Biblio "SEBO"
Faltam onze minutos para a meia-noite. No sistema central do Vaticano infiltra-se um vírus informático com uma estranha mensagem acerca de uma igreja em Sevilha que "mata para se defender". Alguns instantes depois um dos computadores ligado à rede dá o alarme, o que provoca movimentações imediatas no seio dos serviços secretos, empenhados em descobrir a identidade do autor da informação e em investigar o que se passa naquela igreja sevilhana. Injustiças cometidas em nome de crenças religiosas, diálogos labirínticos plenos de equívocos e uma teia de intrigas, temperam a narrativa de Pérez-Reverte envolvendo o leitor num ambiente de mistério cultivado a cada página. Para esta trama habilmente urdida contribui ainda a caracterização das personagens que discorre densa e progressivamente de conversas, pensamentos e sensações, o que resulta numa obra de onde emergem vários tipos de romance, do policial ao amoroso, passando pelo psicológico, do qual se pode retirar uma perspectiva acerca da vida e do mundo, enriquecida pela irrequieta moldura da acção.
O pirata informático infiltrou-se no sistema central do Vaticano quando faltavam onze minutos para a meia-noite. Trinta e cinco segundos mais tarde, um dos computadores ligados à rede principal deu o alarme. Foi apenas uma cintilação no écran do monitor, anunciando a entrada automática em funcionamento do controlo de segurança perante uma intromissão exterior. Depois, as letras HK apareceram a um canto do monitor e o funcionário de guarda, um jesuíta que nesse momento trabalhava na incorporação de dados sobre o último censo do Estado Pontifício, pegou no telefone para avisar o chefe de serviço,
- Temos um hacker - anunciou.
Abotoando a sotaina, o padre Ignacio Arregui, outro jesuíta, saiu para o corredor a fim de percorrer os cinquenta metros até à sala dos computadores. Era ossudo e fraco, e os seus sapatos rangiam sob os frescos na penumbra. À medida que caminhava, espreitou pelas janelas em direcção à deserta Via delia Tipografia e à fachada obscura do Palácio Belvedere, e murmurou discretamente, entredentes. O seu mau-humor provinha mais do facto de ter sido despertado enquanto decifrava um sonho do que pelo aparecimento do intruso. As incursões eram frequentes, mas inofensivas. Limitavam-se, habitualmente, ao perímetro de segurança exterior, deixando ligeiros vestígios da sua passagem: mensagens ou pequenos vírus. Um pirata informático - um hacker, em gíria técnica - gostava que os outros soubessem que tinha estado ali. Tratava-se, em geral, de rapazes muito jovens, habituados a viajar através das linhas telefónicas, explorando os sistemas alheios, em busca de algo ainda mais difícil. Para os junkies do chip, viciados em alta tecnologia, tentar a sorte com o Chase Manhattan Bank, o Pentágono ou o Vaticano constituía sempre uma excitante aventura.
O funcionário de guarda era o Padre Cooey, outro jesuíta irlandês, jovem e corpulento, que usava óculos. Franzia o sobrolho com preocupação, inclinado sobre as teclas do seu computador, no rasto informático do pirata. Quando se aproximou, o padre Arregui viu que erguia os olhos com expressão de alívio. A luz do seu candeeiro de trabalho iluminava-lhe a parte inferior do rosto.
- Não sabe quanto me agrada vê-lo, Padre.
O superior instalou-se a seu lado, apoiando as mãos na mesa, sob a luz, atento ao monitor onde cintilavam ícones em azul e vermelho. O sistema de busca automática mantinha contacto permanente com o sinal do intruso.
- É grave?
- Pode ser que sim.
Só uma vez, nos últimos dois anos, tinha sido grave, quando um pirata conseguira infiltrar um vírus informático na rede do Vaticano. Os vírus eram ficheiros destinados a multiplicar-se no espaço do sistema até o bloquearem, e, naquele caso, limpar a rede e reparar os prejuízos tinha ficado em meio milhão de dólares. Identificado após uma longa e complexa busca, o pirata era um rapaz de dezasseis anos, residente numa pequena aldeia da costa holandesa. Outras tentativas sérias no sentido de infiltrar vírus ou programas assassinos tinham sido abortadas logo no início: um jovem mormon de Salt Lake City, uma sociedade islâmica fundamentalista com sede em Istambul, um cura louco inimigo do celibato, que utilizava o computador do manicómio durante a noite. O cura, um francês, manteve-os em xeque durante um mês e meio, e conseguiram neutralizá-lo quando já tinha infectado quarenta e dois ficheiros com um vírus que bloqueava os monitores com insultos em latim.
O Padre Arregui pôs um dedo sobre o cursor, que cintilava a vermelho:
- O nosso hacker?
- Sim.
- Que nome lhe atribuiu?
Davam sempre um nome a cada um deles, para efeitos de identificação e perseguição; muitos eram velhos conhecidos. O Padre Cooey assinalou uma linha no canto inferior direito do monitor:
- Vésperas, por causa da hora. Foi a primeira coisa que me ocorreu.
No monitor apagaram-se uns ficheiros e acenderam-se outros. Cooey observou-os com atenção e depois levou o cursor do rato até um deles e clicou duas vezes. Agora que tinha junto de si um superior sobre o qual podia descarregar a responsabilidade, a sua atitude era diferente: mais relaxada e de expectativa. Para um veterano informático, e este jovem era-o, a actuação de um pirata constituía sempre um desafio profissional.
- Há dez minutos que está aí - disse, e o Padre Arregui julgou perceber um sentimento de admiração contida. - A princípio, limitou-se a percorrer as diferentes entradas, explorando. Depressa se infiltrou. Já conhecia o caminho; certamente visitara-os antes.
- Que intenções tem? Cooey encolheu os ombros.
- Não sei. Mas trabalha depressa e bem, com um sistema triplo para eludir as nossas defesas: começa por experimentar trocas simples de nomes de utilizador conhecidos, depois nomes do nosso próprio dicionário e uma lista de 432 contra-senhas - ao chegar a este ponto, o jesuíta torceu ligeiramente a boca, como para reprimir um sorriso inoportuno. - Agora está a explorar as entradas em INMAVAT.
Inquieto, o Padre Arregui tamborilou com as unhas sobre um dos manuais técnicos que cobriam a mesa. A INMAVAT era uma lista reservada de altos cargos da Cúria do Vaticano. Só se entrava nela com uma chave pessoal e secreta.
- Scanner de perseguição? - sugeriu.
Cooey apontava com o queixo o écran de outro monitor aceso, na mesa contígua. Já pensei nisso, dizia o gesto. Ligado à polícia e à rede telefónica do Vaticano, aquele sistema registava todos os dados relativos ao sinal do infiltrado; dispunha mesmo de uma armadilha para hackers, uma série de percursos-chamarizes em cujos meandros os intrusos se demoravam, deixando pistas que permitiam a sua localização e identificação.
- Não conseguiremos grande coisa - alvitrou Cooey, ao fim de alguns instantes. - Vésperas disfarçou o seu ponto de entrada no sistema, saltitando por diversas redes telefónicas. Cada vez que efectua uma volta através de uma delas, temos de segui-la até ao comutador de entrada... Levaríamos muito tempo até conseguir alguma coisa. E, apesar disso, se o que pretende é causar prejuízo, vai fazê-lo.
- Que mais pode querer?
- Não sei - a expressão meio curiosa, meio divertida voltou a insinuar-se na boca do jovem, desvanecendo-se mal ergueu a cabeça. - Por vezes limitam-se a bisbilhotar, ou deixam uma mensagem. Já sabe: O Capitão Zap esteve aqui, e coisas do género - fez uma pausa, observando o monitor. - Se bem que este se dê a muito trabalho para um simples passeio.
O padre Arregui anuiu duas vezes enquanto seguia, absorto, as incidências do sinal no monitor. Depois pareceu cair em si, olhou para o telefone iluminado no cone de luz do candeeiro e fez o gesto de estender a mão para o auscultador; mas, a meio caminho, deteve-se.
- Crê que vai entrar no INMAVAT?
Cooey apontou para o monitor do seu computador.
- Acaba de fazê-lo - disse.
- Santo Deus!
O cursor vermelho cintilava agora a toda a velocidade, percorrendo rapidamente uma longa fila de arquivos que desfilavam no monitor.
- É bom - disse Cooey, já sem dissimular a sua admiração. - Que Deus me perdoe, mas este hacker é muito bom - fez uma pausa e sorriu. - Terrivelmente bom.
Tinha-se esquecido do teclado e, de cotovelos sobre a mesa, observava. A lista de acesso restrito estava diante dos seus olhos, a descoberto. Oitenta e quatro cardeais e altos funcionários, cada um representado pelo respectivo código. O cursor percorreu a linha de cima a baixo, duas vezes, depois deteve-se, com uma cintilação, na linha marcada V01A.
- Ah, maldito! - murmurou o padre Arregui.
O registo de transferência indicava um aumento progressivo na memória interna, o que significava que o intruso tinha feito saltar a chave de segurança e infiltrava um arquivo pirata no sistema.
- Quem é V01A? - perguntou Cooey.
Não obteve resposta imediata. Desabotoando o colarinho redondo da sotaina, o padre Arregui passou a mão pela nuca e olhou de novo, incrédulo, para o écran do monitor. Depois pegou rapidamente no telefone e, hesitando ainda um instante, marcou o número de urgência da secretaria do Palácio Apostólico. A campainha tocou sete vezes antes que uma voz respondesse em italiano. Então o padre Arregui aclarou a garganta e informou que um intruso tinha entrado no computador pessoal do Santo Padre.
O HOMEM DE ROMA
Por algum motivo traz a espada. É o agente de Deus.
(Bernardo de Claraval, Elogio da Milícia Templário)
Foi no começo de Março que Lorenzo Quart recebeu a ordem que havia de levá-lo a Sevilha. Uma tempestade deslocava-se em direcção ao Mediterrâneo Oriental, e a frente chuvosa passava naquela manhã sobre a praça de São Pedro de Roma, de tal modo que Quart teve de caminhar em semicírculo, protegendo-se da água sob a colunata de Bernini. Enquanto se aproximava da Porta de Bronze verificou que a sentinela, recortada com a sua alabarda na penumbra do corredor de mármore e granito, se dispunha a identificá-lo. O guarda era um suíço alto e forte, de crânio rapado sob a boina negra do uniforme renascentista às riscas vermelhas, amarelas e azuis; e Quart viu que observava com curiosidade o corte impecável do seu fato escuro, a condizer com a camisa de seda negra de colarinho romano e os sapatos de pele fina e também negra, cosidos à mão. Nada que ver, dizia aquele olhar, com os cinzentos bagarozzi, os funcionários da complexa burocracia do Vaticano que por ali passavam diariamente. Mas, como se podia ler nos desconcertados olhos claros do suíço, também não era um aristocrata da Cúria: um daqueles prelados e monsenhores que, no mais discreto dos casos, existiam uma cruz, um filete de púrpura ou um anel. Esses não chegavam a pé, debaixo de chuva, mas acediam ao Palácio Apostólico por outra porta, a de Santa Ana, a bordo de confortáveis automóveis com motorista. Além disso, o homem que se detinha, cortês, diante da sentinela e tirava do bolso uma carteira de pele, procurando a sua identificação entre diversos cartões de crédito, era demasiado jovem para a mitra, apesar do cabelo salpicado de cãs, que usava curto, como o de um militar. Muito alto, delgado, tranquilo e seguro de si, observou o suíço, com olhar profissional. Mãos de unhas tratadas, relógio de mostrador branco, botões de punho em prata de desenho singelo. Deu-lhe, quando muito, quarenta anos.
- Guten Morgen. Wie ist der Dienst gewesen?
Não foi a saudação, formulada em perfeito alemão, que fez a sentinela erguer-se e apresentar a alabarda, mas as siglas IOE junto da tiara e das chaves de São Pedro no canto superior direito do documento de identidade que lhe mostrava o recém-chegado. O Instituto para as Obras Exteriores figurava no grosso tomo vermelho do Anuário Pontifício como uma dependência da Secretaria de Estado; mas até o mais bisonho recruta da Guarda Suíça estava a par de que, durante dois séculos, o Instituto tinha funcionado como o braço executivo do Santo Ofício, e agora coordenava todas as actividades secretas dos Serviços de Informação do Vaticano. Os membros da Cúria, mestres na arte do eufemismo, costumavam referir-se a ele como A Mão Esquerda de Deus. Outros limitavam-se a chamar-lhe - nunca em voz alta - Departamento dos Assuntos Sujos.
- Kommen Sie herein.
- Danke.
Deixando para trás a sentinela, Quart franqueou a velha Porta de Bronze, dirigindo-se para a direita, passou diante da ampla escadaria da Scala Regia e, depois de se deter em frente da mesa de apresentação de credenciais, subiu dois a dois os degraus de uma sonora escada de mármore no alto da qual, atrás da porta envidraçada vigiada por outra sentinela, se abria o pátio de São Dâmaso. Atravessou em diagonal sob a chuva, observado por outros guardas que, cobertos com capas azuis, protegiam cada uma das portas do palácio apostólico. Subindo por outra curta escada, deteve-se no penúltimo degrau, diante de uma porta junto da qual havia uma discreta placa metálica aparafusada: Istituto per lê Opere Esteriori. Tirou então um lenço de papel do bolso, para secar as gotas de água do rosto. Depois, inclinando-se sobre os sapatos, utilizou-o para limpar os restos de chuva, fez com ele uma pequena bola e atirou-o para um cinzeiro de latão que havia junto da porta, antes de verificar o estado dos punhos negros da camisa, esticar o casaco e tocar a campainha. Ao contrário dos outros sacerdotes, Lorenzo Quart tinha perfeita consciência da sua debilidade no tocante a virtudes mais ou menos teologais: a caridade ou a compaixão, por exemplo, não eram o seu forte. Nem tão-pouco a humildade, apesar da sua natureza disciplinada. Carecia de tudo isto, mas não de minúcia, ou rigor, e este facto tornava-o valioso para os seus superiores. Como sabiam os que esperavam por detrás daquela porta, o padre Quart era preciso e fiável como um canivete suíço.
Faltava a luz no edifício, e a única luminosidade que entrava no gabinete era a claridade parda de uma janela aberta para os jardins do Belvedere. Enquanto o secretário fechava a porta atrás de si, Quart deu cinco passadas depois de cruzar o umbral e deteve-se mesmo no centro da sala, entre o ambiente familiar das paredes, onde estantes com livros e arquivadores de madeira ocultavam parte dos mapas pintados a fresco por António Danti durante o pontificado de Gregório XIII: o Mar Adriático, o Tirreno e o Jónico. Depois, ignorando a silhueta que se recortava a contraluz na janela, fez uma breve vénia ao homem sentado atrás de uma grande mesa coberta de pastas com documentos.
- Monsenhor - disse.
O arcebispo Paolo Spada, director do Instituto para as Obras Exteriores, devolveu-lhe um silencioso sorriso de cumplicidade. Era um lombardo forte, maciço, quase quadrado, com ombros possantes sob o trajo negro de três peças que usava sem distintivo algum da sua hierarquia eclesiástica. Com a cabeça pesada e o pescoço largo, parecia um camionista, um lutador ou - talvez mais apropriado em Roma - um gladiador veterano que tivesse trocado a espada curta e o capacete de mirmilão pelo hábito escuro da Igreja. Reforçava este aspecto o cabelo ainda negro e duro como ásperas cerdas, e as mãos enormes, quase desproporcionadas, sem o anel de arcebispo, que nesse momento brincavam com uma faca de papel em bronze, em forma de adaga. Com ela apontou para a silhueta da janela:
- Conhece o Cardeal Iwaszkiewicz, suponho.
Só então Quart olhou para a sua direita e saudou a silhueta imóvel. Claro que conhecia Sua Eminência Jerzy Iwaszkiewicz, bispo de Cracóvia, promovido à púrpura cardinalícia pelo seu compatriota, o papa Wojtila, e prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, conhecida até 1965 pelo nome de Santo Ofício, ou Inquisição. Mesmo como silhueta delgada e obscura a contraluz, Iwaszkiewicz e o que representava eram inconfundíveis.
- Laudeatur Jesus Christus, Eminência.
O director do Santo Ofício não respondeu à saudação, mantendo-se parado e em silêncio. Foi a voz rouca de Monsenhor Spada que introduziu o assunto:
- Se quiser pode sentar-se, Padre Quart. Esta reunião é oficiosa e Sua Eminência prefere estar de pé.
Tinha utilizado o termo italiano uffidosa e Quart captou a diferença. Na linguagem do Vaticano, a distinção entre o ufficiale e o ufficioso era importante. Este último tinha o carácter especial do que se pensava frente ao que se dizia, ou mesmo do que chegava a dizer-se, embora nunca se admitisse tê-lo dito. Mesmo assim, Quart olhou para a cadeira que, com outro movimento da faca, lhe oferecia o arcebispo, e negou suavemente com a cabeça, antes de cruzar as mãos nas costas, enquanto aguardava de pé no meio da sala, com um ar descontraído e tranquilo, como um soldado atento a qualquer ordem.
Monsenhor Spada fitou-o, aprovador, semicerrando os olhos astutos cujo branco era sulcado por laivos castanhos semelhantes aos de um velho cão. Aqueles olhos, o ar maciço e o cabelo de duras cerdas, haviam-lhe valido uma alcunha - O Mastim -, que só ousavam utilizar, em voz adequadamente baixa, os mais destacados e seguros membros da Cúria.
- Folgo em vê-lo de novo, padre Quart. Já lá vai algum tempo. Dois meses, recordava Quart. E, naquela ocasião, também eram três as pessoas presentes no gabinete: eles dois e um conhecido banqueiro, Renzo Lupara, presidente do Banco Continental de Itália, uma das entidades vinculadas ao aparelho financeiro do Vaticano. Lupara, atilado, composto, de irrepreensível moral pública e feliz pai de família, abençoado por Deus com uma bela esposa e quatro filhos, fizera fortuna utilizando a cobertura bancária do Vaticano para desviar dinheiro de empresários e políticos membros da loja Aurora 7, a que pertencia com o grau 33. Era exactamente o tipo de assuntos mundanos que requeriam a especialização de Lorenzo Quart; de modo que, durante seis meses, tratara de seguir o rasto que Lupara deixara na alcatifa de certos gabinetes de Zurique, Gibraltar e São Bartolomeu, nas Antilhas. O fruto daquelas viagens fora um completíssimo dossier que, aberto sobre a mesa do director do IOE, colocara o banqueiro perante a alternativa da cadeia ou de um discreto exit que deixasse a salvo o bom nome do Banco Continental, do Vaticano e, se possível, da senhora e dos quatro rebentos Lupara. Ali, no gabinete do arcebispo, com os olhos esgazeados sobre o fresco que representava o Mar Tirreno, o banqueiro havia captado a essência da mensagem - que monsenhor Spada expôs com muito tacto, servindo-se da parábola do mau servo e dos talentos. Depois, apesar da saudável advertência de que um maçon não arrependido morre sempre em pecado mortal, Lupara fora directamente para uma bonita villa que possuía em Capri, diante do mar, para cair, ao que parece inconfesso, do varandim de um terraço que dava para o penhasco, no mesmo sítio onde, segundo rezava a respectiva placa comemorativa, uma vez tomou vermute Curzio Malaparte.
- Temos um assunto para si.
Quart continuou aguardando, imóvel, no meio da sala, atento às palavras do seu superior, ao mesmo tempo que sentia o olhar invisível de Iwaszkiewicz, vindo da sombra em contraluz junto à janela. Nos últimos dez anos, o arcebispo tivera sempre um assunto adequado para o sacerdote Lorenzo Quart; e todos eles estavam assinalados com nomes e datas - Europa Central, América Latina, a antiga Jugoslávia - na agenda de cabedal negro que era o seu livro de viagem: uma espécie de diário de bordo onde registava, dia a dia, o longo caminho percorrido desde a adopção da cidadania do Vaticano e da sua entrada na secção operacional do Instituto para as Obras Exteriores.
- Veja isto.
O director do IOE segurava ao alto, entre os dedos polegar e indicador, uma folha de papel impressa a computador. Quart estendeu a mão e, nesse momento, a silhueta do cardeal Iwaszkiewicz moveu-se, inquieta, na janela. Ainda com a folha na mão, monsenhor Spada sorriu um pouco.
- Sua Eminência opina que é um tema delicado - disse, sem tirar os olhos de Quart, embora fosse evidente que as suas palavras eram destinadas ao cardeal. - E não está convencido de que seja prudente ampliar o número de iniciados.
Quart retirou a mão sem agarrar o documento que monsenhor Spada continuava a oferecer-lhe e olhou o superior com ar tranquilo, aguardando.
- Naturalmente - acrescentou Spada, cujo sorriso se refugiava agora nos olhos - Sua Eminência está longe de o conhecer como eu o conheço.
Quart esboçou um leve gesto de assentimento e esperou sem fazer perguntas nem revelar impaciência. Então, monsenhor Spada voltou-se para o cardeal Iwaszkiewicz:
- Já lhe disse que era um bom soldado.
Sobreveio um silêncio, enquanto a silhueta permanecia imóvel, recortada no céu de nuvens e na chuva que caía sobre o jardim do Belvedere. Depois, o cardeal afastou-se da janela, e a claridade parda, diagonal, deslizou sobre o seu ombro para revelar um maxilar ossudo, o colarinho púrpura da sotaina, o reflexo de uma cruz de ouro sobre o peito, o anel pastoral na mão que, dirigida para monsenhor Spada, pegava no documento e o entregava, ela mesma, a Lorenzo Quart.
- Leia.
Quart obedeceu à ordem, formulada num italiano gutural com ressonâncias polacas. A folha de papel de impressora continha um memorando em poucas linhas:
Santo Padre:
Este atrevimento justifica-se pela gravidade da matéria. Por vezes a cadeira de Pedro está demasiado longe e as vozes humildes não chegam até ela. Existe um lugar em Espanha, em Sevilha, onde os vendilhões ameaçam a casa de Deus, e onde uma pequena igreja do século XVII, desamparada pelo poder eclesiástico tanto como pelo secular, mata para se defender. Rogo a Vossa Santidade, como pastor e como padre, que volva os olhos para as mais humildes ovelhas do seu rebanho, e peça contas a quem as abandona à sua sorte.
Suplicando a Vossa bênção, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Apareceu no computador pessoal do Papa - esclareceu monsenhor Spada, quando o seu subordinado concluiu a leitura. - Não está assinado.
- Não está assinado - repetiu Quart, mecanicamente. Costumava repetir em voz alta algumas palavras, do mesmo modo como os timoneiros e suboficiais repetem as ordens dos superiores; como se, ao fazê-lo, concedesse a si mesmo, ou aos outros, oportunidade para reflectir sobre elas. No seu mundo, algumas palavras equivaliam a ordens. E certas ordens, por vezes uma simples inflexão, uma cambiante, um sorriso, podiam ser irreparáveis.
- O intruso - dizia o arcebispo - serviu-se de truques para dissimular o ponto de origem exacto. Mas a investigação confirma que a mensagem foi escrita em Sevilha, com um computador ligado à rede telefónica.
Quart leu o papel pela segunda vez, tomando o seu tempo.
- Fala de uma igreja... - interrompeu-se, à espera que alguém completasse a frase por ele. Soava demasiado estúpido, dito em voz alta.
- Sim - confirmou monsenhor Spada - uma igreja que mata para se defender.
- Uma atrocidade - comentou Iwaszkiewicz, sem precisar se se referia ao conceito ou ao objecto.
- De todas as formas - acrescentou o arcebispo - confirmámos a sua existência. Refiro-me à igreja - e dirigiu um olhar fugaz ao cardeal, antes de passar um dedo pelo gume da faca. - E comprovámos também uns quantos factos irregulares e desagradáveis.
Quart pousou o documento em cima da mesa do arcebispo, que contudo não lhe tocou, limitando-se a olhá-lo como se esse acto pudesse acarretar consequências duvidosas. O cardeal Iwaszkiewicz aproximou-se então para pegar no papel e, depois de o dobrar em quatro, introduziu-o no bolso. Em seguida, encarou Quart:
- Queremos que vá a Sevilha e identifique o autor.
Estava muito perto, e esta proximidade desagradou a Quart, que quase podia sentir-lhe o hálito. Susteve o seu olhar durante alguns segundos, depois, fazendo um esforço para não recuar um passo, olhou para monsenhor Spada por cima do ombro do cardeal, para ver que sorria breve e ligeiramente, agradecendo-lhe aquele modo de estabelecer a sua lealdade ao escalão hierárquico.
- Quando Sua Eminência fala no plural - esclareceu o arcebispo da sua cadeira - refere-se, evidentemente, a ele e a mim. E, acima de nós, à vontade do Santo Padre.
- Que é a vontade de Deus - sublinhou Iwaszkiewicz, quase provocador, mantendo a curta distância que os separava e as pupilas negras, duras, fixas em Quart.
- Que é, com efeito, a vontade de Deus - confirmou monsenhor Spada, sem que fosse possível detectar no seu tom algum indício de ironia. Apesar do seu poder, o director do IOE conhecia perfeitamente os limites, e o seu olhar era uma advertência ao subordinado: ambos se moviam em águas perigosas.
- Compreendo - disse Quart e, fixando de novo os olhos do cardeal, esboçou uma breve e disciplinada vénia. Iwaszkiewicz pareceu descontrair-se um pouco, ao mesmo tempo que, nas suas costas, monsenhor Spada movia a cabeça, aprovador:
- Já lhe disse que o padre Quart...
O polaco ergueu, para interromper o arcebispo, a mão onde luzia o anel cardinalício.
- Sim, eu sei - fitou pela última vez o sacerdote e deixou de se entrepor entre ambos, dirigindo-se de novo para a janela. - Já o disse e repetiu antes. Disse que era um bom soldado.
Falara com irónico fastio, e pôs-se a observar a chuva como se estivesse desinteressado do assunto. Monsenhor Spada largou a faca em cima da mesa para abrir uma gaveta, de onde tirou uma grossa pasta de cartolina azul.
- Identificar o autor da carta é apenas uma parte do trabalho - disse, colocando a pasta diante de si. - Que deduziu da sua leitura?
- Que poderia ter sido escrita por um eclesiástico - respondeu Quart, sem vacilar. Depois fez uma pausa, antes de acrescentar - E que talvez esteja completamente louco.
- É possível. - Monsenhor Spada abriu a pasta, folheando um dossier que continha recortes de jornais. - Mas é um especialista informático e os factos que cita são autênticos. Essa igreja tem problemas. E também os causa. As mortes são reais: duas nos últimos três meses. Tudo soa a escândalo.
- Soa a algo pior - disse o cardeal sem se voltar, a silhueta de novo recortada a contraluz.
- Sua Eminência - esclareceu o director do IOE - defende a ideia de que o Santo Ofício deve envolver-se no assunto - fez uma pausa significativa. - À velha maneira.
- À velha maneira - repetiu Quart. Não gostava, na Congregação para a Doutrina da Fé, nem da velha nem da nova maneira, e isso devia-se também às suas recordações. Entreviu, por um instante, num recanto da sua memória, o rosto de um sacerdote brasileiro, Nelson Corona: um pároco de favelas, um daqueles homens da Igreja da Libertação para cujo ataúde ele havia fornecido a madeira.
- O nosso problema - prosseguia monsenhor Spada - é que o Santo Padre deseja uma averiguação rigorosa. Mas parece-lhe excessivo envolver nisto o Santo Ofício. Matar moscas a tiros de canhão - fez uma pausa calculada, olhando fixamente Iwaszkie-wicz. - Ou com lança-chamas.
- Já não queimamos ninguém - ouviram o cardeal dizer, como se falasse com a chuva. Parecia lamentar que assim fosse.
- Em todo o caso - continuou o arcebispo - decidiu-se que, de momento - e frisou o de momento de forma significativa - é o Instituto para as Obras Exteriores que irá realizar a investigação. Ou seja, você. E só no caso de se manifestarem indícios de gravidade, o problema seria transferido para o braço oficial da Inquisição.
- Recordo-lhe, irmão em Cristo - o cardeal continuava de costas para eles, virado para o Belvedere - que a Inquisição deixou de existir há trinta anos.
- É certo, que Vossa Paternidade me desculpe. Quis dizer: transferir o problema para o braço oficial da Congregação para a Doutrina da Fé.
- Já não queimamos ninguém - repetiu Iwaszkiewicz, obstinado. Havia agora na sua voz um eco obscuro, um presságio de ameaça.
Monsenhor Spada guardou silêncio durante uns segundos, sem tirar os olhos de Quart. "Já não queimam ninguém, mas soltam os cães negros", dizia aquele olhar. Acossam, desprestigiam e matam a pessoa. Já não queimam ninguém, mas cuidado com ele. Este polaco é perigoso para ti e para mim; e o mais vulnerável dos dois és tu.
- Você, padre Quart - desta vez, ao falar de novo, o director do IOE adoptou um tom cuidadoso e formal - irá instalar-se durante alguns dias em Sevilha... Fará os possíveis por identificar o autor da carta. Manterá um prudente contacto com a autoridade eclesiástica local. E, sobretudo, conduzirá o assunto por caminhos discretos e razoáveis - colocou outro dossier em cima do anterior. - Aqui está toda a informação de que dispomos. Alguma pergunta?
- Uma única, Monsenhor.
- Pois então diga.
- O mundo está cheio de igrejas com problemas e escândalos potenciais. Que tem esta de especial?
O arcebispo dirigiu um olhar para as costas do cardeal Iwaszkiewicz, mas o inquisidor mantinha-se em silêncio. Depois, inclinou-se um pouco sobre as pastas da mesa, como buscando nelas uma revelação de última hora.
- Suponho - disse finalmente - que o pirata informático teve muito trabalho, e o Santo Padre soube apreciá-lo.
- Apreciá-lo parece-me excessivo - observou Iwaszkiewicz, distante.
Monsenhor Spada encolheu os ombros:
- Digamos então que Sua Santidade decidiu distingui-lo com uma atenção pessoal.
- Apesar da sua insolência e ousadia - voltou a observar o polaco.
- Apesar de tudo isso - concluiu o arcebispo. - Por algum motivo, esta mensagem no seu computador privado desperta-lhe a curiosidade. Quer manter-se informado.
- Manter-se informado - repetiu Quart.
- Pontualmente.
- Uma vez em Sevilha, devo também consultar a autoridade eclesiástica local?
O cardeal Iwaszkiewicz voltou-se para ele:
- A sua única autoridade neste assunto é monsenhor Spada. Neste momento, a corrente eléctrica restabeleceu-se e a grande
aranha do tecto iluminou a sala, arrancando reflexos à cruz de diamantes e ao anel na mão que apontava para o director do IOE:
- Deverá informá-lo a ele. E só a ele.
A luz eléctrica suavizava um pouco os ângulos do seu rosto, matizando a linha fina e obstinada de uns lábios apertados e duros. Uma dessas bocas que, ao longo da vida, nunca beijaram senão ornamentos, pedra e metal.
Quart fez um gesto afirmativo:
- Só a ele, Eminência. A diocese de Sevilha, no entanto, tem o seu ordinário, que é um arcebispo. Quais as minhas instruções a esse respeito?
Iwaszkiewicz entrelaçou as mãos sob a cruz de ouro, contemplando as unhas dos polegares:
- Somos todos irmãos em Cristo Nosso Senhor. De modo que são desejáveis relações amenas, e mesmo de cooperação. Mas o senhor gozará ali de dispensa no tocante à obediência. A Nunciatura de Madrid e o arcebispado local receberam instruções.
Quart voltou-se para monsenhor Spada antes de responder ao cardeal:
- Talvez Sua Paternidade ignore que não gozo da simpatia do arcebispo de Sevilha...
Era certo. Dois anos antes, uma questão de competências sobre a segurança da viagem papal à capital andaluza tinha causado uma áspera confrontação entre Quart e Sua Eminência Ilustríssima Don Aquilino Corvo, titular da sede hispalense. Apesar do tempo que passara, ainda se faziam sentir os efeitos daquela divergência.
- Conhecemos os seus problemas com monsenhor Corvo - disse Iwaszkiewicz. - Mas o arcebispo é um homem da Igreja, e saberá colocar o bem superior acima das suas antipatias pessoais.
- Estamos todos na barca de Pedro - permitiu-se dizer monsenhor Spada, e Quart compreendeu que, apesar do perigo que havia em lidar com Iwaszkiewicz, o IOE tinha bons trunfos naquela história. Ajuda-me a jogá-los, diziam os olhos do superior.
- O arcebispo de Sevilha foi posto ao corrente, por uma questão de cortesia - comentou o polaco. - Mas o senhor tem plena autonomia para obter toda a informação necessária, utilizando qualquer tipo de recursos.
- Legítimos, evidentemente - observou, de novo, monsenhor Spada.
Quart conteve-se para não sorrir. Iwaszkiewicz olhava alternadamente para um e outro.
Tinha erguido a mão do anel para tocar na sobrancelha, e o gesto, aparentemente inocente, parecia conter uma advertência. "Tenham cuidado com as vossas brincadeirinhas de clube escolar", traduzia aquilo. "O último a rir é quem ri melhor, e eu não tenho pressa. Um único deslize e tenho-vos na mão."
- O senhor, padre Quart - prosseguiu o cardeal - deve ter presente que a sua missão é meramente informativa. De modo que manterá a maior neutralidade. Mais tarde, consoante o material que nos apresente, estabeleceremos formas de actuação concretas. De momento, encontre o que encontrar por lá, evite toda a publicidade ou escândalo. Com a ajuda de Deus, naturalmente - fez uma pausa para observar o fresco do Mar Tirreno e moveu a cabeça como se lesse nele uma mensagem oculta. - Recorde que, nos tempos que correm, nem sempre a verdade nos liberta. Refiro-me à verdade ventilada em público.
Estendeu a mão do anel com gesto imperioso, brusco, apertando a linha dos lábios e com os olhos escuros e ameaçadores fixos em Quart. Mas este era um bom soldado, que escolhia os seus amos, de modo que aguardou um segundo mais do que o necessário e só então se inclinou para pôr o joelho no chão e beijar o rubi vermelho do anel. O cardeal ergueu dois dedos da mesma mão e traçou sobre a cabeça do sacerdote um lento sinal da Cruz, que tanto podia ser interpretado como uma bênção como com uma ameaça. Depois abandonou o gabinete.
Quart exalou o ar contido nos pulmões e pôs-se de pé, sacudindo as calças sobre o joelho assente no chão. Ao virar-se para monsenhor Spada tinha os olhos cheios de perguntas.
- Que acha dele? - inquiriu o director do IOE. Tinha voltado
a pegar na faca e mostrava um sorriso preocupado ao apontar com ela a porta por onde saíra Iwaszkiewicz.
- Uffitioso ou ufficiale, Monsenhor?
- Ufficioso.
- Não teria gostado nada de cair nas mãos dele há duzentos ou
trezentos anos atrás - respondeu Quart.
O superior acentuou o sorriso:
- Porquê?
- Bom, dir-se-ia um homem muito duro.
- Duro? - O arcebispo olhou de novo na direcção da porta e Quart
viu que o sorriso depressa se desvanecia na sua boca. - Se não fosse pecar contra a caridade relativamente a um irmão em Cristo, eu diria que Sua Eminência é um perfeito filho da puta.
Desceram juntos a escada de pedra aberta sobre a Via del Belvedere, onde aguardava o carro oficial de monsenhor Spada. O arcebispo tinha um encontro perto da casa de Quart, em Cavalleggeri e Filhos. Cavalleggeri era, há um par de séculos, o alfaiate que vestia toda a aristocracia da Cúria, incluindo o Papa. O seu atelier ficava na Via Sistina, junto da praça de Espanha, e o arcebispo ofereceu-se para deixar Quart nas proximidades. Saíram pela porta de Santa Ana e, através dos vidros embaciados, viram os guardas suíços perfilar-se à passagem do automóvel. Quart sorriu, divertido, pois monsenhor Spada não era popular entre os suíços do Vaticano; uma investigação do IOE sobre presumíveis casos de homossexualidade na Guarda terminara com meia dúzia de despedimentos forçados. Além disso, de vez em quando e para matar o tempo, o arcebispo concebia perversos simulacros destinados a comprovar a segurança interna; como a infiltração no Palácio Apostólico de um dos seus agentes, à paisana e provido de um frasco de suposto ácido sulfúrico para a Crucificação de São Pedro, na capela Paulina. O intruso tirou uma fotografia polaroid em cima de um banco, diante da pintura, e com um sorriso de orelha a orelha. E monsenhor Spada enviou-a, acompanhada de uma nota interna bastante irónica, ao coronel da Guarda Suíça. Tinham decorrido seis semanas desde então e ainda rolavam cabeças.
- Chama-se Vésperas - disse monsenhor Spada.
O automóvel guinava para a direita e depois para a esquerda, depois de passar sob os arcos da porta Angélica. Quart olhou para as costas do motorista, separado por um anteparo que insonorizava os assentos traseiros do automóvel.
- É tudo o que sabem dele?
- Sabemos que pode ser um clérigo, e também pode não ser. E que tem acesso a um computador ligado à rede telefónica.
- Idade?
- Imprecisa.
- Pouco me conta Sua Reverência.
- Não se aborreça, conto-lhe o que se sabe.
O Fiat abria caminho por entre o trânsito da Via della Conciliazione. Deixara de chover e o céu desanuviara-se um pouco a leste, sobre as alturas do Pincio. Quart ajeitou o vinco das calças e olhou para o mostrador do relógio, embora não estivesse preocupado com a hora.
- Que está a acontecer em Sevilha?
Monsenhor Spada observava a rua com ar distraído. Tardou uns instantes a responder, e fê-lo sem mudar de posição:
- Há uma igreja barroca... Velha, pequena, em ruínas. Chama-se Nossa Senhora das Lágrimas. Estava a ser restaurada, mas o dinheiro acabou-se e a obra ficou a meio... Pelos vistos, o edifício está situado numa zona importante, histórica: Santa Cruz...
- Conheço Santa Cruz. É a antiga judiaria, reconstruída no começo do século. Muito perto da Catedral e do Arcebispado - Quart fez uma careta ao recordar-se de monsenhor Corvo. - Um bonito bairro.
- Deve ser, porque a ameaça de ruína na igreja e a paralisação das obras desperta paixões de todos os tipos: a câmara quer expropriar e uma família da aristocracia andaluza, relacionada com um banco, desencantou também não sei que direitos seculares.
Acabavam de passar à esquerda do castelo de Sant'Angelo e o Fiat avançava por Lungotevere, em direcção à ponte Umberto I. Quart lançou um olhar à parda muralha circular que, para ele, simbolizava o lado temporal da Igreja que servia: Clemente VII correndo, de sotaina arregaçada, a refugiar-se ali, enquanto os lansquenetes de Carlos V saqueavam Roma. Memento mori. Recorda que és mortal.
- E o arcebispo de Sevilha? Admira-me que não seja ele a ocupar-se do assunto.
O director do IOE contemplava a corrente cinzenta do Tibre através da janela salpicada de pingos de chuva.
- É parte interessada e aqui não se fiam. Também o nosso
bom monsenhor Corvo pretende especular. No caso dele, trata-se naturalmente dos interesses terrenos da Santa Madre Igreja... Com isto tudo, Nossa Senhora das Lágrimas cai em pedaços e ninguém se preocupa com as obras. Parece mais valiosa destruída do que de pé.
- Tem pároco?
A pergunta arrancou um longo suspiro ao arcebispo.
- Embora pareça incrível tem. Um sacerdote de certa idade que se ocupa dela. Parece que é um indivíduo conflituoso e as suspeitas sobre a identidade de Vésperas apontam para ele ou para o seu vigário, um jovem pendente de uma transferência para outra diocese. Segundo averiguámos, todos os seus pedidos foram ignorados pelo nosso amigo Corvo - monsenhor Spada fez menção de sorrir um pouco, com fastio. - Não seria insensato pensar que um dos dois, ou mesmo ambos, tenha concebido este modo singular de recorrer directamente ao Santo Padre.
- Têm de ser eles.
O director do IOE soergueu a mão em sinal de dúvida:
- Talvez. Mas é preciso prová-lo.
- E se eu conseguir essas provas?
- Nesse caso - o rosto do arcebispo ensombrou-se e o seu tom tornou-se mais baixo e mais grave - lamentarão amargamente a sua inoportuna afeição à informática.
- E o que vem a ser isso das duas mortes?
- É precisamente esse o problema. Sem elas, o conflito não teria passado de mais um: uma casa, especuladores e muito dinheiro envolvido. Em tempo de crise, se o pretexto é válido, deita-se abaixo a igreja e destina-se o dinheiro da venda para maior glória de Deus. Mas as mortes complicam tudo - os olhos manchados de castanho de monsenhor Spada distraíram-se com o que se passava do outro lado da janela; o Fiat imobilizava-se nos engarrafamentos próximos do Corso Vittorio Emmanuele - Num curto espaço de tempo morreram duas pessoas relacionadas com Nossa Senhora das Lágrimas: um arquitecto municipal que estudava o edifício com intenção de declará-lo em ruínas e ordenar o seu desimpedimento, e um clérigo, o secretário do arcebispo Corvo. Que, ao que parece, andava por ali a pressionar o pároco em nome de Sua Excelência.
- Não posso crer.
Os olhos de mastim detiveram-se em Quart.
- Pois pode ir acreditando. A partir de hoje é você quem se ocupa do assunto.
Continuavam bloqueados num enorme engarrafamento, entre ruídos de motor e buzinas. O arcebispo inclinou-se sobre a janela para olhar o céu.
- Podemos seguir a pé. Temos tempo, convido-o para tomar um aperitivo nesse café de que tanto gosta.
- El Greco? Acho bem, Monsenhor. Mas tem o alfaiate à sua espera. E o seu alfaiate é Cavalleggeri, não é qualquer um. Nem o Santo Padre se atreve a fazê-lo esperar.
Ouviu-se o riso rouco do prelado, que deixava já o automóvel:
- É um dos meus raros privilégios, padre Quart. Ao fim e ao cabo, nem mesmo o Santo Padre sabe sobre Cavalleggeri as coisas que eu sei.
Lorenzo Quart tinha no sangue o hábito dos velhos cafés. Quase doze anos antes, recém-chegado a Roma como aluno da Universidade Gregoriana, os dois séculos e meio de antiguidade do Greco, os seus impassíveis empregados e a história ligada aos grandes viajantes dos séculos XVIII e XIX, de Byron a Stendhal, seduziram-no desde o momento em que passou sob o arco de pedra branca pela primeira vez. Vivia agora a dois passos dali, num sótão arrendado pelo IOE no número 119 da Via del Babuino, com um pequeno terraço onde havia vasos com flores e uma boa vista sobre meia Trinità del Monti e as azáleas em flor da escadaria, na Praça de Espanha. El Greco era o seu lugar de leitura favorito e costumava instalar-se ali nas horas tranquilas, sob o busto de Vítor Manuel II; na mesa, diziam, de Giacomo Casanova e Luís da Baviera.
- Como reagiu monsenhor Corvo à morte do secretário?
Monsenhor Spada estudou a cor vermelha dos cinzanos que tinham diante deles. Estava pouca gente no local: um par de frequentadores habituais, lendo o jornal nas mesas do fundo, uma dama elegante com sacos de compras Armani e Valentino que falava pelo telemóvel, e uns turistas ingleses fotografando-se mutuamente junto do balcão do vestíbulo. A mulher do telefone parecia incomodar o arcebispo, pois este dirigiu-lhe um olhar crítico antes de se voltar, finalmente, para Quart:
- Reagiu muito mal. Francamente mal, diria eu. Jurou não deixar pedra sobre pedra.
Quart moveu a cabeça:
- Parece-me desproporcionado. Um edifício não possui vontade própria. E muito menos para causar dano.
- Assim o espero - os olhos do Mastim não brincavam. - Assim o espero realmente. É melhor para todos que seja assim.
- Não estará monsenhor Corvo à procura de um pretexto para demolir a igreja e arrumar o assunto?
- É, sem dúvida, um pretexto. Mas há mais alguma coisa. O arcebispo tem uma questão pessoal com esta igreja, ou com o seu pároco. Com ambos, talvez.
Quedou-se em silêncio, observando um quadro na parede: uma paisagem romântica de quando Roma era ainda a cidade do papa-rei, com o arco de Vespasiano em primeiro plano e a cúpula de São Pedro ao fundo, com telhados e lanços de velhas muralhas.
- Foram mortes naturais? - perguntou Quart. O outro encolhia os ombros:
- Depende do que consideramos natural. O arquitecto caiu do telhado e o clérigo ficou debaixo de uma pedra da abóbada.
- Espectacular - concedeu Quart, levando o copo aos lábios.
- E sangrento, creio. O secretário ficou uma lástima - monsenhor Spada ergueu o indicador para o tecto. - Imagine uma melancia que apanhasse com dez quilos de cornija em cima. Plaf!
A onomatopeia ajudou Quart a imaginá-lo. Foi isso, e não o sabor do vermute, que o fez torcer a boca. - Que diz a polícia espanhola?
- Acidentes. Daí o sinistro daquela frase: uma igreja que mata para se defender... - monsenhor Spada franziu o sobrolho. - Inquietação que agora partilha o Santo Padre, graças à impertinência de um pirata informático. E que o IOE deve aliviar.
- Porquê nós?
O arcebispo soltou uma breve risada entredentes, sem responder logo. Estava vestido de cura, mas não parecia. Quart observou o seu perfil de gladiador, que lhe recordava uma antiga estampa do centurião que crucificou Cristo. O pescoço largo, as mãos fortes, desproporcionadas, que repousavam dos dois lados da mesa. Por detrás da sua tosca aparência de camponês lombardo, o Mastim possuía as chaves de todos os segredos de um Estado que incluía três mil funcionários só no Vaticano, três mil bispos no exterior e a liderança espiritual de mil milhões de almas. Contava-se que, no último conclave, tinha conseguido o historial médico de todos os candidatos ao trono de Pedro, a fim de estudar os seus níveis de colesterol e predizer, na medida do possível, se o reinado do novo pontífice ia ser demasiado curto ou demasiado longo. Quanto a Wojtila, o director do IOE tinha predito o golpe à direita quando os papelinhos com o seu nome ainda deitavam fumo negro.
- Porquê nós? - disse, por fim, repetindo a pergunta de Quart. - Porque, em teoria, somos os homens de confiança do Papa. De qualquer papa. Mas o poder no Vaticano é um osso disputado por muitos cães de fila, e ultimamente o Santo Ofício cresce à nossa custa. Antigamente cooperávamos numa paz fraternal. Polícias de Deus, irmãos em Cristo - fez um gesto com a mão esquerda para descartar aqueles lugares-comuns - Você sabe melhor do que ninguém.
Quart sabia, de facto. Até ao escândalo que desmantelou todo o aparelho das finanças do Vaticano, e à viragem da equipa polaca no sentido da ortodoxia, as relações entre o IOE e o Santo Ofício tinham sido cordiais. Mas a perseguição e o derrube do sector liberal haviam acabado por desencadear um impiedoso ajuste de contas no seio da Cúria.
- Os tempos estão maus - suspirou o arcebispo.
Fixou o olhar no quadro da parede. Depois bebeu um pouco e atirou-se para trás no cadeirão, fazendo estalar a língua.
- Repare - acrescentou, apontando com o queixo a cúpula de Miguel Ângelo, pintada ao fundo. - Ali só os papas têm o direito de morrer. Quarenta hectares que contêm o Estado mais poderoso da terra, mas cuja estrutura continua fiel ao molde monárquico e absolutista medieval. Um trono que hoje se aguenta graças à religião convertida em espectáculo, às viagens papais cobertas pela televisão e toda essa parafernália do Totus tuus. E, por baixo, o mais reaccionário e obscuro integralismo: Iwaszkiewicz e companhia. Os seus lobos negros.
Suspirou de novo e, quase com desdém, apartou os olhos do quadro.
- Agora a luta é de morte - continuou, sombrio. - Sem autoridade, a Igreja não funciona: o truque é mantê-la inquestionável e unida. Nessa tarefa, a Congregação para a Doutrina da Fé é uma arma tão valiosa que a sua importância tem vindo a crescer desde os anos 80, quando Wojtila adoptou o costume de subir todos os dias ao Sinai para conversar um pouco com Deus - o olhar de mastim vagueou em redor, numa pausa carregada de ironia. - O Santo Padre é infalível, mesmo nos seus erros, e ressuscitar a Inquisição é um bom sistema para tapar a boca aos dissidentes. Quem é que fala hoje de Kung, Castillo, Schillebeeck ou Boff? A nave de Pedro vence sempre as suas resistências históricas, silenciando os díscolos ou atirando-os borda fora. As nossas armas são as mesmas de sempre: o descrédito intelectual, a excomunhão e a fogueira... No que pensa, padre Quart? Vejo-o muito calado.
- Estou sempre calado, Monsenhor.
- É certo. Lealdade e prudência, não é verdade? Ou devo empregar a palavra profissionalismo? - havia na voz do prelado um jocoso mau-humor. - Sempre essa maldita disciplina que enverga como uma cota de malha... Bernardo de Claraval e os seus mafiosos templários ter-se-iam dado bem consigo. Estou seguro de que, apresado por Saladino, deixaria que lhe torcessem o pescoço para não renegar a sua fé. Não por piedade, claro. Mas por orgulho.
Quart desatou a rir.
- Sua Eminência pensava no Cardeal Iwaszkiewicz - concedeu- - Já não há fogueiras - acabou o resto que havia no copo.
Nem excomunhões.
Monsenhor Spada emitiu um grunhido feroz:
- Há outras formas de atirar pessoas às trevas exteriores. Nós próprios as praticámos. Você mesmo.
O arcebispo calou-se, atento aos olhos do seu interlocutor, como se lamentasse ter ido demasiado longe. Em todo o caso, era bem certo. Numa primeira etapa, quando não estavam em campos opostos, o próprio Quart tinha fornecido aos lobos negros de Iwaszki-ewicz os pregos para várias crucificações. Voltou a ver diante de si os óculos embaciados, os olhos míopes e assustados de Nelson Corona, as gotas de suor correndo pela cara do homem que, uma semana mais tarde, ia deixar de ser sacerdote e, outra semana depois, estaria morto. Tinham-se passado quatro anos, mas a recordação continuava nítida na sua memória.
- Sim - repetiu - eu mesmo.
Monsenhor Spada percebeu o tom do seu agente, depois os olhos malhados estudaram-no, inquisitivos.
- Corona, ainda? - perguntou, com suavidade. Quart esboçou um sorriso.
- Com franqueza, Monsenhor?
- Com franqueza.
- Não é só ele. Também Ortega, o espanhol. E aquele outro, Souza.
Tinham sido três sacerdotes ligados à chamada Teologia da Libertação, opositores à corrente reaccionária imposta por Roma; e nos três casos, o IOE oficiara como cão negro por conta de Iwaszkiewicz e da sua Congregação. Corona, Ortega e Souza eram destacados párocos progressistas que exerciam o seu apostolado em dioceses marginais, bairros muito pobres do Rio de Janeiro e São Paulo. Gente partidária de salvar o homem na terra antes de o salvar no reino dos céus. Assinalando-os como objectivos, o IOE lançara mãos à obra, apalpando os seus pontos fracos para depois pressionar. Ortega e Souza depressa claudicaram. Quanto a Corona, uma espécie de herói popular das favelas do Rio, castigo dos políticos e da polícia local, fora necessário confrontá-lo com certos pormenores equívocos do seu trabalho apostólico entre jovens drogados, assunto que durante várias semanas foi cuidadosamente investigado por Lorenzo Quart sem passar por cima de nenhum "diz-se que", "vá-se lá saber", etc.
Ainda assim, o sacerdote brasileiro negara-se a reconsiderar. Odiado pela extrema-direita, sete dias depois de ter sido suspenso a divinis e expulso da sua diocese com a fotografia na primeira página dos jornais, Nelson Corona foi assassinado pelos esquadrões da morte. O seu corpo apareceu manietado e com um tiro na nuca, num vazadouro próximo da sua antiga paróquia. Comunista e veado: comunista e maricas, rezava o cartaz que lhe haviam posto ao pescoço.
- Escute, padre Quart. Esse homem desligou-se do voto de obediência e das prioridades do seu ministério, e foi chamado a reconsiderar os seus erros. E tudo. Depois o assunto deixou de estar nas nossas mãos; não nas nossas, mas nas de Iwaszkiewicz e da sua Santa Congregação. O senhor limitou-se a cumprir ordens. Apenas facilitou as coisas, não é responsável.
- Com todo o respeito que devo a Sua Eminência Ilustríssima, sou responsável sim. Corona está morto.
- O senhor e eu conhecemos outros homens que também estão mortos. O financeiro Lupara, para não irmos mais longe.
- Corona era um dos nossos, Monsenhor.
- Os nossos, os nossos... Nós não somos de ninguém. Estamos sós. Respondemos perante Deus e perante o Papa - o arcebispo fez uma pausa carregada de intenção: os papas morriam, e Deus não. - Por essa ordem.
Quart olhou para a porta como se quisesse desligar-se do assunto. Depois baixou a cabeça.
- Sua Eminência Ilustríssima tem razão - disse em tom reservado.
O arcebispo cerrou lentamente um punho, como se fosse bater na mesa; mas manteve-o assim, enorme, cerrado e imóvel. Parecia exasperado:
- Ouça. Por vezes detesto a sua maldita disciplina.
- Que devo responder a isso, Monsenhor?
- Diga-me o que pensa.
- Em situações destas, prefiro não pensar. •- Não seja idiota. É uma ordem.
Quart permaneceu calado um instante, depois encolheu os ombros: - Continuo a pensar que Corona era um dos nossos. E, além disso, um homem justo.
O arcebispo abriu o punho e ergueu um pouco a mão.
- Com fraquezas.
- Talvez. O mal dele foi exactamente esse: uma fraqueza, um erro. E todos cometemos erros.
Paolo Spada desatou a rir, irónico.
- Não no seu caso, padre Quart. Refiro-me a si. Há dez anos que estou à espera do seu primeiro erro, e nesse dia terei o prazer de lhe recomendar um bom cilício, cinquenta vergastadas e cem ave marias. como disciplina - depressa o seu tom se tornou ácido. - Como consegue manter-se tão disciplinado e tão virtuoso? - fez uma pausa para passar a mão pelas cerdas do cabelo e moveu a cabeça sem esperar resposta -... Mas, voltando a esse desgraçado assunto do Rio, já sabe que por vezes o Todo Poderoso escreve por linhas tortas. Foi um caso de pouca sorte.
- Ignoro o que foi. Na realidade, não me inquieta demasiado, Monsenhor; mas é um facto. Algo de objectivo: eu fi-lo. E um dia terei, talvez, de prestar contas por isso.
- Nesse dia, Deus julgá-lo-á como a todos nós. Até então, e só para questões de trabalho, já sabe que tem a minha absolvição total, sub conditione.
Ergueu uma das suas grandes mãos num gesto breve de bênção. Quart sorria abertamente:
- Precisaria de mais do que isso. De resto, pode Sua Eminência Ilustríssima garantir-me que teríamos hoje actuado do mesmo modo?
- Refere-se à Igreja?
- Refiro-me ao Instituto para as Obras Exteriores. Poríamos agora na bandeja com tanta facilidade aquelas três cabeças para o cardeal Iwaszkiewicz?
- Não sei. Francamente, não sei. Uma estratégia compõe-se de acções tácticas - o prelado observou o seu interlocutor com brusca atenção, interrompendo-se, com ar inquieto -... Espero que nada disto interfira no seu trabalho em Sevilha.
- E não interfere. Pelo menos, assim creio. Mas pediu-me que fosse franco.
- Escute. Você e eu somos sacerdotes profissionais e não acabamos de cair do céu. Iwaszkiewicz tem toda a gente comprada ou atemorizada no Vaticano - olhou em redor, como se o polaco fosse aparecer por ali de um momento para o outro. - Falta-lhe unicamente lançar as garras ao IOE. A única pessoa que nos defende junto do Santo Padre é o secretário de Estado, Azopardi, que foi meu companheiro de estudos.
