente diferente - se disse -, e não acredito que tenha a sorte de voltar a vê-lo; contudo, comunicarei a Stephen o que penso."
Quando era capitão de barcos do rei, Jack Aubrey nunca havia falado com ninguém deste tipo de assuntos. Sempre havia guardado silêncio sobre as questões estratégicas
e as táticas adequadas para sustentar um combate, ainda que não porque seguisse nenhuma teoria, mas porque lhe parecia óbvio que um capitão estava ao comando de
um barco para mandar e não para pedir conselho ou presidir um comitê. Conhecia capitães que formaram conselhos para consultá-los sobre assuntos de guerra, e o resultado
quase sempre fora uma prudente retirada ou a falta de um ataque decisivo. Mas agora as coisa eram diferente: já não estava ao comando de um barco do rei mas de um
que pertencia ao doutor Maturin. Em toda sua mente, salvo na parte mais superficial, tinha a idéia de que era impossível que Stephen pudesse ser o dono da Surprise;
mas isso era um fato, e ainda que desde o início ambos haviam acordado que ele atuaria como antes, quer dizer, que só o capitão teria a autoridade, achava justo
consultar algumas coisas com o dono.
- Sei muito pouco de batalhas navais - disse Stephen depois de ter escutado atentamente os argumentos contrários e a favor das caronadas -, pois apesar de ter participado
em Deus sabe quantas, quase sempre o fiz em um lugar afastado, abaixo da linha de flutuação, esperando aos pobres feridos ou atendendo-os, assim que não vale a pena
que expresse minha opinião. Mas neste caso lhe perguntaria: Por que não tenta assobiar e chupar cana? Por que não adestra os novos tripulantes no manejo dos grandes
canhões durante mais tempo e depois usa as caronadas se vê que isso não dá resultado? Sugiro isso porque, se não entendi mal, não quer que umas brigadas sejam formadas
só por antigos tripulantes da Surprise e outras só pelos novos tripulantes.
- Exatamente. Essa seria a melhor maneira de fazer uma inadequada divisão entre os tripulantes, pois de um lado estariam os bons artilheiros e do outro, os desajeitados.
Provavelmente terão ciúmes uns dos outros, ainda que, assombrosamente, demostraram pouco até agora, e tenho que fazer qualquer coisa para evitar que aumentem, pois
só um barco em harmonia é um barco de guerra eficiente. Mas fazer disparos alegremente, sem ter nada em conta, somente para que os artilheiros desajeitados cheguem
a ser bons seria muito caro.
- Escute-me, meu amigo - disse Stephen -. Admiro seu afã por poupar inclusive um penique a nossa sociedade; mas também o deploro, porque em ocasiões o dinheiro poupado
é menos importante que o fim ao qual se destina. Às vezes me parece que tenta poupar mais que o devido, mais que o conveniente para nossa causa. Não vou lhe ensinar
nada sobre sua profissão, mas se gastar uma dúzia de barris de pólvora diários pode ajudar a tomar uma decisão sobre uma questão tão importante, eu lhe peço por
favor que os gaste. Por um lado, muito amiúde hás comprado pólvora para seus barcos com o dinheiro obtido com as presas; por outro, qualquer observador imparcial
estimaria que esse gasto é insignificante. Além disso, ao pensar nos canhões e nas outras peças de artilharia, deve considerar que poupamos muito graças à malícia
de Pullings, pois não tivemos que comprar as caronadas.
Tom Pullings tinha tanta malícia em terra como seu capitão, e, como a ele, o haviam enganado vilmente. Mas conhecia muito bem o que poderia se chamar o mundo oculto,
o dos medíocres oficiais de baixa graduação, como os ajudantes de contramestre e seus assistentes, que sempre ficavam com um pé na costa e outro no mar, e ainda
que em todos os assuntos ordinários era muito honesto pensava, como muitos de seus amigos, que as propriedades do Governo eram um mundo à parte. Acompanhara Stephen
quando a Armada vendeu a Surprise, comeu suntuosamente com muitos amigos no porto e, quando soube com certeza qual era o destino da fragata, falou em particular
com os que estavam encarregados por ela e lhes disse que os canhões eram antiquados, que tanto o segundo reforço como o astrágalo da boca eram diferentes do estabelecido
pela regulamentação atual e, além do mais, que não lhe surpreenderia que depois de um considerável desgaste estivessem em tão más condições que só pudessem lançar
lascas de metal ou talvez não pudessem ser usados nunca mais. Seus amigos o entenderam perfeitamente e, apesar do dono da Surprise não ter recebido dinheiro em troca
de que a fragata levasse seus própios canhões até Shelmerston, entregaram-lhe como gratificação um conjunto de caronadas também defeituosas que agora eram uma pequena
parte das cento e sessenta toneladas de lastro e estavam armazenadas na parte anterior e posterior do coberta inferior, em um lugar relativamente alto com o fim
de que lhe dessem estabilidade.
- A verdade é que não - disse Jack, sorrindo, e depois de um momento continuou -: O conceito de moral dos membros da Armada é raro, e em alguns casos me custaria
defini-lo. Apesar disso, acredito que quase todos os marinheiros sabem onde traçar a linha entre um ato aleivoso e um tradicional acordo amistoso. Ademais, Tom partiu
com algo, mas não deixou sem nada os outros, pelo menos não sem lascas de metal, e, em minha opinião, esse não é um ato delitivo. Isso me lembra outra coisa: os
castigos em um barco de guerra privado. Já sabe o que penso com respeito aos açoites e que odeio ter que ordenar que os dêem. Ocorreu-me pôr em prática o que costuma
ser feito neste tipo de barco, que os própios marinheiros ditem a sentença.
- Imagino que não serão muito duros com seus companheiros - anotou Stephen.
- Mas são sim, sabe? Nos grandes motins de 1797, os marinheiros mantiveram a ordem em seus barcos, e se algum tinha má conduta, quero dizer, má conduta de acordo
com seu critério, preparavam um gradeado para açoitar-lhe. Não era raro que a sentença fosse de duzentas, trezentas ou quatrocentas chicotadas.
- Mas me parece que você decidiu não fazê-lo.
- Sim. É muito difícil, como bem sabe, que uma tripulação combinada se dê bem no início, e penso que se houver discórdia entre os marinheiros veteranos e os novos,
em caso de que tenham que ditar sentença contra um dos antigos tripulantes da Surprise poderiam impor-lhe um castigo excessivamente duro, e eu não gostaria de ver
nenhum de meus homens açoitado de uma forma assim.
- Confiemos em que o fato de disparar juntos e constantemente os canhões lhes convertam em amigos. Amiúde observei que os atos violentos e o ruído estrondoso fomentam
a camaradagem e levantam os ânimos.
Quanto aos atos violentos e o ruído estrondoso, o cirurgião da Surprise e seu ajudante tiveram ocasião de senti-los nos dias seguintes. Jack tomou a palavra de Stephen
e não só os tripulantes dedicaram a última parte da guarda da manhã a fazer fogo de verdade, como quando recebiam a ordem de ocupar seus postos faziam preparativos
de combate e algumas vezes disparavam de uma só vez as baterias de ambos os lados, cujas chamas atravessavam uma densa nuvem de fumaça que parecia um vulcão adormecido.
Martin era um homem tranqüilo e Maturin era quase igual. Ambos detestavam aquele ruído ensurdecedor, não só o que faziam as repetidas explosões como também o produzido
pelas carretas quando rodavam rapidamente para sacar ou guardar os canhões e o ruído dos passos apressados dos marinheiros que iam e vinham da santa-bárbara e dos
paióis das balas. Também detestavam as letais peças de artilharia e lhes molestava muito que tudo isso durasse até quase a entrada da guarda do segundo quartilho,
em um momento em que a fragata entrava em águas que tinham muito interesse para um naturalista. O ruído a bordo da Surprise era tão forte que nenhuma ave, nenhuma
medusa nem nenhum caranguejo do mar permanecia nas águas rodeadas pela mesma linha do horizonte que ela; e, além do mais, eles tinham que ficar na coberta inferior,
no posto que deviam ocupar durante as batalhas e também nas práticas, já que muitos desafortunados marinheiros eram levados ali com hematomas, queimaduras, dedos
das mãos e dos pés triturados e, às vezes, inclusive com alguma perna quebada.
Em ocasiões Stephen subia pela escada até a escotilha de popa e olhava para da proa para a popa para observar a atividade do convés. Sentia satisfação ao ver Jack
correndo de um canhão para outro entre a fumaça, umas vezes iluminado pelas grandes línguas de fogo e outras com o aspecto de um enorme fantasma. Jack dava muitos
conselhos aos gritos para os artilheiros ou indicava para os mais lerdos a posição correta ou segurava um aparelho para sacar um canhão ou movia uma alavanca para
apontar outro, sempre com um olhar atento, e punha uma expressão satisfeita quando a bala atingia o alvo e os artilheiros festejavam.
As práticas provocavam muita tensão, pois eram uma excelente imitação de uma batalha real. Os canhões disparavam com tanta rapidez que logo começavam a se mover
caprichosamente, a dar grandes saltos e a retroceder com grande violência. Em uma ocasião, rompeu uma retranca e o aparelho que o sustentava o Billy o Saltitante
por um lado e, como havia forte marejada e soprava o vento do sudoeste, o bloco letal que formavam o canhão e a carreta teria rodado sem controle pelo convés se
Padeen, que era extraordinariamente forte, não o houvesse calçado com um alavanca até que seus companheiros lograram amarrá-lo. Trabalharam tão rápido como puderam,
mas Padeen teve que ficar todo o tempo fazendo força com a mão esfolada sobre o canhão quente, tão quente que o sangue fazia um som sibilante ao correr pelo metal.
Bonden, o chefe da brigada, levou-o para baixo chorando de dor, e enquanto avançavam se ouvia como o consolava com a voz forte e clara que costuma ser usada com
os enfermos, os estrangeiros (Padeen nesse momento entrava em ambas classificações) e outras pessoas que não são exatamente um nem outro.
- Não se preocupe, companheiro - tentou tranqüilizá-lo -. O doutor lhe curará imediatamente. Que aspecto mais raro tem! Cheira a bife grelhado, companheiro. Estou
seguro de que ele salvará sua mão e lhe acalmará a dor.
Depois, estendendo o braço para cima porque Padeen era muito mais alto, enxugou suavemente as lágrimas que corriam por suas bochechas.
O doutor combateu a dor, uma dor terrível, dando-lhe uma considerável dose de láudano, a tintura de ópio, um de seus remédios mais apreciados.
- Aqui tem a substância mais parecida com a panacéia que existe - disse em latim para seu ajudante, enquanto sustentava no ar um frasco com um líquido ambarino -.
Às vezes eu mesmo a tomo e comprovei que tem um admirável efeito em casos de insônia, ansiedade mórbida, feridas dolorosas, dor de dentes e de cabeça e inclusive
enxaqueca.
- Poderia ter acrescentado "em caso de ter o coração partido", mas continuou -: Como provavelmente terá notado, administrei ao paciente uma dose de acordo com seu
peso e a intensidade da dor. Dentro de pouco, se Deus quiser, verá como o rosto de Padeen recobra seu habitual gesto benévolo e, alguns minutos depois, como cai
sem dar-se conta em um estado de inconsciência produzido pelo ópio. Este é o componente da farmacopéia que tem mais valor.
- Tenho certeza de que é - disse Martin -. Porém, não é censurável tomar ópio? Não há a probabilidade de ficar viciado?
- A censura somente a fazem alguns poucos homens descontentes, sobretudo os jansenistas, que também condenam o vinho, a boa comida, a música e a companhia feminina.
Inclusive são contra o café, por Deus! Suas objeções só são válidas no caso de algumas pobres almas que têm pouca força de vontade, as quais também podem se converter
com facilidade em vítimas das bebidas alcoólicas, praticamente carecem de moral e amiúde têm outros vícios. Nos outros casos não causam mais dano do que fumar. -
Colocou a tampa de cortiça no frasco, comprovou que tinha armazenadas dois garrafões dos quais poderia voltar a enchê-lo e prosseguiu -: Faz um tempo que deixaram
de dar esses horríveis golpes, assim que poderíamos subir ao castelo de popa para fumar um charuto. Acho que ali não porão obstáculos a um pouco mais de fumaça.
Como se sente agora, Padeen?
Padeen, a quem o latim havia apaziguado sua mente e o remédio, sua dor, sorriu, mas não disse nada. Quando Stephen repetiu a pergunta em irlandês sem melhores resultados,
pediu a Bonden que lhe amarrasse o braço na maca para que não o movesse e depois se encaminhou para o castelo de popa.
Assombrou-se de que estivesse vazio, mas por fim viu West nos amantilhos do pau mezena olhando fixamente para o cesto da gávea do maior, onde o capitão e Pullings
tinham seus telescópios dirigidos para barlavento.
- Tal vez hajam visto uma andorinha do mar Cáspio - disse Martin -. O senhor Pullings viu seu desenho no livro de Buffon que eu tinha aberto na câmara dos oficiais
e disse que achava tê-las visto com freqüência nestas latitudes.
- Vamos subir pela exárcia e lhes faremos uma surpresa - propôs Stephen, sentindo de repente uma extraordinária alegria.
A tarde era muito agradável e fresca, o céu estava dourado para o oeste, formavam-se ondas de intenso colorido azul e espuma branca nos lados da fragata e em seu
rastro. Vários antigos tripulantes da Surprise, que haviam sido pacientes seus durante muitos anos, aproximaram-se da popa correndo pelo corrimão e gritando:
- Não olhe para baixo, senhor!
- Não se agarre aos enfrechates! Agarre-se com as duas mãos aos amantilhos, os cabos grossos!
- Devagar, senhor!
- Faça o que faça, não se solte durante o balanço!
Pouco depois alguns angustiados marinheiros agarraram seus pés por baixo e os colocaram cada vez mais acima até situá-los a uma grande altura, já que o mastro maior
da Surprise era o de um navio de trinta e seis canhões. Imediatamente dois rostos radiantes apareceram pela boca de lobo do cesto da gávea.
- Não se apressem; suas pernas ainda não se adaptaram ao movimento do mar! Este não é momento para jogos. Dê-me a mão.
Então subiu a Stephen para a plataforma e depois a Martin. Stephen se assombrou uma vez mais da força de Jack, pois ainda que seu peso era razoável, 125 libras escassas,
Martin era muito mais robusto e, apesar disso, Jack o havia subido de um puxão e sem esforço, como se pegasse pelo cangote um cachorro de tamanho médio, passando-o
pela boca de lobo e depois largando-o de pé no piso.
O que olhavam não era uma andorinha do mar Caspio, mas um barco que não estava muito distante.
- Que presunsos são os capitães das corvetas de dezoito canhões! - exclamou Pullings em tom incômodo -. Olhem como navega essa a toda vela! Só lhe falta desdobrar
as monterillas{1}! Aposto meia coroa que em cinco minutos perderá as alas da joanete de proa.
- Gostaria de vê-la, senhor? - perguntou Jack, oferecendo a luneta para Martin.
Martin o aproximou de seu único olho e imediatamente viu um petrel, mas guardou silêncio. Depois de uma pausa, exclamou:
- Há disparado um canhão! Posso ver a fumaça! Mas não se atreverá a nos atacar, não é?
- Não, não. É um dos nossos - afirmou, e nesse momento ouviram o canhonaço -. É um sinal para que paremos.
- Não seria possível fingir que somos surdos e começar a navegar em direção contrária? - inquiriu Stephen, que temia outro encontro.
- A maioria dos capitães de barcos de guerra privados se esquivam dos que realizam um serviço público - respondeu Jack -, e se me ocorreu fazer isso mesmo quando
a avistamos. Mas como já virou cinqüenta graus para barlavento e trocou de rumo, pensei que provavelmente nos havia reconhecido, e se não nos detemos depois de ouvir
um canhonaço, e este é o segundo, é possível que dê um mau informe sobre nós, e então poderíamos perder a patente de corso. A Surprise é muito fácil de se reconhecer
por seu mastro maior. Pode ser reconhecida a dez milhas de distância, como um urso com um dedo polegar inchado. Tom, acho que deveríamos usar o pequeno mastaréu
de reserva para navegar regularmente e colocar este para fazer determinadas perseguições.
Pullings não respondeu. Inclinou-se mais e mais para frente com o telescópio até que o apoiou na grade do cesto da gávea para poder enfocá-lo melhor, e imediatamente
gritou:
- Senhor, senhor, é a Tartarus!
Jack pegou seu telescópio e depois de um momento, no tom que empregava quando expressava sua alegria, exclamou:
- Sim! Posso ver o chamativo colorido azul de seu mastaréu - acrescentou e, depois de ouvir outro canhonaço, prosseguiu -: Já se identificou, e dentro de pouco começará
a fazer sinais. William sempre teve habilidade para usar as bandeiras.
Então, projetando a voz para abaixo, gritou:
- Senhor West, por favor, vamos nos aproximar da corveta com as maiores desdobradas! E diga ao encarregado dos sinais que se prepare!
Depois, quando viu aparecer uma distante fileira de bandeiras, seguiu falando com quem estava no cesto da gávea.
- Sim, aí está. Que fileira! Provavelmente poderá lê-la sem o livro, Tom.
Pullings fora o tenente encarregado dos sinais sob o comando de Jack e recordava grande parte da lista de memória.
- Tentarei, senhor - disse e em voz alta, lentamente, leu -: "Bem-vindos...". Repito: "Bem-vindos... Alegro-me em ver-lhes... Rogo capitão jantar... Tenho mensagem...
