...Mas então compreendeu que não era mais os dois. Kahlan não estava em lugar algum. Era só ele. Brandindo a espada, imaginou se tinha sido assim pra ela, se as sombras a tinham seduzido com seus murmúrios e tocado nela, obrigando-a a atravessar a parede. Kahlan não tinha a proteção da espada. Foi o que ele disse que faria. A fúria explodiu nele outra vez. A idéia de Kahlan ter sido levada pelas sombras, pelo mundo subterrâneo, trouxe a raiva com toda a força, a magia da Espada da Verdade atendendo ao seu chamado. Richard atacou as sombras com renovado vigor. O ódio, provocado pela necessidade ardente, o fez avançar para os vultos, brandindo a espada com maior rapidez do que elas se podiam mover. Ele continuou a atacar. Gritos angustiosos das sombras que desapareciam erguiam-se como um único brado de angustia. A fúria de Richard com o que elas tinham feito a Kahlan o impeliu para um frenesi de violência.
Sem que ele percebesse as sombras pararam de se mover e pairaram no ar, enquanto Richard continuava pela trilha entre as paredes, atacando-as. Durante um tempo, não fizeram nada para evitar os golpes da espada, mas simplesmente flutuaram no mesmo lugar. Então começaram a deslizar como fileiras de fumaça no ar quase parado. Penetraram nas paredes da fronteira, perdendo o brilho verde, transformando-se em coisas escuras no outro lado. Finalmente exausto, Richard parou, com os braços latejando de cansaço.
Elas eram aquilo, não o povo-sombra, mas as coisas do outro lado da fronteira, as coisas que escapavam e tentavam pegar as pessoas como tentaram pegar Richard.
Como tinham conseguido pegar Kahlan.
Uma dor profunda o dominou e seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Kahlan — murmurou ele no ar frio da manhã.
Sentiu uma dor agonizante no coração. Kahlan se fora e a culpa era sua, ele baixou a guarda, não a protegeu. Como podia ter acontecido tão depressa? Com tanta facilidade? Adie o tinha avisado de que eles o chamariam. Por que não foi mais cauteloso? Por que não deu mais atenção ao aviso? Muitas e muitas vezes Richard imaginou o medo dela, imaginou Kahlan suplicando sua ajuda. A dor que ela deve ter sentido. Sua morte. Desesperadamente, ele imaginava tudo isso, chorando, tentando fazer voltar o tempo, fazer tudo de outro modo, ignorar as vozes, não soltar a mão dela, salvá-la. As lágrimas lhe desceram pelo rosto e ele abaixou a espada encostando a ponta no chão, cansado demais para pô-la na bainha, começou a andar a esmo. Os escombros do deslizamento terminaram. A luz verde desapareceu quando ele entrou na trilha do bosque.
Alguém murmurou seu nome. Uma voz de homem. Richard parou e olhou para trás.
Seu pai estava ali, iluminado pela luz da fronteira.
— Filho — disse ele —, deixe que eu o ajude.
Richard olhou impassível para ele. A manhã iluminava o céu nublado, envolvendo tudo numa luz cinzenta. O único tom era o brilho verde em volta do seu pai, que estendia as mãos abertas.
— Você não pode me ajudar — murmurou Richard com voz rouca.
— Sim, posso. Ela está conosco. Está a salvo agora.
Richard deu alguns passos até o pai.
— A salvo?
— Sim, ela está a salvo. Venha, eu o levarei até ela.
Richard deu mais alguns passos, arrastando a ponta da espada no chão. As lagrimas continuavam a descer no seu rosto. Sentia o peito pesado.
— Pode mesmo me levar a ela?
— Sim, meu filho — disse o pai suavemente. — Venha. Ela espera por você. Eu o levarei a ela.
Atordoado, Richard caminhou até o pai.
— E posso ficar com ela para sempre?
— Para sempre. — veio a resposta na voz tão conhecida.
Richard voltou para a claridade verde, para seu pai, que sorria para ele.
Quando o alcançou, Richard ergueu a Espada da Verdade e trespassou com ela o coração do pai. O pai olhou para ele atônito, enquanto a espada lhe penetrava no peito.
— Quantas vezes, querido pai — perguntou Richard entre lagrimas e rilhando os dentes —, preciso matar sua sombra?
O pai apenas tremeluziu e se desfez na luz da manhã.
Satisfação amarga substituiu sua fúria, mas desapareceu também quando, mais uma vez ele se voltou para a trilha. As lágrimas escorriam na poeira e no suor do seu rosto. Ele as enxugou com a manga da camisa. O bosque o envolveu indiferente, quando ele recomeçou a caminhar pela trilha.
Com esforço, Richard embainhou a espada. Notou então que a luz da pedra da noite brilhava através do seu bolso, pois ainda estava escuro. Ele parou e guardou a pedra na bolsa de couro, apagando a pálida luz amarela.
Richard seguiu em frente com tristonha determinação, levando a mão ao dente pendurado no pescoço. Solidão mais profunda do que jamais sentira lhe curvava os ombros. Todos os seus amigos estavam perdidos para ele. Sabia agora que sua vida não lhe pertencia. Pertencia ao dever, à tarefa que tinha de realizar. Ele era o Seeker. Nada mais. Nada menos. Não se pertencia mais, era uma peça do jogo a ser usada por outros. Um instrumento, como sua espada, para ajudar os outros, para que eles pudessem ter a vida que ele apenas vislumbrara por breve momento.
Ele não era diferente das coisas escuras da fronteira. Um portador da morte.
E sabia claramente a quem levaria essa morte.
O Mestre estava sentado na grama, à frente do menino adormecido, com as costas retas, as pernas cruzadas, as mãos sobre os joelhos, as palmas voltadas para cima, e um sorriso nos lábios, pensando no que tinha acontecido com a Confessora Kahlan na fronteira. A luz da manhã entrava pelas janelas lá no alto, tornando vibrantes as cores das flores do jardim. Vagarosamente, levou as pontas dos dedos da mão direita aos lábios, molhou-os com a língua e alisou com eles as sobrancelhas. Pensamentos do que faria com a Madre Confessora tinham acelerado sua respiração. Agora ele a fez voltar ao normal, pensando nos problemas do momento. Rahl agitou os dedos e Carl abriu os olhos.
— Bom dia, meu filho. É bom ver você outra vez — disse ele com sua voz mais amistosa. Mas o sorriso era por outro motivo.
Carl piscou os olhos e os entrecerrou por causa da luminosidade.
— Bom dia — disse ele, com um gemido. Então olhou em volta e acrescentou: — Pai Rahl.
— Você dormiu bem — garantiu Rahl.
— Você ficou aqui? A noite toda?
— A noite toda. Como prometi. Eu não mentiria para você, Carl.
Carl sorriu.
— Obrigado. — abaixou os olhos timidamente, — Acho que foi bobagem minha ficar assustado.
— Não acho bobagem. Estou satisfeito por estar aqui para tranqüilizar você.
— Meu pai me diz que sou tolo quando tenho medo do escuro.
— Há coisas no escuro que podem pegar você — disse Rahl, solenemente. — Você é sensato em saber disso e em estar preparado para se defender. Seu pai faria um favor a ele mesmo se ouvisse e aprendesse com suas palavras.
Carl se entusiasmou.
— É mesmo? — Rahl fez que sim. — Bem, foi o que sempre pensei também.
— Se você ama alguém de verdade, ouve o que esse alguém diz.
— Meu pai sempre me diz para ficar com a língua parada.
Rahl balançou a cabeça, desaprovadoramente.
— Isso me surpreende. Pensei que eles o amavam muito.
— Bem, eles me amam. Pelo menos, a maior parte do tempo.
— Tenho certeza de que você tem razão. Deve saber melhor do que eu.
O cabelo louro e comprido do Mestre cintilava à luz da manhã, o manto branco brilhava. Ele esperou. Houve um longo momento de silencio embaraçoso.
— Mas me cansa ouvir sempre o que devo fazer.
Rahl ergueu as sobrancelhas.
— Para mim, parece que você está na idade de poder pensar e decidir as coisas. Um bom menino como você, quase um homem, e eles dizem o que deve fazer — acrescentou, como para si mesmo, balançando a cabeça outra vez. Como se não pudesse acreditar no que Carl dizia, perguntou: — Quer dizer que eles o tratam como uma criancinha?
Carl confirmou com um movimento da cabeça, depois pensou em corrigir a impressão.
— Mas a maior parte do tempo eles são bons para mim.
Rahl assentiu com ar de dúvida.
— É bom ouvir isso. É um alivio para mim.
Carl ergueu os olhos para a luz do sol.
— Mas posso dizer uma coisa, meus pais vão ficar danados da vida por eu ter demorado tanto fora de casa.
— Eles ficam zangados quando você demora?
— Claro. Uma vez, eu estava brincando com um amigo e cheguei tarde em casa e minha mãe ficou furiosa. Meu pai me bateu com um cinto. Ele disse que era porque eu os deixei preocupados.
— Um cinto? Seu pai bateu em você com um cinto? — Darken Rahl abaixou a cabeça, depois se levantou, dando as costas para o menino. — Sinto muito, Carl, eu não sabia que eles eram assim.
— Bem, é só porque eles me amam. — Carl se apressou a dizer. — Foi o que eles disseram, que me amam e eu os deixei preocupados. — Rahl continuou de costas. Carl perguntou, intrigado: — Não acha que isso mostra que eles se importam comigo?
Rahl molhou os dedos com a língua e os passou nas sobrancelhas e nos lábios antes de virar para ele e se sentar outra vez na frente do rosto ansioso do menino.
— Carl — falou em voz baixa e Carl só com esforço o ouviu —, você tem um cachorro?
— Claro. Tinker. Ele é muito bom. É meu desde pequeno.
— Tinker. — Rahl rolou o nome na língua com prazer. — E Tinker alguma vez se perdeu ou fugiu?
Carl franziu as sobrancelhas, pensando.
— Bem, sim, algumas vezes, antes de ele crescer. Mas voltou no dia seguinte.
— Você ficou preocupado quando ele desapareceu? Quando não o encontrou?
— É claro.
— Por quê?
— Porque eu o amo.
— Compreendo. Então, quando Tinker voltou no dia seguinte, o que você fez?
— Eu o peguei no colo e o abracei com força.
— Não bateu em Tinker com seu cinto?
— Não!
— Por que não?
— Porque eu o amo.
— Mas ficou preocupado?
— Fiquei.
— Então o abraçou quando ele voltou, porque você o ama e estava preocupado com ele.
— Sim.
Rahl inclinou o corpo um pouco para trás, os olhos azuis intensos.
— Sim. E, se você tivesse batido em Tinker com o seu cinto, o que acha que ele teria feito?
— Aposto que da próxima vez não teria voltado. Não ia querer voltar para apanhar. Teria ido para algum lugar onde as pessoas gostassem dele.
— Compreendo. — disse Rahl significativamente.
As lágrimas desceram dos olhos de Carl. Desviou os olhos de Rahl, enquanto chorava. Finalmente, Rahl passou a mão na cabeça do menino.
— Lamento, Carl. Eu não quis aborrecer você. Mas quero que saiba que quando isto acabar e você voltar para casa, se algum dia precisar de um lar, será sempre bem-vindo aqui. Você é um bom menino, um bom jovem e terei orgulho em ter você aqui comigo. Você e Tinker. E quero que saiba que confio em você para pensar sozinho e vai poder entrar e sair à vontade.
Carl ergueu os olhos cheios de lágrima.
— Muito obrigado, Pai Rahl.
Rahl sorriu, calorosamente.
— Agora, que tal alguma coisa para comer?
Carl inclinou a cabeça afirmativamente.
— Do que gostaria? Temos qualquer coisa que queira.
Carl pensou por um minuto e depois disse com um sorriso:
— Eu quero torta de mirtilo. É minha favorita. — Olhou para baixo e o sorriso desapareceu. — Mas não posso comer torta no café da manhã.
Darken Rahl deu um largo sorriso.
— Pois então você vai comer torta de mirtilo. Vou buscar e volto num minuto.
O Mestre atravessou o jardim até uma pequena porta lateral coberta por trepadeiras. A porta se abriu quando ele se aproximou, segura pelo braço grande de Demmin Nass, e Rahl entrou na sala escura. Uma mistura malcheirosa fervia em um grande caldeirão dependurado sobre uma pequena fornalha. Dois guardas silenciosos permaneciam na outra extremidade da sala, cobertos de suor.
— Mestre Rahl — Demmin inclinou a cabeça —, espero que o menino mereça sua aprovação.
Rahl lambeu as pontas dos dedos.
— Ele será ótimo. — Alisou as sobrancelhas. — Sirva um prato daquela mistura para esfriar.
Demmin apanhou uma vasilha de estanho e começou a passar o mingau para ela com uma colher de madeira.
— Se está tudo bem — disse ele com um sorriso maldoso no rosto marcado. —, eu vou apresentar meus respeitos à Rainha Milena.
— Ótimo, no caminho diga à dragão que preciso dela.
Demmin parou de servir o mingau.
— Ela não gosta de mim.
— Ela não gosta de ninguém — disse Rahl secamente. — Mas não se preocupe, Demmin. Ela sabe o que farei se abusar da minha paciência.
Demmin recomeçou a servir o mingau.
— Ela vai perguntar quando vai precisar dela.
Rahl olhou de soslaio para ele.
— Não é da conta dela e pode dizer que eu disse isso. Ela deve vir quando for chamada e esperar até que eu esteja pronto. — Voltou-se e olhou, por uma pequena abertura da folhagem, para a cabeça do menino. — Mas quero você de volta dentro de duas semanas.
— Duas semanas, está bem. — Demmin pôs o prato com o mingau em cima da mesa. — Mas precisa mesmo de tanto tempo com o menino?
— Preciso, se eu quiser voltar do mundo subterrâneo. — Rahl continuou a olhar para a abertura entre a folhagem. — Pode demorar mais. O tempo que for preciso. Devo conseguir a completa confiança dele, o empenho voluntário de sua completa lealdade.
Demmin pôs o polegar no cinto.
— Temos outro problema.
Rahl olhou para trás.
— É tudo que você faz, Demmin, anda por aí à procura de problemas?
— Mantém minha cabeça presa aos ombros.
Rahl sorriu.
— Tem razão, meu amigo, tem razão — suspirou. Fale então.
Demmin mudou o peso do corpo de um pé para outro.
— A noite passada recebi a informação de que a nuvem rastreadora desapareceu.
— Desapareceu?
— Bem, não desapareceu de fato, ela foi escondida. — Coçou o rosto. — Disseram que outras nuvens se moveram e a esconderam.
Rahl riu, Demmin ficou confuso.
— Nosso amigo, o velho mago. Parece que ele viu a nuvem e usou um dos seus pequenos truques para me aborrecer. Era de esperar. Isso não é problema, meu amigo. Não é importante.
— Mestre Rahl, era assim que o senhor ia encontrar o livro. Além da última caixa, o que pode ser mais importante?
— Eu não disse que o livro não é importante. Eu disse que a nuvem não é importante, por isso não vou confiar a busca apenas a uma nuvem rastreadora. Demmin, como pensa que prendi a nuvem ao rapaz Cypher?
— Meus talentos não estão na área da magia, Mestre Rahl.
— Verdade, meu amigo. — Rahl molhou as pontas dos dedos. — Há muitos anos, antes de o meu pai ser assassinado por aquele mago cruel, ele me falou dos livros de Orden e do Livro de sombras contadas. Ele estava tentando recuperá-los, mas não tinha conhecimento suficiente. Era mais um homem de ação, de luta. — Rahl olhou nos olhos de Demmin. — Muito parecido com você, meu grande amigo. Mas foi bastante sábio quando me ensinou o valor da cabeça sobre a espada; como, usando a cabeça, pode derrotar qualquer numero de homens. Providenciou para que eu tivesse os melhores instrutores. Então ele foi assassinado. — Rahl bateu na mesa com o punho fechado. Seu rosto ficou vermelho. Depois de um momento, se acalmou. — Então estudei com maior afinco por muitos anos, para ter sucesso onde meu pai fracassou e devolver à casa da Rahl o lugar a que tem direito: o de governar todas as terras.
— E o senhor ultrapassou as mais profundas esperanças de seu pai, Mestre Rahl.
Rahl sorriu de leve. Olhou outra vez para a abertura na folhagem e continuou: — Nos meus estudos, descobri onde estava escondido o Livro das Sombras Contadas. Estava em Midlands, do outro lado da fronteira, mas eu ainda não podia viajar pelo mundo subterrâneo para apanhá-lo. Por isso mandei um animal para servir de guarda e vigiar por mim, até o dia em que eu pudesse ir pessoalmente liberar o livro.
Olhou sombriamente para Demmin.
— Antes que eu pudesse pegar o livro, um homem chamado George Cypher, matou o animal que o guardava e roubou o livro. Meu livro. Ele tirou um dente do animal como troféu. Uma coisa muito idiota, pois o animal fora mandado por magia, minha magia — ergueu as sobrancelhas –, e eu posso encontrar minha magia.
Rahl molhou as pontas dos dedos e os passou nos lábios, olhando para longe.
— Depois que ativei as caixas de Orden, fui buscar o livro. Foi quando descobri que tinha sido roubado. Levei algum tempo, mas encontrei o homem que o roubou. Infelizmente o livro não estava mais com ele e não quis me dizer onde estava. — Rahl sorriu para Demmin. — Eu o fiz sofrer por não me ajudar. — Demmin devolveu o sorriso. — Mas fiquei sabendo que ele tinha dado o dente ao filho.
— Então é por isso que sabe que o rapaz Cypher está com o livro.
— Sim, Richard Cypher tem o Livro das Sombras Contadas. E também usa o dente. Foi assim que rastreei a nuvem a ele, ligando-a ao dente dado pelo pai, o dente com minha magia. Eu já podia ter recuperado o livro, mas tenho de tratar de muitos outros assuntos. Só liguei a nuvem a ele para me ajudar a rastreá-lo enquanto espero. Foi mera conveniência. Mas o assunto está praticamente resolvido. Posso ter o livro quando quiser. A nuvem não é importante. Posso encontrá-lo por meio do dente.
Rahl apanhou o prato de mingau e entregou a Demmin.
— Experimente isso, veja se está frio. — Ergueu uma sobrancelha. — Não quero machucar o menino.
Demmin cheirou o prato e franziu o nariz com nojo. Deu para um dos guardas, que aceitou sem nenhuma objeção e levou uma colherada à boca. Fez que sim com a cabeça.
— Cypher pode perder o dente ou jogar fora. Então não vai poder encontrá-lo, nem ao livro. — Demmin inclinou a cabeça num gesto de submissão. — Por favor, perdoe-me por dizer isso, Mestre Rahl, mas me parece que confia muito na sorte.
— Às vezes, Demmin, confio na sorte, mas nunca na chance. Tenho outros meios para encontrar Richard Cypher.
Demmin respirou profundamente e relaxou, pensando nas palavras de Rahl.
— Compreendo agora por que não está preocupado. Eu não sabia de tudo isso.
Rahl franziu a testa para seu leal comandante.
— Nós apenas roçamos o pêlo do que você não sabe Demmin. Por isso você serve a mim e eu não sirvo a você. — Sua expressão se abrandou. — Você tem sido um bom amigo. Demmin, desde que éramos pequenos, portanto, vou acalmar sua mente. Tenho muitos assuntos importantes que exigem meu tempo, assuntos de magia que não podem esperar. Como esse. — Estendeu o braço, indicando o menino. — Eu sei onde está o livro e conheço meus talentos. Posso conseguir o livro quando quiser. Por enquanto, Richard Cypher o está simplesmente guardando para mim. — Rahl se inclinou para Demmin. — Está satisfeito?
Demmin olhou para o chão.
— Sim, Mestre Rahl. — Ergueu os olhos. — Por favor, saiba que só falo das minhas preocupações porque desejo seu sucesso. O senhor é, por direito, o proprietário de todas as terras. Nós todos precisamos da sua orientação. Só desejo fazer parte da sua vitória. A única coisa de que tenho medo é falhar com o senhor.
Darken Rahl passou o braço pelos ombros fortes de Demmin, olhando para o rosto marcado, para a faixa negra no meio do cabelo louro.
— Quisera eu ter mais homens como você, meu amigo. — Retirou o braço e pegou o prato. — Vá agora e conte à Rainha Milena nossa aliança. Não esqueça de chamar a dragão. — Outra vez com a sugestão de um sorriso, acrescentou: — E não deixe que suas pequenas diversões atrasem sua volta.
Demmin inclinou a cabeça.
— Obrigado, Mestre Rahl, pela honra de servir-lhe.
O homenzarrão saiu pela porta dos fundos e Rahl, pela que dava para o jardim.
Os guardas ficaram na pequena sala quente da fornalha.
Apanhando o chifre que servia para alimentar, Rahl se aproximou do menino. O chifre era um longo tubo de bronze, com bocal pequeno, maior na altura do ombro, para que o mingau pudesse descer. Rahl o pôs no chão, de modo que o bocal ficasse na frente de Carl.
— O que é isso? — perguntou Carl, olhando para o objeto. — Um chifre?
— Sim, isso mesmo. Muito bem, Carl. É um chifre para alimentar, Faz parte da cerimônia. Os outros jovens que ajudaram o povo no passado acharam que é o modo mais engraçado de comer. Você põe a boca nesta extremidade e eu sirvo, derramando a comida pela parte de cima.
Carl disse, com ceticismo:
— É mesmo?
— Sim. — Rahl sorriu para tranqüilizá-lo. — E, se quer saber, consegui sua torta preferida, ainda quente do forno.
Os olhos de Carl se iluminaram.
— Ótimo! — Avidamente pôs a boca na extremidade do chifre.
Rahl passou a mão em círculo sobre o prato três vezes, para mudar o sabor, depois olhou para Carl. — Tive de amassar a torta para passar pelo chofre. Espero que esteja boa.
— Eu sempre amasso com o garfo — disse Carl com um largo sorriso e pôs outra vez a boca no chifre.
Rahl derramou um pouco da mistura. Quando chegou à boca de Carl, ele comeu avidamente.
— Muito gostosa! A melhor que já comi!
— Fico satisfeito. — Disse Rahl, com um sorriso. — A receita é minha. Tive medo de que não fosse tão boa quanto a de sua mãe.
— É melhor. Posso comer mais?
— É claro, meu filho. Com o Pai Rahl, sempre tem mais.
Cansado, Richard procurou no chão onde a trilha continuava no fim do deslizamento, desesperançado. Nuvens escuras surgiam ocasionalmente, trazendo grossos pingos de chuva fria que batiam na sua nuca enquanto ele procurava.
Ocorreu-lhe que talvez Kahlan tivesse chegado ao fim do Estreito, que apenas fora separada dele e tivesse continuado a andar. Ela usava o osso dado por Adie e teria sido salva da fronteira. Devia ter conseguido passar. Mas ele estava usando o dente e Adie tinha dito também que não poderia ser visto, mas as sombras o atacaram mesmo assim. Era estranho, as sombras não se moveram até ficar escuro na rocha partida. Por que não os atacaram antes?
Não havia qualquer rastro. Nada tinha atravessado o Estreito havia muito tempo. Fadiga e desespero o dominaram outra vez quando pedacinhos de gelo começaram a cair sobre sua capa, parecendo incitá-lo a prosseguir, a sair do Estreito. Perdida toda esperança, ele voltou para a trilha, a caminho de Midlands.
Depois de poucos passos, uma idéia o fez parar de repente.
Se Kahlan tinha se separado dele, se ela pensava que o mundo subterrâneo o tinha levado, se pensou que o tinha perdido e estava sozinha, ela teria continuado para Midlands? Sozinha?
Não.
Richard se virou para o Estreito. Não. Ela voltaria. Voltaria para o mago.
Não ia adiantar ir sozinha para Midlands. Ela precisava de ajuda, por isso tinha vindo a Westland. Sem o Seeker, só o mago podia ajudá-la.
Richard não ousava confiar muito nessa idéia, mas o lugar em que lutara contra as sombras não ficava longe, o lugar em que a tinha perdido. Não podia seguir sem verificar. A fadiga esquecida, ele voltou para o Estreito.
A luz verde o recebeu de volta. Seguindo o caminho por onde tinha vindo, logo encontrou o lugar em que lutara contra as sombras. Suas pegadas estavam em toda a parte na lama do deslizamento, contando a história da batalha. Com surpresa, viu quanto espaço tinha ocupado durante a luta. Não se lembrava de todas as voltas, dos movimentos para frente e para trás, até a última parte.
De repente, viu o que procurava. Os rastros dos dois, juntos, depois os dela, sozinha. Seu coração bateu mais forte e ele seguiu os passos, esperando, com uma esperança tão intensa que chegava a doer, que não o levassem à parede. Abaixou-se e examinou as pegadas, tocando-as com as mãos. Os rastros primeiro iam de um lado para o outro, em confusão e então paravam e voltavam. Onde os primeiros levavam para fora do Estreito, os outros levavam para dentro.
Kahlan.
Richard se levantou rapidamente, com a respiração entrecortada, o pulso disparado. A luz verde brilhava irritantemente à sua volta. Tentou imaginar até onde Kahlan tinha ido. Tinham levado a maior parte da noite para atravessar o Estreito. Mas então não sabiam onde ficava a trilha. Olhou para as pegadas na lama. Agora ele sabia.
Teria de se apressar, não podia hesitar. Lembrou-se do que Zedd tinha dito quando deu a ele a espada. A força da raiva, o mago dissera, dá a você o impulso para vencer.
O canto claro e metálico da lâmina se espalhou no ar da manhã escuro quando o Seeker desembainhou a espada. A fúria o dominou. Sem pensar duas vezes, Richard começou a andar pela trilha, seguindo os rastros. A parede o pressionava enquanto ele corria na névoa fria. Quando os rastros viraram, indo para frente e para trás, ele não diminuía o passo, mas levava os pés para um lado ou para o outro, para continuar na trilha.
Mantendo o passo, ele conseguiu atravessar o Estreito antes do meio da manhã. Duas vezes, encontrou uma sombra flutuando parada na trilha. Elas não se moveram, nem pareceram dar conta de sua presença. Richard continuou, com a espada na mão. Mesmo sem rosto, elas pareciam surpresas quando foram partidas ao meio.
Sem diminuir o passo, ele atravessou a rocha fendida, chutando um sugador para longe. No outro lado, parou para tomar fôlego. Foi enorme o alivio que sentiu vendo que as pegadas dela seguiam em frente. Agora, de volta à trilha da floresta, era mais difícil perceber os rastros, mas não importava. Richard sabia para onde Kahlan estava indo e sabia que ela estava a salvo. Sentiu vontade de chorar de alegria sabendo que Kahlan não morrera.
Sabia que estava chegando perto dela, a névoa ainda não tivera tempo de desmanchar o contorno das pegadas, como quando ele as encontrou. Quando o dia clareou, ela devia ter seguido os rastros em vez de usar as paredes para ver o caminho, do contrário ele teria a encontrado antes. Garota inteligente, ele pensou, ela usara a cabeça. Ainda faria dela uma boa habitante dos bosques.
Richard seguiu pela trilha com a espada — e sua ira — desembainhadas. Não perdeu tempo parando para ver sinais da passagem de Kahlan na trilha, mas nos trechos de lama ele olhava para baixo, diminuindo um pouco o passo. Depois de percorrer uma área de solo coberto de musgo, chegou a um trecho pequeno cheio de pegadas. Olhava rapidamente para o chão, enquanto corria. Então viu uma coisa que o fez parar tão de repente que caiu. De quatro no chão, olhou para as marcas e arregalou os olhos.
Sobrepostas a uma parte das pegadas de Kahlan havia marcas de botas de homem, quase três vezes maiores do que as dela. Richard imediatamente soube a quem pertenciam: ao ultimo homem do quad.