- Sua Eminência Ilustríssima tem muitos amigos. Fez favores a muita gente.
Paolo Spada fez ouvir o seu riso incrédulo:
- Na Cúria esquecem-se os favores e recordam-se as ofensas. Vivemos numa corte de eunucos alcoviteiros, onde ninguém sobe sem o apoio de outra pessoa. Todos se apressam a apunhalar quem cai, mas quando as coisas não são claras, ninguém ousa dar um passo por receio das consequências. Lembre-se da morte do papa Luciani: era necessário tomar a temperatura rectal para determinar a hora da morte, mas ninguém se atrevia a meter-lhe um termómetro no cu.
- Mas o cardeal secretário de Estado... O Mastim sacudiu as cerdas negras:
- Azopardi é meu amigo, embora no sentido que a palavra tem aqui. Também deve velar por si mesmo, e Iwaszkiewicz é poderoso.
Guardou silêncio por uns instantes, como se tivesse posto o poder de Jerzy Iwaszkiewicz no prato de uma balança e o seu no outro, e aguardasse o resultado com poucas esperanças.
- Mesmo a actuação desse pirata informático é um assunto menor - acrescentou finalmente. - Noutra altura, nem sequer lhes teria ocorrido encomendar-nos o que, em rigor, é da competência do arcebispo de Sevilha e das suas relações com os párocos das suas dioceses. Mas, da maneira como andam as coisas, tudo se avoluma. Basta que o Santo Padre mostre interesse, e temos outro cenário para o nosso ajuste de contas interno. Por isso escolhi o meu melhor homem. A primeira coisa de que necessito é a informação. Ou seja: ficar bem visto, apresentando um relatório desta grossura - e afastava o polegar cinco centímetros do indicador. - Para que vejam que nos mexemos. Isso deixará Sua Santidade contente e, de passagem, não deixará o polaco pisar o risco.
Um grupo de turistas japoneses assomou à porta dos salões, admirando o interior. Alguns sorriram, com vénias corteses, à vista dos cabeções. Monsenhor Spada devolveu-lhes o sorriso, distraído.
- Eu aprecio-o, padre Quart - disse em seguida. - Por isso lhe dou parte dos antecedentes com que jogamos, antes que viaje para Sevilha... Ignoro se é sempre sincero na sua atitude de bom soldado; mas parece-me que sim, e nunca me deu motivos para pensar o contrário. Desde que era um simples aluno na Gregoriana que lhe deitei o olho, e depois cheguei a criar-lhe afecto. Talvez isso lhe saia caro, pois, se um dia eu caio, é provável que caia comigo. Ou mesmo antes; já sabe: sacrifício de peões.
Quart assentiu, impassível:
- E se ganharmos?
- Nós nunca ganharemos inteiramente. Como diria o seu compatriota Santo Inácio, escolhemos o que sobra a Deus e os outros não querem: a tormenta e o combate. As nossas vitórias são meros adiamentos até ao ataque seguinte. Porque Iwaszkiewicz continuará a ser cardeal enquanto viver, príncipe por protocolo, bispo com consagração irrevogável, cidadão do Estado mais pequeno e menos vulnerável do mundo graças a homens como você e eu. E, para mal dos nossos pecados, um dia chegará talvez a papa. Quanto a nós, nunca seremos papáveis, e possivelmente nem sequer cardeais. Como costuma dizer-se na Cúria, possuímos pouco pedigree e demasiado currículo. Mas temos poder e sabemos lutar. Isso torna-nos temíveis e esse polaco, apesar do seu fanatismo e arrogância, sabe-o. Não vão varrer-nos como aos Jesuítas e aos sectores liberais da Cúria, em benefício da Opus Dei, da mafia integralista ou do Deus do Sinai. Totus tuus, mas não me cheguem às ventas. Há mastins que morrem matando.
O arcebispo consultou o relógio e fez um gesto para chamar a atenção do empregado. Enquanto punha a mão sobre o braço de Quart para o impedir de pagar a conta, tirou umas notas do bolso e colocou-as em cima da mesa. Dezoito mil liras certas, verificou Quart. A vida do Mastim tinha sido demasiado dura: nunca deixava gorjeta.
- O nosso dever é pelejar, padre Quart - disse, enquanto se punham de pé. - Porque temos razão e Iwaszkiewicz não. Pode ser-se enérgico e manter a autoridade sem por isso ressuscitar, como pretende esse polaco e a sua camarilha, as grilhetas e o potro de tortura. Recordo quando nomearam Luciani papa, e durou trinta e três dias. Você tinha menos vinte anos, mas eu andava já metido neste tipo de trabalho - o arcebispo esboçou uma careta torcida, fitando Quart. - Quando, recém-eleito, lhe ouvimos aquele "Há mais de mamã do que de papá em Deus Todo Poderoso", Iwaszkiewicz e os seus colegas da ala dura treparam pelas paredes. E eu disse para comigo: esta equipa não vai funcionar. Luciani era demasiado brando para os tempos que correm, por isso suponho que o Espírito Santo fez um bom trabalho livrando-nos dele antes que causasse demasiados estragos. Os jornalistas chamavam-lhe O Papa do Sorriso', mas qualquer um, no Vaticano, sabia que era um sorriso muito peculiar - o esgar cresceu um pouco, deixando a descoberto um canino, com malícia. - Um sorriso nervoso.
O sol subira no céu e secava a calçada da praça de Espanha. Os vendedores corriam os toldos sobre as suas flores e alguns turistas começavam a sentar-se nos degraus, ainda húmidos, que subiam até Trinità del Monti. Quart escoltou o arcebispo pela escada acima, deslumbrado pelo reflexo da luz na praça; uma luz romana, intensa, optimista como um bom augúrio. A meio caminho, uma jovem estrangeira de mochila, calças de ganga e camisa às riscas azuis, sentada num degrau, tirou-lhes uma fotografia, quando os dois sacerdotes chegaram à sua altura: um flash e um sorriso. Monsenhor Spada fez meia volta, meio irritado, meio irónico:
- Sabe uma coisa, padre Quart? É bonito de mais para ser cura. Seria preciso estar louco para nomeá-lo pároco de um convento de freiras.
- Sinto muito, Monsenhor.
- Não sinta, que a culpa não é sua. Mas reconheço que me aborrece um pouco. Como se arranja?... Refiro-me a dominar a tentação, já sabe. A mulher como invenção do Maligno e tudo isso.
Quart desatou a rir:
- Oração e duches frios, Eminência Ilustríssima.
- Devia ter imaginado. Sempre fiel ao regulamento, não é verdade?... Não o aborrece ser sempre, também, tão comedido e tão bom rapaz?
- A pergunta é capciosa, Monsenhor. Responder-lhe implica aceitar a proposição maior.
Paolo Spada olhou-o uns instantes de través e, por fim, fez um gesto aprovador:
- De acordo. Ganha o senhor. A sua virtude voltou a passar no exame, mas não perco as esperanças. Um dia ainda o apanho.
- Naturalmente, Monsenhor. Pelos meus inúmeros pecados.
- Cale o bico. É uma ordem.
- Sua Reverência manda.
Por altura do obelisco de Pio VI, o arcebispo voltou-se para lançar um olhar pelas escadas abaixo, à rapariga da camisa às riscas.
- E quanto à salvação eterna - disse - lembre-se do velho provérbio: se um clérigo consegue manter as mãos longe do dinheiro e os pés longe da cama de uma mulher até perfazer os cinquenta, tem muitas possibilidades de salvar a sua alma.
- Concordo, Monsenhor. Mas faltam doze anos para cruzar a meta.
- Não se preocupe. Suspeito que sejam outras as suas tentações - estudou-o fixamente, antes de mover a cabeça e subir os últimos degraus dois a dois. - Em todo o caso, persevere nessa dos duches, meu filho.
Passaram diante da imponente fachada do Hotel Hassler Villa Medíeis antes de percorrer a Via Sistina. A alfaiataria era indicada tão-somente por uma discreta placa na porta que só a elite da Cúria transpunha, à excepção dos papas. Estes eram os únicos a gozar do privilégio de que Cavalleggen e Filhos, honrados desde Leão XIII com um título menor de nobreza pontifícia, lhes tirassem as medidas ao domicílio.
O arcebispo olhou para a placa com um ar absorto, pensando noutra coisa. Depois ergueu o rosto para o céu e, por fim, os seus olhos malhados pousaram sobre o sacerdote, estudando o fato de corte impecável, os discretos botões de prata dos punhos da camisa de seda negra.
- Escute, Quart - o uso do apelido endurecia a palavra com o gesto. - Não se trata apenas do pecado de orgulho e do poder, pecado a que não somos alheios. O senhor e eu, acima das nossas fraquezas pessoais e dos nossos métodos, mesmo Iwaszkiewicz e a sua sinistra confraria... mesmo o Santo Padre com o seu irritante fundamentalismo, somos responsáveis pela fé de milhões de seres humanos numa Igreja infalível e eterna - os olhos do arcebispo continuavam a medir o seu interlocutor. - E só essa fé, sincera apesar do nosso cinismo curial, nos justifica. Nos absolve. Sem ela, o senhor, eu, Iwaszkiewicz, seríamos apenas uns hipócritas e uns canalhas... Compreende o que quero dizer?
Quart suportou, sem pestanejar, as palavras do Mastim.
- Perfeitamente, Monsenhor - disse, sereno.
Tinha adoptado quase por instinto a posição rígida do guarda suíço diante de um oficial: os braços dos lados e os polegares ao longo da costura das calças. Monsenhor Spada observou-o, ainda um instante, com os olhos semicerrados, depois pareceu descontrair-se um pouco. Esboçou mesmo um sorriso.
- Espero que seja assim - desvaneceu-se a expressão amistosa no rosto do prelado. - Espero de verdade. Porque, pela parte que me toca, quando me apresentar à porta do Céu e o velho pescador resmungão vier receber-me, dir-lhe-ei: Pedro, sê indulgente com este veterano centurião, soldado de Cristo, que tanto trabalhou para tirar a água suja da sentina da tua nave. Ao fim e ao cabo, até o velho Moisés teve de recorrer subrepticiamente à espada de Josué. E também tu apunhalaste Malco para defender o Mestre.
Foi a vez de Quart desatar a rir com a imagem.
- Nesse caso, gostaria de precedê-lo, Monsenhor. Não creio que aceitem duas vezes a mesma alegação.
TRÊS MALVADOS
Quando chego a uma cidade, pergunto sempre: quem são as doze mulheres mais belas. Quem são os doze homens mais ricos. Quem é o homem que me pode mandar enforcar.
(Stendhal, Lucien Leuwen)
Celestino Peregil, guarda-costas e assistente do banqueiro Pencho Gavira, folheava, mal-humorado, a revista Q + S a caminho do bar Casa Cuesta, no coração do Bairro de Triana, em Sevilha. O humor de Peregil não estava num dos seus melhores momentos, e isso por três motivos: uma úlcera recalcitrante, a delicada missão que o levava à outra margem do Guadalquivir e a capa da revista que tinha nas mãos. Peregil era um tipo rechonchudo, miúdo, nervoso, que dissimulava uma calvície prematura penteando o cabelo bem empastado para cima a partir de uma risca à altura da orelha esquerda. Além disso, tinha predilecção por peúgas brancas, gravatas berrantes de seda estampada, casacos cruzados com botões dourados e putas de bar americano. Também, e sobretudo, pela mágica trama dos números sobre o tapete verde de qualquer casino onde ainda lhe fosse permitida a entrada. Isto explicava o facto de, naquele dia, a sua úlcera o incomodar mais do que o habitual, bem como o encontro para o qual se dirigia de má vontade. Quanto à Q + S, a capa não contribuía para melhorar o seu mau humor. Por muito desalmada que seja uma pessoa - Celestino Peregil era-o, e muito - ninguém fica tranquilo ao ver uma fotografia da mulher do seu chefe com outro. Sobretudo quando foi ele próprio quem vendeu aos jornalistas a informação necessária para conseguir a fotografia.
- A cadela - disse, em voz alta, e um par de transeuntes voltou-se e fitou-o com estranheza. Depois recordou o objecto do seu encontro e, extraindo o lenço de seda cor de malva que lhe assomava do bolso superior do casaco, enxugou a testa. O 7 e o 16 dançavam diante dos seus olhos como um pesadelo sobre pano verde. "Se saio desta", disse para consigo, "juro que nunca mais. Juro pela Virgem Santa."
Atirou a revista para um cesto para papéis. Depois, tendo dobrado a esquina sob um rótulo de cerveja Cruzcampo, deteve-se de má vontade à porta do bar. Odiava sítios como aquele, com mesas de mármore, azulejos e velhas garrafas de Centenário Terry cobertas de pó nas prateleiras; aquela Espanha de perneta e guitarra, pouco ventilada, vulgar, mesquinha, de que se tinha safado não sem esforço. Depois de dois golpes de sorte que tinham orientado a sua vida de obscuro detective especializado em adultérios baratos e fraudes contra a Segurança Social, para Pencho Gavira como para quem se movia nas proximidades da grande banca, o seu elemento eram os bares da moda, com música ambiente, uísque com muito gelo, entrar e sair em gabinetes com alcatifa de um palmo de altura e o Finantial Times sobre a mesa do vestíbulo, zumbidos de fax, ar condicionado, secretárias trilingues. Como em Zurique, Nova Iorque e na bolsa de Tóquio, entre fulanos que cheiravam a loção cara e jogavam golfe. Era estupendo viver como nos anúncios da televisão.
Bastou-lhe uma vista de olhos para voltar aos velhos pesadelos: Don Ibrahim, o Potro del Mantelete e a Nina Punales aguardavam, pontuais como um relógio. Viu-os assim que transpôs a porta, à direita do balcão de madeira escura com flores douradas, debaixo de um cartaz que estava ali desde o começo do século - Linha de vapores Sevilha-Sanlúcar-Mar: Serviço diário entre Sevilha e a foz do Guadalquivir. Estavam sentados em torno de uma mesa de mármore e Peregil observou que corria já o xerez La Ina. Às onze da manhã.
- Como vão - disse, e sentou-se.
Não era uma pergunta e pouco lhe importava como estivessem. Leu a certeza nos três pares de olhos que o viram ajeitar os punhos da camisa - um gesto elegante, aprendido com o seu chefe - antes de colocar os cotovelos, com cuidado, sobre o mármore da mesa.
- Tenho uma tarefa - anunciou sem rodeios.
Viu que o Potro del Mantelete e a Nina Punales olhavam para Don Ibrahim e este assentia devagar, solene, retorcendo as guias do bigode meio vermelho meio cinzento, espesso, eriçado, à inglesa. Don Ibrahim era grande, muito gordo, de aspecto bonacheirão e ar aprazível, apenas desmentido pelo altivo bigode, e fazia tudo de maneira solene, mesmo depois de a ordem dos advogados de Sevilha ter descoberto, há tempos, a sua falta de título válido para o exercício da profissão. A toga espúria tinha, contudo, imprimido um ar de digna gravidade à sua maneira de usar o chapéu de palha clara e aba larga, a bengala com punho de prata ou a ampla curva descrita entre os dois bolsos do casaco pela corrente do relógio, ganho - assegurava - a Don Ernesto Hemingway durante uma partida de póquer no bordel Chiquita Cruz da Havana pré-castrista.
- Somos todos ouvidos - disse.
Triana e Sevilha inteira estavam ao corrente do facto de Don Ibrahim, o Cubano, ser um vigarista e um desavergonhado, mas também um perfeito cavalheiro. Tinha recorrido ao plural, por exemplo, depois de olhar breve e cortesmente para o Potro do Mantelete e a Nina Punales, dando a entender que tinha a honra de os representar naquela mesa sobre a qual, obrigado pela sua barriga a manter-se à distância, apoiava ambas as mãos de longe, como as amarras de um pesado navio.
- Há uma igreja e um cura - arrancou Peregil.
- Começamos mal - replicou Don Ibrahim. Um enorme charuto fumegava-lhe na mão esquerda, junto de um anel de ouro, e sacudia a cinza das calças. Da sua juventude antilhana conservava o gosto pelos fatos brancos e imaculados, os panamás e os charutos Montecristo. Porque o antigo falso advogado era um clássico. Parecia um daqueles índios das estampas de costumes, que desembarcavam em princípios do século no porto de Sevilha com um cartuxo de moedas de ouro, febres terçãs e um criado mulato. Don Ibrahim viera apenas com as febres.
Peregil olhou-o, confuso, perguntando a si próprio se o "começamos mal" se referia à cinza do charuto ou ao facto de haver igrejas e curas pelo meio.
- Um cura velho - realçou para averiguar, tirando importância ao assunto, e então lembrou-se do outro -... Bom. Na realidade, são dois: um cura velho e um cura jovem.
- Qzú - intervinha a Nina Punales com o seu sotaque cigano, cerrado, das margens do Guadalquivir - Dois curas.
As pulseiras de prata tilintaram-lhe sobre a pele flácida dos pulsos, quando esvaziou o copo de xerez de um único e longo trago. Ao seu lado, o Potro del Mantelete movia a cabeça, distante, como se o árbitro tivesse acabado de lhe sugerir que não continuasse a agarrar o adversário pelas sobrancelhas. Parecia absorto na contemplação da espessa marca de carmim no rebordo do copo da Nina.
- Dois curas - repetiu Don Ibrahim como um eco. Reflectia com olhos preocupados, ao mesmo tempo que os anéis de fumo se lhe enroscavam no bigode.
- Na realidade são três - especificou Peregil, honesto.
O indiano estremeceu, voltando a manchar as calças de cinza.
- Não eram dois?
- Três. O velho, o novo, e o outro que vem a caminho. Peregil viu-os trocar olhares circunspectos.
- Três curas - somava Don Ibrahim, estudando a unha do dedo mindinho esquerdo, comprida como uma espátula.
- Com efeito.
- Um jovem, outro velho, e outro que está para aparecer.
- É isso. Vem de Roma.
- Pois. De Roma.
As pulseiras da Nina Punales tilintaram de novo.
- Demasiados curas - assinalou, lúgubre. Tocava a madeira sob o mármore da mesa, tentando esconjurar aquilo.
- Topámos com a Igreja - concluiu Don Ibrahim em tom quixotesco e declamatório, como fruto de uma longa reflexão, e Celestino Peregil reprimiu o impulso de se levantar e dizer "adeus, Passem muito bem". "Não pode dar bom resultado", disse para consigo, observando a cinza nas calças do gordo ex-falso advogado, o sinal postiço e o caracolito na testa enrugada da Nina, o nariz esborrachado do antigo peso pluma. "Não com esta gente." Logo recordou o 7 e o 16 sobre o tapete verde e as fotografias da revista; e pareceu-lhe que reinava naquele bar um calor espantoso. Ou talvez não fossem o calor nem o bar. Era porventura o suor que lhe molhava a camisa, a áspera secura do medo na boca. Dispões de seis pacotes para resolver o assunto da igreja, tinha dito Pencho Gavira. Procura um profissional. Administra-os como quiseres.
- E um trabalho fácil - ouviu-se a si próprio dizer-lhes, e compreendeu, maldito fosse, que não tinha por onde escolher. - Negócio limpo. Sem complicações. Um pacote para cada.
Tinha administrado o dinheiro à sua vontade, efectivamente: seis horas de casino para delapidar três dos seis milhões. A quinhentos mil à hora. Também gastara o que tinha conseguido em troca da informação sobre a mulher, ou ex-mulher, do seu chefe. E, além disso, tinha aquele prestamista, Rubén Molina, prestes a largar-lhe os cães por quase o dobro.
- Porquê nós? - perguntou Don Ibrahim.
Peregil fitou-o nos olhos e por um décimo de segundo percebeu a ansiedade que também pulsava, ao fundo, oculta sob as pupilas dilatadas e tristes do seu interlocutor. Engoliu em seco antes de passar o dedo entre a pele e o colarinho da camisa, e voltou a observar o charuto do gordo e proscrito advogado, o nariz partido do Potro, o sinal postiço da Nina. Com o que lhe restava no bolso, era tudo a que podia aspirar: três desgraçados, melhores para um asilo do que para a rua. Restos do naufrágio. Detritos da vida.
- Porque são os melhores - respondeu, corando.
Naquela sua primeira manhã em Sevilha, Lorenzo Quart levou quase uma hora a encontrar a igreja. Subiu duas vezes o bairro de Santa Cruz e voltou outras tantas, comprovando a inutilidade do seu mapa turístico naquele dédalo de ruelas silenciosas, estreitas, pintadas de almagre, ocre e cal, onde muito de vez em quando a passagem de um automóvel o obrigava a procurar resguardo sob pórticos frescos, obscuros, com cancelas que davam para pátios de azulejos, gerânios e roseirais. Viu-se, por fim, numa praceta estreita, de paredes brancas e ocres, com grades de ferro forjado suportando vasos com flores. Havia bancos com azulejos, representando cenas de Dom Quixote, e meia dúzia de laranjeiras cujas flores emanavam um cheiro intenso. A igreja era pequena: uma fachada em ladrilho, apenas vinte metros de largura, fazia esquina, apoiando-se no muro do edifício contíguo. Não parecia em bom estado: o campanário estava escorado por traves de madeira, grossas vigas de madeira sustinham a parede exterior e um andaime de tubos metálicos ocultava parcialmente um painel de azulejos com um Cristo escoltado por candeeiros de ferro ferrugento. Havia também uma betoneira junto de um monte de saibro e sacos de cimento.
Então era aquela. Durante um par de minutos, parado a meio da praça com uma das mãos no bolso e o mapa dobrado na outra, Quart observou o edifício. Nada pôde apreciar de misterioso entre as laranjeiras perfumadas, sob o céu sevilhano naquela manhã luminosa, de um azul perfeito. O pórtico barroco era emoldurado por duas retorcidas colunas salomónicas, sobre as quais um nicho continha uma imagem da Virgem. Nossa Senhora das Lágrimas, murmurou quase em voz alta. Deu, então, uns passos em direcção à igreja e, ao aproximar-se, verificou que a Virgem estava decapitada.
Em algum lugar próximo tocaram sinos e um bando de pombas levantou voo dos telhados que rodeavam a praça. Viu-as afastar-se e, de novo, volveu o olhar para a fachada. Alguma coisa tinha alterado a sua visão do lugar. Agora, apesar da luz sevilhana, das laranjeiras e do seu perfume, a igreja adquiria aos seus olhos um aspecto distinto. Imediatamente, as velhas vigas que escoravam as paredes, o ocre do campanário que parecia arrancado como lascas de pele, o imóvel sino de bronze por cujo travessão carcomido trepavam ervas daninhas, infundiam ao conjunto um carácter inquietante, pardo e sombrio. Uma igreja que mata para se defender, afirmava a misteriosa mensagem de Vésperas. Quart lançou outro olhar à Virgem decapitada, ao mesmo tempo que dedicava uma careta zombeteira às suas próprias apreensões. À primeira vista, não havia muito que defender.
Para Lorenzo Quart, a fé era um conceito relativo e monsenhor Spada não errava muito ao ironizar, brincando apenas em parte, como um bom soldado. O seu credo consistia menos na admissão de verdades reveladas do que em actuar de acordo com a suposição da existência de fé, sem que esta fosse imprescindível no conjunto. Considerada deste ponto de vista, a Igreja Católica tinha-lhe oferecido desde o princípio o que a outros jovens oferece o serviço militar: um lugar onde, em troca de um conceito inquestionável, uma pessoa tem a maior parte dos problemas resolvidos pelo regulamento. No seu caso, aquela disciplina oficiava no lugar da fé que não tinha. E o paradoxo - intuído pela perspicácia do veterano arcebispo Spada - era precisamente que essa falta de fé, com o orgulho e o rigor necessários para a sustentar, fazia de Quart um sacerdote extraordinariamente eficaz no seu trabalho.
Tudo tinha a sua explicação, evidentemente. Órfão de um pescador afogado num naufrágio, protegido por um tosco pároco de aldeia que facilitara a sua entrada no seminário, disciplinado e brilhante ao ponto de interessar os seus superiores no progresso da sua carreira, Quart contava com essa lucidez meridional tão semelhante a uma enfermidade tranquila que, por vezes, trazem consigo o vento levante e os vermelhos fins de tarde mediterrânicos. Uma vez, ainda criança, permanecera horas açoitado pelo vento e pela chuva no pontão de um porto enquanto, mar adentro, os desvalidos barcos de pesca tentavam, pouco a pouco, abrigar-se de um temporal com ondas de dez metros. Avistava-os ao longe, minúsculos, enternecedoramente frágeis entre montanhas de água e salpicos de espuma, avançando arduamente entre o estertor dos seus motores que fraquejavam. Perdera-se um; e quando um barco de pesca se perdia, não se ia apenas um homem, mas desapareciam juntos filhos, maridos, irmãos e cunhados. Por isso, as mulheres vestidas de negro com garotos agarrados às saias e às mãos agrupavam-se junto do farol vendo-os chegar e moviam os lábios rezando em silêncio, suspensas do mar, tentando adivinhar qual faltava. E, quando os barquitos começaram, por fim, a cruzar a barra do porto, os homens que vinham a bordo olhavam para cima, para o lugar sobre o pontão onde Lorenzo Quart continuava agarrado à mão gelada da sua mãe e tiravam as boinas e os gorros. E continuaram, golpeando as ondas e o vento e a chuva até que, por fim, já não veio mais nenhum barco; e nesse dia Quart descobriu duas coisas. A primeira é que é inútil rezar ao mar. A segunda foi uma resolução: a ele ninguém o esperaria num pontão, debaixo de chuva.
A porta de carvalho com grossos pregos estava aberta. Quart entrou na igreja e um sopro de ar frio veio ao seu encontro, como se acabasse de afastar uma lápide. Tirou os óculos de sol antes de molhar o indicador e o polegar na pia de água benta e, ao persignar-se, sentiu a frescura da água na testa. Havia meia dúzia de bancos de madeira alinhados frente ao retábulo do altar, cujos dourados reluziam ao fundo da nave, e os restantes estavam arrumados a um canto, uns por cima dos outros, para deixar espaço a vários andaimes. Cheirava a fechado e a cera, a humidade de séculos. Tudo estava na penumbra, menos um ângulo iluminado por um foco, em cima, à esquerda. E, ao erguer os olhos para a luz, Quart viu uma mulher no alto da estrutura metálica, fotografando os caixilhos dos vitrais.
- Bons dias - disse.
Tinha o cabelo grisalho, como ele; mas, no seu caso, não se tratava de cãs prematuras. Quarenta e tantos longos anos, calculou, vendo-a inclinar-se sobre o varandim que coroava a rede de tubos de aço, cinco metros acima da sua cabeça. Depois, a mulher agarrou-se à estrutura e desceu com agilidade até ao solo da nave. Tinha o cabelo apanhado sob a nuca numa pequena trança, vestia um pólo de mangas largas, calças de ganga manchadas de gesso e sapatilhas. E, de costas, vendo-a descer, teria passado por uma jovem.
- Chamo-me Quart - disse ele.
A mulher limpou a mão direita na parte de trás das calças, e estendeu-a, num aperto vigoroso e breve.
- Eu sou Gris Marsala. Trabalho aqui.
Tinha sotaque estrangeiro, mais norte-americano que inglês; as mãos ásperas e os olhos claros e amistosos, rodeados de rugas. Também um sorriso franco, aberto, que se manteve enquanto observava Quart de cima a baixo, com curiosidade.
- É um cura com bom aspecto - concluiu por fim, desenvolta, detendo-se no colarinho da camisa negra. - Esperávamos outra coisa.
Ele observava o andaime e as paredes da igreja, e deteve-se a meio do gesto, surpreendido com o plural:
- Esperavam?
- Sim. Todos estão pendentes do enviado de Roma. Mas imaginávamos um funcionário baixinho, de sotaina, com uma maleta negra cheia de missais, crucifixos e coisas dessas.
- Todos quem?
- Não sei. Todos - a mulher pôs-se a contar pelos dedos manchados de gesso. - Don Príamo Ferro, o pároco. E o seu vigário, o Padre Oscar - o sorriso retraiu-se um pouco, como se fosse substituí-lo por outro mais profundo, paralelo e oculto. - Também o arcebispo, o presidente da câmara e mais um monte de gente.
Quart apertou os lábios. Ignorava que a sua missão fosse do domínio público. Tanto quanto sabia, só a Nunciatura em Madrid e o arcebispo de Sevilha haviam sido informados pelo IOE. Tirando o núncio, imaginou monsenhor Corvo semeando a discórdia. Que o inferno confundisse Sua Eminência Ilustríssima.
- Não contava com tanta expectativa - disse, com frieza. A mulher encolheu os ombros, ignorando o tom.
- Não se trata do senhor, mas da igreja - ergueu a mão para indicar os andaimes contra as paredes, o tecto enegrecido, onde a pintura se desprendia em manchas de humidade. - Este lugar tem suscitado paixões nos últimos tempos. E, em Sevilha, ninguém é capaz de guardar um segredo - inclinou um pouco a cabeça para ele e baixou a voz, parodiando um ar confidencial. - Contam que até o Papa se interessa pelo assunto.
Santo Deus! Quart manteve silêncio um instante, observando primeiro a biqueira dos seus sapatos, depois os olhos da mulher. Em seguida, disse para consigo que era um pretexto tão bom como qualquer outro para começar. Por isso, aproximou-se um pouco até quase a roçar com o ombro, antes de olhar em redor com um ar exageradamente desconfiado.
- Quem diz isso? - sussurrou.
O riso dela era tranquilo como os seus olhos e a sua voz; mas o som velava-se nas cavidades da nave deserta.
- O arcebispo de Sevilha, creio. Que, pelos vistos, parece não gostar muito de si.
Tenho de retribuir a Sua Eminência Ilustríssima tantas atenções na primeira ocasião, prometeu a si mesmo Quart in mente. A mulher observava-o com uma malícia divertida. Disposto a aceitar apenas em parte a cumplicidade que ela lhe oferecia, ergueu as sobrancelhas com a inocência de um jesuíta veterano. De facto, tinha aprendido o gesto no seminário. Com um jesuíta.
- Vejo que está informada. Mas não faça caso do que tudo o que dizem.
Gris Marsala soltou uma gargalhada.
- Não faço caso - disse. - Mas é divertido. Além disso, já lhe disse que trabalho aqui. Sou a arquitecta responsável pela restauração deste lugar - tornou a olhar em volta e suspirou, com ar desolado. - O seu aspecto não abona muito a meu favor, não é verdade? Mas é uma longa história de orçamentos que não são aprovados e de dinheiro que não vem.
- A senhora é norte-americana.
- Sim. Ocupo-me disto há dois anos, por encargo da Fundação Eurnekian, que contribuiu com um terço do projecto inicial de restauração. A princípio éramos três, dois espanhóis e eu; mas os outros foram-se... Agora faz tempo que as obras se encontram quase paralisadas - fitou-o, atenta, esperando o efeito do que ia a dizer. - E, além disso, há aquelas duas mortes.
A expressão de Quart manteve-se imperturbável:
- Refere-se aos acidentes?
- É uma maneira de dizer, sim. Acidentes - continuava a vigiar a reacção do seu interlocutor e pareceu decepcionada ao comprovar que não acrescentava comentário algum. - Já viu o pároco?
- Ainda não. Cheguei ontem à noite e nem sequer visitei o arcebispo. Quis dar uma vista de olhos primeiro.
- Pois é como vê - fez um gesto com a mão, mostrando a nave e o altar-mor, quase invisível ao fundo, na penumbra. - Barroco sevilhano setecentista, retábulo de Duque Cornejo... Uma pequena jóia a cair em pedaços.
- E a Virgem decapitada à porta?
- Alguns cidadãos celebraram à sua maneira a proclamação da Segunda República, em 1931.
Disse-o em tom benevolente, como se no fundo desculpasse os decapitadores. Quart perguntou a si mesmo há quanto tempo estaria naquela cidade. Muito, sem dúvida. O seu castelhano era impecável, e parecia sentir-se muito à-vontade.
- Há quanto tempo cá vive?
- Há quase quatro anos. Mas estive cá muitas vezes antes de me estabelecer. Vim com uma bolsa e nunca me fui embora de todo.
- Porquê?
Viu-a encolher os ombros, como se também ela se fizesse a mesma pergunta.
- Não sei. Acontece o mesmo a muitos dos meus companheiros, sobretudo aos jovens. Um dia chegam e já não conseguem ir-se embora. Ficam a tocar guitarra, a desenhar nas praças. Dando tratos à imaginação para viver - olhou, pensativa, o rectângulo formado pelo sol no chão, junto da porta. - Há alguma coisa na luz, na cor das ruas, que nos contamina a vontade. E como adoecer.
Quart deu uns passos e deteve-se, ouvindo o último eco apagar-se ao fundo da nave. Havia um púlpito com escada em caracol à esquerda, meio oculto pelos andaimes, e um confessionário à direita, numa pequena capela que servia como entrada para a sacristia. Passou a mão pela madeira, enegrecida pelo uso e pela idade.
- Que lhe parece? - perguntou a mulher.
Quart ergueu a cabeça. A abóbada, de canhão com lunetas, formava planta regular com uma nave única e transepto de braços curtos. Uma cúpula elíptica, rematada em lanterna cega, havia sido adornada com frescos, agora reconhecíveis pelos estragos do fumo das velas e dos incêndios. Podiam distinguir-se uns quantos anjos em torno de uma grande mancha negra de fuligem, e vários profetas barbudos e maltratados, descarnados por manchas de humidade que lhes davam um aspecto de leprosos incuráveis.
- Não sei - respondeu. - Pequena, bonita, velha.
- Três séculos - precisou ela, e o eco repetiu-se quando caminharam, de novo, entre os bancos, em direcção ao altar-mor. - No meu país, um edifício com trezentos anos seria uma jóia histórica inviolável. E aqui é o que se vê: sítios como este a cair por toda a parte, sem que ninguém mexa um dedo.
- Talvez haja demasiados.
- Tem graça ouvir isso a um sacerdote. Embora não pareça - observou-o, de novo, de alto abaixo, com irónico interesse, detendo-se desta vez no corte impecável do fato leve e escuro - A não ser pelo colarinho e a camisa negra...
- Há vinte anos que os uso - interrompeu-a friamente, olhando por cima do ombro da mulher. - Falava-me da igreja e de sítios como este.
Ela ficou um pouco desconcertada, meneando a cabeça, num esforço visível para o catalogar numa das espécies conhecidas do sexo masculino. E, apesar da sua desenvoltura, Quart soube que o colarinho a intimidava. Acontece a todas, pensou: velhas, jovens, sem excepção. Até a mais resoluta pode ficar insegura quando um gesto, uma palavra, lembram de súbito o sacerdote.
- A igreja - disse, finalmente, Gris Marsala, olhando-o como se tivesse o pensamento noutro lugar. - Mas não concordo que haja demasiados lugares destes. Afinal de contas, trata-se da nossa memória, não lhe parece? - franziu os lábios e o nariz, ao mesmo tempo que batia com o pé nas gastas lajes do solo, como que chamando-as a testemunhar. - Estou convencida de que cada edifício, cada quadro, cada livro antigo que se destrói ou se perde, nos torna um pouco mais órfãos. Empobrece-nos.
Falara com inesperado ardor e a certa altura o seu tom crispou-se com um toque de amargura. Quando viu que era agora Quart quem se voltava, surpreendido, para ela, sorriu de novo.
- Não tem nada que ver com o facto de eu ser norte-americana - disse, em jeito de desculpa. - Ou talvez precisamente por isso. Isto é património de toda a humanidade. Ninguém tem o direito de deixar que se perca.
- Por isso está há tanto tempo em Sevilha? Reflectiu, misteriosa.
- Talvez. Em todo o caso, é por isso que estou agora aqui, neste sítio - olhou para cima, detendo-se num dos vitrais que havia nas lunetas, à esquerda da nave, aquele em que trabalhava quando Quart chegara. - Sabe que é a última igreja construída em Espanha sob os Áustria? As obras do edifício terminaram oficialmente no dia 1 de Novembro de 1700, quando Carlos II, último da sua dinastia, agonizava sem descendência. O ofício religioso inaugural foi de defuntos, no dia seguinte, por alma do rei. Estavam diante do altar-mor. A claridade diagonal dos vitrais transmitia suaves reflexos aos dourados superiores do retábulo, que os seus próprios relevos mantinham na penumbra, entre os andaimes. Quart distinguiu um corpo central com a Virgem sob um largo baldaquim, sobre o sacrário diante do qual fez uma breve inclinação de cabeça. As partes laterais, separadas do pórtico por colunas lavradas, continham nichos com imagens, querubins e santos.
- É magnífico - comentou, sincero.
- É mais do que isso.
Gris Marsala tinha-se aproximado da obra, atrás do altar, e fez girar um interruptor que iluminou o retábulo. A folha de ouro e a madeira dourada ganharam vida e uma fonte de luz derramou-se entre colunas, medalhas e grinaldas lavradas com delicadeza de ourives. Quart admirou a uniformidade do variegado conjunto, a fusão de elementos construtivos e ornamentais num único plano, combinando imagens, molduras, motivos arquitectónicos e vegetais.
- Magnífico - repetiu, impressionado. E levando a mão direita à testa, traçou um mecânico sinal da Cruz. Ao concluí-lo, observou que Gris Marsala o olhava atentamente, como se aquilo lhe parecesse incongruente. - Nunca viu um cura benzer-se? - Quart ocultava o seu desconforto sob um gélido sorriso. - Muitos o devem ter feito diante deste retábulo.
- Suponho que sim. Mas eram outro tipo de curas.
- Só existe um tipo de cura - respondeu ele, um pouco levianamente e para dizer alguma coisa. - É católica?
- Um pouco. O meu bisavô era italiano - os olhos claros fitavam-no com impertinente ironia. - Tenho um sentido bastante exacto do pecado, se é a isso que se refere. Mas, na minha idade...
Deixou a frase no ar, tocando no cabelo branco, apanhado na curta trança. Quart achou oportuno mudar outra vez de conversa:
- Estávamos a falar do retábulo - contrapôs. - E eu dizia-lhe que é magnífico... - fitou-a nos olhos; sério, cortês e distante - Quer que comecemos de novo?
Gris Marsala voltou a inclinar ligeiramente a cabeça. Mulher inteligente, pensava Quart. Tinha, no entanto, alguma coisa de desconcertante. O instinto bem treinado do agente do IOE detectava nela uma incongruência qualquer, uma nota falsa. Estudou-a à procura da chave adequada, mas não havia maneira de aproximar-se mais sem admitir uma cumplicidade que não desejava levar demasiado longe.
- Por favor - acrescentou Quart.
Ela ficou ainda a olhá-lo de soslaio durante alguns segundos. Depois fez um gesto afirmativo e pareceu prestes a sorrir outra vez, mas não o fez.
- De acordo - disse por fim. Tinha-se voltado para o retábulo e Quart seguiu o movimento. - Foi executado em 1711 pelo escultor Pedro Duque Cornejo, que cobrou por ele dois mil escudos a oito reais de prata cada um. E é, de facto, uma maravilha. Estão aqui toda a imaginação e o atrevimento do barroco sevilhano.
A Virgem era uma formosa talha de madeira polícroma de quase um metro de altura. Tinha um manto azul e as mãos abertas, com as palmas para fora. Uma lua em quarto servia-lhe de pedestal e o pé direito esmagava uma serpente.
- É muito bela - disse Quart.
- Realizada por Juan Martínez Montanés, quase um século antes do retábulo... Era propriedade dos duques do Nuevo Extremo; e como um deles ajudou a construir esta igreja, o seu filho doou a imagem. As lágrimas deram o nome ao lugar.
Quart estudava os pormenores. Viam-se reluzir lágrimas no rosto, na coroa e no manto.
- Um pouco exageradas, parece-me.
- Originalmente, eram contas de cristal mais pequenas; mas agora são pérolas. Vinte pérolas perfeitas, trazidas da América nos finais do século passado: uma história que tem a sua outra parte ali, na cripta.
- Existe uma cripta?
- Sim. A entrada dissimula-se deste lado, à direita do altar-mor; é uma espécie de capela privada. Várias gerações de duques do Nuevo Extremo repousam ali dentro. Foi um deles, Gaspar Bruner de Lebrija, quem, em 1687, cedeu um terreno da sua propriedade para edificar a igreja, sob condição de que se rezasse missa por sua alma uma vez por semana - apontou para o retábulo à direita da Virgem, com a imagem de um cavaleiro ajoelhado, em atitude de oração. - Aí o tem: esculpido por Duque Cornejo, que executou também a figura da esquerda, representando a sua esposa... A construção do edifício foi encomendada ao seu arquitecto de confiança, Pedro Romero, que o era também do duque de Medina-Sidonia. De tudo isto provém o vínculo da família a esta igreja. O filho do dador, Guzmán Bruner, custeou a conclusão do retábulo com a efígie dos seus pais e trouxe a imagem em 1711... A relação familiar ainda existe, embora mais ténue. E tem muito que ver com o conflito.
- Que conflito?
Gris Marsala continuava a olhar para o retábulo, como se não tivesse ouvido a pergunta. Passou a mão pelo pescoço, emitindo um curto suspiro.
- Bom. Chame-lhe como quiser - o seu tom fizera-se forçosamente ligeiro. - Um impasse, poderíamos dizer. Com Macarena Bruner, a sua mãe, a velha duquesa e todos os outros.
- Ainda não conheço as senhoras Bruner.
Quando Gris Marsala se virou para Quart, havia um reflexo maldoso nos seus olhos claros.
- Não? Pois logo as conhecerá - fez uma pausa e inclinou a cabeça para o lado, divertida. - Às duas.
Quart ouviu-a rir sorrateiramente enquanto fazia girar o interruptor da luz. De novo a obscuridade cobriu o retábulo.
- Que está a acontecer aqui? - perguntou.
- Em Sevilha?
- Nesta igreja.
Ela tardou uns segundos a responder.
- É o senhor quem deve dizê-lo - replicou por fim. - Para isso o enviaram.
- Mas trabalha aqui. Deve ter uma ideia.
- Tenho ideias, evidentemente. Mas guardo-as para mim. Tudo o que sei é que há mais gente interessada em que isto venha abaixo do que em mantê-lo de pé.
- Porquê?
- Ah, ignoro - as ofertas de cumplicidade pareciam ter-se desvanecido. Agora era ela quem se fechava, distante, e o frio da nave deserta parecia sentir-se, de novo, entre ambos. - Talvez porque, neste bairro, o metro quadrado de solo vale uma fortuna - moveu a cabeça, sacudindo pensamentos incómodos. – Logo encontrará quem lhe conte.
- Tinha dito que tem ideias sobre isto.
- Ai sim?... - sorria com o canto da boca, mas tratava-se de um gesto insincero, forçado. - E possível. De qualquer modo, não me diz respeito. O que me compete é salvar o que puder do edifício, enquanto houver com que pagar as obras, o que não é o caso.
- Porque continua, então, aqui sozinha?
- Faço horas extraordinárias. Desde que me ocupo desta igreja, não consegui mais nada, por isso tenho muitíssimo tempo livre.
- Muito tempo livre - repetiu Quart.
- Isso mesmo - a sua voz recobrara um tom amargo. - E não tenho outro sítio para onde ir.
Ia ele insistir, intrigado, quando uns passos nas suas costas o fizeram virar-se. Emoldurada na porta estava uma silhueta negra, pequena e imóvel, e o traço escuro da sua sombra caía, compacto, sobre o rectângulo de luz das lajes do solo.
Gris Marsala, que se virara também, dirigiu a Quart um estranho sorriso:
- Já é altura de conhecer o pároco. Não lhe parece?... Refiro-me a Don Príamo Ferro.
Quando Celestino Peregil saiu do bar Caía Cuesta, Don Ibrahim pôs-se a contar dissimuladamente, sob o mármore da mesa, as notas que o assistente de Pencho Gavira lhes deixara para os primeiros gastos - Cem mil - disse, ao terminar a operação.
O Potro del Mantelete e a Nina Punales assistiram em silêncio. Don Ibrahim fez três montes de trinta e três mil, introduziu um no bolso interior do casaco e passou os outros aos seus companheiros. A nota que sobrava, pousou-a em cima da mesa.
- Que lhes parece? - perguntou.
O Potro del Mantelete, de sobrolho franzido, alisou a nota e ficou a contemplar a efígie de Hernán Cortês.
- Parece-me boa - aventurou.
- Refiro-me ao trabalho. À tarefa.
O Potro continuou a olhar para a nota com ar taciturno e a Nina Punales encolheu os ombros:
- É dinheiro - disse, como se isso resumisse tudo. - Mas metermo-nos com curas dá azar.
Don Ibrahim fez um gesto para retirar a gravidade ao assunto. Fê-lo com a mão esquerda, onde o charuto fumegava junto do anel de ouro, e a cinza voltou a cair-lhe sobre as calças brancas.
- Resolvê-lo-emos com muito tacto - observou, inclinado com esforço sobre a barriga, enquanto sacudia o pó cinzento.
A Nina Punales disse ozú e o Potro del Mantelete anuiu com a cabeça, olhando ainda para a nota. O Potro devia andar pelos quarenta e cinco anos e tinha-os todos impressos na cara. Uma juventude de novilheiro sem sorte deixara-lhe nas pupilas e na garganta o pó do fracasso em praças de terceira categoria e também uma cicatriz provocada pelo corno de um touro sob a orelha direita. Quanto à sua breve e obscura trajectória como aspirante ao título de campeão de Andaluzia de peso pluma entre os realistados da Legião, tudo o que tinha conseguido era o nariz partido, as sobrancelhas grossas e intermitentes por causa das cicatrizes e uma certa lentidão de reflexos no momento de agir, falar e pensar. Na rua para vigarizar turistas, interpretava bem o papel de tonto: havia muito de real na sua forma desvalida de olhar o vazio à espera do toque do terceiro aviso, ou do gongo de uma improvável contagem decrescente.
- Isso do tacto é importante - disse devagar.
- Ozú - corroborou a Nina.
O Potro del Mantelete franzia ainda o sobrolho, como sempre que se punha a considerar alguma coisa. Do mesmo modo, de cenho franzido e considerando muito em pormenor a questão, entrara um dia em casa para encontrar o seu irmão paralítico na cadeira de rodas, com as calças pelos joelhos e a cunhada - a mulher do Potro - sentada em cima dele, entre eloquentes arquejos. Sem se apressar nem elevar a voz, assentindo docemente com a cabeça enquanto o irmão assegurava que aquilo era um mal-enten-dido e que podia explicar tudo, o Potro del Mantelete pusera-se atrás da cadeira de rodas, levando-a quase com ternura até ao patamar para deixá-la cair, junto com o seu proprietário, pelas escadas abaixo, com o resultado de trinta e dois degraus fazendo cloc-clac e uma fractura de crânio forçosamente mortal. A mulher safou-se com uma tareia metódica, científica, que consistiu em dois olhos roxos e um KO com um gancho da esquerda de que se recompôs em meia hora, mesmo a tempo de fazer a maleta e desaparecer para sempre. A história do irmão foi mais difícil de resolver: confrontado com uma pena fiscal de trinta anos, só a habilidade do advogado conseguira substituir no espírito do juiz a tese do assassinato pela de homicídio acidental, com o resultado de absolvição in dúbio pró reo. O advogado era Don Ibrahim, cujo diploma emitido em Havana ainda era considerado autêntico pela Ordem Sevilhana. Mas, com título ou sem ele, o certo é que o antigo toureiro e boxeur nunca esqueceria a comovedora alegação que ganhara, palmo a palmo, a sua liberdade. O lar destruído, Meritíssimo. O irmão infiel, o calor do momento, o nível intelectual do meu cliente, a ausência de animus necandi, a cadeira de rodas sem travões. Desde então, o Potro del Mantelete dedicava ao seu benfeitor uma fidelidade cega, heróica, indestrutível; mais abnegada, se é que isso era ainda possível, após a ignominiosa expulsão de Don Ibrahim da advocacia. Lealdade de lebréu silencioso e duro, disposto a tudo em troca de uma ordem ou de uma carícia do seu dono.
- Continuo a ver demasiados curas - insistiu a Nina.
As pulseiras de prata tilintavam de novo, enquanto dava voltas ao copo vazio. Don Ibrahim e o Potro fitaram-se, e o antigo falso advogado pediu três finos La Ina, mais umas tapitas de lombo, para acompanhar. Mal o empregado pousou o xerez frio sobre a mesa, ela liquidou o seu copo de um só trago, enquanto os dois homens apartavam a vista, fazendo como se não vissem o gesto.
Vinho amargo, cheio de alegria Embora me embebede Não posso esquecer...
Cantou, desgarrado e baixinho, a Nina Punales, passando a língua pelos lábios vermelhos de carmim, brilhantes com a humidade do fino, e o Potro sussurrou olé sem a olhar, batendo suavemente a mão sobre o mármore da mesa. A Nina Punales tinha os olhos escuros, grandes, trágicos, que o excesso de pintura e lápis negro fazia parecer enormes num rosto que mostrava restos de uma beleza coalhada e murcha sob o pequeno caracol de cabelo pintado e penteado sobre a testa. Quando o xerez ou a manzanilla a deixavam toldada, costumava contar que um homem moreno de verde luna matara outro por causa dela à navalhada, como nas suas canções; e procurava no bolso um recorte de jornal, sem dúvida perdido muito tempo antes. A ter acontecido realmente, tinha de ter sido quando a Nina figurava nos cartazes de espectáculo com toda a sua qualidade de cigana bonita, bravia, jovem promessa da canção espanhola. A sucessora, dizia-se, de Dona Concha Piquer. Agora, três décadas depois do fugaz momento de glória, arrastava a sua pouca fortuna, a sua triste lenda e as suas canções pelas mesas manchadas de vinho e os palcos de má morte, como actuação para circuitos turísticos com jantar e espectáculo incluídos, Sevilha à noite, sobre estrados ensebados que o bater cansado dos seus sapatos de baile estilhaçava.
- Por onde começamos? - perguntou, fitando Don Ibrahim.
Também o Potro del Mantelete ergueu a vista da mesa para a fixar no homem que mais respeitava no mundo depois da memória do defunto toureiro Juan Belmonte. Consciente da sua responsabilidade, o ex-falso advogado deu uma longa passa no charuto e leu mentalmente, duas vezes, as tapas anunciadas na ardósia sobre o balcão do bar: Croquetes. Miúdos. Anchovas fritas. Ovos bechamel. Lín-com molho. Língua entremeada.
- Como digo, e digo bem, Caio Júlio César - expôs, quando julgou decorrido o tempo conveniente para conferir gravidade às suas palavras - G alia es t omnia divisa in partibus infidelibus. Ou seja, antes de qualquer actuação, impõe-se um reconhecimento visual - passou a vista em redor, como um general sobre o seu plano-mor. - Uma inspecção do terreno, se me entendem -pestanejou, à laia de interrogação. - Entendem-me?
- Ozú.
- Sim.
- Alegro-me com isso - Don Ibrahim passava o dedo pelo bigode, satisfeito com o moral das tropas. - O que eu quero dizer é que devemos dar uma vista de olhos pela igreja e tudo o mais - olhou para a Nina, sabendo-a piedosa. - Com o respeito devido, claro está, ao seu carácter de recinto sagrado.
- Eu conheço-a - observou ela com a sua voz de aguardente. - Está muito velha, sempre em obras. Por vezes vou lá assistir à missa.
Como seria de esperar, era muito devota. Por seu lado, embora costumasse confessar-se agnóstico, Don Ibrahim respeitava a liberdade de culto. Inclinou-se um pouco sobre a mesa, interessado. A rigorosa informação prévia, lera ele algures - Churchill, parecia-lhe, ou Frederico, o Grande - era mãe de todas as vitórias.
- Como é o sacerdote? Refiro-me ao pároco titular.
- Como os de antigamente - a Nina Punales enrugava os lábios e a testa, esforçando-se por recordar - velho, mal-humora-do... Uma vez pôs na rua uns turistas que entraram a meio da missa. Desceu do altar, com casula e tudo, e deu-lhes uma descompostura tremenda porque estavam de calções. "Isto aqui não é um balneário nem um circo", disse-lhes, "por isso, andor". E pô-los no olho da rua.
Don Ibrahim assentiu, comprazido.
- Um santo homem, pelo que vejo.
- Ozú.
- Um virtuoso homem da igreja.
- Dos pés à cabeça.
Após uma pausa para reflectir, o índio fez um anel de fumo e quedou-se a vê-lo desaparecer. Tinha agora um ar preocupado.
- Ou seja, temos pela frente um eclesiástico de carácter - considerou, moderando a sua aprovação inicial.
- De carácter, não sei - disse a Nina. - O que tem com certeza é muito mau feitio.
- Bem vejo - Don Ibrahim fez outro anel, mas desta vez saiu-lhe mal. - Quer dizer que esse digno pároco pode causar-nos problemas. Refiro-me a entravar a nossa estratégia.
- Pode arruiná-la por completo.
- E o outro sacerdote, o vigário jovem?
- A esse vi-o umas vezes, a ajudar à missa. Parece tranquilo, de boas maneiras. Mais brando.
Don Ibrahim olhou pela janela do outro lado da rua, para as botas de campo de Valverde del Camino penduradas do toldo sobre o escaparate de Calzados La Valenciana. Depois, com um estremecimento de melancolia, observou os dois rostos que tinha diante de si. Noutro momento da sua vida, teria mandado Peregil dar uma volta, mais o seu encargo; ou, o que era mais provável, exigiria mais dinheiro. Mas, da maneira como estavam as coisas, não havia muito por onde escolher. Observou tristemente a boca pintada da Nina, o sinal postiço, as unhas cujo verniz vermelho falhava nos bordos, os dedos descarnados em torno do copo vazio. Depois moveu os olhos para a esquerda, até encontrar o olhar fiel do Potro del Mantelete, antes de terminar na sua própria mão sobre a mesa, a que segurava o havano, junto do anel, falso como Judas, que de vez em quando conseguia vender por mil duros - tinha vários - a algum turista incauto dos bares de Triana. Eles os dois eram a sua gente, a sua responsabilidade. O Potro, pela sua fidelidade para além do infortúnio. A Nina, porque o ex-falso advogado nunca ouvira cantar Capote de grana e oro como a ela, quando acabara de chegar a Sevilha. Só muito depois a conhecera em pessoa, actuando num palco de ínfima categoria, já arruinada pelo álcool e pela idade, estampa viva das estrofes que cantava com aquela voz alquebrada, sublime, que fazia pele de galinha: La loba, Romance de valentia, Falsa Moneãa, Tatuaje. Na noite do encontro, Don Ibrahim jurara a si mesmo resgatá-la do esquecimento, sem outro motivo que não fosse fazer justiça à Arte. Porque, apesar das calúnias da Ordem dos Advogados, apesar do publicado na imprensa local quando se empenharam em metê-lo na cadeia por causa de um absurdo diploma de que ninguém queria saber para nada, apesar dos biscates que se via obrigado a fazer para ganhar a vida, ele não era um miserável. Don Ibrahim ergueu a cabeça, ajustando maquinalmente a corrente do relógio nos bolsos do casaco. Era um homem digno, com pouca sorte.
- Trata-se de uma simples questão estratégica - repetiu, pensativo, em voz alta, mais para se convencer a si mesmo do que por outra coisa, e sentiu presa nele a esperança dos seus parceiros.
Celestino Peregil tinha prometido três milhões, mas talvez lhe arrancassem mais. Dizia-se que Peregil era peão de brega de um banqueiro cheio de dólares. Aquilo cheirava a dinheiro e eles precisavam de liquidez para lançar as bases de um velho sonho. Don Ibrahim era homem lido, embora um pouco por alto - de contrário, mal teria tido ocasião para exercer durante algum tempo em Sevilha antes que se levantasse a lebre - e das suas leituras guardava citações como moedas de ouro. No tocante aos sonhos, a melhor era de Thomas D. H. Lawrence, aquele fulano das Arábias que tinha escrito Lady Butterfly: os homens que sonham de olhos abertos levam a água ao seu moinho, ou algo assim. Não alimentava muitas ilusões acerca do modo como tinham os olhos o Potro e a Nina, mas isso era o menos. Ele os manteria abertos por eles.