Espero...". Agora está soletrando algo: "DOT". O guarda-marinha que faz os sinais não sabe ortografia...
No castelo de popa, o ajudante do suboficial encarregado dos sinais, um marinheiro de Shelmerston, perguntou:
- Que querem dizer os da corveta com DOT?
- Se referem ao nosso médico, que não é um barbeiro-cirurgião comum mas um autêntico doutor com peruca e bastão de empunhadura de ouro.
- Não sabia - disse o marinheiro de Shelmerston, fixando a olhar no cesto da gávea.
- Não sabe muito, companheiro - disse o suboficial, mas não em tom depreciativo.
- A corveta que se aproxima está sob o comando do senhor Babbington - disse Stephen para Martin -. Lembra-se do senhor Babbington daquela partida de críquete?
- Oh, sim! - respondeu Martin -. Fez alguns cortes muito oportunos, e o senhor me disse que havia jogado com a equipe de Hambledon. Ficarei encantado em voltar a
vê-lo.
Pouco depois voltou a vê-lo. As duas embarcações se puseram em pairo, mas não muito perto uma da outra porque havia marejada. O capitão da Tartarus, muito cortesmente,
situou-a a sotavento da fragata e, com a cara avermelhada pela alegria e os esforços, gritou para Jack que não descesse os botes dos botalós porque a Tartarus tinha
nas alhetas gavietes que desceriam o cúter em uma fração de segundo.
- Muito bem, William! - gritou Jack em tom tranqüilo, com uma voz que pôde ser ouvida do outro lado da faixa de água de cem jardas que os separava -. Mas minha visita
será curta porque tenho que percorrer uma longa rota para o sul e é provável que faça mau tempo!
O cúter desceu, produzindo salpicos, e transportou aos convidados pela faixa de água. Jack esqueceu que não estava em situação de dar ordens e, para evitar as cerimônias,
disse ao guarda-marinha que o governava:
- Pelo costado de bombordo, por favor.
Mas se corrigiu quando engataram o croque do cúter e deu preferência a Stephen e Pullings, que eram oficiais do rei a momentânea situação estranha foi esquecida
devido aos gritos do doutor Maturin, que protestava com indignação porque haviam preparado uma guindola para que subisse a bordo seco e sem angústia.
- Isto é uma injúria! Por que fizeram distinção comigo? Acaso não sou um veterano navegante, um curtido homem do mar?
Mas seu tom mudou porcompleto quando o deixaram sobre a coberta e viu que seu antigo companheiro de tripulação James Mowett estava ali para receber-lhe.
- Ah, James Mowett, quanto me alegro de ver-lhe! Porém, o que faz aqui? Achava que era o primeiro oficial da Illustrious.
- Eu sou, senhor. William Babbington vai levar-me para Gibraltar.
- Claro, claro! Diga-me, como vai seu livro?
A alegria que se refletia na cara de Mowett diminuiu ligeiramente de intensidade.
- Bem, senhor, os editores são uns malditos... - começou a dizer.
Nesse momento Babbington o interrompeu para dar as boas-vindas ao doutor, e depois conduziu a todos para a cabine enquanto falava e ria. Lá encontraram a senhora
Wray, uma jovem gorducha e de pernas curtas que agora parecia muito bonita porque havia se ruborizado ao sentir uma mistura de sentimentos, alegria por vê-los e
vergonha porque eles a haviam visto. Nenhum dos presentes se surpreendeu, pois todos se conheciam muito bem, especialmente os três mais jovens, que haviam viajado
com Jack como guardas-marinhas quando estava ao comando de seu primeiro barco, e sabiam que Babbington amava a Fanny Harte (que era o nome dela antes de se casar
com o senhor Wray), mais que a qualquer outra de suas inumeráveis amadas. Era possível que lhes parecesse um pouco arriscado que Babbington navegasse em alto mar
com a esposa do vice-secretário interino do Almirantado, mas sabiam que era rico em terra e que os votos de seus familiares no Parlamento eram suficientes para protegê-lo
e conseguir que só o admoestassem por má conduta profissional. Ademais, todos sabiam mais ou menos que reputação Wray tinha. Ali a única pessoa surpresa, preocupada
e incômoda era Fanny. Como Jack Aubrey a aterrorizava, sentou-se o mais longe possível dele, entre Stephen e um canto. Entre o ruído das potentes vozes Stephen a
ouviu murmurar:
- ... Parece uma situação estranha, não é?, e quase comprometedora, porque estou muito longe de terra... Sinto-me incômoda... Vim por razões de saúde... O doutor
Gordon insistiu em que devia fazer uma curta viagem pelo mar... Naturalmente, minha criada me acompanha... Oh, sim! Alegro-me de ver ao capitão Aubrey bastante bem
depois do que o pobre homem deve de ter passado... Parece um pouco mais velho, mas disso ninguém se assombraria, e esquivo... Terei que sentar-me junto a ele durante
a janta? Bem, William tem uma carta de sua esposa e talvez isso suavize sua atitude.
- Minha querida Fanny - disse Stephen -, ele não necessita suavizar sua atitude. Sempre sentiu simpatia pela senhora, e ainda que alguém pudesse lançar a primeira
pedra, nunca seria ele que faria. Porém, diga-me uma coisa: a última vez que falamos do capitão Babbington a senhora se referiu a ele como Charles, o que me assombrou
apesar de saber que tem vários nomes e que prefere esse aos outros.
- Não, não! - exclamou Fanny, ruborizando outra vez -. Esse dia estava perturbada e minha mente era, por assim dizer, um mar de confusões. Haviamos ido ao baile
de fantasias na casa da senhora Graham, eu fantasiada de ovelha escocesa e William de herdeiro ao trono. Oh, meu Deus, como ele ria! Por isso segui chamando-lhe
de Charles depois. Tinha um aspecto tão bonito com suas anaguinhas! Acho que o senhor pensará que sou muito tonta e simples, mas me alegro de que me haja dito que
o capitão me tem simpatia. Agora me sentarei junto dele com prazer. Espero que o pudim de sebo não esteja pouco cozinhado. William insistiu em que o preparassem
para ele e garante que se pode fazer num instante em uma panela de pressão, mas quando eu era menina, os pudins demoravam horas para cozinharem.
A janta foi muito alegre, e nela abundaram os risos e as anedotas. Ademais, do ponto de vista puramente culinário, para quem vinha da Surprise pareceu sumamente
oportuna. Nesse momento nem o capitão nem os oficiais da fragata tinham cozinheiro; Jack com o fim de poupar, Stephen por distração e os oficiais porque estavam
na miséria não haviam subido a bordo suas própias provisões, assim que tinham que viver das da fragata, e como ainda estava em águas britânicas, não bebiam grogue
senão cerveja de má qualidade, que cada dia ficava pior. Na grande cabine a única refeição abundante era o desjejum, o que Killick havia conseguido graças a sua
autoridade. Durante a janta Babbington contou que a Tartarus havia perseguido por dois dias e duas noites uma escuna norte-americana muito veloz que provavelmente
tentava violar o bloqueio e chegar a Brest ou Lorient.
- Mandei amarrar guindalezas e cabos delgados aos topes como o senhor costumava fazer, senhor - relatou -. E realmente acredito que a teríamos alcançado se a gávea
maior e o velacho não se soltassem das relingas ao mesmo tempo. Mas pelo menos a obrigamos a se desviar de sua rota por trezentas ou quatrocentas milhas para o sul,
e terá que voltar a passar as mesmas penalidades antes de avistar a costa francesa.
- Senhor Mowett, o que ia me dizer dos editores? - perguntou Stephen durante uma pausa na qual faziam lugar na mesa para o pudim e se passavam uns para os outros
o vinho que o acompanharia (vinho de Fontignan e Canary).
- Ia dizer-lhe que são uns malditos vadios.
- Que horror! - exclamou Fanny -. E vão a locais especiais ou...?
- Quer dizer que são impontuais - disse Babbington.
- Oh!
- Sim. Supunha-se que o livro ia sair no glorioso primeiro de junho, mas adiaram a saída para o dia de Trafalgar, e agora dizem que atrairá mais ao público se for
publicado no aniversário de Camperdown. Contudo, isto tem a vantagem de que posso polir o que escrevi e acrescentar um novo poema.
- Recite algum fragmento do novo poema, Mowett - rogou Pullings.
- Sim, por favor! - pediram Babbington e Fanny.
- Bem - disse Mowett com uma mistura de modéstia e satisfação -. É bastante comprido. Com sua licença, senhora - acrescentou, fazendo uma inclinação de cabeça para
Fanny -, só recitarei os versos do final. O poema faz referência a uma batalha e estes versos narram o momento em que começa a matança:
Rápido deslizam pelo mar as ligeiras esquadras
E ambas, olhando-se com desaprovação, agora muito perto estão
"Rápido, façam preparativos de combate", grita o
 contramestre com sua escandalosa voz.
"Rápido, façam preparativos de combate", replica
uma voz em cada um dos navios cheios.
As faces se tornam pálidas pelo extraordinário medo.
Tudo se detém um momento em meio de um
grande assombro, de um sepulcral silêncio e de
inconscientes olhares.
Um estrondo que se produziu em algum lugar da proa e que se parecia com um disparo de um canhão de doze libras lhe interrompeu, mas só por um momento.
A morte vai de um navio para outro com sua letal guadanha.
Em todas os castelinhos os demônios da morte se retorcem
e os demônios da matança deslizam pela
massa de água pintada de púrpura,
abrem suas destruidoras mandíbulas e bebem com
fruição o sangue que corre...
- Senhor, com sua licença! - irrompeu um assustado guarda-marinha alto e pálido da porta da cabine -. O senhor Cornwallis me ordenou lhe dizer que a máquina de pressão
estourou.
- Há alguém ferido? - perguntou Babbington, pondo-se de pé.
- Acredito que ninguém morreu, senhor, mas...
- Desculpem-me - disse Babbington a seus convidados -. Tenho que ir dar uma espiada.
- Detesto os inventos estrangeiros - interveio Fanny durante a angustiante pausa.
- Não morreu ninguém - explico Babbington ao regressar -. Ademais, o cirurgião diz que as queimaduras que têm os homens não são importantes e que se curarão dentro
de um mês, mais ou menos. Mas lamento ter que dizer, senhor, que o pudim se espalhou uniformemente por cima do cozinheiro, seus ajudantes e a coberta. Eles pensaram
que ele cozinharia mais rápido se pusessem uma tampa de ferro na válvula de segurança.
- Foi uma lástima o que ocorreu com o pudim - disse Jack quando estavam de novo na cabine da Surprise -. Mas o jantar, em conjunto, foi um dos que mais desfrutei
em minha vida. E ainda que Fanny Harte não seja Escila nem Caribdis, ambos se amam muito, e afinal de contas isso é o que importa. Quando William se dirigia para
Pompey, passou por Ashgrove Cottage para perguntar a Sophie como estava e ela lhe deu uma nota para que me entregasse em caso de que nos encontrassemos. Em casa
todos estão bem e minha sogra é menos incômoda do que poderia imaginar. Diz que me maltrataram e que tanto Sophie como eu merecemos sua benevolência. Não é que haja
pensado nem por um momento que sou inocente, senão que aprova o que acredita que fiz. Diz que faria o mesmo se tivesse oportunidade, como qualquer outra mulher que
preze o seu capital... Isso que está tocando não é A marselhesa, não é?
Há um tempo, Stephen estava tocando suavemente duas ou três frases musicais com variações, de uma forma semiconsciente que não obstava sua capacidade de falar nem
de escutar.
- É, ou tenta ser, a passagem da obra de Mozart que tinha em mente o músico francês quando a compôs. Mas me esqueci de algo ...
- Stephen, não toque nem uma nota mais, eu lhe rogo - pediu Jack -. Se não se me escapa, poderei interpretá-lo exatamente.
Tirou de um puxão o pano que cobria o estojo de seu violino, o afinou com rapidez e começou a interpretar justamente esse fragmento. Depois de alguns momentos, Stephen
o acompanhou e, quando os dois se sentiram totalmente satisfeitos, deixaram de tocar. Depois de afinar bem os instrumentos e atritar as cordas com colofônio, interpretaram
de novo a passagem, a tocaram ao revés, fizeram variações e floreios e às vezes um improvisava uma melodia e o outro o seguia, e vice-versa. Ficaram tocando até
que um solavanco a sotavento quase fez Stephen cair do assento, o que fez com que seu violoncelo emitisse um chiado.
Ainda que Stephen se recompôs imediatamente e as cordas e o arco não sofreram danos, desapareceu a fluidez rítmica e pararam de tocar.
- É melhor assim - sentenciou Jack -. Dentro de pouco ia começar a desafinar. Estou esgotado porque durante as práticas com os canhões corri de um lado para outro
sem parar, fazendo o trabalho que geralmente realizam meia dúzia de guardas-marinhas, cada um encarregado de um grupo de canhões. Nunca me dera conta de que essas
pequenas bestas eram tão úteis. Agarre-se forte! - acrescentou enquanto segurava Stephen, que ia cair de novo, ainda que desta vez estava de pé -. Suas pernas ainda
não se adaptaram ao movimento do mar?
- Não é uma questão das pernas se adaptem ao movimento do mar - respondeu Stephen -. Os movimentos da fragata são bruscos e violentos. Nestas circunstâncias, até
um crocodilo cairia se não tivesse asas.
- Profetizei que ia fazer mau tempo esta noite - disse Jack, caminhando para o barômetro -, mas talvez seja pior do que pensei. É conveniente que nos preparemos
para a tormenta também aqui abaixo. Killick, Killick!
- Senhor? - disse Killick, assomando-se imediatamente com um pedaço de tecido alcochoado sob o braço.
- Guarde no paiol do pão o violoncelo do doutor e meu violino junto com esse artigo.
- Sim, senhor. Guardar no paiol do pão o violoncelo do doutor e seu violino junto com o "objeto".
No início de seu matrimônio, Diana havia presenteado Stephen com uma magnífica mostra da arte e do engenho dos fabricantes de escrivaninhas. Podia ser um atril para
as partituras, e geralmente se usava como tal, mas também podia se converter, por meio de várias alavancas e tabuleiros reclináveis, em um lavatório, em uma pequena
mas útil escrivaninha, um estojo de remédios ou uma estante. Ademais, tinha em total sete gavetas e compartimentos secretos e continha um astrolábio, um relógio
de sol, um calendário perpétuo, muitos frascos de vidro trabalhado e escovas e pentes do marfim. Mas o que mais Killick gostava era que as dobradiças, os adornos
das fechaduras, as molduras e chapas de proteção das portas, as tampas dos frascos e todos os outros accesórios eram de ouro maciço. Killick o venerava (o pedaço
de tecido alcochoado era o primeiro dos três envoltórios com que o protegia do mau tempo) e pensava que o nome que o capitão lhe dava era inapropiado e tinha conotações
depreciativas. Achava que "objeto" era o nome adequado, já que não tinha nenhuma relação com os urinóis mas tinha muita com a santidade, por exemplo em "objeto sagrado",
e há anos tratava de impô-lo.
Jack permaneceu ali alguns momentos, mexendo-se levemente com o balanço e o cabeceio. Tinha os lábios franzidos como se fosse assobiar, mas não tinha em sua mente
nenhuma melodia senão um conjunto de cálculos relativos à posição, as correntes, a força do vento e a mutável pressão barométrica, e os comparava com os do passado
imediato e com muitos outros de similar natureza feitos nessa parte do Atlântico. Pôs uma casaca curta, subiu ao castelo de popa e voltou a fazer cálculos, de maneira
mais instintiva, em contato direto com o vento e o mar. Os marinheiros já haviam baixado os mastaréus, as escotilhas já estavam tapadas com barras, as lanternas
com portinhola colocados e os botes presos com cabos duplos. Então disse a Davidge:
- Quando chamarem os homens da guarda de bombordo, ordene-lhes rizar as gáveas. Avise-me se o vento mudar. O capitão Pullings vai substitui-lo, não é assim?
- Sim, senhor.
- Então, comunique-lhe o que eu disse. Boa noite, senhor Davidge.
- Boa noite, senhor.
Quando regressou à cabine, comentou:
- Provavelmente é esta a tempestade a que me referia quando disse que uma batalha ou uma tormenta uniam fortemente uma tripulação mista. Queria não ter falado como
um tonto. Queria que ninguém tivesse achado que desejava uma tormenta realmente violenta.
- A tataravó de meu padrinho, que vivia em Ávila, em uma casa que mostrarei a você e a Sophie quando a guerra acabar, conheceu santa Teresa, e a santa lhe disse
que se derramavam mais lágrimas pelos dons concedidos que pelos negados.
CAPÍTULO 3
Era realmente a tormenta que havia pedido em suas preces. Durante três dias o vento aumentou de intensidade e mudou de orientação até que por fim se fixou ao chegar
ao este-nordeste e ficou soprando sem variar um só grau durante duas guardas. Depois começou a rolar de forma errática para o leste e o oeste, ganhando mais força
em cada vez, enquanto a Surprise avançava com o velacho aferrado e com uma vela de mau tempo aberta no estai do pau mezena. Foi então, pouco depois das três da madrugada,
muito avançada a guarda de meia e quando a chuva caía como um grosso manto sobre o convés, quando Thomas Pullings saiu da maca, pôs a capa de lona alcatroada e subiu
a escada para ver como Davidge contornava o temporal. A maioria dos marinheiros de guarda estavam no convés, sob a escada do castelo, protegendo-se da chuva, dos
jorros de água do mar e da espuma, mas os quatro homens que levavam o leme e o oficial que estava situado atrás deles rodeando com um braço o mastro mezena, as três
coisas asfixiantes lhes batiam de frente e tinham que manter a cabeça alta para poder respirar. Davidge era um marinheiro experiente e competente que havia visto
algumas marejadas terríveis durante sua vida, porém, apesar disso, pondo as mãos ao redor de sua boca e colando-as na orelha de Pullings, gritou:
- Bastante bem, obrigado! Mas pensava em chamar o capitão porque cada vez que vira um pouco, o leme estremece como se os cabos que seguram a prancha deslizassem
por ele ou roçassem em algo.