A fúria explodiu, ele se levantou e continuou a correr. Galhos e rochas passavam como envoltos em névoa. Sua única preocupação era ficar na trilha e evitar acidentalmente entrar na fronteira, não temendo por ele mesmo, mas porque sabia que não poderia ajudar Kahlan se fosse morto. Seus pulmões ansiavam por ar e seu peito subia e descia com o esforço. Com a ira da magia, ele ignorava a exaustão, a falta de sono.
Subindo ao topo de uma pequena elevação rochosa, ele a viu no outro lado. Por um instante, Richard ficou imóvel. Kahlan estava à esquerda, com os pés separados, meio agachada com uma parede de rocha atrás. O ultimo homem do quad estava na frente dela, à direita de Richard. O pânico se misturou à sua raiva. O uniforme de couro do homem brilhava, molhado. O capuz da cota de malha cobria os cabelos louros. Ele ergueu a espada com os punhos maciços e os músculos se destacaram nos braços e então soltou um grito de guerra.
Ele ia matar Kahlan.
A cólera explodiu em Richard. Ele gritou: — Não! — com fúria assassina e saltou da rocha. Com as duas mãos, ergueu a Espada da Verdade quando ainda no ar. Quando chegou ao solo, recuou, brandindo a espada de trás para frente, num arco. A espada assobiou com a velocidade do movimento. O homem tinha se virado quando Richard saltou. Ergueu a espada defensivamente com toda a velocidade, os tendões dos pulsos estalando.
Richard viu, como em sonho, sua espada fazer a volta.
Concentrou toda a força em fazer com que a espada se movesse com mais pressa, com maior precisão. A magia respondeu furiosa. Richard olhou da espada para os olhos azuis do homem. A espada do Seeker seguiu os seus olhos. Ouviu a própria voz gritar. O homem ergueu a espada para se defender do golpe.
Tudo em volta do homem se dissolveu para Richard. Sua fúria e a magia estavam livres como nunca antes. Nenhum poder da terra podia negar a ele o sangue do homem. Richard estava além de todo o raciocínio. Além de qualquer outra necessidade. Além de outro motivo para viver. Ele era a morte viva.
Toda a força de vida de Richard focalizou ódio mortal no golpe da espada.
Sentindo a batida do coração nos músculos tensos do pescoço, com sua visão periférica, Richard viu com alegria expectante, olhando para os olhos azuis do homem, sua espada descreveu o resto da distância em um arco suave, finalmente contatando a espada erguida do inimigo. Viu o detalhe da lâmina partida ergue-se girando no ar, a superfície polida brilhar na luz com um flash em cada uma das três voltas antes que a espada do Seeker, com toda a força da sua raiva e sua magia, atingisse a cabeça do homem, o capuz da cota de malha, virando um pouco a cabeça dele para o lado antes de a espada explodir entre os elos da malha de metal, alcançando a cabeça na altura do olho, enchendo o ar com uma chuva de pedaços de aço e pedaços de malha.
A manhã nevoenta explodiu numa neblina vermelha e Richard, satisfeito, viu cabelos louros, ossos e cérebro espalhados loucamente quando a lâmina continuou a golpear o ar avermelhado, destruindo os últimos fragmentos da cabeça do inimigo, seguindo sua jornada, enquanto o corpo, só com pescoço e mandíbula e pouca coisa mais, começou a desmoronar como se todos os seus ossos se tivessem dissolvido, não deixando nada para sustentá-lo, finalmente caindo no chão com um baque surdo. Bolhas de sangue subiram no ar em longas tiras que finalmente formaram um arco e caíram no chão e em cima de Richard, oferecendo ao vitorioso o gosto quente quando entrou na sua boca aberta para o grito de raiva. Mais sangue escorreu copiosamente na terra ao mesmo tempo que pedaços de cota de malha e da espada partida caiam como chuva, enquanto na rocha atrás dele mais sangue e ossos tombavam finalmente no solo, tingindo tudo de vermelho vivo.
O portador da morte parou vitorioso sobre o objeto do seu ódio e da sua raiva, encharcado de sangue e da glória de uma alegria que jamais tinha imaginado. Seu peito arfava, feliz. Levando a espada para frente de novo, ele olhou em volta, à procura de nova ameaça. Não havia.
Então o mundo implodiu dentro dele.
Tudo que o rodeava apareceu. Richard viu o olhar chocado de Kahlan antes de a dor o fazer cair de joelhos, dilacerando-o, dobrando seu corpo para frente.
A Espada da Verdade caiu de sua mão.
A súbita compreensão do que acabava de fazer o atingiu. Matara um homem. Pior, matara um homem que queria matar. Teve prazer com isso. Não teria permitido que nada o impedisse de matar.
A visão de sua espada explodindo na cabeça do homem se repetia sem cessar em sua mente. Não conseguia apagar a imagem.
Com uma dor lancinante que jamais havia sentido, apertou o corpo com os braços. Abriu a boca mas nenhum grito saiu dela. Tentou perder a consciência para se livrar da dor, mas não foi possível. Nada mais existia a não ser a dor, como nada mais existira no seu desejo de matar, não ser o homem.
A dor embaçou-lhe a visão. Ele estava cego. Fogo queimava em cada músculo, em cada órgão do seu corpo, consumindo-o, tirando o ar dos pulmões, sufocando-o numa agonia compulsiva. Caiu de lado no chão, os joelhos erguidos para o peito, gritando de dor, finalmente, como gritara de raiva há pouco. Richard sentiu a vida se esvair. Através da angustia e da dor sabia que, se isso continuasse, não poderia conservar sua sanidade, ou pior, sua vida. O poder da magia o assoberbava. Jamais teria imaginado que existisse tanta dor, agora não podia imaginar que ela ia desaparecer. Sentiu que ela estava destruindo sua sanidade. Mentalmente, pediu a morte. Se alguma coisa não mudasse, rapidamente ele satisfaria esse desejo de um modo ou de outro.
Entre a névoa da agonia, ele percebeu uma coisa. Reconheceu a dor. Era igual à raiva. Ela a invadiu como a raiva da espada. Conhecia bem esse sentimento, era a magia. Uma vez reconhecida como magia, tentou urgentemente controlá-la, como tinha aprendido a controlar a cólera. Agora sabia que precisava tomar o controle ou morrer. Raciocinou, chegou a compreender a necessidade do que tinha feito, por mais horrível que fosse. O homem tinha se condenado à morte com sua intenção de matar.
Finalmente conseguiu dominar a dor, como aprendera a afastar a raiva. Sentiu grande alivio. Vencera as duas batalhas. A dor diminuiu e desapareceu.
Deitado de costas, ofegante, ele sentiu o mundo voltar. Kahlan estava ajoelhada ao seu lado, passando um pano molhado e frio no seu rosto, limpando o sangue. Sua testa estava franzida e lágrimas lhe desciam dos olhos. Pingos do sangue do homem formavam longas listras no seu rosto.
Richard se ajoelhou e apanhou o pano molhado para limpar o rosto dela, como para apagar-lhe da lembrança o que acabava de ver. Antes que ele tivesse tempo de fazer isso, ela o abraçou com uma força que ele jamais imaginaria que possuía. Ele a abraçou também e, com a mão na nuca dele, chorando, ela puxou a cabeça de Richard para a sua. Richard não podia acreditar no quanto era bom ter Kahlan de volta. Não queria deixar que ela se fosse, nunca mais.
— Eu sinto tanto, Richard! — ela soluçou
— Por quê?
— Por você ter de matar um homem por mim.
Ele a acalentou suavemente, acariciando seu cabelo.
— Está tudo bem.
Ela balançou a cabeça encostada no pescoço dele.
— Eu sabia o quanto essa magia ia ferir você, por isso não quis que lutasse contra os homens na estalagem.
— Zedd disse que a raiva me protegeria da dor, Kahlan. Não compreendo. De modo algum eu podia ficar mais furioso.
Ela se afastou um pouco e apertou os braços dele, como para ver se Richard era real.
— Zedd me disse para tomar conta de você se tivesse de usar a espada para matar um homem. Disse que era verdade que a raiva o protegeria, mas que a primeira vez é diferente, que a magia ia testar, avaliar o Seeker com a dor e nada poderia proteger você. Disse que não lhe podia dizer isso porque, se você soubesse, ia ser mais cuidadoso no uso da espada e isso podia ser desastroso. Disse que a magia tem de se juntar ao Seeker com seu primeiro uso definitivo, para garantir sua intenção quando ele mata — Apertou os braços dele. — Zedd disse que a magia pode fazer coisas terríveis. Ela testa com a dor para ver quem será o senhor, quem o súdito.
Richard se sentou nos calcanhares, atônico. Adie tinha dito que o mago guardava um segredo dele. Devia ser isso. Zedd devia estar muito preocupado e temendo por ele. Richard teve pena do velho amigo.
Pela primeira vez, Richard compreendeu o significado de ser um Seeker, de um modo que só um Seeker podia compreender. Portador da morte. Agora ele compreendia. Compreendeu a magia, como ela o tinha usado, como agora estavam ligados. Para o melhor ou para o pior, ele jamais seria o mesmo. Tinha provado a realização do seu mais sinistro desejo. Estava feito. Não era possível voltar a ser o que era antes.
Richard limpou o sangue do rosto de Kahlan com o pano molhado.
— Eu compreendo. Sei do que ele estava falando. Você fez a coisa certa não me dizendo. — Tocou o rosto dela e continuou com voz suave. — Tive tanto medo de que você estivesse morta!
Kahlan pôs a mão sobre a dele.
— Pensei que você estivesse morto. Num minuto, eu estava segurando sua mão e de repente não estava mais. — Seus olhos se encheram de lágrimas outra vez — Não consegui encontrar você. Não sabia o que fazer. A única coisa em que podia pensar era ir para Zedd, esperar que ele acordasse para me ajudar. Pensei que o tivesse perdido para o mundo subterrâneo.
— Também pensei que isso tinha acontecido com você. Quase continuei sozinho — Sorriu ele. — Parece que tenho de sempre voltar para você.
Kahlan sorriu pela primeira vez, abraçou-o novamente e depois retirou os braços depressa.
— Richard, temos de sair daqui. Há animais por toda parte. Eles virão buscar o corpo dele, não podemos estar aqui quando chegarem.
Ele apanhou a espada e se levantou. Estendeu a mão para ajudá-la. Kahlan segurou a mão dele.
A magia se acendeu em fúria, avisando o seu mestre.
Assustado, Richard olhou para ela. Como na última vez, quando ela tocou sua mão que segurava a espada, a magia despertou, só que dessa vez com mais força. Sorrindo, ela aparentemente não sentiu nada. Richard obrigou a ira a se acalmar. Ela se foi, com grande relutância.
Kahlan o abraçou outra vez, um abraço rápido, com o braço livre.
— Ainda não acredito que esteja vivo. Estava certa de ter perdido você.
— Como escapou das sombras?
Kahlan balançou a cabeça.
— Não sei. Elas estavam nos seguindo e, quando nos separamos e eu voltei, não as vi mais. Você viu alguma?
Richard assentiu solenemente, inclinando a cabeça.
— Sim, vi. E vi meu pai outra vez. Elas me atacaram, tentaram me empurrar para a fronteira.
Kahlan perguntou, preocupada: — Por que só você? Por que não nós dois?
— Não sei. A noite passada na rocha fendida e depois, quando elas começaram a nos seguir, certamente estavam atrás de mim, não de você. O osso a protegeu.
— A ultima vez na fronteira, eles atacaram todos, menos você — disse ela. — O que foi diferente agora?
Richard pensou por um momento.
— Eu não sei, mas temos de atravessar a passagem. Estamos cansados demais para passar a noite lutando contra as sombras outra vez. Temos de chegar a Midlands antes do anoitecer. E, desta vez, prometo não largar sua mão.
Kahlan sorriu e apertou a mão dele.
— Eu também não vou largar a sua.
— Eu voltei correndo pelo estreito. Não levei muito tempo. Está disposta a correr?
Ela fez que sim com a cabeça e eles começaram a correr numa velocidade que Richard achou que ela podia manter. Como na última vez em que atravessou o Estreito, Richard ia com a espada na mão, nenhuma sombra os seguiu, embora várias flutuassem sobre a trilha. E como antes, Richard passou por elas com a espada em punho, para ver o que fariam. Kahlan se encolheu cada vez que elas uivavam. Ele observava os rastros enquanto corria, puxando Kahlan nas curvas, mantendo-a na trilha.
Quando se livraram dos restos do deslizamento e na trilha da floresta, no outro lado do Estreito, passaram para um passo rápido, para retomar o fôlego. A garoa lhes molhava os rostos e os cabelos. A felicidade de encontrar Kahlan viva amenizava sua preocupação sobre as dificuldades que os esperavam. Comeram pão e frutas enquanto andavam. O estomago de Richard roncava de fome, mas ele não queria parar para comer mais.
Richard estava ainda confuso com a reação da magia quando Kahlan pôs a mão sobre a dele. Era alguma coisa que a magia sentia nela ou uma reação a algo em sua mente. Era porque tinha medo do segredo de Kahlan? Ou seria algo mais, alguma coisa que a magia encontrava nela? Richard queria que Zedd estivesse ali, para perguntar o que ele pensava. Mas Zedd estava presente na outra vez e ele não tinha perguntado. Teria medo do que Zedd podia dizer?
Depois de comer um pouco e a tarde ter passado, ouviram rosnados no bosque. Kahlan disse que eram os animais. Resolveram correr outra vez, para sair da passagem o mais depressa possível. Richard estava mais do que cansado. Estava simplesmente insensível, enquanto corriam pelo bosque espesso. A chuva leve nas folhas amortecia o som dos seus passos.
Antes do anoitecer, chegaram a uma longa cordilheira. Lá embaixo, a trilha descia numa série de curvas fechadas. Pararam no topo da cordilheira, olhando para o pasto aberto sob a chuva.
Kahlan parou, rígida.
— Conheço esse lugar — murmurou ela.
— O que é?
— Chama-se Agreste. Estamos em Midlands. — Virou-se para ele. — Voltei para casa.
Richard ergueu a sobrancelha.
— O lugar não me parece tão agreste assim.
— O nome não é por causa da terra, mas por causa das pessoas que vivem nelas.
Depois de descer a encosta íngreme, Richard encontrou um lugar protegido debaixo de uma laje de pedra, não bastante grande para protegê-los da chuva, por isso ele cortou galhos de pinheiro e os pendurou na beirada da pedra, criando um pequeno abrigo, fechando a entrada com os galhos, evitando a chuva. Os dois se deitaram molhados e exaustos.
Kahlan tirou a capa e sacudiu a água.
— Nunca vi o céu encoberto tão demoradamente nem chover por tanto tempo. Nem lembro mais como é o sol. Começo a me cansar disso.
— Eu não — disse Richard. Ela olhou para ele, intrigada, e Richard explicou: — Lembra-se da nuvem em forma de serpente, a que foi mandada por Rahl para me seguir? Prefiro a chuva à Darken Rahl.
Kahlan pensou por um momento.
— A partir de agora, vou me sentir melhor com as nuvens. Mas, da próxima vez, pode pedir a ele para trazer as nuvens menos molhadas? — Richard sorriu. — Quer comer alguma coisa? — perguntou ela.
Ele balançou a cabeça.
— Estou cansado demais. Só quero dormir. É seguro aqui?
— Sim. Ninguém mora perto da fronteira no Agreste. Adie disse que estamos protegidos contra os animais, portanto os sabujos do coração não nos incomodarão.
Richard ficou com mais sono ouvindo o som cadenciado da chuva. Enrolaram-se nos cobertores, pois a noite já estava fria. À luz fraca, Richard via vagamente o rosto de Kahlan encostado na rocha. O abrigo era muito pequeno para acender um fogo e, de qualquer modo, tudo estava molhado. Pôs a mão no bolso e apalpou a bolsa de couro com a pedra da noite. Pensou em usá-la, mas desistiu.
Kahlan sorriu para ele.
— Bem-vindo a Midlands. Você fez o que disse que faria, trouxe-nos até aqui. Agora começa o trabalho. O que vamos fazer?
Com a cabeça latejando, Richard se inclinou para ela.
— Precisamos que alguém possa nos mostrar a direção certa. Quem você conhece que pode fazer isso?
Kahlan olhou para ele.
— Estamos muito longe de qualquer pessoa disposta a nos ajudar.
Kahlan estava evitando dizer alguma coisa. A raiva de Richard se alvoroçou.
— Eu não disse que teriam de nos ajudar, eu disse que precisariam ter a capacidade para nos ajudar. Leve-me até eles, que eu cuido do resto! — Imediatamente de arrependeu daquele tom de voz. Encostou a cabeça na rocha e controlou a raiva. — Kahlan, desculpe. — Afastou a cabeça da dela. — Tive um dia difícil. Além de matar aquele homem, tive de golpear meu pai com a espada outra vez. Mas o pior foi pensar que tinha perdido você para o mundo subterrâneo. Tudo que quero é deter Rahl, para acabar com esse pesadelo.
Virou o rosto para ela e Kahlan deu um dos seus sorrisos especiais, com os lábios fechados. Olhou nos olhos dele, por alguns minutos, na quase escuridão do abrigo.
— Não é fácil ser um Seeker — disse ela, suavemente.
Richard sorriu.
— Não é fácil — concordou.
— O Povo da Lama — disse ela, finalmente. — Eles podem nos dizer onde procurar, mas não garanto que queiram nos ajudar. O Agreste é uma região remota de Midlands e o Povo da Lama não está acostumado a tratar com pessoas de fora. Eles têm costumes estranhos. Não se importam com os problemas de outras pessoas. Tudo que querem é ficar em paz.
— Se Darken Rahl conseguir o que quer, não vai respeitar desejos de ninguém — lembrou Richard.
Kahlan respirou profundamente.
— Richard, eles podem ser perigosos.
— Já tratou com eles antes?
— Algumas vezes. Não falam a nossa língua, mas eu falo a deles.
— Eles confiam em você?
Kahlan desviou a vista e apertou mais o cobertor em volta do corpo.
— Acho que sim. — Olhou para ele. — Mas têm medo de mim e, como o Povo da Lama, isso pode ser mais importante do que confiança.
Richard mordeu a parte interna do lábio para não perguntar por que eles tinham medo dela.
— A que distância?
— Não sei exatamente onde estamos no Agreste. Não posso ver o bastante para ter certeza, mas sei que não estão a mais de uma semana, ao nordeste.
— Muito bem. De manhã, rumamos para o nordeste.
— Quando chegarmos lá, você deve fazer o que eu disser, deve prestar atenção ao que eu mandar. Deve convencê-los a ajudar você, do contrário não ajudarão, com espada ou sem ela. — Ele inclinou a cabeça, concordando. Kahlan tirou a mão debaixo do cobertor e pôs no braço dele. — Richard — murmurou ela –, obrigada por ter voltado. Sinto ter custado isso para você.
— Eu tinha de voltar. De que adiantava vir a Midlands sem a minha guia?
Kahlan sorriu.
— Tentarei corresponder às suas expectativas.
Richard apertou a mão dela, e eles se deitaram. O sono chegou logo depois que ele agradeceu aos bons espíritos por terem protegido Kahlan.
Zedd abriu os olhos. O cheiro da sopa variada era espesso no ar. Sem se mover, ele olhou em volta cautelosamente. Viu Chase deitado ao seu lado, viu os ossos nas paredes e pela janela viu que estava escuro lá fora. Olhou para o próprio corpo. Estava debaixo de uma pilha de ossos. Sem se mover, ele os fez se erguerem no ar, depois flutuarem para um lado e finalmente pararem. Silenciosamente ele se levantou. Estava em uma casa cheia de ossos, ossos de animais. Zedd olhou para trás.
Surpreso, viu se na frente de uma mulher exatamente no momento em que ela também virou para trás.
Os dois gritaram assustados e levantaram os braços.
— Quem é você? — perguntou ele, inclinando-se para a frente e olhando nos olhos brancos.
Ela pegou as muletas antes que tivessem tempo de cair e as pôs debaixo dos braços.
— Eu ser Adie — respondeu ela com a voz áspera. — Você me pregou susto! Acordou mais cedo do que eu esperava.
Zedd ajeitou o manto.
— Quantas refeições eu perdi? — perguntou.
Franzindo a testa, Adie o examinou dos pés a cabeça.
— Muitas ao que parece.
Um sorriso enrugou o rosto de Zedd. Então olhou também Adie, de cima a baixo.
— Você é uma mulher bonita — anunciou. Com uma curvatura, segurou a mão dela, que beijou de leve, depois endireitou o corpo orgulhosamente, erguendo um dedo magro para o céu. — Zeddicus Zu’l Zorander, humildemente ao seu dispor, minha cara senhora. — Inclinou-se para a frente. — O que há de errado com sua perna?
— Nada. Está perfeitamente bem.
— Não, não — disse ele, franzindo a testa e apontando. — Não essa, a outra.
Adie olhou para a perna sem pé, depois outra vez para Zedd.
— Não vai até o chão. Seu olho tem problema?
— Bem, espero que tenha aprendido a lição. Você tem só um pé, você sabe. — A testa franzida deu lugar a um largo sorriso. — E o problema com meus olhos — disse ele com a voz fina — é que eles estavam famintos, mas agora vão se banquetear.
Adie sorriso de leve.
— Aceita um prato de sopa, mago?
— Pensei que nunca ia perguntar, feiticeira.
Ela atravessou a sala atrás dela até o caldeirão dependurado na lareira e, depois que ela serviu dois pratos de sopa, levou-os para a mesa. Encostando a muleta na parede, Adie se sentou de frente para ele e cortou uma grossa fatia de pão e outra de queijo, empurrando-as para ele. Zedd se sentou e atacou a comida, mas parou depois de uma colherada e olhou para os olhos brancos.
— Richard fez esta sopa — disse ele com a voz firme, a segunda colherada entre o prato e a boca.
Adie pegou um pedaço de pão e o mergulhou na sopa, olhando para ele.
— Isso ser verdade. Você ter sorte, a que eu faço não é tão boa.
Zedd olhou em volta e pôs a colher no prato
— E onde ele está?
Adie levou um pedaço de pão à boca e mastigou, olhando para ele. Quando engoliu, respondeu: — Ele e a Madre Confessora foram para a passagem, para Midlands. Embora ele conheça ela apenas como Kahlan, ela ainda esconde dele sua identidade. — Contou para o mago a história de como Kahlan e Richard tinham ido até ela, procurando ajuda para os dois amigos.
Zedd com o queijo em uma das mãos e o pão na outra, mordia alternadamente cada um enquanto ouvia Adie, fazendo uma careta quando ela disse que o tinha alimentado só com mingau.
— Ele pediu para dizer que não pode esperar por você, mas sabia que você ia compreender. O Seeker me deu instruções para dizer a Chase para fazer preparativos, quando a fronteira ruir, para enfrentar as forças de Rahl. Ele sentia não saber qual é o seu plano, mas ele temia não poder esperar.
— Melhor assim — murmurou o mago. — Meu plano não inclui Richard.
Zedd voltou a comer avidamente. Quando terminou a sopa, foi até o caldeirão e serviu-se de outra porção. Ofereceu-se para servir a Adie também, mas a feiticeira ainda não tinha terminado o primeiro prato, pois não tirou os olhos do mago o tempo todo. Quando Zedd se sentou de novo, ela empurrou mais pão e queijo para ele.
— Richard guarda segredo de você — disse ela, em voz baixa. — Se não era por esse negocio com Rahl, eu não dizia, mas achei que você deve saber.
A luz do lampião iluminava o rosto magro e o cabelo branco de Zedd e as sombras o faziam parecer mais emaciado e magro. Ele pegou a colher, olhou para a sopa por um momento, depois outra vez para Adie.
— Como você sabe, nós todos temos segredos, os magos mais do que os outros. Se soubéssemos os segredos uns dos outros, o mundo seria muito estranho. Alem disso, tiraria toda a graça de contá-los. — Seus lábios finos se curvaram num sorriso, seus olhos brilharam. —Mas não temo o segredo de uma pessoa em quem confio e ele não precisa temer o meu. Faz parte de ser amigo.
Adie se recostou na cadeira, olhando para ele com os olhos brancos. O sorriso voltou.
— Para bem dele, espero que você esteja certo em confiar. Eu não ia gostar de zanga de mago.
Zedd deu de ombros.
— Para um mago, sou bastante inofensivo.
Ela olhou para os olhos dele à luz do lampião.
— Isso ser mentira — murmurou a feiticeira com sua voz raspante.
Zedd pigarreou e pensou em mudar de assunto.
— Parece que eu devo a você por cuidar de mim, minha cara senhora.
— Isso ser verdade.
— E por ajudar Richard e Kahlan. — Olhou para Chase e apontou com uma colher. — e o guarda da fronteira também. Sou seu devedor.
O sorriso de Adie de alargou.
— Talvez alguma dia você pode devolver favor.
Zedd arregaçou as mangas do manto e voltou a tomar sopa, mas não com a mesma voracidade. Ele e a feiticeira se observavam. O fogo na lareira estalava e lá fora os insetos noturnos zuniam. Chase dormia.
— Há quanto tempo eles se foram? Perguntou Zedd, finalmente.
— Este é o sétimo dia que ele deixou você e o guarda da fronteira pra eu tomar conta.
Zedd acabou de comer e empurrou o prato cuidadosamente. Cruzou as mãos sobre a mesa e olhou para baixo, batendo um polegar contra o outro. A luz do lampião tremeluziu e dançou no seu farto cabelo branco.
— Richard disse como vou encontrá-lo?
Por um momento, Adie não respondeu. O mago esperou, batendo os polegares, até que finalmente ela disse: — Eu dei a ele uma pedra da noite.
Zedd se levantou de um pulo.
— O que você fez?
Adie olhou calmamente para ele.
— Queria que eu mandasse ele para passagem a noite, sem luz para enxergar? Ser cego na passagem é morte na certa. Eu queria que ele atravessasse. Só assim eu podia ajudar.
O mago apoiou as mãos fechadas na mesa e inclinou-se para frente, o cabelo branco ondulado em volta do rosto.
— E você o avisou?
— É claro que avisei.
Zedd entrecerrou os olhos.
— Como? Com um enigma de feiticeira?
Adie pegou as maçãs e jogou uma para Zedd. Ele a apanhou no ar com um encantamento silencioso. A maçã flutuou, girando devagar enquanto ele continuava a olhar para mulher.
— Senta, mago e pára de se mostrar. — Deu uma mordida na maçã e mastigou devagar. Zedd sentou-se, emburrado
— Eu não queria assustar ele. Ele já estava bastante assustado. Se eu tinha dito o que uma pedra da noite pode fazer, ele ia ter medo de usar e ai ele ia ser apanhado pelo mundo subterrâneo. Sim, eu avisei ele, mas com um enigma, para ele resolver mais tarde, depois que ele atravessar a passagem.
Zedd apanhou a maçã no ar.
— Maldição, Adie, você não compreende. Richard detesta enigmas, sempre detestou. Ele os considera um insulto à honestidade. Ele se recusa a resolvê-los. Ele sempre os ignora, por questão de princípio — A maçã estalou quando ele deu uma mordida.
— Ele ser Seeker, é isso que Seeker faz, resolve enigmas.
Adie largou a maçã e se inclinou pra frente com a mão na mesa. A preocupação suavizou-lhe o rosto.
— Zedd, eu estava tentando ajudar o rapaz. Quero que ele tem sucesso. Perdi o meu pé na passagem, ele ia perder vida. Se o Seeker perder vida, nós todos também perdemos. Eu não quis fazer mal a ele.
Zedd largou a maçã e descartou a zanga com um largo gesto da mão.
— Eu sei disso, Adie. Não estava sugerindo que você queria fazer mal a ele — pegou as mãos de Adie. — tudo vai dar certo.