Olhou com afecto o Potro del Mantelete, que mastigava lentamente uma tira de presunto:
- E tu que dizes, campeão?
O Potro continuou a mastigar em silêncio, coisa de meio minuto.
- Acho que podemos fazê-lo - acabou por retorquir, quando os outros quase haviam esquecido a pergunta. - Se Deus nos der sorte.
Don Ibrahim exalou um suspiro resignado:
- O problema é esse mesmo. Com tanto cura pelo meio, não sei de que lado se colocará Deus.
Sorriu o Potro pela primeira vez naquela manhã e fê-lo com fé. Sorria sempre com fé e a conta-gotas, como se o esforço muscular fosse excessivo no seu rosto moído pelos touros e pelas luvas dos seus adversários no ringue.
- Que seja tudo pela Causa - disse.
A Nina Punales soltou um olé baixito e terno:
Jurou amar-me um homem sem medo da morte.
Cantou a meia voz, pousando a mão sobre a do Potro del Mantelete. Este vivia só desde o seu traumático divórcio, sem família conhecida, e Don Ibrahim suspeitava que amava em silêncio a Nina, embora sem nunca o exteriorizar, por respeito. Ela, por seu lado, apoiada na mancebia dos seus sonhos, guardava fielmente a memória do homem de olhos verdes que continuava a esperá-la no fundo de cada garrafa. Quanto a Don Ibrahim, em matéria de amores, ninguém pudera jamais apresentar provas concludentes; se bem que, em noites de manzanilla e guitarra, gostasse de falar vagamente de episódios românticos da sua juventude caribenha, quando era amigo de Beny More - o Bárbaro do Ritmo - e de Carafoca Pérez Prado e do actor mexicano Jorge Negrete, até que se travaram de razões. A época em que Maria Félix, a divina Maria, a Dona, lhe oferecera a bengala de ébano com castão de prata numa noite em que Don Ibrahim e uma garrafa de tequila - Herradura Reposado, um litro - foi infiel a Augustín Lara; e o fraco elegante, feito em pó, compôs uma canção imortal para aliviar os cornos. Rejuvenescia o sorriso do índio com a suposta recordação de Acapulco, daquelas noites, daquelas praias, Maria da alma, Maria Bonita. E a Nina Punales trauteava baixinho, entre dois copos de fino e manzanilla, a canção de que ele fora o culpado sedutor. E o Potro emprestava à cena o seu perfil duro e silencioso, desprovido de sombra, porque esta vagueava, desorientada, pela lona dos ringues e o terreno de praças portáteis de má morte. Deste modo, ninguém correspondia e todos eram correspondidos naquele singular triângulo feito de fins de tarde, fumo de tabaco, vinho, aplausos, praias distantes e nostalgias. E desde que o acaso e a vida os juntaram em Sevilha, como cascas de noz à deriva, os três compadres partilhavam a interminável ressaca das suas vidas numa pitoresca amizade cujo nobre objecto lograram descobrir numa madrugada de muita e tranquila borracheira, sentados diante da larga e mansa corrente do Guadalquivir: a Causa. Um dia teriam dinheiro suficiente para levantar um palco de estrondo. Chamar-lhe-iam O Templo da Copla e ali fariam fariam finalmente justiça à arte da Nina Punales, mantendo viva a canção espanhola.
Nena, dizia-me, louco de paixão...
Continuava cantando, baixinho, a Nina. Entrou na Casa Cuesta uma cauteleira apregoando um quinze mil e Don Ibrahim comprou-Lhe três décimos. Depois mandou chamar o empregado para liquidar a conta, readquiriu a bengala de Maria Bonita e o panamá de palha branca com ar senhorial, levantando-se com dificuldade, ao mesmo tempo que o Potro del Mantelete, erguido como se acabasse de soar a sineta, puxava a cadeira à Nina e ambos a escoltaram até à porta. A nota de Hernán Cortês, deixaram-na em cima da mesa, como gorjeta. Afinal, tratava-se de um dia especial. E, como disse o Potro, justificando humildemente o gasto, Don Ibrahim era um cavalheiro.
O recém-chegado entrou na igreja e a luz que deixava para trás, recortada na porta e sobre as lajes do umbral, cegou Lorenzo Quart. Isso fê-lo pestanejar um instante e, quando a retina conseguiu adaptar-se de novo à penumbra interior, Don Príamo Ferro estava já junto dele. Verificou então que era pior do que imaginara.
- Sou o Padre Quart - disse, estendendo a mão. - Acabo de chegar de Sevilha.
A mão ficou imóvel no vazio, ante os olhos negros e penetrantes que a fitavam, desconfiados.
- Que faz na minha igreja?
"Começa mal", disse para consigo, enquanto retirava, devagar, a mão, observando o homem que tinha na sua frente. Áspero como a sua voz, miúdo, seco, o cabelo branco por pentear e mal tosquiado, a sotaina coçada e cheia de manchas, sob a qual assomavam uns velhos sapatorros que ninguém se dera ao trabalho de engraxar nos últimos cinco ou seis anos.
- Pareceu-me oportuno satisfazer um pouco a minha curiosidade - respondeu com calma.
O mais inquietante residia no rosto, sulcado em todas as direcções por marcas, rugas e pequenas cicatrizes que davam ao pároco um aspecto atormentado, duro, tal como essas fotografias aéreas de desertos onde se reflecte a erosão, as falhas da crusta terrestre, as marcas profundas de rios desaparecidos que o tempo foi talhando na terra e na rocha. Além disso, eram os olhos escuros, agrestes, alojados ao fundo de órbitas profundas, que observavam o mundo com muito pouca simpatia. Aqueles olhos mediram Quart de alto a baixo e este verificou que se detinham nos botões de punho da sua camisa, no corte do fato e por fim no seu rosto. Pareciam pouco agradados com o que viam.
- O senhor não tem o direito de estar aqui.
Não havia por onde escolher, compreendeu Quart, dirigindo-se a Gris Marsala num pedido de ajuda que de antemão soube inútil: tinha assistido ao diálogo sem tugir nem mugir.
- O padre Quart veio à sua procura - interveio ela, enfadada. Os olhos do pároco ignoraram a arquitecta. Continuavam fixos
no visitante:
- Para quê?
O enviado de Roma ergueu um pouco a mão esquerda, conciliador, constatando que o olhar do seu interlocutor seguia, com desaprovação, o brilho do caro Hamilton que trazia no pulso.
- Necessito de informações sobre este lugar - tinha já a certeza de que o primeiro contacto era um fracasso, mas decidiu prolongar um pouco o esforço. Afinal, era o seu trabalho. - Seria bom que conversássemos um pouco, Padre.
- Não tenho nada que falar consigo.
Quart aspirou ar e deixou-o escapar lentamente. Era como uma penitência que confirmasse os seus piores temores e, além disso, evocava fantasmas que não lhe agradava reviver. Tudo o que detestava parecia reencarnar-se diante dele: a velha condição miserável, a sotaina coçada, o receio de cura de aldeia intransigente, agreste, apenas bom para ameaçar com as penas do inferno, para confessar beatas de cuja ignorância só o separavam uns toscos anos de seminário e um pouco de latim. "Vai ser uma missão incómoda", disse para consigo. "Muito incómoda." Se aquele pároco era Vésperas, dissimulava-o às maravilhas com aquele acolhimento.
- Desculpe - insistiu, metendo a mão no bolso interior do casaco para tirar um sobrescrito com a tiara e as chaves de Pedro impressas num canto - mas creio que temos muito que falar. Sou enviado especial do Instituto para as Obras Exteriores e nesta carta dirigida a si pela Secretaria de Estado estão as minhas credenciais.
Don Príamo Ferro pegou na carta e, sem sequer olhar para ela, rasgou-a ao meio. Os pedaços voaram pelo chão.
- Quero lá saber das suas credenciais...
Mirava Quart lá de baixo, pequeno e desafiador. Sessenta e quatro anos, dizia a informação que tinha sobre a mesa, no quarto do hotel. Vinte e tantos de cura de província, dez como pároco em Sevilha. O seu físico teria feito um belo par com o do Mastim na arena do Coliseu: podia imaginá-lo sem dificuldade como um pequeno e perigoso reciário, o tridente na mão e a rede pendurada ao ombro, procurando dar voltas ao adversário, enquanto as bancadas reclamavam sangue. Na sua vida profissional, Quart tinha aprendido a distinguir à primeira vista contra que tipo de homem convém precaver-se. E o padre Ferro era, exactamente, o obscuro freguês do extremo do balcão que, enquanto os outros vociferam, bebe em silêncio até que, de repente, parte uma garrafa e faz a barba a uma pessoa. Tão-pouco teria feito mau papel vadiando pela lagoa de Tenochtitlán com água pela cintura e uma cruz ao alto. Ou nas Cruzadas, degolando infiéis e hereges.
- Não sei o que é isso das obras exteriores - acrescentou o pároco sem tirar os olhos de Quart. - O meu superior é o arcebispo de Sevilha.
Que, como saltava à vista, tinha preparado conscienciosamente o terreno ao incómodo enviado de Roma. Em todo o caso, Quart não perdeu a calma. Introduziu de novo a mão no interior do casaco, para mostrar o canto de outro sobrescrito idêntico ao que jazia aos seus pés.
- Irei vê-lo, precisamente.
O pároco fez um gesto afirmativo, cheio de desdém, sem que se pudesse estabelecer se o dirigia às intenções de Quart ou à pessoa de monsenhor Corvo.
- Pois veja-o - replicou, carrancudo. - Devo obediência ao arcebispo e quando ele me ordenar que fale consigo, falarei. Entretanto, esqueça-me.
- Venho de Roma, expressamente. Alguém reclamou a nossa intervenção neste assunto. Suponho que esteja ao corrente.
- Eu não reclamei coisa nenhuma. Em todo o caso, Roma é muito longe e esta é a minha igreja.
- A sua igreja.
- Isso mesmo.
Quart sentia o olhar de Gris Marsala fixo neles, na expectativa. Avançou o queixo, ao mesmo tempo que contava mentalmente até cinco.
- Não é a sua igreja, padre Ferro, mas a nossa igreja.
Viu-o quedar-se um instante em silêncio, mirando os dois pedaços de papel no chão e depois virar um pouco o rosto de lado sem apontar para nenhum sítio concreto, com uma estranha expressão, nem trejeito nem sorriso, no rosto cheio de marcas e cicatrizes.
- Também nesse aspecto se equivoca - disse, por fim, como se aquilo resolvesse tudo e pôs-se a andar junto dos andaimes ao centro da nave, em direcção à sacristia.
Santo Deus! Violentando-se a si mesmo, Quart fez a última tentativa de conciliação. Desejava liberdade de consciência, quando chegasse a altura de passar as facturas que correspondessem a cada um. "A daquele sacerdote", disse para consigo, "reprimindo a cólera, ia ser de alívio. Setenta vezes sete."
- Venho ajudá-lo, Padre - disse nas costas do pároco; e, uma vez feito o esforço, sentiu-se em paz antes que as coisas seguissem o seu caminho. Pagava, com aquilo, o que devia à humildade e à fraternidade eclesiástica. A partir de agora, soberba por soberba, Don Príamo Ferro não ia ser o único participante da ira de Deus.
O pároco detivera-se para fazer uma genuflexão ao passar diante do altar-mor e Quart ouviu um riso breve e desabrido, inteiramente desprovido de humor:
- Ajudar-me?... Não sei no que pode ajudar-me alguém como o senhor - voltara-se para fitá-lo pela última vez, erguendo-se, e a sua voz levantava ecos no transepto da nave. - Conheço bem os da sua classe... A ajuda de que esta igreja necessita é outra; e essa não a traz o senhor nos seus preciosos bolsos. E agora vá-se embora. Tenho um baptizado dentro de vinte minutos.
Gris Marsala acompanhou-o à porta. Quart, que apelava para toda a disciplina e sangue-frio a fim de não exteriorizar o seu despeito, escutou sem prestar muita atenção os esforços para desculpar o pároco. "Está sob forte pressão", resumia a arquitecta, como pedindo desculpa. Os políticos, os bancos e o Arcebispado rondavam como uma matilha de lobos. Sem a obstinação do padre Ferro, há muito que a igreja estaria demolida.
- Pode ser que acabem por demoli-la de qualquer maneira - observou Quart, deixando transparecer alguma hostilidade. - Graças a ele e com ele dentro.
- Não diga isso.
Ela tinha razão. Não devia dizer tais coisas. Não devia dizê-las de todo, recriminou-se Quart, outra vez senhor de si, respirando o cheiro das flores de laranjeira, quando saíram à rua. Havia um pedreiro a trabalhar com uma pá junto da betoneira, no recanto formado pela fachada da igreja em ângulo com o edifício contíguo. Quart dirigiu-lhe um olhar distraído, enquanto caminhavam entre as laranjeiras da praça.
- Não percebo esta atitude - disse. - Afinal estou do lado dele. A Igreja está do lado dele.
Gris Marsala fitou-o, irónica:
- A que Igreja se refere?... À de Roma? À do arcebispo de Sevilha? A si próprio?... - abanou a cabeça, incrédula. - Não. Ele tem razão e sabe disso. Ninguém está do seu lado.
- Não me surpreende. Parece disposto a provocar todo o tipo de problemas.
- Já os tem. A sua querela com o arcebispo é uma guerra aberta... Quanto ao presidente da Câmara, ameaça pôr um processo: considera insultuosos os termos em que Don Príamo se referiu a ele durante a homilia da missa dominical, há duas semanas.
Quart deteve-se, interessado. Aquilo não figurava na informação de monsenhor Spada.
- Que disse?
A arquitecta esboçou um sorriso torcido:
- Chamou-lhe especulador infame, prevaricador e político sem consciência - olhou de soslaio, a ver a cara dele. - Que me lembre.
- Costuma fazer esse tipo de sermões?
- Só quando se anima muito. - Gris Marsala deteve-se, reflectindo um pouco. - Ultimamente, talvez com alguma frequência. Fala dos vendilhões que invadem o templo e coisas assim.
- Os vendilhões - repetiu Quart.
- Sim, entre outros.
O sacerdote erguia as sobrancelhas, apreciando o assunto:
- Não está mal - concluiu. - Vejo que o nosso pároco é um especialista na arte de fazer amigos.
- Tem amigos - protestou ela. Depois deu um pontapé numa carica de cerveja e ficou a vê-la rolar. - Também tem paroquianos; gente boa que vem aqui rezar e que precisa dele. E o senhor não pode julgá-lo pelo que aconteceu há pouco.
Havia uma certa paixão na sua voz, que por algum motivo a fazia parecer mais jovem. Quart negou, maçado:
- Eu não vim para julgar - voltara-se para observar o baço campanário da igreja, mas na realidade evitava os olhos da mulher. - Outros o farão.
- Claro - ficou parada diante dele, com as mãos nos bolsos dos jeans. Não gostou do modo como o fitava. - O senhor é daqueles que redigem o seu relatório e lavam daí as mãos, não é verdade?... Limita-se a levar as pessoas ao Pretório e tudo isso. São outros os que dizem ibi ad crucem.
Quart simulou com ironia um gesto de surpresa.
- Não a imaginava tão versada nos Evangelhos.
- Há demasiadas coisas que não imagina, parece-me. Incomodado, o sacerdote descarregou o peso do seu corpo numa perna, depois na outra. Em seguida, passou a mão pelo cabelo grisalho, cortado à escovinha. A uma vintena de metros de distância, o pedreiro que trabalhava junto da betoneira detivera-se e fitava-os, apoiado na pá. Era um jovem vestido com um velho equipamento militar manchado de cal.
- Tudo o que pretendo - disse Quart - é garantir uma investigação limpa.
Ainda diante dele, Gris Marsala negou com a cabeça.
- Não - agora os olhos claros dissecavam-no com a simpatia de um bisturi. - Don Príamo acertou o diagnóstico: o senhor veio garantir uma limpa execução.
- Disse isso?
- Sim. Quando o Arcebispado anunciou que viria.
Quart desviou o olhar por cima do ombro da mulher. Havia uma janela, uma grade com gerânios e um canário imóvel na sua gaiola.
- Só quero ajudar - disse em tom neutro e a sua voz depressa lhe pareceu a de um estranho. Nesse momento, soou nas suas costas o sino da igreja e o canário pôs-se a cantar, feliz por ter companhia.
Ia ser um trabalho difícil.
ONZE BARES EM TRIANA
Tens que cortar, cortar e continuar a cortar, e tens que abater sem piedade, até que as filas de árvores se dispam e o bosque possa considerar-se são.
(Jean Anouilh, A Cotovia)
Há cães que definem os seus donos e automóveis que anunciam os seus proprietários. O Mercedes de Pencho Gavira era escuro, reluzente, enorme, com uma ameaçadora estrela de três pontas erecta sobre o radiador como o ponto de mira de uma metralhadora de proa. Ainda não tinha parado de todo, já Celestino Peregil estava de pé na beira do passeio, mantendo a porta aberta para que o seu chefe saísse. O tráfico diante de La Campana era intenso e a poluição maculava o colarinho cor de salmão da camisa do esbirro, entre o casaco cruzado azul-marinho e a gravata de seda às flores vermelhas, verdes e amarelas, que brilhava a meio do peito como um infame semáforo. O fumo dos tubos de escape fazia ondular o seu cabelo lasso e ralo, destruindo a paciente disposição de camuflagem que construía todas as manhãs, com esmero e muito fixador, a partir da orelha esquerda.
- Perdeste mais cabelo - disse Gavira de má-fé, observando-Lhe, ao passar, o destruído chino. Sabia que nada mortificava mais o seu guarda-costas e assistente do que este género de alusões; mas o financeiro atribuía ao uso periódico da espora a virtude de manter despertos os animais da sua cavalariça. Além disso, Gavira era um homem duro, que se fizera a si próprio, e a sua natureza incluía estes exercícios de caridade cristã.
Apesar do tráfico e da poluição, anunciava-se um dia bonito. Gavira considerou brevemente o panorama, bem erguido no passeio,
enquanto ajustava os punhos da camisa para que sobressaíssem das mangas do casaco; o suficiente para mostrar o reflexo do sol de Maio nos botões de vinte e quatro quilates que lastravam as duplas voltas de seda azul-pálido, confeccionadas pelo melhor camiseiro de Sevilha. Parecia um modelo de revista de modas para cavalheiros, à espera do fotógrafo, quando tocou o nó da gravata e, com a mesma mão, passou a palma pela fronte para roçar o cabelo negro e abundante, um pouco ondulado atrás das orelhas, penteado para trás com brilhantina reluzente. Pencho Gavira era moreno, boa figura, ambicioso, elegante, triunfador, tinha dinheiro e estava prestes a conseguir muito mais. Destes sete adjectivos ou situações, quatro ou cinco deviam-se inteiramente ao seu esforço, e era esse o seu orgulho, e também a sua esperança. O motivo do olhar seguro, satisfeito, que passeou em volta antes de caminhar para a esquina da Calle Sierpes, com o cabisbaixo Peregil colado aos seus calcanhares como um esbirro contrito.
Don Octavio Machuca estava sentado na sua mesa habitual da confeitaria La Campana, inspeccionando os papéis que lhe passava Cánovas, o seu secretário. Havia alguns anos que o presidente do Banco Cartujano trocava as manhãs do seu gabinete no Arenal, decorado com quadros e madeiras nobres, por uma mesa e quatro cadeiras naquele terraço onde pulsava o coração da cidade. Era ali que lia o ABC e via passar a vida, ao mesmo tempo que despachava os seus assuntos desde o pequeno-almoço até à hora do aperitivo, antes de ir almoçar no seu restaurante favorito, Casa Robles. Agora, quase nunca ia ao banco antes das quatro da tarde e os seus empregados e clientes não tinham outro remédio senão ir a La Campana para despachar os assuntos urgentes. Isto incluía o próprio Gavira que, como vice-presidente e director-geral, não podia fugir a tão incómodo transe quase diariamente.
Esta era, sem dúvida alguma, a razão por que o seu olhar de triunfador se ensombrava à medida que se ia aproximando da mesa onde o homem a quem devia o seu presente e o seu futuro estava sentado, diante de um café com leite e meio pãozinho de Antequera com manteiga. Uma sombra que se acentuou de modo notável quando Gavira teve o infeliz gesto de olhar para a esquerda e reparar, à passagem, na capa da Q + S que se destacava de entre as revistas e jornais de um quiosque. Foi apenas um instante; e o financeiro, que sentia na nuca o olhar de Peregil, prosseguiu o seu caminho como se nada tivesse visto. Mas a nuvem negra ganhava terreno e uma pontada de cólera fez-lhe estremecer o estômago, amenizado por uma hora diária de ginásio e sauna. Aquela revista estava há dois dias em cima da mesa do seu gabinete do Arenal e Gavira conhecia, como se ele próprio as tivesse realizado, cada uma das imagens de que constava a reportagem das páginas interiores e da capa: uma fotografia, um pouco esbatida por causa do granulado da teleobjectiva, onde podia reconhecer a sua mulher, Mar-carena Bruner de Lebrija, herdeira do ducado de Nuevo Extremo e descendente de uma das três famílias de maior ascendência da aristocracia espanhola - Alba e Medina-Sidonia eram as outras -, saindo do Hotel Afonso XIII às quatro da madrugada com o toureiro Curro Maestral.
- Chegas tarde - objectou o velho.
Não era verdade e Pencho Gavira sabia-o sem necessidade de consultar o luxuoso relógio que trazia no pulso esquerdo. Manter a tensão com uma discreta e contínua perseguição era uma coisa que tinha aprendido precisamente com Don Octavio Machuca: colocava os subordinados numa saudável incerteza, evitando que dormissem à sombra dos louros. Peregil, com a risca na orelha e os vícios mais ou menos ocultos, era o seu porquinho-da-índia.
- Não gosto que cheguem tarde - insistiu Machuca em voz alta, como se o contasse ao empregado de casaco às riscas que aguardava instruções perto da mesa, de bandeja de latão na mão, atento ao menor dos seus gestos. Reservavam-lhe sempre a mesma mesa de manhã, junto à porta do estabelecimento.
Gavira anuiu lentamente, assumindo com calma o sentido daquelas palavras. Depois pediu uma cerveja, desabotoou o casaco e foi sentar-se na cadeira de vime que o presidente do Banco Cartujano indicava ao seu lado, com um gesto. Depois de um par de vénias abjectas, Peregil foi ocupar um assento numa mesa mais distante, onde Cánovas, o secretário, se retirara para guardar papéis numa pasta de cabedal negro. O secretário era um tipo fraco, ratoneiro, pai de nove filhos e indivíduo de moral irrepreensível, que servia o banqueiro desde o tempo em que este passava tabaco claro e perfumes de Gibraltar. Ninguém se lembrava de jamais o ter visto sorrir, talvez porque o sentido de humor de Cánovas jazia no panteão do seu abarrotado livro de família. Fosse como fosse, o secretário era-lhe antipático e Gavira acariciava secretos projectos acerca do seu futuro: um despedimento fulminante, quando o velho decidisse desocupar o gabinete do Arenal que já mal pisava.
Sem dizer palavra, olhando, como o seu chefe e protector em direcção ao tráfico de gente e automóveis, Gavira esperou até que o empregado veio com a sua cerveja. Bebeu um trago, inclinado para a frente, cuidando que a espuma não pingasse na dobra perfeita das calças, depois limpou os lábios com um guardanapo antes de se acomodar de novo nas costas da cadeira.
- Temos o presidente da Câmara - disse por fim. Octavio Machuca não moveu um músculo da cara. Olhava em
frente, para o cartaz da Pena Béttca (1935), branco e verde na varanda do segundo piso do outro lado da rua, junto do edifício neomudéjar do Banco de Poniente. Gavira observou as mãos ossudas do velho financeiro, longas como garras e salpicadas de sardas de velhice. Machuca era muito delgado e muito alto, com um grande nariz por detrás do qual um par de olhos escuros, sempre rodeados de profundas olheiras como de insónia permanente, esquadrinhavam com expressão de ave de rapina acostumada a caçar sob qualquer tipo de céu, até se saciar. A idade não havia imprimido naqueles olhos tolerância ou piedade, mas cansaço. Ladrão e contrabandista na juventude, prestamista em Jerez, banqueiro em Sevilha antes de perfazer os quarenta anos, o fundador do Banco Cartujano estava prestes a reformar-se; e a sua única aspiração conhecida era tomar o pequeno-almoço todas as manhãs na esquina de Sierpes, diante da Pena Bética e sede bancária da concorrência, que o Cartujano acabava de anexar depois de lavrar a sua ruína palmo a palmo.
- Já não era sem tempo - disse Machuca.
Continuava a olhar do outro lado da rua e Gavira não soube se se referia ao Banco de Poniente ou ao caso do presidente da Câmara.
- Esta noite jantamos juntos - comentou para confirmar, estudando de través o perfil do velho. - E esta manhã tivemos uma longa e cordial conversa telefónica.
- Tu e o teu presidente - murmurou Machuca, como se se esforçasse por identificar um rosto vagamente conhecido. Qualquer outro podia tomar aquilo como um sintoma de senilidade; mas Pencho Gavira conhecia o seu presidente demasiado bem para incorrer em conclusões fáceis.
- Sim - confirmou, voluntarioso, alerta, atento a qualquer matiz: exactamente o tipo de atitude que o havia ajudado a ser quem era. - Acede a reclassificar o terreno e a vendê-lo acto contínuo.
Não havia triunfo na sua voz, sendo legítimo que houvesse. Era uma regra não escrita no mundo que ambos partilhavam.
- Haverá um escândalo - objectou o velho banqueiro.
- Tanto lhe faz. Dentro de um mês expira o seu mandato e sabe que não será reeleito.
- E a imprensa?
- A imprensa compra-se, Don Octavio - Gavira esboçou o gesto de virar páginas com as mãos. - Ou dão-se-lhe ossos melhores para roer.
Viu que Machuca assentia, unindo as pontas soltas. Cánovas acabava precisamente de guardar na pasta um explosivo dossier obtido por Gavira sobre irregularidades nos subsídios de interrupção do trabalho da Junta de Freguesia. O plano era torná-lo público de forma simultânea, para desviar as atenções.
- Sem oposição da Câmara - acrescentou - e com a Secretaria do Património Cultural no bolso, só resta ocuparmo-nos do aspecto eclesiástico do problema - fez uma pausa à espera de comentários, mas o velho permaneceu em silêncio. - Quanto ao arcebispo....
Deixou a frase suspensa, cauteloso, oferecendo ao outro o próximo movimento. Precisava de indícios, cumplicidade, avisos à navegação.
- O arcebispo quer a sua parte - falou, por fim, Machuca. - A Deus o que é de Deus, já sabes.
Gavira anuiu com muito cuidado:
- Naturalmente.
O velho banqueiro voltara-se agora para o fitar.
- Pois dá-se-lhe e caso arrumado.
Não era assim tão fácil e ambos sabiam disso. Velho cabrão.
- Estamos de acordo, Don Octavio - rematou Gavira.
- Então não há mais que falar.
Machuca mexia a colher na chávena de café com leite, voltando a sumir-se na contemplação do cartaz da Pena Bética. Na outra mesa, alheios à conversa, o secretário e Peregil olhavam-se com hostilidade. Gavira escolheu cuidadosamente o tom e as palavras:
- Com todo o respeito, Don Octavio, há mais que falar, sim. Temos nas mãos o melhor golpe urbanístico que Sevilha viu desde a Exposição Universal de 1992: três mil metros quadrados em pleno Bairro de Santa Cruz. E, relacionado com isto, a compra de Puerto Targa pelos Sauditas. Ou seja: cento e oitenta a duzentos milhões de dólares. Mas vai permitir-me que economize o mais possível - bebeu um pouco de cerveja para manter o eco do verbo economizar -... Não quero pagar dez em troca de algo que conseguiremos por cinco. E o arcebispo pôs-se a pedir a lua.
- Em todo o caso, teremos de gratificar monsenhor Corvo pelo facto de lavar daí as suas mãos - Machuca enrugava um pouco a pele das pálpebras em algo que nem remotamente se podia relacionar-se com um sorriso. - Ou as facilidades técnicas, como tu dirias. Não é todos os dias que se consegue que um arcebispo aceda à secularização de um edifício como aquele, despejar o pároco e derrubar a igreja... Não te parece? - tinha erguido uma das suas mãos ossudas para enumerar tudo, mas deixou-a cair sobre a mesa num gesto de cansaço. - Chama-se a isto ter habilidade.
- Sei perfeitamente disso. O meu trabalho não foi fácil, se me permite dizê-lo.
- Por isso estás onde estás. Agora paga ao arcebispo a compensação que ele insinuou e arruma essa parte do assunto. Afinal de contas, o dinheiro com que trabalhas é meu.
- E dos outros accionistas, Don Octavio. E essa a minha responsabilidade. Se aprendi alguma coisa consigo foi a honrar os meus compromissos sem tirar proveito.
O banqueiro encolheu os ombros.
- Como queiras. Ao fim e ao cabo, é a tua operação.
Era-o para o bem e para o mal. Aquilo era uma advertência, mas era preciso muito mais para descompor Pencho Gavira.
- Está tudo sob controlo - afirmou.
O velho Machuca era afiado como uma lâmina de barbear. Gavira, que o sabia de sobra, via como os olhos rapaces iam do cartaz bético à fachada do Banco de Poniente. A operação de Santa Cruz e de Puerto Targa era mais do que um bom negócio: nela Gavira julgava suceder a Machuca na presidência ou ficar inerme diante de um conselho de administração de velhas famílias do dinheiro sevilhano, pouco dispostas para os advogados jovens, ambiciosos e forasteiros. Sentiu cinco pulsações a mais no pulso, sob a corrente de ouro do Rolex.
- Que se passa com o pároco? - o olhar do velho voltara-se de novo para ele: um vislumbre de interesse sob a aparente indiferença. - Dizem que o arcebispo continua pouco seguro da sua cooperação.
- É um pouco assim - Gavira sorria, diluindo suspeições.
- Mas tomámos medidas para resolver o problema - olhou para a outra mesa, para Peregil, e fez uma pausa insegura; compreendeu então que precisava de acrescentar alguma coisa, um argumento.
- Não passa dum velho obstinado.
Fora uma distracção e um erro, e compreendeu-o imediatamente. Com visível prazer, Machuca introduziu-se pela brecha aberta.
- Impróprio de ti - fitava-o nos olhos como uma serpente veterana, satisfeita por infundir temor. Gavira contou dez pulsações a mais, no mínimo. - Eu também sou velho, Pencho. E sabes melhor que ninguém: ainda tenho bons dentes para morder... Seria perigoso esquecê-lo, não é verdade? - as pálpebras de ave de rapina enrugaram-se de novo. - Quando estás tão perto da meta.
- Não esqueço - é difícil engolir em seco sem que o interlocutor dê conta, mas Gavira fê-lo duas vezes. - Quanto a esse pároco, não há comparação entre o senhor e ele.
O banqueiro abanava a cabeça, reprovador.
- Acho-te em baixo de forma, Pencho. Tu, recorrendo à adulação...
- O senhor não me conhece, Don Octavio.
- Não digas asneiras. Conheço-te muito bem, por isso chegaste onde chegaste. E onde estás prestes a chegar.
- Falo-lhe sempre com franqueza. Mesmo quando não gosta.
- Enganas-te. Aprecio sempre a tua franqueza, tão calculada como o resto. Como a tua ambição e a tua paciência... - o banqueiro olhou para o interior da chávena, como à procura de mais pormenores sobre o carácter de Gavira. - E, no que se refere ao ponto de comparação, talvez estejas certo e esse cura e eu não tenhamos nada que ver, à parte os anos vividos. Ignoro-o, porque não o conheço. Mas vou dar-te um bom conselho, Pencho... Tu aprecias os meus conselhos, não é verdade?
- Sabe que sim, Don Octavio.
- Alegro-me, porque este é dos melhores. Desconfia sempre de um ancião que se agarra a uma ideia. E tão raro chegar a velho e ter ideias pelas quais lutar que os poucos afortunados não as deixam arrebatar facilmente - deteve-se, como se recordasse alguma coisa. - Além disso, creio que as coisas se complicaram, não.''... Um cura de Roma e tudo isso.
O suspiro de Pencho Gavira soou sincero. E talvez fosse.
- Mantém-se muito ao corrente, Don Octavio.
Machuca trocou um olhar com o seu secretário, que continuava sentado diante da outra mesa, imóvel frente a Peregil, com a pasta de cabedal negro sobre os joelhos e a expressão de um ratão a jogar póquer. Mudo e cego até novas ordens. Peregil, em contrapartida, movia-se, inquieto e lançava, de soslaio, olhares nervosos a Gavira. A proximidade de Don Octavio Machuca, a conversa deste com o seu chefe e a presença imperturbável de Cánovas intimidavam-no.
- Esta é a minha cidade, Pencho - disse Machuca. - Não sei porque te admiras.
Gavira tirou um maço de tabaco claro e acendeu um cigarro. O presidente não fumava e ele era o único a quem permitia fazê-lo na sua presença.
- Esteja tranquilo - disse com a primeira baforada de fumo. - Está tudo sob controlo - expulsou uma segunda mais lentamente. - Sem pontas soltas.
- Não estou intranquilo - o banqueiro movia a cabeça, olhando, distraído, as pessoas que passavam. - Repito que a operação é tua, Pencho. Eu, em Outubro, reformo-me; quer as coisas corram bem ou mal, não modificarão a minha vida. Mas podem modificar a tua.
E com isto o velho pareceu dar por encerrado o assunto. Bebeu o resto do café com leite e então virou-se de novo para Gavira:
- É verdade, que sabes de Macarena?
Um golpe baixo. Muito baixo. E era evidente que o tinha reservado para o final. Se havia alguma ponta solta, era precisamente esta. Gavira olhou para o quiosque dos jornais e sentiu a cólera martelar-lhe o estômago. Porque também a casualidade era inoportuna: precisamente quando acabava de encarregar Peregil de seguir discretamente as andanças da mulher, aqueles jornalistas da Q + S viam-na a vadiar com o toureiro e enchiam-se de fotografias. Sorte madrasta e maldita Sevilha.
Havia exactamente onze bares nos trezentos metros que separavam Casa Cuesta da Ponte de Triana. A média era um por cada vinte e sete metros e vinte e sete centímetros, calculou mentalmente Don Ibrahim, mais habituado a livros e números. Qualquer dos três compadres podia recitar mentalmente a relação completa da frente para trás, de trás para a frente ou por ordem alfabética: La Trianera. Casa Manolo. La Marinera. Dulanea. La Taberna del Altozano. Lãs Dos Hermanas. A Cinta. La Ibense. Los Panentes. El Bar Angeles. E o quiosque de Lãs Flores, finalmente, quase na margem, junto do azulejo com a Virgem da Esperança e a estátua de bronze do toureiro Juan Belmonte. Tinham-se detido em todos a discutir a estratégia e atravessavam agora a ponte em estado de graça, evitando pudicamente olhar à esquerda, para as nefastas edificações da Ilha da Cartuja, e recreando-se na paisagem que se oferecia à direita, Sevilha de toda a vida, formosa e rainha moura, com as palmeiras ao longo da outra margem, a Torre del Oro, o Arenal e a Giralda. E, debruçada sobre o Guadal-quivir, a praça de touros da Maestranza: a catedral do Universo onde a gente ia rezar aos homens valentes que a Nina Punales cantava nas suas coplas.
Caminhavam pelo passeio da ponte junto do resguardo de ferro, ombro com ombro como nos velhos filmes americanos, com a Nina ao centro e os dois, Don Ibrahim e o Potro del Mantelete, flanqueando-a como leais cavaleiros. E no reflexo azul, ocre e branco da manhã sobre o rio, embalado nos vpores suaves do xerez La Ina que amenizara generosamente os seus espíritos, soava um arranhar de guitarra andaluza que só eles podiam escutar. Uma música imaginária, ou talvez real, que dava ao seu passo curto e um pouco precipitado, à forma como deixavam para trás a familiar Triana para entrarem na outra margem do Guadalquivir, a firmeza e a decisão de um pequeno passeio entre sol e sombra às cinco da tarde. Don Ibrahim, o Potro e a Nina iam entrar em campanha; ganhar a vida em território hostil, abandonando a segurança dos seus poisos habituais. Fora, pois, inevitável, que o ex-falso letrado, no bar Los Parientes, como julgavam recordar, erguesse o panamá - que, numa ocasião, tinha tirado para esbofetear Jorge Negrete, quando lhe perguntava se em Espanha não havia machos - e citara solenemente um tal Virgílio. Ou talvez fosse Horácio. Em suma, um clássico:
Então, como lobos rapaces nas trevas obscuras, empreendemos caminho rumo ao centro da flamígera Hispalis.
Ou qualquer coisa assim. O sol reverberava na água mansa do rio. Sob a ponte, uma jovem de cabelo negro e comprido remava num barquito ou numa piroga, a sua esteia recta cortando, a contraluz, aquela cintilação de uma margem à outra. Ao passar frente à Virgem da Esperança, a Nina Punales fez o sinal da Cruz, ante o olhar, agnóstico mas cheio de consideração, de Don Ibrahim, que tirou mesmo o charuto da boca, por respeito. Quanto ao Potro del Mantelete, também se persignou, rápida e furtivamente, como quando escutava a corneta nas praças miseráveis de pó, medo e moscas, ou quando a sineta o obrigava a desencostar-se do canto e sair, a corpo descoberto, para o centro do ringue, olhando os pingos do seu próprio sangue sobre a lona. Neste caso, porém, o gesto não era dirigido à Virgem, mas sim ao perfil de bronze, capote e montera de Juan Belmonte.
- Devias ter cuidado mais da tua mulher.
O velho Machuca moveu um pouco a cabeça de cima para baixo, olhando as pessoas que passavam diante do terraço de La Campana. Tirara do bolso um lenço de cambraia branca com as suas iniciais bordadas a azul e tocava a ponta do nariz. Pencho Gavira observou as manchas de velhice nas mãos como garras do ancião. Tudo nele recordava a ave de rapina. Uma velha águia imóvel e malvada, observando.
- As mulheres são complicadas, Don Octavio. E a sua afilhada, muito mais.
O banqueiro dobrava meticulosamente o lenço. Parecia meditar sobre aquilo, pois assentiu devagar.
- Macarena - disse, como se aquele nome resumisse tudo. E, desta vez, foi Gavira quem assentiu.
A amizade de Octavio Machuca com os duques do Nuevo Extremo tinha quarenta anos. O Cartujano financiara, quase a fundo perdido, vários negócios ruinosos com que o falecido Rafael Guar-diola y Fernández-Garvey, duque consorte e pai de Macarena, liquidara os últimos restos do património familiar. Mais tarde, após a ruína definitiva revelada com o falecimento do duque - uma angina de peito em plena pândega cigana, em trajos menores e às quatro da madrugada - o velho Machuca em pessoa encarregara-se de satisfazer os credores e vender as poucas propriedades não embargadas, a fim de conseguir um pouco de liquidez, que o seu banco colocara ao mais alto juro possível. Pôde, assim, conservar para a viúva e para a filha a residência da Casa do Postigo e uma renda anual que, sem luxos excessivos, permitiu à duquesa viúva, Cruz Bruner, envelhecer com o decoro que convinha ao seu apelido. Na Sevilha que importava conhecia-se toda a gente e não faltava quem afirmasse que a mencionada renda anual era inexistente e que o dinheiro saía pessoalmente dos fundos pessoais de Octavio Machuca. Corria também a suspeita de que o banqueiro honrava com ela uma relação um pouco mais que amistosa, iniciada em vida do falecido Duque. E, quanto a Macarena, havia mesmo quem comentasse que algumas afilhadas são tão estimadas como se fossem filhas próprias; mas ninguém jamais apresentou provas do caso, nem teve a coragem necessária para pôr a questão ao velho. Quanto a Canovás, que tratava da papelada, dos segredos e das contas privadas do banqueiro, era neste particular, como em muitos outros, tão expressivo como um prato de língua estufada.
- Esse toureiro... - disse Machuca, passado um pouco. - Maestral, não é?
Gavira sentia um travo amargo na boca. Deixou cair o cigarro, pegou no copo de cerveja e bebeu um longo gole, que contudo não melhorou as coisas. Voltou a pousar o copo em cima da mesa e ficou-se a observar a gota que caíra no vinco das calças. Uma blasfémia sonora, castiça, rondou-lhe os lábios como uma tentação.
O velho continuava a ver as pessoas passar, como se estivesse à espreita de um rosto familiar. Tinha segurado Macarena Bruner sobre a pia baptismal na catedral e fora ele quem a conduzira pelo braço, na mesma nave, vestida de cetim branco e lindíssima, até ao pé do altar, onde esperava Pencho Gavira. Um casamento que as más-línguas sevilhanas tinham definido como obra do velho banqueiro, visto que garantia o património e o futuro da sua afilhada e, em contrapartida, dava o empurrão social ao seu protegido, então jovem e ambicioso advogado que subia como um meteoro na hierarquia do Cartujano.
- Devia fazer-se alguma coisa - acrescentou Machuca, pensativo.
Apesar da humilhação e da vergonha que sentia, Gavira desatou a rir:
- Não vai querer que dê um tiro no toureiro...
- Claro que não - o banqueiro voltou-se ligeiramente, com um olhar exageradamente curioso nos seus olhos ladinos. - Serias capaz de dar um tiro ao amante da tua mulher?
- E, de facto, minha ex-mulher, Don Octavio.
- Isso. E o que ela diz.
Gavira sacudiu com o dedo a pequena mancha de humidade, antes de esticar o vinco das calças. Claro que era capaz e ambos sabiam disso. Mas não ia fazê-lo.
- Isso não modificaria as coisas - disse.
Em todo o caso era certo. Desde que ela voltara à Casa do Postigo, o toureiro tinha sido precedido por um banqueiro da concorrência e um famoso dono de adegas de xerez. A recorrer a esse método, iam ser precisas muitas balas. E Sevilha não era Palermo. Além disso, o próprio Gavira consolava-se nas últimas semanas com uma conhecida modelo sevilhana, especialista em roupa fina. Por isso, o velho Machuca concordou com uma dupla e lenta inclinação de cabeça. Havia outros sistemas.
- Conheço um par de directores de sucursal - Gavira sorria, ameno e perigoso. - E o senhor, uns quantos empresários de praças de touros... Talvez esse rapaz, Maestral, vá sentir dificuldades na próxima temporada.
As pálpebras de ave de rapina enrugaram-se sobre os olhos do presidente do Cartujano. Era quase um sorriso.
- Que lástima - lamentava-se o velho. - Não parece mau toureiro.
- Mas é bonitote - observou Gavira com rancor. - Sempre lhe restará o recurso de se dedicar às telenovelas.
Depois olhou para o quiosque dos jornais e a nuvem negra que o rondava voltou a ensombrar a manhã. Porque o problema não era Curro Maestral. Havia algo de mais importante do que a capa da Q + S onde escoltava Macarena Bruner, ambos esfumados pela falta de luz e pela teleobjectiva do fotógrafo. E a questão não afectava a honra matrimonial de Gavira, mas a sua própria sobrevivência no Cartujano e a sucessão do velho Machuca na presidência do conselho. A manobra imobiliária em torno de Nossa Senhora das Lágrimas tinha todas as pontas atadas, excepto uma: existia um antigo privilégio familiar, documentado em 1687, estipulando uma série de condições que, a não serem cumpridas, levariam à devolução aos Bruner do terreno cedido para a igreja. Mas uma lei posterior, aprovada no século XIX durante a desamortização eclesiástica do ministro Mendizábal, fazia reverter a propriedade do terreno, em caso de secularização, para a municipalidade de Sevilha. O caso era legalmente complexo e, se a duquesa e a filha interpusessem uma acção judicial, tudo podia ficar paralisado durante algum tempo. No entanto, o projecto estava em fase avançada, havia demasiados investimentos e compromissos pelo meio e um fracasso obrigaria Octavio Machuca a desautorizar o seu delfim perante o conselho de administração - onde Gavira tinha bons e sólidos inimigos - justamente quando o jovem vice-presidente do Cartujano estava a ponto de conseguir o poder absoluto. Era oferecer a sua cabeça ao verdugo. Mas, segundo sabia a revista Q + S, meia Andaluzia e Sevilha inteira, a cabeça de Pencho Gavira não era algo que Macarena Bruner apreciasse muito nos últimos tempos.
Quando Lorenzo Quart saiu do Hotel Dona Maria, em vez de percorrer os escassos trinta metros que o separavam da porta do Arcebispado, caminhou um pouco até ao centro da Praça Virgem dos Reis e deteve-se um instante a ver o panorama. Era a encruzilhada de três religiões: o velho bairro judeu nas suas costas, as paredes brancas do convento da Encarnação de um lado, o Palácio do Arcebispado do outro e, ao fundo, junto da parede da antiga mesquita árabe, o minarete transformado em campanário da catedral cristã: a Giralda. Havia carros de cavalos, vendedores de bilhetes postais, ciganas com crianças pedindo uma esmola para o leite do menino e turistas olhando para o alto, assombrados, enquanto faziam bicha para visitar a torre. Uma jovem estrangeira com sotaque norte-americano afastou-se de um grupo, para fazer a Quart uma pergunta banal acerca de uma morada próxima da praça; um pretexto para observar de perto o seu rosto bronzeado, tranquilo, que contrastava fortemente com o cabelo cinzento muito curto e o colarinho preto e branco. Quart deu uma resposta superficial e cortês, antes de se desinteressar da rapariga, que regressou para junto das suas companheiras num coro de risos contidos, cochichos e olhares por cima do ombro. Conseguiu ouvir as palavras he's gorgeous, ou seja, lindíssimo. Aquilo teria, sem dúvida, causado a hilaridade de monsenhor Spada. A lembrança do director do IOE e os seus conselhos técnicos na escadaria da praça de Espanha, aquando da última conversa em Roma, fizeram-no sorrir. Depois, ainda com o sorriso na boca, percorreu com a vista a torre da Giralda, desde a base até ao catavento que dava o nome ao conjunto. Levantava para o céu os seus olhos azul-acinzentados como um insólito turista, as mãos nos bolsos do fato negro cortado à medida por um excelente alfaiate romano, quase tão prestigiado como Cavalleggeri e Filhos. Espanha, o Sul, a velha cultura da Europa mediterrânica, só em lugares como aquele podiam intuir-se. Sevilha era uma sobreposição de histórias, de laços impossíveis de explicar uns sem os outros. Rosário de tempo e de sangue, e rezas em línguas diferentes sob um céu azul e um sol sábio que tudo equiparavam ao longo dos séculos. Pedras sobreviventes àquelas de que ainda era possível ouvir falar. Bastava esquecer por um momento as câmaras de vídeo, os postais, os autocarros carregados de turistas e jovens impertinentes, e aproximar o ouvido, escutando.
Faltava meia hora para o seu encontro no Arcebispado, por isso subiu a Calle Mateos Gago para tomar um café na cervejaria G traída. Apetecia-lhe sentar-se perto do balcão, apreciando o pavimento de xadrez a preto e branco, os azulejos e as gravuras da antiga Sevilha nas paredes. Tirou do bolso O Elogio da Milícia Templãria de Bernardo de Claraval, para ler umas páginas ao acaso. Era um volume muito velho in-oitavo cuja leitura alternava diariamente com as matinas, laudas, vésperas e completas do breviário; uso que cumpria rigorosamente, com aquela sua minuciosa disciplina que não apelava para a piedade, mas para o orgulho. Frequentemente, nas muitas horas passadas em hotéis, cafés e aeroportos, entre dois encontros ou viagens profissionais, o sermão medieval que, durante duzentos anos, fora guia espiritual dos monges soldados que combatiam na Terra Santa ajudava-o a suportar a solidão do ofício. Por vezes, deixava-se levar pelo estado de espírito que a sua leitura lhe inspirava, imaginando-se o último sobrevivente da derrota de Hattin, da torre maldita de Acre, dos cárceres de Chinon ou das fogueiras de Paris: um templário solitário e muito cansado cujos amigos estivessem todos mortos.
Leu umas linhas que, na realidade, podia recitar de cor - "Tonsuram o cabelo, andam cobertos de pó, negros do sol que os abrasa e da cota que os protege..." - e ergueu depois o rosto para olhar a luz da rua, os transeuntes que passavam sob as folhas verdes das laranjeiras. Uma mulher jovem, esbelta, de aspecto estrangeiro, deteve-se um momento a apanhar o cabelo, socorrendo-se do reflexo da vidraça na janela entreaberta. Fê-lo erguendo os braços despidos com um gesto de graça extrema, belíssima e concentrada na sua própria imagem, até que os seus olhos foram um pouco mais além e encontraram os de Quart. Susteve o olhar por um instante, surpreendida e curiosa, antes que se destruísse a naturalidade do gesto. Então um jovem com uma máquina fotográfica ao pescoço e um mapa na mão chegou junto dela e, passando-lhe o braço pela cintura, levou-a consigo.
Pode ser que a palavra não fosse exactamente inveja, ou tristeza. Não havia um termo exacto para definir a desolação familiar de qualquer clérigo diante do contacto próximo dos casais; homens e mulheres para os quais era legítimo executar o antigo ritual da intimidade, gestos que permitiam acariciar a curva de uma nuca até aos ombros, a linha suave de umas ancas, os dedos de uma mulher sobre a boca de um homem. E, no caso de Quart, para quem em princípio não teria sido difícil aproximar-se de boa parte das mulheres bonitas que se cruzavam no seu caminho, era mais intensa aquela certeza de autodisciplina desconsolada, dolorosa, semelhante aos amputados que asseguram sentir o formigueiro, o mal-estar em mãos ou pernas já inexistentes como se ainda ali estivessem.
Olhou para o relógio, guardou o livro e ergueu-se. Ao sair, quase tropeçou num cavalheiro muito gordo, vestido de branco, que se desculpou cortesmente, tirando o panamá. O gordo ficou a olhar para Quart enquanto este se dirigia vagarosamente para a praça e para o edifício avermelhado de fachada barroca que ficava à direita, atrás de uma fila de laranjeiras. Um porteiro aproximou-se para identificar o recém-chegado, mas, à vista do colarinho, cedeu-lhe imediatamente a passagem sob as duplas colunas que sustinham a sacada principal, com o emblema heráldico dos arcebispos hispalenses gravado na pedra. Quart subiu ao pátio, onde se projectava a sombra da Giralda, depois subiu a sumptuosa escadaria sob a abóbada de Juan de Espinal, onde anjos e querubins observavam os recém-chegados com ar aborrecido, matando o tempo na sua imobilidade secular. Lá em cima havia corredores com gabinetes, sacerdotes atarefados que andavam de um lado para o outro com o aprumo de quem conhece o terreno. Quase todos vestiam fatos com colarinho redondo, peitilhos ou camisas escuras ou cinzentas, e alguns usavam gravata ou pólo sob o casaco; mais pareciam funcionários do que sacerdotes. Quart não viu nenhuma sotaina.
O novo secretário de monsenhor Corvo veio ao seu encontro. Era um clérigo brando, calvo, de aspecto muito asseado e modos suaves, com cabeção e fato cinzento. Substituía o padre Urbizu, falecido quando lhe caíra em cima a cornija de Nossa Senhora das Lágrimas. Sem dizer uma palavra, conduziu-o através do salão, cujo tecto, dividido em sessenta caixotões, mostrava brasões e cenas bíblicas, destinadas, em princípio, a alentar as virtudes dos prelados sevilhanos no governo da sua diocese. Havia ali uma vintena de frescos e telas, entre os quais quatro Zurbarán, um Murillo e um Matia Preti com São João Baptista degolado; e, enquanto caminhava junto do secretário, Quart perguntou a si próprio por que razão nas antecâmaras dos bispos e dos cardeais era tão frequente tropeçar na cabeça de alguém sobre uma bandeja. Tinha ainda este pensamento quando encontrou Don Príamo Ferro. O pároco de Nossa Senhora das Lágrimas estava de pé a um extremo, obstinado e escuro como a cor da sua velha sotaina. Conversava com um clérigo muito jovem, loiro e com óculos, que Quart identificou como sendo o pedreiro que tinha estado a observá-lo à porta da igreja, quando conhecera o padre Ferro e Gris Marsala. Os dois sacerdotes interromperam-se para o fitar, impassíveis os olhos do pároco, carrancudo e desafiador o jovem. Quart dirigiu-lhes uma breve inclinação de cabeça, mas nenhum fez menção de responder ao cumprimento. Era evidente que estavam à espera há muito tempo e ninguém lhes oferecera uma cadeira.
Sua Eminência Ilustríssima Don Aquilino Corvo, titular da sede hispalense, costumava adoptar a pose do Cavaleiro da Mão ao Peito pendurado numa das salas do Museu do Prado. Sobre o traje negro apoiava a mão branca onde luzia o distintivo da sua dignidade: um anel com uma grande pedra amarela. As fontes falhas de cabelo, o rosto longo e anguloso, o brilho da cruz de ouro, completavam uma reminiscência do personagem que o arcebispo gostava de acentuar. Aquilino Corvo era um prelado de pura raça, procedente de uma cuidada selecção eclesiástica. Hábil, manobrista, habituado a navegar sob todo o tipo de tormentas, a sua titularidade à frente da sede sevilhana não era fortuita. Tinha importantes apoios na Nunciatura de Madrid, contava com o apoio da Opus del e as suas relações com o Governo e a oposição, na Junta de Andaluzia, eram óptimas. Isso não o impedia de se ocupar de aspectos marginais do seu ministério, ou mesmo pessoais. Por exemplo, era um aficcionado dos touros e ocupava uma barreira na Maestranza todas as vezes que toureavam Curro Romero e Espartaco. Era também sócio dos clubes de futebol locais, o Betis e o Sevilha, tanto por neutralidade pastoral como por prudência eclesiástica: o seu décimo primeiro mandamento consistia em não pôr todos os ovos no mesmo cesto. Também odiava Lorenzo Quart com toda a sua alma.
Como era de prever após a recepção do secretário, a primeira parte da entrevista decorreu fria, mas correcta. Quart entregou as suas credenciais - uma carta do cardeal Secretário de Estado e outra de monsenhor Spada - forneceu ao arcebispo pormenores gerais e sobejamente conhecidos por este acerca da sua missão e o seu interlocutor ofereceu-lhe apoio incondicional, pedindo-lhe que o mantivesse informado. Na realidade, Quart sabia que o arcebispo ia fazer todos os possíveis para sabotar a sua missão e, monsenhor Corvo, que não tinha a menor esperança de que Quart lhe desse contas fosse do que fosse, estava disposto a pagar um ano de Purgatório para ver o enviado de Roma dar um passo em falso. Eram, porém, profissionais e sabiam as regras a observar, pelo menos em questão de aparências. Ninguém mencionou tão-pouco o motivo porque se fitavam dos dois lados da mesa como espadachins cuja falsa despreocupação desapareceria, como um raio, logo que um deles descobrisse uma falha onde pudesse assestar ao outro uma estocada. Pairava sobre ambos a sombra do seu último encontro naquele gabinete, um par de anos atrás e recém-chegado Sua Ilustríssima à dignidade de arcebispo, quando Quart lhe entregara a cópia de um grosso relatório com as falhas na segurança em torno da visita do Santo Padre a Sevilha, durante o último Ano Eucarístico. Um cura casado, relapso e suspenso a divinis estivera prestes a dar uma navalhada no Pontífice, a pretexto de lhe entregar um memorando sobre o celibato. Fora também encontrado um artefacto explosivo no convento de freiras onde Sua Santidade devia pernoitar, dentro de um dos cestos de roupa lavada, bordada primorosamente para a ocasião pelas irmãs. E, nas agendas de todos os terroristas islâmicos do Mediterrâneo, figuravam com arrepiante pormenor as horas e os itinerários da visita papal, graças às contínuas fugas de informação do Arcebispado para a imprensa. Fora o IOE, e Quart em concreto, que tomara urgentemente as rédeas do caso, virando de pernas para o ar o plano de segurança original de Sua Eminência Ilustríssima, para chacota da Cúria e desespero do Núncio. Que, por certo, chegou a comentar o caso diante de Sua Santidade, em termos que por pouco não custaram a monsenhor Corvo, com a recém-estreada sede hispalense, um ataque de apoplexia. Com o tempo, ultrapassado o tropeço, o arcebispo confirmara-se como um excelente prelado, mas aquela crise de noviço, a sua humilhação e o papel desempenhado por Quart roíam-lhe a alma e a mansidão de maneira muito pouco pastoral. Pormenor que Sua Eminência Ilustríssima confiara nessa mesma manhã ao seu atribulado confessor, um antigo clérigo da catedral com quem se reconciliava nas primeiras sextas-feiras de cada mês.