Pullings se colocou entre os marinheiros que estavam no leme, todos eles de Shelmerston, agarrou as cavilhas e esperou até que uma grande onda fez mudar de bordo
a fragata ao chocar contra ela por sotavento. Então sentiu o conhecido estremecimento, sorriu e gritou:
- Este é um dos ardis que faz quando o tempo é assim. Sempre faz. Podemos deixá-lo descansar em paz.
Nesse momento uma longa série de brilhantes relâmpagos iluminou a parte inferior das negras nuvens e a fragata; ouviram-se ensurdecedores trovões; e o vento rolou
bruscamente, inchando a vela de estai e fazendo mudar de bordo a Surprise cinqüenta graus e avançar para uma parte do mar onde as ondas eram muito maiores e rápidas.
Quando a fragata afundou a proa pela primeira vez as verdes águas chegaram ao castelo. Desceu com tanta força e se inclinou tanto que Jack, profundamente adormecido
na maca depois de trinta e seis horas no convés, foi lançado violentamente contra os vaus que ficavam acima de sua cabeça.
"Duvido que volte a se estabilizar", pensou Pullings. À luz da bitácula podia ver-se a mesma triste expectativa nos rostos dos marinheiros que levavam o leme. Tudo
o que seguiu pareceu ocorrer muito devagar: o gurupés e parte do castelo emergiram como uma negra baleia em meio do redemoinho de espuma, e a enorme massa de água
que estava no convés se lançou para a popa, inundando o castelo de popa e fazendo cair o anteparo da cabine para dentro. Sob a luz dos relâmpagos quase contínuos
podiam ver-se grupos do marinheiros de guarda agarrados às cordas de segurança, que há tempo estavam colocadas de proa a popa entre os canhões. Antes de que a água
terminasse de sair pelos embornais do castelo de popa, Jack Aubrey subiu a escada em camisa de dormir.
- Pode mudar de bordo? - perguntou, e sem esperar resposta pegou o leme.
Pelas leves vibrações que se produziam entre os impactos das sucessivas ondas contra a prancha, soube imediatamente que a fragata respondia como sempre o fizera.
Desceu a vista para olhar a bússola e viu que o sangue que corria pelo vidro da bitácula a havia pintado de vermelho.
- Está ferido, senhor - disse Pullings.
- Maldita seja! - exclamou Jack, virando o leme para esquivar o vento -. Larguem o velacho! Eei, os de proa, movam-se! Soltem os palanquins do traquete!
Esse foi o último dos terríveis e caprichosos açoites da tormenta. Quando a guarda mudou, o vento voltou a rolar até o este-nordeste e levou as nuvens que ocultavam
a lua. Então pôde ver-se um horrível espetáculo: a verga da cevadeira, o botaló da bujarrona e outros haviam caído, a espicha e a verga traquete estavam desprendidas
e o botaló da carangueja, assim como numerosos cabos, estavam rompidos. A situação era deprimente mas não desesperada, pois não havia morrido nenhum marinheiro e
entrara pouca água embaixo, ainda que a cabine estava úmida e quase vazia e carecia de intimidade, pois o anteparo havia caído. Mas na hora do café da manhã a fragata
navegava a uns cinco nós só com as gáveas desdobradas e com um vento entre fraco e moderado. Os fogos da cozinha estavam de novo acesos e Killick recuperara o moedor
de café, que provavelmente alguma absurda rajada de vento arrastou para a bodega quando o ajudante do carpinteiro desceu para ver a sentina.
Jack Aubrey tinha ao redor da cabeça uma sangrenta venda que lhe cobria um olho. Geralmente usava seu comprido e loiro cabelo preso atrás da nuca com uma larga cinta,
mas até agora não havia tido tempo de tirar-lhe o sangue coagulado e as mechas endurecidas apontavam em todas as direções, o que lhe dava um aspecto inumano. Contudo,
sentia-se satisfeito da maneira como os tripulantes haviam se comportado, pois não protestaram pela escassez de provisões nem por passar três dias comendo somente
bolachas e queijo e bebendo cerveja de má qualidade; não vacilaram ao receber a ordem de subir na exárcia; não trataram de esconder-se embaixo, e nunca puseram má
cara. Por isso o olho que lhe restava descoberto tinha um olhar benévolo.
- É assombroso que em tantos anos no mar nunca tenha visto nenhum carpinteiro incompetente - disse durante o café da manhã -. Já vi alguns contramestres, porque
normalmente se comportam como tiranos e deixam os marinheiros maus. Inclusive a alguns condestáveis a quem nem sempre se pode convencer de que aceitem mudanças ainda
que sejam mínimos. Mas a nenhum carpinteiro. Parece que nasceram com o ofício aprendido. O senhor Bentley já reparou a espicha e quase já terminou de colocar o botaló
de bombordo, assim que podemos... Que demônios estão gritando os marinheiros no convés?
Inclinou-se para olhar para frente por debaixo do castelo de popa e viu que todos os marinheiros encarregados de reparar as velas estavam de pé e gritavam para o
serviola que estava no tope.
- Peço desculpas por não ter tocado, senhor - disse Pullings, mas não há nada onde tocar. Há um barco a sotavento, senhor, e ainda não se lhe vê o casco.
- Ainda não se vê o casco? - perguntou Jack -. Então teremos tempo para terminar de tomar o café. Sente-se, Tom, e permita-me servir-lhe uma xícara. Tem um sabor
um pouco estranho, mas pelo menos está quente.
- Sim, está quente, senhor - disse Pullings e depois, voltando-se para Stephen, acrescentou -: Suponho que debe ter passado uma noite horrível, doutor, pois sua
cabine está desfeita, se me permite dizê-lo.
- Admito que houve um momento em que cheguei a me sentir muito mal - confessou Stephen -, quando me pareceu ver em sonhos a um malvado que havia deixado a porta
aberta e que estava exposto a que a umidade me alcançasse. Mas depois me dei conta de que não havia porta e me preparei mentalmente para dormir.
Enquanto terminava o café da manhã, os tripulantes da Surprise guindaram os mastaréus. Logo perceberam que a presa não era importante, porém, apesar disso, Jack
ordenou metodicamente abrir velas até que a Surprise fez aparecer ondas de proa de considerável tamanho e a água que passava sussurrando por seus costados descreveu
uma grande curva e formou uma esteira profunda e reta como se a fragata perseguisse um galeão de Manila. Tinha o vento pela alheta de estibordo e agora só podia
usar abertas as alas baixas. Essa era a primeira vez que Jack a governava desde que haviam saído de Shelmerston e a primeira vez que os novos tripulantes viram o
que ela era capaz de fazer. Para todos os que estavam a bordo lhes agradava sua rapidez, mas não só isso como também sua audácia, a forma com que lançava longe a
água que passava sob a proa. O vento era mais fraco, mas soprava perpendicularmente à corrente e às ondas, provocando que a água fizesse estranhos movimentos; apesar
disso, a fragata se movia pelas agitadas águas com mais leveza do que nenhuma outra embarcação. Quando soaram as quatro badaladas da guarda da manhã, um tripulante
jogou a nacela da barquilha e comprovou que a velocidade era de dez nós e todos deram vivas. Ainda que era pouco provável que houvesse problemas, Jack ordenou que
chamassem os marinheiros para almoçar cedo, mas um grupo de cada vez, e muitos deles regressaram a seus postos com toda a comida que podiam para não perder nada.
Sabiam desde o princípio que a presa era uma embarcação que estava em más condições com velas triangulares, e à medida que se aproximava todos achavam mais provável
que fosse a corveta de Babbington. No traquete, que estava intacto, estavam desdobradas a vela traquete, o velacho, e numerosas bujarronas, e os tripulantes se esforçavam
para pôr um mastro provisório, ainda que isso não serviria de nada, pois ainda que colocassem nele uma vela maior, a fragata não tardaria em ultrapassar ao barco.
Provavelmente teria ultrapassado à Tartarus quando ainda estava intacta, mas assim, em tão más condições e, sobretudo, navegando a um largo, não podia competir com
a Surprise.
- Então isso é que é uma escuna - disse Martin quando ele e Stephen a observavam do castelo -. Porém, como sabe?
- Porque tem dois mastros. Estão tratando de colocar o segundo.
- Mas os bergantins, os sloops, as balandras, as galeotas e os dogres também têm dois mastros. Qual é a diferença?
- O maçarico-real real e o comum têm algumas semelhanças, e os dois têm duas asas, mas os bons observadores percebem a diferença que há entre eles.
- Eles se diferenciam no tamanho, no canto e na faixa ao redor do olho.
- Essas mesmas diferenças, com excessão da voz, encontram-se entre as embarcações de dois paus. Uma pessoa familiarizada com elas distingue imediatamente o equivalente
da faixa ao redor do olho, as linhas das asas e os dedos semipalmados - acrescentou Stephen não sem certa satisfação.
- Talvez eu chegue a distingui-las com o tempo - disse Martin -. Mas também são parecidos os lugres e os barcos destinados à pesca do bacalhau e do arenque - acrescentou
e, depois de meditar, continuou -: É muito estranho que em tantos dias só tenhamos encontrado este barco, sem contar os dois navios de guerra que vimos e os sardinheiros
que encontramos diante do cabo Lizard. Lembro que o canal ficava abarrotado de barcos. Havia enormes comboios que às vezes ocupavam várias milhas, pequenos grupos
de embarcações e barcos isolados.
- Acho que há rotas marítimas estabelecidas de acordo com os ventos e o tempo de um lado a outro do oceano - disse Maturin -. Essas rotas podem ser seguidas sem
preocupação, como um cristão pode caminhar pela rua Sackville, atravessar a ponte Carlisle, passar pelo Trinity College e chegar ao Stephen Green, morada de dríadas
que rivalizam em beleza; contudo, o capitão Aubrey procurou evitá-las, como fizeram, sem dúvida, os barcos dedicados ao contrabando que o desagradável capitão do
cúter procurava. E aposto que essa escuna é um deles.
Maturin estava errado nisso. A escuna era uma embarcação veloz e poderia fazer contrabando, mas alguém que a observasse com mais atenção observaria que parecia uma
presa recuperada, ou a ponto de ser recuperada, pois enquanto os escassos tripulantes se esforçavam para colocar os brandais e a verga da gávea maior, vários homens
mais e três mulheres que estavam junto ao coroamento gritavam e agitavam a mão no ar.
A Surprise se aproximou da escuna, parou junto dela de maneira que impedia que o vento inchasse suas velas e disparou um canhonaço para barlavento. Então a escuna
arriou a bandeira.
- Companheiros de tripulação! - gritou Jack -. Todos sabem os termos de nosso acordo: o homem que roube ou maltrate a algum prisioneiro ou saqueie a escuna será
tirado da fragata e levado ao cúter azul.
Mas a escuna, a Merlin, não era uma presa recuperada, e tampouco um barco corsário independente apesar do que dizia seu capitão, um estadunidense de Luisiana que
falava francês. Dos relatos prolixos e concordantes dos prisioneiros liberados se desprendia que a escuna era a companheira de uma embarcação muito maior, o Spartan,
um barco armado por um consórcio franco-estadunidense que tentava minar o comércio dos aliados com as Antilhas.
Jack conhecia muito bem o Spartan, pois o havia perseguido durante dois dias e duas noites, com bom tempo e também com muito mau tempo. A opinião que tinha de seu
capitão como marinheiro era excelente, e, contudo, surpreendeu-se ao se informar de que durante sua última viagem havia capturado nada menos que cinco presas: dois
barcos de Port Royal carregados de açúcar, que por sua lentidão haviam se separado do comboio ao qual pertenciam durante a noite, e três barcos que faziam o comércio
com as Antilhas com carregamentos ainda mais valiosos, de anil, café, pau campeche, ébano, madeira tintórea e couros, os quais haviam se aventurado a navegar sozinhos
confiando em sua velocidade. E se surpreendeu ainda mais ao saber que atracaram os cinco no porto Horta, em Faial, e haviam embarcado na escuna os seus capitães,
os comerciantes que representavam a companhia e as esposas de alguns deles que os acompanhavam na viagem, para que os levasse para a França, onde deveriam fazer
as diligências necessárias para conseguir o resgate, tanto dos barcos como dos carregamentos.
- Por que não regressou ao seu país rapidamente com um butim tão estupendo? - perguntou Jack -. Nunca havia visto a um barco privado ter tanto êxito em uma viagem
curta... e tampouco em uma longa.
A resposta era óbvia, mas ninguém a encontrou até essa tarde. O capitão da escuna não dava nenhuma informação e seus poucos tripulantes tampouco podiam fazê-lo porque
desconheciam o plano geral. Por outro lado, Jack e Pullings estavam muito ocupados com os antigos e os novos prisioneiros e o aprovisionamento da presa.
O capitão estadunidense, os comerciantes e suas esposas haviam subido a bordo da fragata imediatamente, e o correto era que Jack os convidasse para almoçar; e, além
disso, aproximava-se a hora em que os oficiais costumavam almoçar. Contudo, Jack não dispunha de uma cabine onde poder agasalhá-los e, ainda que a tivesse, não tinha
nada que pôr na mesa.
- Senhor Dupont, agradeceria que me fizesse um favor - disse Jack ao capitão norte-americano quando foi levado discretamente para a popa para que mostrasse a documentação
da Merlin.
- Com prazer farei o que esteja em minha mão, senhor - respondeu Dupont, olhando com desconfiança a figura que tinha diante de si -. Farei tudo o que possa, dentro
de minhas escassas possibilidades.
Os capitães de barcos corsários tinham fama de cruéis e rapaces, e Jack, exageradamente magro e alto, sem se lavar, com cabelos hirsutos e loiros brilhando em sua
cara sem barbear, com a venda ainda mais ensangüentada devido à recente atividade e com mechas de cabelo endurecidos pelo sangue pendurando ao redor da cara como
se fossem de uma peruca de mulher mal pintada, era uma figura imponente, ante a qual haviam retrocedido as esposas dos comerciantes apesar de serem acostumadas à
vida no mar.
- A verdade é que temos escassez de provisões e seria um descrédito para a fragata e para mim ter que oferecer ao senhor e a essas damas uma refeição consistente
em carne de vaca salgada, ervilhas secas e uma cerveja de tão má qualidade que quase não se pode beber.
- Peça-me o que queira, senhor, lhe rogo - disse Dupont, que temia algo muito mais desagradável -. Disponho de muitas provisões, ainda que o chá quase já acabou.
E apesar de meu cozinheiro ser negro, não carece de habilidade. Eu o comprei de um homem que rendia culto ao seu estômago.
Esse era um estranho culto, mas o capitão e os oficiais da Surprise, depois de ter suportado uma tormenta por tantos dias e de ter comido pouco mais que o pão da
fragata durante esse tempo, pensaram que talvez tivesse fundamento. Inclusive os convidados tiveram uma agradável surpresa, pois, apesar do cozinheiro negro sempre
lhes fizera coisas boas, agora havia se esmerado e a torta de maçã era digna de elogio e o vol au vent fez semicerrar os olhos das damas.
Os oficiais da Surprise atribuíram isto à sua alegria e gratidão por Killick. Quanto subiu a bordo, Killick, que era quem se ocupava desse tipo de assuntos por ser
o dispenseiro do capitão, o havia agarrado pelo braço e, ao mesmo tempo que fazia um gesto que indicava a retirada das algemas de um homem, para ocaso dele não estar
compreendendo bem, dissera lentamente:
- O senhor, livre. - queria fazê-lo entender que no momento que pusera um pé em um barco britânico deixara de ser um escravo e tocando-lhe no peito repetiu -: O
senhor, livre.
O cozinheiro negro respondeu:
- Desculpe, senhor, mas meu nome é Smith.
Mas falou tão baixo por medo de ofendê-lo que suas palavras, em meio do alvoroço, quase não se ouviram.
A refeição teve lugar na câmara dos oficiais e Jack Aubrey, agora apresentável, sentou-se em um extremo da comprida mesa e Pullings no outro. Quando por fim terminou,
Stephen e o homem que estava sentado à sua direita foram até o lado de sotavento do castelo de popa, onde fumaram cigarros feitos ao estilo espanhol e conversaram
nessa língua, pois o homem, Jaime Guzmán, era um espanhol originário de Ávila, quer dizer, de Castelo Velho e, além do mais, sócio da companhia gaditana propietária
da maior parte do carregamento de madeira tintórea que um dos barcos capturados levava, o William and Mary. Tagarelava um pouco de inglês, mas há muito tempo não
se comunicava de jeito nenhum com seus captores. Era um homem comunicativo, e depois de semanas sem falar, agora sua loquacidade era quase alarmante.