— Fui tola. Ele me disse que não gosta de enigmas, mas eu não dei atenção, Zedd, procura Richard por meio de pedra da noite. Vê se ele consegue passar.
Zedd fechou os olhos e encostou o queixo no peito, respirando profundamente três vezes. Então parou de respirar por um longo tempo. O som de vento distante se espalhou no ar. Vento numa planície aberta, deserta, sinistra, vento constante. O som morreu finalmente e o mago começou a respirar outra vez. Ergueu a cabeça e abriu os olhos.
— Ele está em Midlands. Consegui atravessar a passagem.
Adie ficou aliviada.
— Eu dar a você osso pra passar a salvo. Você vai encontrar ele agora?
O mago olhou para mesa, desviando o olhar dos olhos brancos.
— Não — disse ele, em voz baixa. — Ele terá de fazer isso, entre outras coisas, sozinho. Como você disse, ele é o Seeker. Tenho de fazer um trabalho importante, se quisermos deter Darken Rahl. Espero que enquanto isso ele consiga ficar longe de encrencas.
— Segredos? — perguntou a feiticeira, com seu pequeno sorriso.
— Segredos — respondeu o mago. — Devo partir imediatamente.
Ele tirou a mão debaixo dele e acariciou a pele ressecada do mago.
— Está escuro lá fora.
— Escuro — concordou ele.
— Por que não passa a noite aqui? E pode partir com a primeira luz da manhã.
Zedd ergueu os olhos para ela.
— Passar a noite?
Adie deu de ombros, continuando acariciar a mão dele.
— Às vezes é muito solitário aqui.
— Bem — o sorriso maroto iluminou o rosto de Zedd —, como você disse, está escuro lá fora. Acho que seria mais sensato partir de manhã. — De repente franziu a testa — Esse não é um dos seus enigmas, é?
Ela balançou a cabeça e o sorriso voltou.
— Eu trouxe minha pedra de mago. Você estaria interessada?
O rosto de Adie de suavizou, com um sorriso embaraçado.
— Eu gostar muito. — olhou para ele, recostou na cadeira e deu uma mordida na maçã.
Zedd ergueu uma sobrancelha.
— Nua?
Vento e chuva vergavam o mato alto com ondas lentas quando os dois atravessaram a planície aberta. As árvores eram poucas e espaçadas, a maioria grupos de bétulas e amieiros nas margens de regatos. Kahlan observava atentamente o mato, estavam perto do território do Povo da Lama podia. Richard seguia atrás em silêncio, como sempre vigiando Kahlan.
Não agradava a ela a idéia de levá-lo ao Povo da Lama, mas Richard tinha razão, precisavam saber onde procurar a ultima caixa e não havia mais ninguém por perto para lhes indicar a direção certa. O outono estava quase no fim e o tempo passava rapidamente. Mas, o Povo da Lama podia não estar disposto a ajudar e nesse caso teriam perdido tempo.
Pior ainda, embora ela soubesse que eles provavelmente não ousariam matar uma Confessora, mesmo uma que viajava sem proteção de um mago, não tinha idéia de se ousariam matar um Seeker. Nunca viajara em Midlands sem um mago. Nenhuma Confessora faria isso. Richard era melhor proteção do que Giller, o ultimo mago que a tinha acompanhado, mas não era considerado protetor da Confessora. Ela era protetora do Seeker. Não podia permitir que ele arriscasse a vida por ela outra vez. Richard era mais importante do que ela para deter Rahl. Era isso que importava, acima de tudo. Ela empenhava sua vida em defesa do Seeker... em defesa do Richard. Nunca fora tão ardentemente sincera em toda sua vida. Se chegasse um momento em que devesse escolher, quem deveria morrer seria ela.
O caminho no meio do mato alto os levou a dois postes, cada um de um lado da trilha, envoltos em peles tingidas com listras vermelhas. Richard parou, olhando para os crânios nas pontas dos postes.
— Não. São os crânios de honrados ancestrais, estão aí para tomar conta de suas terras. Só os mais respeitados merecem essa honra.
Kahlan se virou para ele e levantou uma sobrancelha.
— Um dos modos de ser reverenciado pelo Povo da Lama é matar estranhos. — Olhou para os crânios. — Mas isso não é uma ameaça a outra pessoa. É simplesmente uma tradição deles.
Richard respirou fundo e tirou a mão do poste.
— Vamos ver se conseguimos alguma ajuda deles, para que passamos continuar a reverenciar seus ancestrais e manter longe os estranhos.
— Lembre— se do que eu disse — avisou ela— Eles podem não querer ajudar. Você terá que respeitar essa decisão. Este é um dos povos que estou tentando salvar. Não quero que faça mal a eles.
— Kahlan, não é a minha intenção nem meu desejo fazer mal. Não se preocupe, eles nos ajudarão. É para seu próprio bem.
— Talvez eles não pensem assim — insistiu ela. A chuva tinha parado e foi substituída por uma névoa leve e fria. Ela tirou o capuz da capa. — Richard, prometa que não fará mal a eles.
Ele tirou também o capuz, pôs as mãos na cintura e a surpreendeu com um sorriso de canto de boca.
— Agora sei qual é a sensação.
— Do quê? Perguntou ela, desconfiada.
Richard olhou pra ela e seu sorriso se largou.
— Lembra quando tive febre causada pela trepadeira serpente e pedi a você para não fazer mal a Zedd? Agora sei como você se sentiu quando não pode me prometer.
Kahlan olhou para os olhos cinzentos dele, pensando no quanto queria deter Rahl, e pensou em todos que ele tinha matado.
— E agora eu sei como deve ter se sentido quando eu disse que não podia prometer. — Ela sorriu. — Você se sentiu um tolo por pedir?
— Quando compreendi o que estava em jogo. E quando vi que tipo de pessoa você era, incapaz de fazer mal a alguém, exceto se não tivesse escolha. Então me senti tolo. Por não confiar em você.
Kahlan se sentiu tola por não confiar nele. Mas sabia que Richard confiava demais nela.
— Desculpe — disse ele, ainda sorrindo. — Eu devia conhecer melhor você
— Você sabe como podemos convencê-los a nos ajudar?
Kahlan estivera várias vezes no povoado do Povo da Lama, mas como convidada. Eles jamais pediriam a presença de uma Confessora. Fazia parte da rotina das Confessoras visitar profissionalmente os povos de Midlands. Eles tinham sido bastante delicados, mas deixaram claro que preferiam resolver os próprios problemas e não queriam interferência externa. Não era um povo que reagisse a ameaças.
— O Povo da Lama tem um conselho de videntes. Nunca tive permissão para assistir a uma dessas reuniões, talvez por ser uma estranha, talvez por ser mulher. O grupo adivinha as respostas às questões que afetam o povoado. Não fariam uma reunião à ponta de espada. Se resolvessem nos ajudar, deve ser voluntariamente. Você deve convencê-los.
Richard olhou nos olhos dela.
— Com sua ajuda, podemos fazer isso. Precisamos.
Ela assentiu e voltou a nadar. As nuvens pairavam baixas e espessas sobre a planície, parecendo ferver lentamente enquanto rolavam em suas procissão infindável. Na planície, parecia haver muito mais céu do que em qualquer outro lugar. Era uma presença dominadora, impondo-se à terra plana e imutável.
A chuva engrossava os regatos e a água revolta e enlameada espumava e batia com um rugido nas toras de madeira usadas como pontes. Kahlan sentia a madeira estremecer com a força da água debaixo dos pés. Andava com cuidado porque a madeira era escorregadia e não havia uma corda para servir de corrimão. Richard ofereceu a mão para ajudá-la e ela aceitou satisfeita a desculpa para segurar a mão dele. Surpreendeu-se esperando ansiosa pelas pontes, para poder segurar a mão de Richard. Porém, por mais difícil que fosse, não podia encorajar os sentimentos dele por ela. Desejou ser apenas uma mulher como qualquer outra. Mas não era. Era uma Confessora. Porém, às vezes em breves momentos podia esquecer e fingir que não era.
Queria que Richard caminhasse ao seu lado, mas continuava atrás, vigiando a paisagem, cuidando dela. Ele estava em terra estranha, não confiava em nada e em tudo via ameaça. Em Westland, Kahlan tinha sentido a mesma coisa, por isso compreendia. Ele arriscava a vida para combater Rahl, para combater coisas que nunca havia encontrado antes e tinha razão para estar alerta. Os cautelosos morriam depressa em Midlands, os descuidados mais depressa ainda.
Depois de atravessarem outro regato e voltarem para a relva molhada, oito homens surgiram de repente na frente deles. Kahlan e Richard pararam bruscamente. Peles de animais cobriam grande parte de seus corpos. Lama grossa que não era lavada pela chuva cobria o resto do corpo, o rosto e o cabelo. Molhos de relva atados nos braços e nas peles que vestiam e debaixo das faixas que usavam na cabeça os faziam invisíveis quando estavam agachados. Pararam em silêncio e carrancudos na frente dos dois. Kahlan reconheceu vários deles, era um grupo de caça do Povo da Lama.
O mais velho, um homem forte e musculoso que Kahlan conhecia pelo nome de Savidlin, aproximou-se dela. Os outros esperaram, lanças e arcos abaixados, mas prontos para serem usados. Kahlan sentiu Richard muito perto dela. Sem virar para trás, murmurou para ele ficar calmo e fazer o mesmo que ela. Savidlin estava parado na frente deles.
— Força para a Confessora Kahlan — Disse ele.
— Força para Savidlin e o Povo da Lama — respondeu ela, na língua deles
Savidlin a esbofeteou com força. Ela retribuiu do mesmo modo. Imediatamente Kahlan ouviu o som cantante da espada de Richard sendo desembainhada, Kahlan virou para trás.
— Não, Richard! — A espada estava pronta para atacar. — Não! — Segurou os pulsos dele. — Eu disse para ficar calmo e fazer o mesmo que eu.
Richard olhou de Savidlin para ela, com fúria, com magia pronta para matar. Os músculos do seu rosto ficaram tensos quando ele cerrou os dentes com força.
— E se eles cortarem seu pescoço, devo deixar que façam o mesmo comigo?
— É assim que eles cumprimentam as pessoas. Demonstra respeito pela força do outro.
Richard hesitou.
— Desculpe por não ter avisado. Richard, guarde a espada.
Richard olhou dela para Savidlin e outra vez para ela, antes de ceder e, zangado, embainhar a espada. Aliviada, ela se virou para o Povo da Lama, sempre muito perto de Richard. Savidlin e os outros apenas os observavam calmamente. Não compreendiam as palavras, mas pareciam entender o que tinha acontecido. Savidlin olhou para Kahlan e falou em seu dialeto:
— Quem é esse homem de gênio forte?
— Chama-se Richard. É o Seeker, o que procura a verdade.
Murmúrios irromperam no grupo. Savidlin olhou nos olhos de Richard.
— Força para Richard, o Seeker.
Kahlan traduziu para ela o que Savidlin tinha dito. Richard continuava furioso. Savidlin se aproximou e golpeou Richard, não com a mão aberta como fizera com Kahlan, mas com o punho fechado. Richard revidou imediatamente com um murro tão forte que derrubou Savidlin de costas no chão. Ele ficou deitado e atordoado, com pernas e braços abertos. As mãos apertaram as armas. Com um olhar ameaçador, Richard os imobilizou.
Savidlin ergueu o corpo apoiado em uma das mãos, esfregando o queixo com a outra.
— Ninguém jamais demonstrou tanto respeito por minha força! Esse é um homem sábio.
Os homens caíram na gargalhada. Kahlan cobriu a boca com a mão, tentando disfarçar o riso. A tensão desapareceu.
— O que ele disse?— Perguntou Richard.
— Disse que você tem grande respeito por ele, que você é sábio. Acho que você fez um amigo.
Savidlin estendeu a mão para Richard ajudá-lo a se levantar. Desconfiado, Richard o ajudou. Quando ficou de pé, Savidlin bateu nas costas de Richard e passou o braço em volta dos ombros fortes dele.
— Estou realmente satisfeito por você conhecer a minha força, mas espero que não venha apresentar seus respeitos outra vez — Os homens riram — Entre o povo da Lama você será conhecido como Richard , o Esquentado.
Esforçando-se para não rir, Kahlan traduziu. Os homens sorriam ainda. Savidlin virou para eles.
— Talvez vocês queiram cumprimentar meu grande amigo e deixar que ele demonstre seu respeito por sua força.
Todos se levantaram as mãos na frente do rosto e balançavam a cabeça vigorosamente.
— Não — disse um deles, rindo—, ele já demonstrou respeito suficiente por todos nós.
Savidlin se voltou para Kahlan.
— Como sempre a Confessora Kahlan é bem-vinda entre o povo de Lama — Sem olhar para ele, indicou Richard com a cabeça — Ele é o seu companheiro?
— Não!
Savidlin ficou tenso.
— Então veio escolher um dos nossos homens?
— Não — disse ela recuperando a calma.
Savidlin ficou aliviado.
— A Confessora escolhe companheiros de viagem perigosos.
— Não para mim, só para aqueles que querem me fazer mal.
Savidlin sorriu compreendendo e olhou para Kahlan de alto a baixo.
— Está com roupas estranhas. Diferentes das que usava antes.
— Mas por baixo delas eu sou a mesma — Disse Kahlan inclinando-se um pouco para ele para enfatizar suas palavras. — É isso que você precisa saber.
Savidlin recuou um pouco ante a expressão intensa dela e assentiu com a cabeça. Entrecerrou os olhos. — E porque está aqui?
— Para que possamos nos ajudar. Há um homem que vai reinar sobre o seu povo. O Seeker e eu preferimos que vocês mesmos façam isso. Viemos procurar a força e a sabedoria do seu povo para nos ajudar a lutar contra ele.
— Pai Rahl — disse Savidlin com convicção.
— Você sabe?
— Um homem veio. Disse que era um missionário que queria nos ensinar tudo sobre a bondade de um homem chamado Pai Rahl. Falou com nosso povo durante três dias, até ficarmos cansados dele.
Foi a vez de Kahlan ficar tensa. Olhou para os outros homens, que começaram a sorrir à menção do missionário. Olhou outra vez para o rosto coberto de Lama do mais velho.
— E o que aconteceu com ele no fim dos três dias?
— Ele era um bom homem. — Savidlin sorriu significamente.
Kahlan enrijeceu o corpo. Richard chegou mais perto dela.
— O que estão dizendo?
— Querem saber por que estamos aqui. Dizem que ouviram falar de Darken Rahl.
— Diga que quero ficar com seu povo, que precisamos que convoquem uma reunião.
Kahlan ergueu os olhos para ele.
— Estou chegando lá. Adie estava certa, você não é um homem paciente.
Richard sorriu
— Não, ela estava errada. Sou muito paciente, mas não muito tolerante. Há uma diferença.
Kahlan sorria para Savidlin enquanto falava com Richard.
— Muito bem, não fique intolerante logo agora, nem que demonstre mais seu respeito por enquanto. Eu sei o que estou fazendo e tudo está indo bem. Deixe que eu faça do meu modo. Certo?
Ele concordou e cruzou os braços, frustrado. Kahlan se voltou outra vez para o mais velho dos homens que olhou atentamente para ela e fez uma pergunta que surpreendeu.
— Kahlan, o Esquentado nos trouxe chuva?
Kahlan ficou intrigada.
— Bem eu acho que pode dizer que sim — A pergunta a deixou confusa e ela não sabia o que dizer, por isso disse a verdade. — As nuvens o seguem.
O homem olhou atentamente para ela e balançou a cabeça definitivamente. Kahlan não se sentiu bem sob o olhar dele e procurou voltar a conversar para o motivo se sua visita.
— Savidlin, o Seeker veio ver seu povo a conselho meu. Ele não esta aqui para prejudicar seu povo ou interferir nos seus assuntos. Você me conhece. Já estive com vocês antes. Você sabe do meu respeito pelo Povo de Lama. Eu não traria outra pessoa para vocês se não fosse importante. Neste momento o tempo é nosso inimigo.
Savidlin considerou as palavras dela por algum tempo e então falou: — Como eu disse antes, você é bem vinda entre nós — Olhou com um sorriso para o Seeker e outra vez para ela, — Richard, o Esquentado também é bem vindo ao nosso povoado.
Os outros homens ficaram satisfeitos com a decisão. Todos pareciam gostar de Richard. Apanharam suas coisas, incluindo dois gamos e um javali, cada um amarrado a um pau para carregar. Kahlan não tinha visto antes o resultado da caçada deles porque estava escondido na relva. Caminhando na trilha, os homens se aproximaram de Richard, tocando nele cautelosamente e fazendo perguntas que ele não podia compreender. Savidlin bateu no ombro dele, ansioso pra amostrar o novo amigo grandalhão para todos no povoado. Kahlan seguia ao lado dele, quase completamente ignorada e feliz porque eles gostavam de Richard. Ela compreendia, era difícil não gostar dele, mas havia outro motivo para aquela aceitação imediata. Ela se preocupava com qual podia ser esse motivo.
— Eu disse que os conquistaria. — Richard sorriu olhando por cima das cabeças deles. — Nunca pensei que conseguiria isso esmurrando um deles.
Galinhas ciscavam entre seus pés quando o grupo de caça entrou no povoado do Povo da Lama com Kahlan e Richard. Sobre uma pequena elevação que passava por uma colina nas pastagens do Agreste, a aldeia consistia numa coleção de casa feitas numa espécie de tijolos de lama, cobertos com reboco de argila que tinha de ser constantemente reconstituído para proteger da chuva. Havia portas de madeira, mas nenhum vidro nas janelas das paredes grossas e só um pedaço de pano protegia algumas.
Dispostas num circulo tosco na área aberta, ficavam as casas de família, com só um cômodo, amontoadas no lado sul, quase todas compartilhando pelo menos uma parede, com passagens estreitas entre elas; as construções de uso comum ficavam todas juntas ao norte. Estruturas variadas a leste e oeste as separavam. Algumas não passavam de quatro postes com telhado de palha, usadas como refeitório ou como área de trabalho para fazer armas e cerâmica ou para preparar comida. Quando o tempo estava seco, todo o povoado era envolto por uma nuvem de poeira que entrava nos olhos, no nariz e cobria a língua, mas agora as construções estavam lavadas pela chuva e no chão milhares de pegadas se transformavam em poças d’água que refletiam as casas rústicas.
Mulheres com vestidos simples de cores vivas se sentavam nas áreas de trabalho moendo raiz de tava, com a qual faziam o pão, que era o alimento básico do Povo da Lama.
Fumaça com cheiro adocicado subia nos fogos acesos para cozinhar. Meninas adolescentes, com cabelo cortado curto alisado com a lama pegajosa, ajudavam as mulheres.
Kahlan sentia os olhares tímidos. Sabia por já ter estado ali, que era objeto de grande interesse entre as meninas, uma viajante que conhecia lugares estranhos e tinha visto de tudo. Uma mulher temida e respeitada pelos homens. As mulheres mais velhas permitiam a distração das meninas com compreensiva indulgência.
Crianças apareciam correndo de todos os cantos para ver os estranhos trazidos pelo grupo de caça de Savidlin. Amontoavam-se em volta dos caçadores gritando, batendo na lama os pés descalços e molhando os homens. Normalmente estariam interessadas no gamo e no javali, mas agora os animais eram ignorados a favor dos estranhos. Os homens os toleravam com sorrisos bem-humorados. As crianças pequenas nunca eram repreendidas. Quando cresciam, recebiam treinamento rigoroso para aprender a disciplina do Povo de Lama — da caça, das reuniões e dos espíritos—, mas por enquanto se permitia que fossem crianças, com liberdade quase completa para brincar.
O grupo de crianças oferecia restos de comida como suborno para historia de quem podiam ser os estranhos. Os homens riam declinando o oferecimento, guardando a historia para os adultos. Levemente desapontadas, as crianças continuavam a dançar em volta deles, aquilo sendo a coisa mais excitante que tinha acontecido em suas vidas, algo fora do comum, com uma insinuação de perigo.
Seis anciãos, debaixo da precária proteção de uma das estruturas sobre quatro postes, esperavam que Savidlin levasse os estranhos a eles. Vestiam calças de pele de gamo, tinham o peito nu e uma pele de coiote que lhes cobria os ombros. A despeito dos rostos severos, Kahlan sabia que eram mais amistosos do que pareciam. O Povo da Lama nunca sorria para estranhos antes de trocar saudações, do contrario suas almas seriam roubadas.
As crianças ficaram longe da construção sobre os quatro postes, sentadas na lama, para ver o grupo de caça levar os estranhos para os mais velhos da aldeia. As mulheres interromperam suas tarefas junto ao fogo onde preparavam comida, bem como os jovens que faziam armas, e agora todos estavam em silêncio, incluindo as crianças. Os negócios do Povo da Lama eram tratados ao ar livre, onde todos podiam assistir.
Kahlan se aproximou dos seis homens, Richard um pouco mais atrás a sua direita, Savidlin à direita dele. Os seis examinaram os dois estranhos.
— Força a Confessora Kahlan — Disse o mais velho.
— Força para Toffalar — respondeu ela.
Ele bateu de leve no rosto dela, pouco mais do que uma carícia. Era costume entre eles dar somente tapinhas nos habitantes do povoado. Os mais fortes, como o que Savidlin tinha dado, eram reservados para encontros ocasionais na planície, longe do povoado. Esse costume ajudava a preservar a ordem e os dentes. Surin, Caldus, Arbrin, Breginderin e Hajanter, cada um por sua vez, ofereceram força e um tapinha. Voltaram-se para Richard. Savidlin adiantou-se, puxando seu novo amigo. Orgulhosamente mostrou o lábio inchado para os seis homens.
Kahlan murmurou o nome de Richard com uma entonação crescente em tom de aviso.
— Eles são homens importantes. Por favor, não quebre os dentes deles.
Richard olhou brevemente para ela com o canto do olho e um sorriso maroto.
— Este é o Seeker Richard, o Esquentado — disse Savidlin, orgulhoso do seu protegido. Inclinou-se para os homens e disse significantemente: — A Confessora Kahlan o trouxe a nós. Ele é a pessoa de quem vocês falaram, a que trouxe chuva. Ela me disse.
Kahlan começou a ficar preocupada. Não sabia do que ele estava falando. Os homens continuaram inexpressivos, exceto Toffalar, que ergueu uma sobrancelha.
— Força para Richard, o Esquentado — disse Toffalar, dando leve tapa no rosto de Richard.
— Força para Toffalar — respondeu ele na sua língua, tendo reconhecido o seu nome e imediatamente retribuiu o tapa.
Kahlan respirou aliviada, ao ver que foi um tapa leve. Savidlin, com um largo sorriso, mostrou outra vez o lábio inchado. Toffalar finalmente sorriu. Depois que os outros deram e receberam saudação, sorriram também.
E então fizeram uma coisa muito estranha.
Os seis anciãos e Savidlin dobraram um joelho e abaixaram a cabeça na frente de Richard, Kahlan ficou tensa imediatamente.
— O que esta acontecendo?— Perguntou Richard, falando pelo canto da boca, alertado pela ansiedade dela.
— Eu não sei — respondeu ela em voz baixa. — Talvez seja o modo de cumprimentar o Seeker. Nunca os vi fazer isso antes.
Os homens se levantaram, sorridentes, Toffalar levantou a mão e fez um sinal para as mulheres.
— Por favor— disse Toffalar para os dois— Sentem-se conosco. É uma honra ter os dois entre nós.
Puxando Richard para baixo, Kahlan se sentou com as pernas cruzadas no chão de madeira molhado. Os anciãos esperaram que eles estivessem sentados antes de se sentar também, ignorando o fato de Richard ficar com a mão perto do punho da espada. As mulheres se aproximaram com bandeja de madeira de pães redondos e chatos de tava e outros alimentos, oferecendo primeiro a Toffalar e depois aos outros anciãos, todas olhando e sorrindo para Richard. Comentaram em voz baixa o tamanho de Richard, o Esquentado, e as roupas estranhas que ele usava. Ignoraram Kahlan quase que completamente.
Em Midlands, de modo geral, as mulheres não gostam de Confessoras. Elas as viam como uma ameaça. Podiam roubar seus homens e perturbar seu estilo de vida. Mulheres não deviam ser independentes. Kahlan ignorava olhares gelados, estava mais do que acostumada com eles.
Toffalar cortou um pão em três partes, oferecendo um terço a Richard primeiro e outro terço a Kahlan. Com um sorriso, uma mulher ofereceu um prato com pimentas assadas para cada um. Kahlan e Richard pegaram uma cada um e, seguindo o exemplo dos anciãos, a enrolaram no pão. Em tempo, Kahlan notou que Richard estava com a mão perto da espera e ia comer com a mão esquerda.
— Richard — Ela murmurou severamente. –Não ponha comida na boca com mão esquerda.
Ele parou:
— Por quê?
— Porque eles acreditam que os mais espíritos comem com a mão esquerda.
— Isso é bobagem — disse ele, com tom de intolerância.
— Richard, por favor. Eles são em maior número. Todas as suas armas são mergulhadas em veneno. Não é hora pra discussão teológica.
Ela sentiu os olhos dele quando sorriu para os anciãos. Com o canto dos olhos, viu aliviada Richard passar a comida para a mão direita.
— Por favor, perdoem nosso escasso oferecimento de comida — disse Toffalar. — Teremos um banquete esta noite.
— Não!— Disse Kahlan apressadamente. — Quero dizer, não queremos dar trabalho ao seu povo.
— Como queira — disse Toffalar, dando de ombros, um pouco desapontado.
— Estamos aqui porque o Povo da Lama e muitos outros correm grande perigo.
Os anciãos assentiram, inclinando a cabeça e sorrindo.
— Sim — disse Surin.— Mas agora que você trouxe Richard, o Esquentado para nós, tudo está bem. Nós agradecemos a você. Confessora Kahlan, nunca esqueceremos o que fez.
Kahlan olhou para os rostos felizes e sorridentes. Não sabia o que fazer com aquele novo problema, por isso comeu um pedaço de pão de tava insosso com a pimenta assada para ter tempo de pensar.
— O que eles estão dizendo? — Perguntou Richard, antes de dar uma mordida no pão.
— Por algum motivo, estão contentes por eu ter trazido você.
Richard olhou para ela.
— Pergunte para eles por quê.
Kahlan se voltou para Toffalar.
— Honrado ancião, tenho de admitir que não compartilho seu conhecimento sobre Richard, o Esquentado.
Ele sorriu, compreensivo.
— Desculpe minha filha. Esqueci que você não estava aqui quando houve a reunião do conselho dos videntes. Estava tudo seco, nossas plantações murcharam e nosso povo corria perigo de morrer de fome. Então fizemos uma reunião para pedir ajuda aos espíritos. Eles disseram que alguém viria e traria chuva. As chuvas chegaram e aqui está Richard, o Esquentado, como eles prometeram.
— Então vocês estão felizes com a presença dele porque ele é um auspício?
— Não — disse Toffalar, entusiasmado—, estamos felizes porque o espírito de um dos nossos ancestrais veio nos visitar. — Apontou para Richard. — Ele é um homem-espírito.
Kahlan quase deixou cair o pão, surpresa.
— O que foi?— Perguntou Richard.
Ela olhou para ele:
— Eles fizeram uma reunião para pedir chuva. Os espíritos disseram que alguém viria e traria chuva. Richard, eles pensam que você é o espírito de um ancestral. Um homem-espírito.
Richard olhou para ela por um momento.
— Muito bem, eu não sou.
— Eles pensam que é. Richard, eles farão qualquer coisa por um espírito. Reunirão o conselho dos videntes se você pedir.
Kahlan não gostou de pedir aquilo a ele, não era direito enganar o Povo da Lama, mas precisavam saber onde estava a caixa. Richard considerou o problema.
— Não — disse ele, em voz baixa.