- Essa igreja está condenada - disse o arcebispo. Tinha uma voz das que parecem expressamente feitas para o sermão de domingo, nítida e clerical. - É só uma questão de tempo.
Falava com a firmeza da sua dignidade eclesiástica, forçando talvez um pouco o tom por estar na presença de Quart. Embora nada significasse em Roma, um prelado na sua própria sede sempre tinha algum peso. Monsenhor Corvo estava ciente disso e gostava de acentuar a autonomia do seu poder local. Costumava alardear que, de Roma, apenas conhecia o Anuário Pontifício e que nunca abria a lista telefónica do Vaticano.
- Nossa Senhora das Lágrimas - continuou o arcebispo - encontra-se em estado de ruína. Para conseguir essa declaração oficial lutamos com uma série de entraves administrativos e técnicos... Os primeiros parecem prestes a resolver-se, porque a Secretaria do Património Cultural renunciou à conservação do edifício, alegando falta de fundos; e a presidência da Câmara de Sevilha está à beira de o referendar. Se não se encerrou já o processo, foi por causa do acidente que custou a vida ao arquitecto municipal. Um caso de pouca sorte.
Monsenhor Corvo fez uma pausa para contemplar a dúzia de cachimbos ingleses que tinha alinhados num suporte de madeira de cerejeira. Nas suas costas, por detrás das cortinas, adivinhavam-se a torre da Giralda e os arcobotantes da catedral. Havia um rectângulo de sol na pele verde que cobria o tampo da mesa e o prelado pousou ali a mão do anel, num gesto aparentemente casual. A luz arrancou um reflexo à pedra amarela e um leve sorriso a Lorenzo Quart.
- Sua Ilustríssima referiu problemas técnicos - disse.
Estava sentado numa incómoda cadeira diante da mesa do arcebispo, a um lado da sala com paredes cobertas com obras dos padres da igreja e encíclicas papais, todas encadernadas com as armas arcebispais na lombada. No outro extremo do compartimento havia um genuflexório sob um crucifixo de marfim e um pequeno sofá com dois cadeirões e uma mesinha baixa, onde monsenhor Corvo dispensava recepções mais cordiais a pessoas do seu apreço. Era evidente que o enviado do IOE não figurava entre elas.
A secularização do edifício, requisito prévio para a sua
demolição, veio complicar muito - a gravidade do arcebispo não bastava para dissimular o seu receio diante de Quart. Escolhia as palavras com sumo cuidado, calculando as implicações de cada uma.
- Há um antigo privilégio de 1687, outorgado com sanção papal desse mesmo ano pelo meu ilustre antecessor nesta sede hispalense, que é terminante: enquanto se disser missa na igreja às quintas-feiras por alma de Gaspar Bruner de Lebrija, seu benfeitor, esta conservará os seus privilégios.
- Porquê às quintas-feiras?
- Pelos vistos, morreu nesse dia. Os Bruner eram poderosos, e imagino que Don Gaspar devia ter o meu ilustre antecessor bem agarrado pelo pescoço.
- E, evidentemente, o padre Ferro diz missa todas as quintas-feiras...
- Diz missa todos os dias da semana - confirmou o arcebispo - Às oito da manhã, salvo aos domingos e dias festivos, em que reza duas.
Quart inclinou-se um pouco sobre a mesa, com falsa inocência:
- Mas Sua Ilustríssima possui autoridade para o chamar à ordem.
O arcebispo olhou-o de modo turvo. O anel movia-se-lhe na mão impaciente, estragando o belo efeito da luz.
- Não me faça rir - não parecia minimamente propenso ao riso e o tom tornou-se desabrido. - O senhor sabe que não é um problema de autoridade. Como pode um arcebispo impedir um padre de rezar missa?... O que existe é um problema de disciplina. Embora seja um homem de idade e até ultraconservador em certos aspectos do seu ministério, o padre Ferro mantém posições muito pessoais. Entre outras, ignora todas as minhas pastorais e chamadas à ordem.
- Já considerou Sua Eminência Ilustríssima a suspensão desse sacerdote?
- Considerei, considerei... - monsenhor Corvo olhava para Quart com irritação. - As coisas não são tão simples. Pedi a Roma a suspensão ab officio do padre Ferro, mas essas coisas andam devagar. Além disso, receio que, desde essa desafortunada infiltração informática no Vaticano, estejam à espera que o senhor regresse com o seu relatório de caçador de cabeças.
Quart ignorou a ironia. "Não te queres expor", pensava. "Por isso passas-nos a batata quente. É melhor que os verdugos sejam os outros para conservar as mãos limpas."
- E entretanto, Monsenhor?
- Pois está tudo em suspenso. O Banco Cartujano tem preparada uma operação para utilizar o edifício, operação de que a minha diocese - monsenhor Corvo pareceu reflectir acerca daquele possessivo e rectificou suavemente: - esta diocese, sairia muito beneficiada. Embora não tenhamos sobre o terreno outro direito que não seja o moral, fruto de três séculos de culto, o Cartujano oferece-nos uma generosa compensação. Boa, nestes tempos em que as caixas das esmolas de qualquer paróquia criam teias-de-aranha - o arcebispo permitiu-se um leve sorriso por conta da sua graça, que Quart teve o cuidado de não secundar. - Além disso, o banco compromete-se a financiar uma igreja num dos bairros mais pobres de Sevilha e a criar uma fundação de apoio à nossa obra social entre a comunidade cigana... Que lhe parece?
- Convincente - respondeu Quart, equânime.
- Pois já se vê. Tudo paralisado por causa da obstinação de um padre que está quase a reformar-se.
- Mas muito querido na sua paróquia. Pelo menos, é o que me dizem.
Monsenhor Corvo pôs de novo em jogo a mão do anel. Desta vez, ergueu-a, adversativa, antes de a pousar junto da cruz de ouro que trazia, ao peito.
- Também não é necessário exagerar. Os vizinhos cumprimentam-no e uma vintena de beatas vai à missa. Isso não significa nada. As pessoas gritam "Bendito o que vem em nome do Senhor" e, passado um pouco, aborrecem-se e crucificam-nos - o arcebispo contemplava, indeciso, os cachimbos alinhados sobre a mesa; por fim elegeu um curvo, com anel de prata. - Procurei algo dissuador. Pensei mesmo em alterar o seu prestígio entre os paroquianos, depois de sopesar o bem e o mal que daí viria. Mas receio ir demasiado longe e que a emenda seja pior que o soneto. Também temos obrigações com essa gente e o padre Ferro é um homem obstinado, mas sincero - batia um pouco com a caçoleta do cachimbo na palma da mão. - Quem sabe o senhor, que tem mais prática de levar as pessoas de Caifás para Pilatos...
Era um insulto evangélico formulado de modo impecável, de modo que Quart não pôde objectar. Sua Eminência Ilustríssima abriu uma gaveta da mesa para tirar uma lata de tabaco inglês e pôs-se a encher a caçoleta, deixando ao seu interlocutor o trabalho de prosseguir com a conversa. Quart inclinou um pouco a cabeça; só fitando-o directamente nos olhos era possível perceber o seu sorriso. Mas o arcebispo não o fitava.
- Naturalmente, Monsenhor. O Instituto para as Obras Exteriores fará os possíveis por resolver a desordem - verificou, com satisfação, que o gesto de Sua Eminência Ilustríssima se crispava. - Se bem que "desordem" não seja talvez a palavra adequada...
Monsenhor Corvo esteve prestes a perder a compostura, mas refez-se admiravelmente. Durante cinco segundos permaneceu em silêncio, introduzindo o tabaco no cachimbo. Quando, por fim, falou, o despeito era perceptível no seu tom de voz:
- O senhor é daqueles a quem as sandálias do pescador ficam pequenas, não é verdade?... Com as suas mafias em Roma e tudo o mais. A brincarem aos polícias de Deus.
Quart aguentou o olhar do arcebispo com irrepreensível calma:
- São muito duras as palavras de Sua Eminência Ilustríssima.
- Deixe-se de ilustríssimas e de outros mimos do género. Sei porque veio a Sevilha e sei que o seu chefe, o arcebispo Spada, se expõe neste assunto.
- Todos nos expomos, Monsenhor.
Era verdade e a distinção não passou despercebida ao prelado. O cardeal Iwaszkiewicz era perigoso, mas Paolo Spada e o próprio Quart também. Quanto ao padre Ferro, tratava-se de uma bomba-relógio ambulante que alguém tinha de desactivar. A tranquilidade da Igreja depende muitas vezes das formas e, no caso de Nossa Senhora das Lágrimas, as formas estavam seriamente ameaçadas.
- Ouça, Quart - Aquilino Corvo amenizava, de má vontade, o tom. - Eu não quero complicar a minha vida e este assunto está a enredar-se demasiado. Confesso-lhe que a palavra "escândalo" me causa pavor e não quero aparecer diante da opinião pública como o prelado que chantageia um pobre pároco para enriquecer com a venda do edifício... Compreende?
Quart compreendia e fez um leve gesto, aceitando a trégua.
- Além disso - prosseguiu o arcebispo - pode sair o tiro pela culatra ao Cartujano, precisamente por causa da mulher ou ex-mulher, não estou muito seguro, de quem trata da operação: Pencho Gavira. Um homem influente, em ascensão. Ele e Macare-na Bruner têm graves problemas pessoais. E ela toma abertamente partido pelo padre Ferro.
- É uma mulher religiosa?
O arcebispo deixou escapar uma gargalhada seca, entredentes. Não era essa a palavra, sublinhou. Não exactamente. Nos últimos tempos trazia com o credo na boca toda a boa sociedade sevilhana, que não se escandalizava por dá cá aquela palha.
- Talvez fosse útil o senhor ir falar com ela - disse a Quart. - E com a mãe, a velha duquesa. Enquanto não se decide a ruína e a suspensão do pároco, se elas lhe retirassem o apoio, poderíamos cortar um pouco as voltas a esse sacerdote.
Quart tinha tirado do bolso uns cartões para tomar notas; utilizava sempre as costas de cartões de visita próprios ou alheios. Não passou despercebido ao arcebispo que a caneta fosse uma Mont-blanc, pois viu-a mover-se com olhar crítico. Talvez lhe parecesse inprópria de um clérigo.
- Desde quando está paralisada a decisão de ruína? - quis saber Quart.
O olhar de censura que monsenhor Corvo dirigia à caneta converteu-se em inquietação.
- Desde as mortes - respondeu, cauteloso.
- Mortes misteriosas, segundo dizem.
O arcebispo, que tinha levado o cachimbo à boca e aproximava da caçoleta um fósforo aceso, torceu a cara. Não havia nada de misterioso, informou. Apenas dois casos de pouca sorte. Um tal Permeias, arquitecto municipal, fora encarregado pela Câmara de elaborar o processo de ruína. Não era um homem simpático e protagonizou umas brigas notáveis com o padre Ferro, que estava longe de ser um modelo de mansidão. Durante as suas idas e vindas, o apoio de madeira de um andaime cedeu e Permeias caiu do telhado, com tão pouca sorte que foi espetar-se num dos tubos metálicos a meia altura.
- Estava só ou acompanhado? - interessou-se Quart. Captando o sentido da pergunta, monsenhor Corvo abanou a cabeça. - Nada de obscuro por esse lado. Outro funcionário acompanhava o falecido. Também o padre Oscar, o vigário, estava ali. Foi ele que lhe deu os últimos sacramentos.
- E o secretário de Sua Eminência Ilustríssima?
O arcebispo revirou os olhos depois de largar uma baforada de fumo. Chegava até Quart o aroma do tabaco inglês.
- Esse foi mais doloroso. O padre Urbizu era meu colaborador há anos - fez uma pausa, como se julgasse necessário acrescentar algo em memória do defunto. - Um homem excelente.
Quart assentiu devagar com a cabeça, como se também ele tivesse conhecido Urbizu e partilhado a dor da sua perda.
- Um homem excelente - repetiu, com ar de meditar no adjectivo. - Contam que andava a pressionar o padre Ferro em nome de Sua Eminência Ilustríssima.
Monsenhor Corvo não gostou. Tinha tirado o cachimbo da boca e olhava o seu interlocutor de sobrolho franzido:
- Pressionar é uma palavra desagradável. E excessiva - Quart observou que dissimulava a sua impaciência batendo com a mão livre no canto da mesa. - Não posso andar a bater à porta das igrejas para discutir com os párocos. Por isso, Urbizu manteve, em meu nome, conversas com o padre Ferro; mas este continuou na sua. Alguns encontros foram um pouco desabridos e o padre Oscar chegou mesmo a ameaçar o meu secretário.
- Outra vez o padre Oscar?
- Sim. Oscar Lobato. Tinha um bom curriculum e destinei-o a Nossa Senhora das Lágrimas para que me ajudasse na substituição do velho cura, como naquele filme de Bing Crosby...
- Seguindo o Meu Caminho - apontou Quart.
- Pois este seguiu-o também. O meu cavalo de Tróia depressa se passou para o inimigo. Tomei medidas, claro está - o arcebispo fez um gesto para varrer o vigário de cima da mesa. - Quanto ao meu secretário, continuou a visitar a igreja e os dois sacerdotes. Cheguei mesmo a considerar a possibilidade de lhes retirar a imagem de Nossa Senhora das Lágrimas, que é uma escultura antiga, muito valiosa. Mas, precisamente no dia em que o pobre Urbizu ia expor essa eventualidade, um troço de cornija desprendeu-se do tecto e abriu-lhe a cabeça.
- Houve investigação?
O arcebispo observou Quart em silêncio, com o cachimbo entre os dentes. Parecia não ter ouvido a pergunta.
- Sim - disse, passado um momento. - Porque, neste caso, tudo se passou sem testemunhas e além disso eu tomei-o como... Bom. Um assunto pessoal - voltou a colocar a mão sobre o peito, enquanto Quart recordava as palavras de monsenhor Spada: "Jurou não deixar pedra sobre pedra". - Mas a investigação concluiu que também não havia indícios de homicídio.
- O relatório excluía uma morte provocada e não provada?
- Não, mas tecnicamente era quase impossível. A pedra caiu do tecto. Ninguém a podia ter atirado dali.
- Salvo a Providência.
- Não diga tolices, Quart.
- Não é minha intenção, Monsenhor. Apenas constato a veracidade da informação de Vésperas, quando afirma que o padre Urbi-2u foi morto pela própria igreja. Como o outro.
- Isso é uma atrocidade sem sentido. E é precisamente o que receio: que comecem com os disparates sobrenaturais e nos metam a nós nisso, como se fosse um romance de Stephen King. Já estamos a ser rondados por um jornalista, um tipo desagradável que anda a aborrecer-nos com a história. Se o encontrar no seu caminho, tenha cuidado. Dirige uma revista de escândalos chamada Q + S, e é quem publica esta semana a fotografia de Macarena Bruner numa situação comprometedora com um toureiro. Chama-se, e não é uma piada, Honorato Bonafé. Quart encolheu os ombros.
- Vésperas acusava a igreja. O edifício mata para se defender, disse.
- Sim. Muito espectacular. Agora diga-me: para se defender de quem? De nós? Do banco? Do Maligno?... Eu cá tenho as minhas ideias quanto a Vésperas.
- Podíamos partilhá-las, Monsenhor.
Quando afrouxava a vigilância, assomava aos olhos de Aquilino Corvo o desprezo que sentia por Quart. Agora turvou-lhe o olhar durante uns segundos, antes de se ocultar no fumo do cachimbo.
- Trabalhe. Foi para isso que veio. Quart sorriu de novo. Cortês, disciplinado:
- Fale-me então Sua Eminência Ilustríssima do padre Ferro. Durante cinco minutos, entre duas cachimbadas e com muito pouco sentido da caridade pastoral, monsenhor Corvo despachou com gosto a biografia do pároco. Tosco cura rural durante quase toda a vida: dos vinte e tal aos cinquenta e quatro anos, numa aldeia perdida do Alto Aragão; um lugar esquecido de Deus onde os paroquianos foram morrendo um a um, até que ficou sem paróquia. Depois, dez anos em Nossa Senhora das Lágrimas. Áspero, fanático, inculto e reaccionário como uma mula. Sem o menor sentido do possível, do tipo omnta sunt possibilia credenti, esse tipo de pessoas que confundem o seu ponto de vista com a realidade que as rodeia. Quart, aconselhou o prelado, teria que assistir a uma das suas homilias dominicais. Todo um espectáculo. O padre Ferro manejava as penas do inferno com o mesmo à-vontade que um pregador da Contra-Reforma e mantinha a paróquia em suspenso com aquela cantilena do fogo eterno que ninguém mais ousava utilizar. Cada vez que terminava o sermão, um suspiro de alívio percorria as filas dos paroquianos.
- E, no entanto - conclui o arcebispo - noutros aspectos é do mais contraditório e avançado. Inoportunamente avançado, diria eu.
- Por exemplo?
- A sua posição acerca dos anticoncepcionais, para não irmos mais longe: descaradamente a favor. Ou os sacramentos a homossexuais, divorciados e adúlteros. Há duas semanas baptizou uma criança a quem o titular doutra paróquia negara as suas águas porque os pais não eram casados. Quando o colega foi pedir-lhe explicações, respondeu-lhe que baptizava quem lhe desse na gana.
Sua Eminência Ilustríssima tinha o cachimbo apagado. Acendeu outro fósforo e olhou Quart por cima da chama.
- Em suma - acrescentou -, uma missa em Nossa Senhora das Lágrimas é como viajar num túnel do tempo que ande aos saltos para trás e para a frente.
Quart dissimulou um sorriso.
- Imagino - disse.
- Não. Garanto-lhe que não imagina. Espere para vê-lo em acção. Reza parte da missa em latim, porque diz que impõe mais respeito - o cachimbo já fumava, e monsenhor Corvo reclinou-se, satisfeito, no cadeirão. - O padre pertence a uma espécie quase desaparecida: velhos curas rurais ordenados sem disciplina nem vocação, com o único fito de escapar à miséria e à pobreza, e que se tornavam ainda mais bravios em paróquias rurais abandonadas por Deus. Acrescente a isto um imenso orgulho que o torna incontro-lável e que acabou por fazê-lo perder o sentido do mundo em que vive... Noutros tempos, tê-lo-íamos fulminado de imediato, ou enviado para as Américas, a ver se Deus Nosso Senhor o chamava ao seu seio graças a umas febres, enquanto convertia indígenas dando-lhes com o crucifixo no lombo. Mas agora há que ter muito juízo, com os jornalistas e a política, que complicam tudo.
- Porque não o suspenderam ex informata conscientia'? Isso teria permitido a Sua Eminência Ilustríssima afastá-lo do ministério por causas reservadas, sem publicidade.
- Teria de ter cometido um delito de ordem civil ou eclesiástica e não é o caso. Além disso, nada garante que não aumentasse a sua resistência. Prefiro que tudo siga o seu percurso habitual ab officio.
- Dito por outras palavras, Monsenhor: que seja Roma quem carregue com o morto.
- O senhor o disse.
- E o padre Oscar?
Entre os dentes que seguravam o cachimbo esboçou-se um trejeito muito desagradável. "Não gostaria de estar na pele do vigário", pensou Quart.
- Oh, esse é diferente - explicou o arcebispo. - Boa bagagem cultural, seminário em Salamanca. Um futuro prometedor que atirou pela borda fora. De qualquer forma, o seu caso está resolvido. Tem até meados da semana que vem para abandonar a paróquia. Transferimo-lo para uma diocese de Almería, um deserto rural junto ao Cabo de Gata, para que se dedique à oração e medite sobre o perigo de se deixar arrastar por entusiasmos juvenis.
- Poderia ser Vésperas?
- Poderia. Tem o perfil, se é a isso que se refere. Mas remexer no lixo não é trabalho para um arcebispo - monsenhor Corvo guardou um silêncio saturado de intenção. - Deixo isso para o IOE e para o senhor.
Quart não se deu por achado:
- A que actividades se dedica?
- Pois as habituais de um vigário: ajuda ao culto, diz missa, encarrega-se do rosário da tarde... E também faz trabalho de pedreiro para a Irmã Marsala nos momentos livres.
Quart pôs-se rígido na cadeira. Havia peças soltas movendo-se por toda a parte.
- Desculpe, Sua Eminência Ilustríssima. Disse a Irmã Marsala?
- Sim. Gris Marsala, uma freira norte-americana que está em Sevilha há uma eternidade. E perita, ou dizem que é, em restauração de monumentos religiosos... Ainda não a conhece?
Atento ao estalido das peças a encaixar-se no seu cérebro, Quart mal prestava atenção às palavras do prelado. "Então era isso", disse para consigo. "A nota discordante."
- Conheci-a ontem. Embora ignorasse que fosse freira.
- Pois é - não havia uma ponta de simpatia no tom de monsenhor Corvo. - Com o padre Oscar e Macarena Bruner forma as hostes de Don Príamo Ferro. A sua presença em Sevilha é a título particular, pois goza das dispensas da sua ordem e está fora da minha jurisdição. Não tenho o direito de a obrigar a retirar-se. Também não posso exagerar, perseguindo curas e freiras. Tudo extravasou um pouco.
Soltava baforadas de fumo como uma lula escudando-se atrás da sua tinta. Por fim deitou um último olhar à caneta de Quart e encolheu os ombros.
- Vou mandar entrar o pároco. Convoquei-o para esta manhã, mas primeiro queria ter uma conversa particular com o senhor. Creio que já é altura de colocarmos as coisas nos seus devidos lugares. Não lhe parece? Uma espécie de acareação.
O arcebispo olhou, sem lhe tocar, uma campainha que tinha sobre a mesa, junto de um manuseado exemplar da Imitação de Cristo de Tomás Kempis.
- Uma última advertência, Quart. O senhor não me é simpático, mas é um sacerdote de carreira e sabe tão bem como eu que até mesmo nesta profissão abundam os medíocres. O padre Ferro é um deles - tirou o cachimbo da boca para apontar os volumes encadernados que cobriam as paredes do gabinete. - Está aqui o pensamento da Igreja: de Santo Agostinho a São Tomás e as encíclicas de todos os pontífices. Tudo se encontra entre estas quatro paredes e eu sou o seu administrador temporal. Isso obriga-me a manejar valores com cotação na bolsa e ao mesmo tempo manter voto de pobreza, pactuar com inimigos e, por vezes, condenar os amigos... Todas as manhãs me sento a esta mesa para governar, com a ajuda de Deus Nosso Senhor, sacerdotes intelectuais, estúpidos, fanáticos, honestos, políticos, opositores do celibato, malvados, santos e pecadores. O caso do padre Ferro, tê-lo-íamos resolvido com o tempo, pouco a pouco. Mas vocês intrometeram-se, fazendo soar uma música diferente; por isso, agora dancem. Roma locuta, causa finita. Eu, a partir de agora, limito-me a observar. Que o Todo Poderoso seja indulgente comigo, mas lavo daí as minhas mãos e deixo o campo livre aos verdugos - premiu a campainha e fez um gesto em direcção à porta. - Não façamos esperar mais o padre Ferro.
Quart enroscou vagarosamente a tampa da caneta e guardou-a no bolso, com os cartões cobertos com a sua letra apertada e minuciosa. Mantinha-se tenso na borda da cadeira, com a imobilidade de um soldado.
- Tenho as minhas ordens, Monsenhor - disse, sereno. - E vou cumpri-las custe o que custar.
Sua Eminência Ilustríssima fitava-o de alto a baixo, com extrema dureza.
- Não gostaria de fazer o seu trabalho, Quart - disse por fim. - Asseguro-lhe, pela salvação da minha alma, que não gostaria nada.
FLOR DE LARANJEIRA E LARANJAS AMARGAS
Vi um herói - comentou. - E isso vale alguma coisa.
(Eckermann, Conversas com Goethe)
- Creio que já se conhecem - disse Sua Eminência Ilustríssima.
Estava recostado no cadeirão, na atitude do árbitro que procura manter-se à distância para que o sangue não lhe salpique os sapatos. Quart e o padre Ferro fitavam-se em silêncio. O padre de Nossa Senhora das Lágrimas não aceitava a cadeira que, com um gesto, monsenhor Corvo lhe oferecera e estava de pé no meio do gabinete, pequeno e obstinado, com a sua cara que parecia talhada a buril, o cabelo branco mal tosquiado e a sotaina velha, coçada, sob a qual assomavam uns enormes sapatos por engraxar.
- O padre Quart deseja fazer-lhe umas perguntas - acrescentou o arcebispo.
As rugas e cicatrizes do pároco mantiveram-se impassíveis. Olhava para um ponto indefinido no espaço, sobre o ombro do prelado, na janela cujas cortinas esbatiam a silhueta ocre da Giralda:
- Não tenho nada para dizer ao padre Quart.
Monsenhor Corvo assentiu lentamente, como se acabasse de escutar a resposta que esperava.
- Muito bem - admitiu. - Mas eu sou o seu bispo, Don Príamo. E a mim está ligado por voto de obediência - tinha tirado o cachimbo da boca por um momento e apontava com ele os dois sacerdotes alternadamente. - De modo que, se prefere, responder-me-á a mim através das perguntas que lhe fizer o padre Quart.
Os olhos escuros e opacos do padre Quart vacilaram um instante.
- É uma situação ridícula - protestou, áspero, e Quart viu que se voltava um pouco para ele, tornando-o responsável por tudo aquilo.
O arcebispo compôs um desagradável sorriso.
- Também me consta - disse. - Mas com este recurso de jesuítas, ficaremos todos satisfeitos. O padre Quart fará o seu trabalho, eu assistirei, comprazido, ao diálogo, e o senhor salvaguardará, pelo menos formalmente, a sua inaudita soberba - soltou uma baforada de fumo que mais parecia uma ameaça e pôs-se de lado no cadeirão; a antecipação do gozo bailava-lhe nos olhos. - Agora pode começar, padre Quart. É todo seu.
E Quart começou. Foi duro, por vezes brutal, acusando o padre pelo seco acolhimento na igreja no dia anterior, a hostilidade manifestada no gabinete de Sua Eminência Ilustríssima, o mal dissimulado desprezo que lhe inspirava a sua condição de velho cura rural, teimoso, miserável. Era algo de mais complexo, mais profundo do que a antipatia pessoal, ou a missão que o levara a Sevilha. E, para surpresa de monsenhor Corvo e, finalmente, também de si mesmo, actuou como um fiscal desprovido de misericórdia, acossando o ancião com um desdém ácido, impiedoso, de que só Quart conhecia a verdadeira origem. E quando, por fim, ciente da injustiça de tudo aquilo, se deteve para recobrar fôlego, perturbou-se com a ideia súbita de que Sua Eminência o inquisidor Jerzy Iwaszkiewicz teria aprovado a cena ponto por ponto.
Os dois homens fitavam-no; incomodado, o arcebispo, com o cachimbo entre os dentes e de sobrolho franzido; imóvel, o pároco, cravando em Quart uns olhos que o interrogatório, mais adequado para um delinquente do que para um sacerdote de sessenta e quatro anos, tinha velado com a humidade avermelhada, contida, de lágrimas que se negam a brotar. Quart remexeu-se na cadeira, ocultando o embaraço sob o gesto de tomar notas num cartão. Era bater num homem de mãos amarradas.
- Recapitulando - suavizava, agora, um pouco o tom; consultou desnecessariamente as suas notas, para fugir ao olhar do pároco -, o senhor nega ser o autor da mensagem recebida na Santa Sé e nega também ter conhecimento do facto, ou suspeitas acerca do autor e das suas intenções.
- Nego - repetiu o padre Ferro.
- Perante Deus? - perguntou Quart, excessivo, sempre um pouco envergonhado de si mesmo.
O velho sacerdote voltou-se para monsenhor Corvo, à procura de um auxílio que o outro não podia negar. Ouviram o bispo pigarrear, ao mesmo tempo que erguia a mão do anel pastoral.
- Deixemos o Todo Poderoso fora disto, se não se importam - o prelado olhava-o por entre o fumo do cachimbo. - Não creio que esta conversa inclua a responsabilidade de obrigar alguém a juramento.
Quart aceitou em silêncio, virando-se de novo para o pároco:
- Que pode contar-me de Oscar Lobato? O cura encolheu os ombros.
- Nada, salvo que é um excelente jovem e um digno sacerdote - havia no seu queixo mal barbeado um leve tremor. - Lamentarei separar-me dele.
- O seu vigário possui conhecimentos avançados de informática? O padre Ferro semicerrou os olhos. O seu olhar era agora receoso, como o do camponês que vê aproximarem-se nuvens de saraiva.
- Deveriam perguntar-lhe a ele - dirigiu os olhos para a caneta do seu interlocutor e fez um gesto cauteloso, indicando a porta com o queixo. - Está ali, à minha espera.
Quart sorria de modo quase imperceptível, aparentemente seguro, mas havia em tudo aquilo alguma coisa que o fazia sentir-se como se caminhasse no vazio. Alguma coisa fora do seu lugar, como uma nota falsa. O padre Ferro estava a dizer a verdade quase todo o tempo, mas havia nela uma mentira; talvez uma só, talvez não muito grave, mas que alterava a consistência do conjunto.
- Que me diz de Gris Marsala? Os lábios do padre endureceram.
- A irmã Marsala é livre de entrar e sair, e trabalha de forma voluntária. Sem ela, o edifício já teria vindo abaixo - disse, olhando o arcebispo como se o chamasse a testemunhar.
- Alguma coisa já veio - disse monsenhor Corvo.
Não tinha conseguido conter-se; pensava, certamente, no troço de cornija e no seu falecido secretário. Quart continuava pendente do sacerdote:
- Qual a natureza da relação dela com o senhor e com o vigário?
- A normal.
- Não sei o que considera normal - Quart calculava o seu desdém ao milímetro, com má-fé. - Os velhos curas rurais têm uma equívoca tradição da normalidade quanto a criadas e sobrinhas...
Viu, pelo canto do olho, que monsenhor Corvo quase dava um salto no cadeirão. Tratava-se de uma provocação consciente e o objectivo era óbvio. Agarrou no ar um lampejo de cólera.
- Ouça - a ira branqueava os nós dos dedos nos punhos apertados do pároco. - Espero que não esteja... - Interrompeu-se, de repente, para observar Quart fixamente, como gravando na memória até ao último pormenor do seu rosto. - Há quem fosse capaz de o matar por isso.
A ameaça não destoava do carácter sacerdotal do padre Ferro, nem do seu aspecto seco, endurecido sob aquela sotaina cheia de manchas, que oscilava sob os impulsos da ira. "Talvez eu próprio", dizia esta aparência. O caso ficava entregue à livre interpretação de cada um.
Quart olhou para o sacerdote com toda a calma:
- Como, por exemplo, a sua igreja?
- Por amor de Deus! - interpôs-se o arcebispo, escandalizado - Estão loucos?
Fez-se um longo silêncio. O rectângulo de luz na mesa de monsenhor Corvo havia-se deslocado para a esquerda, fora do alcance da sua mão, e emoldurava o volume da Imitação de Cristo, onde o padre Ferro mantinha agora fixo o seu olhar. Quart fitou, interessado, o ancião. Parecia-se muito com outro sacerdote ao qual ele nunca se quisera assemelhar; o homem que quase conseguira esquecer - durante algum tempo, desde o seminário, uma carta ou um postal; depois, o silêncio - e que apenas lhe acudia à memória como um fantasma, quando o vento sul reavivava odores e sons enterrados na memória. O mar batendo nas rochas e o ar húmido e salino terra adentro, e a chuva. Odor de braseiro e camilha no Inverno, Rosa rosae, Quousque tandem abutere Catilina, Nox atra cava circunvolat umbra. Tiquetaque de gotas de água no vidro embaciado da janela, repicar de sinos ao amanhecer e um rosto mal escanhoado, gorduroso, inclinado sobre o altar murmurando preces a um Deus duro de ouvido, homem e menino, oficiante e acólito, virados para uma terra estéril sobre um mar cruel. De igual modo, terminada a ceia. "Este é o cálice do meu sangue", "Ide em paz". E a respiração surda, de animal cansado, depois na sacristia, quando o muito jovem Lorenzo Quart o ajudava a despojar-se dos paramentos sob as manchas de humidade que se estendiam pelo tecto. O seminário, Lorenzo. Irás para um seminário; um dia serás sacerdote, como eu. Terás um futuro, como eu. Quart detestava com todas as suas forças e toda a sua memória aquela rudeza, a pobreza de espírito, a própria limitação obscura e miserável, missa de madrugada, sesta na cadeira de balanço, cheirando a fechado e a suor, o gato à soleira, uma criada ou uma sobrinha que de um ou outro modo aliviarão a solidão ou o peso da idade. E depois, o final: a demência senil, o fim de uma vida estéril e sórdida num asilo, com a sopa a escorrer-lhe pelas gengivas desdentadas. Para maior glória de Deus.
- Uma igreja que mata para se defender... - Quart fazia um esforço para regressar ao presente e a Sevilha: ao que era, em vez do que podia ter sido. - Quero saber como interpreta o padre Ferro estas palavras.
- Não sei do que me está a falar.
- Figuram na mensagem que alguém introduziu na Santa Sede. E referem-se à sua igreja... Crê que pode haver em tudo isto um desígnio providencial?
- Não sou obrigado a responder a essa pergunta.
Quart encomendou-se a monsenhor Corvo, mas este lavava daí as suas mãos com o mais diplomático dos sorrisos:
- É certo - confirmou, encantado com as dificuldades de Quart. - Também não quis responder-me a mim.
Era uma perda de tempo. O agente do IOE estava ciente de que tudo aquilo não levava a parte nenhuma, mas havia um ritual a cumprir. De modo que adoptou um tom muito oficial para perguntar ao cura se tinha consciência do que estava em jogo. Os sessenta e quatro anos do outro pesaram na resposta, sarcásticos. Impassível, Quart continuou a percorrer o formulário: necessidade do relatório, possível ponto de partida para graves medidas disciplinares, etc. Que o padre Ferro se encontrasse a um ano da reforma ou como quem diz acima do bem e do mal, não bastava para assegurar a tolerância dos seus superiores. Na Santa Sé...
- Não sei nada dessas mortes - cortou o pároco, a quem a Santa Sé manifestamente não inspirava cuidados. - Foram acidentes.
Quart lançou-se pela brecha:
- Talvez muito oportunos, do seu ponto de vista?
Havia uma pontinha de camaradagem, uma insinuação de tipo "vamos, homem, abra-se um pouco e procuremos resolver isto de uma vez". Mas o velho parecia blindado:
- Mencionou antes a Providência. Ponha-lhe a questão, que eu rezarei pelo senhor.
Quart respirou lentamente, um par de vezes, antes de tentar de novo. O que mais o irritava era o bom pedaço que Sua Eminência Ilustríssima devia estar a passar, em poltrona de teatro e escudado atrás do fumo do cachimbo.
- Está em condições de assegurar, de acordo com o seu carácter sacerdotal, que não houve intervenção humana nas duas mortes da sua paróquia?
- Vá para o Inferno.
- Perdão?
Até o neutral monsenhor Corvo tinha dado outro pulo no seu assento. O pároco fitava-o:
- Com todo o respeito que devo a Sua Eminência Ilustríssima, nego-me a continuar com este interrogatório e de agora em diante guardarei silêncio.
Aquele de agora em diante era um eufemismo e Quart fê-lo constar. Levavam vinte minutos de conversa, e tudo o que Don Príamo fizera fora, precisamente, guardar silêncio. Monsenhor Corvo replicou com um trejeito e deitando mais fumo; oficiava como acólito. De modo que Quart se pôs de pé. A cabeça branca e hirsuta do pároco, tão parecida com a que não queria recordar, chegava-lhe à altura do botão da camisa. Apenas tinha regressado uma vez, depois da sua ordenação: uma visita rápida à mãe viúva, outra à sombra negra, agarrada à igreja como um molusco ao fundo da sua concha. E ali dissera missa, no altar onde tantas vezes actuara como menino de coro, sentindo-se estrangeiro na nave húmida e fria, por cujos recantos vagueava o espectro do menino perdido frente ao mar, debaixo de chuva. Depois fora-se para nunca mais regressar e a igreja, o velho pároco, a aldeia de casinhas brancas e o mar desprovido de piedade e de sentimentos foram-se esfumando lentamente na sua memória, como um mau sonho de que tinha conseguido despertar.
Voltou lentamente à realidade. Tudo quanto detestava continuava diante dele, nos olhos negros e obstinados que o fitavam com dureza, como uma censura.
- Tenho mais uma pergunta. Uma só - tinha guardado os inúteis cartões e a caneta. - Porque se nega a abandonar esta igreja?
O padre Ferro olhou-o de cima a baixo. Seco como um pedaço de couro velho, era a definição. Também a Quart lhe ocorriam umas quantas.
- Isso não é consigo - disse. - É com o bispo e comigo.
Quart felicitou-se mentalmente por acertar de antemão na resposta e fez um gesto que dava por concluída aquela estupidez. Para sua surpresa, Aquilino Corvo acudiu em sua defesa:
- Rogo-lhe que responda ao padre Quart, Don Príamo.
- O padre Quart nunca entenderia.
- Estou seguro de que empregará toda a sua boa vontade. Rogo-lhe que tente.
Então o padre fez um gesto tosco e torpe, e abanou teimosamente a cabeça mal tosquiada, murmurando que Quart nunca tinha ouvido a confissão de uma mulher ajoelhada em busca de consolo, o pranto de um recém-nascido, a respiração de um moribundo e o suor de uma mão na sua. Por isso, ainda que falasse durante horas e horas, ninguém ali entenderia nunca uma maldita palavra. E, apesar do passaporte diplomático que tinha no bolso, apesar da protecção oficial da Cúria, da tiara e das chaves de Pedro que luziam no canto superior esquerdo das suas credenciais, Quart compreendeu que não tinha o mínimo poder sobre aquele intratável ancião de aspecto miserável, nos antípodas do que qualquer eclesiástico relacionaria com a glória de Deus. Foi um fogacho de inquietação que por um instante projectou, sobre o seu aprumo, a silhueta de um velho fantasma: Nelson Corona. Aflorava o mesmo distanciamento da realidade oficial, idêntica expressão nos olhos que tinha agora diante de si. Com a diferença que, atrás das lentes embaciadas dos óculos do brasileiro, Quart vira mesclarem-se a um tempo a resolução e o medo; ao passo que o olhar opaco do padre Ferro apenas reflectia uma firmeza semelhante a pedra escura. Já o pároco concluía, de volta ao silêncio que o protegia como uma couraça, quando Quart o ouviu dizer que a sua igreja era um refúgio; uma trincheira. Aquilo era pitoresco, de modo que o enviado do Vaticano arqueou a sobrancelha, irónico, e tentou recuperar, em busca de sossego, o velho desdém diante do cura de aldeia: de novo peça de elite frente ao peão de brega, com o fantasma de Nelson Corona esbatendo-se a uma esquina do tabuleiro.
- Curiosa definição.
Quart sorriu, seguro de si. De súbito, era outra vez forte e sem fissuras, sem remorsos e já voltava a ver apenas a sotaina coçada cheia de manchas, o queixo mal escanhoado do pároco. "É singular", disse para consigo, "o efeito tranquilizador do desprezo. Põe as coisas no seu sítio como uma aspirina, um pouco de álcool ou um cigarro." De forma que decidiu formular outra pergunta:
- Uma trincheira, frente a quê?
Era desnecessário e logo percebeu que ia arrepender-se antes de fechar a boca. De baixo, pequeno e duro, o padre Ferro fitava directamente os olhos de Quart.
- Frente a tantas histórias - disse. - E tanta merda.
Os carros de cavalos, pintados de negro e amarelo, alinhavam-se à espera de clientes sob a sombra das laranjeiras. Encostado à parede de uma loja de recordações turísticas, Potro del Mantelete vigiava as portas do Arcebispado. Tinha as mãos nos bolsos do casaco aos quadrados demasiado estreito, aberto sobre uma camisola branca de gola alta que lhe moldava os peitorais enxutos e fortes. Um palito movia-se-lhe ritmicamente de uma a outra das comissuras da boca e semicerrava os olhos sob as sobrancelhas sulcadas de cicatrizes, com o olhar fixo no espaço vazio emoldurado pelas colunas gémeas do pórtico barroco. "Não o percas de vista", tinha ordenado Don Ibrahim antes de se meter dentro da loja a ver postais e a bisbilhotar, porque os três de plantão davam demasiado nas vistas no passeio. Como o Potro era homem cabal, de confiança e a espera se prolongava, Don Ibrahim e a Nina Punales, depois de repassar diante do olhar desconfiado do lojista todos os expositores de postais e as vitrinas com camisetas, leques, castanholas e reproduções, em plástico, da Giralda e da Torre del Oro, decidiram transferir-se para o bar mais próximo, na outra esquina da rua, onde a Nina devia rondar já a quinta manzanilla. De modo que o Potro, na ausência de novas ordens, não perdia a porta de vista. Durante a longa hora que o cura já passara lá dentro, só apartara o olhar duas vezes: o tempo que dois guardas demoraram a passar diante dele, uma vez rua acima e outra, de regresso, rua abaixo; momentos que o Potro dedicara a contemplar demoradamente as biqueiras dos sapatos. Quatro cornadas, dois realistamentos na Legião e um cérebro que funcionava com um carreto fixo, contuso por socos e toques de sineta de assalto em assalto, imprimem carácter. Se Don Ibrahim ou a Nina Punales o tivessem esquecido, teria sido capaz de permanecer imóvel noite e dia, debaixo de sol ou de chuva, até ser rendido ou cair desfalecido, sem tirar os olhos da porta do Arcebispado como uma sentinela conscienciosa. Do mesmo modo como vinte e tal anos atrás, durante uma bronca impressionante numa praça de má morte, quando o seu apoderado lhe dissera aquela de "se não te mata o touro, desgraçado, mata-te o público à saída", o Potro del Mantelete, com o suor na cara e o medo nos olhos, fora para o meio da praça, com a muleta à cintura, para ali se quedar, imóvel, até que o morlaco - Carniceiro, de seu nome - lhe caiu em cima e com a quarta e última cornada da sua vida o arrancou para sempre da praça e dos touros. Depois, episódios similares haviam acrescentado cicatrizes ao seu corpo e à sua memória no pugilismo, na Legião e na cadeia do Puerto de Santa Maria. Porque, se é certo que a massa cinzenta do Potro del Mantelete tinha as mesmas luzes que um cepo de madeira, no seu caso, esta era sem dúvida madeira de herói.
De súbito, viu sair o cura alto. Parecia demorar-se à porta, indeciso, contemplando o interior do edifício como se lá dentro alguém reclamasse a sua atenção. Então um jovem loiro, de óculos, saiu atrás dele e puseram-se a conversar à porta. O Potro del Mantelete olhou para o bar onde aguardavam Don Ibrahim e a Nina Pufíales, mas estes pareciam muito ocupados com a manza-nilla. O Potro, então, tirou o palito da boca, cuspiu entre os pés, para o passeio e atravessou a praça para os alertar; fê-lo, descrevendo um círculo cuja tangente passava pela porta do Arcebispado. À medida que se aproximava, distinguiu melhor o aspecto do cura alto: teria podido passar por um actor de cinema, se não fosse o fato negro, o colarinho redondo da camisa e o cabelo curto como o de um pára-quedista ou de um legionário. Quanto ao mais jovem, o seu aspecto era desalinhado. Tinha a pele clara e nódulos no pescoço, como os adolescentes. E muito mais pinta de cura que o outro.
- Deixem-no em paz - ouviu dizer ao loiro. O alto fitava-o, muito sério.
- O seu pároco está louco - respondeu. - Vive noutro mundo. Se foi você quem enviou a mensagem, prestou-lhe um mau serviço, a ele e à sua igreja.
- Eu não enviei coisa nenhuma.
- Isso é um assunto de que temos de falar os dois. Com muito tempo.
O loiro tinha a voz um pouco trémula. Parecia agressivo, embora talvez estivesse apenas inquieto ou assustado:
- Não tenho nada a dizer-lhe.
- Esse disco está riscado - o cura alto sorria de modo desagradável. - E equivoca-se. Tem muitas coisas para me contar. Por exemplo...
A conversa foi ficando para trás à medida que o Potro del Mantelete se afastava dos curas. Continuou a caminhar, um pouco mais apressado, em direcção ao bar. Havia serradura no chão, cascas de camarão e tiras de lombo e presuntos pendurados sobre o balcão. De pé, ao balcão, Don Ibrahim e a Nina Pufíales bebiam em silêncio. Na rádio, colocada numa estante entre duas garrafas de Fundador, cantava Camarón:
O vinho mata a dor e a memória...
Don Ibrahim, com um charuto entre os dedos, afastado do balcão pelo arco rotundo da sua barriga, tinha a cinza a cair sobre a aba do casaco branco. A seu lado, a Nina Punales passara da manzanilla ao anis Machaquito e nesse momento levava à boca o copo com marcas de espesso carmim na borda. Tinha os olhos muito pintados, um vestido azul às pintas brancas, arrecadas de prata e o caracol de cabelo negro bem desenhado sobre a testa murcha de cantadeira sem fortuna, como nas capas de três ou quatro velhos discos de 45 rotações, que Don Ibrahim guardava como um tesouro no seu quarto de pensão junto de Nat King Cole, Los Panchos, Beny More, António Machín e uma antediluviana grafonola Telefunken. O caso é que o ex-falso letrado e a Nina Punales se voltaram para fitar o Potro; e este, parado à soleira, fez com a cabeça um gesto em direcção à rua.
- Água - disse.
Os três sócios agruparam-se à porta, a olhar. O cura alto separara-se do outro e caminhava pelo passeio da praça, junto da mesquita.
- Que cura! - disse a Nina, com a sua voz rouca.
- Não tem má pinta - admitiu Don Ibrahim, equânime, revirando um olho crítico.
O toque de Machaquito fazia, brilhar os olhos zombeteiros da cantadeira:
- Ozú. Desse-me ele os santos óleos.
Don Ibrahim trocou um olhar grave com o Potro del Mantelete. Em campanha, como era o caso, aquelas frivolidades pareciam descabidas.
- E o velho? - perguntou, para centrar o tema.
- Ainda está lá dentro - informou o Potro. O ex-falso advogado fumava o puro, pensativo.
- Dividamos as corveias - disse por fim. - Tu, Potro, segue o cura velho quando sair e, quando se meter em casa, voltas com o relatório. A Nina e o que subscreve controlamos o cura alto - fez uma pausa para consultar, solene, o relógio de Don Ernesto Hemingway. - Antes de passar aos autos, precisamos de informação, a mãe de todas as vitórias, etc. Que lhes parece?
Devia parecer bem aos seus compadres, porque assentiram; grave e carrancudo, o Potro, com aspecto de estar analisando o sentido de alguma palavra proferida cinco minutos antes, e com ar de falta de juízo a Nina, vendo o cura afastar-se. Tinha ainda o copo na mão e parecia disposta a rematar o Machaquito. Na rádio, Camarón continuava a sua canção de vinho e ausências e o empregado, de camisa branca e gravata preta, marcava o ritmo baixinho, com discretas palmas, atrás do balcão. Don Ibrahim olhou para a sua tropa e decidiu levantar os ânimos com um discurso apropriado. Sevilha é a maior coisa que existe no mundo, ou assim. E nós vamos arrasá-la. Aquilo soava bem, mas era talvez excessivo. E, além disso, não vinha a calhar.
- A fortuna é dos audazes - disse, depois de pensar um pouco. E deu outra fumaça no charuto.
- Ozú.
A Nina Punales apurava a última gota de anis. Ainda de sobrolho carregado, o Potro moveu por fim a cabeça:
- Que quer dizer corvetas?
O aprumo de Lorenzo Quart baseava-se num excesso de rigor técnico. De modo que, quando chegou ao quarto, a primeira coisa que fez foi abrir a maleta de cabedal negro onde guardava o seu computador portátil e trabalhar durante uma hora no relatório destinado a monsenhor Spada. Um documento que o director do IOE recebeu por linha telefónica ao mesmo tempo que ele o redigia. Ao longo das oito páginas, Quart abstinha-se cuidadosamente de veicular conclusões sobre os personagens, a igreja ou a possível identidade de Vésperas, limitando-se a uma descrição bastante fiel das conversas mantidas com monsenhor Corvo, Gris Marsala e Príamo Ferro.
Só ao fechar a tampa do computador, enquanto recolhia os fios e a ficha, é que relaxou um pouco. Estava em mangas de camisa, com o colarinho solto e deu uns passos pelo quarto, junto das duas camas de dossel e da janela aberta para a praça Virgem dos Reis. Era cedo para descer e jantar, de modo que passou os olhos por uns livros sobre Sevilha que comprara numa pequena livraria frente à Câmara. No mesmo saco estava a revista Q + S, adquirida num quiosque por recomendação de monsenhor Corvo, "para que se vá familiarizando com o panorama", tinha sugerido, mordaz, o prelado. Observou a capa e depois as fotografias do interior. "Um Casamento em Crise", rezava o título. Junto das imagens da mulher com o seu acompanhante, havia outra de um homem jovem, muito sério, bem vestido, de colarinho branco e risca impecável no cabelo: "Confirma-se a separação. Enquanto o financeiro Gavira se afirma como homem forte da banca andaluza, Macarena Bruner passa a noite fora de casa." Quart arrancou as páginas e guardou-as na maleta. Neste momento, deu-se conta de que tinha sobre a mesa-de-cabeceira a edição do Novo Testamento que os Gedeões Internacionais distribuíam gratuitamente pelos hotéis. Não se recordava de o ter posto ali, mas sim dentro da gaveta, onde costumava guardar a documentação, publicidade, cartas e sobrescritos que o estorvavam. Abriu-o ao acaso, e verificou que tinha um velho bilhete postal a marcar duas páginas. Na parte inferior pôde ler: Igreja de Nossa Senhora das Lágrimas, Sevilha. 189$. A fotografia era imperfeita, com uma espécie de halo pálido, envolvendo o motivo central; a igreja, porém, estava ali, com os seus tons esbatidos mas inconfundíveis: o pórtico de colunas salomónicas, a imagem da Virgem no seu nicho e com a cabeça intacta, e o campanário. Parecia em melhor estado do que a actual. Diante dela, na praça, havia um toldo sob o qual um homem de faixa e chapéu andaluz vendia legumes a mulheres de negro, de costas para o fotógrafo. Do outro lado, pela ruela estreita que partia da praça, ia um burrico de aguadeiro, com uma vasilha de cada lado e o proprietário transformado em silhueta vagamente visível, fantasma prestes a desaparecer no halo branco que debruava a imagem.
Quart virou o postal. Havia umas linhas escritas com letra inglesa de ângulos suaves e tinta já pouco legível, convertida em traços pálidos a castanho claro:
Aqui rezo por ti todos os dias e espero o teu regresso, no lugar sagrado do teu juramento e minha felicidade. Amar-te-ei sempre.
Carlota
Não havia carimbos sobre o selo intacto de vinte e cinco cêntimos com a efígie de Afonso XIII menino e a data manuscrita ao alto estava apagada por uma mancha de humidade. Quart decifrou um 9 e talvez um 7 no final, o que podia significar o ano de 1897. A direcção, em contrapartida, era perfeitamente clara: Capitão Don Manuel Xaloc. A bordo do navio "Manigua". Porto de Havana. Cuba.
Pegou no telefone e marcou o número da recepção. O porteiro negava que alguém tivesse subido ao quarto ou perguntado por Quart desde as oito da manhã, hora a que havia começado o seu turno. Poderia, talvez, informar-se junto das encarregadas da limpeza. Quart falou com elas e desligou o telefone sem averiguar coisa alguma. Não se lembravam de ter tocado no Novo Testamento e não poderiam dizer-lhe se estava dentro da gaveta ou em cima da mesa, quando tinham arrumado o quarto. Mas, além delas, ninguém mais entrara ali.
Foi sentar-se à janela com o postal na mão e sem deixar de olhar para ele. Um barco atracado no porto de Havana, em 1897. Um capitão chamado Manuel Xaloc e uma tal Carlota que o amava e rezava por ele em Nossa Senhora das Lágrimas. Tinha algum sentido o que estava escrito nas costas do postal, ou o que contava era apenas a fotografia da igreja?... De súbito, lembrou-se do Evangelho dos Gedeões. Estaria o postal a marcar uma página, ou estava posto ao acaso? Execrou o seu descuido, ao mesmo tempo que se levantava e se dirigia para a mesa, mas, por sorte, tinha deixado o livro aberto, virado para baixo. Eram as páginas 168 e 169 - São João, 2 - e, embora não houvesse nenhum parágrafo sublinhado, pôde encontrar a referência com facilidade. Era por demais evidente:
"15 Tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do Templo, com as ovelhas e com os bois; lançou ao chão o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas;
16 e disse aos que vendiam pombas: "Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio.""
Mexeu a cabeça, observando alternadamente o livro e o postal. Pensava em monsenhor Spada e em Sua Eminência o cardeal Iwa-szkiewicz, e decidiu que não ia agradar-lhes nada a feição que tudo aquilo parecia tomar. E muito menos a ele. Havia alguém apreciador de certo tipo de brincadeiras inquietantes, como infiltrar-se em computadores papais ou em quartos de hotel e evangelhos alheios. Quart passou em revista todos os rostos conhecidos até ao momento, perguntando a si próprio se estaria entre eles aquele que procurava. Santo Deus! Sentia uma crescente exasperação e atirou o livro e o postal para cima da colcha de uma das camas. Tal como estavam as coisas, era só o que faltava: um fantasma a brincar às escondidas.
Quart saiu do elevador no último piso, passou junto da vitrina com a colecção de leques do hotel e caminhou pelo corredor que rodeava o vestíbulo. A sua silhueta negra e sombria contrastava com o ambiente. O Dona Maria era um estabelecimento de quatro estrelas para turistas, situado num belo edifício antigo da Calle Don Remondo, a dois passos de Santa Cruz; os decoradores tinham-se excedido um pouco no rés-do-chão, sobrecarregado de motivos folclóricos, toureiros e quadros andaluzes com mulheres de peineta e mantilha. A porta, uma jovem guia turística de ar fatigado, segurando ao alto uma bandeirinha holandesa, congregava um grupo multicor, equipado com máquinas fotográficas e câmaras de vídeo. Ao aproximar-se do balcão para deixar a chave, Quart conseguiu ler o seu nome numa plaquinha de plástico que tinha ao peito: V. Oudkerk. Sorriu, compassivo, e a jovem devolveu-lhe um sorriso resignado, antes de se afastar à frente da sua tropa.
- Tem uma senhora à sua espera, Don Lorenzo. Acaba de chegar.
Surpreendido, Quart olhou para o porteiro e logo se voltou para as poltronas do vestíbulo. Estava ali uma mulher morena, de cabelo negro e comprido abaixo dos ombros: óculos escuros, calças de ganga, mocassins e casaco castanho sobre uma camisa azul-claro. Parecia muito bonita e, à medida que Quart se foi aproximando e ela se ergueu, pôde confirmá-lo enquanto apreciava o contraste do colar de marfim sobre a pele bronzeada, a pulseira de ouro no pulso, a bolsa de pele no sofá, junto dela. A mão delgada, elegante, de unhas perfeitas, que estendia, pronta à saudação:
- Chamo-me Macarena Bruner.
Tinha-a reconhecido uns segundos antes, graças às fotografias da revista. Quart não pôde evitar ficar a olhar a sua boca. Era grande, bem desenhada, entreaberta com a leve cintilação dos dentes muito brancos sob o lábio superior em forma de coração. Matizada por um pouco de bâton rosa-pálido, quase incolor.
- Viva - disse ela. Parecia estudá-lo em pormenor por detrás dos seus óculos escuros, um pouco surpreendida. - Tem realmente bom aspecto.