- Essas mulheres, essas odiosas mulheres, não me deixaram desfrutar disto nem ao menos na viagem de ida - disse, expelindo a fumaça pela boca e pelo nariz -. São
como voluptuosas civetas, mas me parecem muito desagradáveis. Uma vez tive a intenção de ajudá-las a melhorar, mas logo pensei que quem dá pão a cachorro alheio
perde o pão e o cachorro. Nenhuma dessas pessoas teria sido bem recebida em Ávila; a tataravó de seu padrinho nunca teria consentido em recebê-las. - Guzmán falou
da Ávila de sua juventude e isso o levou a fazer comentários sobre a cidade de Almadén, onde seu irmão se ocupava da parte comercial da exploração de minas de mercúrio,
e sobre Cádis, a cidade descuidada e depravada onde Guzmán se estabelecera.
- Dom Esteban - prosseguiu -, eu sou católico, como o senhor, e gosto muito de presunto, mas em Cádis não se pode encontrar presunto. Por que? Porque lá todos são
cristãos novos, metade mouros ou metade judeus. Não é possível dar-se bem com eles, como meu irmão comprovou. São desonestos, têm duas caras e, como a maioria dos
andaluzes, têm uma desmedida ambição por dinheiro.
- Dizem que quem deseja fazer-se rico em um ano morrerá enforcado em seis meses - comentou Stephen.
- Não é freqüente que enforquem essas pessoas tão rápido - seguiu Guzmán -. Mas vou lhe contar o caso de meu irmão. Obviamente, ele tem que mandar mercúrio para
o Novo Mundo, pois sem ele não se pode extrair ouro, e quando a Inglaterra e a Espanha estavam em guerra se enviava em fragatas. As fragatas eram apresadas com freqüência
devido à traição dos malvados funcionários de Cádis, que comunicavam aos judeus de Gibraltar a data em que zarpavam e inclusive a quantidade de bolsas que levavam,
pois o senhor deve saber, Dom Esteban, que o mercúrio se transporta em bolsas de pele de ovelha de meio quintal. Agora que a guerra mudou, não podemos prescindir
das fragatas, e muito menos dos navios de linha; assim que meu irmão, pressionado por todos os lados, depois de esperar durante anos decidiu fretar o mais potente
e confiável barco corsário da costa, um barco que o nome de Azul, de dimensões similares a esta fragata, para levar cento e cinqüenta toneladas para Cartagena. Cento
e cinqüenta toneladas, Dom Esteban! Seis mil bolsas! O senhor pode imaginar seis mil bolsas de mercúrio? - Ambos estiveram alguns momentos tratando de imaginar seis
mil bolsas de mercúrio e depois Guzmán continuou -: Mas me parece que esses homens agiram agora com a mesma má fé. O capitão do Spartan sabia muito bem que o Azul
ia zarpar há oito dias e que vai fazer escala nos Açores.Talvez já a tenha pegado. Mas o importante é outra coisa, algo que sei porque os oficiais do Spartan são
menos discretos que o senhor Dupont: que no final do mês a fragata norte-americana Constitution e uma corveta chegarão aos Açores vindos do sul e o Spartan e sua
flotilha de presas se unirá a elas para regressar para os Estados Unidos sob sua proteção.
Jack Aubrey tinha a rara virtude de escutar os relatos sem interromper, e nesta ocasião inclusive esperou para ouvir os comentários.
- Eu lhe contei isto tal como me relataram, Jack. Tenho razões para acreditar que Guzmán, que deseja ansiosamente a reintegração do Santo Ofício, está equivocado
com respeito aos judeus de Gibraltar; contudo, não é improvável que o consórcio franco-estadunidense conheça a existência desse carregamento de mercúrio. Por outro
lado, acho que a boa fé de Guzmán está fora de toda dúvida. Que acha do que disse sobre a Constitution?
- Se o senhor Hull ainda está ao comando, é provável que chegue na data prevista. É famoso por sua pontualidade. Certamente, não podemos lutar contra ela, pois leva
quarenta e quatro canhões de vinte e quatro libras e dispara um bombardeio de 768 libras. Seus gabaritos são como os de um navio de linha e a chamam A Invencível.
Contudo...
Continuou falando enquanto cruzava por sua mente a carta marinha da zona do Atlântico compreendida entre os trinta e cinco e os cinqüenta graus de latitude norte,
com os Açores no centro. O Spartan patrulharia a área situada entre São Miguel e Santa Maria pela parte de onde vinha o vento, pois assim teria vantagem em relação
ao Azul quando aparecesse, e nessa época do ano o vento soprava do oeste ou do noroeste. Era possível que a recente borrasca houvesse detido ao Azul ou que o tivesse
feito avançar, mas provavelmente haveria atrasado à Constitution, o que era um fator fundamental do plano que estava ideando; o plano para fazer o capitão do Spartan
acreditar que a Surprise era o Azul, pelo menos o tempo suficiente antes de entabular combate. Pensou sucessivamente nas datas, o recente temporal, a provável velocidade
do Azul, que navegava sem pressa ainda que a tripulação fosse eficiente, e a posição atual da Surprise, e lhe pareceu que se a fragata avançasse cento e vinte e
cinco milhas diárias havia possibilidades de que chegasse lá a tempo. Não muitas, mas valia a pena fazer o esforço.
"Se o vento seguir soprando com força", pensou. Ultimamente o barômetro havia tido subidas e descidas erráticas e era impossível fazer uma previsão do tempo, assim
que só o que podia fazer era continuar navegando snela.
Uma vez mais, Stephen ouviu as palavras "não há nem um momento a perder" e depois Jack correu para o convés para ordenar a Pullings que pusesse imediatamente todos
os marinheiros a fazer os trabalhos de reparação da Merlin. Quando regressou, perguntou a Stephen:
- Teria a amabilidade de servir de intérprete, se faço perguntas sobre o Azul a esse cavalheiro?
Por suas relações e sua profissão, Guzmán sabia muito mais de barcos que um homem de terra adentro comum, e a informação que deu sobre o Azul foi convincente: que
tinha três mastros, aparelho de brigue-barca e um calado de quinhentas toneladas. Também foi a descrição que fez: estava pintado de um bonito colorido azul e tinha
as portalós negras, como as de um barco de guerra. Jack meditou sobre isso. Embora pôr exárcia de brigue-barca na Surprise não apresentava dificuldade, porque quase
o único necessário era substituir as vergas da mezena e a sobremezena por velas triangulares no mastro mezena, essa viagem era só uma prova e a fragata levava muito
poucas provisões. Quanto às portalós negras, era uma sorte, pois a fragata já as tinha, nunca havia deixado de ser pintada ao estilo de Nelson, em quadros brancos
e negros; contudo, os costados azuis eram farinha de outro saco.
- Chamem ao senhor Bentley - ordenou.
Depois, quando o carpinteiro chegou, perguntou:
- Quanta tinta azul temos, senhor Bentley?
- Tinta azul, senhor? Apenas temos suficiente para dar ao cúter duas demãos finas, muito finas.
Jack permaneceu pensativo um momento e depois disse:
- Stephen, por favor, pergunte se o azul é escuro ou claro;.
Quando soube que o Azul era de claro, tão claro como o céu na alvorada, voltou-se para o carpinteiro para lhe perguntar de quanta tinta branca dispunham. A resposta
foi quase tão desalentadora como a anterior: apenas um quintal.
- Bem, bem - disse Jack -. Faremos o que possamos. Diga-me, senhor Bentley, como está a escuna?
- Oh, senhor! - exclamou o carpinteiro, e seu rosto se iluminou -. Logramos pôr-lhe um estupendo mastro maior usando quase o melhor mastaréu que tínhamos com um
dado colocado na base e dando um ou outro retoque na enora.
- O senhor e seus ajudantes trabalharam muito, senhor Bentley.
- Trabalhado? Mais que as abelhas.
No dia seguinte também trabalharam como as abelhas, porque enquanto Jack dava seu passeio noturno pelo convés, havia encontrado a solução para o problema de mudar
o aspecto externo da Surprise. Necessitavam várias demãos de tinta branca para tapar as faixas negras que ficavam por cima e por baixo da faixa branca com as portalós
negras, e com a tinta que tinham só podiam dar uma demão na metade de um custado, o que não seria suficiente para cobrir o negro. Mas se pudesse pintar uma lona...
Se pudesse estender muito bem uma lona branca sobre os costados, alguém com boa vontade podia conseguir que muito pouca quantidade rendesse muito.
Assim que se fez de dia chamaram os homens que limpavam a coberta, Jack teve uma longa conversa com o veleiro para averiguar qual era a lona mais fina e mais branca
e se era abundante. Tiveram que sacrificar certa quantidade de lona do número 8, mas a maior parte da que escolheram estava quase passada e só servia para reparar
os joanetes e os sobrejoanetes, pois a Surprise havia sido vendida com todos seu apetrechos e em sua última missão pela zona tropical do Pacífico a lona para as
velas havia se desbotado com o sol e gastado.
Quando o convés estava seco (pois somente se suspendia a limpeza da fragata em caso de uma iminente batalha), os marinheiros desenrolaram a lona, mediram-na, voltaram
a medir, estenderam-na de uma ponta a outra do casco pela parte exterior, marcaram-na com precisão, voltaram a estendê-la, cortaram-na e a pintaram. Fizeram o trabalho
no castelo de popa, que cobriram por completo, já que à velocidade da fragata e com o mar tão agitado não podiam pintar a lona amarrada por fora do casco. Por outro
lado, o castelo estava muito cheio e no convés, além dos botes e das plataformas em que ficavam apoiados deixarem pouco espaço livre, sempre havia homens no corrimão,
porque o tempo era muito variável e o bendito vento do nor-nordeste, ainda que ainda fosse forte, havia rolado tanto durante a noite que soprava em uma direção que
fazia necessário puxar constantemente das braças e as bolinas e mover o leme com sumo cuidado para que a fragata navegasse o melhor possível.
Portanto, quando Stephen subiu para o convés encontrou a popa da fragata muito cheia e os tripulantes muito ocupados. Como ocorria amiúde, havia passado boa parte
da noite acordado, pensando em Diana ao mesmo tempo que via nítidas imagens dela, entre as quais destacava uma em que conduzia seu cavalo a uma enorme cerca ante
a qual haviam retrocedido muitos homens e saltava por cima dela sem pensar duas vezes. Havia tomado seu remédio habitual às duas da madrugada, havia dormido até
muito tarde e se despertou aturdido. O café o despertou, e ficaria sentado um pouco mais para bebê-lo se não houvesse olhado seu relógio e percebesse que teria que
estar cumprindo com sua obrigação, que era atender aos enfermos com Martin; Padeen, seu ajudante temporal, não tardaria em golpear uma bacia de cobre junto ao mastro
maior cantando: "Que os enfermos se reunam neste lugar se querem se consultar com o nosso querido doutor!". E o diria cantando porque gaguejava ao falar, mas podia
cantar muito bem.
Apesar disso, primeiro Stephen queria ver o céu, dar bom dia para seus companheiros e saber se a Merlin ainda os acompanhava. Quando terminou de subir a escada,
enquanto notava uma sensação de calor e olhava a brilhante luz do sol, o luminoso céu e uma torre de velas de um branco resplandecente que quase chegava até ele,
apagou o sorriso do rosto ao ouvir frases em tom desaprovatório:
- Senhor, afaste-se, senhor!
- Retroceda, doutor! Retroceda, pelo amor de Deus!
- Vai tropeçar na lata!
Os marinheiros novos eram tão veementes como os antigos tripulantes e muito mais grosseiros (um deles lhe chamou de asno), pois muito logo compreenderam o que estava
em jogo; tinham enormes desejos de combater com o Spartan e faziam diligentemente os preparativos para a luta, ainda que não fosse mais que uma hipótese.
- Quieto! - gritou Jack, pegando-o pelos cotovelos -. Não se mova! Padeen, Padeen, traga outros sapatos para seu amo! Oviu?
Quando os sapatos chegaram, Stephen os pôs. Então olhou as faixas pintadas de azul que se estendiam até o coroamento e os rostos de expressão mal-humorada e compassiva
ao mesmo tempo que estavam voltados para ele e exclamou:
- Oh, sinto muito, Jack! Não deveria ter olhado para o céu! - e acrescentou -: Padeen, pelo que vejo, sua cara inchou outra vez.
Com efeito, sua cara havia inchado. O pobre homem, que tinha a bochecha tão inflamada que a pele estava brilhante, limitou-se a responder com um gemido.
Soaram as cinco badaladas e Padeen começou a golpear a bacia e a cantar a cançãozinha com uma voz apagada. Apesar de que na Surprise, como em todos os barcos, havia
certo número de hipocondríacos, os homens estavam tão atentos ao seu trabalho e o faziam com tanto afã que Padeen foi o único paciente que compareceu à enfermaria.
Stephen e Martin o olharam com pena porque fazia tempo que suspeitavam que tinha incrustada a dente do siso e sabiam que nesse caso não podiam fazer nada. Então
o doutor Maturin lhe tomou o pulso, voltou a olhar o interior de sua boca e a garganta, deu-lhe uma generosa dose de seu remédio habitual, amarrou-lhe um lenço ao
redor da cara e o dispensou de suas tarefas.
- Isso é quase a panacéia - disse Martin, referindo-se ao láudano.
- Pelo menos faz algo - disse Stephen, encolhendo os ombros e abrindo os braços -. Não podemos fazer nada mais... - acrescentou e depois de uma pausa continuou -:
outro dia encontrei uma palavra que não conhecia e que me encantou: psychopannychia. Significa o sono do mundo durante a noite. Provavelmente o senhor a conhece
há tempos por seus estudos de religião.
- Associo a palavra com o nome de Gauden - disse Martin -, que pensava que isso era errôneo.
- Eu a associo com a idéia de bem-estar - disse Stephen, acariciando a garrafa -, um bem-estar profundo e duradouro, ainda que não sei se alguma doutrina aprova
esse estado. Vamos ao castelo? Não acredito que nos molestem ali.
Estavam todos muito ocupados para incomodá-los. Pintavam a lona e a faixa branca na parte posterior da serviola no lado de barlavento, inclinados perigosamente para
fora das portalós. A coberta do castelo estava inclinada onze ou doze graus para o sol, e a temperatura ali era muito agradável, em contraste com o longo inverno
inglês que acabava de passar.
- O mar é azul, o céu é azul, as nuvens são brancas e tudo brilha - disse Stephen -. Que outra coisa pode ser mais agradável? Um pouco de espuma das ondas de proa
não tem importância, além do mais, é refrescante. Ademais, o calor do sol penetra até os ossos.
Depois do almoço, que foi frugal e rápido e que todos abordaram sem muito apetite, os marinheiros voltaram ao seu trabalho, e desta vez se sentaram comodamente em
almofadas de fio. A Merlin, que até então navegara como devia fazê-lo, na esteira da fragata e a um cabo de distância, a ultrapassou, pois era mais rápida que ela
navegando de bolina e alcançou oito nós de velocidade, enquanto a Surprise navegava a seis. Quando passou junto da fragata o capitão informou aos gritos de que pescavam
tantas cavalas quanto queriam, mas nem mesmo isso, que era o passatempo preferido dos marinheiros (e algo muito conveniente quando a comida era escassa) logrou afastar
sua atenção do trabalho. Alguns dos novos marinheiros tinham conhecimentos de navegação e a maioria dos antigos tripulantes da Surprise sabiam onde a fragata devia
situar-se para ter possibilidades de encontrar o Spartan a tempo, e por essa razão haviam visto com satisfação que os oficiais mediam a altura do sol ao meio-dia,
que Davidge dizia: "Doze em ponto, senhor, com sua permissão. Quarenta e três graus e cinqüenta e cinco minutos de latitude norte" e que o capitão replicava: "Obrigado,
senhor Davidge".
Isso significava que deviam avançar seis graus de latitude em três dias. Ainda que talvez fosse necessário mudar de bordo um pouco para o oeste, coseguiriam se a
fragata navegasse a uma velocidade média de cinco nós, e até agora, desde que se havia medido a velocidade, o resultado fora superior a seis. Provavelmente entrariam
em combate, um combate proveitoso, na quinta-feira, e todos pensavam que era uma estupidez perder a oportunidade de lutar contra o Spartan para pescar um punhado
de cavalas, sobretudo se eram espanholas.
Contudo, entre duas mãos de tinta, Bonden correu para a proa com uma cesta cheia de cabos e Stephen e Martin, sustentando em meio dos dois uma série de tiras de
um lenço vermelho a modo de isca, começaram a sacar as cavalas do mar. Já tinham a cesta meio cheia quando conceberam esperanças de pescar bonitos ao ver vários
perseguirem as cavalas, e nesse momento se ouviu um grito:
- Homem ao mar!
- Movam as escotas! - gritou Jack, saltando por cima das faixas pintadas e subindo para o anteparo cheio de macas.
Os marinheiros foram pegar os cabos que lhes correspondiam com rapidez mas com muito cuidado, e um minuto depois se ouviu o ensurdecedor ruído dos golpes das velas
quando o vento deixou de inchá-las. Jack olhou atentamente para o homem, um dos pintores, que se inclinara demais para fora, e viu que estava nadando. Também viu
que a Merlin virava para bombordo e que seus homens lançavam um bote na água desde a popa, assim que voltou a abotoar a casaca que estava a ponto de tirar.
- Girem o velacho! - gritou.
A Surprise começou a ganhar velocidade imediatamente, o que para todos acharam estranho depois de haver-se acostumado ao seu rápido e rítmico movimento.