— Richard, temos de fazer algo importante. Se eles pensam que você é um espírito e se isso nos ajuda a achar a ultima caixa, que importância tem?
— Tem importância porque é mentira. Não farei isso.
— Prefere que Rahl vença? — Perguntou ela em voz baixa.
Richard olhou zangado para ela.
— Para começar, não farei porque é errado enganar esse povo num assunto tão importante quanto esse. E depois, esse povo tem um poder e por isso estamos aqui. Eles provaram isso por terem dito que alguém viria e traria chuva. Essa parte é verdade. No seu entusiasmo, chegaram à uma conclusão precipitada que não é verdade. Eles disseram que quem viria seria um espírito? — Ela balançou a cabeça. — As pessoas às vezes acreditam nas coisas simplesmente porque querem acreditar.
— Se é vantajoso para nós e para eles, que mal há nisso?
— O mal está no poder deles. E se eles fizerem reunião e virem a verdade, que eu não sou um espírito? Acha que ficarão satisfeitos por termos mentido, enganado? Então estaremos mortos e Rahl vence.
Ela se inclinou para trás com um suspiro. “Os magos escolhem bem os Seekers”. Kahlan pensou.
— Nós descontentamos o espírito? — Perguntou Toffalar com preocupação evidente nos rosto enrugado.
— Ele quer saber por que você está zangado — disse ela. — O que devo dizer?
Richard olhou para os anciãos e depois para ela.
— Eu digo a eles. Traduza minhas palavras.
Kahlan inclinou a cabeça, assentindo.
— O Povo da Lama é sábio e forte — ele começou — Por isso estou aqui. Os espíritos dos seus ancestrais estavam certos quando disseram que eu traria chuva. — Todos pareceram satisfeitos com essas palavras. Todos no povoado ouviam em silêncio. — Mas eles não disseram tudo. Como vocês sabem que os espíritos são assim. — Os anciãos concordaram com um gesto. — Deixaram a cargo da sua sabedoria descobrir o resto da verdade. Desse modo, vocês continuam fortes, como seus filhos continuam fortes porque vocês os guiam, não porque dão a eles tudo que querem. A esperança de todos os pais é que seus filhos se tornem fortes e sábios que, aprendam a pensar por eles mesmos.
Muitos assentiram balançando a cabeça, mas não tanto quanto antes.
— O que está dizendo, grande espírito?— Perguntou Arbrin, um dos anciãos.
Richard passou a mão no cabelo depois que Kahlan traduziu.
— Estou dizendo que sim, eu trouxe a chuva, porém há mais. Talvez dos espíritos tenham visto o grande perigo que seu povo corre e essa é a razão mais importante da minha vida. Um homem muito perigoso quer governar o seu povo, fazer dele seus escravos. O nome dele é Darken Rahl.
Os anciãos riram com desprezo.
— Então ele manda tolos para serem nossos senhores — disse Toffalar.
Richard olhou para eles, zangado. Os sorrisos desapareceram.
— É o modo dele, aplacar vocês, transmitindo sua super confiança. Não se deixem enganar. Ele tem usado seu poder e sua magia para conquistar povos mais numerosos do que vocês. Quando quiser, ele os aniquilará. As chuvas vieram porque ele enviou nuvens para me seguir, para saber onde estou para poder me matar quando bem entender. Não sou um espírito, sou o Seeker. Apenas Um homem. Quero deter Darken Rahl para que seu povo e outros possam viver suas vidas livremente.
Toffalar entrecerrou os olhos.
— Se o que você diz é verdade, então o homem chamado Rahl mandou as chuvas, e salvou nosso povo. Foi o que seu missionário tentou nos ensinar, que Rahl nos salvaria.
— Não. Rahl mandou as nuvens para me seguir, não para salvar vocês. Eu quis vir aqui, como os espíritos dos seus ancestrais disseram que eu viria. Eles disseram que a chuvas chegariam e que um homem viria com elas. Não disseram que seria um espírito.
Foi grande o desapontamento dos anciãos quando Kahlan interpretou essas palavras. Ela esperava que não se transformasse em raiva.
— Então talvez a mensagem dos espíritos fosse um aviso sobre o homem que viria — disse Surin.
— E talvez fosse um aviso sobre Rahl — respondeu Richard imediatamente. — Eu estou lhes oferecendo a verdade. Devem usar sua sabedoria para ver isso ou seu povo está perdido. Ofereço a vocês a oportunidade de se salvar.
Os anciãos pensaram em silêncio.
— Suas palavras parecem verdadeiras, Richard, o Esquentado, mas isso ainda está para ser decidido — disse Toffalar, finalmente. — O que você quer de nós?
Os anciãos ficaram calados, a alegria desapareceu dos seus rostos. O resto dos habitantes do povoado esperava quieto, temeroso. Richard olhou para cada ancião, depois falou em voz baixa:
— Darken Rahl procura certa magia que dará a ele o poder de reinar sobre todos, incluindo o Povo da Lama. Eu procuro essa magia também, para negar a ele esse poder. Eu gostaria de que vocês reunissem o conselho dos videntes para me dizer onde posso encontrar essa magia, antes que seja tarde demais, antes que Rahl a encontre primeiro.
Toffalar disse, severamente: — Não convocamos reuniões para estranhos.
Kahlan percebeu que Richard começava a se irritar e só com esforço se controlava. Sem mover a cabeça, ela olhou em volta, vendo onde estavam todos, especialmente os homens armados, para o caso de precisarem sair lutando. Não achava muito boas as chances de escapar. De repente, desejou nunca ter levado Richard ao Povo da Lama.
Os olhos de Richard fuzilavam quando olhou para o povo e depois para os anciãos.
— Em troca de ter trazido a chuva, peço apenas que não decidam neste momento. Considerem que tipo de homem acham que eu sou. — Mantinha a voz calma, mas não havia dúvida do significado do que dizia. — Pensem com calma. Muitas vidas dependem dessa decisão. A minha. A de Kahlan. As de vocês.
Enquanto traduzia, Kahlan de repente teve a impressão de que Richard não falava para os anciãos. Ele falava para outra pessoa. Então sentiu os olhos dessa pessoa nela. Procurou entre a multidão. Todos os olhos estavam nos dois, ela não sabia de quem era o olhar que sentia ainda.
— É justo — disse Toffalar. — Vocês dois estão livres para ficar entre nosso povo como convidados de honra enquanto resolvemos. Por favor, desfrutem de tudo que temos. Compartilhem nossa comida e nossas casas.
Os anciãos se retiraram, debaixo da chuva fina, para as casas comunais. O povo voltou aos seus afazeres, levando as crianças. Savidlin foi o último a partir. Sorriu e ofereceu sua ajuda para qualquer coisa de que precisassem. Kahlan agradeceu e ele saiu para a chuva. Kahlan e Richard ficaram sozinhos, sentados no chão de madeira, procurando evitar as gotas de chuva que pingavam do telhado. As bandejas com pão de tava e o prato com pimenta assada ficaram. Kahlan pegou um pão e o enrolou em volta de uma pimenta. Deu a Richard e fez outro para ela.
— Está zangada comigo? — perguntou ele.
— Não — disse ela, com um sorriso. — Estou orgulhosa de você.
Um sorriso de menino iluminou o rosto dele. Começou a comer com a mão direita e rapidamente. Quando terminou, falou outra vez.
— Olhe por cima do meu ombro direito. Há um homem encostado na parede, cabelo comprido grisalho com os braços cruzados. Diga se sabe quem ele é.
Kahlan deu uma mordida no pão com pimenta e enquanto mastigava olhou por cima do ombro dele.
— É o Homem Pássaro. Não sei coisa alguma sobre ele, exceto que sabe chamar os pássaros.
Richard pegou outro pão, enrolou a pimenta e deu uma mordida.
— Acho que está na hora de ter uma conversa com ele.
— Porquê?
Richard olhou para ela.
— Porque ele é o encarregado de tudo aqui.
Kahlan ficou intrigada.
— Os anciãos são os encarregados.
Richard sorriu com o canto da boca.
— Meu irmão sempre diz que o verdadeiro poder não é exercido em público. — Olhou atentamente para ela. — Os anciãos são para mostrar. São respeitados e por isso exibidos para quem quiser ver. Como os crânios nos postes, só que ainda têm a pele sobre os ossos. Eles têm autoridade porque são estimados, mas não são os encarregados. — Com um movimento rápido dos olhos, Richard indicou o Homem Pássaro encostado na parede atrás dele. — Ele é.
— Então por que ele não se dá a conhecer?
— Porque — disse Richard, com um sorriso — ele quer saber o quanto somos espertos.
Richard se levantou e estendeu a mão para ela. Kahlan pôs na boca o último pedaço de pão e limpou as mãos na calça. Quando ele a ajudou a se levantar, ela pensou no quanto gostava do modo com que ele sempre oferecia a mão. Richard era a primeira pessoa a fazer isso. Era apenas parte do quanto ela se sentia à vontade com ele.
Andando na lama e na chuva, eles se aproximaram do Homem Pássaro. Ele continuou encostado na parede, olhando para eles com olhos penetrantes. Cabelo comprido, quase todo prateado, chegava aos ombros, sobre a túnica cinzenta igual à calça. Sua roupa não rinha qualquer enfeite, mas ele usava um entalhe de osso dependurado em uma tira de couro do pescoço. Não velho nem jovem, ainda bonito, era quase tão alto quanto Kahlan. A pele do rosto parecia tão áspera quanto a pele de gamo da roupa.
Pararam à frente dele. O homem continuou encostado na parede, com a perna direita dobrada, o pé apoiado no tijolo de lama, os braços cruzados. Olhou atentamente para eles.
Richard cruzou os braços.
— Eu gostaria de falar com você, se não teme que eu possa ser um espírito.
O Homem Pássaro olhou para Kahlan quando da traduziu, depois para Richard.
— Já vi espíritos antes — disse de calmamente. — Eles não usam espadas.
Kahlan traduziu. Richard riu. Ela gostava da risada descontraída dele.
— Eu também já vi espíritos e você tem razão, eles não usam espadas.
Um leve sorriso recurvou os lábios do Homem Pássaro. Descruzando os braços, desencostou da parede.
— Força para o Seeker. — Bateu de leve com a mão aberta no rosto de Richard.
— Força para o Homem Pássaro — disse Richard, retribuindo a saudação.
O Homem Pássaro pegou o osso dependurado no pescoço e o levou aos lábios. Kahlan viu que era um apito. Ele soprou, mas não se ouviu som algum. Largando o apito, ele estendeu o braço, sempre olhando para Richard. Depois de um momento, um falcão mergulhou do céu cinzento e pousou no braço estendido. Eriçou as penas ajeitando-as, piscando os olhos e virando a cabeça de um lado para o outro.
— Venham — disse o Homem Pássaro —, vamos conversar.
Ele os levou para uma passagem entre os prédios comunais para um menor, nos fundos, distanciado dos outros. Kahlan conhecia a construção sem janelas, mas nunca estivera dentro dela. Era a casa dos espíritos, onde se realizavam as reuniões.
O falcão continuou no braço do Homem Pássaro quando ele abriu a porta e fez sinal a eles para entrarem. Uma pequena fogueira brilhava em uma cavidade, era a única iluminação na sala. A fumaça saía por uma abertura no telhado, acima do fogo. A sala cheirava a fumaça. Pratos da refeição mais recente espalhavam-se no chão e numa prateleira de madeira; na parede havia bem umas duas dúzias de crânios dos ancestrais. Fora isso, a sala era vazia. O Homem Pássaro encontrou um lugar no centro da sala onde a chuva não entrava e se sentou no chão de terra. Kahlan e Richard se sentaram lado a lado, de frente para ele, com o falcão vigiando seus movimentos.
O Homem Pássaro olhou nos olhos de Kahlan. Ela percebeu que ele estava acostumado a que as pessoas sentissem medo quando olhava para elas, mesmo que isso não fosse justificado. Ela sabia porque estava acostumada à mesma coisa. Dessa vez, ele não percebeu medo nenhum.
— Madre Confessora, você ainda não escolheu um companheiro. — Acariciou a cabeça do falcão
Kahlan não gostou do tom de voz dele. Era um teste.
— Não. Está se oferecendo?
Ele sorriu.
— Não. Peço desculpas. Não tive intenção de ofender. Por que não está com um mago?
— Todos os magos, menos dois, estão mortos. Desses dois, um vendeu seus serviços a uma rainha. O outro foi atingido por um animal do mundo subterrâneo e dorme profundamente. Não há um deles para me proteger. Todas as outras Confessam foram mortas. Estamos vivendo em tempos terríveis.
Os olhos dele demonstrava simpatia genuína, mas o tom de voz era ainda agressivo.
— É perigoso para uma Confessora andar sozinha.
— Sim. E é perigoso para um homem estar sozinho com uma Confessora que precisa muito de uma coisa. Na minha opinião, você corre maior perigo do que eu.
— Talvez — disse ele, acariciando o falcão, o sorriso voltando. — Talvez. Esse é um verdadeiro Seeker? Nomeado por um mago?
— Sim, é.
O Homem Pássaro assentiu, inclinando a cabeça.
— Há muitos anos eu não via um verdadeiro Seeker. Um falso Seeker esteve aqui cena vez. Matou alguns do meu povo quando não demos o que ele queria.
— Lamento por eles — disse Kahlan. Ele balançou a cabeça lentamente.
— Não lamente. Eles morreram rapidamente. Tenha pena do Seeker. Ele não morreu assim. — O falcão piscou os olhos e olhou para ela.
— Eu nunca vi um falso Seeker, mas já vi este aqui enraivecido. Acredite, você e seu povo nunca vão querer dar motivo para que ele desembainhe a espada. Ele sabe usara magia. Eu o vi abater maus espíritos.
Ele olhou atentamente para os olhos dela por um momento, parecendo julgar a verdade do que acabava de ouvir.
— Obrigado pelo aviso. Não esquecerei.
Richard falou finalmente: — Vocês já acabaram de ameaçar um ao outro?
Kahlan olhou para ele, surpresa.
— Pensei que você não entendia a língua deles.
— Não entendo. Mas compreendo os olhos. Se olhar provocasse faíscas, este lugar estará em chamas.
Kahlan se voltou para o Homem Pássaro.
— O Seeker quer saber se acabamos de nos ameaçar.
Ele olhou para Richard e depois para ela.
— Ele é um homem impaciente, não é?
— Eu já disse isso a ele. Ele nega.
— Deve ser penoso viajar com ele.
Kahlan sorriu.
— Nem um pouco.
O Homem Pássaro retribuiu o sorriso e então olhou para Richard.
— Se resolvemos não ajudá-los, quantos de nós ele matará?
Kahlan interpretava as palavras enquanto ele falava.
— Nenhum
O Homem Pássaro falou, olhando para o falcão: — E se resolvermos não ajudar Darken Rahl, quantos de nós ele matará?
— Mais cedo ou mais tarde, muitos.
Ele tirou a mão do falcão e olhou para Richard, com seus olhos penetrantes.
— Parece que você argumenta para que ajudemos Darken Rahl.
Richard sorriu.
— Se vocês resolverem não ajudar e ficarem neutros, por mais tolo que isso seja é um direito seu, e não farei mal a ninguém do seu povo. Mas Rahl fará. Eu insistirei e lutarei contra ele até o ultimo suspiro, se for preciso.
Inclinou-se para frente com uma expressão sombria.
— Se, por outro lado, resolverem ajudar Darken Rahl e eu o derrotar, voltarei e... — Passou o dedo no pescoço com um gesto rápido que não precisava ser traduzido.
O Homem Pássaro continuou impassível, sem resposta imediata.
— Tudo que queremos é ser deixados em paz — disse ele finalmente.
Richard deu de ombros e olhou para o chão.
— Compreendo isso. Também quero ser deixado em paz. — Ergueu os olhos. — Darken Rahl matou meu pai e envia maus espíritos com a forma do meu pai para me assombrar. Manda homens para matar Kahlan. Derruba a fronteira para invadir minha terra natal. Seus asseclas atingiram meus dois melhores amigos. Estão dormindo profundamente, quase mortos, mas pelo menos viverão... a não ser que ele seja bem sucedido da próxima vez. Kahlan me falou dos muitos que ele matou. Crianças, histórias que partirão seu coração. — Prosseguiu em voz baixa, pouco mais de um murmúrio. — Sim, meu amigo, eu também quero ser deixado em paz. No primeiro dia do inverno, se Darken Rahl conseguir a magia que procura, terá um poder contra o qual ninguém poderá lutar. Então será tarde demais. — Levou a mão ao punho da espada. Kahlan arregalou os olhos. — Se ele estivesse aqui, no meu lugar, empunharia esta espada e o obrigaria a ajudá-lo ou cortaria sua cabeça. — Tirou a mão da espada. — É por isso, meu amigo, que não posso fazer mal a você se resolver não me ajudar.
O Homem Pássaro ficou imóvel e calado por um longo tempo.
— Vejo agora que não quero Darken Rahl por inimigo. Nem você. — Levantou-se, foi até a porta e soltou o falcão para o céu. Sentou-se outra vez, suspirando pesadamente sob o peso dos seus pensamentos. — Suas palavras parecem verdadeiras, mas não posso ter certeza ainda. Parece também que, embora você queira nossa ajuda, quer também nos ajudar. Acredito que é sincero nisso. É sábio o homem que procura ajuda ajudando e não por meio de ameaças e truques.
— Se eu quisesse conseguir sua ajuda por meio de truques, teria deixado que acreditassem que sou um espírito.
Os cantos da boca do Homem Pássaro se ergueram num sorriso.
— Se fizéssemos uma reunião, teríamos descoberto que não é. Um homem sábio pensaria nisso também. Então, o que o fez dizer a verdade? Não nos quis enganar ou ficou com medo?
Richard sorriu também.
— De verdade? As duas coisas.
— Muito obrigado por dizer a verdade.
Richard respirou profundamente e soltou o ar devagar.
— Então, Homem Pássaro, já contei minha história. Você deve julgar se é verdadeira ou não. O tempo está contra mim. Vai ajudar?
— Não é tão simples assim. Meu povo me procura para orientá-lo. Se você pedisse comida, eu poderia dizer. “Dêem comida a ele” e eles dariam. Mas você pede uma reunião. Isso é diferente. O conselho dos videntes é constituído por mim e os seis anciãos com quem você falou. Eles são homens velhos, apegados às nossas tradições. Jamais um estranho teve uma reunião, jamais foi permitido perturbar a paz dos espíritos dos nossos ancestrais. Logo os seis vão se juntar aos espíritos e não querem pensar que serão chamados do mundo dos espíritos para atender a necessidade de um estranho. Se quebrarem a tradição, sentirão para sempre o peso do resultado. Não posso mandar que façam isso.
— Não é para atender a necessidade de um estranho. — disse Kahlan, traduzindo para os dois. — Ao nos ajudarem, estarão ajudando também o Povo da Lama.
— Talvez no fim. — disse o Homem Pássaro —, mas não no começo.
— E se eu fizesse parte do Povo da Lama? — perguntou Richard entrecerrando os olhos.
— Então eles fariam a reunião para você, sem violar a tradição.
— Você pode fazer de mim um homem do Povo da Lama?
O cabelo cinza prateado do Homem Pássaro brilhava à luz do fogo enquanto ele pensava.
— Se você primeiro fizer alguma coisa para ajudar nosso povo, alguma coisa que nos beneficie, sem vantagem para você, provando que tem boas intenções para conosco, sem promessa de ajuda da nossa parte e os anciãos concordarem, eu poderia.
— E quando você me nomeasse um membro do seu povo, eu poderia pedir uma reunião e eles fariam?
— Se você fosse um de nós, saberiam que agia de acordo com nossos interesses. Eles convocariam um conselho dos videntes para ajudá-lo.
— E se reunissem o conselho, poderiam me dizer onde está o objeto que procuro?
— Não posso responder a isso. Às vezes os espíritos não respondem, às vezes não sabem a resposta. Não há garantia de que poderemos ajudar, mesmo com a reunião do conselho. Tudo o que posso prometer é que tentaríamos ao máximo.
Richard olhou para o chão, pensando. Com a ponta do dedo empurrou um pouco de terra para uma das poças de água da chuva.
— Kahlan — perguntou ele em voz baixa —, você sabe de mais alguém com o poder de nos dizer onde devemos procurar a caixa?
Kahlan tinha pensado nisso o dia todo.
— Sei. Mas entre todos que conheço não sei de alguém tão disposto a nos ajudar quanto o Povo da Lama. Alguns deles nos matariam só por perguntar.
— Bem, os que não nos matariam só por perguntar a que distância estão?
— Três semanas pelo menos, ao norte, numa região muito perigosa controlada por Rahl!
— Três semanas — disse Richard em voz alta, desapontado.
— Mas Richard, o Homem Pássaro pode nos prometer muito pouco. Se você descobrisse um meio de ajudá-los, se isso agradar aos anciãos, se eles pedirem ao Homem Pássaro para nomear você um deles, se os videntes do conselho puderem dar uma resposta, se os espíritos souberem a resposta... se, se, se. Muitas oportunidades para um passo em falso.
— Não foi você que disse que eu devia conquistá-los? — perguntou ele com um sorriso.
— Sim.
— Então, o que acha? Acha que devemos ficar e tentar convencê-los a nos ajudar ou devemos procurar a resposta em outro lugar?
Kahlan balançou a cabeça devagar.
— Eu acho que você é o Seeker e terá de decidir.
Richard sorriu outra vez.
— Seu conselho me seria útil.
Ela pôs o cabelo atrás da orelha.
— Não sei o que aconselhar Richard, e minha vida também depende da escolha certa. Confio em você para tomar a decisão mais sábia.
— Vai me odiar — ele sorriu. — se eu fizer a escolha errada?
Kahlan olhou nos olhos cinzentos, olhos que viam através dela e a fazia se sentir fraca de desejo.
— Mesmo que faça a escolha errada e isso custe a minha vida — ela murmurou —, eu jamais poderia odiar você.
Richard olhou outra vez para o chão, depois para o Homem Pássaro.
— Vocês gostam de ter telhados com goteiras?
O Homem Pássaro ergueu uma sobrancelha.
— Você gostaria de água pingando no seu rosto enquanto está dormindo?
Sorrindo, Richard balançou a cabeça.
— Então por que não fazem telhados que não vazem?
O Homem Pássaro deu de ombros.
— Porque não podem ser feitos. Não temos material adequado. Tijolos de argila são muito pesados e caem lá de cima. A madeira é muito escassa, precisa ser carregada de uma grande distância. Palha é tudo que temos e ela vaza.
Richard apanhou um prato de cerâmica e o pôs de cabeça para baixo sobre a goteira.
— Vocês têm argila com que fazem cerâmicas.
— Nossos fornos são pequenos, não podemos fazer uma panela desse tamanho e, além disso, a cerâmica quebra e então vaza. Não pode ser feito.
— É um erro dizer que alguma coisa não pode ser feita simplesmente porque não se sabe fazer. Do contrário, eu não estaria aqui — disse isso gentilmente, sem malícia.
— Seu povo é forte e sábio. Será uma honra para mim se o Homem Pássaro permitir que eu ensine seu povo a fazer um telhado sem goteiras e que ao mesmo tempo deixe sair a fumaça.
O Homem Pássaro pensou no assunto sem demonstrar emoção.
— Se você puder fazer isso, será um grande beneficio para meu povo e ele ficará muito agradecido. Mas não posso prometer mais nada.
Richard deu de ombros.
— Nenhuma promessa está sendo pedida.
— A resposta pode ser não, mesmo assim. Você terá de aceitar e não fazer mal ao meu povo.
— Farei o melhor possível por seu povo e só espero ser julgado justamente.
— Então pode tentar, mas não vejo como pode fazer um telhado de argila que não quebre nem deixe passar água.
— Vou fazer um telhado para a sua casa dos espíritos que terá milhares de quebraduras, mas não deixará passar a água. E depois ensino vocês a fazerem outros.
O Homem Pássaro sorriu e assentiu, inclinando a cabeça.
— Eu odeio minha mãe.
O Mestre, sentado na grama com as pernas cruzadas, olhou para a expressão amarga do menino e esperou um momento antes de dizer em voz baixa:
— Isso é uma coisa muito forte para dizer, Carl. Não quero que diga uma coisa da qual pode se arrepender depois de pensar bem.
— Eu já pensei muito bem — disse Carl, irritado. — Falamos sobre isso por um longo tempo. Sei agora como eles me usaram, me enganaram. Como são egoístas. — Apertou os olhos. — Como são inimigos do povo.
Rahl olhou para as janelas lá em cima, para os últimos raios do sol tingindo de púrpura as nuvens esgarçadas, com as pontas douradas. Esta noite. Esta noite, finalmente, será a noite da minha volta ao mundo subterrâneo.
A maior parte dos dias e das noites, ele manteve o menino acordado com o mingau, permitindo que ele dormisse apenas algumas horas, mantendo-o acordado para martelar suas idéias até esvaziar a mente dele e remodelá-la. Falara incessantemente com o menino, convencendo-o de como tinha sido usado, abusado e como tinham mentido para ele. Às vezes deixava que ele pensasse no que tinha ouvido, dando como desculpa uma visita ao túmulo do pai para ler as sagradas inscrições ou aproveitar para descansar.
Então, na noite anterior, levara uma jovem para sua cama, para relaxar, um breve momento de diversão. Um interlúdio de suavidade para sentir a carne macia contra a sua, aliviar a tensão da expectativa. Ela devia se sentir honrada, especialmente depois de Rahl ter sido tão carinhoso, tão encantador. Ela estava bastante ansiosa. Mas o que ela fez? Ela riu. Quando viu as cicatrizes, ela riu.
Pensando nisso agora, Rahl com esforço controlou a raiva, sorrindo para o menino, com dificuldade escondendo a impaciência de continuar e acabar com aquilo. Pensou no que tinha feito com a jovem, a satisfação da sua violência libertada, os gritos lancinantes dela. O sorriso chegou mais fácil aos seus lábios. Nunca mais ela ia rir dele.
— Por que esse largo sorriso? — perguntou Carl.
Rahl olhou para os grandes olhos castanhos do garoto.
— Eu estava pensando no quanto me orgulho de você. — O sorriso se alargou quando se lembrou do sangue quente e grosso jorrando quando ela gritava. Onde estava a risada do desprezo?
— De mim? — perguntou Carl, sorrindo timidamente.
Rahl balançou afirmativamente a cabeça loura.
— Sim, Carl, de você. Não muitos jovens da sua idade são bastante inteligentes para ver o mundo como realmente é. Para ver além das suas vidas, os perigos e as maravilhas que nos rodeiam. Ver como é difícil trazer segurança e paz para o povo. — Balançou a cabeça tristemente. — Às vezes me dói o coração quando vejo as pessoas por quem luto com tanto afinco darem as costas para mim, rejeitarem meus esforços incansáveis, ou, pior ainda, juntarem-se aos inimigos do povo.
— Eu não queria preocupar você, mas neste exato momento, enquanto estou falando, gente malvada conspira para nos conquistar, para nos esmagar. Derrubaram a fronteira que protegia D’Hara e agora a segunda fronteira também. Temo que estejam planejando uma invasão. Tentei avisar o povo de Westland, para que se protegesse, mas eles são pobres e simples, esperam que eu os proteja.
Carl arregalou os olhos.
— Pai Rahl, você está em perigo?
Rahl descartou a possibilidade com um gesto.
— Não temo por mim, mas pelo povo. Se eu morrer, quem os protegerá?
— Morrer? — Os olhos de Carl encheram-se de lágrimas. — Oh, Pai Rahl. Precisamos de você. Por favor, não deixe que eles o peguem! Por favor, deixe-me lutar ao seu lado. Quero ajudar a proteger você. Não suportar a idéia de você ser ferido.