- Também a senhora - respondeu Quart, com calma.
Era um pouco mais baixa que ele, que rondava o metro e oitenta e cinco. As calças de ganga e o cinto moldavam sob o casaco umas ancas atraentes. Tinha três gatinhos bordados na camisa, generosamente preenchida pelos volumes correspondentes e Quart considerou oportuno desviar o olhar, vagamente inquieto, a pretexto de consultar o relógio. Ela continuava a observar, pensativa.
- Gostava que falássemos - disse, por fim.
- Naturalmente. Agradeço, porque pensava ir vê-la - Quart olhou em redor. - Como deu comigo?
- Uma amiga. Gris Marsala.
- Ignorava que fossem amigas.
Viu-a sorrir com desenvoltura: um brilho de marfim na boca, irmanado com o do colar sobre a pele cor de tabaco claro. Saltava à vista que era uma mulher segura de si, tanto pela sua condição como pela sua beleza; mas Quart estava consciente de que o severo fato negro e o colarinho a desconcertavam um pouco, como a Gris Marsala. Era frequente nas mulheres, bonitas ou não; como se o hábito sacerdotal situasse o homem fora do alcance comum à sua espécie.
- Podemos falar agora?
- Claro.
Sentaram-se frente a frente. Ela cruzando as pernas, no sofá que ocupara enquanto esperava; ele, numa poltrona contígua.
- Sei porque veio a Sevilha.
- Não espere que me surpreenda - Quart esboçava um sorriso de resignação. - A minha viagem parece ser do domínio público.
- Gris recomendou-me que viesse vê-lo.
Fitou-a com renovado interesse. Não tirou os óculos escuros e perguntou a si próprio como seriam os seus olhos.
- Que estranho. Ontem a sua amiga não parecia disposta a cooperar.
O cabelo de Macarena Bruner escorregava sobre o ombro, cobrindo-lhe metade do rosto e ela afastou-o com um gesto. Era muito negro e abundante, apreciou Quart. Uma beleza andaluza semelhante às que pintava Romero de Torres, ou à Carmen da Fábrica de Tabacos descrita por Merimée. Qualquer pintor, qualquer francês ou toureiro podia perder a cabeça por aquela mulher. Durante uma fracção de segundos perguntou a si próprio se também qualquer cura.
- Não deve ter uma ideia falsa acerca da igreja - explicava ela.
- Fez uma pausa, antes de acrescentar: - Nem do padre Ferro.
Quart permitiu-se um sorriso contido cujo objecto, mais do que outra coisa, era arrumar aquela incómoda fracção de segundo no seu devido lugar. De modo que procurou coragem no sarcasmo:
- Não me diga que também faz parte do clube dos seus fãs. Tinha a mão suspensa no braço da poltrona e, apesar das lentes
escuras, percebeu que ela olhava para essa mão. Retirou-a discretamente, cruzando os dedos com a outra.
Macarena Bruner permaneceu uns instantes em silêncio. Tinha afastado de novo o cabelo da cara e parecia meditar sobre a conveniência de prosseguir ou não aquela conversa.
- Ouça - disse, por fim. - Gris e eu somos amigas. E, quanto a si, penso que a sua presença pode ser útil, embora as suas intenções não sejam boas.
Quart captou o tom conciliador. Ergueu a mão e viu que, uma vez mais, ela seguia o movimento:
- Há qualquer coisa que me irrita em tudo isto, sabe?... Não sei como devo tratá-la. Senhora Bruner?
Estava incomodado com o seu olhar oculto sob as lentes esfumadas e ela dava-se perfeitamente conta disso.
- Chame-me Macarena.
Tirou os óculos escuros e Quart surpreendeu-se com a beleza dos olhos grandes, escuros, com reflexos de mel. "Louvado seja Deus!", teria dito com voz alta, se acreditasse realmente que Deus se ocupava desse tipo de coisas. De modo que se limitou a sustentar o olhar daqueles olhos como se a salvação da sua alma dependesse disso. E, afinal, talvez dependesse, se é que existia uma alma e uma Providência.
- Bem, Macarena - disse, inclinando-se sobre ela até apoiar os cotovelos nos joelhos. Ao aproximar-se, pôde sentir o seu perfume; suave, como jasmim. - Há qualquer coisa que me irrita muito nesta história. Toda a gente tem como ponto assente que estou em Sevilha para aborrecer Don Príamo Ferro. E não é verdade. Vim para elaborar um relatório sobre a situação. E não tenho ideias preconcebidas. O que acontece é que o padre está muito pouco disposto a cooperar - chegou-se para trás no assento, ácido. - Na realidade, ninguém está disposto a cooperar.
Agora foi ela quem sorriu:
- Ninguém se fia e é lógico.
- Porquê?
- Porque o arcebispo andou a dizer mal de si. Chama-lhe o caçador de cabeças.
Quart fez uma careta. Santo varão, Sua Eminência Ilustríssima!
- Sim. Somos velhos conhecidos.
- Mas isso do padre Ferro pode arranjar-se - ela mordia o lábio inferior. - Talvez eu possa fazer alguma coisa.
- Seria melhor para todos, especialmente para ele. Mas diga-me porque haveria a senhora... Que ganha com isso?
Moveu de novo a cabeça, como se aquilo não tivesse importância e o cabelo voltou a escorregar sobre o ombro. Afastou-o, olhando fixamente para Quart.
- É verdade que o Papa recebeu uma mensagem?
Era indubitável que Macarena Bruner conhecia o efeito dos seus olhos. Quart engoliu em seco com dissimulação: em parte pelo olhar e em parte pela pergunta.
- É confidencial - respondeu, suavizando o tom com um sorriso. - Compreenda que eu não confirme nem desminta.
Ela encolheu os ombros com desdém:
- É um segredo que tem ecos.
- Nesse caso, permita-me que não lhe acrescente o meu.
Brilharam os olhos escuros, pensativos. Macarena Bruner recostou-se num braço do sofá e o movimento fez com que os gatinhos bordados debaixo do casaco se espreguiçassem, sugestivos.
- A última palavra sobre Nossa Senhora das Lágrimas tem-na a minha família - explicou. - Quer dizer, a minha mãe e eu. Se o edifício for declarado em ruína e se o arcebispo autorizar a sua demolição, a decisão final sobre o destino da casa pertence-nos.
- Não inteiramente - objectou Quart. - Segundo as notícias que chegaram até mim, a Câmara tem uma palavra a dizer.
- Iremos a tribunal.
- Mas a senhora continua tecnicamente casada. E o seu marido... Ela interrompeu-o, negando com a cabeça:
- Há seis meses que vivemos em casas separadas. O meu marido não tem o direito de actuar por sua conta.
- E não tenta convencê-la?
- Tenta. - Macarena sorria agora de novo; um gesto desdenhoso e distante, quase cruel, endurecia-lhe a boca. - Mas tanto faz que tente ou não tente. A igreja vai sobreviver.
- Sobreviver? - estranhou Quart. - Palavra curiosa. Fala dela como se estivesse viva.
Ela fitava-lhe novamente as mãos:
- Talvez esteja. Há muitas coisas que estão vivas, embora não pareçam - ficara absorta por um momento e pareceu regressar bruscamente. - Mas referia-me ao facto de que é necessária. E o padre Ferro também.
- Porquê? Há mais curas e mais igrejas em Sevilha.
Ela riu-se de verdade. Um riso franco e sonoro, tão contagioso que Quart esteve prestes a imitá-la sem querer.
- Don Príamo é especial, assim como a sua igreja - sorria ainda e os reflexos de mel reapareceram no seu olhar, fixo em Quart. - Mas não poderia explicá-lo por palavras. Tem de lá ir.
- Já lá estive. E o seu pároco favorito esteve quase a correr-me a pontapé.
Macarena Bruner desatou de novo a rir. Quart nunca tinha ouvido uma mulher rir de forma tão estrondosa e simpática. Assombrado consigo mesmo, desejou vê-la de novo. No seu cérebro bem treinado soaram alarmes por toda a parte. Aquilo começava a parecer-se muito com entrar em jardins que os seus velhos mentores eclesiásticos aconselhavam manter à distância: serpentes, maçãs, encarnações de Dalila e toda essa parafernália.
- Sim - disse ela. - Gris contou-me. Mas tente de novo. Vá à missa; observe o que lá se passa. Talvez compreenda melhor.
- Fá-lo-ei. Frequenta a missa das oito?
Não houve má intenção na pergunta, mas o olhar de Macarena Bruner tornou-se receoso, subitamente sério.
- Isso não lhe diz respeito.
Abria e fechava as hastes dos óculos de sol. Quart ergueu um pouco as mãos numa desculpa e seguiu-se um breve silêncio incómodo. Para salvar a situação, olhou em redor, à procura de um empregado e perguntou-lhe se queria tomar alguma coisa. Ela negou com a cabeça. Parecia agora mais relaxada e Quart formulou outra pergunta:
- Que pensa das duas mortes?
Desta vez o riso foi desagradável, entredentes:
- Que não se deve brincar com a cólera de Deus. Quart olhou-a, muito sério:
- Singular ponto de vista.
- Porquê? - parecia sinceramente surpreendida. - Eles, ou os que os mandaram, andavam a pedi-las.
- Isso não é um sentimento muito cristão.
Fez um gesto de impaciência, agarrando na bolsa que tinha junto dela e voltando a largá-la. Metia e tirava os dedos na correia a tiracolo.
- Não compreende, padre... - fitou-o, indecisa. - Como devo tratá-lo? Reverendo? Padre Quart?
- Pode chamar-me Lorenzo, pura e simplesmente. Não vou ouvi-la em confissão.
- Por que não? Afinal é um sacerdote.
- Um pouco singular, talvez - admitiu Quart. - E aqui não exerço precisamente nessa qualidade.
Ao falar, tinha desviado os olhos por segundos, incapaz de aguentar inteiramente a situação. Quando voltou a olhá-la, ela observava-o com uma curiosidade nova, quase maliciosa.
- Seria divertido confessar-me a si. Gostaria?
Quart respirou com calma, duas vezes. Depois franziu um pouco os lábios, como se considerasse seriamente a questão. A capa da Q + S passou diante dos seus olhos, como um mau presságio.
- É possível - disse. - Mas receio não ser objectivo com esse sacramento, no seu caso. É demasiado...
- Demasiado quê?
"Não era jogo limpo da parte dela", disse, com amargura, para consigo. Pressionava o mais possível. Pressionava demasiado e aquilo era excessivo, mesmo para uma pessoa com os nervos do sacerdote Lorenzo Quart. Respirou outras duas vezes, como se estivesse numa sessão de ioga. "Apresenta o caso deste modo", disse para consigo. "Procura que a calma não te abandone agora."
- Atraente - respondeu com perfeita frieza - Suponho que seja a palavra adequada. Mas sabe disso melhor que eu.
Macarena Bruner apreciou a resposta com um breve silêncio. "Notável", diziam os seus olhos.
- Gris tem razão - disse. - Não parece um cura. Quart anuiu, sem afrouxar inteiramente a vigilância:
- Imagino que o padre Ferro e eu somos espécies diferentes...
- Acertou. É o meu confessor.
- Estou certo de que se trata de uma boa escolha - fez uma pausa esmerada para despojar de ironia as suas palavras. - Trata-se de um homem rigoroso.
Ela não se deixou enganar pelo adjectivo:
- O senhor não sabe nada acerca dele.
- É precisamente o que pretendo. Saber. Mas não encontro ninguém que me esclareça.
- Fá-lo-ei eu.
- Quando?
- Não sei. Amanhã à noite. Convido-o para jantar em La Albahaca.
Quart tentou pensar com rapidez.
- La Albabaca - repetiu, para ganhar tempo.
- Sim. Na praça de Santa Cruz. Costumam exigir gravata mas, tratando-se do senhor, não creio que haja problemas com o colarinho que usa. Embora seja sacerdote, sabe vestir-se muito bem.
Ele levou ainda três segundos até fazer um gesto afirmativo. Por que não? Afinal, para isso viera a Sevilha. Seria uma boa ocasião para beber à saúde do cardeal Iswaszkiewicz.
- Posso pôr uma gravata, se quiser. Embora nunca tenha tido problemas em nenhum restaurante.
Macarena Bruner pusera-se de pé e Quart imitou-a. Ela olhava-Lhe outra vez para as mãos.
- Como quer que saiba? - acentuou o sorriso, enquanto punha os óculos escuros. - Nunca jantei com um cura.
O ar que Don Ibrahim deslocava com o chapéu cheirava a flor de laranjeira e a laranjas amargas. A seu lado, num banco da praça Virgem dos Reis, a Nina Punales fazia crochet, enquanto vigiavam a porta do Hotel Dona Maria: quatro para cima, duas largas, uma curta e uma longa. A Nina repetia a sequência, movendo silenciosamente os lábios como se rezasse, com o novelo sobre a saia enquanto o trabalho lhe crescia lentamente entre as mãos e as pulseiras de prata tilintavam nos seus pulsos. Era outra colcha para o seu enxoval. Havia quase trinta anos que o enxoval da Nina Punales amarelecia entre bolas de naftalina, num armário do seu pequeno apartamento no bairro de Triana; mas ela continuava a juntar-lhe peças, como se o tempo se houvesse detido nos seus dedos, à espera do homem moreno de olhos verdes que um dia viria buscá-la, entre coplas de aguardente e lua branca.
Um carro puxado a cavalos cruzou a praça, levando nas traseiras quatro hooligans ingleses que bebiam cerveja e usavam chapéus cordoveses - jogavam o Betis e o Manchester - e Don Ibrahim seguiu-o com o olhar, ao mesmo tempo que retorcia o bigode entre suspiros de desalento. "Pobre Sevilha", murmurou ao cabo de um instante, abanando-se mais vigorosamente com o panamá branco; e a Nina Punales assentiu sem erguer a cabeça do seu trabalho: quatro para cima, duas largas. Don Ibrahim tinha agora atirado a ponta do charuto e via-o consumir-se, fumegando para o chão. Por fim, com sumo esmero, ajudou-o a morrer com a extremidade da bengala; detestava os tipos brutais capazes de esmagar a ponta de um bom charuto como se, em vez de apagá-la, a assassinassem. O adiantamento de Peregil tinha-Lhe permitido comprar uma caixa inteira de Montecristos, com a cinta intacta, coisa que não podia permitir-se desde que o cabo Finisterra era soldado raso. Dois deles assomavam, esplêndidos, no bolso superior do casaco do seu amarrotado fato de linho branco. Levou a mão ao peito, apalpando-os com ternura. O céu era azul, cheirava a flor de laranjeira, estava em Sevilha, tinha entre mãos um bom negócio, havanos no bolso e trinta mil pesetas na carteira. Para que a sua felicidade fosse completa, só faltavam três entradas para os touros; três bilhetes à sombra com o Faraón de Camas no cartel, ou essa jovem promessa, Curro Maestral; o qual, segundo o Potro, tinha maneiras, mas nem comparação com o falecido Juan Belmonte, que descanse em paz. O mesmo Curro Maestral que vinha nas revistas, entrando a matar as mulheres dos banqueiros. O que, vendo bem, também era assunto de cornos.
E, a propósito de mulheres. O cura alto acabava de aparecer à porta do hotel, conversando com uma muito vistosa. Don Ibrahim deu uma cotovelada à Nina Punales, que interrompeu o trabalho. A dama usava óculos escuros e era ainda jovem, de aspecto agradável, vestida de modo informal, mas com o toque de classe, elegante e desenvolto, característico das mulheres andaluzas de boa cepa. Ela e o cura apertavam a mão. Aquilo introduzia variantes insuspeitadas no assunto, de forma que Don Ibrahim e a Nina Punales trocaram olhares significativos:
- Aqui há gato, Nina.
- Também acho.
O ex-falso letrado ergueu-se, com alguma dificuldade, enfiando o panamá de palha branca ao mesmo tempo que segurava a bengala de Maria Félix com ar resoluto. Deu à Nina instruções para continuar com o crochet sem perder de vista o cura alto e pôs-se a caminho com a maior discrição, arrastando penosamente os seus cento e dez quilos no encalço da mulher de óculos escuros. Seguiu-a desse modo, enquanto penetrava em Santa Cruz e virava à esquerda, na Calle Guzmán el Bueno, até a ver desaparecer na entrada do palácio conhecido como Casa do Postigo. De sobrolho franzido e olhos vigilantes, Don Ibrahim aproximou-se do arco da fachada, pintada de ocre e cal, entre as inevitáveis laranjeiras da praceta que lhe servia de acesso. A Casa do Postigo era um lugar muito conhecido em Sevilha: um palácio do século XVI, residência tradicional dos duques do Nuevo Extremo. De modo que o índio tomou boa nota enquanto procedia a um reconhecimento táctico. As janelas estavam protegidas com grades de ferro e sob a sacada principal um escudo heráldico presidia à entrada com o seu elmo ornado por um leão na cimeira, bordadura com âncoras e cabeças de mouro ou caciques índios, uma banda com uma romã e a divisa Oderint dum probent. "Que cheiram o que provam, ou qualquer coisa assim", traduziu para si próprio o antigo letrado, aldrabando o evidente senso comum da frase. Depois penetrou como quem não quer a coisa no pórtico escuro, em direcção à cancela de ferro forjado que vedava o acesso ao pátio interior, belíssimo recinto de colunas moçárabes com grandes vasos de plantas e flores em torno de uma fonte muito bonita de mármore e azulejos. Permaneceu ali até que uma criada de farda negra se aproximou, receosa, da cancela. Dedicou-lhe então o seu mais inocente sorriso e, erguendo um pouco o chapéu, retirou-se para a rua com a torpeza de um turista despistado. Uma vez fora, deteve-se diante da fachada. Sorria ainda sob o frondoso bigode manchado de nicotina, quando retirou do bolso um dos charutos e, cuidadosamente, lhe tirou a cinta. Monte-cristo, Habana, rezava em torno da minúscula flor-de-lis. Cortou a ponta com o canivete que trazia na corrente do relógio. O canivete era um pormenor - costumava contar - dos seus amigos Rita e Orson, em memória daquela tarde inesquecível na Havana Velha, quando lhes mostrou a fábrica de tabacos Partagás, na esquina de Dragones e Barcelona, e depois Rita e ele foram dançar para o Tropicana até às tantas. Estavam lá a rodar A Dama de Xangai ou qualquer coisa do género e Orson ficara bêbedo como um cacho e todos se tinham beijado e abraçado, e haviam acabado por dar-lhe aquele canivete com o qual o Cidadão Welles capava os charutos. Sumido na recordação, ou talvez no imaginário da recordação, Don ibrahim levou o havano aos lábios, fazendo-o girar enquanto saboreava a folha de tabaco puro do invólucro exterior. "Interessantes", disse para consigo, "as amizades femininas do cura alto." Depois chegou o isqueiro à ponta do Montecristo, desfrutando de antemão a meia hora de prazer que tinha pela frente. Para Don Ibrahim, a vida era inconcebível sem um cigarro cubano. O seu aroma produzia o milagre de lhe reconstruir um passado glorioso, e Sevilha e Havana - tão parecidas -, a sua juventude caribenha em que nem ele próprio era capaz de distinguir o real do inventado, fundiam-se com a primeira baforada de fumo num sonho tão extraordinário como perfeito.
A luz do clube de pegas era vermelha e, no estéreo, cantava Júlio Iglesias. O copo de Celestino Peregil tilintou, quando Dolores La Negra lhe deitou mais gelo no uísque.
- Que boa estás, Loli - disse Peregil.
Era a enunciação de um facto objectivo. Dolores moveu as ancas atrás do balcão, passando um cubo de gelo sobre o umbigo nu, abaixo da camiseta curta que lhe cingia dois seios enormes, oscilando ao ritmo da música. Era uma fêmea grande, aciganada, de trinta anos bem batidos e com mais tiros que a janela de um bósnio.
- Vou brindar-te com uma gloriosa - anunciou Peregil, passando a mão pela cabeça para acomodar o cabelo que lhe camuflava a calva - que cais da cama abaixo.
Acostumada a tais protocolos e às gloriosas de Peregil, Dolores ensaiou dois passos de dança, fitando-o nos olhos; depois pôs a ponta da língua de fora, deitou o cubo de gelo que tinha passado pelo umbigo dentro do copo e foi servir mais champanhe catalão a outro cliente, um fulano a quem as raparigas tinham já sacado duas garrafas e iam a caminho da terceira. No estéreo, Júlio Iglesias insistia no facto de que era um truão e um senhor, e em seguida pôs-se a discutir com José Luis Rodríguez, El Puma, para saber se para levar uma mulher era preciso ser ou não ser toureiro. Indiferente à polémica, Peregil bebeu um golinho de uísque, deitando o olho a Fátima, a moura, que dançava sozinha na pista, com uma saia pela virilha, botas até aos joelhos e um decote por onde as tetas lhe saltavam alegremente. Fátima era a sua segunda opção para aquela noite, de modo que se pôs a considerar muito seriamente os prós e os contras do assunto.
- Olá, Peregil.
Não os tinha ouvido chegar, nem aproximar-se. Puseram-se um de cada lado, encostados ao balcão como se contemplassem a paisagem de garrafas alinhadas nas prateleiras adornadas com espelhos. Peregil viu-os reflectidos na sua frente, entre as etiquetas e as jarras de propaganda: o cigano Mairena à sua direita, vestido de negro, fraco e perigoso com o seu ar de bailarino flamengo, um anel de ouro enorme no coto do dedo mindinho que ele próprio cortara durante um motim, na cadeia de Ocana; o Pollo Muelas à esquerda, loiro, pulcro e miúdo, parecendo continuamente agarrado à navalha de barbear que trazia no bolso esquerdo das calças e que dizia sempre perdoe-me antes de dar uma facada a alguém.
- Convidas-nos para um copo? - perguntou o cigano vagarosamente, afectuoso, saboreando a cena. E, de súbito, Peregil sentiu muito calor. Com ar desfalecido, chamou a atenção de Dolores. Gin tonic para Mairena, o mesmo para o Pollo Muelas. Os dois copos ficaram em cima do balcão, intactos. No espelho, ambos os olhares estavam cravados nele.
- Trazemos-te um recado - disse o cigano.
- De um amigo - acrescentou o outro.
Peregil engoliu em seco, esperando que, com aquela luz vermelha, não se notasse muito. O amigo chamava-se Rubén Molina e era um prestamista do Baratillo a quem andava há meses a assinar letras já vencidas, cujo total ascendia a uma quantia que o próprio Peregil era incapaz de recordar sem se sentir à beira de uma síncope. Relativamente aos seus devedores, Rubén Molina era famoso em certos meios sevilhanos pelo costume de enviar apenas duas mensagens para o pagamento compulsivo: a primeira por palavras e a segunda por obras. Mairena e o Pollo de Muelas eram os seus arautos celestes.
- Diz-lhe que hei-de pagar. Tenho um assunto entre mãos.
- Frasquito Torres disse a mesma coisa.
O Pollo Muelas sorria, perigosamente compreensivo e simpático. Do outro lado, no espelho, o rosto comprido e ascético do cigano mantinha-se tão festivo como se acabasse de enterrar a própria mãe. Vendo-se entre ambos, Peregil quis engolir a saliva pela segunda vez, mas sem êxito: a alusão a Frasquito Torres tinha-lhe deixado a garganta demasiado seca. Frasquito era um tipo de boas famílias, muito estoira-vergas, muito conhecido em Sevilha, que durante algum tempo tinha recorrido, como Peregil, aos fundos do prestamista Molina. Incapaz de pagar, uma vez vencido o prazo, alguém o esperara à porta de casa para lhe partir, um por um, todos os dentes da boca. Tinham-no deixado ali, com os dentes dentro de um cartucho de papel de jornal metido no bolso superior do casaco.
- Só preciso de uma semana.
O cigano Mairena ergueu o braço e passou-o em torno dos ombros de Peregil, num gesto tão inesperadamente amistoso que este se desfez de medo. O coto do dedo mutilado roçava-lhe a barba.
- Que coincidência - a camisa negra do cigano cheirava a suor velho e a fumo de tabaco. - Porque é o que tens, compadre. Sete dias certos e nem mais um minuto.
Peregil firmava as mãos no balcão para impedir que tremessem. Nas prateleiras em frente, as etiquetas das garrafas confundiam-se umas com as outras: White Larm, Johnnie Ballantine's, Dy c Label, Four Horses, Centenário Walker. A vida é letal, disse para consigo. Acaba sempre por matar-nos.
- Digam a Molina que não há problema - balbuciou. - Que sou gente séria. Que estou prestes a rematar uma boa operação.
Dito isto, deitou a mão ao copo e esvaziou o que restava com um único e longo trago. Um cubinho de gelo estalou, sinistro, ao chocar com os seus dentes, recordando-lhe que Frasquito Torres tivera de se meter com outro prestamista para pagar uma prótese de noventa mil duros. O cigano mantinha o braço em volta dos seus ombros.
- Que bem que isso soa - escarnecia o Pollo Muelas. - Rematar.
Júlio Iglesias continuava na dele. Ensaiando passos de dança, Dolores La Negra veio por detrás do balcão, meneando as ancas, a dar-lhes conversa. Molhou um dedo no uísque de Peregil, chupou-~o sugando muito com os lábios, esfregou o ventre no balcão e agitou o conteúdo da camisa com impecável perícia profissional, antes de ficar a olhar para os três homens, decepcionada. Peregil parecia ter visto um fantasma, os fulanos estavam com cara de poucos amigos e, além disso - inquietante indício -, os seus gins tonics continuavam intactos. De modo que Dolores deu meia volta e, sem deixar de mover as ancas ao som da música, abandonou a cena. Ao fim de uma vida inteira de um e outro lado de um balcão, sabia muito bem quando não era hora para graças.
AS VINTE PÉROLAS DO CAPITÃO XALOC
Amei também mulheres mortas.
(Hemrich Heine, Noites Florentinas)
O subcomissário Siméon Navajo, chefe do grupo de investigação do Comissariado Superior de Sevilha, acabou de comer o pedacito de tortilla e fitou Quart com afecto:
- Olhe, pater. Eu não sei se é a igreja, o acaso ou o arcanjo São Gabriel - fez uma pausa, acompanhada de um trago da garrafa de cerveja que tinha em cima da mesa do gabinete -, mas esse sítio é mal assombrado.
Era diminuto, muito fraco, simpático, de mãos inquietas, com óculos redondos de armação de aço e um bigode espesso que parecia brotar-lhe do interior do nariz. Dir-se-ia uma caricatura reduzida de um intelectual dos anos 60, aspecto reforçado pelas calças de ganga, a camisa larga e vermelha, de algodão, e as grandes entradas no cabelo penteado para trás, que usava comprido e apanhado num rabicho. Havia vinte minutos que viam juntos os processos sobre as mortes em Nossa Senhora das Lágrimas e as conclusões policiais coincidiam com os ditâmes forenses: óbitos acidentais. O subcomissário Navajo lamentava não ter à mão um culpado para o poder entregar, algemado, ao agente de Roma. "Foi azar, pater", dizia. "Já sabe como estas coisas acontecem. Um varandim mal aparafusado, um pedaço de estuque que cai, dois infelizes que nunca ganharam a lotaria mas que, nesse dia, vêem sair o seu número. Um ai e o outro zás e são dois anjinhos no céu." Mas ao menos, tratando-se de uma igreja, o subcomissário considerava como ponto assente que teriam ido para o céu.
- O caso de Permeias, o arquitecto municipal, é claro - Navajo movia os dedos pela borda da mesa, imitando a suposta forma de caminhar do defunto. - Andou meia hora a passear pelo telhado da igreja à procura de argumentos para o processo de ruína e acabou por se apoiar num varandim de madeira que está junto do campanário... A madeira estava podre, cedeu, e Permeias caiu para se ir espetar num tubo metálico a meia altura, como um frango assado - o subcomissário parara de passear os dedos e erguia agora a mão como se fosse o tubo, fazendo cair-lhe em cima a palma da outra mão; Quart supôs que a mão representava o tal Permeias no acto de oficiar como frango. - Tudo se passou na presença de testemunhas e a inspecção posterior não pôde provar que tivesse havido manipulações no varandim.
O subcomissário bebeu outro trago da garrafa e limpou o bigode ao dedo onde se tinha espetado o arquitecto Permeias. Depois dirigiu um sorriso voluntarioso ao sacerdote. Tinham-se conhecido havia um par de anos, durante a visita do Papa. Simeón Navajo era a ligação da polícia sevilhana e entenderam-se às mil maravilhas. O enviado de Roma permitira ao subcomissário assumir todos os aspectos espectaculares, incluindo a localização do cura oposto ao celibato que pretendia apunhalar o Santo Padre e o assunto do Semtex escondido no cesto da roupa branca das irmãzinhas do Santíssimo Sacramento. Isto valera a Navajo uma felicitação pessoal do ministro do Interior e outra de Sua Santidade, uma fotografia na primeira página dos jornais e a cruz de mérito policial com distintivo vermelho. Desde então, ninguém mais no Comissariado se atrevera a segui-lo, apodando-o de Miss Magnum por usar rabicho. A Magnum, calibre 357, estava no meio dos papéis, num tabuleiro sobre a mesa. Quase nunca a usava, salvo quando, aos fins-de-semana, ia buscar os filhos a casa da ex-mulher. Assim, dizia, ela tinha-lhe mais respeito. E os miúdos gostavam.
Quart passou os olhos pelo lugar onde se encontrava. Do outro lado de um tabique de vidro via-se a cabeça de um magrebino com um olho roxo. Estava sentado em frente de um robusto polícia em mangas de camisa que movia os lábios com cara de poucos amigos, como num filme mudo. Deste lado do tabique, havia na parede uma fotografia emoldurada do rei, um calendário onde os dias passados estavam riscados com raiva, um arquivador cinzento com um autocolante da Expo 92 e outro com uma folha de mari-juana, um ventilador, fotografias de deliquentes numa placa de cortiça, um alvo com dardos e a parede em volta toda esburacada, e um póster com vários polícias norte-americanos dando uma sova mestra num negro, sob a legenda: Quem muito ama, muito castiga.
- E a respeito do Padre Urbizu? - perguntou Quart.
O comissário coçava a orelha. Pareceu decepcionado quando terminou e olhou para o dedo.
- Mais ou menos o mesmo, pater. Desta vez não houve testemunhas, mas a minha gente inspeccionou a igreja palmo a palmo. Talvez tivesse querido apoiar-se num andaime, ou o tivesse deslocado acidentalmente - pôs-se a baloiçar as mãos como um andaime oscilante, com tanto realismo que ele próprio se deteve, como se aquilo lhe causasse vertigens. - O extremo superior do andaime tocou e fez saltar um grande pedaço de estuque da cornija que fica por cima; possivelmente estava já solto e preso por milagre, se me permite a expressão, pela própria estrutura metálica. Com tão pouca sorte que, quando esta se moveu um pouco, uns bons dez quilos foram cair-lhe em cima da cabeça. Imagino que tenha ouvido um ruído, olhado para cima, e zás!
O relato era acompanhado da mímica correspondente, que o subcomissário concluiu virando a mão para cima sobre a mesa, como se se tratasse do padre Urbizu no momento de ir desta para melhor. Depois ficou a olhar, pensativo, para a sua própria mão agonizante e estendeu a outra para a garrafa.
- Também foi pouca sorte - disse, pensativo, depois de liquidar a cerveja.
Quart, que tinha tirado um par de cartões para tomar notas, segurou a caneta ao alto:
- Mas porque caiu a cornija?
- Depende - Navajo olhava, receoso, para os cartões. Depois pôs-se a sacudir migalhas de tortilla da camisa. - Segundo Newton, porque, como resultado da atracção terrestre e da força centrífuga do movimento de rotação, qualquer objecto abandonado a si mesmo nas proximidades da superfície da Terra adquire uma aceleração vertical, directa, sobre a cabeça dos secretários de arcebispo que se levantam da cama com o pé esquerdo - olhou para Quart como que perguntando "que tal?" - Espero que tenha anotado bem. Para que digam que a polícia não trabalha segundo bases científicas.
Quart percebia a mensagem. Desatou a rir, guardando de novo os cartões e a caneta. O subcomissário observava-o com olhar inocente.
- E na sua opinião?
Navajo encolheu os ombros sob a folgada camisa vermelha. Nada daquilo era importante, nem secreto, mas saltava à vista que desejava manter o carácter oficioso. Uma vez estabelecidos os resultados de morte acidental, Nossa Senhora das Lágrimas continuava a ser assunto exclusivamente eclesiástico. Corriam rumores acerca das pressões especulativas da câmara e dos bancos, e os chefes do subcomissário eram adeptos da ideia de se manterem à margem. Afinal, embora espanhol de origem, sacerdote e velho conhecido do subcomissário, Quart era agente de um Estado estrangeiro.
- Segundo os nossos peritos - respondeu Navajo - a cornija caiu porque o fragmento já estava condenado, como demonstrou um estudo pericial posterior. Detectámos uma bolsa de humidade atrás, na parede, filtrada por umas juntas do telhado durante anos e anos.
- E põem completamente de parte a intervenção humana?
O subcomissário fez cara de troça, mas conteve-se. Ao fim e ao cabo, estava em dívida para com Quart.
- Ouça, pater. Aqui, na polícia, não pomos de parte a cem por cento nem sequer que Judas não tivesse sido assassinado por um dos seus onze colegas; por isso deixemo-lo com uns noventa e cinco. Em todo o caso, é improvável que alguém tivesse dito àquele infeliz: olha, espera aqui um momento, e depois trepasse ao andaime, arrancasse um troço de cornija e o deixasse cair em cima dele, fiuuuuu, enquanto o outro olhava para cima - os dedos do subcomissário tinham trepado o andaime, descido em forma de objecto contundente e estavam agora inertes sobre a mesa à espera do legista. - Isso só acontece nos desenhos animados.
Quando se despediu do subcomissário, Quart tinha a sensação de que Vésperas havia exagerado as coisas. Ou talvez aquela história de que a igreja matava para se defender fosse - em versão livre, singular e simbólica - rigorosamente certa. Outra coisa era quantificar a capacidade de liquidar gente incómoda que podia possuir, intrinsecamente ou com o auxílio do azar ou da Providência, um decrépito edifício com três séculos de antiguidade. Mas, uma vez chegadas a esse ponto, as coisas já não afectavam Quart; nem sequer o IOE. Os aspectos conflituais do sobrenatural corriam por conta de outro tipo de especialistas, mais próximos da confraria sinistra do Cardeal Iszwakiewicz do que do rude centurião encarnado por Monsenhor Spada. Em cujo mundo - que era também o do bom soldado Quart - um mais um eram dois desde que no começo foi o Verbo.
Reflectia sobre isto a caminho da igreja, quando lhe pareceu ouvir passos atrás dele ao penetrar nas estreitas ruelas de Santa Cruz; mas, embora se detivesse por duas vezes, não pudera comprovar nada de suspeito. Continuou, procurando manter-se próximo da exígua sombra que davam os beirais das casas. O sol batia forte em Sevilha e as fachadas brancas e ocres reverberavam como as paredes de um forno, fazendo com que o casaco preto lhe pesasse sobre os ombros como chumbo quente. Se existia deveras outra coisa do outro lado, disse Quart para consigo, os sevilhanos que estivessem em pecado mortal iam sentir-se como em sua própria casa: o inferno já o conheciam vários meses por ano, na terra. Ao chegar à praceta da igreja, deteve-se junto da grade dos gerânios, invejando o canário que, na sua gaiola e à sombra, molhava o bico numa pequena ampola com água. Não corria uma aragem e tudo estava imóvel: as cortinas da janela, as folhas do vasos e das laranjeiras. Velas no Mar dos Sargaços.
Foi um alívio atravessar o umbral de Nossa Senhora das Lágrimas. As paredes albergavam um oásis de sombra fresca, cheirando a cera e humidade: exactamente o que Quart necessitava com urgência. De modo que se deteve para recobrar fôlego junto da porta, ainda deslumbrado pela claridade exterior. Havia ali uma pequena escultura de Jesus Nazareno; um atormentado Cristo barroco depois de passar pelo terceiro grau do pátio do Pretório: "quantos sois, onde guardas o ouro e os denários dos teus seguidores, que história é essa de te dizeres Filho do Pai, adivinha quem te entregou". Tinha as mãos atadas por uma corda e grossas gotas de sangue a escorrer-lhe da testa coroada de espinhos, que erguia para o alto, esperando que alguém estendesse a mão e o tirasse dali, valendo-se do habeas corpus. Ao contrário da maior parte dos seus pares, Quart nunca havia sentido a certeza do parentesco divino do homem cuja imagem tinha na sua frente; nem sequer no seminário, durante o que chamava os seus anos de amestramento, quando os professores de Teologia desmontavam e voltavam a montar, minuciosamente, os mecanismos da fé na mente dos jovens destinados ao sacerdócio. "Abba, Abba, porque me abandonaste?", constituía a pergunta crítica que era preciso evitar a todo o custo. Para ele, que chegara ao seminário com a pergunta feita e convencido da ausência de resposta, a formatação da disquete teológica foi como chover no molhado; mas era um jovem prudente e soubera guardar silêncio. Durante os anos de aprendizagem, o importante para Quart fora a descoberta de uma disciplina; normas para ordenar a sua vida, dominando a certeza do vazio experimentado no dique frente ao mar, durante a tormenta. De igual modo poderia ter entrado no exército, numa seita ou, como troçava monsenhor Spada - na realidade, não troçava de todo -, numa ordem medieval de monges soldados. Ao órfão do pescador perdido num naufrágio bastavam o seu próprio orgulho, a sua autodisciplina e um regulamento.
Contemplou de novo a imagem. Em todo o caso, aquele Nazareno tinha-os no seu lugar. Ninguém podia envergonhar-se de arvorar a sua cruz como bandeira. Sentia muitas vezes saudade daquele outro tipo de fé, ou tão-somente da fé pura e simples; quando homens negros de pó sob uma cota de malha gritavam o nome de Deus e entravam em combate, impelidos pela esperança de abrir caminho a cutiladas, em direcção ao Céu e à vida eterna. Viver e morrer era mais simples; o mundo era muito mais singelo há uns quantos séculos atrás.
Benzeu-se mecanicamente. Em torno do Cristo, protegido por uma urna de cristal, pendia meia centena de poeirentos ex votos'. mãos, pernas, olhos, corpos de criança de latão e cera, tranças de cabelo, cartas, cintas de papel, notas e placas agradecendo uma cura, um remédio. Até uma velha medalha militar da guerra de África atada com as flores secas de um ramo de noiva. Como todas as vezes que tropeçava em semelhantes mostras de devoção, Quart perguntou a si mesmo quantas angústias, noites em claro junto do leito de um enfermo, orações, histórias de dor, esperança, morte e vida, havia em cada um daqueles objectos que, ao contrário de outros párocos mais em consonância com os tempos, Don Príamo Ferro conservava junto do Jesus Nazareno da sua pequena igreja. Era a religião de outrora, a de sempre, a do sacerdote de sotaina e latim, intermediário imprescindível entre o homem e os grandes mistérios. A igreja da consolação e da fé, quando as catedrais, os vitrais góticos, os retábulos barrocos, as imagens e as pinturas que mostravam a glória de Deus cumpriam a missão desempenhada agora pelos écrans dos televisores: tranquilizar o homem diante do horror da sua própria solidão, da morte e do vazio.
- Olá - disse Gris Marsala.
Deslizara até ele pela estrutura de tubos de um andaime e fitava-o agora, expectante, com as mãos nos bolsos traseiros de umas calças de ganga. Vestia a mesma roupa manchada de gesso da vez anterior.
- Não me disse que era freira - censurou-a Quart.
A mulher conteve um sorriso, tocando no cabelo encanecido. Continuava a usá-lo preso numa curta trança.
- É verdade. Não disse - os olhos claros e amistosos estudaram-no de alto abaixo, como querendo confirmar alguma coisa. - Julguei que um sacerdote seria capaz de farejar essas coisas sem a ajuda de ninguém.
- Sou um sacerdote muito lerdo.
Houve um curto silêncio. Gris Marsala sorria:
- Pois não é o que dizem de si.
- Seja. Quem o diz?
- Já sabe: arcebispos, párocos enfurecidos - o sotaque norte-americano tornava-se mais intenso. - Mulheres bonitas que o convidam para jantar.
Quart desatou a rir.
- É impossível que saiba disso.
- Porquê? Existe um invento chamado telefone. Uma pessoa levanta o auscultador e fala. Macarena Bruner é minha amiga.
- Estranha amizade. Uma freira e a mulher de um banqueiro que escandaliza Sevilha...
Gris Marsala olhou-o com dureza:
- Isso tem muito pouca graça.
Tinha-se virado, o rosto tenso, e ele moveu a cabeça, conciliador, com a certeza de ter ido demasiado longe. Mais do que puro interesse táctico, sentia a injustiça da sua própria reflexão. Não julgueis e não sereis julgados.
- Tem razão. Desculpe.
Apartou a vista. Incomodado, preocupado com o deslize, tentava esclarecer os motivos da sua própria impertinência. Os reflexos de mel e o colar de marfim sobre a pele de Macarena Bruner rondavam, inquietantes, a sua memória. Enfrentou, de novo, Gris Marsala. Já não parecia furiosa, mas contristada:
- Não a conhece como eu.
- Evidentemente.
Quart assentiu devagar, em jeito de desculpa, e deu uns passos em busca de tréguas. Avançou, assim, pela nave adentro de modo a observar, uma vez mais, os andaimes contra as paredes, a maior parte dos bancos corridos e postos a um canto, a pintura do tecto, enegrecida entre círculos de humidade. Ao fundo, junto do retábulo na penumbra, brilhava a lamparina do Santíssimo.
- Que tem você a ver com isto?
- Já lhe disse: trabalho aqui. Sou arquitecta-restauradora de verdade. Diplomada. Universidades de Los Angeles e Sevilha.
Os passos de Quart ressoavam na nave. Gris Marsala caminhou a seu lado, silenciosa nas suas sapatilhas de ténis. Entre as manchas de humidade e fumo que enegreciam a abóbada, espreitavam restos de pinturas: as asas de um anjo, a barba de um profeta.
- Perderam-se para sempre - disse a mulher. - É já impossível restaurá-las.
Quart contemplava a greta que rachava a testa de um querubim como uma machadada.
- É verdade que a igreja está a cair?
Gris Marsala fez um gesto de fadiga. Parecia ter ouvido demasiadas vezes esta pergunta.
- É o que dizem no Município, no banco e no Arcebispado para justificar o derrube - ergueu a mão, abarcando a nave com o gesto. - O edifício está mal e não foi cuidado nos últimos cento e cinquenta anos, mas a sua estrutura continua sólida. Nem nas paredes nem na abóbada existem gretas irreversíveis.
- Mas o Padre Urbizu - objectou Quart - apanhou com um pedaço de tecto em cima.
- Sim. Foi ali, está a ver? - a mulher apontava para uma falha de quase um metro de longitude na cornija que circundava a nave, a dez metros de altura. - Aquele fragmento de estuque dourado que falta sobre o púlpito. Um caso de pouca sorte.
- O segundo caso de pouca sorte.
- O arquitecto municipal caiu do telhado por culpa dele. Ninguém lhe disse que podia subir lá acima.
Tratando-se de uma freira, o tom de Gris Marsala era pouco piedoso quando se referia aos defuntos. "Andavam a pedi-las", parecia ser a mensagem implícita. Quart reprimiu um esgar sarcástico, perguntando a si mesmo se também ela obtinha do padre Ferro absolvições absolutas. Poucas vezes encontrava rebanhos tão fiéis ao seu pastor.
- Imagine - Quart olhava para os andaimes, desconfiado - que não tem nada que ver com esta igreja e que eu lhe digo: ora muito bons dias, faça-me o relatório técnico.
A resposta veio imediata, sem a menor hesitação:
- Velha e descuidada, mas não em ruínas. Quase todos os danos se encontram no revestimento, devido à humidade filtrada através do mau estado do telhado. Mas já o resolvemos reparando com cal, cimento e areia; quase dez toneladas de material erguidas a quinze metros de altura, com estas mãos - Gris Marsala agitava-as diante de Quart: sujas de cal, fortes, com as unhas curtas, partidas, incrustadas de gesso e pintura - e as do padre Oscar. Na sua idade, Don Príamo já não está para andar em cima dos telhados.
- E o resto do edifício?
A freira encolheu os ombros:
- Pode aguentar-se, se conseguirmos terminar as obras essenciais. Uma vez eliminadas as goteiras, seria conveniente consolidar as vigas de madeira, que nalguns sítios estão podres em consequência de ataques de térmitas devido à humidade. O ideal seria substituí-las, mas não temos orçamento para isso - fez o gesto de contar dinheiro com o polegar e o indicador e concluiu-o com um suspiro de desalento. - Isto quanto ao edifício. Relativamente à ornamentação, é uma questão de restaurar pouco a pouco as partes mais estragadas. Para os vitrais, por exemplo, encontrámos um recurso. Um amigo químico que trabalha numa oficina artesanal comprometeu-se a fabricar gratuitamente peças de cor que substituirão as que se perderam. O processo é lento, porque, à parte o fabrico, temos de restaurar os chumbos. Mas não há pressa.
- Não há mesmo?
- Não, se conseguirmos ganhar esta batalha. Quart fitou-a com interesse:
- Parece uma questão pessoal.
- E uma questão pessoal - admitiu ela com simplicidade. - Fiquei cá para isso. Vim a Sevilha para tentar resolver alguns problemas e neste lugar encontrei a solução.
- Problemas profissionais?
- Sim. Uma crise, suponho. Acontece de vez em quando. Já teve a sua?
Quart negou com a cabeça, cortês, o pensamento noutra coisa. "Tenho de pedir a Roma a sua ficha", anotava mentalmente. "Quanto antes."
- Falávamos de si, Irmã Marsala.
Os olhos claros semicerraram-se entre as rugas que cercavam as pálpebras da mulher. Ninguém teria podido afirmar que aquilo era exactamente um sorriso:
- É sempre tão reservado ou trata-se de uma pose?... Trate-me por Gris, claro. O outro termo parece ridículo: olhe para o meu aspecto. Mas estava a dizer-lhe que vim aqui para pôr ordem no meu coração e na minha cabeça e encontrei a resposta nesta igreja.
- Que resposta?
- A que todos procuramos. Uma causa, certamente. Algo em que acreditar e por que lutar - ficou calada um instante, depois acrescentou, um pouco mais baixo. - Uma fé.
- A do padre Ferro.
Ficou a olhá-lo outra vez, em silêncio. A trança grisalha estava meio desfeita e ela segurou-a entre os dedos e voltou a entrançar o cabelo sem tirar os olhos de Quart.
- Cada um de nós tem o seu próprio tipo de fé - disse por fim. - Uma coisa muito necessária neste século que agoniza com tão maus modos, não lhe parece?... Todas as revoluções foram feitas e se perderam. As barricadas estão desertas e os heróis solidários transformaram-se em solitários que se agarram ao que podem para sobreviver - os olhos claros observaram-no, inquisitivos. - Nunca se sentiu como um desses peões de xadrez comidos, esquecido a um canto do tabuleiro e ouvindo apagar-se nas suas costas o rumor da batalha, ao mesmo tempo que tenta manter-se erguido, perguntando a si mesmo se continua de pé um rei a quem continuar servindo?
Percorreram a igreja. Gris Marsala mostrou a Quart a única pintura que valia a pena: uma Puríssima atribuída, sem muita convicção, a Murillo, que presidia à entrada da sacristia do lado da nave, junto do confessionário. Foram depois até à cripta, fechada com uma tranca de ferro sobre degraus de mármore que se perdiam nas trevas, e a mulher explicou que igrejas pequenas como aquela não costumavam tê-la. Nossa Senhora das Lágrimas gozava, porém, de um privilégio especial. Catorze duques do Nuevo Extremo jaziam ali, incluindo os falecidos antes da construção da igreja. A partir de 1865, a cripta caíra em desuso e os enterros tinham passado a efectuar-se no panteão familiar de São Fernando. A única excepção havia sido Carlota Bruner.
- Como disse?
Quart tinha apoiado a mão no arco de entrada da cripta, ornado de uma caveira sobre duas tíbias. O frio da pedra gelava-lhe o sangue no pulso.
Gris Marsala voltou-se, surpreendida com o tom incrédulo do sacerdote.
- Carlota Bruner - repetiu, ainda confusa. - Tia-avó de Macarena. Morreu no início do século e foi enterrada nesta cripta.
- Podemos ver o túmulo?
Havia na voz de Quart uma ansiedade mal dissimulada. A mulher continuava a observá-lo, indecisa.
- Claro.
Foi à sacristia buscar um molho de chaves e, depois de correr o ferrolho da tranca, fez girar um antiquado interruptor de porcelana.
Uma lâmpada de fraca potência, coberta de pó, iluminou os degraus. Quart curvou a cabeça e, após uma curta descida, deu consigo num pequeno recinto quadrado, com as paredes cobertas de lápides mortuárias dispostas a três níveis. As paredes de ladrilho tinham grandes círculos brancos e negros de humidade, e pairava no ar um cheiro a mofo e falta de ventilação. Uma das paredes ostentava, talhado em mármore, um escudo heráldico com a divisa: Oderint dum probent. Que me odeiem, contanto que me respeitem, traduziu para si. Presidia-o uma cruz negra.
- Catorze duques - repetiu, a seu lado, Gris Marsala. Falava em voz involuntariamente baixa, como se o lugar a coibisse. Quart observou as inscrições nas lápides. A mais antiga tinha as datas 1472-1551: Rodrigo Bruner de Lebrija, conquistador e soldado cristão, primeiro duque do Nuevo Extremo. A mais recente encontrava-se junto da porta, entre dois nichos vazios, e era a única que ostentava um nome de mulher naquele recinto reservado a descobridores, políticos e guerreiros:
CARLOTA VICTORIA AMÉLIA BRUNER DE LEBRIJA Y MONCADA
1872-1910 REPOUSA NA PAZ DO SENHOR
Quart passou os dedos sobre o relevo do nome esculpido no mármore. A sua certeza era absoluta: tinha no bolso um postal escrito um século atrás por aquela mulher, dez ou doze anos antes da sua morte. De forma que, como ao introduzir um cartão codificado no lugar oportuno, personagens e factos dispersos começavam a situar-se em relação uns com os outros. E ao centro, como uma encruzilhada comum, aquela igreja.
- Quem era o capitão Xaloc?
Gris Marsala observava os dedos de Quart, imóveis sobre o nome Carlota. Parecia um pouco desconcertada:
- Manuel Xaloc foi um marinheiro sevilhano que emigrou para a América na última década do século passado. Andou a piratear pelas Antilhas antes de desaparecer no mar, durante a guerra hispano-norte-americana de 1898.
Aqui rezo por ti todos os dias, releu mentalmente Quart. E espero o teu regresso.
- Qual foi a sua relação com Carlota Bruner?
- Ela enlouqueceu por causa dele. Ou da sua ausência.
- Que me diz?
- E como está a ouvir - continuava intrigada com o interesse de Quart. - Ou julga que isso só acontecia nos romances?... Foi uma dessas histórias de folhetim romântico, cuja única originalidade é a ausência de final feliz: uma aristocrata muito jovem que enfrenta os pais e um jovem marinheiro que emigra em busca de fortuna. A aristocracia andaluza faz dela maluca, bloqueio familiar, cartas que não chegam. E uma mulher consome-se à janela, com o coração em cada vela de barco que vai e vem no Guadal-quivir... - agora foi Gris Marsala quem tocou na lápide, logo retirando a mão. - Não aguentou e endoideceu.
No lugar sagrado do teu juramento e minha felicidade, concluía, para si mesmo, Quart. De súbito, desejava estar fora dali, à luz de um sol que apagasse as palavras, os juramentos e os fantasmas que viera remexer naquela cripta.
- Voltaram a encontrar-se?
- Sim. Em 1898, pouco antes de estalar a guerra de Cuba. Mas ela não o reconheceu. Já não estava capaz de reconhecer ninguém.
- E ele, o que fez?
Os olhos claros da mulher pareciam contemplar um mar calmo, grisalho como o nome dela.
- Voltou para Havana, mesmo a tempo de intervir na guerra. Mas antes deixou aqui o dote que trazia para ela. As vinte pérolas que brilham na Virgem das Lágrimas são as que Manuel Xaloc reuniu para o colar que Carlota devia usar no dia do seu casamento - olhou a lápide pela última vez. - Ela sempre quis casar-se nesta igreja.
Saíram da cripta. Gris Marsala fechou a tranca de ferro e depois acendeu a luz do altar-mor para poder ver melhor a imagem da Virgem das Lágrimas. Tinha ao peito um coração trespassado por sete punhais e as vinte pérolas do capitão Xaloc brilhavam no seu rosto, na coroa de estrelas e sobre o azul do manto.
- Há uma coisa que não compreendo - comentou Quart, pensando na ausência de carimbos no bilhete postal. - Falou-me há pouco de cartas que não chegavam. E, contudo, ao longo desses anos de separação, Manuel Xaloc e Carlota Bruner devem ter mantido correspondência... Que aconteceu?
Gris Marsala sorria, triste e distante. Recordar aquela história não parecia tê-la feito feliz:
- Disse-me Macarena que vão jantar juntos esta noite. Pode perguntar-lhe. Ninguém melhor do que ela conhece a tragédia de Carlota Bruner.
Apagou a luz e o retábulo voltou a povoar-se de sombras.
Depois de Gris Marsala voltar ao seu andaime, Quart saiu pela sacristia. Mas, em vez de ir para a rua, demorou-se ali um pouco, dando uma vista de olhos. Numa das paredes estava pendurada uma tela muito escura e danificada: uma Anunciação de autor anónimo. Havia também uma maltratada escultura de São José com o Menino, um Crucifixo, dois castiçais de latão ameigados, uma enorme cómoda em acaju e um armário. Permaneceu parado no centro da sala, olhando em redor, depois abriu ao acaso algumas gavetas da cómoda. Encontrou missais, objectos litúrgicos e paramentos. O armário continha um par de cálices, uma custódia, uma antiga píxide de latão dourado, meia dúzia de casulas e uma velhíssima capa pluvial bordada a fio de ouro. Quart fechou sem tocar em nada. Aquela paróquia estava longe de ser próspera.
A sacristia tinha duas portas de acesso: uma para a igreja, através da capelinha do confessionário por onde Quart entrara; a outra dava para a rua, para a praça, através de um estreito vestíbulo que servia também de entrada para a casa do pároco. Quart observou a escada com grade de ferro que subia até ao patamar, iluminado por uma clarabóia, e deteve-se a olhar para o relógio. Sabia que Don Príamo Ferro e o padre Oscar se encontravam, nesse momento, numa dependência do Arcebispado, convocados pelo vigário da sua zona para uma reunião burocrática oportunamente sugerida pelo próprio Quart. Dispunha, se tudo corresse bem, de mais meia hora.
Subiu vagarosamente a escada, cujos degraus de madeira rangiam. A porta do patamar estava fechada, mas ultrapassar este género de inconvenientes também fazia parte do seu trabalho. No que se refere a fechaduras, a mais difícil no historial de Quart havia sido a combinação alfanumérica na casa de certo bispo dublinense, cuja chave tivera de obter na própria porta, à luz de uma lanterna Maglite e com a ajuda de um scanner ligado ao seu computador portátil. Depois daquilo, o bispo, um tipo loiro de nome Mulcahy, fora chamado de urgência a Roma, onde a sua plácida vermelhidão cedera a uma palidez mortal quando monsenhor Spada lhe mostrara, com cara de poucos amigos, a cópia fotográfica de toda a correspondência mantida pelo prelado com os activistas do Exército Republicano Irlandês: cartas que tinha cometido a imprudência de conservar, ordenadas por datas, atrás dos tomos da Summa Teológica alinhados na sua biblioteca. O caso teve a virtude de inspirar prudência ao fervor nacionalista de monsenhor Mulcahy e de convencer os grupos especiais do SÃS britânico da inutilidade de proceder à sua drástica eliminação física. Projecto previsto, segundo a informação obtida por confidentes do IOE - 10 000 libras esterlinas dos fundos secretos da Secretaria de Estado - para uma próxima visita do prelado dublinense ao seu colega o bispo de Londonderry. Operação que, por seu lado, os ingleses pensavam, astutamente, atribuir aos paramilitares unionistas do Ulster.