O bote da Merlin, com o homem resgatado a bordo, aproximou-se da fragata e os marinheiros lhes advertiram aos gritos que não tocassem seus costados, assim que os
tripulantes engancharam o croque na proa. Pullings subiu a escada seguido de alguns homens com bolsas e do homem empapado objeto da preocupação de todos, um antigo
tripulante da Surprise chamado Joe Plaice. Mas o homem não foi bem recebido apesar de ter muitos amigos e inclusive parentes a bordo nem ninguém lhe felicitou por
estar vivo.
- Acho que este marinheiro de água doce também deixou cair a maldita broxa - disse um de seus companheiros de tripulação quando passou por seu lado.
- É conveniente que vá se trocar, Plaice - disse Jack friamente -. Espero que, apesar de seus imprudentes costumes, ainda tenha roupa seca.
Depois, alçando a voz, deu uma série de ordens para que a fragata voltasse a pôr-se em movimento. Parecia que algo imprevisto havia estragado as joanetes, mas o
que ocorria era que o vento havia amainado.
- Como vai, Tom? - perguntou, assinalando a Merlin com a cabeça.
- Suave como a seda, senhor - respondeu Pullings -. É estanque, navega de bolina com rapidez e vira com facilidade.
Porém, senhor, as mulheres criaram um grave problema, pois insistem em que as levemos para a Inglaterra imediatamente. Ameaçaram de se queixarem de nós para que
nos julguem e nos deportem para Botany Bay.
- Achei ouvi-las gritar quando nos avisou de que havia cavalas - disse Jack -. Pode dizer-lhes que tudo terminará logo. Não podemos ficar em alto mar nem mais um
dia depois da quinta-feira ou teremos que comer os cinturões e as solas dos sapatos. De toda maneira, terei que reduzir as rações dos marinheiros. Porém, ainda que
nos restasse, acho que não teríamos oportunidade de encontrar o nosso homem depois da quinta-feira. Além do mais, acredito que o último dia em que poderíamos achá-lo
é na quinta-feira, ou talvez antes.
- Com respeito aos cinturões e aos sapatos, senhor - explicou Pullings -, tomei a liberdade de trazer-lhe algumas provisões nessas bolsas. Eles as deram voluntariamente
- acrescentou ao ver que Jack o olhava com receio, pensando que havia comparecido à sua mente a palavra "pilhagem".
- Obrigado, Tom - respondeu Jack, pensativo, e imediatamente deu um passo para frente e arranhou um brandal enquanto assobiava -. Se o vento voltar a rolar para
o norte e a soprar com força, e espero e rogo que assim seja...
- Amém, senhor - disse Pullings arranhando ele também o brandal.
- Provavelmente lhe deixaremos para atrás, mas não avance a uma velocidade muito alta para se manter junto de nós, quer dizer, que seja superior à que as gáveas
podem suportar. Nos encontraremos nos 37° 30' N e 25° 30' O. E obrigado pelas provisões.
- Nos 37° 30' N e 25° 30' O, senhor - disse Pullings e passou por cima do coroamento.
Apesar dos assobios e dos arranhões no brandal (não houve nenhum marinheiro que não seguisse o exemplo de seu capitão), o vento amainou durante o dia e a noite,
assim que a Merlin não só não se ficou para trás como seus tripulantes tiveram que arriar todas as velas, exceto a traquete, em que fizeram dois rizes para que se
mantivesse em sua posição.
- Avançamos com dificuldade - anunciou Davidge na câmara dos oficiais -, ainda que, pelo aspecto que tinha o dia, teria jurado que o vento ia rolar para o norte.
O capitão opinou o mesmo, apesar das estranhas oscilações do barômetro. Talvez um brinde aos Bóreas nos ajudasse.
Verteu ponche nas taças (entre as provisões que Pullings havia trazido havia uma garrafa de conhaque para cada oficial) e exclamou:
- Cavalheiros, aos Bóreas!
- Aos Bóreas! - repetiu West -. Mas que sopre com moderada intensidade, não com tanta que seja necessário usar as gáveas aferradas na guarda da alvorada.
- Aos Bóreas! - exclamou Stephen -. Mas eu gostaria que não soprasse durante uma hora mais ou menos pela manhã, pois assim o senhor Aubrey poderia dar-se o prazer
de nadar e o senhor Martin e eu o de pegar espécimes no bote. Esta tarde atravessamos uma autêntica flotilha de medusas ainda não descritas e nenhuma podia ser colhida
com a rede.
- Nós lhe agradecemos muito as cavalas e os bonitos - interveio de novo West -, mas acho que os homens que estão a bordo desta fragata não deixariam de avançar nem
uma milha para o sul nem por todas as medusas do mundo. Não, não deixariam de avançar nem cem jardas ainda que lhes pusessem um barril de ostras em cada mesa.
Sem embargo, na terça-feira apareceu o sol sobre o mar opalescente, cuja superfície só se movia onde o bote formava uma pequena esteira, e iluminou aos cirurgiões,
que olhavam o fundo do mar através das translúzidas águas e recolhiam pequenos organismos e algas flutuantes. Jack Aubrey não se deu o prazer de nadar, ainda que
desejasse muito fazê-lo porque passara a noite sem dormir, tratando de forçar a fragata a avançar apesar do vento fraco e que a cada meia hora, quando se media a
velocidade, desenrolava-se menos corda da barquilha, até que chegou um momento em que nem um só nó se separou do carretel, pese a os esforços do suboficial encarregado
dos instrumentos.
Jack não nadou e quando houve luz suficiente começou a organizar a colocação de plataformas nos costados. Pouco depois do café da manhã, a fragata ainda tinha todas
as velas flácidas, mas parecia uma colméia outra vez.
- Isto é perfeito! - gritou Jack para que Pullings pudesse ouvir-lhe da Merlin, que se encontrava paralela à fragata a um quarto de milha de distância e virava um
pouco para evitar afastar-se -. Isto é o que pedi em minhas preces!
- Que Deus o perdoe! - murmurou Killick na reconstruída cabine, a poucos pés abaixo dele.
- Agora poderemos terminar de cobrir a faixa negra superior e começar a tapar a inferior. Poderemos chegar até as placas de cobre.
Essas palavras podiam enganar a alguns dos mais tontos marinheiros de Shelmerston, mas não aos que navegavam há tempos com o capitão Aubrey, que fizeram sinais com
a cabeça ou sorriram uns para os outros porque sabiam muito bem que, às vezes, um capitão tinha que falar assim, igual a um pastor que tinha que pregar aos domingos.
Ainda que eles não acreditassem, não deixaram de perseguir seu objetivo, e apesar de que a calmaria lhes fizera perder o entusiasmo que tinham no início, seguiram
trabalhando com afinco. Pensavam que se a fragata tinha a possibilidade, ainda que fosse remota, de chegar aos Açores na quinta-feira, não seria culpa sua que não
estivesse preparada para lográ-lo. Ao meio-dia a lona já estava colocada sobre as faixas negras superior e inferior, estendida e presa com pregos de cobre por cima
e por baixo da linha de flutuação, e para consegui-lo fora necessário mover os canhões alternativamente de um lado e de outro do convés para inclinar a fragata.
Os marinheiros usaram até a última gota de tinta azul e a estenderam calmamente com o fim de cobrir a maior parte da superfície possível. Ainda que a pintura azul
não a cobria toda, isso não tinha importância, porque por debaixo se viam a sujeira e as manchas formadas pela gordura da cozinha, como era habitual nos barcos.
Guzmán, no bote de Stephen, disse que a fragata e o Azul se pareciam com duas gotas de água.
Agora o único que faltava era pôr-lhe aparelho de brigue-barca e tirar-lhe o mastaréu de popa, que era muito alto e facilmente reconhecível, mas Jack tinha pensado
deixar essa operação para o último momento porque esse aparelho faria diminuir a velocidade, que naquele momento era o mais importante.
Sem dúvida era o mais importante; contudo, ao meio-dia a fragata estava imóvel e apenas havia avançado oitenta milhas desde a última medição. E a situação foi pior,
muito pior, quando o vento por fim começou a soprar, porque vinha do sul e pela proa, e ademais aumentava de intensidade hora após hora.
A Surprise, como era seu dever, avançava com o vento em contra dando bordejadas, mas os marinheiros faziam girar as pesadas vergas e ajustavam as velas o melhor
possível sem entusiasmo.
Stephen e Martin subiram para a coberta quando ouviram pela segunda vez o grito "Todos a mudar de bordo!" depois de terem passado um longo tempo observando os crustáceos
pelágicos, alguns deles ainda não descritos e, portanto, desconhecidos da ciência.
- Que agradável é estar em movimento outra vez! - exclamou Stephen -. Que saltos dá a fragata!
Então notou que Jack Aubrey tinha um olhar sombrio e franzia a boca tratando de conter sua raiva. Também se deu conta de que os marinheiros que estavam no convés
e na popa tinham uma expressão triste e que o silêncio era geral. Quando ouviu o grito "Leme para bombordo!", murmurou:
- Voltemos para baixo.
Sentaram-se sob a luz que entrava pelas grandes janelas de popa, e quando Killick entrou Stephen lhe disse:
- Por favor, Killick, conte-me qual é a situação.
- Bem, senhor; pelo que eu vejo - começou Killick -, seria melhor que recolhêssemos tudo e regressássemos para casa. Aqui estamos, tentando avançar para barlavento
tão rápido como podemos. Trabalhamos duríssimo e os marinheiros viram a fragata a cada meia hora, e quanto avançamos? Não mais de uma milha por hora para o sul.
E se o vento aumentar muito de intensidade e tivermos que tirar as joanetes, perderemos terreno. Ainda que a fragata navega muito rápido de bolina, às vezes deriva
um pouco, e se o vento chega a ser muito forte, retrocederá parte do que já avançou para o sul.
- Mas se o vento nos atrasa, também atrasará ao Azul, não é assim? - perguntou Martin.
- Oh! - gritou Killick de tal maneira que parecia uivar -. Porém, o senhor não vê que o Azul navega rumo oeste, que vai de Cádis para São Miguel? Portanto, tem o
vento pelo través. Pelo través - repetiu, assinalando o lado da fragata para que a explicação fosse mais clara -. E aí estão esses sacanas que vão com as velas aferradas.
Têm os braços cruzados, cospem para sotavento como se fossem deuses e fazem navegar seu barco, nossa presa de lei, a seis ou sete nós como se tal coisa...
Então a indignação afogou suas palavras.
Foi o mesmo Killick que, com a cara sorridente, aproximou-se da maca de Stephen na manhã seguinte, na manhã da quarta-feira, e sacudiu as cordas que o seguravam
enquanto repetia:
- O capitão lhe manda saldações e pergunta se quer ver...
Quando Stephen desceu da maca notou que a coberta estava inclinada pelo menos vinte e cinco graus. Depois de pôr os calções e uma horrível e velha casaca verde apoiando-se
contra o anteparo, emergiu, e a brilhante luz do dia lhe fez pestanejar.
A Surprise estava abatida, a borda de sotavento coberta de espuma e a água caía a jorros desde o pescante de proa. Como o vento era muito forte e chegava justamente
pela proa, não se podiam desdobrar as alas, porém, graças ao velho costume de Jack de amarrar ao cesto da gávea guindalezas e cabos delgados como contraestais, a
fragata podia levar desdobradas as joanetes e navegava a grande velocidade. Os marinheiros, muito alegres, estavam agrupados no corrimão de barlavento e no castelo,
onde se ouviam risos.
- Ah, já está aqui, doutor! - exclamou Jack -. Bom dia. Não acha maravilhoso? O vento rolou levando um negro aguaceiro pouco depois de que se deitou, começou a soprar
do sudoeste na guarda da alvorada e acredito que rolará outra vez para o noroeste. Mas venha comigo. Cuidado com o degrau.
Levou Stephen, que ainda pestanejava e estava aturdido, até o coroamento.
- Ali está - disse -. Por isso lhe despertei.
A princípio Stephen não podia distinguir nada, mas depois se deu conta de que as águas mais próximas por sotavento estavam completamente infestadas de baleias. Havia
um grande bando de baleias azuis que as atravessavam em uma direção, passando por cima, por debaixo e por entre as baleias cinzentas de outra bandada que as cruzavam
em direção contrária. Onde quer que olhasse via figuras gigantescas e escuras que saiam da água ofegando e agumas vezes ficavam flutuando na flor de água e outras,
a maioria, voltavam a mergulhar imediatamente, e ao fazê-lo podiam ver-se suas enormes barbatanas por cima da superfície. Algumas passaram tão perto que ele pôde
ouvir sua respiração: a exalação que parecia uma explosão e a forte inalação.
- Meu Deus! - exclamou -. Meu Deus! Que maravilha da criação!
- Alegro-me muito de que tenha visto - disse Jack -. Dentro de cinco minutos teria sido tarde demais.
- Queria ter avisado a Martin.
- Já está aqui, no cesto da gávea do mezena, como pode ver.
Efetivamente, ali estava o intrépido Martin, e ambos agitaram os lenços para se cumprimentar. Quando Stephen foi guardar o seu, olhou de soslaio para o sol, que
se encontrava à esquerda, não muito longe do horizonte, o que significava que a fragata navegava para o sul, como todos desejavam ansiosamente. Sem temor a equivocar-se
disse:
- Eu lhe felicito por ter conseguido o vento favorável.
- Muito obrigado - disse Jack, sorrindo mas negando com a cabeça -. Bem, melhor tarde do que nunca. Vamos tomar café.
- Parece que não tem muitas esperanças - disse Stephen na cabine, tratando equilibrar uma xícara.
- Confesso que não muitas - confirmou -. Mas acredito que poderemos percorrer a distância que nos falta se o vento rolar para o norte e se mantiver. Bem, se não
desprender nada - acrescentou tocando o tabuleiro da mesa.
Nada havia se desprendido quando fizeram as medições do meio-dia e comprovaram que a Surprise avançara oitenta e sete milhas para o sul, a maioria delas desde o
início da guarda da alvorada. Ainda que o vento era um pouco mais; fraco, seguia rolando, e pouco depois do almoço se desdobraram as primeiras alas. Todos os marinheiros
observaram com atenção como se inchavam, e pouco depois, quando se fez a medição com a barquilha e ouviram informar: "Dez nós e três braças, senhor com sua permissão",
todos riram satisfeitos no corrimão de barlavento e no castelo.
Na fragata, todos menos Padeen voltaram a ficar alegres e a ter esperanças. Pela manhã Stephen lhe pusera um cataplasma com o fim de que expulsasse o pus que possivelmente
tinha; ao meio-dia lhe dera sopa a colheradas e lhe pusera outra; mas agora, na guarda da tarde, a dor era mais intensa. Padeen se levantou da maca, aproximou-se
do estojo de remédios e se administrou láudano ele mesmo. Ficou pensativo olhando o frasco, um frasco comprido e delgado com marcas de um lado, e, depois de refletir
entre um acesso de dor e outro, meteu-lhe na jaqueta e foi até a cabine do Martin. Não havia ninguém naquela parte da fragata, porém, ainda que tivesse alguém, passaria
desapercebido, porque servia a Martin além de ao doutor. Ao chegar lá pegou a garrafa de conhaque de Martin, encheu o frasco de láudano com uma mistura de conhaque
e água até a marca onde o remédio chegava anteriormente, voltou a pôr a garrafa e o frasco em seu lugar e se meteu de novo na maca. Estava sozinho porque a maioria
dos marinheiros se encontravam acima observando com satisfação o avanço da fragata e além disso, acabava de se ouvir o grito "Barco à vista!" procedente do tope
de um mastro e todos os que estavam ocupados na bodega, a parte da coberta inferior onde se guardavam as amarras da âncora e da bodega de proa também haviam subido.
O barco se achava a umas cinco milhas a sotavento e já se via desde o convés; contudo, a Surprise tinha tanto velame aberto e a água do mar varria o castelo com
tanta freqüência que não era fácil vê-lo, nem sequer dos cestos das gáveas. Mas Jack, sentado na cruzeta do maior, por cima da joanete, (um lugar que conhecia desde
sua juventude, desde que era um guarda-marinha nessa mesma fragata), podia ver todo o horizonte. Ainda que o barco tinha aparelho de navio, estava seguro de que
não era o Spartan, sobretudo porque navegava muito ao norte. Apesar de portar bandeira espanhola, o mais provável é que fosse britânico, pois era construído ao estilo
britânico, com a proa quadrada. Provavelmente era um barco que fazia o comércio com as Antilhas. Havia começado a desdobrar velas desde que ambas as embarcações
haviam se avistado uma à outra, e nesse momento Jack o viu mudar de bordo repentinamente para sotavento com o velame golpeando porque o mastaréu de sobremezena se
desprendera.
Se quisesse, a Surprise podia mudar de bordo e chegar do seu lado em meia hora, porém, ainda que era possível que fosse uma presa de lei, essa meia hora era muito
valiosa para desperdiçá-la. Moveu a cabeça de um lado para o outro, trocou de posição na cruzeta e dirigiu o telescópio para o norte. A Merlin podia ser vista bem
na guarda da manhã, mas agora não era mais que um ponto no horizonte.
Regressou para o convés apoiando os pés nos delgados amantilhos, que se curvavam sob seu peso, e depois saltou do parapeito para uma caronada e desta para o castelo
de popa. Aproximou-se da bitácula enquanto os tripulantes o observavam em silêncio, olhou a bússola e disse:
- Muito bem. Não mudaremos.
Não iam mudar o rumo e os marinheiros, ao se informarem, sofreram uma decepção. Alguns suspiraram de tristeza e imediatamente se ouviu um rumor geral que parecia
a respiração de duas ou três baleias próximas, mas não era um rumor de desaprovação nem de descontentamento.