A respiração de Carl acelerou, seu coração disparou. Estava chegando a hora. Não ia demorar agora. Sorriu calorosamente para Carl, lembrando os gritos roucos da jovem.
— Não posso nem pensar em você correr perigo por minha causa, Carl. Nestes últimos dias, tive oportunidade de conhecê-lo e você é mais para mim do que simplesmente um jovem que se dispôs a me ajudar nessa cerimônia; você se tornou meu amigo. Partilhei com você minhas preocupações mais profundas, minhas esperanças, meus sonhos. Não faço isso com muitas pessoas. Basta saber que você se importa.
Com os olhos cheios de lágrimas, Carl olhou para o Mestre.
— Pai Rahl — murmurou ele. — Eu faria qualquer coisa por você. Por favor, deixe-me ficar. Depois da cerimônia, deixe-me ficar com você. Farei qualquer coisa que você precisar, prometo, se puder ficar com você.
— Carl, isso é bem você, tão bondoso! Mas você tem uma vida, pais, amigos. E Tinker, não se esqueça de Tinker. Logo vai querer voltar para tudo isso.
Carl balançou a cabeça lentamente olhando para Rahl.
— Não, não vou. Só quero estar com você. Pai Rahl, eu o amo. Farei qualquer coisa por você.
Rahl, muito sério, considerou as palavras do menino.
— Seria perigoso para você ficar comigo. — Rahl sentia o coração bater com força.
— Não me importo. Quero servir a você. Não me importa o fato de poder ser morto. Só quero ajudá-lo. Não quero fazer nada mais a não ser ajudar sua luta contra esses inimigos. Pai Rahl, se eu morrer ajudando-o, valerá a pena. Por favor, deixe-me ficar. Farei tudo o que você mandar. Para sempre.
Para ajudar a controlar a respiração acelerada, Rahl respirou profundamente e soltou o ar devagar. Estava muito sério.
— Tem certeza do que está dizendo, Carl? Tem absoluta certeza? Quero dizer, está certo de que daria a vida por mim?
— Eu juro. Eu morreria para ajudar você. Minha vida é sua, se quiser.
Rahl se inclinou um pouco para trás, pôs as mãos nos joelhos e balançou a cabeça lentamente, os olhos azuis fixos no menino.
— Sim, Carl. Eu quero a sua vida.
Carl não sorriu, mas estremeceu de leve, excitado, aceitando o que lhe pediam.
— Quando podemos fazer a cerimônia? Quero ajudar você e o povo.
— Logo — disse Rahl, arregalando os olhos e falando mais devagar. — Esta noite, depois de dar comida a você. Está pronto para começar?
— Estou.
Rahl se levantou, sentindo o sangue correr nas veias, esforçando-se para controlar a excitação. Lá fora estava quase escuro. A luz dos archotes dançava nos seus olhos azuis, brilhava no cabelo louro e cintilava no seu manto. Antes de ir para a sala da fornalha, pôs o chifre de alimentar perto da boca de Carl.
Na sala escura, os guardas esperavam, os braços maciços cruzados. O suor formava pequenas linhas na leve camada de fuligem dos seus rostos. Um cadinho estava no fogo da fornalha e um cheiro acre saía da mistura. Olhos muito abertos, Rahl perguntou aos guardas: — Demmin já voltou?
— Há vários dias, Mestre.
— Digam a ele para vir e esperar — disse Rahl num murmúrio. — E agora quero que me deixem sozinho.
Com uma inclinação, eles saíram pela porta dos fundos. Rahl passou a mão sobre o cadinho e o cheiro se transformou num aroma delicioso. De olhos fechados, orou em silêncio para o espírito do seu pai. Sua respiração era rápida, ofegante. No fervor da emoção, mal podia controlar-se. Molhou com a língua os dedos trêmulos e os passou nos lábios.
Prendendo alças de madeira ao cadinho para não sei queimar, usou a magia para que o caldeiro pesado ficasse leve e voltou com ele para o jardim. Os archotes iluminavam uma área em volta do menino, a areia branca com os símbolos riscados, o círculo de grama, o altar na beirada da pedra branca. A luz dos archotes refletia no bloco de pedra polida onde estava a vasilha de ferro com o Shinga na tampa.
Os olhos azuis de Rahl viram tudo isso quando se aproximou do menino. Parou na frente dele, perto da boca do chifre. Seus olhos tinham um brilho intenso quando os abaixou para o rosto do menino virado para cima.
— Você tem certeza, Carl? — perguntou ele com voz rouca. — Posso confiar a você minha vida?
— Juro minha lealdade a você, Pai Rahl. Para sempre.
Rahl fechou os olhos e respirou profundamente. O suor brilhava no seu rosto, grudava-lhe o manto ao corpo. Sentia ondas de calor rolando do cadinho. Acrescentou o calor da sua mágica para que a mistura continuasse a ferver.
Com voz suave, começou a entoar as encantações sagradas na antiga língua. O murmúrio das palavras mágicas e cabalísticas enchia o ar. As costas de Rahl se curvaram para trás quando ele sentiu o poder em todo o corpo, envolvendo-o numa quente promessa. Estremecia enquanto cantava, oferecendo suas palavras ao espírito do menino.
Entreabriu os olhos, a visão da paixão devassa queimando neles. Sua respiração era áspera, suas mãos tremiam levemente. Olhou para o menino.
— Carl — murmurou ele roucamente. — Eu amo você.
— Eu amo você, Pai Rahl.
Rahl voltou a fechar os olhos.
— Ponha a boca no chifre, meu caro menino e aperte bem.
Enquanto Carl obedecia, Rahl cantava o último encantamento, com o coração disparado. Os archotes sibilavam, os sons misturando-se aos do encantamento.
Então ele derramou a mistura do cadinho no chifre.
Carl arregalou os olhos e ele inalou e engoliu ao mesmo tempo involuntariamente quando o chumbo derretido chegou à sua boca, queimando todo o seu corpo.
Darken Rahl estremeceu, excitado. Deixou cair no chão o cadinho vazio.
O Mestre passou ao segundo conjunto de encantamentos, o envio do espírito do menino para o mundo subterrâneo. Disse as palavras, todas na ordem certa, abrindo o caminho para o mundo subterrâneo, abrindo o vazio escuro.
Quando ergueu as mãos, vultos escuros rodopiaram em volta dele. Uivos de terror encheram o ar da noite. Darken Rahl foi até o altar de pedra, ajoelhou-se, estendeu o braço por cima dele, encostou o rosto na pedra fria. Pronunciou as palavras na língua antiga que ligariam o espírito do menino a ele. Por algum tempo, recitou os encantamentos necessários. Quando terminou, ficou parado, com os punhos fechados aos lados do corpo, o rosto corado. Demmin saiu das sombras e deu um passo à frente.
Rahl fixou os olhos no amigo.
— Demmin — murmurou ele com voz rouca.
— Mestre Rahl — cumprimentou Demmin inclinando a cabeça.
Rahl se aproximou de Demmin com o rosto tenso e coberto de suor.
— Desenterre o corpo e o ponha no altar. Use o balde de água para lavá-lo. — Olhou para o sabre de Demmin. — Quebre o crânio dele para mim e depois pode se afastar e esperar.
Passou as mãos por cima da cabeça de Demmin e o ar estremeceu.
— Esse encantamento protegerá você. Então espere por mim até minha volta, antes do nascer do dia. Vou precisar de você. — Olhou para longe, perdido em pensamentos.
Demmin obedeceu, executando a tarefa sinistra, enquanto Rahl continuava a entoar palavras estranhas, balançando-se para frente e para trás, os olhos fechados, como num transe.
Demmin limpou a espada no antebraço e a embainhou. Com um último olhar para Rahl, ainda em transe murmurou: “Detesto esta parte.” Virou-se e voltou para a sombra das árvores, deixando o Mestre fazer seu trabalho.
Darken Rahl foi para trás do altar, respirando profundamente. Pôs a mão sobre o fogo e as chamas saltaram com um rugido. Estendeu as duas mãos, com os dedos dobrados, e o caldeirão de ferro se ergueu e flutuou até ficar sobre o fogo. Rahl tirou a faca curva da bainha e a levou para a barriga do menino. Tirou o manto, deixando-o cair no chão e o chutou para longe. O suor cobria seu corpo esguio, correndo em filetes pelo pescoço.
Sua pele era macia e firme sobre os músculos bem proporcionados, exceto na coxa direita, em parte do abdome e da cintura e no lado esquerdo do sexo ereto. Era onde ficava a cicatriz, onde as chamas enviadas pelo velho mago o tinham atingido, as chamas do fogo do mago, que consumiram seu pai quando Rahl estava do lado direito dele, chamas que o alcançaram também, provocando a dor do fogo do mago.
Foi um fogo como nenhum outro, escaldante, pegajoso, destruidor, vivo e Rahl gritou até ficar sem voz.
Darken Rahl molhou os dedos com a língua e os passou sobre as cicatrizes. Como quis fazer isso quando foi queimado, para acabar com o terror da dor incessante da queimadura!
Mas os curandeiros não permitiram. Disseram que não devia tocar nas queimaduras e amarram seus pulsos para impedir que ele alcançasse a coxa e a barriga. Então ele molhou os dedos com a língua e os passou nos lábios, tremendo, tentando deter o choro, e nos olhos, para afastar a visão do pai sendo queimado vivo. Durante meses ele chorou e gritou querendo aliviar a dor, mas eles não deixaram.
Como odiava o mago, como queria matá-lo! Como queria enfiar a mão no corpo vivo do mago olhando nos olhos dele e arrancar seu o coração!
Darken Rahl tirou os dedos da cicatriz e, apanhando a faca, afastou esses pensamentos, voltando ao que tinha que fazer. Recitando o encantamento adequado, enfiou a faca no peito do menino.
Cuidadosamente removeu o coração e o pôs numa tigela de ferro com água fervente. Em seguida, removeu o cérebro e o pôs também na tigela, finalmente largou a faca. O sangue se misturou ao suor que o cobria, pingando nos cotovelos.
Estendeu os braços sobre o corpo e ofereceu orações ao espírito. Ergueu o rosto para as janelas, fechou os olhos e continuou com encantamento, recitando sem precisar pensar. Durante uma hora, entoou as palavras da cerimônia, espalhando o sangue no peito nos momentos certos.
Quando terminou as runas mágicas do túmulo do pai, foi até a areia de feiticeiro onde o menino estivera enterrado durante o teste. Alisou a areia com os braços, fazendo-a grudar no sangue e formando uma casca branca. Agachado, começou a desenhar cuidadosamente os símbolos, partindo do centro, desenvolvendo-se em formas intrincadas, aprendidas durante anos de estudo. Concentrado, trabalhou noite a dentro, o cabelo louro liso caído para a frente, a testa franzida com a intensidade da atenção acrescentando cada elemento, não deixando de traçar linha ou curva alguma, pois isso seria fatal.
Terminou finalmente, foi até a tigela sagrada e viu que a água tinha fervido, quase desaparecendo, como devia ser. Com magia, fez a tigela flutuar de volta à pedra polida, deixou esfriar um pouco e então começou a amassar com um pilão de pedra. O suor escorria do seu rosto e ele amassou até o coração, o cérebro e os testículos se transformarem em uma pasta e acrescentou pós mágicos, retirados dos bolsos do manto no chão.
De pé, na frente do altar, ergueu a tigela com a mistura, recitando encantamentos. Abaixou a tigela quando terminou e olhou em volta, para o Jardim da Vida. Gostava sempre de olhar para coisas belas antes de ir para o mundo subterrâneo.
Comeu com a mão a mistura da tigela. Detestava o gosto da carne e só comia vegetais. Agora, porém, não tinha escolha, aquele era o modo. Se queria ir ao mundo subterrâneo, tinha de comer carne. Ignorou o gosto e comeu tudo, tentando fingir que era uma pasta de vegetais.
Lambendo os dedos, pôs a tigela no altar e se sentou com as pernas cruzadas na grama, na frente da areia. Seu cabelo louro estava manchado de sangue seco. Com as palmas das mãos voltadas para cima, fechou os olhos e respirou profundamente várias vezes, preparando-se para se encontrar com o espírito do menino.
Pronto finalmente, todos os preparativos feitos, todos os encantamentos recitados, o Mestre ergueu a cabeça e abriu os olhos.
— Venha para mim, Carl — murmurou na antiga língua secreta.
Do centro da areia, o centro do encantamento, o espírito do menino se ergueu sob a forma do Shinga, a besta do mundo subterrâneo.
O Shinga, transparente no começo, ergueu-se do chão como fumaça, se virou, como para se livrar da areia, atraído pelos desenhos, expelindo vapor pelas narinas dilatadas. Rahl observou calmamente a besta se tornar sólida, rasgando o chão e puxando a areia com ela, as fortes pernas traseiras empurrando até se livrar com um bramido. Um buraco se abriu, negro como piche. A areia nas bordas caiu na escuridão. O Shinga flutuou no ar, olhos castanhos penetrantes olharam para baixo, para Rahl.
— Obrigado por vir, Carl.
A besta se inclinou para frente, esfregando o focinho no peito nu do Mestre. Rahl se levantou e acariciou a cabeça do Shinga, acalmando sua impaciência para partir. Quando finalmente ele se acalmou, Rahl subiu nas costas da besta e segurou-a com força no pescoço.
Com um flash de luz, o Shinga, com Darken Rahl nas costas, dissolveu-se no vazio escuro, girando o corpo enquanto descia. O solo estremeceu e o buraco se fechou com um som raspante. O Jardim da Vida de repente foi envolto pelo silêncio da noite.
Demmin Nass saiu da sombra das árvores, com a testa coberta de suor.
— Tenha uma jornada segura, meu amigo — murmurou ele —, uma jornada segura.
A chuva parou por algum tempo, mas o céu continuou nublado como estava quase desde que ela podia lembrar. Sentada sozinha num pequeno banco encostado na parede, Kahlan sorria, vendo Richard construir o telhado da casa dos espíritos. O suar escorria nas costas nuas dele, sobre os músculos, sobre as cicatrizes dos arranhões das garras do gar.
Richard trabalhava com Savidlin e mais alguns homens, ensinando-lhes. Tinha dito que não precisava de tradutor, que o trabalho manual era universal e, se tivesse de descobrir por eles mesmos uma grande parte, compreenderiam melhor e teriam mais orgulho da sua obra.
Savidlin não parava de fazer perguntas que Richard não compreendia. Ele apenas sorria e explicava com palavras que o outro não entendia, usando as mãos em uma linguagem de sinais que inventava de acordo com a necessidade. Às vezes os outros achavam graça e todos acabavam rindo. Tinham feito muito para homens que não se compreendiam.
A principio, Richard não disse a ela o que ia fazer, apenas sorriu e disse que Kahlan teria de esperar para ver. Primeiro, ele apanhou blocos de argila de mais ou menos trinta por sessenta centímetros e os modelou com formas onduladas. A metade da face dos blocos era côncava, como uma calha, a outra metade abaloada. Ele as esvaziou e pediu às mulheres que trabalhavam com cerâmica para levá-las ao forno.
Em seguida, prendeu duas tiras de madeira a uma tábua, uma de cada lado, e pôs uma bola de argila no centro. Com um rolo de pastel, alisou a argila, as duas tiras de madeira agindo como medida de espessura. Retirando o excesso de cima e de baixo da tábua, terminou com placas de argila de tamanho e espessura iguais, que alisou sobre as telhas, que tinham ido ao forno. Com uma vareta, fez um buraco nos dois cantos superiores.
As mulheres o acompanhavam, inspecionando o trabalho com atenção, por isso ele recrutou a ajuda delas. Logo tinha uma grande equipe de mulheres sorridentes e tagarelas fazendo as telhas, mostrando a ele como fazer melhor. Quando as telhas estavam secas, podiam ser retiradas das fôrmas. Enquanto eram cozidas, as mulheres, curiosas, faziam mais. Quando perguntaram quantas deviam fazer, ele apenas as mandou continuarem com o trabalho.
Richard as deixou na nova atividade, foi até a casa dos espíritos e começou a fazer uma lareira com os tijolos de lama usados para a construção das casas. Savidlin o seguia por toda a parte, tentando aprender tudo.
— Você está fazendo telhas de argila, não está? — perguntou Kahlan.
— Sim — disse ele, com um sorriso.
— Richard, já vi telhados de sapê que não deixam passar água.
— Eu também.
— Então por que não fazer simplesmente telhados de palha bem-feitos, que não vazem?
— Você sabe fazer telhados de palha?
— Não.
— Nem eu. Mas sei fazer telhados de argila, portanto, é o que devo fazer.
Enquanto ele fazia a lareira, mostrando para Savidlin, mandou outros homens tirarem a palha do telhado, deixando apenas os postes em todo o comprimento do prédio, postes usados para atar cada molho de palha. Agora seriam usados para suportar as telhas de argila.
As telhas iam de um poste ao outro, a parte inferior apoiada no primeiro poste, a parte superior no segundo, com as aberturas usadas para atá-las firmemente aos postes.
A segunda camada de telhas foi arrumada de modo que a parte inferior ultrapassava a parte superior da primeira, cobrindo as aberturas que as prendiam e, devido à forma ondulada, cada uma se prendia à anterior. Como as telhas de argila eram mais pesadas que as de palha, Richard primeiro reforçou os postes com suportes até o alto do telhado, com telhas atravessadas como apoio.
Parecia que metade do povoado estava ocupada com a construção. O Homem Pássaro aparecia uma vez ou outra para ver o trabalho, satisfeito com o que via. Às vezes sentava-se ao lado de Kahlan, calado, às vezes falava com ela, mas quase sempre apenas olhava. Ocasionalmente, fazia uma pergunta sobre o caráter de Richard.
A maior parte do tempo, enquanto Richard trabalhava, Kahlan ficava sozinha. As mulheres não estavam interessadas em suas ofertas de ajuda, os homens guardavam distância, observando-a de soslaio e as meninas eram tímidas demais para ter coragem de falar com ela. Às vezes Kahlan as via olhando para ela. Quando ela perguntava como se chamavam, elas apenas sorriam timidamente e fugiam correndo. As crianças queriam se aproximar, mas as mães não deixavam. Não permitiam que ela ajudasse com o preparo da comida nem com a fabricação das telhas. Suas tentativas de aproximação eram recusadas com a desculpa de que ela era uma convidada de honra.
Mas Kahlan sabia que não era por isso. Ela era uma Confessora. Tinham medo dela.
Kahlan estava acostumada com essa atitude, com os olhares, os murmúrios. Não se incomodava mais como quando era mais moça. Lembrava a mãe dizer sorrindo que o povo era assim e não podia ser mudado, que ela não devia deixar que isso a amargurasse e que algum dia ia superar. Kahlan pensava que não se importava mais, que não era nada para ela, que tinha aceitado o que era, o seu modo de vida, que não podia ter nada do que as outras pessoas tinham e que tudo estava bem. Isso foi antes de conhecer Richard, antes de ele se tornar seu amigo, aceitando-a, falando com ela, tratando-a como uma pessoa normal. Ele se importava com ela.
Mas Richard não sabia o que ela era.
Savidlin pelo menos foi amistoso. Ele a levou com Richard à sua pequena casa, para conhecer sua mulher, Weselan e seu filho pequeno Siddin, e deu a eles um lugar para dormir no chão. Mesmo tendo sido por insistência de Savidlin, Weselan aceitou Kahlan em sua casa com graciosa hospitalidade, sem demonstrar frieza quando tinha oportunidade, quando o marido não estava perto. À noite, quando ficava escuro demais para trabalhar, Siddin, de olhos arregalados, se sentava no chão com Kahlan e ela contava histórias de reis e castelos, de terras distantes e de animais ferozes. Ele se aconchegava no colo dela, pedia mais histórias e a abraçava. Seus olhos se enchiam de lágrimas pensando em como Weselan permitia isso, sem afastá-lo de Kahlan, como tinha a bondade de não demonstrar medo. Quando Siddin ia dormir, ela e Richard contavam para Savidlin e Weselan algumas histórias de sua jornada de Westland. Savidlin respeitava o sucesso nas lutas e ouvia com os olhos quase tão arregalados quanto os do filho.
O Homem Pássaro parecia satisfeito com o novo telhado. Balançando a cabeça devagar, sorriu quando viu o bastante para saber como ia funcionar. Mas os outros seis anciãos não ficaram tão impressionados. Para eles, algumas gotas de chuva, pingando uma vez ou outra, não era motivo para preocupação, fora assim durante toda sua vida, e eles se ressentiam por um estranho mostrar-lhes como tinham sido idiotas. Algum dia, quando um deles morresse, Savidlin seria um dos seis. Kahlan queria que ele fosse um deles agora, pois podiam usar aquele aliado tão forte.
Kahlan se preocupava com o que ia acontecer quando o telhado ficasse pronto, se os anciãos se recusassem a declarar Richard um deles. Richard não tinha prometido não fazer mal a eles. Embora ele não fosse do tipo que faz coisas assim, era o Seeker. Havia mais em jogo do que a vida daquele povo. Muito mais. O Seeker tinha de levar isso em conta. Ela também.
Kahlan não sabia se matar o ultimo homem do quad o tinha mudado, tinha-o deixado mais insensível. Aprender a matar faz com que a pessoa veja as coisas de modo diferente, torna mais fácil matar outra vez. Era algo que ela conhecia muito bem.
Kahlan queria muito que ela não tivesse a ajudado, desejava que ele não tivesse matado o homem. Não tinha coragem de dizer a ele que não era necessário. Podia ter resolvido sozinha a situação. Afinal, um homem só não era um perigo mortal para ela. Por isso, Rahl sempre mandava quatro homens para matar uma Confessora, um para ser tocado por seu poder, os outros três para matá-lo e à Confessora. As vezes sobrava só um, mas era o bastante, depois que a Confessora tivesse usado seu poder. Mas um homem sozinho! Quase não tinha chance. Mesmo que fosse um homem grande, ela era mais rápida. Quando ele brandisse a espada, ela o tocaria e ele seria vencido. Seria o fim dele.
De modo algum Kahlan podia dizer a Richard que não precisava ter matado o homem. O que piorava as coisas era o fato de Richard ter matado por ela. Ele pensou que a estava salvando.
Kahlan sabia que outro quad provavelmente estava a caminho. Eles eram impiedosos. O homem que Richard matou sabia que ia morrer, sabia que não tinha chance, sozinho, contra uma Confessora, mas mesmo assim a atacou. Eles jamais desistiriam, nunca pensavam em outra coisa que não fosse seu objetivo.
E tinham prazer com o que faziam com as Confessoras.
Embora ela tentasse, não conseguia esquecer de Dennee. Sempre que pensava em um quad, se lembrava do que tinham feito com Dennee.
Quando Kahlan era ainda muito jovem, sua mãe foi vitimada por uma doença terrível que nenhum curandeiro conseguia curar. Ela morreu rapidamente. As Confessoras formavam uma irmandade muito unida. Quando um problema atingia uma delas, atingia todas. A mãe de Dennee adotou Kahlan e a consolou. As duas jovens, que eram grandes amigas, ficaram felizes por se tornarem irmãs e isso ajudou Kahlan a suportar a dor da perda da mãe.
Dennee era frágil como a mãe. Não tinha a força do poder como Kahlan e, com o passar do tempo, Kahlan se tornou sua protetora e guardiã, protegendo-a contra situações que exigiam mais do que ela podia dar. Depois de usar sua força, Kahlan podia recuperá-la em uma ou duas horas, mas para Dennee eram necessários às vezes sete dias.
Num dia fatídico, Kahlan tinha saído para uma curta viagem, a fim de ouvir a confissão de um assassino que ia ser enforcado, missão que devia ter sido de Dennee. Kahlan tinha ido no lugar da irmã porque queria poupá-la do tormento daquela tarefa. Dennee detestava confissões, detestava ver a expressão dos olhos deles. Às vezes ela chorava durante muitos dias depois de uma confissão. Nunca pediu a Kahlan para ir em seu lugar, mas o alivio que Kahlan viu nos olhos dela não precisava de palavras. Kahlan também não gostava de ouvir confissões, porém era mais forte, mais sábia, refletia mais. Ela compreendia e aceitava o de fato de que ser Confessora era seu poder, o que ela era, e por isso não a afetava tanto quanto a Dennee. Kahlan sempre podia pôr a cabeça na frente do coração. E teria feito qualquer trabalho desagradável no lugar de Dennee.
De volta a casa, Kahlan ouviu gemidos fracos nos arbustos ao lado da estrada, gemidos de dor mortal. Para seu horror, descobriu Dennee, ali jogada.
— Eu ia... me encontrar.. com você... queria voltar com você. — disse Dennee quando Kahlan pôs a cabeça dela no colo. — Um quad me apanhou. Desculpe, Kahlan. Eu peguei um deles. Eu o toquei. Peguei um deles. Você ficaria orgulhosa de mim.
Chocada, Kahlan acalentou a cabeça de Dennee e a confortou, dizendo que tudo acabaria bem.
— Por favor, Kahlan... quer puxar meu vestido para baixo? — Sua voz parecia vir de muito longe. Indistinta e fraca. — Não posso mover meus braços.
Em pânico, Kahlan viu o porquê. Os braços de Dennee tinham sido brutalmente quebrados. Estavam um de cada lado do corpo, inúteis, dobrados onde não deviam estar dobrados. O sangue pingava de um lado do ouvido. Kahlan puxou para baixo o que restava do vestido encharcado de sangue, cobrindo a irmã do melhor modo possível. Estava atordoada com o horror do que os homens tinham feito. A sensação de uma coisa presa na garganta a impedia de falar. Esforçou-se para não gritar, temendo não assustar mais ainda a irmã. Sabia que tinha de ser forte por ela pela ultima vez.
Dennee murmurou o nome de Kahlan, chamando-a para mais perto.
— Darken Rahl fez isso comigo... ele não estava aqui, mas fez isto.
— Eu sei — disse Kahlan com ternura. — Fique imóvel. Tudo vai dar certo. Eu a levarei para casa. — Sabia que era mentira, sabia que não ia dar certo.
— Por favor, Kahlan — murmurou ela. — Mate Darken Rahl. Acabe com essa loucura. Eu queria ser bastante forte. Mate Darken Rahl por mim.
A fúria ferveu dentro dela. Foi a primeira vez que Kahlan desejou usar seu poder para fazer mal a alguém. Chegara muito perto de sentir algo que nunca sentira antes. Um fúria terrível, uma força que vinha das profundezas do seu ser, um legado assustador. Com os dedos trêmulos, acariciou o cabelo de Dennee, empapado de sangue.
— Eu o matarei — prometeu.
Dennee relaxou nos braços dela. Kahlan tirou do pescoço o colar de ossos e o pôs no pescoço da irmã.
— Quero que fique com isso. Ajudará a proteger você.
— Obrigada, Kahlan. — Ela sorriu e as lágrimas desceram dos olhos para o rosto pálido. — Mas nada pode me proteger agora. Salve-se. Não deixe que eles peguem você. Eles gostam de fazer isso. Eles me machucaram tanto... e tiveram prazer. Eles riram de mim.
Kahlan fechou os olhos para não ver a dor da irmã, embalou-a nos braços e beijou a testa dela.
— Lembre-se de mim, Kahlan. Lembre-se de como nos divertimos.
— Más lembranças?
Kahlan ergueu a cabeça bruscamente, arrancada de seus pensamentos. O Homem Pássaro estava ao seu lado, tendo chegado em silencio, sem ser notado. Ela fez que sim com a cabeça e desviou os olhos dos dele.
— Por favor, perdoe-me por demonstrar fraqueza. — disse ela, enxugando as lágrimas com a mão.
Ele olhou para ela com seus suaves olhos castanhos e se sentou ao seu lado no pequeno banco.
— Não é fraqueza, minha filha, ser uma vítima.