A fechadura de Don Príamo não levantava tantas dificuldades. Era um modelo antigo, convencional. Após um breve exame, Quart extraiu da carteira uma delgada folha de aço, um pouco mais estreita que uma lima de unhas, e introduziu-a socorrendo-se de uma pequena chave Allen escolhida num molho que trazia no bolso. Moveu suavemente, sem forçar, até sentir nos dedos o leve clique de cada um dos dentes ao ceder. Fê-la, então, girar, correu o ferrolho e a porta franqueou-lhe a passagem.
Percorreu o corredor, estudando o local. Era uma casa humilde, com dois quartos, cozinha, casa de banho e uma pequena sala de estar. Quart começou por esta última, mas não encontrou nada de interesse, salvo uma fotografia numa das gavetas do aparador. Era uma polarotd de má qualidade. Tinha sido tirada num pátio andaluz; o chão era de mosaico e viam-se vasos com flores e plantas e uma fonte de mármore com azulejos. Don Príamo Ferro estava ali, com a sua inevitável sotaina negra até aos pés, sentado junto de uma mesa baixa com o que parecia um pequeno-almoço ou uma merenda. Acompanhavam-no duas mulheres: uma velha, vestida com roupas claras, estivais e um pouco fora de moda. A outra era Macarena Bruner e os três sorriam para a câmara. Quart via o padre Ferro sorrir pela primeira vez e pareceu-lhe uma pessoa diferente da que conhecera na igreja e no gabinete do arcebispo. A sua expressão era agora terna e triste, rejuvenescendo as feições marcadas por cicatrizes, suavizando a dureza dos olhos negros e o obstinado queixo, sempre a precisar de uma boa navalha de barbear. Parecia outro homem, mais inocente. Mais humano.
Quart guardou a fotografia no bolso antes de fechar as gavetas. Depois foi até à máquina de escrever portátil que havia em cima de uma mesinha, levantou a tampa e passou os olhos pelos papéis. Por reflexo profissional, colocou uma folha no carreto e premiu várias teclas para obter uma amostra dos tipos, no caso de alguma vez vir a precisar de identificar alguma coisa escrita ali. Meteu a folha dobrada no mesmo bolso que a fotografia. Quanto aos livros do aparador, somavam uma vintena; deu-lhes também uma vista de olhos, abrindo alguns e verificando se ocultavam alguma coisa atrás. Eram sobre assuntos religiosos, tomos manuseados com a liturgia das horas, uma edição do Catecismo de 1992, dois volumes de citações latinas, o Dicionário de História Eclesiástica de Espanha, a História da Filosofia de Urdanoz e a História dos Heterodoxos Espanhóis de Menéndez y Pelayo em três tomos. Não eram o tipo de livros que Quart esperava e surpreendeu-o encontrar também vários títulos sobre astronomia que folheou com curiosidade, sem neles encontrar nada de significativo. O resto não tinha interesse, salvo, talvez, um romance que encontrou: uma velhíssima e deteriorada edição brochada de O Advogado do Diabo - Quart achava Morris West detestável, com os seus atormentados curas best seller - com um parágrafo marcado a esferográfica na página 29:
"... Há muito que andamos afastados do nosso dever de pastores. Perdemos o contacto com as pessoas que nos mantém em contacto com Deus. Reduzimos a fé a um conceito intelectual, a um árido assentimento da vontade, porque não a vimos actuar nas vidas da gente comum. Perdemos a compaixão e o temor reverente. Trabalhamos em conformidade com cânones, não de acordo com a caridade."
Deixou o romance no sítio e verificou o telefone. Tratava-se de uma ligação fixa, antiga. Nada onde pudesse ligar uma linha de computador. Saiu da sala, deixando a porta tal como a tinha encontrado, aberta num ângulo de quarenta e cinco graus, e seguiu pelo corredor até ao quarto que identificou como sendo do padre Ferro. Cheirava a fechado e a solidão clerical. Era um quarto singelo, janela para a praça, mobilado com uma cama de metal sob um crucifixo na parede e um armário com espelho. Na mesa-de-cabeceira encontrou um livro de orações, umas pantufas muito velhas e um bacio de porcelana que lhe arrancou um sorriso. Havia no armário um fato escuro, outra sotaina em não melhor estado que a de todos os dias, algumas camisas e roupa interior. Poucos mais objectos pessoais encontrou, salvo uma moldura de madeira com uma fotografia amarelada onde um par, homem e mulher, de aspecto rural e fato domingueiro, posavam junto de um sacerdote no qual, apesar do cabelo negro e da grave juventude das feições, Quart não teve dificuldade em reconhecer o pároco de Nossa Senhora das Lágrimas. A fotografia era muito velha e tinha uma mancha a um canto. Tirada havia pelo menos quarenta anos, calculou, baseando-se no aspecto do padre Ferro: o queixo e os olhos mostravam todo o seu vigor. E o olhar orgulhoso e solene do homem e da mulher, nos ombros dos quais apoiava as mãos o jovem clérigo, permitia supor que o instantâneo celebrava uma recente ordenação.
O outro quarto era, sem dúvida, o de Oscar Lobato. Havia na parede uma litografia de Jerusalém vista do Jardim das Oliveiras e um cartaz do filme Easy Rider com Peter Fonda e Dennis Hopper montados em enormes motocicletas. Quart viu também uma raquete de ténis e sapatilhas de desporto a um canto. A mesa-de-cabeceira e o armário não continham nada de interesse, de modo que centrou a sua pesquisa na mesa encostada à parede, junto da janela. Encontrou papéis diversos, livros sobre Teologia e História da Igreja, a Moral de Royo Marín, a Patrologia de Altaner e os cinco tomos do Mysterium Salutis, o grosso ensaio Clérigos de Eugen Drewermann, um jogo de xadrez electrónico, um guia turístico da cidade do Vaticano, uma caixinha de comprimidos anti-histamínicos e um velho tomo de aventuras de Tintim: O Ceptro de Otokar. E, numa gaveta, prémio da paciência de Quart, vinte páginas sobre São João da Cruz impressas em letra Courier New de computador, e cinco caixas de plástico com uma dúzia de disquetes de 3,5" cada uma.
Podia ser Vésperas e podia não ser. De uma ou outra forma, por um lado era pouco, por outro, muito. Escasso como prova e excessivo como material para comprovar no terreno, concluiu Quart, aborrecido, enquanto examinava o conteúdo das caixas. Passar tudo aquilo em revista exigia tempo e oportunidade, e nenhuma das duas lhe sobrava. Teria de arranjar maneira de voltar e copiar cada uma daquelas disquetes para o disco rígido do seu computador portátil, a fim de as rever mais tarde, com vagar, em busca de indícios. Obter cópias podia levar uma boa hora, mais a dificuldade de afastar de novo os sacerdotes durante o tempo necessário.
O calor infiltrava-se pelas cortinas, fazendo Quart transpirar sob o leve casaco de alpaca negra. Tirou um lenço de papel para enxugar a testa e, depois de o usar, fez uma bolinha e guardou-o no bolso. Pôs as disquetes no sítio e fechou a gaveta, perguntando a si próprio onde estaria o equipamento informático que o padre Oscar utilizava com aquilo. Fosse quem fosse o pirata, precisava de um computador muito potente, ligado a uma linha telefónica de fácil acesso, além do equipamento complementar. Tudo isto requeria condições mínimas de instalação e espaço, que não havia naquela casa. Oscar Lobato ou qualquer outro, o certo é que não era ali que Vésperas actuava.
Quart olhou em redor, indeciso. Eram horas de partir. E, nesse momento, justamente quando afastava o punho esquerdo da camisa para consultar o relógio, ouviu ranger os degraus da escada. Soube então que os problemas estavam para começar.
Celestino Peregil desligou o auscultador e ficou a olhar para o telefone, pensativo. De um bar próximo da igreja, Don Ibrahim acabava de lhe transmitir a última informação acerca dos movimentos de cada um dos personagens da história. O ex-falso letrado e seus sequazes estavam a assumir a missão muito ao pé da letra. Demasiado, na opinião de Peregil, um pouco farto de receber chamadas de meia em meia hora, para ser posto ao corrente do facto de este cura ter comprado jornais no quiosque de Curro e aquele estar sentado no bar Laredo a apanhar fresco. Até ao momento, a única informação realmente valiosa dava conta de uma entrevista mantida por Macarena Bruner com o enviado de Roma no Hotel Dona Maria, pormenor que Peregil acolhera primeiro com incredulidade e depois com uma espécie de satisfação expectante. Aquele género de coisas acabava sempre por dar confusão.
E, a propósito de confusão, nas últimas vinte e quatro horas o tapete verde andava a complicar-lhe um pouco mais a vida. Depois de adiantar cem mil pesetas a Don Ibrahim e seus compadres por conta dos três milhões prometidos pelo trabalho, o assistente de Pencho Gavira caíra na tentação de se servir dos dois milhões e novecentas mil restantes para endireitar a sua crítica situação financeira. Fora um impulso, um desses sentimentos que surgem inesperadamente, com a intuição - perigosa - de que os dias não são todos iguais, e aquele era diferente dos outros. Havia também um certo fatalismo mouro no sangue andaluz do indivíduo. A sorte não passa duas vezes pela mesma porta, se ninguém lhe deita a mão; era esse o único conselho que lhe dera o seu pai quando era pequenito, exactamente um dia antes de descer para comprar tabaco e fugir com a charcuteira da esquina. De forma que, apesar da certeza de caminhar à beira do abismo, Peregil depressa compreendeu, enquanto tomava aperitivos ao balcão de um bar, que se não obedecia ao impulso, a angústia pelo que podia ter sido e não fora ia durar-lhe toda a vida. Porque o peão de brega do homem forte do Banco Cartujano podia ser muitas coisas: um canalha, um calvo envergonhado, um burlão capaz de vender a sua velha mãe ao seu chefe ou à mulher do seu chefe, em troca de um cartão de bingo; mas só de imaginar o ruído de uma bolinha a girar em sentido contrário à roleta, ficava com um coração de tigre. As coisas são como são. De modo que, nessa mesma noite, Peregil vestira uma camisa lavada e uma gravata de crisântemos vermelhos e roxos, e fora para o casino como quem embarca rumo a Tróia. Estivera prestes a consegui-lo e isso dizia muito a favor da sua intuição como habitual do pano verde. Mas não pudera ser. E, como disse Séneca, o que não podia ser, não podia ser, e além disso era impossível. Os dois milhões e novecentas mil - também não fora Séneca quem o dissera - seguiram o caminho dos outros três pacotes. De maneira que Celestino Peregil estava tão teso como um bacalhau e os fantasmas do cigano Mairena e do Pollo Muelas espreitavam-no como a sua má sombra.
Levantou-se e ensaiou uns passos inquietos no estreito cubículo, invadido por fotocopiadoras e papéis, que ocupava dois pisos abaixo do seu chefe, com vista para o Arenal e o Guadalquivir. Via dali a Torre del Oro, a ponte de San Telmo e os pares de noivos a passear junto ao rio, entre as mesas das esplanadas. Embora estivesse em mangas de camisa e com o ar condicionado ligado, um incómodo calorzinho oprimia-lhe a respiração, de modo que foi até à garrafa, deitou gelo no copo e bebeu três dedos de uísque sem respirar. Perguntou a si próprio, da maneira como estavam as coisas, quanto podia durar aquele panorama.
Uma tentação rondava-lhe a cabeça. Nada, ainda, de bem definido, mas que assim, à primeira vista, oferecia alguma possibilidade de conseguir algum alívio sob a forma de liquidez. Era brincar outra vez com o fogo, mas o certo é que não ia tendo muito por onde escolher. Tudo dependia do facto de Pencho Gavira nunca vir a saber que o seu esbirro e guarda-costas jogava com dois baralhos. Filtrada de forma discreta, aquela história podia continuar a dar dinheiro. Afinal, o cura alto era muito mais fotogénico que Curro Maestral.
Ruminando, sem pressas, a ideia, Peregil aproximou-se da mesa à procura da agenda, onde o seu dedo indicador se deteve sobre o número de telefone que já algumas vezes tinha marcado. Passado um momento, fechou a agenda de repente, como se lutasse com maus pensamentos. "És um rato dos esgotos", censurou-se com equanimidade insólita num indivíduo com semelhante índole. Mas não era a sua índole moral que atormentava o antigo detective, demasiado inquieto com o estado cataléptico das suas finanças pessoais. Aquela perturbação provinha de uma incómoda certeza: se se abusa deles, há remédios que matam. Mas também as dívidas, sobretudo as contraídas junto do prestamista mais perigoso de Sevilha. Por isso, depois de lhe dar muitas voltas, abriu outra vez a agenda, e de novo procurou o número de telefone da revista Q + S. Para a frente é que é o caminho. Alguém tinha dito uma vez que trair era apenas uma questão de datas, mas no mundo de Peregil podia ser apenas de horas. Além disso, atraiçoar era um verbo demasiado solene. Ele limitava-se a sobreviver.
- Que faz aqui?
No Arcebispado não tinham sido capazes de reter o padre Oscar o tempo necessário. Estava no corredor, impedindo a passagem e com cara de muito poucos amigos. Quart dedicou-lhe um sorriso frio, que mal dissimulava o seu desconcerto e aborrecimento:
- Estava a dar uma vista de olhos.
- É o que parece.
Oscar Lobato movia afirmativamente a cabeça uma e outra vez, como se respondesse às suas próprias perguntas. Vestia um pólo negro, calças cinzentas e sapatos desportivos. Na realidade, não era um jovem forte. Tinha a pele pálida, embora se visse agora avermelhada pelo esforço de subir a correr. Era bastante mais baixo que Quart, e o seu aspecto - vinte e seis anos, segundo o dossier - aparentava mais tempo dedicado ao estudo e à vida sedentária do que ao exercício físico. Mas via-se que estava furioso e Quart nunca subestimava as reacções de um homem neste estado. Furiosos estavam também os seus olhos: o olhar esgazeado por detrás das lentes dos óculos, sobre os quais caía uma madeixa desgrenhada de cabelo loiro. E tinha os punhos cerrados.
Não havia palavras que resolvessem aquilo, de forma que Quart ergueu a mão pedindo calma e fez um gesto a solicitar passagem, enquanto se punha um pouco de lado como se pretendesse sair pelo estreito corredor. O padre Oscar, então, moveu-se para a esquerda, cortando-lhe a passagem, e o enviado de Roma soube que o incidente estava a chegar mais longe do que imaginara.
- Não seja estúpido - disse, soltando o botão do casaco. Ainda não tinha terminado de falar quando chegou o golpe. Foi
um murro às cegas, raivoso, absolutamente desprovido de mansidão sacerdotal, que Quart esperava e deixou perder-se no vazio com um precipitado passo atrás.
- Isso é absurdo - protestou.
Era verdade. Nada daquilo merecia a pena. Quart levantou agora ambas as mãos para aplacar os ânimos; mas a ira extravasava-se do rosto e dos olhos do seu adversário, que lançou um segundo murro. Desta vez deu-lhe no maxilar, de raspão. Era um soco com a direita, sem força, assestado quase ao acaso, mas suficiente para conseguir que Quart se sentisse, por fim, irritado. O vigário devia julgar que as pessoas, na vida real, brigavam como no cinema. Quart tão-pouco era especialista em andar a bater-se nos corredores, mas no exercício do seu ministério tinha assimilado um certo número de habilidades heterodoxas. Nada de espectacular: apenas meia dúzia de truques para se livrar de situações difíceis. De modo que, não sem alguma ternura por aquele jovem de rosto corado e pouco fôlego, fez como se se apoiasse na parede e deu-lhe um pontapé na virilha.
O padre Oscar deteve-se, bruscamente, a surpresa espantada no rosto, e Quart, sabendo que se passariam cinco segundos até que o pontapé produzisse todo o seu efeito, deu-lhe um murro atrás da orelha, não muito forte, apenas para evitar qualquer reacção de última hora. Um instante depois, o vigário estava ajoelhado no chão, com a cabeça e o ombro direito contra a parede. Olhava fixamente para os óculos, que tinham caído e estavam no chão, intactos.
- Sinto muito - disse Quart, esfregando os nós dos dedos, doridos.
Era verdade. Sentia-se realmente, envergonhado por não ter sido capaz de evitar aquele disparate. Dois sacerdotes a brigar como moços de lavoura era algo completamente injustificável; e a juventude do adversário acentuava ainda mais o seu embaraço.
O padre Oscar estava congestionado e imóvel, respirando com dificuldade o ar que faltava aos seus pulmões. Os olhos míopes, humilhados, continuavam a olhar, sem ver, os óculos sobre os ladrilhos do solo. Quart curvou-se para os apanhar e meteu-lhos na mão. Depois, passou-lhe o braço sob o ombro, ajudando-o a levantar-se. Foram assim até à pequena sala de estar, onde o vigário, ainda dobrado de dor, se deixou cair numa poltrona de pele sintética, em cima de um monte de exemplares da revista Vida Nueva, que caíram no chão ou ficaram amarrotados debaixo das suas pernas. Quart foi à cozinha e trouxe um copo de água, que o jovem bebeu com avidez. Tinha posto os óculos, e uma das lentes estava embaciada por uma enorme dedada. O cabelo loiro colava-se-lhe à testa com gotas de suor.
- Sinto muito - repetiu Quart.
Com os olhos postos num ponto indeterminado, o vigário assentiu debilmente. Depois ergueu a mão para afastar o cabelo da testa e deixou-a ficar, como se tentasse aliviar a cabeça. Os óculos que lhe escorregavam até à ponta do nariz, o pólo aberto no pescoço, a palidez do seu rosto davam-lhe um aspecto tão inofensivo que inspirava piedade. Devia andar sujeito a uma grande tensão, para perder o controlo daquele modo. Quart encostou-se na borda da mesa.
- Cumpro uma missão - disse, no tom mais suave que conseguiu encontrar. - Não há nisto nada de pessoal.
O outro assentia de novo, evitando fitá-lo.
- Creio que perdi a cabeça - murmurou, finalmente, com voz sumida.
- Perdemos os dois - Quart esboçou um sorriso amistoso, destinado ao maltratado amor próprio do jovem. - Mas desejo que uma coisa fique clara entre nós: não vim aqui para aborrecer ninguém. Tudo o que quero é compreender.
Ainda com olhar esquivo e a mão na testa, o padre Oscar perguntou-lhe que raio pretendia compreender revistando uma casa sem ser convidado. E Quart, sabendo que era a sua última oportunidade de se aproximar dele, adoptou um tom de discreta camaradagem, citou o carácter da obediência devida, mencionou o pirata informático e a mensagem recebida em Roma, deu uns passos pela sala, olhou pela janela e, por fim, deteve-se diante do jovem sacerdote.
- Há quem pense - o seu tom era de confidência incrédula; qualquer coisa como "aqui entre nós, é uma ideia tonta" - que Vésperas é você.
- Não diga tolices.
- Não são tolices. O perfil físico, pelo menos, corresponde: idade, estudos, interesses.... - encostou-se de novo na beira da mesa, com as mãos nos bolsos. - Como anda de informática?
- Como toda a gente.
- E as caixas de disquetes?
O vigário pestanejou duas vezes:
- Isso é privado. Você não tem o direito.
- Com certeza - Quart erguia as mãos com as palmas viradas para cima, conciliador, para mostrar que não escondia nada nelas. - Mas diga-me uma coisa. Onde está o computador?
- Não creio que isso tenha importância.
- Pois engana-se. Tem importância, sim.
A expressão do padre Oscar ganhara firmeza; já não parecia um jovenzinho humilhado.
- Ouça - endireitava as costas no assento e os seus olhos aguentavam o olhar de Quart. - Aqui trava-se uma guerra e eu escolhi a minha facção. Don Príamo é um homem bom e honrado, e os outros não. É o que tenho a dizer-lhe.
- Quem são os outros?
- Toda a gente. Desde os do banco até ao arcebispo - sorria, agora, pela primeira vez. Um trejeito esquinado, rancoroso. - Incluo os que o mandam de Roma.
Quart pouco se importava com aquilo, pois não era dos que se comovem com insultos feitos à bandeira. Supondo que Roma fosse a sua bandeira.
- Bom - respondeu, objectivo. - Atribuamos isso à sua juventude. Na sua idade o sentido dramático da vida é mais agudo. E torna-se fácil deixar-se deslumbrar com as causas perdidas e as ideias.
O vigário fitou-o com desprezo.
- Foram as ideias que fizeram de mim um sacerdote - parecia perguntar a si mesmo quais seriam as de Quart. - E, quanto a causas perdidas, Nossa Senhora das Lágrimas ainda não está perdida.
- Pois se alguém vencer nisto, não será você. A sua transferência para Almería...
O jovem ergueu-se um pouco mais, heróico:
- Cada um paga o preço da sua dignidade e da sua consciência. Talvez seja esse o meu.
- Bonita frase - ironizou Quart. - Por outras palavras: atira pela janela fora uma brilhante carreira... Merece verdadeiramente a pena?
- De que serve ao homem ganhar tudo, se perde a sua alma? - o vigário olhava o seu interlocutor com agudeza, como se o argumento fosse esmagador. - Não me diga que esqueceu essa citação.
Quart reprimiu a sua vontade de rir diante dos óculos embaciados do outro.
- Não vejo a relação - disse - entre a sua alma e esta igreja.
- Há muitas coisas que não vê. Igrejas mais necessárias que outras, por exemplo. Talvez pelo que encerram, ou simbolizam. Há igrejas que são trincheiras.
Quart sorria intimamente. Recordava o padre Ferro utilizando idêntica expressão, durante a entrevista no gabinete de monsenhor Corvo.
- Trincheiras - repetiu.
- Sim.
- Conte-me de que pretendem defender-se.
O padre Oscar levantou-se, dorido, sem tirar os olhos dele, e deu uns passos com dificuldade em direcção à janela. Ali, correu as cortinas, deixando entrar o ar e a luz.
- Defender-nos da Santa Madre Igreja - disse, por fim, sem se voltar. - Tão católica, apostólica e romana que acabou por atraiçoar a sua mensagem original. Com a Reforma perdeu metade da Europa e no século XVIII excomungou a Razão. Cem anos mais tarde perdeu os trabalhadores, que compreenderam que estava do lado dos patrões e dos opressores. Neste século que termina está a perder a juventude e as mulheres. Sabe o que restará de tudo isto?... Ratazanas correndo entre bancadas vazias.
Ficou calado uns instantes, imóvel. Quart ouvia-o respirar.
- Defendermo-nos sobretudo - prosseguiu o vigário - do que você cá vem trazer: a submissão e o silêncio - olhava agora as laranjeiras da praça, com ar obstinado. - Compreendi, no seminário, que todo o sistema se baseia nas formas; num jogo de ambições e claudicações. No nosso ofício, ninguém se aproxima de ninguém que não seja útil para a nossa promoção. Elegemos, desde bem jovens, um professor, um amigo, um bispo que nos ajudem a prosperar - Quart escutou o seu riso baixo, entredentes; já não havia nada de juvenil no aspecto do padre Oscar. - Eu julgava que um sacerdote apenas executava quatro tipos de vénias diante do altar, até que conheci especialistas em todo o tipo de vénias. Eu próprio era um deles, destinado à impossibilidade de dar às pessoas o sinal que nos exigem, sem o qual caem nas mãos de quiromantes, astrólogos e bufarinheiros do espírito. Mas, ao conhecer Don Príamo, compreendi o que é a fé: algo de independente, inclusivamente, do facto de Deus existir. A fé é o salto às cegas para os braços de alguém que neles nos acolhe... E a consolação perante o medo e a dor incompreensíveis. A confiança da criança na mão que a tira das trevas.
- E contou-o a muita gente?
- Claro. A todos os que querem ouvir-me.
- Pois parece-me que vai ter problemas.
- Já os tenho, como sabe melhor do que ninguém. Mas não o lamento. Ainda não fiz vinte e sete anos e suponho que poderia começar qualquer ofício, noutro lugar. Mas vou ficar e vou lutar onde me mandarem... - dirigiu a Quart uma careta comprida e desagradável, muito insolente. - E sabe uma coisa?... Descobri a minha vocação de cura incómodo.
Com a cabeça enterrada no apoio de couro negro da poltrona, Pencho Gavira contemplava o monitor do seu computador. A mensagem estava ali, infiltrada no arquivo do correio interno:
Despojaram-no das suas vestes e lançaram sortes sobre a sua túnica, mas não puderam destruir o templo de Deus. Porque a pedra que rejeitaram os construtores tornou-se a pedra angular. Ela guarda a memória dos que foram arrancados da nossa mão.
De passagem, para se divertir um pouco, o intruso tinha introduzido um vírus inofensivo, uma incómoda bolinha de pingue-pongue que saltava nos quatro cantos do monitor, multiplicando-se por duas até que, ao encontrarem-se, rebentavam com um efeito de cogumelo nuclear e toda a sequência recomeçava uma vez mais. Gavira não se preocupava muito, pois podia limpá-lo facilmente; o gabinete de informática do banco trabalhava nisso, verificando à passagem a eventual existência de outros vírus ocultos, com efeitos muito mais destrutivos. O inquietante era a facilidade com que o agressor - um empregado do banco ou um hacker brincalhão - tinha inoculado a sua bolinha saltitona e a estranha referência evangélica, que por certo tinha que ver com a operação de Nossa Senhora das Lágrimas.
Em busca de consolo, o vice-presidente do Cartujano tirou os olhos do computador para contemplar o quadro pendurado na parede principal do gabinete. Era um valiosíssimo Klaus Paten, adquirido havia pouco mais de um mês com o conjunto de valores e imóveis do Banco de Poniente. O velho Machuca era pouco amante da arte moderna - gostava era de Munoz Degrain, For-tuny e coisas assim -, de modo que Gavira auto-adjudicara-o como espólio de guerra. Noutros tempos, os generais adornavam-se com as bandeiras capturadas ao inimigo e o Klaus Paten era mais ou menos isso: o estandarte do exército derrotado, uma superfície azul-cobalto de 2,20 x 1,80 com um traço vermelho e outro amarelo cruzando-a na diagonal, intitulada Obsessão nº 5, sob a qual reunira durante os últimos trinta anos o conselho de administração do banco recentemente absorvido pelo Cartujano. O referido conselho encontrava-se, nesse momento, disperso, cativo e desarmado; e o Poniente, a única entidade financeira que fizera sombra ao Cartujano na Andaluzia, apagado do mapa para todo o sempre, após uma quebra técnica de que Gavira fora o impiedoso obreiro. O Poniente, uma instituição de tipo familiar com clientela de pequenos investidores rurais, carecia do toque imprescindível para distinguir entre o que permite ganhar dinheiro e evitar perdê-lo: uma coisa necessária nos tempos que corriam. De modo que, mediante uma série de ataques e infiltrações na política do seu competidor, Gavira empurrara-o para um terreno minado: a tentativa de lançar uma superconta única, insuportável para a sua estrutura financeira, com o resultado da contaminação do passivo e a fuga da sua clientela tradicional. Depois daquilo, o Poniente desfizera-se e lá estava Gavira, com o seu mais rasgado sorriso e de braços abertos, disposto a dar uma mão ao colega em apuros. A mão fora directamente para a jugular, com uma campanha de perseguição e derrube camuflada sob avales, empréstimos e boas intenções, que tinham degenerado numa selvagem limpeza étnica de carácter quase balcânico. No final, o Banco de Poniente não passava de um nome e uns quantos imóveis onde até os cinzeiros dos corredores estavam empenhados; a absorção fora inevitável, e o presidente da instituição familiar tivera de escolher entre dar um tiro em si próprio ou aceitar um pequeno cargo honorífico no conselho de administração do Cartujano. Optara pela segunda, e tudo isto dava o carácter de símbolo incontestável à presença do Klaus Paten diante da mesa de Pencho Gavira, no andar nobre do edifício do Arenal. Era um despojo glorioso. Um trofeu para o vencedor.
Vencedor. Gavira modulou a palavra quase em voz alta, mas uma ruga de preocupação marcava-lhe o sobrolho quando voltou a olhar para o monitor do computador, cheio de bolinhas a saltar em todas as direcções, precisamente no momento em que duas delas chocavam, desencadeando a deflagração nuclear. Bum! De novo outra bolinha solitária iniciou o ciclo. Exasperado, Gavira deu uma volta de cento e oitenta graus na poltrona, virando-se para a enorme janela que se abria sobre a foz do Guadalquivir. No seu mundo, no campo de batalha do morres ou matas por onde caminhava em busca de fortuna, era necessário o mesmo movimento contínuo da filha da mãe daquela bolinha. Parar era sucumbir, como o turbarão ferido que se torna vulnerável ao ataque de outros esqualos. O velho Machuca, com a sua calma habitual e aquela obscura retranca sob as pálpebras semicerradas por onde espiava a vida, dissera-lhe uma vez: "É como andar de bicicleta: se paras de pedalar, cais." Pencho Gavira, por sua própria natureza, estava destinado a pedalar sem descanso, imaginando novos caminhos, atacando sem tréguas inimigos reais ou moinhos de vento fabricados ex professo. Cada revés salvava-o com uma fuga para diante; cada vitória incluía em si mesma um novo combate. E, deste modo, o vice-presidente do Banco Cartujano ia construindo a complicada teia-de-aranha da sua ambição. Algo cujo objectivo último conheceria quando chegasse até ele, se é que alguma vez chegaria.
Premiu as teclas do computador para sair do correio interno e, depois de marcar o seu código secreto, penetrou no arquivo privado a que só ele tinha acesso. Ali, a salvo de intrusos, estava um relatório confidencial que podia metê-lo em apuros: o trabalho de uma agência privada de informação económica, realizado por conta de um grupo de conselheiros que se opunham a que Gavira sucedesse a Octavio Machuca na presidência do Cartujano. Aquele relatório era uma arma letal e os conspiradores propunham-se tirá-lo da manga na reunião prevista para a próxima semana; mas ignoravam que, mediante o pagamento de uma quantia considerável, Gavira conseguira ficar com uma cópia: S & B Confidencial.
Resumo investigação interna B.C. assunto P.T. e outros.
- Em meados do passado ano observou-se um incremento anormal dos activos do Banco, e consequentemente das dívidas interbancárias apreciadas nos meses anteriores. A vice-presidência (Fulgência Gavira está também investido de todas as faculdades, salvo as indelegáveis) afirmou que estes incrementos se produzem principalmente para financiamentos a Puerto Targa e aos seus accionistas, mas que se tratava de operações pontuais e transitórias prestes a regularizar-se com a venda iminente da sociedade Puerto Targa a um grupo estrangeiro (Sun Qafer Alley, com capital saudita), o que produziria uma importante mais-valia para os accionistas e uma elevada comissão para o Cartujano. A venda conseguiu a necessária autorização da Junta de Andaluzia e do Conselho de Ministros.
- Puerto Targa é uma sociedade, com um capital social original de 5.000.000 de pesetas, cujo objecto é a criação, numa zona protegida próxima da reserva ecológica do Parque Donana, de um campo de golfe e uma urbanização de chalés de luxo com porto desportivo. As dificuldades administrativas para a construção em zona protegida foram recente e inesperadamente ultrapassadas pela Junta de Andaluzia, que até há pouco se opunha frontalmente ao projecto. 78% das acções da sociedade foram comprados pelo Banco a instâncias da vice-presidência (Gavira), depois de uma ampliação que elevou o seu capital até 9000 milhões de pesetas. Os restantes 22% ficaram nas mãos de particulares, e existem suspeitas fundadas de que a sociedade H. P. Sunrise, radicada em São Bartolomeu (Antilhas Francesas), que ficou com um importante pacote, poderia estar relacionada com o próprio Fulgência Gavira.
- O tempo passou-se sem que a venda de Puerto Targa tenha ainda sido formalizada. Entretanto, porém, os riscos foram aumentando. A vice-presidência, por seu lado, continua a afirmar que este incremento observado é motivado em parte por liquidações de interesses, desconto de papel e puro financiamento, mas que a venda de acções se realizará de forma iminente, operando a importante diminuição de riscos esperada, A investigação, porém, demonstrou que o aumento dos riscos observados se devia a parcelas deliberadamente ocultadas, perfazendo a quantia de 20 028 milhões de pesetas, de que apenas 7020 correspondiam à operação Puerto Targa, Ainda assim, a vice-presidência continua a afirmar que a materialização da compra por parte da San Qafer Alley das acções de Puerto Targa normalizará a situação.
- Depois de proceder à necessária investigação, foi possível deduzir que Puerto Targa é uma sociedade que, após uma complicada operação de engenharia financeira com base em sociedades radicadas em Gibraltar, tem sido, desde a origem e na actualidade, financiada quase inteiramente pelo Banco Cartujano, aspecto este que permaneceu oculto da maior parte dos membros do Conselho de Administração. Poderia dizer-se que foi criada praticamente para, em primeiro lugar, registar um lucro fictício no anterior balanço do Banco Cartujano fazendo figurar como proventos os 7020 milhões da compra da sociedade, que na realidade o Banco pagou a si próprio autovendendo-se Puerto Targa através das empresas fantasma de Gibraltar. E o segundo objectivo era, com as mais-valias produzidas aquando da sua ulterior venda à Sun Qafer Alley, sanear o balanço do Banco. Quer dizer: tapar o "buraco" de mais de 10 000 milhões produzido no Banco Cartujano pela gestão da actual vice-presidência e lastro derivado de anteriores gestões.
- A venda, que segundo a actual vice-presidência, triplicaria o valor actual da sociedade, não se realizou ainda, tendo sido apresentada como nova data meados ou finais do presente mês de Maio. É possível que, como afirma a vice-presidência, a operação Porto Targas normalize a situação interna. Mas, de momento, o que se pode verificar é que a ocultação sistemática da verdadeira situação prova, até agora, uma clara "maquilhagem" das contas de resultados do Banco Cartujano. Significa isto que, durante o último ano, se tem vindo a ocultar ao Conselho de Administração a situação de riscos e a ausência de resultados positivos, assim como inúmeros erros de gestão e irregularidades, embora, em justiça, nem tudo seja imputável à actual gestão da vice-presidência.
- Como argúcias desse ocultamento, podem apontar-se: procura frenética de novos e dispendiosos recursos, contabilidade falsa com transgressão das normas bancárias, e um risco qualificável como temerário que, sem a materialização da esperada venda de Puerto Targa a Sun Qafer Alley (anunciada em cerca de 180 milhões de dólares), pode produzir um descalabro de. consequências gravíssimas para o Banco Carttujano, assim como um escândalo público que abalaria consideravelmente o seu prestígio social junto dos seus pequenos accionistas de carácter conservador.
- Quanto às irregularidades directamente imputáveis à actual vice-presidência, a investigação detectou uma ausência geral de sentido da austeridade, com importantes quantias pagas a profissionais e particulares sem a devida justificação documental (incluindo pessoas e instituições públicas, com casos que podem definir-se directamente como subornos), assim como a intervenção da actual vice-presidência em negócios com clientes e a possível, embora não provada, recepção de determinados benefícios e comissões.
- De acordo com tudo o que foi exposto, e à parte as irregularidades de gestão detectadas, torna-se evidente que o fracasso da operação Puerto Targa colocaria o Banco Cartujano em graves dificuldades. Torna-se também preocupante o possível efeito negativo que o conhecimento das operações realizadas por esta vice-presidência em torno da igreja de Nossa Senhora das Lágrimas e o conjunto da operação Puerto Targa poderia exercer na opinião pública e na clientela tradicional do banco, classe média de carácter conservador e muitas vezes católica.
Em traços gerais, estava tudo certo. Nos últimos exercícios, Gavira tivera de fazer autênticos malabarismos para apresentar como aceitável a sua gestão aos olhos de um banco que caíra nas suas mãos vinculado a uma política económica conservadora e medíocre. Puerto Targa e outras operações similares eram recursos para ganhar tempo, enquanto consolidava a sua posição à frente do Cartujano. Era como subir uma escada utilizando os degraus que iam ficando para trás, colocando-os à frente; mas, até ao golpe definitivo que consolidasse a situação, era a única táctica possível. Precisava de margem de manobra e de crédito, e a operação de Nossa Senhora das Lágrimas, isca para os Sauditas que iam comprar Puerto Targa, tornava-se imprescindível: ia converter a zona norte de Santa Cruz numa jóia para o turismo de elite. A documentação do projecto - um pequeno e ultra-selecto hotel de luxo com todos os serviços adequados e a quinhentos metros da antiga mesquita de Sevilha, capricho pessoal de Kemal Ibn Saud, irmão do rei da Arábia Saudita e principal accionista de Sun Qafer Alley - estava protegida com um código no disco rígido do seu computador, junto com o relatório sobre a sua gestão e mais alguns segredos de Gavira, com cópias em disquetes e CD no cofre-forte situado mesmo por baixo do Klaus Paten. Estava em jogo muita coisa para que as manobras de quatro conselheiros atirassem tudo pela borda fora.
Passou de novo os olhos pelo monitor, franzindo o sobrolho. Preocupava-o a presença do intruso informático e da sua bolinha saltitona. Se fosse um hacker, era pouco provável que tivesse decifrado o código de segurança que dava acesso ao arquivo confidencial, embora fosse possível. No entanto, esse tipo de gente costumava deixar marcas da sua passagem, de modo que teria metido a bolinha dentro do arquivo e não fora. Este pensamento infundiu nele um calor espantoso; não era agradável ter um intruso a passear pelas imediações desse género de informação. Como o velho Machuca costumava afirmar, mais valia um "se por acaso..." do que "quem havia de dizer!", de modo que teclou para apagar o arquivo.
Depois pôs-se a contemplar a corrente verde-acinzentada do Guadalquivir e a Calle Betis, elevando-se na outra margem. O sol fazia reverberar o rio e o seu esplendor envolvia a silhueta compacta da Torre del Oro. No mundo de Pencho Gavira, era legítimo aspirar a que tudo aquilo acabasse por pertencer-lhe; que o reflexo de metal brunido deslizasse todas as manhãs exclusivamente para ele, para o seu rosto e para a parede onde estava suspenso o Klaus Paten, iluminando o seu triunfo e a sua glória. Acendeu um cigarro e deixou seguir o fumo pelo largo traço de luz dourada que, vinda de baixo, através da janela, incidia como um foco sobre a parte principal do cenário. Depois abriu a gaveta da mesa e, pela enésima vez, tirou a revista onde a sua mulher saía do Afonso XIII com o toureiro. Com a mão sobre as imagens, sentiu de novo um afã mórbido e obscuro; aquele mal-estar fascinante, perverso, que experimentava ao passar as páginas para reconhecer as fotografias sobejamente conhecidas. Os seus olhos foram da capa ao retrato de Macarena que tinha em cima da mesa, numa moldura de prata: ela em primeiro plano, com uma blusa branca que lhe deixava um ombro nu. Era uma fotografia que ele próprio havia tirado, quando julgava possuí-la sempre e não apenas quando faziam amor. Antes que viesse a crise, com a igreja pelo meio e o filho que Macarena quisera ter fora de tempo. Antes que ela começasse a acariciar-lhe o sexo com o desinteresse de quem lê um aborrecido texto em braille.
Remexeu-se, inquieto, no cadeirão de couro. Seis meses. Recordou a sua mulher nua à luz do néon, sentada na borda da banheira enquanto ele tomava banho, alheia ao facto de terem feito amor pela última vez. Fitando-o como jamais o fizera, como se estivesse diante de um perfeito desconhecido. Erguera-se rapidamente e, quando Gavira viera para o quarto, escorrendo água sob o roupão, ela estava vestida, a fazer a mala. Não pronunciara uma palavra, nem uma acusação. Apenas tivera para ele um olhar silencioso, obscuro, antes de caminhar para a porta sem lhe dar tempo para opor um argumento ou um gesto. Seis meses até ao dia de hoje. E não consentira em voltar a vê-lo. Nunca.
Devolveu a revista amarrotada à gaveta, ao mesmo tempo que apagava, irritado, o cigarro no cinzeiro, até que viu extinguir-se a última brasa; como se encontrasse alívio naquele gesto de violência em pequena escala. Oxalá, disse para consigo, pudesse fazer o mesmo com o pároco, com a freira com pinta de lésbica e com todos aqueles curas saídos dos confessionários, e das catacumbas, e do passado mais obsoleto e mais negro, para virem amargurar-lhe a vida. E também com aquela Sevilha orgulhosa, roída pela traça, miserável, disposta a recordar-lhe a sua condição de adventício, mal a filha da duquesa do Nuevo Extremo lhe tinha virado as costas. Um ímpeto de cólera fez-lhe estremecer o queixo, e com as costas da mão virou o retrato de mulher. Por Deus, pelo diabo ou por quem fosse responsável por aquilo, iam todos pagar muito caras a vergonha e a incerteza por que estavam a fazê-lo passar. Primeiro haviam-lhe roubado a mulher e agora queriam roubar-lhe a igreja e o futuro.
- Vou varrê-los - quase cuspiu em voz alta. - A todos.
Pronunciou estas palavras ao mesmo tempo que desligava o computador, enquanto o rectângulo luminoso do monitor diminuía até desaparecer por completo. Estava disposto a fazer cumprir o aspecto formal da sentença. Uns quantos curas fora de circulação - um correctivo, uma anca partida - era coisa que não ia causar grandes remorsos a Pencho Gavira. E, se lhe fizessem perder a paciência, nem sequer os teria. De modo que, quando estendeu o braço para levantar o auscultador do telefone interno, estava convencido de que havia que fazer alguma coisa a esse respeito.
- Peregil - disse ao auscultador -, a tua gente é segura?
"Completamente", foi a resposta do esbirro. Gavira olhou então para a moldura virada para baixo sobre a mesa e esboçou aquele esgar carniceiro que, no mundo bancário andaluz, lhe tinha valido a alcunha de O Tubarão do Arenal. Era o momento de passar à acção, disse para consigo. E de uma coisa estava certo: ia partir a espinha àqueles desmancha-prazeres de sotaina.
- Pois chega-lhes - ordenou. - Pega fogo à igreja, ou o que quiseres. Faz-lhes chegar o calor às barbas.
A GRAVATA DE LORENZO QUART
Em si estão todas as mulheres do mundo.
(Joseph Conrad, A Flecha de Ouro)
Lorenzo Quart só tinha uma gravata. Era de seda azul-marinho, comprada numa camisaria da Via Condotti, que ficava a cento e cinquenta passos da sua casa. Utilizara sempre o mesmo género: um corte tradicional, um pouco mais estreito que o habitual. Usava-a pouco, sempre com fatos muito escuros e camisas brancas e, quando estava estragada ou com nódoas, comprava outra idêntica para a substituir. Isto acontecia apenas umas duas vezes por ano, pois o que usava mais frequentemente eram as camisas negras de colarinho romano, que ele próprio engomava com uma precisão de militar veterano, disposto a sofrer inesperadas revistas de uniforme por parte de superiores obcecados pelo regulamento. Todos os actos da vida de Quart se articulavam em torno de um suposto regulamento. A sua estrita observância datava desde que tinha memória; muito antes de, deitado de bruços com os braços em cruz e a cara contra as lousas frias do solo, ter sido ordenado sacerdote.
Quart assumira a disciplina da Igreja como uma norma eficaz para ordenar a sua vida. Em contrapartida, obtivera segurança, futuro e
uma causa para exercer o seu talento; mas, ao contrário de outros companheiros, nem então nem mais tarde, já ordenado, vendera a sua alma a um protector ou amigo poderoso. Cria - e era talvez essa a sua única ingenuidade - que observar as regras bastava para assegurar o respeito dos outros. E o certo era que não haviam faltado superiores impressionados com a disciplina e a inteligência do jovem sacerdote. Isto impulsionara a sua carreira: seis anos de seminário e dois de faculdade a estudar filosofia, história da Igreja e teologia, e uma bolsa em Roma para se doutorar em Direito Canónico, o sistema legal interno da Igreja. Ali, os professores da Universidade Gregoriana haviam proposto o seu nome para a Academia Pontifícia para Eclesiásticos e Nobres, onde Quart cursara Diplomacia e Relações entre Igreja e Estado. Depois, a Secretaria de Estado pusera-o à prova num par de nunciaturas europeias, até que monsenhor Spada o recrutara formalmente para o Instituto para as Obras Exteriores, acabava ele de perfazer os vinte e nove anos. Quart dirigira-se então a Enzo Rinaldi e pagara cento e quinze mil liras pela sua primeira gravata.
Tinham-se passado dez anos e continuava a ter problemas com o nó. Não que ignorasse como se faz uma cruz: uma volta da direita para a esquerda e outra de cima para baixo. Porém, imóvel diante do espelho da casa de banho, olhava para o colarinho branco da camisa e a seda azul-marinho que tinha entre os dedos com uma certeza de extrema vulnerabilidade. Prescindir do colarinho romano e da camisa negra num jantar com Macarena Bruner afigurava-se-lhe perigoso, como um cavaleiro templário que renunciasse à cota de malha ao parlamentar com os Mamelucos sob as muralhas de Tiro. A ideia arrancou-lhe um sorriso inquieto, ao mesmo tempo que olhava para o relógio no pulso esquerdo. Tinha tempo à risca para se vestir e caminhar até ao restaurante combinado, que, com a ajuda do mapa, localizou na Praça de Santa Cruz, a poucos passos da antiga muralha árabe. Isto conferia más conotações àquele templário.
Lorenzo Quart era pontual como qualquer uma das máquinas suíças de cabelo rapado e uniforme multicolor que montavam guarda ao Vaticano. Calculava sempre as horas, dividindo-as em espaços precisos como se tivesse uma agenda mental. Isto permitia-Lhe aproveitar ao máximo todas as fracções de tempo disponíveis. Tinha o suficiente para se ocupar da gravata, de modo que se forçou a dar o nó tranquilamente, ajustando-o com cuidado. Gostava de se movimentar devagar, porque o autocontrole era o seu orgulho; e a memória das suas relações com o resto do mundo consistia num contínuo estado de tensão para evitar um gesto precipitado, uma palavra fora do lugar, um demasiado cedo ou demasiado tarde, um movimento impaciente que rompesse a serenidade da regra. A regra contava sempre acima de tudo. Graças a ela, mesmo quando transgredia outros códigos que não o seu - acto que monsenhor Spada, com comprovado talento para o eufemismo, denominava "mover-se na margem externa da legalidade" -, as formas morais ficavam a salvo. E, no seu caso, não era exacto o velho dito da Cúria: Tutti i prett sono falsi. Que todos os curas fossem ou não farsantes não o aquecia nem o arrefecia. Lorenzo Quart era um tranquilo e honrado templário.
Talvez por isso, ao fim de um instante a contemplar a sua imagem ao espelho, Quart desapertou a gravata e tirou-a. Em seguida, fez o mesmo com a camisa branca, atirando-a para o banquinho da casa de banho. De torso nu, foi ao armário e tirou da gaveta uma camisa preta de clérigo, com colarinho redondo, e vestiu-a no lugar da outra. Ao abotoá-la, os seus dedos roçaram a cicatriz que tinha sob a clavícula esquerda, marca da operação sofrida quando um soldado norte-americano lhe partira o ombro à coronhada durante a invasão do Panamá. Era a sua única cicatriz profissional; a vermelha insígnia do valor ou palma do martírio, como ironizava monsenhor Spada. E, embora o caso impressionasse muitíssimo Sua Eminência Ilustríssima e os pusilânimes farejadores de currículos da Cúria, ele teria preferido que o energúmeno provido de capacete, espingarda M-16 e identificativo J. Kowalski sobre o colete à prova de bala - "outro polaco", precisaria depois, ácido, monsenhor Spada -, levasse mais a sério o passaporte diplomático vaticano, quando foi exibido diante dele na Nunciatura, no dia em que Quart negociara a rendição do general Noriega.
À parte a coronhada, o caso do Panamá havia sido uma operação impecável, agora considerada no IOE como um modelo clássico de diplomacia em tempo de crise. A poucas horas da invasão norte-americana e da entrada de Noriega na legação diplomática do Vaticano, Quart aterrara ali de urgência, depois de um arriscado voo a partir da Costa Rica. A sua missão oficial consistia em auxiliar o núncio, mas na realidade ia controlar as negociações e informar directamente o IOE, relevando desta tarefa monsenhor Héctor Bonino, um ítalo-argentino que não pertencia à carreira diplomática e que não tinha a confiança plena da Secretaria de Estado quando se tratava de resolver questões heterodoxas. E o quadro era, de facto, singular: os soldados norte-americanos, entre redes de arame e cavalos-de-frisa, tinham instalado um potente equipamento de megafonia que atroava os ares, durante vinte e quatro horas, com música hard rock a toda a potência, destinada a pôr à prova a capacidade psicológica do núncio e dos seus refugiados. No edifício, alojados em gabinetes e corredores, vegetavam um nicaraguense, chefe da contra-inteligência de Noriega, cinco etarvas bascos, um assessor económico cubano que ameaçava suicidar-se o tempo todo, se não o devolvessem a Havana são e salvo, um agente do Cesid espanhol que entrava e saía como se estivesse em sua própria casa, para jogar xadrez com o núncio e informar Madrid, três narcotraficantes colombianos, e o próprio general Noriega, aliás Carapina, com aquela cara devastada por crateras lunares posta a preço pelos norte-americanos. Em troca de asilo, monsenhor Bonino exigia que os seus convidados assistissem à missa diária e era comovente vê-los desejar fraternalmente a paz uns aos outros, os etarvas ao nicaraguense e este ao do Cesid, com Noriega todo litanias e mesuras sob o sobrolho franzido do núncio, enquanto, na rua, Bruce Springsteen martelava Born in the USA. Na noite crítica do assalto, quando comandos Delta de nariz pintado de negro tentaram assaltar a Nunciatura, Quart mantivera-se em contacto telefónico com os arcebispos de Nova Iorque e Chicago até conseguir que o presidente Bush desautorizasse o assalto. Por fim, Carapina entregara-se sem demasiadas condições, o nicaraguense e os etarvas foram transferidos discretamente para fora do Panamá e os narcos esfumaram-se, reaparecendo mais tarde em Medellín. Só o cubano, que foi o último a sair, teve problemas, quando os marines detectaram a sua presença na bagageira de um velho Chevrolet Impala alugado por Quart, onde o agente do Cesid espanhol o tirava da Nunciatura por amor à arte, jogando nisso a sua carreira. O acordo negociado para a sua saída era secreto e por isso mesmo o soldado Kowalski não estava ao corrente. Tão-pouco o seu ofício era para subtilezas diplomáticas, de modo que a tentativa de mediação de Quart terminara com um ombro partido, apesar do cabeção clerical e do passaporte pontifício. Quanto ao cubano, um tipo nervoso chamado Girón, passara um mês numa cadeia de Miami. E não só não cumprira a sua promessa de se suicidar como, ao sair, obtivera asilo político nos Estados Unidos graças a uma entrevista concedida ao Reader's Digest sob o título: Também Eu Fui Enganado por Castro.
Havia um desconhecido sentado no vestíbulo, e pôs-se de pé quando Quart saiu do elevador. Devia rondar os quarenta anos e era largo de cintura, e com o cabelo ralo, cheio de laca, escasseando-lhe no alto da cabeça.
- Chamo-me Bonafé - apresentou-se - Honorato Bonafé.
Quart disse para consigo que poucos nomes faziam tão descarado contraste com o aspecto do seu proprietário. Honorabilidade e boa-fé eram os últimos conceitos associáveis àquela papada prematura que parecia um prolongamento das faces, e as pálpebras inchadas em volta de uns olhos pequenos e astutos, que miravam o seu interlocutor como perguntando-se quanto poderia obter pelo seu fato e os seus sapatos, se conseguisse ficar com eles para os vender em segunda mão.
- Podemos falar um momento?
Era um sujeito desagradável, mas o seu sorriso era-o ainda mais: um esgar fixo, obsequioso e acanalhado a um tempo, semelhante ao de um clérigo da velha escola que tentasse ganhar as boas graças de um bispo. Teria ficado bem àquele indivíduo, pensou Quart, a indumentária talar em vez do amarrotado fato bege e da bolsa de couro que trazia presa ao pulso esquerdo por uma correia. Um pulso de mão pequena, gorducha e fofa, dessas que, ao apertar, apenas oferecem as pontas dos dedos.
Quart deteve-se, reservado, disposto a escutar, olhando, acima da cabeça do visitante, o relógio de parede, que marcava quinze Minutos para o encontro com Macarena Bruner. O outro seguiu a direcção do seu olhar, voltou a dizer que era só um momento e depois tirou a mão do bolso e ergueu-a, quase até a apoiar no ombro do sacerdote. Quart olhou para aquela mão que desaconselhava o contacto. O tal Bonafé deteve o gesto a meio, no ar, ao mesmo tempo que desenrolava uma confusa apresentação de intenções, num tom de cumplicidade que ainda mais acentuou o desagrado de Quart. Mas foi o homem da revista Q + S que disparou os seus alarmes profissionais:
- Resumindo, padre, estou à sua disposição para o que entender.
Quart franzia o sobrolho, receoso e desconcertado. Maldito fosse se o tipo não acabava de lhe piscar o olho!
- Agradeço. Mas não estou a ver a relação...
- Não está a ver - Bonafé moveu a cabeça como se partilhasse uma piada engenhosa. - E, contudo, é muito claro, não é verdade?... O que faz em Sevilha.
Palavra de honra! Era só o que faltava: um indivíduo de semelhante catadura imiscuído no que Roma pretendia que fosse um trabalho discretíssimo, com pezinhos de lã. Uma vez contido o seu mal-estar, Quart perguntou a si próprio como eram possíveis tantas infiltrações por toda a parte.
- Não sei o que quer dizer.
O seu interlocutor fitava-o com mal dissimulada insolência:
- Não sabe mesmo?
Era suficiente, de modo que Quart olhou para o relógio.
- Desculpe. Tenho um encontro.
Andou pelo vestíbulo até à rua, sem se despedir. Mas o outro caminhou a seu lado.
- Permite-me que o acompanhe?... Entretanto, poderíamos conversar.
- Não tenho nada a dizer.
Deixou as chaves na recepção e saiu à rua com o jornalista no seu encalço. Havia restos de claridade no céu, recortando a silhueta escura da Giralda. Na praça Virgem dos Reis acendiam-se, nesse momento, as luzes.
- Creio que não está a entender-me - insistiu Bonafé, tirando um exemplar da Q + S que trazia, dobrado, no bolso. - Trabalho para esta revista - fez uma pausa, oferecendo-a a Quart; vendo, porém, que não mostrava interesse, voltou a guardá-la. - Peço-lhe apenas uma pequena conversa amistosa: conte-me duas ou três coisas e eu serei um bom rapaz. Asseguro-lhe que sairíamos ambos beneficiados desta cooperação.
Naqueles lábios rosados, a palavra cooperação adquiria conotações obscenas. Quart fez um esforço por conter a sua repugnância:
- Peço-lhe que não insista.
- Vá lá - a grosseria despontava sob o tom amistoso. - É só o tempo de tomar uma bebida.
Tinham chegado à esquina do palácio arcebispal, iluminado por um foco. Imediatamente Quart se deteve e rodou nos calcanhares.
- Escute, Buenafé.
- Bonafé - corrigiu o outro.
- Bonafé, ou lá como se chama. O que eu faço em Sevilha não lhe diz respeito. E, em todo o caso, nunca me passaria pela cabeça andar a contá-lo por aí.
O jornalista protestou, franzindo a boca com ar mundano, enquanto baralhava uns tópicos do ofício: dever de informação, busca da verdade, etc. O público tinha o direito de saber.
- Além disso - acrescentou, depois de pensar uns instantes
- para vocês é melhor estar dentro do que fora.
Aquilo soava a ameaça críptica, e Quart começou a impacientar-se.
- Vocês?... Refere-se a algum tipo de clube?
- Não. Já se sabe: vocês - sorria de novo, viscoso, conciliador
- o clero e tudo isso.
- Ah, bem, o clero.
- Isso mesmo.
- O clero e tudo isso.
A papada fez três pregas, quando Bonafé assentiu de novo, esperançado:
- Estou a ver que nos entendemos.