Quando terminou a tarde, o vento diminuiu mais de intensidade, voltou a rolar e se fixou no oeste-noroeste, quase pela alheta da fragata. À medida que amainava,
os tripulantes da Surprise abriam mais velas, e apareceram sucessivamente as alas superiores e inferiores, as sobrejoanetes, a sobrecevadeira, que raras vezes se
usava, todas as bujarronas e uma nuvem de velas de estai. Era digna de se ver e nesse momento todos os marinheiros a admiraram por sua formosura, não só por ser
um meio para alcançar um fim. Mas Jack, que observava as monterillas1, compreendeu que isso não serviria de nada quando, movendo-se para o oeste, o sol se metesse
atrás de um grande banco de nuvens que havia a estibordo. Inclusive percebeu que antes de trocar de guarda teriam que arriar muitas velas para evitar ter que chamar
os marinheiros no meio da noite se ocorresse uma brusca mudança do vento, pois, apesar do vento ter se fixado na direção noroeste, poderia mudar de intensidade.
Era importante que todos os marinheiros passassem uma noite tranqüila, pois haviam trabalhado muito duro desde que a terrível borrasca a semana anterior lhes açoitara,
e ainda que, em geral, estavam animados, não se sentiriam assim que se levassem três dias perseguindo a um inimigo que pudessem ver, pois em tal caso poderiam seguir
trabalhando sem comer nem descansar. Ademais, Jack viu que alguns estavam exaustos. Seu própio timoneiro estava abatido e parecia mais velho. Geralmente, os marinheiros
não dormiam muito e não era conveniente despertá-los pela noite enquanto descansavam, especialmente antes de uma batalha.
Sempre tiveram poucas possibilidades de entabular um combate no dia seguinte, e agora tinham ainda menos, mas só um tonto provocaria que diminuissem ainda mais ou
as eliminassem depois de tanto trabalho e de ter adiantado tanto. Por outro lado, tampouco era conveniente ser muito precavido, pois isso só poderia ser levado a
cabo se a Surprise chegasse a se situar em algum ponto entre São Miguel e Santa Maria por barlavento. "Tenho que levar em consideração todas estas coisas", pensou
Jack caminhando de um lado para outro. O resultado de sua reflexão foi que durante a noite a Surprise, em vez de navegar com as joanetes aferradas e com um riz nas
gáveas como era o habitual, devia fazê-lo com as joanetes desdobradas. A fragata fizera um notável avanço durante o dia e, se navegasse ainda que fosse a cinco nós
pela noite, ainda poderia percorrer um total de duzentas milhas desde as medições do meio-dia desse dia até as do dia seguinte, e, portanto, avistariam o rochedo
situado na parte leste de São Miguel.
- Jack, acabo de fazer uma adaptação de um dueto de Sammartini para violino e violoncelo - disse Stephen, levantado a vista do papel pautado -. Gostaria de tocá-lo
depois do jantar? Killick nos prometeu que trará purê de ervilhas da cozinha e torradas com queijo feitas por ele mesmo.
- É longo?
- Não.
- Então, com muito prazer. Mas quero deitar-me cedo. Tom está na escuna, e me encarregarei da guarda de meia.
Como muitos marinheiros, Jack Aubrey havia adquirido desde muito cedo o hábito de dormir quase quando punha a cabeça no travesseiro, mas essa noite não foi assim.
O motivo não era outra vez a tortura da recordação de sua desgraça ou a dos julgamentos que tinha pendentes já fazia tempo e que poderiam causar-lhe a ruína; o motivo
era que, apesar de seu cansaço físico e mental, deslizava pela superfície de seu presente imediato escutando o som da água ao passar pelos costados da fragata, os
rangidos do casco e a onipresente voz do vento ao passar através dos tensos cabos da exárcia. Ao mesmo tempo, seguia mentalmente as passagens da peça musical que
havia tocado, ainda que em ocasiões se distraía e ouvia as badaladas, e em todo momento sabia como soprava o vento. Encontrava-se em um estado estranho, muito estranho,
descansando tanto como se estivesse adormecido e mais tranqüilo e alegre que em nenhum outro momento desde o julgamento.
Já estava levantado e vestido quando Bonden foi chamá-lo e imediatamente subiu para o convés.
- Bom dia, senhor West - cumprimentou, olhando para a lua corcunda, que se destacava nitidamente no céu.
- Bom dia, senhor - disse West -. Tudo vai bem, mas o vento amainou um pouco. É um alívio que haja chegado, senhor.
- Dê a volta no relógio! - ordenou o suboficial que estava governando a fragata.
Então Plaice, reconhecível por seu ofego, avançou e tocou oito badaladas.
Enquanto a guarda mudava, Jack observou a tabuinha de navegação. O vento não havia mudado de direção nem um só grau, ainda que, como ele sabia muito bem, amainara,
e o resultado da medição da velocidade era com mais freqüência inferior a seis nós.
Mesmo que o vento soprasse do noroeste, a noite era cálida e quando Jack foi até o coroamento viu com satisfação que a esteira era comprida e luminosa. Aquela era
a primeira esteira fosforescente que via esse ano.
Escutou os habituais informes: na sentina havia seis polegadas de água (muito pouca, apesar da forte tempestade, porque a fragata era estanque) e a velocidade, conforme
a última medição com a barquilha, era quase de sete nós. Então pensou que o vento ia aumentar de intensidade.
A guarda não podia transcorrer mais tranqüilamente. Não foi necessário ordenar que movessem as escotas e as braças. Somente se moveram os homens que levavam o leme
e os suboficiais que se ocupavam dos instrumentos e só se ouviram os serviolas falando uns com os outros, a medição feita com a barquilha e as badaladas. De vez
em quando algum marinheiro ia até a proa, mas a maioria deles ficou agrupada no castelo, alguns falando em voz baixa e outros dormindo sobre uma prancha de madeira
não muito dura.
Jack passou a maior parte dela olhando o hipnótico movimento da esteira, milha depois de milha, ou olhando passar as bem conhecidas estrelas. De vez em quando aumentava
a força do vento, e em uma ocasião pôde apontar na tabuinha "sete nós", mas seu aumento nunca foi tão grande para causar mudanças no velame nem alterou o prazeroso
movimento da fragata, pelas escuras águas sob a noite debilmente iluminada pela lua e as estrelas, salvo para fazê-lo ainda mais agradável.
Às quatro da madrugada Davidge o substituiu, acompanhado pelo grupo de marinheiros da guarda de estibordo, e, depois de dar ordem para que o chamassem ao mesmo tempo
que aos homens que limpavam o convés, desceu e imediatamente caiu em um profundo sono.
Quando amanheceu subiu para o convés outra vez. O vento seguia quase igual ao que havia deixado, só havia rolado um pouco para oeste, e a maior parte do céu estava
limpo e somente a estibordo se viam nuvens e névoa. Os homens que limpavam o convés, fedorentos e sem se lavar nem se pentear, já estavam agrupados ao redor das
bombas, e Vênus, que acabava de aparecer em cima do horizonte sobre o céu azul claro, parecia mais nítida em comparação com eles. Depois de dar os bons dias para
os oficiais que estavam no castelo de popa, Jack disse:
- Senhor Davidge, hoje limparemos o convés somente com esfregões e depois a secaremos. Depois, aproveitando que os incapacitados ainda estarão aqui, pois provavelmente
não tardarão mais de dez minutos em bombear a água, começaremos a desdobrar mais velas.
Essa era uma das vantagens de uma tripulação dessa classe: com as únicas excessões do cirurgião e seu ajudante, todos, inclusive os homens que limpavam a coberta,
que estavam isentos de fazer guarda, eram marinheiros de primeira e conheciam com perfeição seus ofícios. Entre estes homens estavam o veleiro e seus ajudantes,
o armeiro, o condestável e seus ajudantes, o carpinteiro e seus ajudantes, o toneleiro e todos os outros que realizavam trabalhos especializados. Enquanto Jack subia
sem pressa pela exárcia de barlavento do cesto da gávea do maior ou mesmo mais acima, com tanta facilidade e despreocupação com a altura como um homem que subia
a escada do ático de sua casa, pensou que outra vantagem era que os tripulantes estavam desejosos de agradá-lo, mas não forçados pela disciplina mas por medo de
serem recusados, algo que não havia visto nunca durante os anos passados no mar. Faltava aproximadamente uma hora para que os marinheiros subissem as macas para
o convés e, sem necessidade de empurrá-los, insultá-los nem açoitá-los, as poriam no anteparo devidamente enrolados em cinco minutos, e em muitos dos barcos do rei
isso era impensável.
- Bom dia, Webster - disse Jack ao serviola que estava na cruzeta da joanete.
- Bom dia, senhor - respondeu Webster, movendo-se pelos amantilhos de sotavento para deixar a cruzeta livre -. Não vi nada pelo oeste, mas talvez com seu telescópio...
Era um bom telescópio, um Dolland acromático. Jack se sentou na cruzeta, cuidadosamente o dirigiu para o oeste e percorreu com a vista o semicírculo limitado pelo
horizonte, mas onde devia estar São Miguel havia um banco de nuvens ameaçadoras, nuvens negras com frisos roxos e cinzas que pareciam impenetráveis. Depois de um
tempo baixou o telescópio, pendurou-o no ombro, cumprimentou com a cabeça o serviola e regressou para a coberta.
Ali, enquanto repassava mentalmente as cifras obtidas durante o percurso noturno, mandou desdobrar mais velas. Muito antes que os marinheiros subissem as macas,
a Surprise superou os oito nós de velocidade, e quando Jack desceu para fazer novamente os cálculos em um papel e extrapolá-los para a carta marítima, tendo em conta
o abatimento e a margem de erro, disse: "É absurdo que esteja tão ansioso. Pareço uma velha".
- Coberta! - gritou Webster desde o tope do mastro -. Terra a trinta e cinco graus pela amura de estibordo!
Sua aguda voz, depois de atravessar o ruído que faziam os marinheiros movendo-se de um lado para o outro e falando mais do que era habitual em um barco do rei, entrou
pela porta aberta da cabine de Jack, que, pela carta marítima que tinha em frente e a bússola delatora pendia de um vau justo acima de sua cabeça, soube que o cabo
Ribeira de São Miguel estava situado ao sul-sudoeste, exatamente a trinta e cinco graus pela amura de estibordo.
Nesse momento ouviu que golpeavam uma das jambas da porta e imediatamente West entrou.
- Terra à vista, senhor - anunciou -. A trinta e cinco graus pela amura de estibordo. Pude vê-la um momento desde o convés porque a névoa está se dissipando. Acho
que está a umas dez léguas de distância.
- Obrigado, senhor West - disse Jack -. Irei vê-la dentro de um momento.
Pouco depois o contramestre tocou o apito para chamar todos os marinheiros para desjejuar, e no mesmo momento Stephen entrou correndo, como se houvesse esperado
para ouvir esse som.
- Por Deus, Jack diga-me que terra é essa! - gritou para que sua voz pudesse ser ouvida apesar do estrondoso ruído de passos -. Espero que não seja o cabo Fly-Away.
- A menos que o cabo Fly-Away se encontre exatamente dez léguas ao sul-sudoeste. este cabo está na parte nordeste de São Miguel - explicou Jack, mostrando-lhe a
carta marítima com as réguas paralelas sobre as linhas que delimitavam a posição.
- Contudo, não parece entusiasmado.
- Estou contente, mas não entusiasmado. Meus sentimentos estão muito estranhos, vão e vêm. De qualquer maneira, este é só um pequeno passo e ainda nos resta muito
para percorrer.
- Com sua licença, cavalheiros - interrompeu Killick -. Aqui lhes trago um par de peixes voadores recém pescados que devem ser comidos quentes.
- Os peixes voadores frescos têm uma suave textura - disse Stephen, começando a comer -. Importa-se de me passar o pão, Jack? Diga-me uma coisa, disse que este cabo
está na parte nordeste da ilha?
- Sim. Chama-se Ribeira e há uma grande cruz colocada nele que espero que vejamos dentro de uma ou duas horas.
- Supunha que, se tivéssemos sorte e chegássemos a São Miguel (que não é mais que um ponto no vasto oceano), bordejaríamos a costa ocidental e nos situaríamos em
um lugar a meio caminho entre São Miguel e Santa Maria por barlavento.
- Indubtavelmente, esse é o lugar em que queremos situar-nos, mas devemos chegar a ele desde o leste, como se viéssemos de Cádis. Minha idéia é chegar até os 37°
30' N ou um pouco mais além; depois, esquivando Formigas, mudar de bordo para o oeste; e depois, com a esperança de encontrar o Spartan nos esperando, isto é, esperando
ao Azul, mudar de bordo para barlavento como se quiséssemos fazer escala em Horta.
- Quais são nossas possibilidades agora?
- Quase tudo depende do vento do sul que nos atrasou na terça-feira. Se soprava aqui também, mas não com tanta força como para obrigar ao Azul a pôr-se em pairo,
o haverá feito avançar rapidamente para o oeste e, por isso, chegaremos tarde demais. Se não soprava aqui ou se soprava do sudoeste procedente das ilhas, é possível
que encontremos ao Spartan esperando. Mas tanto se o encontrarmos como se não, poderá ver São Miguel, e se bordejarmos as ilhotas e os arrecifes de Formigas poderá
ver algas e criaturas muito curiosas. - Fez uma pausa e depois prosseguiu -: Diga-me, Stephen...
Ia continuar perguntando: "Já teve alguma vez a impressão de que o que faz não é real, de que está representando um personagem e que o que parece ser o presente
realmente não tem importância? Isto ocorre com freqüência ou é um sinal de má saúde ou mesmo o princípio da loucura?". Contudo, pensou que isso pareceria uma queixa
e o mudou para:
- Como está Padeen?
- Ainda tem a cara muito inchada, mas sua fortaleza é assombrosa.
- Querem outro peixe voador? - perguntou Killick -. Estão caindo aos montes no convés.
Durante a guarda da manhã, a maior parte dos tripulantes olharam para São Miguel quando não estavam ajustando as velas ou fazendo silenciosas práticas de tiro com
os canhões sem balas. A ilha de São Miguel estava cada vez mais perto e se via cada vez mais claramente, e ao meio-dia, justo pelo través, todos puderam ver a grande
cruz recortando-se sobre o céu.
O vento havia rolado para o oeste e havia amainado, pelo que o resultado da última medição com a barquilha indicou só cinco nós; contudo, isso não os desanimou,
pois as medições do meio-dia (cujo resultado todos ouviram muito bem) indicaram que haviam percorrido duzentas e dez milhas desde o meio-dia de um dia ao do seguinte.
Uma vez mais, todos deram vivas e, uma vez mais, Padeen não pôde escutá-los, já que estava na coberta inferior guardando o frasco de láudano, que desta vez havia
completado com mais quantidade de líquido.
- O senhor Bulkeley se ocupou de preparar os cabos e os moitões, assim que não acredito que nos leve muito tempo.
Também deviam trocar o mastaréu de joanete maior, e assim que os marinheiros terminaram de almoçar começaram a tediosa tarefa de subir as vergas necessárias; uma
dura tarefa, porque os botes estavam colocados em cima delas e antes tinham que pendurá-los nas vergas do mastro maior e do traquete e depois descê-los. Stephen
e Martin, que tinham uma especial habilidade para ficar no meio quando se faziam manobras desse tipo, mas que resistiam a ficar na coberta inferior em um dia como
aquele (especialmente agora que podiam ver muitas das aves que costumam se aninhar nos arrecifes), decidiram ir-se para o castelo com suas almofadas e seus cabos
para pescar.
- Agora vamos muito mais devagar - observou Martin.
- Fiz esse mesmo comentário ao capitão - explicou Stephen -, mas ele me disse que não me preocupasse; isto se deve a estarmos a sotavento da ilha e dentro de uma
hora mais ou menos estaremos navegando tão rápido como sempre.
Quando a Surprise começou a rebocar o esquife, a pinaça e o bote, já havia dobrado o cabo de Madrugada, e perto dali, seguindo uma rota que logo cruzaria a sua,
navegava um atuneiro de São Miguel pintado de cores escandalosas.
- Mudem de orientação o velacho! - gritou Jack.
A Surprise perdeu velocidade consideravelmente e o atuneiro mudou o rumo para corresponder ao óbvio convite do capitão.
- Digam ao doutor que venha - ordenou e depois, quando o doutor chegou, perguntou -: Doutor, sabe falar português, não é?
- Falo bastante bem - confirmou Stephen.
- Então, por favor, compre-lhes pescado se têm e pergunte que ventos sopraram por aqui esta semana. Se considerar oportuno, pergunte também pelo Spartan, mas o que
realmente é importante saber é se o vento, sobretudo o que soprava na terça-feira, vinha do sul e se era forte.
O barco se abordou com a fragata. Subiram as cestas com pescado (prateados bonitos de quase três pés de comprimento) e desceram com moedas contadas cuidadosamente
e em voz alta para evitar erros. Então o doutor Maturin passou a conversar com o capitão do barco e enquanto isso West e Davidge desceram a falua e os dois cúteres.
Jack foi para sua cabine, e lá Stephen lhe deu as más notícias: na terça-feira soprava o vento do sul e era muito forte, e, no dia anterior, o tio do capitão do
atuneiro vira passar um brigue-barca com rumo oeste, como se fosse de Cádis para Faial. Mas o velho cavalheiro não mencionou o nome da embarcação e, além de dizer
que usava bandeira espanhola, não dera mais detalhes dela.