Kahlan limpou o nariz com as costas da mão e engoliu o soluço que tentava sair da sua garganta. Sentia-se tão só! Sentia tanta falta de Dennee! O Homem Pássaro passou carinhosamente a mão em volta dos ombros dela, num abraço paternal.
— Eu estava pensando em minha irmã Dennee. Ela foi assassinada por ordem de Darken Rahl. Eu a encontrei... Ela morreu nos meus braços... Eles a maltrataram tanto! Rahl não se contenta com matar. Ele tem de ver a pessoa sofrer antes de morrer.
Ele balançou a cabeça, compreendendo.
— Embora sejamos de povos diferentes, sentimos a dor da mesma forma. — Com o polegar, enxugou uma lagrima no rosto dela, depois pôs a mão no bolso. — Dê-me sua mão.
Kahlan estendeu a mão, onde ele pôs algumas sementes. Olhando para o céu, tocou o apito silencioso que trazia no pescoço e logo um pássaro pequeno e amarelo lhe pousou no dedo. Ele pôs a mão ao lado da dela para que ele pudesse comer as sementes. Kahlan sentiu os pezinhos no dedo quando ele abaixou para comer. O pássaro era tão brilhante e bonito que Kahlan sorriu. O rosto enrugado do Homem Pássaro sorriu para ela. Quando terminou, o pássaro sacudiu as penas e ficou satisfeito no dedo dela, sem nenhum medo.
— Achei que você gostaria de uma pequena visão de beleza entre tantas coisas feias.
— Obrigada — ela sorriu.
— Quer ficar com ele?
Kahlan olhou para o pássaro, para as penas amarelas brilhantes, o modo como ele virava a cabeça para o lado e então o soltou no ar.
— Não tenho esse direito — disse ela, vendo o pássaro voar para longe. — Ele deve ser livre.
Um leve sorriso iluminou o rosto do Homem Pássaro. Inclinando-se para a frente e apoiando os braços nos joelhos, olhou para a casa dos espíritos. O trabalho estava quase terminando. Talvez mais um dia. O cabelo prateado e comprido escorregou dos ombros e emoldurou o rosto, escondendo-o de Kahlan. Ela olhou para Richard trabalhando no telhado. Era quase doloroso o desejo de ser abraçada por ele, maior ainda por saber que não se podia permitir isso.
— Você quer matar esse homem Darken Rahl? — perguntou ele sem virar para ela.
— Quero muito.
— E seu poder é suficiente?
— Não — admitiu ela.
— E a lâmina do Seeker tem poder suficiente para matá-lo?
— Não. Por que pergunta?
As nuvens ficavam mais escuras à medida que o dia se despedia. Uma chuva leve começou a cair e a escuridão entre as casas se acentuava.
— Como você disse, é perigoso estar com uma Confessora que precisa muito de alguma coisa. Acho que isso vale também para o Seeker. Talvez mais perigoso.
Ela fez uma pausa, depois disse suavemente. — Não quero pôr em palavras o que Darken Rahl fez ao pai de Richard com as próprias mãos. Faria com que você temesse muito mais o Seeker. Mas saiba que Richard também teria deixado o pássaro voar em liberdade.
O Homem Pássaro pareceu rir silenciosamente.
— Você e eu somos muito inteligentes para esses jogos de palavras. Vamos conversar sem eles. — Recostou-se na parede e cruzou os braços. — Tentei dizer aos outros anciãos que coisa maravilhosa o Seeker está fazendo para nosso povo, como é bom que ele esteja nos ensinando essas coisas. Eles não têm tanta certeza, pois estão acostumados com seu modo de vida e são teimosos, às vezes muito além da tolerância. Temo o que você e o Seeker farão ao meu povo se eles disserem não.
— Richard deu a você sua palavra de que não fará mal ao seu povo.
— Palavras não têm a força do sangue de um pai. Ou de uma irmã.
Kahlan se encostou na parede, envolvendo-se na capa, defendendo-se da brisa úmida.
— Eu sou Confessora porque nasci assim. Não procurei o poder. Eu teria escolhido outra coisa, teria escolhido ser como todas as outras pessoas. Mas devo viver com o que recebi e fazer o melhor possível. A despeito do que você pode pensar das Confessoras, a despeito do que muita gente pensa, estamos aqui para servir ao povo, para servir a verdade. Eu amo todo o povo de Midlands e daria minha vida para protegê-la, para mantê-la livre. É tudo que quero fazer. E, no entanto, estou sozinha.
— Richard toma conta de você, ele se importa com você.
Kahlan olhou de soslaio para ele.
— Richard é de Westland. Ele não sabe o que eu sou. Se soubesse...
O Homem Pássaro ergueu a sobrancelha.
— Para alguém que serve à verdade...
— Por favor, não me faça lembrar. É um problema criado por mim e devo arcar com as conseqüências, o que me dá muito medo. Isso prova minhas palavras. O Povo da Lama vive distante dos outros povos. Isso lhes permite o luxo de estar longe dos problemas do passado. O problema tem braços longos que logo alcançarão vocês. Os anciãos podem discutir o quanto quiserem e resolver não nos ajudar, mas não poderão discutir contra as presas da verdade. Todo o seu povo pagará o preço se esses poucos homens puserem o orgulho à frente da sensatez.
O Homem Pássaro ouviu atenta e respeitosamente. Kahlan se voltou para ele.
— Neste momento, não posso dizer honestamente o que farei se os anciões disserem não. Não é meu desejo fazer mal ao seu povo, mas salvá-lo da dor que tenho visto. Eu vi o que Darken Rahl faz com as pessoas. Sei o que ele fará. Se eu soubesse que podia de algum modo deter Rahl matando o precioso filho de Savidlin, eu o mataria sem hesitar, com minhas mãos se fosse preciso, porque, por mais que isso ferisse meu coração, estaria salvando todos os seus outros preciosos filhos. É um peso terrível para carregar, o peso do guerreiro. Você já matou para salvar outros homens e sei que não sente prazer com isso. Darken Rahl tem prazer em matar, acredite. Por favor, me ajude a salvar seu povo sem fazer mal a ninguém. — As lágrimas escorreram no seu rosto. — O que mais desejo é não fazer mal a alguém.
O Homem Pássaro a puxou carinhosamente para ele e a deixou chorar no seu ombro.
— O povo de Midlands é afortunado por ter uma guerreira como você.
— Se pudermos encontrar o que procuramos e esconder de Darken Rahl até o primeiro dia do inverno, ele morrerá. Ninguém mais precisa ser ferido. Mas precisamos de ajuda para encontrar.
— O primeiro dia do inverno. Minha filha, não falta muito. A estação está quase no fim, logo chegará a próxima.
— Eu não faço as regras da vida, honrado ancião. Se você tem o segredo de parar o tempo, por favor me diga para que eu possa usá-lo.
Ele ficou calado, sem ter o que responder.
— Tenho observado você com nosso povo antes. Você sempre respeitou nossos desejos, nunca procurou nos fazer mal. O mesmo com o Seeker. Estou do seu lado, minha filha. Farei o possível para convencer os outros. Só espero que minhas palavras sejam suficientes. Não desejo que nada de mau aconteça ao meu povo.
— Não é ao Seeker ou a mim que devem temer se eles disserem não — disse ela, encostada no ombro dele, olhando para longe. — É ao homem de D’Hara. Ele virá como uma tempestade e destruirá seu povo. Vocês não têm chance contra ele. Será uma carnificina.
Naquela noite, no calor da casa de Savidlin, sentada no chão, Kahlan contou a Siddin a história do pescador que se transformou em peixe e vivia no lago, astutamente roubando a isca dos anzóis, sem nunca ser apanhado. Era uma história antiga contada por sua mãe quando ela era pequena como Siddin. A expressão maravilhada de Siddin a fez lembrar o seu entusiasmo quando a ouviu pela primeira vez.
Mas tarde, enquanto Weselan cozinhava raízes doces, o aroma misturando-se a fumaça, Savidlin mostrou a ela como fazer pontas de flechas para diferentes animais, endurecendo-as no carvão em brasa e aplicando veneno. Kahlan, deitada no chão em cima de uma pele, com Siddin adormecido enrodilhado junto dela, acariciava o cabelo escuro do menino. Sentiu um aperto na garganta ao lembrar de ter dito ao Homem Pássaro que, se fosse preciso matar Siddin para deter Rahl, ela o faria sem hesitar.
Queria poder voltar atrás, retirar aquelas palavras. Detestava saber que era verdade, mas desejava não as ter dito. Richard a vira falando com o Homem Pássaro e ela não contou sobre o que conversaram. Não valia a pena preocupá-lo. O que tinha de acontecer, aconteceria. Só esperavam que os anciões desses ouvidos à razão.
No dia seguinte, o vendo soprava forte e fazia um calor excepcional, com ocasionais pancadas de chuva. No começo da tarde, uma multidão se reuniu na casa dos espíritos quando o telhado ficou pronto e o fogo foi aceso na lareira. O povo, maravilhado, soltou gritos de emoção quando as primeiras espirais de fumaça surgiam da chaminé. Espiaram na porta para ver o fogo queimando sem encher a sala de fumaça. A idéia de viver sem fumaça nos olhos parecia tão excitante quanto viver sem água pingando nas suas cabeças. Quando o vento trazia a chuva, como naquele dia, era pior. A água atravessava os telhados de capim.
Todos olhavam encantados para a água escorrendo sobre as telhas e nem um pingo passando para dentro. Richard desceu, bem-humorado. O telhado estava pronto, não vazava, a lareira puxava bem a fumaça e todos estavam alegres com o que tinha feito.
Os homens que tinham ajudado orgulhavam-se do seu trabalho, do que tinham aprendido. Serviam de guia, mostrando entusiasmados os melhores pontos da construção.
Ignorando os curiosos, parando só para prender a espada nas costas, Richard foi para o centro do povoado, onde os anciãos esperavam dispostos a dar todo apoio a ele. O povo o viu andar até os anciões e foi atrás, espalhando-se entre as casas, rindo e gritando. Os músculos do rosto de Richard estavam tensos.
— Acha que vai precisar da espada? — Perguntou Kahlan.
Richard olhou para ela e continuou a andar com passos largos. Sorriu com o canto da boca. Água da chuva escorria do cabelo dele.
— Eu sou o Seeker.
Kahlan olhou para ele com ar de censura.
— Richard, não brinque comigo.Você sabe o que quero dizer.
O sorriso dele aumentou.
— Estou esperando que a espada sirva para lembrar a eles que devem fazer a coisa certa.
Kahlan teve uma premonição de desastre, de que as coisas fugiam do seu controle, de que Richard ia fazer algo terrível se os anciãos dissessem não. Ele tinha trabalhado duro, desde que acordava até ir para a cama, o tempo todo pensando apenas que os convenceria. Tinha convencido a maior parte do povo, mas não era o povo que contava. Kahlan temia que ele não tivesse pensando sensatamente no que faria se a resposta fosse negativa.
Toffalar estava de pé, orgulhoso, no centro da estrutura aberta. A chuva caindo em volta dele formava pequenas poças no chão. Surin,Caldus,Arbrin,Breginderin e Hajanlet estavam dos dois lados dele. Usavam suas peles de coiote,uma coisa que Kahlan sabia que só faziam nos eventos oficiais. Parecia que todo o povoado estava ali, espalhado em volta da área aberta, sentado debaixo de telhados das construções abertas, todos tendo visto o trabalho ser terminado e agora esperavam ouvir o que os anciãos diriam sobre seu futuro.
Kahlan viu o Homem Pássaro no meio de alguns homens armados ao lado de um poste que segurava o telhado sobre a cabeça dos anciãos. Quando seus olhos se encontraram, o coração dela se apertou. Ela segurou a manga de Richard e se inclinou para ele.
— Não esqueça, seja o que for que eles digam, devemos sair daqui se quisermos ter uma chance de deter Rahl. Nós somos dois, eles são muitos, espada ou não espada.
Richard a ignorou.
— Honrados anciãos — ele começou em alta e clara. Kahlan ia traduzindo à medida que ele falava. — Tenho o privilégio de informar que a casa dos espíritos tem um novo telhado que não deixa passar chuva. Foi também meu privilégio ensinar seu povo a construir esse telhado para que possam melhorar as outras construções do seu povoado. Fiz isso por respeito ao seu povo e não espero nada em troca. Só espero que estejam satisfeitos.
Os seis ouviram muito sérios enquanto Kahlan traduzia. Quando ela terminou, fez-se longo silêncio.
Finalmente Toffalar falou, com muita determinação.
— Não estamos satisfeitos.
Richard ficou carrancudo quando Kahlan traduziu.
— Por quê?
— Um pouco de chuva não derrete a força do Povo da Lama. Seu telhado pode não deixar passar água, mas só porque é engenhoso. Engenhoso como tudo que vem de estranhos. Não é o nosso modo de vida. Seria só o começo até que estranhos nos digam o que devemos fazer. Sabemos o que você quer. Quer ser declarado um de nós para que possamos fazer uma reunião para você. Apenas outro truque de um estranho para conseguir o que quer de nós. Você quer nos envolver na sua luta. Nós dizemos não! — Voltou-se para Savidlin. — O telhado da casa dos espíritos voltará a ser como era. Do modo que nossos ancestrais queriam.
Savidlin ficou lívido, mas não se mexeu. O ancião, com um leve sorriso nos lábios enrugados, virou-se para Richard.
— Agora que seus truques falharam — disse ele com desdém —, pretende fazer mal a nosso povo, Richard, o Esquentado? — Era um desafio, destinado a desacreditar Richard.
Richard parecia mais perigoso do que nunca. Olhou brevemente para o Homem Pássaro, depois outra vez para os seis homens debaixo do abrigo. Kahlan prendeu a respiração. Um silencio de morte pairou sobre o povo. Richard se voltou lentamente para eles.
— Não farei mal ao seu povo — disse ele com voz calma. Houve um suspiro coletivo de alivio. Quando tudo ficou quieto outra vez, ele continuou: — Mas lamento o que vai acontecer com vocês. — Sem se voltar para os anciões, ergueu o braço apontado para eles. — Por vocês seis, não lamentarei. Não lamento a morte de tolos. — Suas palavras eram como veneno. A multidão deixou escapar uma exclamação abafava.
O rosto de Toffalar se crispou raivosamente. Murmúrios de medo se espalharam pela multidão. Kahlan olhou para o Homem Pássaro. Ele parecia ter envelhecido anos. Ela via nos olhos dele o quanto sentia. Por um momento, seus olhos se encontraram e compartilharam a dor do que ambos sabiam que ia dizimar suas vidas, então ele olhou para o chão.
Richard se voltou para os anciões e desembainhou a Espada da Verdade. Foi um movimento tão rápido que quase todos, incluindo os anciões, recuaram um passo e depois ficaram imóveis, os seis rostos refletindo o medo que os paralisava. A multidão começou a se afastar. O Homem Pássaro não se moveu. Kahlan temia a ira de Richard e a compreendia. Resolveu não interferir, mas fazer o possível para proteger o Seeker, fosse o que fosse que ele fizesse. O silencio era completo. O único som era o ruído do aço. Com dentes cerrados, Richard apontou a espada cintilante para os anciãos, a ponta quase tocando os rostos deles.
— Tenham a coragem de fazer uma ultima coisa por seu povo. — Kahlan sentiu um arrepio. Traduziu mecanicamente, petrificada. Então, incrivelmente, Richard virou a espada, segurou-a pela ponta e ofereceu o punho para os anciãos. — Tomem minha espada — ordenou ele. — Usem-na para matar as mulheres e as crianças. Será mais misericordioso do que aquilo que Darken Rahl fará com elas. Tenham a coragem de poupá-las da tortura que sofrerão. Dispensem a elas a caridade de uma morte rápida. — Sua atitude eliminou a determinação deles.
Kahlan ouviu o choro manso das mulheres agarradas aos filhos. Os anciãos, aterrorizados com aquela atitude inesperada, ficaram imóveis. Finalmente desviaram os olhos dos de Richard. Quando ficou claro que não tinham coragem para empunhar a espada, Richard a embainhou lentamente, como que extinguindo as chances de salvação. Uma prova inequívoca de que os anciãos haviam perdido para sempre a ajuda do Seeker. A finalidade do gesto era assustadora.
Então, finalmente ele se voltou para Kahlan, mudando a expressão do rosto. Quando Kahlan viu o olhar dele, sentiu um nó na garganta. Era um olhar de sofrimento por um povo que ele chegara a amar, mas a quem não podia ajudar. Todos olharam para Richard quando ele se aproximou de Kahlan e segurou-lhe gentilmente o braço.
— Vamos apanhar nossas coisas e sair daqui — disse ele em voz baixa, — Perdemos muito tempo. Só espero que não tenha sido tempo demais. — Havia lágrimas nos olhos dele. — Eu sinto muito, Kahlan... Por ter feito a escolha errada.
— Sua escolha não foi errada, Richard, a deles sim. — Sua raiva dos anciãos era final, uma porta que se fechava para qualquer esperança para aquele povo. Não se preocupava mais com eles. Era um povo de mortos vivos. Uma chance fora oferecida e eles escolheram a própria sorte.
Quando passaram por Savidlin, os dois homens deram-se o braço por um momento, sem se olhar. Alguns estendiam a mão e tocavam em Richard e ele retribuía o gesto de simpatia com um breve aperto nos braços deles, incapaz de encará-los.
Apanharam suas coisas na casa de Savidlin, guardando as capas nas mochilas, sem dizer uma única palavra. Kahlan se sentia vazia. Quando finalmente seus olhos se encontraram, eles se abraçaram silenciosamente, compartilhando a dor por seus novos amigos, por aquilo que sabiam que aconteceria com eles, tinham jogado com a única coisa que possuíam, o tempo. E perderam.
Quando se separaram, Kahlan guardou suas coisas e fechou a mochila. Richard tirou a capa outra vez. Ela o viu enfiar a mão na mochila. Procurando urgentemente alguma coisa. Foi até a porta por causa da luz e olhou dentro da mochila, revirando as coisas guardadas. O braço que segurava a mochila se abaixou e ela viu alarme nos olhos dele.
— A pedra da noite desapareceu.
O tom de voz dele assustou Kahlan.
— Talvez você a tenha deixado em algum outro lugar...
— Não. Eu não a tirei da mochila. Nunca.
Kahlan não entendia o porquê do pânico.
— Richard, não precisamos dela agora, já atravessamos a passagem. Tenho certeza de que Adie perdoará você por ter perdido a pedra. Temos coisas mais importantes com que nos preocupar.
Richard deu um passo para ela.
— Você não compreende. Temos de encontrar a pedra.
— Por quê? — perguntou ela, intrigada.
— Porque eu acho que aquela coisa pode acordar os mortos. — Kahlan ficou boquiaberta. — Kahlan, estive pensando sobre ela. Lembra que Adie estava nervosa quando me deu a pedra da noite, como olhava em volta, enquanto eu não a guardei? E quando aquelas sombras nos atacaram na passagem? Quando eu tirei a pedra da bolsa. Lembra?
Kahlan arregalou os olhos.
— Mas mesmo que outra pessoa use a pedra, ela disse que só funcionaria para você.
— Ela estava falando na luz. Não disse nada sobre despertar os mortos. Não posso acreditar que Adie não nos tenha avisado.
Kahlan pensou por um momento. Então fechou os olhos quando compreendeu.
— Sim, ela avisou, Richard. Ela lhe avisou com um enigma de feiticeira. Sinto muito, nunca pensei nisso. As feiticeiras são assim. Nem sempre elas dizem o que sabem.
Richard virou para a porta e olhou para fora.
— Não posso acreditar. O mundo está sendo sugado para o extermínio e aquela velha nos vem com enigmas. — Bateu com o punho fechado no batente. — Ela devia nos ter dito!
— Richard, talvez Adie tivesse motivo, talvez fosse o único meio.
Ele olhou para fora, pensando.
— Se você precisar muito. Foi o que ela disse. Como água. Só é valiosa nas condições certas. Para um homem que está se afogando, a água é inútil e até pode causar grandes problemas. Foi como ela tentou nos avisar. Grandes problemas. — Virou-se para a sala, pegou a mochila e olhou dentro dela outra vez. — Estava aqui a noite passada, eu vi. O que pode ter acontecido?
Os dois ergueram os olhos.
— Siddin — disseram ao mesmo tempo.
Largando as mochilas, os dois correram para a porta e foram para a área aberta, onde tinham visto Siddin pela última vez, e o chamaram em voz alta. Eles corriam, espalhando lama por todos os lados e todos se afastavam do seu caminho. Quando chegaram à área aberta, o povo entrou em pânico, sem saber o que estava acontecendo, e procurava o abrigo das casas. Os anciãos recuaram na plataforma. O homem Pássaro esticou o pescoço, tentando ver. O grupo de caçadores atrás deles pôs as flechas nos arcos.
Kahlan viu Savidlin, assustado e confuso ouvindo os dois gritarem o nome do seu filho.
— Savidlin! — gritou Kahlan. — Encontre Siddin. Não deixe que abra a bolsa que está com ele!
Savidlin empalideceu, virou-se rapidamente e correu meio agachado, procurando o filho, sua cabeça passando rapidamente entre o povo que corria também. Kahlan não viu Weselan em parte alguma. Richard e Kahlan se separaram, aumentando a área de busca. O lugar era uma confusão e Kahlan tinha de afastar as pessoas do caminho. O coração de Kahlan estava na boca. Se Siddin abrisse a bolsa de couro...
Então ela o viu.
Quantas pessoas saíram do centro do povoado, lá estava ele, sem dar atenção ao pânico, sentado na lama, sacudindo a bolsa de couro, tentando tirar a pedra de dentro.
— Siddin! Não!— gritou ela uma porção de vezes, correndo para ele.
Siddin não ouviu o grito. Talvez não fosse possível tirar a pedra. Ele era apenas um menino pequeno. Por favor, ela pediu mentalmente, que a sorte seja boa para ele.
A pedra caiu da bolsa e saltou na lama. Siddin sorriu e a apanhou. Kahlan ficou congelada.
Sombras começaram a de materializar por toda parte. Surgiram como fios de névoa no ar úmido, como procurando alguma coisa. Então flutuaram para Siddin.
Richard correu para ele, gritando para Kahlan.
— Pegue a pedra. Ponha de volta na bolsa!
Sua espada cintilou no ar, cortando as sombras, enquanto ele corria em linha reta para Siddin. Quando a espada as atacou, elas gritaram em agonia e desapareceram. Ouvindo os gritos terríveis, Siddin ergueu os olhos e ficou petrificado. Kahlan gritou para ele pôr a pedra na bolsa, mas o menino não conseguiu se mexer. Siddin ouvia outras vozes. Kahlan correu como nunca, desviando— se do grupo de sombras que flutuavam para o menino.
Uma coisa escura e pequena passou zunindo por ela, fazendo-a prender a respiração. Então outra, logo atrás. Flechas. De repente, o ar ficou repleto de flechas, o Homem Pássaro tinha ordenado aos seus homens para abaterem as sombras. Todas acertavam o alvo, mas simplesmente atravessavam as sombras como se fossem fumaça. Flechas com as pontas envenenadas zuniam por todos os lados. Se uma acertasse em Kahlan ou em Richard eles morreriam. Agora ela precisava se desviar das flechas e das sombras. Ouviu outro assobio ao lado do seu ouvido e abaixou no último momento. Uma saltou na lama e passou voando perto da sua perna. Richard tinha alcançado o menino, mas não pôde pegar a pedra. Tudo que ele conseguiu fazer foi derrubar as sombras que avançavam. Não podia parar para pegar a pedra.
Kahlan estava muito longe ainda, não podendo correr como Richard tinha feito, destruindo as sombras. Sabia que, se tocasse em uma sombra, morreria. Eram tantas materializando-se a sua volta que o ar parecia um labirinto cinzento. Richard lutava em volta do menino, num circulo cada vez menor. Segurando a espada com as duas mãos, ele a brandia ferozmente. Não ousava parar nem um instante, para que elas não fechassem o circulo; as sombras pareciam não ter fim.
Kahlan não conseguia avançar. As sombras, flutuavam em volta dela e as flechas zunindo, impediam-na de se adiantar. Cada vez que via uma abertura entre as sombras, tinha de recuar por causa das flechas. Sabia que Richard não deteria as sombras por muito mais tempo. Por mais que lutasse, o círculo se fechava, aproximando— se do menino. Ela era a única chance e não conseguia nem chegar perto.
Outra flecha passou, a pena lhe roçou o cabelo.
— Parem com as flechas!— ela gritou zangada para o Homem Pássaro. — Parem de atirar flechas! Vocês vão nos matar!
Frustrado, ele percebeu a dificuldade dela e relutantemente de ordens aos arqueiros para atirar. Mas então eles se armaram com suas facas e correram para atacar as sobras. Não tinham idéia de contra o que lutavam. Seriam mortos até o ultimo homem.
— Não!— Ela gritou, sacudindo o punho no ar. — Se vocês as tocarem vão morrer! Fiquem onde estão!
O Homem Pássaro levantou o braço, fazendo pararem seus homens. Kahlan sabia como ele se sentia inútil vendo-a correr entre as sombras, chegando cada vez mais perto de Richard e de Siddin.
Ouviu outra voz. Era Toffalar gritando.
— Detenham os dois! Então destruindo os espíritos do nossos ancestrais! Atirem suas flechas neles! Atirem nos estranhos!
Hesitantes, entreolharam— e e os arqueiros puseram as flechas nos arcos outra vez. Não podiam desobedecer a um dos anciãos.
— Atirem neles! — gritou Toffalar, com o rosto muito vermelho, sacudindo o punho fechado — Vocês ouviram! Atirem neles!
Os homens ergueram os arcos. Kahlan se agachou, preparando-se para saltar quando viesse a primeira flecha. O Homem Pássaro ficou na frente dos seus homens, com um braço levantado, anulando a ordem. Ele e Toffalar trocaram palavras que Kahlan não ouviu. Ela não perdeu tempo e aproveitou a oportunidade para se adiantar, agachando-se para evitar os braços estendidos das sombras flutuantes.
Com o canto dos olhos, ela viu Toffalar. Com uma faca na mão, ele correu para ela. Kahlan ignorou o perigo; mais cedo ou mais tarde ele encontraria uma sombra e seria morto. Ele parava aqui e ali para suplicar às sombras. Ela não podia ouvir as palavras por causa dos uivos. Quando olhou outra vez, ele já tinha percorrido metade do caminho. Era incrível que não tivesse esbarrado em uma sombra. As passagens se abriam para ele enquanto corria incautamente, temerariamente para ela, o rosto contraído de raiva. Mesmo assim Kahlan não se preocupou; logo ele teria de tocar em uma sombra e morreria.
Kahlan atravessou o resto do espaço aberto, mas o circulo de sombra em volta de Richard e Siddin era uma parede cinzenta impenetrável. Não havia qualquer abertura. Ela desviou para direita, tentando penetrar, mas inutilmente. Estava tão perto, mas tão longe, e a armadilha se fechava em volta dela também. Varias vezes escapou por pouco, recuando quando as sombras convergiam para ela. Richard tentava ver onde Kahlan estava. Ele tentou lutar para chegar perto dela varias vezes, mas foi obrigado a voltar para evitar que as sombras alcançassem Siddin.
De repente, ela viu a faca erguendo-se no ar. Toffalar a alcançou. Num frenesi de ódio, ele gritava coisas que ela não entendia. Mas compreendeu a faca e o que ele ia fazer. Toffalar queria matá-la. Kahlan se desviou do golpe. Era a abertura de que precisava.
E então ela cometeu um erro.
Começou a estender o braço para tocar em Toffalar, mas viu Richard olhando para ela. Hesitou, pensando em mostrar a ele seu poder. Então Toffalar teve o momento que queria. Richard gritou o nome dela, avisando, e voltou a lutar contra as sombras que estavam atrás dele.