Quart fitava-o agora com calma, as mãos cruzadas nas costas: •- E que deseja saber ao certo?
- Bom... Um pouco de tudo - Bonafé coçava uma axila sob o casaco. - Que opinam em Roma acerca desta igreja, por exemplo. Qual é a situação canónica do pároco... E o que possa contar-me acerca do que fez por aqui - acentuou o sorriso meio servil, meio cúmplice. - É fácil, como vê.
E se negar?
O jornalista pigarreou, como se a este nível do seu relacionamento aquilo fosse descabido.
- Acabarei por escrever a reportagem de qualquer forma. E quem não está comigo está contra mim - ao falar, baloiçava-se nas pontas dos pés. - Não é o que diz o Evangelho?
- Escute, Buenafé...
- Bonafé - erguia o dedo indicador, preciso. - Honorato Bonafé.
Quart observou-o um instante em silêncio. Depois olhou para a direita a para a esquerda, antes de se aproximar um passo, com ar confidencial. Mas havia no seu gesto, na diferença de estrutura, talvez, ou na expressão dos olhos do sacerdote algo que fez o outro retroceder até à parede.
- Na realidade estou-me nas tintas para o seu nome - disse Quart em voz baixa -, porque espero não voltar a encontrá-lo nunca - aproximou-se um pouco mais, até que viu Bonafé pestanejar, pouco à vontade. - O que quero dizer-lhe é que ignoro se é um insolente, um chantagista, um imbecil ou todas essas coisas juntas. Em todo o caso e, apesar da minha condição de eclesiástico, sou propenso ao pecado da ira, de modo que o aconselho a que desapareça da minha vista. Imediatamente.
A luz do candeeiro desenhava traços verticais na cara do outro. Esbatido o sorriso, fitava Quart com despeito.
- É impróprio de um cura - protestou, com a papada a tremer. - Refiro-me à sua atitude.
- Parece-lhe? - era agora a vez de Quart sorrir, e fê-lo de forma muito pouco amistosa. - Surpreendê-lo-ia a quantidade de coisas impróprias de que sou capaz.
Voltou as costas, afastando-se, ao mesmo tempo que perguntava a si mesmo quanto ia pagar por aquela pequena vitória. A única coisa clara era a necessidade de concluir a investigação antes que tudo começasse a complicar-se demasiado, se é que não tinha acontecido já. Um jornalista farejando nas sacristias era a gota que fazia transbordar o cálice. Absorto em pensamentos, Quart atravessou a praça Virgem dos Reis sem prestar atenção a um par sentado num banco; um homem e uma mulher que se ergueram e foram atrás dele, a certa distância. Ele era gordo, de fato branco e panamá, e ela trazia um vestido às pintas, com um curioso caracolito penteado sobre a testa. Seguiam Quart de braço dado, como qualquer casal pacífico que gozasse o ameno anoitecer; mas, ao passarem diante de um homem de camisola de gola alta e casaco aos quadrados, que mastigava um palito, apoiado na porta do bar Giralda, trocaram com ele um olhar entendido. Neste momento, os sinos das torres de Sevilha começaram a tocar, despertando as pombas que dormitavam já na penumbra dos beirais.
Quando o cura alto entrou em La Albahaca, Don Ibrahim mandou o Potro del Mantelete com uma moeda de cinco duros à cabina telefónica mais próxima, para dar parte a Peregil. Menos de uma hora depois, o esbirro de Pencho Gavira aparecia por ali, a ver o panorama. Tinha um aspecto cansado e trazia na mão um saco do Marks & Spencer. Encontrou as suas hostes estrategicamente distribuídas pela praça de Santa Cruz, diante da antiga mansão do século XVII convertida em restaurante: o Potro, imóvel contra a parede, perto da saída que dava para a muralha árabe, e a Nina Punales a fazer crochet, sentada no soco da cruz de ferro do centro da praça. Quanto a Don Ibrahim, movia a sua imponente sombra de um lado para o outro, ao mesmo tempo que baloiçava a bengala, com a brasa de um Montecristo sob a larga aba do chapéu de palha branca.
- Está lá dentro - disse a Peregil. - Com a dama.
Depois resumiu o seu relatório, consultando à luz de um candeeiro o relógio que tirou de um bolso do casaco. Vinte minutos antes, tinha enviado a Nina à descoberta, a pretexto de vender flores, e depois ele próprio chegara a trocar umas palavras com os empregados, aproveitando a aquisição, na tabacaria do restaurante, do havano que tinha agora na boca. O par ocupava o melhor recanto de um dos três pequenos salões do local - poucas mesas e clientela exclusiva -, sob uma cópia razoável de Os Bêbedos de Velázquez. Tinham pedido salada de vieiras com alfavaca e trufas, a senhora, e fígado de ganso fresco salteado sobre molho de vinagre com mel, o reverendo padre. A água mineral era de Lanjarón sem gás e o vinho, um tinto Pesquera da ribeira do Douro, cujo ano Don Ibrahim se desculpava por não ter podido averiguar; no entanto, como explicou a Peregil, retorcendo a ponta do bigode, um interesse excessivo teria, talvez, infundido suspeitas entre os serviçais.
- E do que falam? - perguntou Peregil.
O ex-falso literato fez um gesto de solene impotência.
- Isso - precisou - está fora do meu âmbito.
Peregil considerava o assunto. A situação continuava sob controlo; Don Ibrahim e os seus sequazes estavam a portar-se à altura, e as cartas que lhe punham na mão tinham bom aspecto. No seu mundo, como na maior parte dos mundos possíveis, a informação traduzia-se sempre em dinheiro; tudo consistia em tirar o melhor partido, escolhendo o licitador idóneo. Evidentemente, teria preferido que, em última instância, tudo revertesse a favor do seu chefe natural, Pencho Gavira, principal interessado graças à sua dupla condição de banqueiro e marido. Mas o buraco dos seis milhões e a dívida junto do prestamista Rubén Molina continuavam a impedi-lo de ver as coisas com clareza. Havia dias que dormia mal, e a úlcera andava de novo a fazer das suas. De manhã, quando se punha diante do espelho da casa de banho para ocultar o crânio sob a complexa arquitectura do penteado com risca na orelha esquerda, Peregil só encontrava desolação na mal-humorada careta que o fitava no espelho. Estava a ficar calvo, tinha o estômago desfeito, devia seis quilos ao seu próprio chefe e quase o dobro ao prestamista e, além disso, albergava a suspeita de que o seu último espasmo glorioso com Dolores La Negra lhe deixara um alarmante ardor no aparelho genital e urinário. Era só o que faltava. E não é que a vida era mesmo uma merda de um raio?
Com uma agravante. Peregil deitou os olhos à redonda silhueta branca de Don Ibrahim, que aguardava instruções, e depois à Nina Punales que fazia crochet à luz dos candeeiros, e ao Potro del Mantelete, apoiado na esquina. Ao muito que se complicava a sua vida, vinha juntar-se agora uma situação complementar e incómoda: a informação obtida graças aos três sócios circulava já no mercado, pois Peregil necessitava urgentemente de liquidez. Honorato Bonafé, director da Q + S, passara-lhe, nessa mesma tarde, outro cheque ao portador, desta vez como pagamento de algumas confidências a respeito do cura de Roma, da ex - ou lá o que era - mulher do seu chefe, e do assunto de Nossa Senhora das Lágrimas. Com este precedente, a próxima tentação era óbvia: Macarena Bruner e o cura elegante significavam outra primeira página em qualquer revista sevilhana. E aquele jantar em La Albahaca e suas eventuais derivações, por muito descafeinadas que viessem a ser, eram o cling de uma caixa registadora a soar nas intenções de Peregil. Bonafé, no entanto, embora pagasse bem, era um tipo imprevisível e perigoso. Vender-lhe um cura, ou vários, ainda vá. Mas acrescentar ao lote a mulher do chefe pela segunda vez ia da malandragem à alta traição institucionalizada. E é que algumas notas de mil pintava-as de verde o diabo.
Nada, porém, se perdia prevendo todas as eventualidades. Dos seus anos como investigador, Peregil recordava aquela de que o plano se traça segundo a hipótese mais provável, e a segurança, de acordo com a mais perigosa. E o mais perigoso era não ligar quando toda a gente andava com póquer de ases e bons naipes; de modo que, no tocante à sobrevivência, acumular informação era o seu seguro de vida particular. Com estes pensamentos, voltou-se para o rosto grave de Don Ibrahim, que aguardava na sombra com o seu havano a fumegar sob o bigode, a bengala debaixo do braço e os polegares nas algibeiras do casaco, esperando instruções. Estava satisfeito com ele e com os seus colegas, e aquilo infundiu-lhe um certo optimismo, até ao ponto de levar a mão ao bolso para lhe pagar o Montecristo do restaurante; mas conteve-se a tempo. Não convinha habituá-los mal. Além disso, aquela do charuto era mentira.
- Bom trabalho - disse.
Don Ibrahim não respondeu ao elogio, limitando-se a dar um par de fumaças no havano, ao mesmo tempo que olhava para a Nina Punales e o Potro, dando a entender a Peregil que era justo partilhar com eles a glória correspondente.
- Quero que continuem assim - acrescentou o esbirro de Pencho Gavira. - O cura que não vá mijar sem eu saber.
- E com a dama?
Isso eram águas mais profundas. Inquieto, Peregil mordia o lábio inferior.
- Discrição absoluta - concluiu, por fim. - Só me interessa o que ela possa ter que ver com este cura, ou com o mais velho. Quanto a isso, não quero que vos escape nem um pormenor.
- E o outro?
- Qual outro?
- Pois não sei. O outro, ora!
Don Ibrahim olhava em redor, incomodado. Era leitor diário do ABC, mas de vez em quanto também passava os olhos pela Q + S, que a Nina Punales comprava com a Hola, a Semana e a Diez Minutos; embora, na opinião do ex-falso advogado, esta fosse muito mais sensa-cionalista e de pior gosto que as restantes. As fotografias da Senhora Bruner com o toureiro, por exemplo, eram descabidas. Afinal, ela pertencia a uma família ilustre e, além disso, era uma mulher casada.
- Os curas - disse Peregil. - Centrem-se nos curas.
De súbito lembrou-se do que trazia no saco e tirou dele uma Canon com objectiva zoom de 90 a 230 milímetros. Acabava de a comprar em segunda mão e esperava que a despesa - outra navalhada no baixo ventre das suas maltratadas finanças - acabasse por valer a pena.
- Sabem tirar fotografias?
Don Ibrahim deu-se ares de importante, como se a dúvida fosse ofensiva.
- Naturalmente - tocava no peito com a mão que segurava a bengala. - Eu próprio, durante a juventude, fui fotógrafo em Havana - meditou um instante, para acrescentar: - Foi assim que custeei os meus estudos.
À luz débil da praça, Peregil via brilhar sobre a barriga do ex-falso letrado a corrente de ouro com o relógio de Hemingway.
- Os teus estudos?
- Isso mesmo.
- De advocacia, suponho.
Tinha vindo tudo nos jornais, anos atrás, e ambos o sabiam de sobra, como Sevilha inteira. Mesmo assim, Don Ibrahim engoliu em seco, sustentando com gravidade o olhar do seu interlocutor.
- Naturalmente - depois fez uma digna pausa e acrescentou, com valor - não tenho outros.
Peregil entregou-lhe o saco sem mais comentários. Afinal, que seria de nós sem nós mesmos, pensava. A vida é um naufrágio e cada um deita-se a nadar como pode.
- Quero fotografias - ordenou. - Todas as vezes que esse cura e a senhora se encontrarem onde quer que seja, quero que tirem uma fotografia. De modo discreto, ha?... Sem que notem. Também têm aí os rolos da película de alta sensibilidade para o caso de haver pouca luz, de modo que não se lembrem de utilizar o flash.
Tinham ido para baixo de um candeeiro e Don Ibrahim observava o conteúdo da bolsa.
- Não podíamos lembrar-nos - disse. - Não há aqui nenhum flash.
Peregil, que acendia um cigarro, olhou para o índio, ao mesmo tempo que encolhia os ombros:
- Não me lixes. O mais barato custa cinco mil duros.
La Alabahaca era uma antiga mansão do século XVII. Os proprietários viviam no segundo piso e três salões do rés-do-chão tinham sido transformados em restaurante. Embora todas as mesas estivessem ocupadas, o mattre - Macarena Bruner tratava-o por Diego - reservara-lhes uma no melhor salão, junto da grande chaminé e sob um vitral que dava para a praça de Santa Cruz. Tinham feito uma entrada espectacular, ambos vestidos de negro, ela lindíssima no seu saia e casaco curto, escoltada pela silhueta escura e delgada de Lorenzo Quart. La Albabaca era um dos locais onde uma certa classe de sevilhanos levavam os convidados vindos de fora, para mostrá-los e para mostrar-se, e a entrada da filha da duquesa do Nuevo Extremo com o sacerdote não passou minimamente despercebida. Macarena trocara um par de saudações ao chegar, e as mesas próximas não tiravam os olhos de cima dela. Inclinavam-se as cabeças, cochichava-se em voz baixa, e as jóias reluziam entre as velas acesas. "Amanhã", disse Quart para consigo, "Sevilha inteira vai saber disto."
- Não vou a Roma desde a minha viagem de núpcias - contava ela, aparentemente indiferente à expectativa suscitada. - O Papa recebeu-nos em audiência especial. Eu ia de negro, com teja e mantilha. Muito espanhola... Porque me olha dessa maneira?
Quart mastigou lentamente o último pedacinho de fígado de ganso e colocou o garfo e a faca na borda inferior do pato, levemente inclinados para a direita. Por cima da chama da vela, os olhos de Macarena Bruner seguiam todos os seus movimentos.
- Não parece uma mulher casada.
Ela desatou a rir e a chama pôs reflexos de mel nos seus olhos escuros.
- Acha que a vida que levo não convém a uma mulher casada? Quart apoiou o cotovelo na mesa, ao mesmo tempo que inclinava um pouco a cabeça, evasivo:
- Eu não julgo esse tipo de coisas.
- Mas veio de colarinho, em vez da gravata que me prometeu. Fitaram-se, sem pressas, um ao outro. O resplendor interposto
pela vela ocultava agora a parte inferior do rosto da mulher, se bem que Quart adivinhasse o sorriso no brilho do seu olhar.
- No que se refere à minha vida, não faço dela nenhum segredo. Abandonei o domicílio conjugal. Também tenho um amigo que é toureiro. E antes do toureiro houve alguns outros - a pausa foi calculada, perfeita; e, para seu grande pesar, ele admirou-lhe a coragem. - Não se sente escandalizado?
Quart colocou um dedo no cabo da faca, na borda do prato. "O seu trabalho não consistia em escandalizar-se com coisas dessas", repetiu com suavidade. "O assunto dizia mais respeito ao padre Ferro, confessor da senhora. Também entre os curas havia especialidades."
- E qual é a sua?... Caçador de cabeças, como diz o arcebispo? Estendeu a mão, afastando o candelabro, que ardia no meio da
mesa. Via-se-lhe agora a boca, grande e desenhada, com o lábio superior em forma de coração e o brilho branco dos incisivos, irmanado com o colar de marfim na pele morena do pescoço. Trazia o casaco sobre uma blusa de seda leve e decotada. A saia era muito curta, com uma bainha de renda sobre as meias negras e os sapatos de tacão baixo, da mesma cor. O conjunto sublinhava umas pernas demasiado compridas e bem torneadas para a tranquilidade espiritual de qualquer cura, incluindo Quart; com a diferença de que ele tinha visto mais mundo do que a maior parte dos curas que conhecia. Se bem que isso também não garantisse coisa nenhuma.
- Falávamos de si - disse, recriando-se no curioso instinto que o impelia a pôr-se de lado, como nos antigos duelos, quando uma pessoa se perfilava para se esquivar ao tiroteio.
Os olhos de Macarena Bruner estavam agora carregados de ironia:
- De mim? Que mais pode interessar-lhe?... Meço um metro e setenta e quatro, tenho trinta e cinco anos, que não aparento, uma carreira universitária, pertenço à irmandade da Virgen del Rocio, e na feira de Sevilha nunca me visto de faralaes, mas com traje curto e chapéu cordovês - fez uma curta pausa, como puxando pela memória, e olhou para a pulseira de ouro do pulso esquerdo, desprovido de relógio. - Quando me casei, a minha mãe cedeu-me o ducado de Azahara, título que nunca utilizo e, quando ela morrer, herdarei mais outros trinta e tantos, doze grandezas de Espanha, a Casa do Postigo, com alguns móveis e quadros, e o necessário para ir vivendo sem perder as maneiras. Sou eu quem se encarrega da conservação do que resta, e de pôr em ordem os arquivos da família. Trabalho agora num livro sobre os Duques do Nuevo Extremo quando os Astúrias... Quanto ao resto, não vale a pena contar - pegou no copo de vinho para o levar à boca. - Pode folhear qualquer revista.
- Não parece que isso lhe importe muito.
Ela bebeu um curto trago e ficou a olhar para Quart, ainda com o copo erguido.
- E é verdade. Não me importa. Quer que lhe faça confidências?
Quart abanou a cabeça grisalha.
- Não sei - sentia-se sincero e tranquilo. Também expectante, com uma estranha e divertida lucidez. Atribuiu-a, de passagem, ao vinho, que por outro lado mal tinha provado. - Na realidade, não sei porque me convidou para jantar esta noite.
Viu Macarena Bruner beber outra vez. Mais lentamente, reflectindo com o gesto.
- Ocorrem-me várias razões - disse ela por fim, pousando o copo na toalha. - É extremamente cortês, por exemplo. Muito diferente das maneiras untuosas que têm certos sacerdotes... Em si a cortesia parece uma maneira de manter os outros à distância - lançou-lhe um rápido olhar apreciativo à parte inferior do rosto, "talvez a boca", pensou Quart, e logo se fixou nas mãos, que ele mantinha agora apoiadas com os pulsos na borda da mesa, dos dois lados do prato que, nesse momento, um empregado se preparava para retirar. - Também é silencioso, não atordoa as pessoas como um charlatão de feira. Nesse aspecto, recorda-me Don Príamo... - o empregado tinha retirado os pratos e ela sorria a Quart. - Além disso, tem cãs prematuras no cabelo e usa-o muito curto, como um soldado, ou como um dos meus personagens favoritos: Sir Marhalt, o cavaleiro veterano e impassível dos Feitos do Rei Artur e Seus Nobres Cavaleiros, de John Steinbeck. Fiquei apaixonadíssima por Marhalt quando o li, ainda muito nova. Parecem-lhe motivos suficientes?... Além disso, como diz Gris, é um cura a quem a roupa fica bem. O cura mais interessante que alguma vez vi, se isso lhe serve de alguma coisa - dirigia-lhe um último olhar, que foi incómodo durante cinco segundos a mais. - Serve-Lhe de alguma coisa?
- Não muito, na minha especialidade.
Macarena Bruner assentiu suavemente, apreciando a tranquila resposta.
- Recorda-me também - prosseguiu - um capelão do meu colégio de freiras. Todas as vezes que vinha celebrar missa, percebia-se dias antes, porque as madres andavam todas agitadas. Finalmente fugiu com uma, a mais gordinha, que nos dava aulas de Química. Não sabe que, às vezes, as freiras se apaixonam pelos curas?... Foi o caso de Gris. Era directora de um colégio universitário em Santa Bárbara, Califórnia. E um dia descobriu, horrorizada, que amava o bispo da sua diocese. Tinham anunciado a sua visita, e ali estava ela ao espelho, depilando as sobrancelhas e prestes a pôr um pouco de sombra nos olhos... Que lhe parece?
Ficou a olhar para Quart, à espreita da sua reacção; mas ele manteve-se impassível. A própria Macarena Bruner ficaria surpreendida com a quantidade de sacerdotes e religiosas cujos amores e ódios o IOE descobria. Limitou-se a encolher um pouco os ombros, animando-a a prosseguir. Se a sua intenção fora escandalizá-lo, errara a pontaria. De longe.
- E como o resolveu?
Ela ergueu a mão, movendo-a no ar, e a pulseira reluziu escorregando-lhe no pulso. Nas mesas próximas, uma dúzia de pares de olhos seguiam cada um dos seus gestos.
- Dando uma pancada no espelho, assim, e ao parti-lo, abriu uma veia. Depois foi ter com a superiora da sua ordem e pediu-lhe um prazo de liberdade, para reflectir. Já lá vão uns anos.
O maítre estava ao seu lado, imperturbável como se não tivesse ouvido uma palavra. Esperava que estivesse tudo em ordem, quem sabe se a senhora desejava mais alguma coisa. Ela pedira apenas a salada e Quart também não quis segundo prato, nem a sobremesa com que a casa, desolada com a falta de apetite da senhora duquesa e do reverendo padre, desejava obsequiá-los. Decidiram continuar com o vinho, enquanto esperavam os cafés.
- Há muito tempo que você e a Irmã Marsala se conhecem?
- Tem graça ouvi-lo dizer isso. A Irmã Marsala... Nunca pensei nela desse modo.
Tinha o copo quase vazio. Quart tirou a garrafa da mesinha junto deles e encheu-o. O seu continuava quase intacto.
- Gris é mais velha do que eu - prosseguiu ela - mas encontrámo-nos em Sevilha várias vezes, há tempos. Vinha muito com os seus alunos norte-americanos: cursos de Verão para estrangeiros, Belas-Artes... Conheci-a quando davam aulas de restauração na sala de jantar de Verão da minha casa. Fui eu que a apresentei ao padre Ferro e conseguiu que a incluíssem no projecto, quando eram cordiais as relações com o arcebispo.
- Porquê tanto interesse nessa igreja?
Ela fitou-o como se a pergunta fosse uma estupidez. Fora construída pela sua família. Os seus antepassados estavam enterrados nela.
- Pois o seu marido não parece importar-se muito.
- Claro que não se importa. Pencho tem mais em que pensar. A luz da vela arrancou lampejos avermelhados à ribeira do
Douro, quando o levou aos lábios. Desta vez foi um longo trago e Quart sentiu-se obrigado a acompanhá-la um pouco.
- E é verdade - disse depois, limpando a boca ao canto do guardanapo - que já não vivem juntos, embora continuem casados?
Ela fitou-o, inquisitiva por sua vez. Duas perguntas acerca da sua vida conjugal era algo que não parecia esperar nessa noite. Bailava-lhe agora um brilho divertido nos reflexos de mel.
- É verdade - respondeu, após um silêncio. - Não vivemos juntos. E, contudo, nenhum de nós pediu o divórcio, nem a separação, nada. Ele espera talvez recuperar-me; para isso se casou comigo com o aplauso de todos. Eu era a sua consagração social.
Quart passeou o olhar pelas pessoas das mesas próximas e depois inclinou-se um pouco sobre ela:
- Desculpe. Não compreendo bem esse plural: o aplauso de quem?
- Não conhece o meu padrinho? Don Octavio Machuca foi amigo do meu pai, e dedica-nos, à duquesa e a mim, um carinho especial. Como diz, sou a filha que nunca teve. Por isso, para assegurar o meu futuro, apoiou o meu casamento com o mais brilhante jovem talento do Banco Cartujano; destinado a suceder-Lhe, agora que está prestes a reformar-se.
- Casou-se por causa disso? Para assegurar o seu futuro?
Era uma pergunta directa. O cabelo de Macarena Bruner deslizara-lhe para o ombro, cobrindo-lhe metade do rosto, e ela afastou-o com um gesto da mão. Fitava Quart, avaliando o seu interesse.
- Bem, Pencho é um homem atraente. Possui também uma magnífica cabeça, como costuma dizer-se. E uma virtude: é valente. Dos poucos homens que conheci capazes de se apostar a fundo nalguma coisa: um sonho, uma ambição. E, no caso do meu marido, ex-marido ou como quiser chamar-lhe, o seu sonho é a sua ambição - desenhou-lhe nos lábios um vago sorriso. - Suponho até que me casei apaixonada por ele.
- E o que aconteceu?
Observava-o outra vez da mesma forma que anteriormente, como se tentasse averiguar o interesse pessoal que punha nas suas perguntas.
- Nada, na realidade - disse, neutra. - Desempenhei o meu papel e ele, o seu. Mas cometeu um erro. Ou vários. Um deles foi que devia ter deixado em paz a nossa igreja.
- Nossa?
- Minha. Do padre Ferro. Das pessoas que vão à missa todos os dias. Da duquesa.
Desta vez, era Quart quem sorria:
- Chama sempre duquesa à sua mãe?
- Quando falo dela junto de terceiros, sim - sorriu também, com uma ternura que Quart ainda não lhe conhecia - Ela gosta. Também gosta de gerânios, de Mozart, dos curas à antiga e de coca-cola. Esta última é um pouco insólita, não acha? Numa mulher de setenta anos que dorme uma vez por semana com o seu colar de pérolas e ainda teima em chamar mecânico ao motorista... Ainda não a conhece? Convido-o para tomar café amanhã, se quiser. Don Príamo visita-nos todas as tardes, para rezar o terço.
- Duvido que o padre Ferro goste de me ver. Não sou do seu agrado.
- Deixe-o por minha conta. Ou por conta de minha mãe. Don Príamo e ela dão-se maravilhosamente bem. Talvez seja uma boa ocasião para falarem de homem para homem... Diz-se "de homem para homem", tratando-se de curas?
Quart aguentou, inexpressivo, o seu olhar.
- Quanto ao seu marido...
- Não tem parado de fazer perguntas. Suponho que foi para isso que veio.
Parecia lamentar ironicamente que fosse esse o motivo. Continuava a olhar para as mãos de Quart, do mesmo modo que quando se haviam visto pela primeira vez no vestíbulo do hotel e ele as retirara da mesa um par de vezes, incomodado. Por fim, resolveu deixá-las quietas sobre a toalha.
- Que quer saber de Pencho? - prosseguiu ela. - Que se equivocou, ao querer comprar-me? Se foi por causa desta igreja que eu lhe declarei guerra? Que, por vezes, sabe comportar-se como um deliberado filho da mãe...?
Disse tudo isto com muita calma, num tom perfeitamente objectivo. Um grupo levantava-se de uma mesa próxima, e alguns dos seus membros cumprimentaram-na. Todos olhavam Quart com curiosidade, especialmente as mulheres, loiras e bronzeadas, com aquele ar andaluz de boa casta que lhes dava o facto de nunca terem passado fome na vida. Macarena Bruner respondeu com uma inclinação de cabeça e um sorriso. Quart observava-a atentamente:
- E porque não pede o divórcio?
- Porque sou católica.
Impossível saber se falava a sério ou a brincar. Ficaram os dois em silêncio e ele recostou-se um pouco no espaldar da cadeira, estudando ainda a mulher. O colar de marfim e a camisa de seda crua sob o casaco negro faziam ressaltar a pele morena do pescoço e do decote, junto do resplendor dourado da vela sobre a mesa. Fitou os olhos grandes e escuros, que se mantinham tranquilos, suspensos dos seus. E compreendeu que algo ia demasiado longe para a sanidade da sua alma, se é que - sempre se lhe confundiam a razão e o instinto, ao chegar a este ponto - a sua alma estava sujeita a oscilações externas, como os valores da Bolsa. Se tal hipótese era válida, nesse momento ninguém daria um cêntimo por ela.
Abriu a boca e disse alguma coisa pelo simples facto de o fazer, para preencher o silêncio. Disse qualquer coisa, oportuna e no tom adequado, e cinco segundos depois esqueceu as suas palavras; mas tinha cumprido o seu desejo de preencher aquele vazio. Macarena Bruner falava agora de novo e Quart pensou em monsenhor Paolo Spada. Oração e duches frios, receitara o sorriso do Mastim, na escadaria da praça de Espanha.
- Há coisas que gostaria de lhe explicar - dizia ela - mas não creio ser capaz... - olhava por cima do ombro de Quart, enquanto este assentia sem saber a quê; o importante era que de novo conseguia prestar atenção. - Há luxos nesta vida que se pagam caros, e Pencho tem de pagar o seu. É dos que pedem a conta sem se descomporem, batendo com os nós dos dedos no balcão para perguntar quanto deve. Nisso é muito homem - ironizou. - Muito toureiro. Mas por dentro é outra coisa e ele sabe que eu sei. Sevilha é um pátio de vizinhos; a má-língua encanta-nos. Cada rumor que chega até ele, cada sorriso dissimulado nas suas costas é uma punhalada no seu orgulho - passou os olhos pelo salão, divertida. - Imagine o que irão dizer, quando souberem que estou a jantar consigo.
- É essa a sua intenção? - Quart era, de novo, senhor de si. - Exibir-me como um trofeu?
Ela fitou-o com uma sabedoria um tanto enfastiada, velha de séculos.
- Na melhor das hipóteses. Nós, as mulheres, somos muito complicadas em comparação com os homens, tão rectos nas suas mentiras, tão infantis nas suas contradições... Tão consequentes na sua vileza - o maítre em pessoa trouxe os cafés; com leite para ela, simples para ele. Macarena Bruner deitou um único torrão de açúcar e sorriu, absorta. - Mas de uma coisa pode estar certo: Pencho sabê-lo-á amanhã de manhã. Graças a Deus há facturas que se pagam lentamente - bebeu um curto gole, depois fitou Quart com os lábios húmidos. - Talvez não devesse ter dito "graças a Deus", não é? Soa a jura. Não pronunciarás o nome de Deus em vão e coisas assim.
Quart pousou cuidadosamente a colher ao lado da chávena.
- Não se preocupe - tranquilizou-a. - Também eu menciono Deus de vez em quando.
- É curioso - inclinava-se um pouco sobre os cotovelos e a sua blusa de seda leve roçava a borda da mesa. Por um segundo, Quart intuiu o conteúdo: pesado, moreno e suave. Seria preciso mais do que um duche frio para esquecer aquilo. - Conheço Don Príamo desde que veio para esta paróquia, há dez anos, mas não imagino a vida íntima de um sacerdote. Não tinha pensado nisso até hoje, olhando para si - observou de novo as mãos de Quart, depois o seu olhar subiu até ao colarinho. - Como se arranjam com os três votos?
"Se há perguntas inoportunas", pensava ele, "é este o momento adequado para as formular." Olhou para o copo de vinho, apelando para todo o seu sangue-frio:
- Cada um arranja-se como pode. Há quem os veja como obediência dialogada, castidade partilhada e pobreza líquida.
Ergueu um pouco o copo num brinde, sem o provar, e logo o deixou sobre a toalha para tomar o café aos goles, enquanto Macarena Bruner se ria com um riso franco, sonoro e tão contagioso que Quart esteve quase a imitá-la.
- E o senhor? - perguntou ela, sorrindo ainda. - É obediente?
- Costumo ser - deixou a taça e enxugou os lábios; depois dobrou cuidadosamente o guardanapo para o colocar em cima da mesa. - É certo que procuro raciocinar, mas acato sempre a disciplina. Há coisas que não funcionam sem disciplina e a empresa onde trabalho é uma delas.
- Refere-se a Don Príamo?
Quart ergueu as sobrancelhas com indiferença calculada. "Na realidade, não se referia a ninguém em especial", esclareceu. Mas, já que o mencionava, o padre Ferro era um exemplo pouco aconselhável. Muito na sua, para falar de um modo piedoso. Pecado capital número um, quando se entra no Catecismo e na direita.
- Você não sabe nada da sua vida, por isso não pode julgar.
- Não pretendo julgar - permitiu-se outro trejeito - mas compreender.
- Nem sequer compreender - ela insistia, acalorada. - Foi pároco rural durante metade da sua vida, numa pequena aldeia perdida dos Pirenéus... Passava meses bloqueado pela neve. E, por vezes, tinha de percorrer oito ou dez quilómetros para levar a extrema-unção a um moribundo. Só havia velhos, que foram morrendo um por um. Enterrava-os com as suas próprias mãos, até que não houve mais ninguém. Isto meteu-lhe na cabeça umas certas ideias fixas sobre a vida e a morte, e sobre o papel que vocês, os sacerdotes, desempenham no mundo... Para ele, esta igreja é muito importante. Julga-a necessária e afirma que cada igreja que é encerrada ou que se perde é um pedaço de céu que desaparece. E, como ninguém lhe dá ouvidos, em vez de se render, luta. Costuma dizer que já perdeu muitas batalhas lá em cima, nas montanhas.
Tudo isto estava muito certo, admitiu Quart. Muito comovedor. Tinha até visto uns filmes com argumento parecido. Mas o padre Ferro continuava sujeito à disciplina eclesiástica. "Nós os curas", precisou, "não podemos andar por aí proclamando repúblicas independentes por conta própria. Não nos tempos que correm."
Ela abanou a cabeça:
- Não o conhece o suficiente.
- Nem ele mo permite.
- Amanhã resolveremos isso. Prometo-lhe - olhava de novo para as mãos dele. - Quanto à sua pobreza líquida, parece real. Mal prova o vinho... Relativamente à outra, veste muito bem. Sei reconhecer a roupa cara, mesmo num sacerdote.
- O meu trabalho é em parte responsável por isso. Tenho de lidar com as pessoas. Sair para jantar com atraentes duquesas sevilhanas - aguentaram o olhar, e nenhum deles sorriu de novo. - Considere-a um uniforme.
Fez-se um breve silêncio que nenhum quis preencher e que Quart encarou com calma. Por fim, foi ela quem falou:
- Também possui uma sotaina?
- Claro, se bem que a use pouco.
Trouxeram a conta e ele quis pagar, mas Macarena não deixou. "Sou eu que convido", disse, inflexível, a Quart. De modo que este ficou a vê-la tirar do bolso um cartão American Express dourado. "Envio sempre as contas ao meu marido", explicou, com malícia, quando o empregado se afastou. "Sai-lhe mais barato do que uma pensão de divórcio."
- Falta-nos comentar um dos seus votos - acrescentou mais tarde. - Também pratica a castidade partilhada?
- Creio que a pratico pura e simplesmente.
Viu-a assentir lentamente e depois percorrer a sala com o olhar, antes de voltar novamente a ele. Observava-lhe agora a boca e os olhos, apreciativa:
- Não me diga que nunca esteve com uma mulher.
Há perguntas a que não se pode responder às onze da noite, num restaurante de Sevilha, à luz de uma vela; ela, porém, não parecia esperar resposta. Extraiu, com parcimónia, da bolsa um maço de cigarros, meteu um na boca e depois, com um descaramento ao mesmo tempo natural e calculado, introduziu a mão direita na parte esquerda do decote, à procura de um isqueiro de plástico que trazia entre a pele e a alça do soutien. Quart observou-a a acender o cigarro, negando-se a pensar no que quer que fosse. E só um pouco mais tarde acedeu a perguntar a si próprio em que diabo de confusão se estava a meter.
Na realidade, graças à educação recebida em Roma e ao trabalho dos últimos dez anos, a atitude de Quart perante o sexo tinha evoluído de maneira diferente da que, nos sacerdotes, costumavam orientar os mexericos e a sordidez do seminário e as normas gerais da instituição eclesiástica. Num mundo fechado, regido pelo conceito de culpa, que negava o contacto com a mulher e onde a única solução oficiosamente admitida residia na masturbação ou no sexo clandestino e sua posterior expiação através do sacramento da penitência, a vida diplomática e o trabalho para o Instituto de Obras Exteriores facilitavam o que monsenhor Spada, sempre hábil com os eufemismos, definia como impedimentos tácticos. O bem geral da Igreja, considerado como fim, justificava por vezes o emprego de certos meios; e, neste sentido, os atractivos de qualquer secretário de nunciatura entre as mulheres de ministros, financeiros e embaixadores, vítimas fáceis do instinto de adopção diante de sacerdotes jovens ou interessantes, abria muitas portas intransponíveis a monsenhores ou eminências, mais velhos e secos. Era o que monsenhor Spada chamava síndroma de Stendhal, em memória de dois personagens - Fabricio del Dongo e Julien Sorel - cujas peripécias aconselhara Quart a ler logo que entrara no IOE. Para o Mastim, a cultura não se opunha ao amestramento. Tudo isto deixava o assunto à discrição moral e inteligência de cada protagonista, afinal agente de Deus num campo de batalha onde as suas forças eram a oração e o senso comum. Porque, a par das vantagens de uma confidência obtida em recepções, conversas particulares ou em confessionários, o sistema tinha os seus riscos. Muitas mulheres vinham procurar a substituição afectiva de homens inalcançáveis ou maridos indiferentes; e nada mais perturbador, para o velho Adão sempre à espreita debaixo de grande parte das sotainas, do que a inocência de uma adolescente ou as confidências de uma mulher frustrada. Em última instância, a indulgência oficiosa dos superiores estava mais ou menos assegurada - a nave de Pedro era antiga, sobrevivente e sábia - em função da ausência de escândalo e dos resultados operacionais.
Paradoxalmente num homem que apenas possuía a fé do soldado profissional, não era esse o caso de Quart. O certo é que, nele, a castidade consistia mais num pecado de orgulho do que numa virtude; mas era assim a regra em torno da qual ordenava a sua vida. E, como alguns dos fantasmas que acompanhavam os seus olhos abertos nas trevas, o templário com a espada como único apoio sob um céu sem Deus necessitava de apelar para a regra, se queria enfrentar com dignidade o zunir da cavalaria sarracena a aproximar-se ao longe, na colina de Hattin.
A custo regressou ao presente. Ela fumava, com o cotovelo apoiado na mesa, o queixo na palma da mão segurando o cigarro.
Por algum motivo, sem chegar sequer a roçá-las, sentiu a proximidade perturbadora das suas pernas. Os reflexos douravam os olhos escuros junto da chama da vela, muito próximos, e ter-lhe-ia bastado estender o braço para roçar com os dedos a sua pele, sob o cabelo negro que de novo caía sobre o ombro, marfim do colar, ouro da pulseira, branco dos incisivos reluzindo suavemente na boca entreaberta. E então, com gesto deliberado, aquela mesma mão em cujos dedos o desejo picava introduziu-se no bolso de dentro do casaco e, pegando no postal do capitão Xaloc, colocou-o entre os dois, sobre a toalha.
- Fale-me de Carlota Bruner.
Num instante tudo mudou. Ela apagou o cigarro no cinzeiro e ficou a olhar para ele, desconcertada. Tinham-se desvanecido os reflexos de mel.
- Onde conseguiu este postal?
- Alguém o pôs no meu quarto.
Macarena Bruner observava a imagem amarelecida da igreja. Abanou a cabeça:
- É minha. Do baú de Carlota. É impossível que esteja na sua posse.
- Mas é como vê. Tenho-a - Quart segurou o postal entre o polegar e o indicador e voltou-o, mostrando o lado escrito. - Porque não tem carimbo?
Os olhos da mulher iam do postal a Quart, preocupados. Ele, então, repetiu a pergunta e ela assentiu, mas manteve um instante de silêncio antes de responder.
- Porque nunca foi enviado - tinha pegado no postal e estudava-o. - Carlota era minha tia-avó. Estava apaixonada por Manuel Xaloc, um marinheiro sem fortuna. Gris disse-me que lhe contou a história... - moveu a cabeça como se negasse alguma coisa, embora talvez fosse um gesto desolado, de impotência ou tristeza. - Quando o capitão Xaloc emigrou para a América, ela escrevia-lhe uma carta ou um postal quase todas as semanas, durante anos. Mas o seu pai, o duque, meu bisavô, Luis Bruner, quis impedi-lo. De modo que subornou os funcionários dos Correios da cidade. Durante seis anos, ela não recebeu uma única carta e cremos que ele também não. Quando Xaloc regressou para a vir buscar, Carlota tinha perdido a razão. Passava os dias à janela, contemplando o rio. Não foi capaz de o reconhecer. Quart apontou para o postal.
- E as cartas?
- Ninguém se atreveu a destrui-las. Foram parar ao baú onde estão guardadas as coisas de Carlota desde a sua morte, em 1910. Esse baú seduziu-me quando era pequena: experimentava os vestidos, os colares de azeviche... - Quart viu-a iniciar um esboço de sorriso, mas os seus olhos voltaram-se para o postal e o sorriso desapareceu-lhe dos lábios. - Na sua juventude, Carlota viajou com os meus bisavós para ver a Exposição Universal de Paris, em Tunes, onde visitou as ruínas de Cartago e trouxe moedas antigas... Há também prospectos de viagens, de barcos, de hotéis: o resumo de uma vida, entre velhas rendas e musselinas roídas pela traça. Imagine o efeito em mim, com dez ou doze anos: li as cartas uma por uma e o personagem romântico da minha tia-avó fascinou-me. E ainda me fascina.
Traçava com a unha sinais sobre a toalha, em volta do postal. Passado um instante deteve-se, pensativa.
- Uma bonita história de amor - acrescentou, erguendo os olhos para Quart. - E como todas as bonitas histórias de amor, foi uma história infeliz.
Quart guardava silêncio, receoso de a interromper. Foi o empregado quem o fez, ao aproximar-se com o recibo do cartão de crédito. Quart observou a assinatura: nervosa, cheia de ângulos agudos como punhais. Ela fitava agora, ausente, a beata apagada no cinzeiro, ausente.
- Há uma canção lindíssima - prosseguiu, ao cabo de um momento - que canta Carlos Cano com letra de António Burgos: "Recordo ainda o piano daquela menina que havia em Sevilha.,.", e sempre que a ouço tenho vontade de chorar... Sabe que existe até uma lenda sobre Carlota e Manuel Xaloc? - sorriu, por fim, insolitamente tímida e indecisa, e Quart soube que ela acreditava nessa lenda. - Nas noites de luar, Carlota regressa à sua varanda, ao mesmo tempo que, no Guadalquivir, a escuna fantasma do seu amante solta as amarras e zarpa rio abaixo - inclinara-se sobre a mesa, de novo com reflexos dourando-lhe os olhos, e Quart voltou a experimentar a certeza inquietante de estar demasiado próximo.
- Quando era pequena, passei noites inteiras no meu quarto a espiá-los. E uma vez vi-os. Ela era uma silhueta pálida à janela; e em baixo, no rio, entre a névoa, as velas brancas de um barco antigo deslizavam lentamente até se perderem de vista.
Calou-se subitamente. Tinha-se chegado para trás na cadeira. De novo a distância entre ela e Quart.
- Depois de Sir Marhalt - acrescentou - o meu segundo amor foi o capitão Xaloc... - o seu olhar era uma provocação. - Parece-lhe uma história absurda?
- De modo algum. Cada qual tem os seus fantasmas.
- E quais são os seus?
Foi agora a vez de Quart sorrir de muito longe. Tão longe que Macarena Bruner nunca poderia chegar até lá para ver do que se tratava, na hipótese improvável de ele vir a acrescentar palavras àquele sorriso. Vento e sol, e chuva. Sabor a sal na boca. Tristes recordações de uma infância humilde, joelhos manchados de terra húmida e longas esperas frente ao mar. Fantasmas de uma juventude intelectual acanhada, dominada pela disciplina, com algumas lembranças felizes de companheirismo em comunidade e breves períodos de ambição satisfeita. A solidão num aeroporto, num livro, num quarto de hotel. E o medo ou o ódio nos olhos de outros homens: o banqueiro Lupara, Nelson Corona, Príamo Ferro. Cadáveres reais ou imaginários, passados ou futuros, na sua consciência.
- Não têm nada de especial - disse, impassível. - Também há barcos que zarpam e não regressam. E um homem. Um cavaleiro templário de cota de malha, apoiado na sua espada, num deserto.
Ela fitou-o de um modo estranho, como se o visse pela primeira vez. E não disse nada.
- Mas os fantasmas - acrescentou Quart, depois do silêncio
- não deixam postais nos quartos de hotel.
Macarena tocou no postal, que continuava em cima da toalha mostrando o lado escrito: Aqui rezo por ele todos os dias... Os seus lábios moveram-se silenciosamente ao ler as palavras que nunca chegaram ao capitão Xaloc.
- Não compreendo - disse. - Estava em minha casa, com o baú e o resto das coisas de Carlota. Alguém o foi lá buscar.
- Quem?
- Não faço a menor ideia.
- Quantas pessoas sabem da existência destas cartas?
Ficou a olhar para ele como se não tivesse ouvido bem e esperasse que repetisse a pergunta, mas não o fez. Saltava à vista que reflectia a toda a pressa.
- Não - concluiu. - É demasiado absurdo.
Quart moveu a mão e viu que Macarena Bruner retrocedia quase imperceptivelmente na cadeira, seguindo o gesto como se receasse as suas consequências. Pegou no postal e virou-o, para mostrar a fotografia da igreja.
- Não há nada de absurdo nisto - contradisse ele. - Trata-se do lugar onde está enterrada Carlota Bruner, junto das pérolas do capitão Xaloc. O edifício que o seu marido quer derrubar e que você defende. Um local que é o objecto da minha viagem a Sevilha e onde, acidentalmente ou não, morreram duas pessoas - ergueu os olhos para a mulher. - Uma igreja que, segundo um misterioso pirata informático chamado Vésperas, mata para se defender.
Ela esboçou outro sorriso, que não chegou a materializar-se inteiramente. No seu lugar ficou uma expressão preocupada, absorta.
- Não diga isso que me assusta.
Havia mais mau-humor nestas palavras do que apreensão. Quart olhou para o isqueiro de plástico a que ela dava voltas entre os dedos e soube que Macarena Bruner acabava de lhe mentir. Ela não era dessas mulheres que se assustam por qualquer coisa.
Desde que Vésperas tinha dado sinais de vida, uma semana antes, o padre Ignacio Arregui e a sua equipa de jesuítas especialistas em informática vigiavam, em turnos de doze horas, o sistema central do Vaticano. Naquela noite faltavam dez minutos para a uma da manhã quando Arregui foi buscar uma chávena de café à máquina do corredor. A máquina tinha engolido as moedas de cem liras sem proporcionar em troca mais do que um copo vazio e um pequeno jorro de açúcar, e o jesuíta dizia mal da vida, olhando através da janela a sombra escura do palácio do Belvedere, do outro lado da rua iluminada por candeeiros sob os quais passava, nesse momento, a ronda dos guardas suíços. Arregui buscou nos bolsos da soraina, reunindo moedas para tentar pela segunda vez. Desta vez, o café saiu sem açúcar, de modo que teve de recorrer ao copo anterior - que, por sorte, tinha permanecido de pé no cesto dos papéis - para adoçar a beberagem. Regressou, depois, à sala dos computadores, queimando o polegar e o indicador no plástico do copo.
- Cá o temos, Padre.
Cooey, o irlandês, tinha tirado os óculos e esfregava as lentes com um lenço de papel, fitando, excitado, o monitor do seu computador. Outro jovem jesuíta, um italiano chamado Garofi, carregava desesperadamente nas teclas do segundo computador, à caça do intruso.
- É Vésperas? - perguntou Arregui. Olhava para o monitor por cima do ombro de Cooey, fascinado com a cintilação dos ícones vermelhos e azuis e com a velocidade vertiginosa a que desfilavam os ficheiros percorridos pelo pirata informático. Este computador reproduzia os movimentos do hacker, enquanto o de Garofi trabalhava na sua identificação e localização.
- Creio que sim - respondeu o irlandês, pondo os óculos com as lentes limpas. - Pelo menos sabe o caminho e vai muito depressa.
- Chegou às AS?
- Algumas. Mas é esperto: não cai nelas.
O padre Arregui tomou um gole de café que lhe queimou a língua.
- Maldito seja!
As AS - Armadilhas Saduceias, na gíria da equipa - eram áreas informáticas dispostas como redes na foz de um rio, para que os piratas entrassem nelas e se desorientassem ou revelassem dados que possibilitassem a sua identificação. As preparadas contra Vésperas constituíam sofisticados labirintos electrónicos, chamarizes ao longo de cujo percurso o intruso se expunha a descobrir cartas do seu jogo que o tornavam vulnerável.
- Está à procura de INMAVAT - anunciou Cooey.
Havia de novo uma ponta de admiração na sua voz e o padre Arregui olhou, carrancudo, o pescoço e a nuca do seu jovem perito, que seguia a progressão do hacker, inclinado sobre o monitor com o rato sob os dedos da mão direita. "Era inevitável", disse para consigo, enquanto terminava o resto do café. Ele próprio não conseguia evitar uma certa excitação profissional ao ver actuar um membro da confraria informática, sobretudo se clandestino e tão limpo como Vésperas. Embora fosse um delinquente e um pirata que o mantinha há uma semana sem dormir.
- Já está - disse o irlandês.
Até Garofi deixara de carregar nas teclas e olhava. INMAVAT, o arquivo restrito para altos cargos da Cúria, desfilava a toda a velocidade pelo monitor, com as tripas no ar.
- É Vésperas, sim - disse Cooey, no tom de quem reconhece a assinatura de um velho amigo.
O copo de plástico soou como um estalido, quando o padre Arregui o apertou na mão antes de o atirar para o cesto dos papéis. No computador de Garofi cintilava o cursor do scanner ligado à polícia e à rede telefónica vaticana.
- Faz o mesmo que da outra vez - disse o italiano. - Camufla o seu ponto de entrada, saltando por diferentes redes telefónicas.
O padre Arregui tinha os olhos cravados no cursor cintilante que passeava de alto a baixo de uma lista de oitenta e quatro utilizadores de INMAVAT. Tinham trabalhado vários dias para instalar uma armadilha saduceia destinada a quem tentasse infiltrar-se em V01A, o terminal pessoal do Santo Padre. A armadilha, inerte quando se acedia ao arquivo com código normal, só funcionava se o intruso provinha do exterior: ao transpor a entrada de INMAVAT, arrastava consigo um código oculto cuja existência o próprio pirata desconhecia. Algo como uma rémora invisível. Ao chegar a V01A, este sinal bloqueava o acesso ao destinatário real, desviando o pirata para outro fictício, V01ATS, onde nada do que fizesse poderia causar dano e, julgando fazê-lo no computador pessoal do Papa, deixaria a nova mensagem que traria consigo.
O cursor deteve-se, cintilando, em V01A. Foram dez longos segundos durante os quais os três jesuítas contiveram a respiração, pendentes do monitor do computador gémeo. Por fim, o cursor fez duplo clique e apareceu o relógio de espera.
- Está a entrar - Cooey disse-o em voz muito baixa, como se Vésperas pudesse ouvi-los. Tinha o rosto corado e nos óculos novamente embaciados reflectia-se o monitor.
O padre Arregui mordia o lábio inferior, apertando e desapertando um dos botões da sotaina. Se a armadilha não funcionasse ou se Vésperas suspeitasse da sua existência, o pirata podia aborrecer-se. E um pirata furioso num arquivo tão delicado como INMATAV era imprevisível. Em todo o caso, a equipa de especialistas vaticanos guardara um trunfo na manga: bastava carregar numa tecla para pôr INMAVAT fora do sistema. O problema era que, nesse caso, Vésperas compreenderia que estavam atrás dele e poderia desaparecer de imediato. Ou, o que era pior, podia voltar noutra altura com uma táctica diferente e inesperada. Por exemplo, um programa assassino, destinado a infectar e destruir tudo o que lhe aparecesse à frente.
Desapareceu o relógio, modificando o formato do monitor.
- Lá vai ele - apontou Garofi.
Vésperas estava dentro de V01A e, durante um desconcertante momento, os três jesuítas estudaram, angustiados, o monitor, para ver em qual dos dois, real ou fictício, acabaria por entrar. À medida que aparecia o código do arquivo, Cooey começou a ler com voz crispada:
- Vê-Zero-Um-A-Tê-Esse.
Depois esboçou um sorriso grande, orgulhoso, satisfeito. Vésperas tinha introduzido o seu ficheiro pirata na armadilha saduceia e o computador pessoal do Papa estava fora do seu alcance.
- Louvado seja Deus! - disse o Padre Arregui. Arrancara, por fim, o botão da sotaina. Inclinou-se, com ele na, a ler a mensagem que aparecia no monitor:
O inimigo saqueou tudo no teu santuário.
Os opressores rugiam no lugar das tuas assembleias puseram suas insígnias no frontão da entrada.
Como quem brande um machado no bosque, eles derribaram os batentes golpeando com machado e com martelo; atearam fogo no teu santuário, profanaram até ao chão a morada do teu nome. Até quando, ó Deus, o opressor vai blasfemar?
Depois daquilo, Vésperas cortou o contacto e o seu sinal desapareceu do monitor.
- Impossível localizá-lo - o padre Garofí dedilhava inutilmente o cursor do rato no seu computador - Em cada volta deixa atrás uma espécie de cargas demolidoras que destroem os vestígios quando se vai embora. Este hacker conhece bem o que tem nas mãos.
- E também conhece os Salmos - disse o Padre Cooey, accionando a impressora para obter uma cópia do texto. - E o 63, não é?
O padre Arregui negava com a cabeça.
- 73. Salmo 73 - corrigiu, e fitava ainda, preocupado, o monitor do computador de Garofí. - Lamentação Após o Saque do Templo.
- Sabemos mais alguma coisa a seu respeito - disse, subitamente, o padre Cooey. - É um pirata com sentido de humor.
Os outros sacerdotes olharam para o quadrado iluminado. No seu interior, pequenas bolinhas saltavam agora como bolas de pin-gue-pongue, reproduzindo-se e, quando duas delas se encontravam, produzia-se uma deflagração nuclear, um pequeno cogumelo de cujo centro saía a palavra bum.
Arregui estava indignado.
- Ah, canalha! - dizia - Herege!
De repente, reparou no botão da sotaina que tinha na mão e atirou-o para o cesto dos papéis. Atentos ao monitor, os padres Cooey e Garofí riam-se intimamente.
A GARRAFA DE ANIS DEL MONO
No tempo já distante em que, estudando a sublime Ciência, nos debruçávamos sobre o mistério repleto de pesados enigmas.
(Fulcanelli, O Mistério das Catedrais)
Pouco passava das oito da manhã, quando Quart atravessou a praça em direcção a Nossa Senhora das Lágrimas. O sol iluminava o campanário desluzido, sem contudo passar a linha de beirais das casas pintadas de branco e ocre. Gozavam ainda de sombra fresca as laranjeiras, cujo aroma o acompanhou até à porta da igreja, onde um mendigo pedia esmola sentado no chão, com as muletas encostadas à parede. Quart deu-lhe uma moeda e transpôs o umbral, detendo-se um instante junto do Nazareno e dos ex votos. A missa não tinha chegado ao ofertório.
Caminhou até aos últimos bancos e foi sentar-se num deles. Uma vintena de fiéis encontrava-se à frente, ocupando metade da nave. O resto dos bancos com os seus reclinatórios continuavam empilhados contra a parede, entre os andaimes que cobriam as paredes do recinto. A luz do retábulo sobre o altar-mor estava acesa e, sob o variegado conjunto de esculturas em madeira e imagens, aos pés da Virgem das Lágrimas, Don Príamo Ferro oficiava a missa com o padre Oscar como acólito. A maior parte dos seus paroquianos eram mulheres e gente de certa idade: vizinhos de aparência modesta, empregados prestes a ir para o trabalho, reformados, donas de casa. Algumas mulheres tinham ao lado as cestas ou os carrinhos para as compras. Duas ou três velhas estavam vestidas de negro e uma, ajoelhada junto de Quart, cobria-se com um daqueles véus que não se usavam há vinte anos.
O padre Ferro adiantou-se para ler o Evangelho. Os seus paramentos eram brancos e Quart observou que, no pescoço, sob a casula e a estola, se via a borda do amito: a antiga peça de pano que, em memória do sudário que cobriu o rosto de Cristo, os sacerdotes colocavam sobre os ombros ao vestir-se para a missa antes do Concílio Vaticano II. Só os oficiantes muito velhos ou muito tradicionalistas recorriam já a esta peça de vestuário; e não era este o único anacronismo na indumentária e atitudes do padre Ferro. A velha casula, por exemplo, era do tipo chamado de guitarra, deixando o peitilho aberturas completas dos lados, em lugar do modelo usual, próximo da dalmática, que viera substituí-la por ser mais cómodo e ligeiro.
- Naquele tempo, disse Jesus aos discípulos...