- Bem, bem... - disse Jack -. Pelo menos fizemos o possível para conseguir. Mas vamos beber uma cerveja para celebrar o pescado que comeremos. Não há nada melhor
que uma rodela de bonito grelhada. Killick, Killick! Traga duas latas de cerveja e bolachas para que desça melhor.
A essa hora do dia a cerveja fria não lhes resultou desagradável, e enquanto bebiam Jack disse:
- Se fosse supersticioso, diria que eu mesmo provoquei isto por elogiar tanto o percurso de ontem, o fato de ter avistado terra exatamente onde havia previsto e
o tempo excepcionalmente bom.
- Não lhe ouvi elogiar nada.
- Mas o destino sim. Creia-me, Stephen, esse tipo de coisas não são simplesmente contos de velhas viúvas nem uma bobagem como passar por debaixo de uma escada. Acredito
que debe-se tratar o destino ou a sorte, ou como queira que se chame, com o devido respeito. Os homens não devemos alardear e tampouco desesperar-nos, porque isso
não estaria bem; assim que pode rir se quiser, mas penso em continuar a mudança do aparelho e patrulhar a zona compreendida entre São Miguel e Santa Maria durante
o resto do dia. Amanhã, depois de ter desfeito a troca, poderemos ir para casa e, se quiser, passaremos por Formigas e lhe deixaremos em terra entre uma mudança
da maré e outra.
A Surprise, convertida agora em uma brigue-barca de cor azul claro, navegava lentamente com o vento em contra entre as duas ilhas. Na metade da guarda de primeiro
quartilho chegou à posição que o capitão considerava ideal, mas o Spartan não apareceu. Na realidade, ninguém tinha esperanças de encontrá-lo, pois muitos marinheiros
entendiam um pouco o português e, combinando uns com os outros o que haviam compreendido, chegaram à conclusão acertada. Seu respeito por Jack Aubrey fez com que
trocassem o aparelho da fragata com grande rapidez e precisão e não protestassem nem deixassem de fazer as coisas com prontidão, enquanto a fragata navegava de um
lado para outro, dando trabalhosamente muitas voltas, umas mais lentas e outras mais rápidas. Essas voltas não eram muito diferentes das que dava o capitão, que
percorria milhas caminhando do coroamento até um parafuso que ficava do outro lado do corrimão, um parafuso prateado ao qual o salto de seu sapato lhe havia dado
brilho ao girar.
Essa tarde não passaram em revista. Nos casos como esse, os marinheiros passavam a guarda do segundo quartilho tocando música e cantando no castelo, mas esse dia
a passaram conversando tranqüilamente e desfrutando da cálida tarde.
O sol se pôs, criando uma luz rosácea durante um tempo; os marinheiros desceram as macas; a guarda mudou, e começaram as tarefas noturnas de rotina na fragata, que
navegava alternativamente para o norte e para o sul com os botes a reboque. De acordo com as normas de Jack, os tripulantes deveriam ter subido os botes a bordo;
mas estavam cansados e desalentados e no dia seguinte, para a viagem de regresso, teriam que pôr tudo o que haviam mudado como estava antes, teriam que fazer esse
trabalho pesado duas vezes, assim que Jack deixou as coisas como estavam.
Quando estava sentado em sua escrivaninha na grande cabine começou uma nova página de uma carta que escrevia para Sophie, uma espécie de diário que ela também poderia
ler:
Minha querida Sophie:
Aqui estamos, ao sul de São Miguel, navegando pelas águas quentes como o leite. Queria que aí o tempo fosse a metade de bom que é aqui. Se é assim, a roseira amarela
do muro que dá para o sul estará florescendo. Espero ver-lhe dentro de mais ou menos uma semana, porque iniciaremos a viagem de regresso amanhã. Não tivemos tanta
sorte como pensávamos na viagem, porém, como lhe disse, capturamos uma valiosa presa, a Merlin, e os novos tripulantes se adaptaram muito bem.
Stephen diz que raras vezes viu uma tripulação mais sã (na lista de enfermos só figura Padeen, que tem dor de dentes) e atribui isso ao fato de que têm muito pouco
o que comer e só tomam cerveja. Neste momento ele e Martin estão nos botes que vão a reboque pegando insetos fosforescentes com uma rede e uma peneira e tenho que
confessar que...
Interrompeu a carta e deixou de um lado a caneta ao ouvir algo parecido a um canhonaço. Um instante depois voltou a se ouvir o ruído e Jack subiu correndo para o
convés, onde se encontravam Davidge e West com os telescópios apoiados na borda de sotavento.
- Justo pelo través, senhor - informou West -. Agora disparam de novo.
- Estão a dez milhas de distância - afirmou Davidge quando o ruído chegou por fim até onde se achavam.
- E pelo menos a meia milha de distância um do outro - acrescentou West.
Houve uma comprida pausa na qual observaram com grande atenção o horizonte ao leste, uma pausa durante a qual o barco que estava à esquerda disparou duas vezes e
o da direita, que estava ao sul, três.
- Senhor Davidge, situe a fragata com o vento em popa - ordenou Jack.
- Quer que suba os botes a bordo, senhor? - presumiu Davidge.
- Ainda não, porém, por favor, suba ao doutor - respondeu Jack antes de descer correndo para buscar sua luneta.
A fragata virou devagar com a suave brisa e dirigiu a proa para o leste. Jack podia ver uma grande extensão do mar desde a verga do traquete e, ao olhar pela luneta
de noite, comprovou que era verdade o que antes lhe parecia quase certo: aquilo era um combate entre dois barcos. O perseguidor navegava na esteira do perseguido,
a meia milha de distância, e ambos disparavam com grande precisão; o primeiro com os dois canhões de proa e o segundo com os dois de popa e provavelmente um do castelo
de popa. A lua não sairia até passadas algumas horas, mas sua luz já se difundia ao redor do zênite e, quando Jack, que tinha enfocado o primeiro barco com a luneta,
viu um clarão, notou que o perseguido era uma brigue-barca. O clarão do canhão do castelo de popa (realmente havia um canhão no castelo de popa) iluminou a carangueja
e pôde ver que o barco não tinha sobremezena. Jack comprovou isso outra vez e depois gritou:
- Convés! Convés! Todos a mudar de bordo!
Era possível que os barcos fossem de nacionalidade francesa e britânica, ou estadunidense e britânica, ou francesa e espanhola, e que sua certeza de que o perseguido
era o Azul e o perseguidor o Spartan não tivesse mais fundamento que seu desejo de que assim fosse; contudo, quase nenhum barco de guerra da Armada Real usava aparelho
de brigue-barca, e raras vezes o usavam os de outras armadas. De qualquer maneira, ainda que estivesse equivocado, só perderiam uma noite de descanso.
De baixo ouviu então os berros do contramestre e os gritos: "acima, acima! Levantem-se, dorminhocos!".
Desceu da verga e tomou o governo da fragata. Sabia perfeitamente como navegava melhor com esse vento, o único vento que não era desfavorável para ela em seu atual
estado, sem uma sobremezena. Agora navegava com o vento em popa e levava desdobradas a cevadeira, a traquete com as alas de ambos os lados, a gávea e a joanete maiores
com suas alas e a sobrejoanete maior.
- E os botes, senhor? - perguntou Davidge em tom ansioso -. Quer que os subamos a bordo?
- Não. Com o vento em popa, perderíamos mais tempo do que pouparíamos. Mas vejo que já trouxe o doutor. Doutor, quer vir comigo ao cesto da gávea do traquete para
ver o que passa? Bonden, ajude ao doutor e traga-me o estojo com o telescópio especial.
Como o velacho estava aferrado, desde o cesto da gávea do traquete havia boa vista.
- Ali! - exclamou Jack -. Viu? Não tem sobremezena e isso significa que seu aparelho é de brigue-barca, já que com este vento pelo través o capitão haveria desdobrado
a sobremezena se a tivesse. Isso é o lógico. Se quiser lhe digo o que penso que ocorreu e espero que minha suposição esteja certa.
- Sim, por favor.
- Penso que o Azul se pôs em pairo na terça-feira, que o Spartan, ainda que navegasse rumo leste para encontrá-lo, derivou para o norte mais do que devia, e que
se avistaram na última hora desta tarde. Suponho que o Azul orçou para fugir porque nessa posição navega com mais rapidez, mas que o Spartan além de mais veloz e
conseguiu chegar a uma posição da qual seus canhões podem alcançá-lo. Acredito que desde então estão disparando os canhões quase continuamente com a esperança de
derrubar algo.
- Que acha que ocorrerá?
- Se o Azul não conseguir derrubar algo do Spartan, o barco o alcançará e ambos começarão a disparar-se com as baterias. Então tudo dependerá principalmente da habilidade
que tenha cada um para manejar as armas, ainda que se o Spartan puder aproximar-se o suficiente sem perder nenhum pau importante, não há dúvida de que suas caronadas
de quarenta e duas libras sacarão as tripas do Azul.
- Não vamos ser meros espectadores, não é?
- Penso que não, mas duvido que possamos alcançar-lhes antes de que o Spartan, pois assim eu o chamo, alcance ao Azul, porque navegamos com o vento em popa e nenhuma
embarcação, nem mesmo a Surprise, pode avançar muito rápido nestas condições. Com um pouco de sorte, poderemos entrar em combate com ele pouco depois, sabe?, pois
como devemos avançar pelo sul para segui-los, teremos o vento pela alheta e poderemos desdobrar mais velas. É possível que entabulemos combate com ele e que o capturemos.
Houve uma pausa.
- Me alegro de não ter trocado os canhões longos por caronadas, como pensei em fazer uma vez - acrescentou -, porque assim poderemos disparar-lhe a distância em
vez de aproximar-nos de suas caronadas de quarenta e duas libras. Se temos que persegui-lo, soltarei os botes e deixarei Bonden e um punhado de bons marinheiros
na pinaça. Porém, naturalmente, há centenas de possibilidades. O Azul pode orçar e cruzar pela frente do Spartan disparando-lhe de proa a popa e depois abordá-lo
em meio da fumaça. Podem suceder centenas de coisas.
Nesse momento guardaram silêncio e o mesmo fizeram os marinheiros que abarrotavam o castelo, justo debaixo deles, e que contemplavam a distante batalha enquanto
os barcos avançavam lentamente para o oeste na escura noite, que parecia ainda mais escura em contraste com os clarões dos canhões. O perseguidor deu uma guinada
para disparar a bateria e com o resplendor todos viram que tinha aparelho de navio.
- Aposto cem libras que é o Spartan.
- Por que essa luneta é especial? - perguntou Stephen.
- Porque tem a lente dividida em duas e, por isso, se vêem duas imagens. Se as imagens se separam, isso quer dizer que o barco está se afastando, e se se sobrepõem,
isso significa que se aproxima.
Passou uma hora, uma hora e meia, e muito lentamente o perseguidor percorreu o vão que havia deixado de avançar ao dar a guinada, começou a encurtar a distância
que o separava do outro barco. Agora disparava com os canhões de proa e da Surprise se via a meio caminho do horizonte.
O estrondo dos canhões e seu eco se ouviam quase continuamente desde que os dois barcos chegaram a ficar quase paralelos e se formou uma espessa nuvem de fumaça
justo detrás do Azul. Era realmente o Azul, pois Jack vira pelo telescópio seus costados de cor azul claro com o resplendor do bombardeio do Spartan, uma devastadora
descarga. Quando o Spartan se encontrava a meia milha por barlavento, o Azul virou bruscamente como se fosse situar-se com o vento em popa e depois voltou a dirigir
a proa para o outro lado. Então o Spartan disparou contra a desprotegida popa. Jack achou que a distância era muito grande para que os disparos das caronadas fossem
efetivos e que o Spartan não estava tão bem governado como da última vez que o vira, já que avançou um vão muito grande antes de orientar as velas para seguir perseguindo
o Azul.
- Talvez consiga escapar - disse Jack, alçando a voz -. É possível que o Spartan tenha perdido um mastro.
Mas algo estranho havia ocorrido. Parecia que o Azul não se movia e Jack dirigiu para ele seu telescópio especial. A imagem não mudava, depois o barco ficou imóvel.
Ademais, viam-se luzes movendo-se de um lado para o outro do convés, e ainda que o Spartan estivesse se aproximando por fim, os tripulantes do Azul estavam descendo
não um bote, mas dois.
- Meu Deus! - exclamou Jack -. Ele encalhou em Formigas!
Até agora a presa navegara para o sul, e Jack havia mudado o rumo de acordo com isso; contudo, agora mandou arriar velas de modo que só ficassem abertas a traquete
e a maior, a mínima quantidade de velame desdobrado que a fragata devia usar, e mudou o rumo cinco em graus.
Seguiu observando a batalha de pé no cesto da gávea, com as mãos apoiadas na grade, e a via cada vez mais de perto. A lua saiu e iluminou as brancas e enormes nuvens
de fumaça, e Jack viu com assombro que o Spartan se aproximava do costado do Azul mais distante da Surprise, o costado de estibordo, e seus tripulantes engatavam
nele os ganchos e o abordavam.
Desceu para a coberta rapidamente, ordenou que subissem os baús com as armas e os poucos faróis que restavam e depois foi correndo para a proa. Nas distantes águas
a batalha alcançou seu ponto culminante: cada barco disparou três ensurdecedoras descargas seguidas, as duas últimas quase simultâneas. Depois se ouviram alguns
canhonaços e tiros de mosquete e depois se fez o silêncio. Jack viu então que muitos homens saltavam das portalós iluminadas do Azul para os botes situados junto
ao costado de bombordo e se afastavam remando, aparentemente tratando de se ocultar do Spartan.
Ao voltar ao castelo de popa gritou:
- Todos os marinheiros a popa!
Quando os homens se reuniram ali, explicou:
- Companheiros de tripulação, o Azul encalhou em Formigas! O Spartan tem enganchados os ganchos em seu costado e nós vamos capturar a ele e a sua presa nos botes.
Senhor West, ordene ao armeiro que entregue a todos pistolas, sabres e machados de abordagem conforme sua vontade. Eu irei na frente na falua e me seguirão o senhor
Smith no cúter azul e o senhor Bulkeley no vermelho. Abordaremos o Azul, lembrem, o Azul, pelo pescante de proa. O senhor Davidge irá na pinaça, o senhor Bentley
no esquife e o senhor Kane no bote, e os três o abordarão pelo pescante de popa. Todos os botes estarão unidos de proa a popa por um cabo. Abordaremos o Azul, atravessaremos
o convés, como a ponte de Nelson, recordam?, e depois atacaremos os tripulantes do Spartan pela proa e pela popa. Não profiram nem um só som, nem um só, enquanto
nos aproximamos, mas gritem quando abordarem o barco, e quando estejam a bordo a contra-senha será "Surprise!". Atenção - acrescentou, alçando a voz, ao ouvir o
primeiro burburinho -: que não se ouça nenhum som até que estejamos lá. Senhor West, lamento dizer-lhe que o senhor deverá ficar na fragata com dez homens. Terá
que aproximar-se de nós quando façamos um sinal com três lanternas, mas nunca a menos de meia milha. Partiremos dentro de cinco minutos.
Foi para a cabine buscar seu sabre, pôs por escrito as ordens que dera a West para se fosse morto ou a expedição fosse um desastre e depois desceu para a falua.
A escuridão se encheu de sussurros que confirmaram sua idéia de que os homens que o rodeavam tinham muitos brios. Participara de muitos ataques surpresa, mas em
nenhum vira tanta fúria nem tão grande expectativa, ainda que talvez "fúria" não fosse a palavra mais apropiada.
- Prontos? - perguntou com voz suave para cada embarcação.
E de cada uma chegou a resposta: "prontos, senhor".
- Adiante - ordenou.
Havia pequenas ondas que vinham do sul e o vento soprava pela popa. Os botes deslizavam com rapidez pelo mar sem mais ruído que os rangidos da bancada e do tolete
e o burburinho dos remos. Aproximavam-se cada vez mais e se mantinham juntas. Quando percorriam as últimas cem jardas, Jack estava quase seguro de que um monte de
metralha ia sair de repente da coberta inferior do Azul, na qual havia muita luz e se viam marinheiros caminhado de um lado para outro. Inclinou-se para frente e
disse em voz baixa:
- Mais rápido agora. Mais rápido.
Então desembainhou o sabre e, quando Bonden situou a falua debaixo do pescante de proa do Azul, subiu nele de um salto. Depois saltou por cima da borda e, dando
um forte grito, caiu no castelo, ocupado somente por três cadáveres. Imediatamente a multidão de homens que vinha atrás dele o empurrou para frente e, ao mesmo tempo,
ouviu as vivas dos homens do outro grupo ao subir a bordo e os gritos: "Surprise! Surprise!".
Alguns marinheiros com expressão horrorizada apareceram pelas três escotilhas iluminadas e imediatamente desapareceram.
- Vamos, vamos, ajudem-me! - gritou Jack passando a correr pelo corrimão e saltando por cima dos ganchos para passar para o Spartan.
Ainda que o ataque fosse totalmente inesperado, vinte e cinco ou trinta tripulantes do Spartan opuseram resistência no castelo de popa, pegando todas as armas que
puderam encontrar e formando uma massa compacta. Um arrancou o sabre da mão de Jack com uma bala de mosquete; outro lhe fez uma fenda em um lado do pescoço com uma
lança e outro muito baixo e robusto lhe deu um soco no queixo, tombando-o para trás sobre um cadáver. Jack se voltou para um lado e disparou com a pistola no homem
robusto. Depois pegou um pedaço da despedaçada borda de uns seis pés de comprimento e arremeteu contra o grupo com inusitada fúria. Os homens retrocederam, tropeçando
uns nos outros, e imediatamente Jack lhes desferiu um forte golpe e derrubou os três. Estava a ponto de dar-lhes outro golpe, um revés, quando Davidge pegou seu
braço e disse:
- Senhor, senhor, eles se renderam, senhor.