A faca de Toffalar desceu, atingindo o braço direito de Kahlan, indo até o osso.
Choque e dor acenderam sua raiva. Raiva do erro que tinha cometido. Não perdeu a oportunidade dessa vez. Ergueu a mão esquerda e segurou Toffalar pelo pescoço. Sentiu os dedos cortando a entrada de ar por um instante. Bastava tocar nele, segurá-lo pelo pescoço foi um reflexo da raiva, não do seu poder.
Entre os gritos apavorados do povo e os uivos terríveis das sombras que Richard destruía por atacado, sua mente estava quieta e calma. Não havia som algum em sua cabeça, só silêncio. O silencio do que ela ia fazer.
Na calma de uma fração de segundos, que para ela apareceu uma eternidade, ela viu olhar de medo de Toffalar, a compreensão do seu destino. Viu nos olhos deles a tentativa de evitar o fim, sentiu os músculos começando a retesar para lutar contra ela, as mãos começando a lenta e desesperada jornada para a garganta da moça.
Mas Toffalar não tinha chance. Kahlan estava no controle. O tempo lhe pertencia. Ele lhe pertencia. Não sentiu pena. Nem remorso. Só uma calma mortal.
Como havia feito varias vezes sem conta antes, calmamente a Madre Confessora relaxou a força da mão. Libertando afinal, seu poder atacou o corpo de Toffalar.
Um duro impacto no ar, um trovão se som. A água nas poças em volta deles dançou, atirando gotas de lama no ar.
Toffalar arregalou os olhos. Os músculos do seu rosto relaxaram. Ele abriu a boca.
— Senhora!— Murmurou ele, reverente.
O rosto calmo de Kahlan se crispou de raiva. Com toda a força, empurrou Toffalar para trás, para o circulo de sombras em volta do Richard, e Siddin. Sacudindo os braços, ele caiu no meio das sombras e gritou antes de cair na lama. O contato abriu uma pequena brecha no circulo de sombras. Sem hesitar, ela correu e passou por ele um segundo antes de a abertura se fechar outra vez.
Kahlan se atirou para Siddin.
— Depressa! — Gritou Richard.
Siddin não olhou para ela, seus olhos estavam fixos nas sombras, sua boca aberta, todos os seus músculos paralisados, Kahlan tentou tirar a pedra da mãozinha fechada, mas os dedos se fechavam sobre ela com força do medo. Tirou a bolsa da outra mão dele. Segurando a bolsa e o pulso dele com a mão esquerda, Kahlan começou a soltar com a direita, os dedinhos que envolviam a pedra, pedindo a ele o tempo todo para abrir a mão. Ele não a ouviu. O sangue escorria do braço dela para a mão trêmula, misturando-se com a chuva, tornando seus dedos escorregadios.
A mão de uma sombra tentou tocar seu rosto. Ela recuou. A espada passou pela frente dela e atacou a sombra que juntou seus gritos de dor aos das outras. Os olhos de Siddin estavam fixos nas sombras, todos os seus músculos rígidos. Richard estava ao lado dela brandindo a espada com um movimento circular. Não tinha mais para onde recuar. Agora eram só os três. Os dedos de Siddin não se abriam.
Cerrando os dentes, com um esforço que provocou uma dor lancinante no ferimento do seu braço, Kahlan finalmente arrancou a pedra da mão de Siddin. Por causa do sangue e da lama, a pedra saltou dos seus dedos como uma semente de melão e caiu na lama ao lado do joelho dela. Imediatamente sua mão estava sobre ela e Kahlan a apanhou. Enfiou a pedra na bolsa e amarrou as tiras de couro. Ofegante, olhou para cima.
As sombras pararam. Ela ouvia a respiração acelerada de Richard enquanto ele continuava brandindo a espada contra elas. Lentamente a princípio, as sombras começaram a recuar, como se estivessem confusas, perdidas, procurando. Então se dissolveram no ar, voltando para o mundo subterrâneo de onde tinham vindo. Num instante, desapareceram. Exceto pelo corpo de Toffalar, os três estavam numa área de lama vazia.
Kahlan, com a chuva escorrendo pelo rosto, pegou Siddin no colo e o abraçou com força quando ele começou a chorar. Exausto, Richard fechou os olhos, caiu de joelhos e sentou-se nos calcanhares, de cabeça baixa, ofegante.
— Kahlan — choramingou Siddin—, eles estavam me chamando.
— Eu sei — murmurou ela, beijando a orelha dele—, tudo está bem agora. Você foi muito corajoso. Parecia um caçador.
Ele passou o braço em volta do pescoço dela e Kahlan o consolou. Ela estava fraca, trêmula. Tinham quase perdido a vida para salvar apenas uma outra vida. Uma coisa que ela disse que o Seeker nunca deveria fazer, mas tinham feito Sem pensar duas vezes. Como podia não tentar? Com os braços de Siddin em volta do seu pescoço, tudo aquilo valia a pena. Richard ainda segurava a espada com as duas mãos, a ponta enfiada na lama. Kahlan pôs a mão no ombro dele.
Sentindo que o tocavam, ele levantou a cabeça e a espada se virou rapidamente para ela, parando na frente do seu rosto, Kahlan pulou, surpresa. A fúria se acendeu nos olhos de Richard.
— Richard— disse ela, assustada—, sou eu. Acabou. Não queria assustar você.
Ele relaxou o músculo e caiu de lado na lama.
— Desculpe — disse ele, tentando tomar fôlego. — Quando sua mão tocou em mim... acho que pensei que era uma sombra.
De repente, estavam rodeados de pernas. Ela ergueu os olhos. O homem Pássaro estava ali, bem como Savidlin e Weselan. Weselan soluçava alto. Kahlan se levantou e deu Siddin a ela. Weselan o passou para o marido e abraçou Kahlan, beijando o rosto dela muitas vezes.
— Obrigado, Madre Confessora, muito obrigada por salvar meu filho — disse ela chorando — Obrigada, Kahlan, muito obrigada.
— Eu sei, eu sei. — Kahlan retribuiu o abraço. — Está tudo bem agora.
Weselan pegou Siddin outra vez no colo. Kahlan viu Toffalar caído perto, morto. Ela se sentou outra vez na lama, exausta, dobrou as pernas e as abraçou.
Encostou o rosto nos joelhos, perdendo o controle, e começou a chorar. Não por ter matado Toffalar, mas por ter hesitado. Quase custou sua vida, quase custou a vida de Richard e Siddin — de todos eles. Ela quase deu a vitória a Rahl porque não queria que Richard visse o que ia fazer e hesitou. Foi a coisa mais idiota que já tinha feito em toda a sua vida, a não ser não contar a Richard que era uma Confessora. Ela chorou com lágrimas de frustração e soluços dolorosos.
Alguém pôs a mão debaixo de seu braço bom e a levantou. Era o Homem Pássaro. Kahlan mordeu o lábio trêmulo, obrigando— se a parar de chorar. Não podia demonstrar fraqueza àquele povo. Ela era uma Confessora.
— Muito bem, Madre Confessora — disse ele, pegando uma tira de pano das mãos de um dos seus homens e passando em volta do ferimento dela.
Kahlan levantou a cabeça.
— Muito obrigada, honrado ancião.
— Isto precisa ser costurado. Chamarei a mais dedicada das nossas curandeiras para fazer isso.
Ela ficou imóvel enquanto ele apertava a atadura, provocando ondas de dor no corte profundo. O Homem Pássaro olhou para Richard, que parecia contente em ficar deitado de costas na lama, como se estivesse na cama mais confortável do mundo.
O Homem Pássaro ergueu uma sobrancelha para ela e indicou Richard.
— Seu aviso de que eu não deveria dar ao Seeker motivo para desembainhar a espada com raiva é tão verdadeiro quanto uma flecha do melhor arqueiro — disse ele com olhar malicioso, os cantos da boca curvados num sorriso. Olhou para o Seeker. — Você também deu um belo espetáculo, Richard o Esquentado. Felizmente os maus espíritos não aprenderam a usar a espada.
— O que ele disse? — perguntou Richard.
Kahlan traduziu e ele sorriu da piadinha. Levantou— se e embainhou a espada. Tirou a bolsa da mão de Kahlan. Ela nem tinha percebido que ainda a segurava com força. Richard a guardou no bolso.
— Que eu nunca encontre espíritos armados com espadas.
O Homem Pássaro concordou, inclinando a cabeça.
— E agora vamos aos negócios.
Abaixou-se e puxou a pele de coiote do corpo de Toffalar. O corpo rolou na lama. Ele de voltou para os caçadores.
— Enterrem o corpo. — Entrecerrou os olhos. — Todo ele.
Os homens se entreolharam, hesitantes.
— Ancião, quer dizer tudo, menos o crânio.
— Eu quis dizer exatamente o que disse. Só conservamos o crânio dos anciãos dignos, para lembrar da sua sabedoria. Não guardamos os crânio dos tolos.
A multidão sentiu um arrepio. Era simplesmente a pior coisa que se podia fazer a um ancião, uma desonra de mais alta ordem. Significava que sua vida não havia valido coisa alguma. Os homens assentiram. Ninguém defendeu o ancião morto, nem os cinco outros.
— Agora estamos com um ancião a menos— anunciou o Homem Pássaro. Olhou lentamente para os olhos dos homens à sua volta, depois empertigou o corpo e jogou a pele de coiote no peito de Savidlin. — Escolho você.
Savidlin pôs as mãos em volta da pele enlameada com reverencia devida a uma coroa de ouro e sorriu com orgulho para o Homem Pássaro.
— Você tem alguma coisa a dizer ao nosso povo, como seu mais novo ancião?
Não era uma pergunta, mas um comando.
Savidlin se adiantou e ficou entre Kahlan e Richard. Pôs a pele nos ombros, sorrindo com orgulho para Weselan e dirigiu— se ao seu povo. Kahlan olhou em volta e viu que todo o povoado estava ali.
— Mais honradas entre nós— disse ele ao Homem Pássaro—, essas duas pessoas agiram generosamente em defesa do nosso povo. Podiam ter nos deixado nos defender sozinhos, depois de termos dado as costas a eles. Em vez disso, nos mostraram que tipo de pessoas são. São tão bons quanto os melhores de nós. — Quase todos na multidão inclinaram a cabeça, concordando. — peço que os declarem membros do Povo da Lama.
O Homem Pássaro sorriu. O sorriso se evaporou quando olhou para os outros cinco anciãos.
Embora disfarçasse bem, Kahlan viu cintilar nos olhos dele o fantasma da ira.
— Adiantem-se. — Eles se entreolharam e obedeceram. — o pedido de Savidlin é extraordinário. Deve ser unânime. Vocês pedem a mesma coisa?
Savidlin foi até os arqueiros e pegou o arco de um deles. Pôs uma flecha do arco com os olhos fixos nos anciãos. Esticou a corda e ficou na frente dos cinco. — Façam o pedido. Ou novos anciãos o farão.
Carrancudos, eles olharam para Savidlin. O Homem Pássaro não fez movimento para interferir. Houve um longo silêncio enquanto a multidão esperava, fascinada. Finalmente, Caldus deu um passo à frente. Pôs a mão no arco de Savidlin e gentilmente o baixou.
— Por favor, Savidlin, permita que falemos com o coração, não ameaçados por uma flecha .
— Fale então.
Caldus parou à frente de Richard e olhou nos olhos dele.
— A coisa mais difícil para um homem, especialmente um homem velho — disse ele suavemente, esperando que Kahlan traduzisse — é admitir que foi tolo e egoísta. Você não agiu como tolo e nem egoísta. Vocês dois são melhor exemplo do Povo da Lama. Por favor Richard, o Esquentado, e Madre Confessora, nosso povo precisa de vocês — Ergueu as mãos com as palmas para cima. — Se não me consideram digno de fazer esse pedido por vocês, por favor, eliminem— me, para que um homem melhor possa fazê-lo.
Inclinando a cabeça, ele se ajoelhou à frente de Richard e Kahlan. Ela traduziu palavra por palavra, omitindo apenas o próprio titulo. Os outros quatro anciãos se ajoelharam ao lado dele, acrescentando se pedido sincero ao de Caldus. Kahlan suspirou, aliviada. Finalmente tinham o que queriam, aquilo de que precisavam.
Richard ficou à frente dos homens, calado, com os braços cruzados, olhando para as cabeças deles. Ela não podia entender por que ele não dizia que estava bem e os mandava levantar. Ninguém se mexeu. O que estava fazendo? O que estava esperando? Tudo tinha acabado. Por que ele não aceitava a contrição dos anciãos?
Kahlan viu os músculos tensos do rosto dele. Ela ficou gelada. Reconheceu o olhar. A fúria. Aqueles homens tinham cruzado a linha contra ele. Contra ela. Lembrou de como ele embainhou a espada na ultima vez em que falou com eles, naquele mesmo dia. Foi um gesto de finalidade e Richard estava sendo sincero, não estava apenas pensando. Pensava em matar.
Richard descruzou o braço e levou a mão ao punho da espada. A arma saiu da bainha lenta e suavemente, como entrara na ultima vez. O som agudo do aço anunciou a chegada da lâmina no ar silencioso, provocando um doloroso arrepio nos ombros e na nuca de Kahlan. Ela viu o peito de Richard arfando.
Kahlan olhou rapidamente para o Homem Pássaro. Ele não se moveu, nem tinha intenção de se mover. Richard não sabia, mas pela lei do Povo da Lama, aqueles homens lhe pertenciam para matar, se quisesse, não foi uma oferta falsa da parte deles. Savidlin não estava blefando também, teria matado os anciãos. Sem hesitar. Força, para o povo da Lama, significava força para matar o adversário. Aqueles homens já estavam mortos aos olhos do povo e só Richard podia devolver— lhes suas vidas.
Porém a lei era irrelevante. O Seeker era por si próprio uma lei, respondendo somente a ele mesmo. Ninguém podia detê-lo.
Com as juntas das mãos esbranquiçadas, Richard empunhou a espada sobre as cabeças dos anciãos. Kahlan viu a cólera crescer nele, a necessidade ardente, a fúria.
Tudo parecia um sonho que ela só podia ver inerte, um sonho que não podia impedir.
Kahlan pensou em todos os que ela sabia que já estavam mortos, tanto inocentes quanto os que tinham dado a vida tentando deter Darken Rahl. Dennee, todas as outras Confessoras, os magos, Shar, o fogo-fátuo, talvez Zedd e Chase.
Ela compreendeu.
Richard não estava decidindo se devia matar os anciãos, mas se ousaria deixá-los vivos.
Podia confiar àqueles homens a sua chance de deter Rahl, confiar na sinceridade deles? Podia confiar a eles sua vida? Ou formaria um novo conselho de anciãos mais interessantes no seu sucesso?
Se não podia confiar naqueles homens para indicar a direção certa contra Rahl, teria de matá-los, substituindo-os por homens que julgava estar ao seu lado. Deter Rahl era tudo que importava. As vidas daqueles homens deviam ser tiradas se houvesse alguma chance de que prejudicariam seu sucesso. Kahlan sabia que aquilo estava certo. Não era menos do que ela teria feito, nada menos do que o Seeker devia fazer.
Ela o viu ali parado na frente dos anciãos. A chuva tinha passado. O suor escorria do rosto de Richard. Ela se lembrou da dor sofrida por ele quando matou o último homem do quad. Viu a ira crescer, esperando que fosse suficiente para protegê-lo do que ia fazer.
Kahlan compreendeu por que um Seeker era tão temido. Aquilo não era um jogo. Era sério, Richard estava perdido nele mesmo, com a magia. Se alguém tentasse detê-lo naquele momento ele mataria também. Se, realmente, esse alguém conseguisse passar por ela.
A lâmina da espada estava agora na frente do rosto de Richard. Ele inclinou a cabeça para trás. Fechou os olhos. Estremeceu de fúria. Os cinco imóveis, ajoelhados diante do Seeker.
Kahlan lembrou do homem que Richard matara, lembrou como a espada explodiu, cortando a cabeça do homem. Lembrou— se do sangue por toda parte. Richard o matou por causa de uma ameaça direta. Matar ou ser morto, não importando se a ameaça era contra ela ou contra ele.
Mas isso era uma ameaça indireta, um modo diferente de matar. Muito diferente. Isso era uma execução. E Richard era juiz e executor.
Richard abaixou outra vez a espada. Olhou severamente para os anciãos, fechou o punho e passou a lâmina no lado de dentro do braço. Virou a lâmina, molhando com o sangue os dois lados, até pingar de ponta.
Kahlan olhou em volta rapidamente. O Povo da Lama, petrificado, assistia ao drama mortal sem querer assistir, mas incapaz de desviar os olhos. Ninguém falava. Ninguém se movia. Ninguém sequer piscava os olhos.
Todos acompanharam o movimento de Richard quando ele ergueu a espada outra vez, encostando— a na testa.
— Lâmina, seja verdadeira neste dia — murmurou ele.
O sangue brilhou na sua mão esquerda. Kahlan o viu estremecer. A espada cintilou entre o vermelho do sangue. Richard olhou para os cinco homens.
— Olhe para mim — disse ele para Caldus. O ancião não se moveu. — Olhe para mim enquanto faço isso — gritou ele. — Olhe nos meus olhos! Caldus continuou imóvel.
— Richard — disse Kahlan. Ele olhou furioso para ela. Olhou de um modo diferente. A magia dançava nos olhos dele. Com voz calma, sem emoção, ela disse: — Ele não pode compreender você.
— Então, diga a ele.
— Caldus. — Caldus olhou para ela. — O Seeker quer que você olhe para ele enquanto ele faz isso.
Caldus não respondeu, mas simplesmente olhou para o Richard, preso pelo olhar do Seeker.
Richard respirou profundamente quando a espada se ergueu no ar. Ela viu a ponta parar por um breve momento. Alguns na multidão desviaram os olhos, outros tamparam os olhos dos filhos. Kahlan prendeu a respiração e se virou de lado, fortalecendo— se para enfrentar os fragmentos de tudo aquilo.
Com um grito, o Seeker brandiu a Espada da Verdade. A ponta sibilou no ar. Da multidão subiu uma exclamação abafada.
A espada parou no ar, a poucos centímetros do rosto de Caldus, como tinha parado na primeira vez em que Richard a usou, quando Zedd o fez tentar cortar a árvore.
Por uma eternidade, Richard ficou parado, os músculos dos braços rígidos como aço. Então eles finalmente relaxaram, ele afastou a lâmina de Caldus e desviou o olhar severo.
Sem virar a cabeça, ele disse a Kahlan:
— Como se diz na língua deles “devolvo a vocês suas vidas e sua honra”?
Ela respondeu em voz baixa.
— Caldus, Surin, Arbrin, Bregrimderim, Hajanlet — disse ele em voz bem alta. — Devolvo a vocês duas vidas e sua honra.
Depois de um momento de silêncio, o Povo da Lama explodiu num grito de alegria. Richard embainhou a espada e ajudou os anciãos a se levantarem. Pálidos, eles sorriram, satisfeitos e não pouco aliviados. Voltaram— se para o Homem Pássaro.
— Fizemos um pedido unânime a você, honrado ancião: O que tem a dizer?
O Homem Pássaro cruzou os braços. Olhou dos anciãos para Richard e Kahlan.
Seus olhos mostravam a tensão emocional do que acabava de ver. Descruzando os braços, aproximou-se de Richard. O Seeker parecia vazio, exausto. O Homem Pássaro passou os braços pelos ombros dele como que para congratulá-lo por sua coragem, depois pôs a mão no ombro de cada ancião, para que soubessem que estava tudo bem. Então se virou e começou a andar, esperando que eles o seguissem. Kahlan e Richard atrás dele, Savidlin e os outros anciãos seguindo, uma escolta real.
— Richard— perguntou ela em voz baixa —, você esperava que a espada parasse?
Olhando para frente, Richard respirou profundamente.
— Não.
Foi o que ela pensou. Tentou imaginar o que aquilo significava para ele. Embora não tivesse executado os anciãos, ele esperava, comprometido. Não teria de viver com o ato, mas tinha de viver com a intenção.
Ela imaginava se Richard tinha feito a coisa certa não matando. Sabia o que teria feito no lugar dele: não teria permitido a opção da clemência. Muita coisa estava em jogo. Mas, afinal, Kahlan tinha visto muito mais do que ele. Talvez demais e estava muito preparada para matar. Não se pode matar sempre que há algo em risco, o risco era constante. Tinha de parar em algum lugar.
— Como está o braço?— perguntou ele tirando— a dos seus pensamentos.
— Lateja como louco — admitiu — O Homem Pássaro diz que precisa ser costurado.
Richard olhava deliberadamente para frente, andando ao lado dela.
— Preciso da minha guia — disse ele, em voz baixa, sem emoção. — Você me pregou um susto.
Foi o máximo de reprimenda que ele se permitiu. Kahlan sentiu o rosto em fogo e ficou feliz por ele não estar olhando. Ele não sabia o que ela podia fazer, mas sabia que Kahlan tinha hesitado porque não queria que ele visse. Não perguntou nada quando teve a chance, o direito, como naquele momento, mas respeitou os sentimentos dela. O coração de Kahlan parecia que ia se partir.
O pequeno grupo subiu na plataforma da construção com os postes. Os anciãos ficaram atrás, o Homem Pássaro entre os dois, de frente para o povo.
O Homem Pássaro olhou para ela intensamente.
— Está preparada para fazer isto?
— Como assim? — perguntou ela, desconfiando do tom de voz dele.
— Estou dizendo que se vocês dois querem se tornar Povo da Lama, devem fazer o que se espera do Povo da Lama: respeitar suas leis. Nosso modo de vida.
— Só eu sei que o que teremos que enfrentar. Espero morrer na procura .— Manteve a voz deliberadamente severa. — Já escapei da morte mais vezes do que qualquer pessoa tem direito. O que queremos é salvar o seu povo. Empenhamos nossas vidas nisso. O que mais pode ser pedido do que nossas vidas?
O Homem Pássaro sabia que ela estava evitando a pergunta, decidindo a não permitir que fosse ignorada.
— Isto não é uma coisa que faço sem pensar. Faço porque sei que vocês são sinceros na sua luta, que pretendem proteger o meu povo da tempestade que virá, mas preciso da sua ajuda. Você deve concordar com nosso modo de vida. Não para me agradar, mas por respeito ao meu povo. Eles esperam isso.
Kahlan estava com a boca tão seca que mal podia engolir.
— Eu não como carne — mentiu ela. — Você sabe disso das outras vezes em que estive aqui.
— Mas embora seja uma guerreira, você é também mulher, portanto, pode ser desculpada. Para isso tenho poder. Ser Confessora a exclui do outro. — Seus olhos diziam que era tudo o que ele podia fazer. — Não o Seeker. Ele precisa fazer essas coisas.
— Mas...
— Você disse que não vai escolher o Seeker para seu companheiro. Se ele convocar uma reunião, tem que ser como um de nós.
Kahlan se sentiu acuada. Se abandonasse Richard agora, ele ficaria furioso. Perderíamos para Rahl. Sendo de Westland. Richard não estava habituado aos costumes dos diversos povos de Midlands. Ele talvez não quisesse se conformar. Kahlan não podia correr o risco. Havia muita coisa em jogo. O Homem Pássaro esperou.
— Faremos o que sua lei exige — disse ela, tentando não demonstrar o que pensava realmente.
— Não quer consultar o Seeker sobre o que ele pena a respeito?
Ela olhou para longe por cima das cabeças do povo que esperava.
— Não.
O Homem Pássaro segurou o queixo dela e a fez olhar para ele.
— Então será sua responsabilidade ver que ele faça o que deve fazer. Confio na sua palavra.
A raiva cresceu dentro dela. Richard se inclinou para ela.
— Kahlan o que há? Qual o problema?
Kahlan olhou para Richard, depois para o Homem Pássaro e balançou a cabeça afirmativamente para ele.
— Não é nada. Está tudo bem.
O Homem Pássaro tirou a mão do queixo dela e voltou-se para o seu povo, soprando o apito silencioso que levava pendurado no seu pescoço. Começou a falar da historia do Povo da Lama, dos seus costumes, de por que evitavam a influência de estranhos, por que ainda tinham o direito de ser um povo orgulhoso. Enquanto ele falava. Pombos apareceram e pousaram no meio do povo.
Kahlan ouvia sem escutar, imóvel na plataforma, sentindo— se como um animal na armadilha. Quando pensou que tinham conquistado o Povo da Lama e iam ser declarado como dois deles, não achou que teria que concordar com aquilo tudo. Imaginou que a iniciação seria mera formalidade e que Richard poderia pedir uma reunião. Não passou por sua cabeça que seria assim.
Talvez pudesse simplesmente omitir algumas coisas. Ele jamais saberia. Afinal, ele não compreendia a língua. Bastava ela não dizer tudo. Era melhor.
Mas algumas coisas, pensou desanimada, eram óbvias. Sentia as orelhas em fogo e um nó na boca do estômago.
Richard percebeu que ainda não precisava entender as palavras do Homem Pássaro e não pediu que fossem traduzidas. O Homem Pássaro terminou a introdução e chegou à parte importante.
— Quando estes dois vieram nos procurar, eram estranhos. Por suas ações, provaram que se importam com o nosso povo, provaram seu valor. A partir de hoje, todos devem saber que Richard, o Esquentado, e a Confessora Kahlan fazem parte do Povo da Lama.
Kahlan traduziu, omitindo seu titulo, e o povo aplaudiu. Sorrindo, Richard estendeu a mão para o povo e eles aplaudiram mais. Savidlin bateu amistosamente nas costas dele. O Homem Pássaro apertou de leve os ombros dos dois, como se para amenizar a discussão que acabava de ter com ela.
Kahlan respirou resignada. Logo tudo acabaria e então eles iriam embora, continuando a jornada para deter Rahl. Isso era tudo que importava. Além do mais, ela especialmente não tinha o direito de se aborrecer.
— Há mais uma coisa — continuou o Homem Pássaro. — Eles não nasceram como Povo da Lama. Kahlan nasceu Confessora, uma questão de hereditariedade, não de escolha. Richard, o Esquentado, nasceu em Westland, no outro lado da fronteira, de modo que é um mistério para nós. Os dois concordam em ser Povo da Lama, honrar nossas leis e nosso modo de vida a partir de hoje, mas devemos compreender que pela primeira vez eles tentam ser o Povo da Lama. Nós vivemos toda a vida como o Povo da Lama, para eles este é o primeiro dia. São como crianças pequenas para nós. Dêem a eles a compreensão que dariam aos nossos filhos e eles farão o melhor possível.
Um murmúrio subiu da multidão, as cabeças se inclinaram assentindo, todos concordando em considerar as sábias palavras do Homem Pássaro, Kahlan suspirou. O Homem Pássaro lhes concedera uma pequena margem de erro, para o caso de não sair tudo certo. Ele era mesmo sábio. Apertou outra vez de leve o ombro dela e Kahlan pôs a mão sobre a dele, agradecendo.
Richard não perdeu um segundo. Voltou— se para os anciãos.
— Sinto-me honrado em pertencer ao Povo da Lama. Por onde quer que minhas viagens me levem, defenderei a honra do nosso povo, para que tenham orgulho de mim. Neste momento, nosso povo está em perigo. Preciso de ajuda para protegê-lo. Peço um conselho dos videntes. Peço uma reunião.
Kahlan traduziu e todos os anciãos concordaram.
— Concedido — disse o Homem Pássaro. — Precisamos de três dias de preparativos.
— Honrado ancião — disse Richard, procurando se controlar —, o perigo é grande. Respeito seus costumes, mas não podem fazer isso mais depressa? A vida do nosso povo depende disso.
O Homem Pássaro respirou profundamente, o longo cabelo prateado refletindo a luz tristonha.