O pároco lia o texto centenas de vezes repetido ao longo da sua vida, quase sem olhar para o livro aberto sobre o atril, absorto em algum lugar indeterminado entre ele e os seus fiéis. Não havia microfones - nem a pequena igreja precisava deles - e a sua voz vigorosa, tranquila, desprovida de inflexões ou matizes, enchia com autoridade o silêncio da nave, entre os andaimes e as pinturas enegrecidas do tecto. Não deixava lugar à discussão nem à dúvida: tudo, à parte aquelas palavras proferidas em nome de Outro, carecia de valor ou de importância. Aquele era o verbo da fé.
- Em verdade, em verdade vos digo que chorareis e vos lamentareis, mas o mundo se alegrará. Vós vos entristecereis, mas a vossa tristeza se transformará em alegria. Mas eu vos verei de novo, e o vosso coração se alegrará. E ninguém vos tirará a vossa alegria...
"Palavra de Deus", disse, regressando para trás do altar; e os fiéis rezaram o Credo. Então, sem grande surpresa, Quart descobriu Macarena Bruner. Estava três bancos à frente, de óculos escuros, calças de ganga, o cabelo preso num rabo-de-cavalo e o casaco sobre os ombros, inclinando o rosto em oração. Depois, voltando ao altar, os olhos de Quart encontraram os do padre Oscar, que o observavam, imperscrutáveis, enquanto Don Príamo continuava a oficiar, alheio a tudo o que não fosse o ritual dos seus próprios gestos e palavras:
- Benedictus est, Domine, deus univerús, quia de tua largitate acce-pimus panem...
Atónito, Quart prestou atenção ao que dizia o sacerdote: estava a celebrar em latim. De facto, todas as partes da missa que não fossem directamente dirigidas aos fiéis ou não pudessem ser recitadas de modo colectivo, o padre Ferro pronunciava-as na velha língua canónica da Igreja. Não era, por certo, uma grave infracção; algumas igrejas com foro especial possuíam esse privilégio e, em Roma, o próprio Pontífice oficiava frequentemente a missa em latim. Mas as disposições eclesiásticas estabeleciam, desde Paulo VI, que a missa fosse pronunciada nas línguas de cada paróquia, para maior compreensão e participação dos fiéis. Era evidente que o padre Ferro só em parte assumia o modelo de modernidade eclesiástica.
- Per huius aquae et viní mysterium...
Quart estudou-o pausadamente durante o ofertório. Colocados os objectos litúrgicos sobre os corporais, o pároco elevou ao céu a hóstia, colocada na patena e depois, deitando umas gotas de água no vinho trazido no galheteiro pelo padre Oscar, fez o mesmo com o cálice. Em seguida, voltou-se para o seu acólito, que lhe oferecia uma pequena bacia e uma jarra de prata, e passou a lavar as mãos.
- Lava me, Domine, ab iniquitate mea.
Quart seguia o movimento dos seus lábios, pronunciando as frases latinas em voz baixa. O lavatório das mãos era outro costume em vias de extinção, embora admitido na ordem comum da missa. E pôde apreciar mais pormenores anacrónicos, pouco vistos desde que, com dez ou doze anos, assistia como menino de coro à missa do cura da sua paróquia: o padre Ferro juntou as pontas dos dedos sob o jacto de água vertido pelo acólito e depois, uma vez enxutas as mãos, manteve os polegares e os indicadores juntos, formando círculo, para impedir que tivessem contacto com alguma coisa; e mesmo as páginas do missal, passava-as com os outros três dedos, que mantinha rígidos. Tudo aquilo era requintadamente ortodoxo a maneira antiga, muito próprio de velhos eclesiásticos renitentes a aceitar a mudança dos tempos. Só lhe faltava oficiar de costas para os fiéis, virado para o retábulo e para a imagem da Virgem, tal como se fazia três décadas atrás. E, suspeitava Quart, isso não teria incomodado Don Príamo Ferro. Viu que rezava o cânone inclinando a cabeça teimosa com hirsuto cabelo branco mal tosquiado: Te igitur, clementisúme Pater. O queixo de sombras escuras e cinzentas, mal escanhoadas, afundava-se no colarinho da casula, ao mesmo tempo que o pároco pronunciava em voz baixa, audível no silêncio absoluto da igreja, as orações do sacrifício da missa do mesmo modo como haviam sido pronunciadas por outros homens, vivos e mortos, antes dele, durante os últimos mil e trezentos anos:
- Per ipsum, et cum ipsum, et in ipso, est tibi Deo Patri omnipotenti...
Muito contra a sua vontade, mesmo com o seu cepticismo técnico às costas e o desdém que lhe inspirava a figura do padre Ferro, o sacerdote que havia em Lorenzo Quart não pôde deixar de se comover ante a singular solenidade que o ritual, aqueles gestos e palavras, conferia ao veterano pároco. Era como se a transformação simbólica que, nesse momento, se registava sobre o altar transfigurasse também a sua aparência de tosco cura provinciano para a revestir de autoridade; um carisma que fazia esquecer a velha e suja sotaina e os sapatos por engraxar sob a casula de colarinho coçado, fios de ouro e adornos desluzidos pela passagem do tempo. Deus - se é que existia um Deus por detrás daquela madeira dourada, barroca, reluzente em torno da Virgem das Lágrimas - acedia, sem dúvida, por um instante, a pôr a mão sobre o ombro do velho resmungão que, inclinado sobre a hóstia e o cálice, consumava o mistério da encarnação e morte do Filho. Além disso, pensou Quart, olhando os rostos que tinha diante de si - incluindo Macarena Bruner virada para o altar e, como os outros, suspensa das mãos do sacerdote -, o que nesse momento menos importava era que houvesse ou não houvesse, em algum lugar, um Deus disposto a dispensar prémios e castigos, condenação ou vida eterna. O que contava naquele silêncio onde a voz forte do padre Ferro desfiava a liturgia eram os rostos graves, tranquilos, suspensos das suas mãos e da sua voz, murmurando com o oficiante palavras, compreendidas ou não, que se resumiam numa única: consolação. O que significava calor no frio, ou uma mão amiga nas trevas. E, como eles, ajoelhados no seu reclinatório, com os cotovelos no espaldar do banco da frente, Quart repetiu intimamente as palavras da consagração, ao mesmo tempo que se remexia, incomodado; consciente de que acabava de transpor o umbral da compreensão no que se referia àquela igreja, ao seu pároco, à mensagem de Vésperas e ao que ele próprio fazia ali. Era mais fácil, descobriu, desprezar o padre Ferro do que vê-lo, pequeno e rude sob a antiquada casula, criando com as palavras do velho mistério um humilde remanso onde aquela vintena de rostos na sua maior parte cansados, envelhecidos, curvados sob o peso dos anos e da vida, olhavam - temor, respeito, esperança - o pedacinho de pão que o velho segurava nas suas mãos orgulhosas. O vinho, fruto da vida e do trabalho do homem, que, acto contínuo, elevava no cálice de latão dourado e depois descia, convertido no sangue daquele Jesus que, de igual modo, terminada a ceia, deu a comer e beber aos seus discípulos com palavras idênticas às que o padre Ferro fazia agora ressoar, inalteráveis, vinte séculos depois, sob as lágrimas de Cario-ta Bruner e do capitão Xaloc: Hoc facite in meam commemorationem. Fazei isto em memória de mim.
Estava terminada a missa. A igreja encontrava-se deserta. Quart continuava sentado no seu banco depois de Don Príamo Ferro ter dito Ite, missa est, retirando-se do altar sem olhar uma única vez na sua direcção, e os fiéis terem saído um a um, mesmo Macarena Bruner, que passou por ele atrás dos seus óculos escuros e sem dar mostras de reparar na sua presença. Por momentos, a velha beata do véu foi a única companhia de Quart; e, enquanto ela rezava, o padre Oscar subiu de novo ao altar pela porta da sacristia, apagou os círios e a luz eléctrica do retábulo, e voltou a retirar-se sem despregar os olhos do chão. Depois, também a beata saiu e o agente do IOE ficou sozinho na penumbra da igreja vazia.
Apesar das suas atitudes e do rigor com que se cingia à regra, Quart era um homem lúcido. E esta lucidez manifestava-se como uma maldição serena que impedia de aprovar inteiramente a ordem natural das coisas sem, em contrapartida, lhe proporcionar nada que tornasse suportável semelhante consciência. No caso de um sacerdote, como no de qualquer ofício que obrigasse a acreditar no mito da posição privilegiada do homem na harmonia do Universo, aquilo era incómodo e perigoso; poucas coisas sobreviviam à certeza de como é insignificante a vida humana. Quanto a Quart, só a força de vontade, encarnada na sua disciplina, permitia manter a perigosa fronteira onde a verdade nua tenta os homens, disposta a passar factura sob a forma de debilidade, apatia ou desespero. Era, talvez, por isso que permanecia sentado no banco da igreja, sob a abóbada negra que cheirava a cera e a pedra velha e fria. Olhava em redor os andaimes contra as paredes, os poeirentos ex votos junto do Nazareno com o seu sujo cabelo natural, a madeira dourada do retábulo em sombras, as lajes do solo que os passos de gente morta haviam desgastado cem, duzentos ou trezentos anos atrás. E via ainda o rosto mal escanhoado e carrancudo do padre Ferro, que se inclinava sobre o altar, pronunciando herméticas frases ante uma vintena de rostos aliviados da sua condição humana graças à esperança de um pai Todo-Poderoso, uma consolação, uma vida melhor onde os justos obteriam o seu prémio e os ímpios, o seu castigo. Aquele modesto recinto estava muito longe dos cenários ao ar livre, dos écrans gigantes de televisão, do folclore e da vulgaridade das berrantes igrejas multicores onde tudo era válido: as técnicas de Goebbels, os cenários de rock, a dialéctica dos mundiais de futebol, a água benta com aspersor electrónico. Por isso, como os peões perdidos a que aludia Gris Marsala, alheios já à batalha cujo rumor se extinguia nas suas costas, entregues à sua própria sorte e ignorando se se mantinha de pé um rei por quem lutar, algumas peças escolhiam a sua casa no tabuleiro de xadrez: um lugar onde morrer. O padre Ferro escolhera o seu, e Lorenzo Quart, qualificado caçador de cabeças por conta da Cúria romana, era capaz de compreendê-lo sem demasiado esforço. Talvez por isso não se sentia inteiramente seguro, sentado num banco daquela igreja pequena, maltratada e solitária, convertida pelo velho pároco na sua Torre Maldita: um reduto para defender as últimas ovelhas fiéis dos lobos que rondavam por todo o lado, lá fora, prontos a arrebatar-lhes os últimos farrapos de inocência.
Em tudo isto esteve pensando Quart, sentado no seu banco, durante um bom pedaço. Depois ergueu-se e caminhou pelo corredor central até ao altar-mor, escutando o eco dos seus passos sob a coberta elíptica do cruzeiro. Deteve-se diante do retábulo, junto da lamparina acesa do Santíssimo, e contemplou as esculturas orantes dos antepassados de Macarena Bruner dos lados da imagem central da Virgem das Lágrimas. Sob o seu baldaquim régio, escoltada por querubins e santos entre folhagem e adornos de madeira dourada, a estátua de Martínez Montanés perfilava-se na penumbra, com a claridade diagonal que os vitrais deixavam passar entre a estrutura geométrica, racional, dos andaimes. Era muito bela e muito triste, com o rosto ligeiramente voltado para cima como numa censura, e as mãos vazias e abertas, estendidas de cada lado como se perguntasse em nome de quê lhe haviam arrebatado o seu filho. As vinte pérolas do capitão Xaloc brilhavam suavemente no seu rosto, na coroa de estrelas e na túnica azul, sob a qual um pé descalço sobre a meia lua esmagava uma cabeça de serpente.
- Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua linhagem e a linhagem dela...
A voz citando o Génesis soou nas suas costas e, ao voltar-se, Quart descobriu os olhos claros de Gris Marsala. Não a tinha ouvido entrar e estava agora atrás dele, tendo-se aproximado silenciosamente, graças às suas sapatilhas de ténis.
- Você anda como os gatos - disse Quart.
Ela riu-se, meneando a cabeça. Trazia, como sempre, o cabelo recolhido na nuca numa curta trança, um pólo folgado e calças de ganga sujas de tinta e de gesso. Quart pensou nela, pintando-se ao espelho antes da visita do bispo, e na expressão daqueles olhos frios multiplicada quando o vidro se partira sob o murro. Procurou nas suas mãos a cicatriz. Ali estava: um traço lívido de três centímetros do lado de dentro do pulso direito. Perguntou a si próprio se teria sido intencional.
- Não me diga que ouviu missa aqui - disse ela.
Quart anuiu, vendo-a sorrir de modo indefinível. Olhava-lhe ainda a cicatriz; e Gris Marsala, percebendo-o, volveu o antebraço para a ocultar.
- Este pároco... - disse Quart.
Ia a acrescentar alguma coisa, mas calou-se como se aquilo resumisse tudo. Passado um momento, ela sorriu de novo; desta vez de modo mais obscuro, como se o fizesse para si mesma depois de escutar palavras não pronunciadas.
- Sim - murmurou. - É exactamente isso.
Parecia aliviada, e deixou de proteger o pulso. Depois perguntou-lhe se tinha visto Macarena Bruner e Quart assentiu com um gesto.
- Vem todas as manhãs, às oito - precisou ela. - As quintas e domingos, vem com a mãe.
- Não a imaginava tão piedosa.
Não havia intenção no sarcasmo, mas Gris encaixou o comentário, incomodada:
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Não gosto desse seu tom. Deu uns passos diante do retábulo, olhando a imagem da Virgem. Depois voltou-se de novo para a mulher:
- Talvez tenha razão. Mas ontem jantei com ela e continuo desconcertado.
- Eu sei que jantaram - os olhos claros estudavam-no com atenção, ou curiosidade. - Macarena acordou-me à uma da madrugada e manteve-me quase meia hora ao telefone. Entre muitas outras coisas, disse que você viria à missa.
- É impossível - objectou Quart. - Nem eu mesmo estava certo disso até alguns minutos atrás.
- Acredito. Mas ela estava. Disse que talvez assim começasse a compreender - deteve-se, inquisitiva. - Começou a compreender?
Quart fitou-a, impávido:
- Que mais lhe disse?
Fez a pergunta de um modo superficial, quase irónico; mas arrependeu-se antes de completar a frase. Estava realmente interessado no que Macarena Bruner tinha podido contar à sua amiga freira e irritava-o que isso se tornasse evidente.
Gris Marsala olhava o cabeção da camisa do sacerdote. Pensativa.
- Disse muitas coisas. Que você lhe agrada, por exemplo. E que não é tão diferente de Don Príamo como julga - os seus olhos percorriam-no agora de cima a baixo, apreciativos e deliberados. - Disse também que é o cura mais sexy que viu na vida - o sorriso que esboçou raiava a provocação. - Disse exactamente isto: sexy. Que lhe parece?
- Porque me conta tudo isso?
- Que disparate! Conto-lhe porque me perguntou.
- Não brinque comigo - e levou o dedo à testa. - Tenho o cabelo tão grisalho como o seu.
- Gosto do seu cabelo assim tão curto. Macarena também.
- Não respondeu à minha pergunta, Irmã Marsala.
Ela riu e inúmeras pequenas rugas cercaram os seus olhos.
- Deixe essa forma de tratamento, por favor - ria, mostrando as calças sujas e os andaimes nas paredes. - Não sei se tudo isto é próprio de uma freira.
Não era, disse Quart para consigo. Nem aquilo, nem a sua atitude no estranho triângulo formado por eles os dois e Macarena Bruner, ou talvez quarteto, se incluíssem o inevitável padre Ferro. Tão-pouco a imaginava de hábito, num convento. Parecia ter percorrido um longo caminho, desde Santa Bárbara.
- Pensa regressar alguma vez?
Tardou um pouco a responder. Olhava o fundo da nave, os bancos empilhados junto da porta. Tinha os polegares nos bolsos traseiros das calças e Quart perguntou a si mesmo quantas freiras seriam capazes de usar uns jeans cingidos como os que trazia Gris Marsala: esbelta como uma jovem, apesar da idade. Apenas o rosto e o cabelo tinham envelhecido e, ainda assim, uma atracção especial emanava daquela sua forma de mover-se.
- Não sei - disse com ar ausente - Talvez dependa deste lugar; do que aconteça aqui. Creio que por causa disso não me fui embora - dirigia-se agora a Quart sem olhar para ele, semicerran-do os olhos à luz do sol que entrava já pelo rectângulo iluminado da porta. - Nunca sentiu, de súbito, um vazio inesperado, aí onde julga ter um coração?... Faz "claque" e pára um momento, sem motivo aparente. Depois tudo segue o seu ritmo, mas uma pessoa sabe que já não é a mesma e pergunta, inquieta, a si própria se haverá algo de errado.
- Crê que o averiguará aqui?
- Não faço ideia. Mas há lugares que encerram respostas. Essa intuição leva-nos a vaguear em seu redor, à procura. Não crê?
Incomodado, Quart apoiou-se num pé, depois no outro. Não era o seu género de conversa favorito, mas precisava de palavras. Em qualquer uma podia estar a ponta da meada.
- O que eu creio é que vagueamos toda a vida em torno da nossa sepultura. Talvez seja essa a resposta.
Sorriu um pouco, ao dizê-lo, tirando ao comentário a sua transcendência. Ela, porém, não se deixou distrair pelo sorriso:
- Eu tinha razão. Não é um sacerdote como os outros.
Não disse porquê, nem diante de quem fazia valer aquela razão, nem tão-pouco Quart o quis indagar. Sobreveio então um silêncio que nenhum tentou preencher. Seguiram lado a lado pela nave. Quart contemplava as paredes, a pintura a cair e os dourados baços das cornijas. Junto do eco dos seus passos, Gris Marsala caminhava em silêncio. Por fim, ela falou de novo:
- Há coisas - disse. - Há lugares e pessoas pelos quais não é possível passar de modo impune... Sabe do que estou a falar? - deteve-se um instante a observar Quart, depois prosseguiu o seu caminho, abanando a cabeça. - Não, não creio que o saiba ainda. Refiro-me a esta cidade. A esta igreja. E também a Don Príamo e à própria Macarena - tinha parado de novo e sorria, trocista. - É bom que saiba no que se está a meter.
- Talvez eu não tenha nada a perder.
- Tem graça ouvi-lo dizer isso. Macarena assegura que é o que tem de mais interessante. A impressão que produz - estavam já junto da porta e a luz da rua fazia contrair a íris clara nos olhos da mulher. - Dir-se-ia que, tal como Don Príamo, também não tem muito a perder.
O empregado fez girar a manivela do toldo até que a sombra
cobriu a mesa onde estavam Pencho Gavira e Octavio Machuca. Sentado aos pés do velho banqueiro, um engraxador dava-lhe pomada, batendo com a escova na palma da mão:
- Dê-me o outro, cavalheiro.
Obediente, Machuca retirou o pé direito da caixa de preguinhos dourados e pequenos espelhos e pôs o esquerdo no mesmo lugar. O engraxador colocou os protectores para não manchar as peúgas e prosseguiu, consciencioso, a sua tarefa. Era muito fraco, aciganado, de cinquenta anos já passados, com os braços cobertos de tatuagens e os bilhetes de lotaria a espreitar pelo bolso da camisa. Todos os dias, o presidente do Banco Cartujano mandava engraxar os sapatos por sessenta duros, enquanto via passar a vida da sua mesa na esquina de La Campana.
- Está um calor de rachar - disse o engraxador. Enxugava com as costas da mão negra de pomada as gotas de
suor que lhe escorriam pelo nariz abaixo. Pencho Gavira acendeu um cigarro e ofereceu outro ao engraxador, que o pôs atrás da orelha, sem deixar de esfregar os sapatos de Machuca com a escova. Com a chávena de café e o ABC em cima da mesa, o velho banqueiro observava, satisfeito, o trabalho. Ao terminar a faena, estendeu ao engraxador uma nota de mil e este coçou a nuca, perplexo:
- Não tenho troco, cavalheiro.
O presidente do Cartujano sorria, habitual, cruzando as compridas pernas:
- Pois cobra-me amanhã, Rafita. Quando tiveres troco. Devolveu o engraxador a nota, levando dois dedos à testa num
vago gesto militar, antes de afastar-se em direcção à Praça Duques da Vitória, com o banco e a caixa debaixo do braço. Pencho Gavira viu que passava junto de Peregil, que aguardava a uma distância respeitosa, junto da montra de uma sapataria e a poucos passos do Mercedes azul escuro, parado à beira do passeio. Cánovas, o secretário de Machuca, verificava papéis numa mesa próxima, disciplinado e silencioso, esperando despachar os assuntos do dia.
- Como vai a igreja, Pencho?
Era uma pergunta de aspecto rotineiro, como sobre o estado do tempo ou a saúde de um parente. O velho Machuca tinha pegado no jornal e passava as páginas sem lhes dar atenção, até que chegou à necrologia. Aí, pôs-se a ler pausadamente. Gavira recostou-se na cadeira de vime e olhou para as manchas de sol que iam ganhando terreno aos seus pés, avançando lentamente desde a Calle Sierpes.
- Estamos a tratar disso - disse.
Machuca semicerrava os olhos, absorvido nas participações. Na sua idade, era um consolo ver quanta gente conhecida ia desfilando à sua frente.
- Os conselheiros impacientam-se - comentou, sem deixar de ler. - Para sermos exactos, uns impacientam-se, outros esperam que te espalhes - passou uma página, dedicando meio sorriso ao rol de filhos, netos e demais família que rogava por alma do excelentíssimo Senhor Don Luis Jorquera de Ia Sintacha, ilustre filho de Sevilha, comendador da Ordem de Manara, mestre-de-cerimónias da Real Confraria da Caridade Perpétua, falecido depois de receber os santos sacramentos, etc.: Machuca e Sevilha inteira estavam ao corrente de que o excelentíssimo defunto tinha sido um perfeito desavergonhado, enriquecido nos anos do pós-guerra graças ao tráfico de penicilina. - Faltam muito poucos dias para debater o teu projecto para a igreja.
Gavira assentiu, de cigarro na boca. Seria vinte e quatro horas depois de os Sauditas de Sun Qafer Alley aterrarem no aeroporto da cidade para, finalmente, comprarem Puerto Targa. E com esse acordo firmado em cima da mesa, ninguém ia ter o que dizer.
- Estou a dar os últimos retoques - disse.
Machuca moveu lentamente a cabeça, de cima para baixo, um par de vezes. Os seus olhos rodeados de profundos círculos escuros iam do diário às pessoas que passavam na rua.
- Esse cura - comentou. - O velho.
Gavira prestou atenção; mas o banqueiro ficou uns instantes calado, como se não chegasse a concretizar a ideia. Ou talvez se limitasse a provocar o seu delfim. Em todo o caso, Gavira guardou silêncio.
- Ele é a chave - prosseguiu Machuca. - Enquanto não desistir, o presidente da Câmara continuará sem. vender, o arcebispo sem secularizar e a tua mulher e a mãe dela manterão a sua postura. Essas missas das quintas-feiras lixam-te.
Continuava a referir-se a Macarena Bruner como a mulher de Gavira; e isso, embora fosse tecnicamente certo, tinha conotações incómodas para este. Machuca negava-se a aceitar a separação do casal que tinha apadrinhado. Encerrava também uma advertência: nada se resolveria para o seu sucessor enquanto se mantivesse a equívoca situação conjugal, com Macarena a evidenciá-lo. A boa sociedade sevilhana, que aceitara Gavira aquando do seu casamento com a menina do Nuevo Extremo, não perdoava certas coisas. Fizesse o que fizesse, curas ou toureiros pelo meio, Macarena era um deles; mas Gavira, não. Sem a sua mulher, ficava reduzido a um chulo adventício e com dinheiro.
- Enquanto resolvo o assunto da igreja - disse - vou ocupar-me dela.
Machuca passava páginas, incrédulo.
- Não estou assim tão certo. Conheço-a desde pequena - inclinou-se sobre o jornal para beber um pouco da chávena. - Ainda que tires o pároco da jogada e derrubes a igreja, estás a perder a outra batalha. Macarena tomou isso como uma coisa pessoal.
- E a duquesa?
Surgiu um arremedo de sorriso sob o nariz grande e afilado do banqueiro:
- Cruz respeita muito as decisões da filha. E, na igreja, está do lado dela, incondicionalmente.
- Tem-na visto ultimamente? Falo da mãe.
- Claro. Todas as quartas-feiras.
Era certo. Uma tarde por semana, Octavio Machuca mandava o seu carro ir buscar Cruz Bruner e esperava-a no Parque de Maria Luísa para darem um passeio. Podia vê-los ali, sob os salgueiros, ou sentados num banco da estátua de Bécquer nas tardes de sol.
- Mas já sabes como é a tua sogra - Machuca aguçou um pouco o sorriso. - Só conversamos sobre o tempo, os vasos do seu pátio e as flores do jardim, os versos de Campoamor e recito-lhe sempre aquela: "As filhas das mulheres que tanto amei l beijam-me já como quem beija um santo", ri-se como uma criança. Falar-lhe do genro, ou da igreja, ou do fracasso matrimonial da filha parecer-Lhe-ia uma vulgaridade - apontou para o extinto Banco de Levante, na esquina de Santa Maria de Gracia. - Apostava aquele edifício em como nem sequer sabe que estão separados.
- Não exagere, Don Octavio.
- Não exagero minimamente.
Gavira bebeu um trago de cerveja em silêncio. Era um exagero, evidentemente; mas definia bem o carácter da velha dama que habitava a Casa do Postigo como uma monja de clausura no seu convento, passeando sombras e recordações no velho palácio já demasiado espaçoso para ela e a filha, coração de bairro antigo feito de mármores, azulejos, cancelas e pátios com vasos, cadeiras de balanço, canário, sesta e piano. Alheia ao que se passava portas afora, salvo, nos seus passeios semanais, à nostalgia com o amigo do seu falecido marido.
- Não que pretenda intrometer-me na tua vida privada, Pencho - o ancião espreitava sob as pálpebras semicerradas. - Mas pergunto muitas vezes a mim mesmo o que terá acontecido com Macarena.
Gavira moveu a cabeça, sereno.
- Nada de especial, asseguro-lhe. Suponho que a vida, o meu trabalho, criaram tensões... - sorveu o cigarro e deixou sair o fumo pelo nariz e a boca. - Além disso, sabe que ela queria um filho já, de seguida - titubeou um instante. - Eu estou em plena luta para conseguir um lugar, Don Octavio. Não tenho tempo para biberões e pedi-lhe que esperasse - sentia a boca de repente muito seca e recorreu de novo à cerveja. - Que esperasse um pouco, é tudo. Julguei tê-la convencido e que estava tudo bem. De súbito, um dia, zás, foi-se embora batendo a porta e declarou-me guerra. Até hoje. Talvez tenha coincidido com a nossa falta de entendimento quanto à igreja, não sei - fez um esgar. - Talvez tenha coincidido com tudo.
Machuca fitava-o, fixo e frio. Quase com curiosidade.
- A do toureiro - sugeriu - foi um golpe baixo.
- Muito - e trazê-lo à baila, também, mas Gavira absteve-se de o dizer. - Se bem que o senhor saiba que houve mais um par deles, mal se foi embora. Antigos amigos do tempo de solteira, e esse Curro Maestral, que já disparatava com ela - deixou cair o cigarro entre os sapatos e esmagou-o, retorcendo o tacão, enraivecido. - É como se, de repente, tivesse querido recuperar o tempo perdido comigo.
- Ou vingar-se.
- Pode ser que sim.
- Alguma coisa tu lhe fizeste, Pencho - o velho banqueiro movia a cabeça, convencido. - Macarena casou-se apaixonada por ti.
- Juro-lhe que não o entendo - respondeu por fim. - Nem sequer como vingança. O primeiro caso que tive depois de casado foi bem um mês depois de Macarena me ter deixado, já ela se tinha deixado ver com esse dono de adegas de xerez, Villalta. A quem, evidentemente, Don Octavio, com sua licença, acabo de negar um crédito.
Machuca ergueu uma das suas mãos fracas como garras, afastando tudo aquilo. Estava ao corrente da relação, recente e superficial, do seu delfim com uma modelo publicitária; e sabia que este dizia a verdade. Em todo o caso, Macarena era de muito boa casta para provocar um escândalo público por causa de uma história de saias do marido. Se todas o fizessem, bonita estava Sevilha. Quanto à igreja, o banqueiro ignorava se era o problema, ou o pretexto. Gavira tocava no nó da gravata, incomodado:
- Pois estamos na mesma, Don Octavio. Um padrinho e um marido na penúria.
- Com uma diferença - Machuca sorria de novo, sob o nariz afilado, cruel. - Tanto a igreja como o teu casamento dizem-te respeito, não é verdade? Eu limito-me a ver...
Gavira olhou para Peregil, que continuava de guarda junto do Mercedes. Endureceu o queixo.
- Vou apertar um pouco mais.
- A tua mulher?
- O cura.
Ouviu-se o riso áspero do velho banqueiro.
- Qual deles? Ultimamente multiplicam-se como coelhos.
- O pároco. O padre Ferro.
- Isso - Machuca olhou também, de soslaio, na direcção de Peregil, antes de exalar um longo suspiro. - Espero que tenhas o bom gosto de me poupar os pormenores.
Passaram uns turistas japoneses, carregando enormes mochilas e no limite da desidratação. Machuca largou o jornal em cima da mesa e esteve calado por um instante, recostando-se na cadeira de vime. Finalmente, voltou-se para Gavira.
- É duro viver na corda bamba, não é verdade? - os olhos de ave de rapina tinham um ar trocista entre os seus círculos escuros. - Levei assim anos e anos, Pencho. Desde que passei a primeira mercadoria por Gibraltar, terminada a guerra. Ou quando comprei o banco, perguntando a mim mesmo no que ia meter-me. Noites sem dormir, com todos os medos do mundo no pensamento... - sacudiu brevemente a cabeça. - De repente, um dia descobres que cruzaste a meta e que tanto te faz. Que os cães já não te alcançarão, por muito que ladrem e corram. Só então começas a desfrutar a vida, ou o que dela te resta.
Torceu a boca num gesto a meio caminho entre a diversão e o cansaço. Um sorriso frio gelava-lhe as comissuras.
- Espero que cruzes essa meta, Pencho - acrescentou. - Até lá, paga e não chies.
Gavira não respondeu logo. Fez um gesto a chamar o empregado, pediu outra cerveja e outro café com leite, passou a palma da mão pelo cabelo penteado na fonte esquerda e lançou um olhar distraído às pernas de uma mulher que passava.
- Nunca me queixei, Don Octavio.
- Eu sei. Por isso tens um gabinete no piso nobre do Arenal e uma cadeira ao meu lado, nesta mesa. Um gabinete que eu te dou e uma cadeira que te cedo. E, entretanto, leio o jornal e olho para ti.
Veio o empregado com a cerveja e o café. Machuca deitou um torrão de açúcar na chávena e mexeu com a colher.
As freiras de Sor Angela de La Cruz passaram rua abaixo, nos seus hábitos castanhos e véus brancos.
- Com certeza - disse, de súbito, o banqueiro. - Que se passa com o outro cura? - via as freiras afastar-se. - O que ontem jantou com a tua mulher.
A têmpera de Pencho Gavira fazia sentir-se em momentos como aquele. Enquanto acalmava o incómodo latejar do sangue nos tímpanos, obrigou-se a seguir um automóvel com a vista, desde a esquina até desaparecer. Dez segundos, mais ou menos. Ao fim deste tempo, ergueu uma sobrancelha:
- Não se passa nada. Segundo as notícias que tenho, continua a investigar por conta de Roma. Esse tenho-o eu sob controlo.
Machuca fez um gesto aprovador.
- Assim espero, Pencho. Que também o tenhas sob controlo - levou a chávena à boca com um ligeiro grunhido de satisfação. - Bonito sítio, La Albahaca - bebeu outro gole. - Há muito tempo que lá não vou.
- Hei-de recuperar Macarena. Prometo-lhe. O banqueiro anuiu de novo:
- Na realidade, nomeei-te vice-presidente porque te casaste com ela.
- Eu sei - Gavira sorria com despeito. - Nunca tive ilusões a esse respeito.
- Compreende - Machuca tinha-se voltado para ele. - Eras uma boa cabeça. Não havia melhor futuro para Macarena e eu vi-o desde o princípio... - uma das suas mãos apoiava-se ligeiramente no braço de Gavira: um contacto ossudo e seco. - Suponho que te aprecio, Pencho. És, talvez, a melhor coisa que neste momento pode acontecer ao banco; mas nesta altura da vida, o banco é-me indiferente - retirou a mão e ficou a olhar para ele.
- Quando muito, o que me importa é a tua mulher. Ou a mãe dela.
Gavira desviou a vista para o quiosque de jornais da esquina. Por vezes sentia-se como um peixe na rede, procurando inutilmente uma saída. Pedalar sempre na bicicleta, para não cair.
- Pois, se me permite dizê-lo, a igreja era também o futuro de ambas.
- Mas sobretudo o teu, Pencho - Machuca dirigiu-lhe um olhar malicioso. - Sacrificarias o projecto da igreja e a operação de Puerto Targa para recuperar a tua mulher?
Gavira tardou a responder. A questão era essa e ele sabia-o melhor do que ninguém.
- Se perco esta oportunidade - disse, evasivo - perco tudo.
- Tudo, não. Apenas o teu prestígio. E o meu apoio. Com calma, Gavira permitiu-se um sorriso:
- É um homem muito rígido, Don Octavio.
- É possível - o velho olhava outra vez o cartaz da Pena Bética.
- Mas sou justo: a operação da igreja foi ideia tua e o teu casamento, também. Embora eu tenha facilitado um pouco as coisas.
- Então, queria fazer-lhe uma pergunta - Gavira colocou uma das mãos sobre a mesa, depois a outra. - Porque não me ajuda agora, já que tem tanto apreço por Macarena e pela mãe?... Bastaria uma conversa para que se tornassem mais razoáveis.
Machuca voltou-se muito lentamente para ele. Tinha as pálpebras tão semicerradas que as pupilas se resumiam a um fino traço.
- Pode ser que sim e pode ser que não - disse, quando Gavira já quase não esperava resposta. - Mas, nesse caso, também não me teria importado que Macarena casasse com um imbecil qualquer. Vê se compreendes, Pencho: é como quem tem um cavalo, um pugilista, ou um bom galo. O que me agrada é ver-te lutar.
Disse isto e, sem acrescentar mais nada, fez sinal ao secretário. Terminava a audiência e Gavira ergueu-se, abotoando o casaco.
- Sabe uma coisa, Don Octavio? - tinha posto uns óculos escuros de desenho italiano e estava diante da mesa, sóbrio, impecável. - Por vezes dá a impressão de que não deseja um resultado concreto... Como se, no fundo, tanto lhe fizesse: Macarena, o banco, eu próprio...
Do outro lado da rua, uma jovem de saia muito curta e longas pernas saíra com um balde e um esfregão para lavar os suportes dos escaparates de uma loja de roupa. Pensativo, o velho Machuca observava os movimentos da rapariga. Por fim, muito tranquilo, voltou-se para Gavira:
- Pencho... Nunca perguntaste a ti mesmo porque venho aqui todos os dias?
Surpreendido, com uma das mãos no bolso, Gavira olhava para ele sem saber o que dizer. A que propósito vinha aquilo, pensava. Maldito velho.
- Ora, Don Octavio - resmungou, modesto. - Eu não pretendia. Quer dizer...
Havia um brilho trocista, seco, sob as pálpebras semicerradas do banqueiro:
- Uma vez, há muito, muito tempo, estava eu sentado neste sítio e passou uma mulher - Machuca voltou a olhar para a jovem da loja, como que atribuindo-lhe aquela recordação. - Uma mulher muito bonita, dessas de cortar a respiração... Vi-a passar e o seu olhar cruzou-se com o meu. Enquanto se afastava, pensei que devia levantar-me e detê-la. Mas não o fiz. Pesaram mais as convenções sociais, o facto de ser conhecido em Sevilha... Não pude abordá-la e foi-se embora. Consolei-me, dizendo que voltaria a vê-la. Mas não tornou a passar por aqui. Nunca.
Contara-o sem uma ponta de emoção: o mero relato de um facto objectivo. Cánovas aproximava-se, com a carteira debaixo do braço e, depois de uma seca vénia dirigida a Gavira, tomou posse da cadeira que este acabava de abandonar. Recostado na sua, Machuca gratificou o vice-presidente do Cartujano com outro dos seus frios sorrisos:
- Sou muito velho, Pencho. Ao longo da minha vida, ganhei umas batalhas e perdi outras; e agora todas, até as que deveriam ser minhas, considero-as alheias - segurou entre as mãos fracas como garras o primeiro dos documentos que lhe oferecia o secretário. - Mais do que desejo de vitória, o que sinto é curiosidade. É como meter um escorpião e uma aranha dentro de um frasco e ficar a observá-los, compreendes?... Sem sentir simpatia por nenhum dos dois.
Concentrou-se nos documentos e Gavira murmurou uma despedida, antes de se afastar rua abaixo, em direcção ao carro. Uma profunda ruga vertical atravessava-lhe a fronte e as pedras da calçada pareciam mover-se sob os seus pés. Peregil, que alisava com a mão o cabelo sobre a calva, desviou o olhar ao vê-lo aproximar-se.
Na esquina branca e ocre do Hospital de los Venerables, o sol parecia uma bola. Do outro lado da rua, sob o cartaz anunciando a corrida de domingo na Maestranza, dois turistas de pele branca agonizavam, sentados junto de uma mesa, à beira de uma insolação aguda. Dentro do bar Román, a salvo da luz intensa que reverberava naquele forno de cal, almagre e ocre, Siméon Navajo descascou cuidadosamente uma gambá e, com ela na mão, fitou Quart:
- O Grupo de Delitos Informáticos não tem nada que lhe sirva. Nenhum antecedente. Nada.
Dito isto, comeu a gambá e despachou meio copo cerveja de um trago. Passava a vida em pequenos-almoços suplementares, aperitivos, pinchas e bocadilhos, e Quart perguntou a si próprio, enquanto observava a figura miúda e fraca do subcomissário, onde meteria ele tudo aquilo. Até a 375 Magnum lhe fazia tanto volume no corpo que a trazia numa bolsa pendurada ao ombro; uma bolsa moura, de couro lavrado, com franja, que continuava a cheirar ao mercado onde fora comprada e a pele de camelo mal curtida. Com as grandes entradas no cabelo, que usava comprido e preso num rabicho, os óculos redondos, em aço, e a folgada camisa às flores que exibia naquela manhã, a bolsa dava a Siméon Navajo um aspecto peculiar. Algo que contrastava com a alta, delgada e severa figura vestida de negro do sacerdote.
- Não existe nos nossos arquivos - prosseguiu o polícia - nenhuma referência sobre as pessoas que lhe interessam... Temos estudantes muito jovens que se divertem com travessuras informáticas, um monte de gente que comercializa cópias piratas de programas e um par de fulanos de certo nível que, de vez em quando, passeiam por onde não devem. Um deles tentou, há uns dois meses, entrar nas contas correntes do Banksur e fazer umas transferências para si próprio. Mas do que procura, nem rasto.
Estavam de pé ao balcão, debaixo de uma sucessão de enchidos que pendiam do tecto. O polícia tirou outra gambá cozida do prato, arrancou-lhe a cabeça para a chupar com deleite e pôs-se a pelar o resto com mão hábil. Quart olhou para o copo embaciado da sua cerveja, quase intacto:
- Fez a investigação que lhe pedi nas empresas comerciais e nos Telefones?
- Fiz - Navajo anuía com a boca cheia. - Ninguém da sua lista adquiriu, pelo menos com nome e número de identificação próprios, material informático avançado. Quanto aos Telefones, o chefe da segurança é meu amigo. Segundo o que ele me conta, Vésperas não é o único que se mete clandestinamente na rede para viajar até ao estrangeiro, ao Vaticano ou a qualquer outro lugar. Todos os piratas o fazem. Uns são apanhados, outros não. O seu parece esperto. Entra e sai da Internet, e parece que usa um complicado sistema de anéis, ou coisa assim, deixando atrás uma espécie de programas que apagam o rasto e põem os sistemas de detecção completamente malucos.
Comeu a gambá, emborcando a cerveja, e pediu outra. Uma pata do bicho tinha-lhe ficado presa no bigode.
- É tudo quanto posso dizer-lhe. Quart sorriu ao polícia:
- Não é grande coisa, mas agradeço.
- Não deve agradecer-me nada - Navajo atacava já outra gambá; o montinho de cascas aos seus pés crescia com uma rapidez vertiginosa. - Ficaria encantado de poder ajudá-lo de verdade, mas os meus chefes foram muito explícitos: cooperação oficiosa, a que for possível. Algo no plano pessoal, entre você e eu. Por causa dos velhos tempos. Mas não querem complicar a vida com igrejas, curas, Roma e tudo isso. O caso seria diferente se alguém cometesse, ou tivesse cometido, um delito concreto, da minha competência. Mas as duas mortes foram consideradas pelo juiz como acidentes... E que um backer se dedique a aborrecer o Papa a partir de Sevilha é algo que nos deixa com ela bastante frouxa - chupou ruidosamente a cabeça da sua gambá, fitando Quart por sobre os óculos. - Se me permite a expressão.
Deslizava lentamente o sol sobre o Guadalquivir, sem uma brisa, e na outra margem as palmeiras pareciam sentinelas imóveis, montando guarda a La Maestranza. O Potro del Mantelete era um perfil de estátua contra a reverberação do rio na janela; um cigarro na boca e tão quieto como o bronze do seu mestre Juan Belmonte. Chegava até Don Ibrahim, sentado à mesa da sala de jantar, um aroma de ovos estrelados com morcela vindo da cozinha com a canção que a Nina Punales trauteava:
Porque desperto tremendo
e olho a rua deserta e sem luz?
Porque tenho o sentimento
de que vais dar-me sentença de cruz?
Aprovou um par de vezes com a cabeça o ex-falso letrado, movendo silenciosamente os lábios sob o bigode para acompanhar a letra que a Nina ia desfiando baixinho, com a sua voz rouca de aguardente, ao mesmo tempo que, de espátula na mão e avental sobre o vestido às pintas, fritava os ovos com muitas bolhinhas, como Don Ibrahim gostava. Quando não estavam petiscando nos bares de Tria-na, os três compadres costumavam reunir-se para comer qualquer coisa em casa da Nina, um modesto segundo piso da Calle Betis que, isso sim, tinha uma vista de Sevilha com o Arenal, a Torre del Oro e a Giralda, que bem a quereriam reis e milionários, mais os artistas de cinema com todos os seus haveres. Aquela janela sobre o Guadalquivir constituía todo o património da Nina Punales; comprara o andar muito tempo antes, com os parcos lucros que conseguira reunir da sua passageira fama e - dizia, a modos de consolação - ao menos aquilo não o haviam levado as dívidas. Ali vivia sem necessidade de pagar renda, com alguns trastes velhos, uma cama de latão reluzente, uma estampa da Virgem da Esperança, uma fotografia dedicada de Miguel de Molina e uma cómoda onde amareleciam as colchas, as toalhas e os lençóis bordados do enxoval intacto. Isto permitia-lhe destinar os seus fracos recursos a pagar pontualmente as quotas mensais de El Ocaso S. A., com que há vinte anos custeava um humilde nicho e uma lápide no recanto mais soalheiro do cemitério de São Fernando. Porque a Nina era muito friorenta.
Olhaste pra mim e um rio de versos nas minhas vetas cantou teu amor verdadeiro...
Don Ibrahim murmurou um olé sem querer e continuou aplicado na sua tarefa. Tinha chapéu, casaco e bengala em cima de uma cadeira contígua e estava em mangas de camisa, presas com elásticos acima dos cotovelos. O suor desenhava-lhe círculos húmidos debaixo das axilas roliças e no colarinho aberto, onde tinha afrouxado o nó de uma gravata às riscas azuis e vermelhas que, segundo afirmava, lhe tinha sido oferecida por aquele inglês alto, Graham Greene, em troca de um Novo Testamento e de uma garrafa de Four Roses quando estivera em Havana a escrever um romance de espiões - gravata que, além do valor sentimental, era autêntica de Oxford. Ao contrário da Nina, nem Don Ibrahim nem o Potro del Mantelete tinham casa própria. O Potro estava alojado ali perto, numa casa flutuante, um barco de turistas meio abandonado, emprestado por um amigo que havia conhecido nas touradas e na Legião. Por seu lado, o gordo índio era cliente fixo de uma modesta pensão do Altozano - os outros eram um caixeiro-viajan-te de pentes para cavalheiro e uma senhora madura de beleza estragada e profissão duvidosa, ou melhor, nada duvidosa - regida pela viúva de um guarda civil morto pela ETA no Norte.
Não estás vendo que ele te quer como louca desde a alma até à boca sobressalta-me o coração...
Nem Concha Piquer nem Pastora Império nem ninguém no mundo, pensava Don Ibrahim, ouvindo a Nina rematar com esta têmpera coalhada de fêmea flamenga que toda aquela chusma de empresários, críticos e reles vadios tinha acabado por teimar em não reconhecer. Era como uma punhalada ouvi-la na Semana Santa, em qualquer esquina onde a apanhasse, quando se punha a cantar-Lhe uma saeta à Esperança ou ao seu filho, o Cachorro de Triana, que fazia calar os tambores e causava pele de galinha. Porque a Nina Punal era o canto e era a copla, e era Espanha dos quatro costados; não a de folclore barato e fácil para turistas e castiços de pastel, mas a outra, a de verdade. A lenda cheirando a fumo de taberna, os olhos verdes e o suor do macho de toda a vida. A memória dramática de um povo que aliviava as penas cantando e corria com os diabos levando na mão navalhas desesperadas, reluzentes como os cornos da lua que iluminavam o Potro del Mante-lete quando, de noite, saltava os cercados, despido para não rasgar a única camisa, certo de que ia engolir o mundo e alcatifar a vida com notas de mil, antes que os touros lhe deixassem o lanho no pescoço e a derrota ao canto do olho. Essa mesma Espanha que havia tirado dos cartazes a Nina Punales, a melhor voz flamenga da Andaluzia e do século, sem mesmo um subsídio de desemprego para se ir safando. A pátria longínqua com que Don Ibrahim sonhava nas suas noites juvenis e caribenhas, à qual pensara regressar um dia como os índios de antanho, com um Cadillac descapotável e um charuto, e que só lhe trouxera incompreensão, escárnio e vilipêndio com aquela história do falso título de letrado havano. Mas até os filhos da puta devem alguma coisa às suas mães, pensava Don Ibrahim. E gostam delas. E aquela Espanha ingrata também tinha lugares como Sevilha, bairros como Triana, bares como Casa Cuesia, corações fiéis como o Potro e vozes de formosa tragédia como a Nina. Uma voz à qual, se as coisas lhes corressem bem, iam oferecer um local rico, o Templo da Copla que, nas noites de fino, manzanilla, fumo de tabaco e conversa, imaginavam entre os três formal, solene, com cadeiras de verga, empregados velhos e silenciosos - o impassível Potro ia ser o chefe da sala -, garrafas na mesa, um foco sobre o palco e uma guitarra rasgando compassos de verdade para a Nina Punales, com a sua voz áspera restituída ao público ainda com mais arte e sentimento. Reservado o direito de admissão, com entrada proibida aos turistas em grupo e aos peralvilhos de telemóvel. E, como prémio, Don Ibrahim apenas esperava sentar-se a uma mesa escura, ao fundo da sala, a beber qualquer coisa devagar, com um Montecristo a fumegar na mão e um nó na garganta ao ouvir cantar Nina Punales. Isso e que a caixa enchesse. E que, embora cortês, não esquecia os seus interesses.
Deitou um pouco mais de gasolina na garrafa, com muito cuidado para não verter. Tinha colocado folhas de jornal em cima da mesa para proteger o verniz e secava com um trapo os pingos de combustível que escorriam pelo vidro martelado e a etiqueta de Anis del Mono. A gasolina era sem chumbo e da melhor, 98 octanos, porque - como a Nina tinha observado com muito juízo
- não iam deitar fogo a uma igreja consagrada com uma coisa qualquer. De modo que tinham mandado o Potro com uma lata vazia de azeite de oliveira Carbonell trazer um litro da bomba mais próxima. "Com um litro já arde", dissera, muito sério, Don Ibrahim, com a gravidade do especialista, adquirida - afirmava
- uma vez que Ernesto Che Guevara lhe tinha explicado, ao mesmo tempo que tomavam mojitos em Santa Clara, como fazer um cocktail molotov. Que era uma invenção russa de Karl Marx.
O líquido formou uma bolha e escorreu do gargalo. Don Ibrahim enxugou-o como o trapo empapado, que colocou no cinzeiro em cima da mesa. A bomba incendiária estava destinada a funcionar com um mecanismo um tanto rudimentar, mas eficaz, de cuja invenção Don Ibrahim estava orgulhoso: um pedaço de vela fina, pavios, um relógio despertador de corda, dois metros de cordel, uma garrafa que cai. E a ignição quando os três compadres estivessem num bar à vista de todo o mundo, porque há que cuidar dos pormenores da fuga. A madeira dos bancos empilhados contra a parede e as velhas vigas do tecto fariam o resto. Não era necessário que a destruição fosse total, tinha precisado Peregil ao dar-lhes instruções, para facilitar o caso. Bastava arruinar um pouco a igreja; apesar de que, se o edifício fosse todo para o caralho, tanto melhor. Mas sobretudo - fitava-os, inquieto, um a um - que pareça um acidente.
Don Ibrahim deitou um pouco mais e o cheiro da gasolina eclipsou por um momento o dos ovos estrelados. Bem gostaria de ter acendido um charuto, mas era preciso cuidado, com toda aquela gasolina e o trapo húmido no cinzeiro. A princípio a Nina tinha-se oposto como uma gata, por causa do carácter sagrado do recinto e só tinham conseguido convencê-la, recordando-lhe a quantidade de missas que ia poder encomendar noutras igrejas para expiar o caso com o dinheiro que sacariam de tudo aquilo. Além disso, segundo o velho princípio ad auctores redit scleris coacti tamarindus pulpa, ou pouco mais ou menos, eles os três apenas executavam um delito alheio e quem era a causa da causa - ou seja, em última instância: Peregil -, era-o do mal causado. Mesmo assim, e apesar de tão rigorosa explicação jurídica, a Nina continuava a negar-se a intervir no acto incendiário, assumindo nas operações simples tarefas de apoio, como era o caso dos ovos com morcela. Na sua qualidade de adepto da livre consciência, Don Ibrahim respeitava aquela atitude. Quanto ao Potro, o mecanismo dos seus pensamentos era de difícil penetração. Isso no caso de os seus pensamentos terem mecanismo motor e até de ter pensamentos. Tudo o que fazia era limitar-se a assentir, impassível, ao cabo de um momento, fatalista e fiel, sempre à espera da sineta ou do clarim que o fizessem erguer-se do canto ou sair do burladero como um autómato. Não tinha levantado objecções quando Don Ibrahim explicara o incêndio da igreja. Coisa estranha: apesar do seu passado taurino - tanto quanto Don Ibrahim sabia, todos os toureiros acreditavam em Deus -, o Potro não era religioso, mas todas as Sextas-feiras Santas vestia o velho fato azul marinho do seu infausto casamento, uma camisa branca sem gravata e abotoada até ao pescoço, penteava-se com colónia e acompanhava a Nina entre luz de velas e rufar de tambores pelas ruas de Sevilha, atrás do trono da Esperança. Don Ibrahim, a quem a sua formação livre-pensadora impedia de participar em ritos obscurantistas, via-os passar atrás do manto da Virgem, aos primeiros alvores da madrugada: de mantilha negra e rezando a Nina Punales; silencioso e compenetrado, dando-lhe o braço, o Potro del Mantelete.
Frente ao duro perfil recortado na janela, Don Ibrahim sorriu intimamente, com paternal ternura. Estava orgulhoso da lealdade do Potro. Muitos poderosos da terra só obtinham lealdade à custa de dinheiro. Mas, um dia, quando já estivesse prestes a ser arrastado pelas mulas para o matadouro, talvez alguém perguntasse a Don Ibrahim o que tinha feito na vida que tivesse valido a pena. E ele poderia responder, de cabeça bem erguida, que o Potro del Mantelete fora um amigo fiel e que ouvira a Nina Punales cantar Capote de grana y oro.
- Está pronto - disse a Nina, da porta da cozinha. Enxugava as mãos ao avental. Mantinha impecável o caracolito
negro na testa, o sinal postiço e o carmim vermelho-sangue na boca, mas a pintura dos olhos estava um pouco borrada, porque tinha estado a cortar cebola para a salada. Don Ibrahim viu que olhava para a garrafa de Ants del Mono com ar crítico: continuava a não aprovar aquilo.
- Não se fazem omeletas - disse, conciliador - sem partir ovos.
- Pois os que acabo de estrelar arrefecem - respondeu a Nina, um tanto contrariada.
Don Ibrahim soltou um suspiro de resignação, ao mesmo tempo que vertia o último jorro de gasolina. Secou o restante com o trapo e voltou a deixá-lo, húmido, em cima do cinzeiro. Depois, apoiou as mãos na mesa e começou a levantar-se, a custo.
- Tem confiança, mulher. Tem confiança.
- Não se deita fogo às igrejas - insistia a Nina, franzindo o sobrolho sob o caracolito. - É coisa de hereges e comunistas.
Silencioso como sempre, o Potro del Mantelete retirara-se da janela e levava a mão à boca, onde tinha a beata do cigarro quase consumida. "Tenho que lhe dizer que não se chegue à gasolina", pensou fugazmente Don Ibrahim, ainda suspenso da Nina.
- Os caminhos do Senhor são imperscrutáveis - disse por dizer.
- Pois este caminho é muito mal assombrado.
Don Ibrahim sofria com a incompreensão da Nina Punales. Ele não era um chefe que impusesse decisões às tropas, mas procurava explicá-las. Afinal de contas, eram a sua tribo, o seu clã. A sua família. Buscava um argumento para dar por encerrada a questão até depois dos ovos estrelados, quando, pelo canto do olho, viu que o Potro passava junto da mesa, a caminho da cozinha e com gesto instintivo aproximava a mão com a beata, para a apagar no cinzeiro. Precisamente onde estava o trapo húmido de gasolina.
"Que disparate", pensou. "O que havia de lembrar-se". Em todo o caso, virou-se ligeiramente, inquieto:
- Ouve, Potro - disse.
Mas o outro tinha atirado a beata para o cinzeiro. Então Don Ibrahim procurou impedi-lo e entornou a garrafa de Anis del Mono com o cotovelo.
UMA DAMA ANDALUZA
- Não sentes o cheiro dos jasmins?
- Quais, se não há jasmins?
- Os que aqui havia antigamente.
(António Burgos, Sevtlla)
Se existe sangue-azul, o de Maria Cruz Eugenia Bruner de Lebrija y Álvarez de Córdoba, duquesa do Nuevo Extremo e doze vezes grande de Espanha, era azul-marinho. A mãe de Macarena Bruner tivera antepassados no cerco de Granada e na conquista da América e apenas duas casas da rança aristocracia espanhola, Alba e Medina-Sidónia, a ultrapassavam em tradição. Havia muito, porém, que os seus títulos estavam destituídos de conteúdo.
O tempo e a história tinham engolido as terras e o património, e a extensa relação que cruzava em todas as direcções a sua árvore genealógica e os quartéis dos seus escudos de armas, era uma fiada de conchas vazias como as que branqueiam atiradas pelo mar às praias. Faltavam à velha senhora que tomava goles de coca-cola diante de Lorenzo Quart no pátio da Casa do Postigo, um mês e sete dias para perfazer os setenta anos. Os seus antepassados haviam viajado de Sevilha a Cádis sem sair das suas terras, o rei Afonso XIII e a rainha Victoria Eugenia tinham-na segurado sobre a pia baptismal e, apesar do seu desdém pela antiga aristocracia espanhola, o próprio general Franco não pudera deixar de lhe beijar a mão naquele mesmo pátio andaluz depois da guerra civil, inclinado, muito contra a sua vontade, sobre o mosaico romano que ocupava o solo desde que fora trazido directamente...
Arturo Pérez Reverte
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