- Ah, foi? - perguntou Jack, ofegando. Seu rosto perdeu a expressão feroz -. Tanto melhor. Alto! Parem de lutar! - acrescentou, olhando para um grupo de homens que
estavam no castelo, e depois, deixando cair sua arma, que parecia uma grande jamba de carvalho, perguntou -: Onde está o capitão?
- Morreu, senhor. O Azul o matou. Este é o único oficial que resta.
- O senhor responde por seus homens, senhor? - perguntou Jack ao homem de cara pálida que tinha em frente.
- Sim, senhor.
- Todos exceto os feridos descerão imediatamente para a bodega. Onde estão os tripulantes do Azul?
- Escaparam nos botes antes que nós o abordássemos, senhor. Mas não restavam muitos.
- Senhor Davidge, traga três lanternas da coberta inferior e pendure-as nos amantilhos.
À luz das lanternas pôde ser visto um desolado cenário. Sem dúvida, o Azul havia disparado com grande precisão e as potentes balas do Spartan, disparadas a curta
distância, haviam destruído tudo o que tocaram. As baixas tinham que ser forçosamente grandes, sobretudo na entrecoberta; contudo, pelo que Jack pôde ver ao caminhar
entre os cadáveres, nenhum de seus homens havia morrido, ainda que Webster, que estava dobrado sobre si mesmo, tinha uma ferida no estômago, e o condestável tinha
um braço ensangüentado e seus ajudantes estavam lhe pondo uma tipóia.
- Senhor - disse o jovem -, peço que corte os cabos do barco, pois não poderá manter-se flutuando por mais de cinco minutos. Estávamos esperando terminar de sacar
as últimas bolsas de mercúrio.
- Sinto muito que tenha perdido, Tom - disse Jack Aubrey quando desjejuava na cabine com Pullings, que, tal como haviam acordado, compareceu ao encontro pouco antes
de que saísse o sol -. Foi a melhor surprise que possa imaginar. E não havia outra maneira de fazer as coisas porque, naturalmente, eu não ia meter a fragata entre
esses obstáculos durante a noite. Esses arrecifes são terríveis. O Azul se afundou em um lugar de dez braças de profundidade pouco depois de pegarmos os feridos.
Nunca compreenderei como esse jovem insensato pôde se aproximar dele sem sofrer danos.
- Lamento que o tenham ferido, senhor - respondeu Pullings -. Espero que a ferida não seja tão grave como parece.
- Não tem importância. Inclusive o doutor diz que não tem importância, e quando a fizeram não senti nada. Não foi mais que uma roçadura com a lança. Quase não sofremos
danos, mas o Spartan e o Azul se destruiram um ao outro. Foi a batalha curta mais sangrenta que já vi. As cobertas estavam cheias de sangue, completamente cheias.
No Azul só havia um pequeno grupo de homens capazes de caminhar, um grupo que cabia em dois botes; e no Spartan, além dos feridos, havia duas vintenas de homens.
É verdade que muitos homens foram enviados para tripular as cinco grandes presas, porém, apesar de tudo, houve uma carnificina.
- Aqui está o contramestre, senhor - informou Killick.
- Sente-se, senhor Bulkeley - ordenou Jack -. O que queria lhe perguntar era se temos muitas bandeiras francesas.
- Somente três ou quatro, senhor.
- Então, se quiser, poderia fazer algumas mais. Não digo que tenha que fazê-las, senhor Bulkeley, porque isso suporia ser muito presunsoso, só digo que pense na
possibilidade de fazê-las.
- Sim, senhor. Pensarei nessa possibilidade - disse o contramestre e pediu permissão para se retirar.
- Bem, Tom - continuou Jack -, voltando às presas, não temos nem um minuto a perder. Sei que o doutor proferirá juramentos - acrescentou, olhando pela janela a ilhota,
pela qual Stephen e Martin andavam a gatas depois de ter deixado os feridos com os cirurgiões -, mas zarparemos rumo a Faial tão logo o Spartan esteja em condições
de navegar, e a verdade é que tem muitos cabos e provisões de todo tipo. Avançaremos tão rápido como possamos, a toda vela, porque o final do mês e a Constitution
estão mais perto a cada dia. Navegaremos rumo a Faial, porque as cinco presas do Spartan estão ali, atracadas no porto de Horta. O Spartan aparecerá frente ao porto
acompanhado de um barco que se parece muito com o Azul, e, certamente, não entrará na longa baía porque perderia muito tempo manobrando; contudo, a Merlin, que todos
conhecem muito bem, entrará, disparará duas salvas e dará o sinal de saída. As presas recolherão âncoras e se reunirão conosco em alto mar, onde substituiremos seus
tripulantes, e então as levaremos para a Inglaterra com uma bandeira francesa içada em cada uma para enganar à Constitution se nos encontrarmos com ela. Entende
o que quero fazer, Tom?
CAPÍTULO 4
O doutor Maturin e seu ajudante estavam em uma farmácia e revisaram o que haviam comprado para o estojo de remédios da Surprise.
- Acho que isto é tudo, além da sopa em pó, os retratores duplos e um par de saca-balas para extrair balas de mosquete, que poderemos encontrar na loja de Ramsden.
- Não se esquece do láudano? - perguntou Martin.
- Não. Há uma razoável quantidade a bordo. Mas agradeço por me lembrar.
A razoável quantidade estava distribuída em garrafões de onze galões protegidas por um tecido de vime e o conteúdo de cada uma equivalia a quinze mil doses como
as que administravam normalmente nos hospitais. Stephen pensou nelas com satisfação.
- A tintura de ópio, administrada adequadamente, é um dos remédios mais efetivos que temos - afirmou -, e por isso procuro não ficar nunca snela. Às vezes a uso
eu mesmo como sedante. Porém, sabe de uma coisa, Martin? - perguntou depois aproximar a lista da luz e revisá-la de novo -. Acho que seu efeito diminue. Como está,
senhor Cooper?
- Como está o senhor, senhor? - perguntou o desdentado boticário, e em seu tom e sua pálida cara se notava uma grande satisfação -. Acredito que está surpreendentemente
bem, ah, ah, ah! Quando a senhora Cooper me disse que o cirurgião da Surprise estava na farmácia eu lhe disse: "Vou descer para felicitar o doutor Maturin por sua
surpreendente viagem". Então ela me disse: "Cooper, não acredito que vá tomar a liberdade de brincar com o doutor". E eu lhe repliquei: "Querida minha, nós nos conhecemos
há muitos anos, e ele não se importará que lhe faça uma brincadeira". Eu lhe felicito, senhor, felicito de todo coração.
- Obrigado, senhor Cooper - disse Stephen, apertando sua mão -. Agradeço muito por sua amabilidade.
Quando ambos estavam de novo na rua, Stephen continuou:
- Seu efeito diminue consideravelmente, ainda que não sei o motivo. O senhor Cooper é um homem confiável e usei a tintura que prepara em muitas viagens. Sempre a
preparou da mesma forma, sempre. É feita com bom conhaque em lugar de álcool, assim que esse não é o problema. A explicação tem que ser outra, mas não sei qual,
e como estou decidido a tomar só uma dose moderada, salvo em caso de emergência, tenho que resignar-me a passar uma noite sem dormir de vez em quando.
- Que dose o senhor considera moderada? - inquiriu Martin por curiosidade.
Sabia que a dose normal era de vinte e cinco gotas e vira Stephen dar a Padeen sessenta para poder acalmar sua terrível dor, mas também sabia que tomá-lo habitualmente
podia provocar certo grau de tolerância e queria averiguar se o grau era muito alto.
- Uma dose que não parece muito grande para alguém acostumado a tomá-lo. Não mais de... não mais de mil gotas, mais ou menos.
Martin reprimiu uma exclamação de horror e para ocultar sua expressão chamou um coche que passava.
- Tendo em conta que a chuva parou, o céu está limpo e só temos que caminhar uma milha inglesa, não lhe parece que isto é desnecessário, colega? - perguntou Stephen.
- Querido Maturin, se o senhor houvesse sido tão pobre como eu e durante tão longo tempo, ao fazer por fim fortuna desfrutaria dos luxos da boa vida. Somente os
mesquinhos são incapazes de sentir prazer.
- Bem - disse Stephen; pôs o pacote no coche e depois subiu nele -. Mas espero que o senhor não se torne orgulhoso.
Pararam em Ramsden, arrumaram as provisões que faltavam e se separaram. Martin foi buscar uma tecido que combinasse com um pedaço de seda pintada de sua esposa e
Stephen se foi ao seu clube.
Os porteiros do Black's eram muito discretos, mas eram inconfundíveis seus expressivos sorrisos e reverências, o tom comprazido com que lhe deram bom dia e lhe entregaram
uma nota de sir Joseph Blaine, que era outra vez o chefe do Serviço secreto naval. Nela sir Joseph lhe dava as boas-vindas a Londres e confirmava o encontro dessa
tarde.
"Às seis e meia - pensou Stephen, olhando de soslaio o relógio Tompion que havia no saguão -. Terei tempo para ir ver como está a senhora Broad."
Então olhou para o porteiro do saguão e disse:
- Ben, por favor, guarde-me este pacote até que regresse, e não deixe que me reúna com sir Joseph snele.
Depois perguntou ao cocheiro:
- Conhece o Grapes, no distrito de Savoy?
- A hospedaria que queimou e que estão reconstruindo?
- A mesma.
Se houvesse névoa, como costumava ocorrer nas margens do rio, ou a tarde estivesse avançada, o Grapes haveria sido o mesmo lugar, porque o estavam reconstruindo
sem introduzir nenhuma mudança e Stephen poderia ter encontrado seu quarto com os olhos vendados; contudo, os tijolos novos não tiveram tempo de recobrir-se de uma
capa de sujeira londrina e as janelas sem vidros dos pisos superiores davam ao lugar um aspecto sinistro que não merecia. Até Stephen entrar na sala de estar não
se sentiu como em sua casa. Ali tudo estava sempre muito limpo e, além do odor de gesso fresco, não se observava nenhuma diferença. Conhecia a hospedaria perfeitamente
bem e mantivera reservado um quarto permanentemente durante anos. Era muito tranqüilo e conveniente para os membros da Royal Society, a Sociedade de Entomólogos
e outras organizações de intelectuais, e além disso ele sentia grande estima pela dona.
Nesse momento diminuiu um pouco sua estima pela senhora Broad, pois de um dos pisos superiores chegou sua voz escandalosa em uma profussão de frases em tom furioso.
Os gritos das mulheres sempre o deixavam nervoso, e ficou ali de pé com a cabeça baixa, as mãos atrás das costas e uma expressão de desgosto. Aparentemente tinham
o mesmo efeito nos dois vidraceiros que desceram a escada nesse momento respondendo em tom submisso à torrente de palavras que caía desde cima: "Sim, senhora. Desde
já, senhora. Imediatamente, senhora. Sem falta, senhora". Ao chegar à porta, ambos colocaram bem os chapéus de papel na cabeça, olharam-se com angústia e se afastaram
rapidamente.
Podia-se ouvir como a senhora Broad resmungava enquanto descia a escada:
- Malditos preguiçosos! Radicais! Jacobinos! Pilantras! Canalhas!
Chegou à sala de estar e sua voz subiu ainda mais de tom quando disse:
- Não, senhor, não podemos servir-lhe! A hospedaria não está aberta ainda nem o estará nunca por culpa desses malditos monstros. Oh, meu Deus! Mas é o doutor! Deus
lhe abençoe, senhor. Sente-se, lhe rogo.
Nesse momento sua habitual expressão alegre apareceu em sua cara como o sol assomando por trás de uma nuvem roxa e ela apoiou seus gordos braços no braço de uma
poltrona.
- Então o senhor está na cidade, senhor. Lemos coisas sobre o senhor nos jornais, e na vitrina de Gosling havia desenhos e uma gravura... meu Deus, quantos sucessos!
Espero que ninguém tenha ficado ferido. E como está o capitão? Acho que vou chorar de raiva porque esse sem-vergonha me prometeu instalar as janelas dos pisos superiores,
entre as quais se encontram as de seu quarto, faz três semanas. Três semanas, e como vê, ainda não há janelas. A chuva entrou e estragou os pisos que as meninas
poliram, e isso é suficiente para fazer uma mulher chorar. Mas o senhor não traz nada nas mãos. A que há vindo, senhor? Para brindar pelo novo Grapes?
- Para bendizer a hospedaria e a sua dona, senhora Broad - respondeu Stephen -. E eu gostaria de tomar uma taça de uísque.
A senhora Broad, mais tranqüila, regressou com uma bandeja sobre a qual havia uma torta e copos (ela ia tomar licor de uva vermelha porque estava um pouco rouca)
e um pacote de guardanapos de papel sob o braço. Sentaram-se, um de cada lado da chaminé; o doutor Maturin fez a benção, e a senhora Broad perguntou se tinha notícias
do norte.
Ela e Diana haviam tentado que Stephen ficasse saudável, bem alimentado, vestido de acordo com a estação, com roupas íntimas limpas e com roupa bem escovada, e durante
aquela comprida e infrutuosa campanha haviam chegado a ser amigas, ainda que já desde o início haviam simpatizado. A senhora Broad sabia bastante bem o que ocorria
entre o doutor e a senhora Maturin, mas admitia tacitamente como certa a falsa afirmação de que Diana se havia ido ao norte por problemas de saúde enquanto Stephen
viajava pelos mares.
- Não - respondeu Stephen -, mas é possível que vá ali dentro de pouco.
- Eu tive notícias no dia da Anunciação - disse a senhora Broad -. Um cavalheiro da legação me deu isto - acrescentou, desenbrulhando uma boneca sueca com uma peliça
de marta zibelina -. Ela dizia na nota que comunicasse ao doutor que estavam lhe fazendo uma capa a prova de água em Swainton e que se esquecera de dizer. Também
dizia que teve que tecê-la de forma especial, mas que provavelmente já estará terminada. A peliça é de autêntica marta zibelina - acrescentou, alisando a roupa da
boneca e seu loiro cabelo.
- Ah, é? - perguntou Stephen, pondo-se de pé e olhando a rua pela janela -. De autêntica marta zibelina?
Teria sido melhor romper definitivamente com Diana do que andar de um lado para outro com seu enorme diamante no bolso, como se fosse um talismã, e tremendo ao ouvir
seu nome. Havia amputado muitos membros no passado, e não só literalmente. Do outro lado da rua viu o seu velho amigo, o cachorro do açougueiro, sentado no umbral e coçando-se a orelha com perseverança canina.


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Pegou um pedaço de torta e saiu da hospedaria. O cachorro fez uma pausa, olhou à direita e à esquerda com seus olhos míopes enquanto retorcia o nariz e o viu. Então cruzou a rua subindo e descendo a cabeça e movendo a calda. Stephen o acariciou a cabeça, observou seu horrível sorriso e notou com tristeza a capa com que os anos haviam coberto seus olhos. Depois lhe deu palmadas nas ancas misturadas e gordas e lhe ofereceu o pedaço de torta, que pegou devagar pelo extremo. Imediatamente se separaram. O cachorro regressou para o açougue, onde, depois de olhar ao seu redor, colocou o pedaço de torta intacto debaixo de um monte de lixo e se jogou no solo. Stephen voltou ao Grapes e disse à senhora Broad:


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No que se refere ao meu quarto, não se preocupe nem um pouco. Não vim para buscar um quarto para mim mas para Padeen, meu servente. Vão operá-lo amanhã em Guy's.
Infelizmente, será uma extração difícil, e não quero que fique em uma sala comum. Provavelmente a senhora terá algum quarto na planta baixa.
- Vão extrair-lhe um dente? Pobrezinho! Sem dúvida, já está preparado um pequeno quarto que se encontra debaixo do seu, mas também Deb pode ficar com Lucy; o que talvez seja melhor, porque o seu quarto é melhor ventilado.
- Padeen é um bom homem, senhora Broad. É do condado de Clare, em Irlanda. Não fala muito inglês e quando fala o pouco que sabe gagueja e demora cinco minutos antes de dizer cada palavra, que com freqüência não é a correta. Contudo, é obediente como um cordeiro e sempre está sóbrio. Agora tenho que deixá-la, porque tenho um encontro do outro lado do parque.
Em seu percurso tinha que passar pela rua Strand, que ficava cheia de gente, e também por Charing Cross, que ficava ainda mais cheia, pois além de três ruas de muito tráfego confluírem para ali, havia caído um cavalo que puxava um carro, obrigando a deter-se ao seu redor carruagens, caleches e diligências, e entre eles e os passageiros que haviam descido passavam ginetes, liteiras e coches pequenos. O cocheiro permanecia sentado sobre a cabeça do animal esperando que o garoto que o ajudava desatasse todas as fivelas desnecessárias. A multidão, entre a qual Stephen passou lentamente, estava de bom humor, e que rodeava ao garoto e ao cavalo dava ao primeiro muitos conselhos em tom humorístico. Era composta por pessoas muito diversas, que se diferenciavam sobretudo pelos uniformes, majoritariamente vermelhos. Aquela maré humana produzia uma...

 

 

                                                                                                    

 

 

                                       

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