— Nessa circunstância especial faremos o melhor possível para ajudá-lo. Esta noite teremos o banquete, amanhã a noite faremos a reunião. Isso é o mais depressa que podemos fazer. São necessários preparativos para que os anciãos anulem a distancia entre nós e os espíritos.
Richard também respirou profundamente.
— Amanhã a noite, então.
O Homem Pássaro soprou outra vez o apito e os pombos voaram. Kahlan sentiu que suas esperanças, impossíveis e tolas como eram, voavam com eles.
Os preparativos começaram imediatamente e Savidlin levou Richard a sua casa para tratar dos ferimentos e se lavar. O Homem Pássaro levou Kahlan à curandeira, para tratar o braço. A atadura improvisada estava encharcada de sangue e o corte muito dolorido. Ele a conduziu por umas passagens estreitas com um braço nos seus ombros. Kahlan ficou satisfeita por ele não falar no banquete.
Deixou-a com uma mulher curvada chamada Nissel, dizendo-lhe para tratar de Kahlan como se fosse filha dele. Nissel sorria pouco, em geral nos momentos mais estranhos, e falava pouco, a não ser para dar instruções. Fique de pé, aqui, levante o braço, abaixe, respire, beba isso, deite ali, recite a Candra. Kahlan não sabia o que era a Candra. Nissel deu de ombros e mandou então que ela equilibrasse pedras chatas uma em cima da outra na barriga, enquanto ela examinava o ferimento. Quando Kahlan sentia dor e as pedras começavam a cair, Nissel ralhava com ela, mandando tentar com mais afinco manter as pedras equilibradas. Kahlan teve de mastigar folhas amargas, enquanto Nissel tirava a sua roupa e lhe dava banho.
O banho fez mais por ela do que as folhas. Kahlan não se lembrava de banho melhor. Tentou se livrar dos pensamentos deprimentes como estava se livrando da lama. Tentou com todas as forças. Quando Nissel a deixou no banho, lavou a sua roupa e a estendeu em frente ao fogo, onde um pequeno caldeirão fervia uma pasta marrom com cheiro de breu de pinho. Nissel a enxugou, enrolando-a em peles quentes e a fez sentar-se em um banco embutido na parede, perto do fogo. O gosto das folhas pareciam melhorar à medida que ela mascava, mas sua cabeça começou a girar.
— Nissel, para que são estas folhas?
Nissel examinava a camisa de Kahlan, achando-a muito curiosa e se virou para ela.
— Para você relaxar e não sentir o que eu vou fazer. Continue mastigando. Não se preocupe, minha filha. Vai relaxar tanto que nem vai sentir eu costurar.
Kahlan imediatamente cuspiu as folhas. A mulher olhou para as folhas no chão e ergueu uma sobrancelha.
— Nissel , sou uma Confessora. Se eu relaxar desse modo, não poderei controlar meu poder. Quando você me tocar, posso usá-lo sem querer.
Nissel ficou intrigada.
— Mas você dorme, minha filha. Quando dorme, relaxa.
— Isso é diferente. Durmo desde que nasci, antes de adquirir o poder. Se eu ficar muito relaxada ou distraída com suas folhas, posso tocar em você sem querer.
Nissel assentiu, compreendendo. Então ergueu outra vez a sobrancelha e se aproximou de Kahlan.
— Então, como é que você...
Kahlan olhou para ela com uma expressão que dizia nada e tudo.
De repente, Nissel compreendeu. Ela endireitou o corpo.
— Ah, agora entendo.
Acariciou o cabelo de Kahlan, depois foi até a outra extremidade da sala e voltou com um pedaço de couro.
— Ponha isso entre os dentes. — Bateu de leve no ombro de Kahlan. — Se você for ferida outra vez, faça questão de ser trazida para Nissel. Vou lembrar e sei o que não devo fazer. Às vezes, para uma curandeira é mais importante saber que não deve ser feito. Talvez para uma Confessora também , não é mesmo? — Kahlan sorriu, assentindo— Agora minha filha, morda esse couro para mim.
Quando terminou, Nissel enxugou o suor do rosto de Kahlan com um pano molhado em água fria. Kahlan estava tão atordoada e nauseada que nem podia se sentar. Nissel a fez ficar deitada enquanto aplicava a pasta marrom e lhe envolvia o braço em ataduras.
— Você deve dormir um pouco. Chamo você antes do banquete.
Kahlan pôs a mão no braço dela e sorriu com esforço.
— Muito obrigada, Nissel.
Quando acordou, Nissel escovava seu cabelo que já estava seco. Nissel sorriu para ela.
— Vai ficar difícil escovar seu cabelo enquanto o braço não melhora. Poucas têm a honra de ter um cabelo tão bonito. Achei que você ia querer que estivesse escovado para o banquete. Vai começar logo. Um belo jovem a espera lá fora.
Kahlan sentou.
— Há quanto tempo ele está aqui?
— Quase o tempo todo. Tentei enxotá-lo com uma vassoura. — Nissel franziu a testa — Mas ele não foi embora. Ele é muito teimoso não é?
— É — Sorriu Kahlan.
Nissel a ajudou a vestir a roupa limpa. O braço já não doía tanto. Richard estava encostado, impaciente, na parede da casa e endireitou o corpo quando Kahlan saiu. Ele tinha tomado banho e vestia uma calça simples de pele e uma túnica e, é claro, estava com a espada. Nissel tinha razão: estava muito bonito.
— Como vai você? Como está o braço? Você está bem?
— Estou ótima — sorriu ela. — Nissel me curou.
Richard beijou o alto da cabeça da velha mulher.
— Obrigada, Nissel. Eu perdôo a vassoura.
Nissel sorriu quando Kahlan traduziu, inclinou-se para ele e o examinou por um tempo tão longo que Richard ficou embaraçado.
— Devo dar para ele uma poção — perguntou Nissel a Kahlan — para fortalecer?
— Não — disse Kahlan, ofendida —, tenho certeza de que ele está ótimo.
Risos e o som de tambores vinham do centro do povoado quando Richard e Kahlan passaram entre as casas muito juntas e escuras. O céu negro segurou a chuva e o ar úmido e quente trouxe o cheiro da relva molhada que circundava a aldeia. Archotes iluminavam as plataformas das construções com postes e grandes fogueiras na área aberta estalavam e pipocavam, desenhando sombras ondulantes. Kahlan sabia que dava trabalho carregar lenha para cozinhar e para os fornos de cerâmica e as achas eram pequenas. Aquilo era uma extravagância que o Povo da Lama raramente via.
Aromas apetitosos chegavam até ela, levados pelo ar da noite, mas não conseguiam aguçar seu apetite. Mulheres de vestidos de cores vivas, com jovens ao lado, se encarregavam da festa, verificando que tudo corresse bem. Os homens vestiam suas melhores peles, facas cerimoniais nos cinto e o cabelo alisado com lama, no modo tradicional.
Cozinhavam sem parar, enquanto o povo passava pelas fogueiras, experimentando a comida, conversando, contando histórias. A maioria aparentemente cozinhava ou comia. Havia crianças por toda a parte, brincando e correndo, rindo excitadas com a inesperada reunião noturna à luz das fogueiras.
Debaixo de telhados de capim, músicos tocavam tambores, raspavam tábuas onduladas e tocavam tubas em forma de sinos. Os acordes estranhos, a música, que tinha como finalidade chamar os espíritos dos ancestrais para o banquete, chegavam até muito longe nas pastagens. Outros músicos estavam no lado oposto da área aberta, os sons dos dois grupos às vezes se unindo, às vezes se separando, um chamado o outro num ritmo e toques de sinos ocasionalmente frenéticos. Homens fantasiados, alguns de animais, outros pintados como caçadores estilizados, pulavam e dançavam, representando histórias das lendas do Povo da Lama. Crianças alegres rodeavam os dançarinos, imitando-os e batendo os pés ao ritmo dos tambores. Jovens pares nas áreas escuras assistiam às atividades enquanto namoravam. Kahlan nunca se sentiu tão sozinha.
Savidlin, com a pele de coiote limpa em volta dos ombros, encontrou Kahlan e Richard e os levou com ele, batendo amistosamente nas costas de Richard, para se sentar com os anciãos sob o abrigo. O Homem Pássaro estava, como sempre, com calça e túnica de couro. Era importante o bastante para não precisar usar nada diferente. Weselan estava lá, bem como as mulheres dos outros anciãos, e foi sentar perto de kahlan, segurando a mão dela e perguntando, com sincero interesse, como estava seu braço. Kahlan não estava acostumada a que as pessoas se preocupassem com ela. Era bom sentir que fazia parte do Povo da Lama, mesmo que fosse só fingimento. Fingimento porque ela era Confessora e, por muito que desejasse o contrário naquele momento, não era verdade e nenhum decreto podia fazer com que fosse. Ela fez como tinha aprendido a fazer quando era ainda muito jovem: ignorar as emoções e pensar na tarefa que tinha pela frente, pensar em Darken Rahl e no pouco tempo que tinham. E pensou em Dennee.
Richard, resignado a ter de esperar outro dia pela reunião, tentava fazer o melhor possível, sorrindo e assentindo aos conselhos que não entendia. O povo passava numa procissão infindável pelo abrigo dos anciões, para cumprimentar o mais novo deles, com leves tapas no rosto. Kahlan tinha de admitir que eles a tratavam tão bem quanto a Richard.
Bandejas tecidas com fios de tava e pratos de cerâmicas repletos de vários tipos de comida estavam no chão, na frente dos homens sentados com as pernas cruzadas, e as pessoas passavam e os cumprimentavam e algumas se sentavam ao seu lado por algum tempo. Richard experimentou a maior parte da comida, se lembrando de usar a mão direita. Kahlan mordiscou um pedaço de pão de tava para não parecer desinteressada pela comida.
— Isto é bom — disse Richard, apanhando outra costeleta. — Acho que é porco.
— É javali — disse ela, olhando para os dançarinos.
— E a carne de veado está boa também. Tome, experimente um pedaço — ofereceu ele.
— Não obrigado.
— Você está bem?
— Estou ótima. Só não estou com fome.
Richard deu de ombros e comeu a carne de veado.
Depois de algum tempo, o número das pessoas que se aproximavam para cumprimentá-los diminuiu e elas passaram a se ocupar de outras atividades. Com o canto dos olhos, ela viu o Homem Pássaro levantar a mão, fazendo sinal para alguém que estava longe dele. Kahlan procurava não demonstrar o esforço que fazia para dominar seus sentimentos como sua mãe tinha ensinado: uma expressão de Confessora.
Quatro mulheres jovens, com sorrisos tímidos e cabelos curtos alisados com lama, aproximaram-se. Richard as recebeu com sorrisos, inclinações da cabeça e leves tapas no rosto, como fizera com os outros. Elas ficaram paradas, encostadas umas nas outras, rindo nervosamente e comentando em voz baixa que ele era bonito. Kahlan olhou outra vez para o Homem Pássaro. Ele apenas inclinou brevemente a cabeça.
— Por que elas não vão embora? — perguntou Richard, falando com o canto da boca. — O que elas querem?
— Elas são para você — disse Kahlan, calmamente.
A luz do fogo iluminou o rosto de Richard quando ele olhou para as quatro mulheres.
— Para mim? E o que vou fazer com elas?
Kahlan respirou profundamente e olhou para o fogo por um momento.
— Sou apenas sua guia, Richard. Se precisa de instruções a esse respeito, terá de procurar em outro lugar.
Houve um momento de silêncio.
— As quatros? Para mim?
Kahlan olhou para ele, viu o sorriso maroto e ficou irritada.
— Não. Você deve escolher uma.
— Escolher uma? — disse ele, ainda sorrindo.
Kahlan procurou se consolar, pensando que pelo menos ela não ia criar problemas.
Richard olhou de uma para outra das quatro mulheres.
— Escolher uma. Isso vai ser difícil. Quanto tempo tenho para decidir?
Kahlan olhou outra vez para o fogo, fechou os olhos por um momento e então voltou-se para o Homem Pássaro.
— O Seeker quer saber quanto tempo tem para escolher uma delas.
O homem Pássaro ficou surpreso com a pergunta.
— Até ele ir se deitar. Então deve escolher uma e dar um filho ao nosso povo. Desse modo, ficaremos unidos pelo sangue.
Ela traduziu para Richard.
Richard pensou cuidadosamente.
— Muito sábio. — Olhou para o Homem Pássaro sorriu e inclinou a cabeça afirmativamente. — O Homem Pássaro é muito sábio.
— Seeker diz que você é muito sábio — disse Kahlan, tentando controlar a sua voz.
— Bem, é uma decisão difícil. Tenho que pensar. Não é uma coisa que se faça às presas.
Kahlan afastou o cabelo do rosto e voltou-se para as jovens.
— O Seeker está tendo dificuldades para decidir.
Com um largo sorriso, Richard fez sinal para que elas subissem à plataforma. Duas se sentaram de um lado e duas, entre ele e Kahlan, que teve que se afastar um pouco para dar lugar. Elas se inclinaram para ele, pondo as mãos nos seus braços, apalpando os músculos e rindo. Comentaram com Kahlan o quanto ele era alto e ela também e como ele faria filhos altos. Queria saber se ele as achava bonitas. Kahlan disse que não sabia. Pediram para ela perguntar.
Kahlan respirou profundamente outra vez.
— Elas querem saber se você as acha bonitas.
— É claro! São muito bonitas! Todas elas. Por isso não posso decidir. Não acha que são bonitas?
Kahlan não respondeu e disse a elas que o Seeker as achava muito bonitas. Elas sorriram timidamente. O Homem Pássaro e os anciãos pareciam satisfeitos.
Continuavam a sorrir. Tudo estava sob controle. Kahlan olhou desanimadamente para a festa, olhando para os dançarinos sem os ver.
As quatro jovens davam comida na boca de Richard com as mãos e riam. Ele disse a Kahlan que era o melhor banquete que já tinha tido e perguntou se ela não concordava. Engolindo em seco, ela disse que era maravilhoso, e olhou inexpressivamente para longe as fagulhas que subiam para a escuridão.
Depois do que pareceram horas, uma mulher mais velha se aproximou respeitosamente dos anciões com a cabeça abaixada, carregando uma grande bandeja. O Homem Pássaro se serviu primeiro. Algumas das mulheres dos anciãos, sentadas ao lado dos maridos, recusaram.
A mulher levou a bandeja para a frente de Kahlan. Ela recusou delicadamente. A mulher apresentou a bandeja a Richard. Ele tirou um pedaço. As quatro jovens balançaram a cabeça, recusando, e olharam para Richard. Kahlan esperou que ele desse uma mordida, olhou brevemente para o Homem Pássaro e voltou a olhar para o fogo.
— Quer saber, estou tendo muita dificuldade para escolher uma dessas jovens — disse Richard, engolindo a carne. — Será que pode me ajudar, Kahlan? Qual delas devo escolher? O que você acha?
Esforçando-se para diminuir o ritmo da respiração, ela olhou para o rosto sorridente de Richard.
— Você tem razão. É uma escolha difícil. Acho melhor deixar isso para você.
Ele comeu mais um pouco da carne e Kahlan cerrou os dentes e engoliu em seco.
— Isto é meio estranho, jamais comi nada parecido. — Richard fez uma pausa e mudou o tom de voz. — O que é? — A aspereza da pergunta a assustou e Kahlan quase deu um pulo. Viu o olhar ameaçador de Richard. Kahlan não pretendia dizer, mas o modo com que Richard olhou para ela a fez mudar de idéia.
Perguntou ao Homem Pássaro e olhou outra vez para Richard.
— Ele disse que é um bombeiro.
— Um bombeiro? Que tipo de animal é um bombeiro?
Kahlan olhou para os olhos penetrantes dele e respondeu, com voz suave:
— Um dos homens de Darken Rahl.
— Compreendo. — Richard inclinou o corpo um pouco para trás.
Ele sabia. Kahlan teve certeza de que ele sabia antes de perguntar. Só queria ver se ela ia mentir para ele.
— Quem são esses bombeiros?
Ela perguntou aos anciões como sabiam sobre bombeiros. Savidlin estava mais do que disposto a contar a historia. Quando ele terminou, Kahlan se voltou para Richard.
— Bombeiros são os que viajam por todo o país para garantir que seja cumprida a lei de Rahl de não acender fogos. Podem ser extremamente brutais. Savidlin diz que dois deles estiveram aqui há algumas semanas e disseram que acender fogo era contra a lei e os ameaçaram quando o Povo da Lama recusou-se a obedecer à nova lei. Eles ficaram com medo de que os sujeitos voltassem com mais homens. Por isso os mataram. O Povo da Lama acredita que pode adquirir a sabedoria do inimigo comendo sua carne. Para ser um homem entre o Povo da Lama, para ser um deles, você deve comer também, desse modo terá todo o conhecimento que o inimigo tem. É o objetivo principal dos banquetes. Isso e a evocação dos espíritos dos ancestrais.
— E eu comi o bastante para satisfazer aos anciãos? — Richard olhou friamente para ela.
Kahlan teve vontade de fugir.
Com um gesto deliberado, Richard largou o pedaço da carne. O sorriso voltou aos seus lábios e ele olhou para as quatro jovens, abraçando as duas que estavam mais perto.
— Kahlan, faça-me um favor. Vá apanhar uma das maças da minha mochila. Preciso de alguma coisa familiar para tirar o gosto da boca.
— Suas pernas funcionam — disse ela, secamente.
— Sim, mas preciso dedicar um tempo para resolver qual destas beldades vai dormir comigo.
Levantando-se, Kahlan olhou furiosa para o Homem Pássaro e saiu intempestivamente para a casa de Savidlin. Estava feliz por ficar longe, por não precisar ver aquelas jovens tocando em Richard.
Sem perceber, enfiou as unhas nas palmas das mãos quando passou por aquele povo feliz. Os dançarinos dançavam, os músicos tocavam os tambores, as crianças riam. As pessoas pelas quais passava lhe desejavam boa sorte. Ela queria que alguém a ofendesse, para ter uma desculpa de descarregar sua fúria.
Chegou à casa de Savidlin e se sentou pesadamente na pele que cobria o chão, tentando em vão não chorar. Só alguns minutos, ela pensou, era tudo de que precisava para recobrar o controle. Richard estava fazendo o que o Povo da Lama exigia, o que ela prometera ao Homem Pássaro que ele ia fazer. Não tinha o direito de ficar zangada, de modo algum, Richard não lhe pertencia. Chorou sentidamente. Não tinha direito de se sentir assim, de ficar zangada com ele. Mas estava zangada, estava furiosa.
Lembrou-se do que tinha dito ao Homem Pássaro — problema criado por ela com conseqüências que teria de suportar e que temia.
Richard estava fazendo apenas o necessário para conseguir uma reunião, o necessário para encontrar a caixa e deter Rahl. Kahlan enxugou as lágrimas.
Mas ele não precisava ter tanto prazer em fazer aquilo. Podia fazer sem agir como se...
Tirou uma das maças da mochila dele. Não tinha importância. Ela não podia mudar as coisas. Mas não precisava se sentir feliz com isso. Mordeu os lábios e saiu da casa, tentando evitar que seu rosto demonstrasse o que sentia. Ainda bem que estava escuro.
Depois de atravessar a parte mais animada da comemoração, encontrou Richard sem a camisa. As jovens o pintavam com símbolos dos caçadores do Povo da Lama.
Aplicavam lama preta e branca com as mãos, desenhando linhas denteadas no peito dele, anéis em volta dos braços. Pararam quando ela chegou e olhou para elas.
— Tome. — Ela pôs a maça na mão dele e se sentou, carrancuda.
— Eu ainda não decidi. — disse ele, polindo a maçã na perna da calça, olhando de uma jovem para outra. — Kahlan tem certeza de que não tem preferência? Eu preciso da sua ajuda. — Abaixou a voz agora áspera. — Estou surpreso por você não ter escolhido uma delas para mim.
Kahlan olhou para ele, atônita. Ele sabia. Sabia disso também, um compromisso que ela fizera por ele.
— Não. A que você escolher estará bem, tenho certeza. — Olhou para o lado outra vez.
— Kahlan — perguntou ele e esperou que ela virasse para ele —, alguma dessas jovens é parente dos anciãos?
Ela olhou outra vez para as jovens.
— A que está à sua direita. O Homem Pássaro é tio dela.
— Tio! — Com um largo sorriso, Richard continuou a polir a maça na perna da calça. — Bem, então, acho que vou escolher essa. Será um sinal de respeito pelos anciãos escolher a sobrinha do Homem Pássaro.
Segurou a cabeça da moça com as duas mãos e beijou a testa dela. A jovem sorriu feliz. O Homem Pássaro sorriu feliz. As outras foram embora.
Kahlan olhou para o Homem Pássaro e ele a olhou, com expressão solidária. Kahlan virou a cabeça e olhou tristemente para a noite. Então Richard tinha escolhido. Então agora, ela pensou desanimada, os anciãos realizariam uma cerimônia e o feliz casal iria para algum lugar faze um filho. Ela viu os outros casais andando de mãos dadas, felizes juntos. Com um nó na garganta, Kahlan engoliu as lágrimas que ameaçavam lhe subir aos olhos. Ouviu o estalo quando Richard mordeu sua maçã idiota.
E então ouviu uma exclamação abafada dos anciãos e suas mulheres, depois gritos.
A maçã! Em Midlands frutas vermelhas eram venenosas! Eles não sabiam o que era maçã! Pensavam que Richard estava comendo veneno! Kahlan se virou rapidamente.
Richard estendeu o braço para os anciãos, pedindo silencio e mandando que ficassem onde estavam. Mas olhou diretamente para Kahlan.
— Diga a eles para ficarem sentados — disse ele, em voz baixa.
Alarmada, ela olhou para os anciãos e traduziu. Eles obedeceram, hesitantes. Richard se inclinou para trás, voltando-se casualmente para eles com um ar inocente.
— Olhem, em Hartland, Westland, de onde venho, comemos estas coisas o tempo todo. — Deu mais algumas mordidas. Eles olhavam arregalados. — Comemos há nem sei quanto tempo. Homens e mulheres comem isto. Temos crianças saudáveis. — Tirou outro pedaço da maçã, virando e olhando enquanto ela traduzia. Mastigou devagar, prolongando a tensão. Olhou para trás, para o Homem Pássaro. — É claro eu talvez ela faça com que a semente de um homem seja veneno para uma mulher que não seja a sua. Ao que eu saiba, nunca experimentei.
Olhou de novo para Kahlan e deu outra mordida na maçã, deixando que absorvessem as palavras que ela traduzia. A jovem ao seu lado estava ficando nervosa. Os anciãos estavam ficando nervosos. O Homem Pássaro não demonstrava emoção. Richard cruzou os braços com um cotovelo apoiado na outra mão para a maçã ficar perto da boca, onde todos podiam ver. Fez menção de dar outra mordida e pariu, pensando em oferecer a fruta à sobrinha do Homem Pássaro. Ela virou a cabeça. Ele olhou outra vez para os anciãos.
— Eu acho muito boa. De verdade. — Deu de ombros. — Mas talvez seja verdade esse negocio de tornar venenosa a semente do homem. Mas não quero que pensem que não estou disposto a cumprir os deveres exigidos para que eu faça parte do Povo da Lama. Estou mais do que disposto. — Passou a ponta do dedo no rosto da jovem. — Garanto a vocês que será uma honra. Esta bela jovem será perfeita para ter meu filho, estou certo. — Richard deu um suspiro. — Se ela viver, é claro. — Deu outra mordida na maçã.
Os anciãos se entreolharam apreensivos. Ninguém disse nada. O estado de espírito na plataforma mudou radicalmente. Não estavam mais no controle, Richard estava. Aconteceu numa fração de segundo. Agora tinham medo de mover muito mais do que os olhos. Sem olhar para eles, Richard continuou:
— Claro, depende de vocês. Estou disposto a tentar, mas achei que deviam saber sobre os costumes da minha terra natal. Achei que não seria justo não contar. — Então virou-se para eles, as sobrancelhas franzidas, a voz sugerindo ameaça: — Assim, se os anciãos, na sua sabedoria, desejarem pedir que eu não cumpra este dever, compreenderei e, com muita pena, obedecerei ao seu desejo.
Ele continuou olhando firmemente para eles. Savidlin sorriu. Os outros cinco nem pensavam em desafiar Richard e olharam para o Homem Pássaro, procurando orientação. Imóvel, uma gota de suor escorrendo na pele áspera do pescoço, o cabelo prateado tocando os ombros da túnica de pele, ele sustentou o olhar de Richard brevemente. Seus lábios se curvaram num sorriso que chegou aos olhos também e balançou a cabeça afirmativamente para si mesmo.
— Richard, o Esquentado — sua voz estava calma e forte, dirigida não só aos anciãos mas também ao povo reunido na frente da plataforma —, uma vez que você é de outro país e sua semente pode ser veneno para esta jovem... — ergueu uma sobrancelha e se inclinou um pouco para frente — ... minha sobrinha — olhou para ela e outra vez para Richard —, pedimos que não siga essa tradição, que não a tome por esposa. Sinto ter de pedir isso. Sei que você estava ansioso para nos dar um filho.
Richard inclinou a cabeça, concordando muito sério.
— Sim, eu estava. Mas terei de viver com meu fracasso e tentar fazer com que o Povo da Lama, meu povo, se orgulhe de mim de outros modos. — Ele fechou o negócio com uma condição: eles não podiam voltar atrás agora, ele era um deles agora e nada podia mudar isso.
Os anciãos respiraram aliviados. Todos balançaram a cabeça concordando, satisfeitos por resolver o problema ao gosto dele. A jovem sorriu para o tio com alívio e foi embora. Richard se voltou para Kahlan, com o rosto inexpressivo.
— Há outras condições que eu desconheço?
— Não. — Kahlan estava confusa. Não sabia se estava feliz porque Richard não se ia casar ou se estava triste porque ele achava que ela o tinha traído.
Richard voltou-se para os anciãos.
— Minha presença ainda é exigida esta noite?
Alegremente, os cinco o dispensaram. Savidlin parecia um pouco desapontado. O Homem Pássaro disse que o Seeker era o grande salvador do seu povo, cumprira seu dever com honra, estava cansado das lutas do dia e tinha licença para sair.
Richard se levantou devagar e ficou de pé, com as botas bem na frente do rosto de Kahlan. Embora sabendo que ele a olhava, Kahlan olhou para o chão.
— Um conselho — disse ele com uma voz que a surpreendeu pela gentileza — uma vez que você nunca teve um amigo antes. Amigos não negociam os direitos dos seus amigos. Nem seus corações.
Kahlan não teve coragem de olhar para ele.
Richard jogou o que sobrou da maçã no colo dela e desapareceu no meio do povo.
Kahlan ficou sentada na plataforma dos anciãos, envolta em uma névoa de solidão, olhando para seus dedos trêmulos. Os outros olhavam para os dançarinos. Com grande esforço, ela contava as batidas dos tambores para ajudar a controlar a respiração e não chorar. O Homem Pássaro se sentou ao lado dela. Kahlan gostou da companhia.
Com uma sobrancelha erguida, ele se inclinou para ela.
— Algum dia quero conhecer o mago que nomeou esse homem. Quero saber onde ele encontra esses Seekers.
Kahlan viu, com surpresa, que ainda podia rir.
— Algum dia — disse ela, sorrindo —, se eu viver e se vencermos, prometo que o trarei aqui para você conhecer. De muitos modos, ele é tão notável quanto Richard.
Ele ergueu outra vez a sobrancelha.
— Vou afiar meu espírito para me defender nesse encontro.
Kahlan encostou a cabeça no ombro dele e riu até começar a chorar. Ele passou o braço em volta dos ombros dela.
— Eu devia ter dado ouvidos a você — ela soluçou —, devia ter perguntado o que ele queria. Não tinha o direito de fazer o que fiz.
— Sua vontade de deter Darken Rahl a fez fazer o que julgou necessário. Às vezes escolher erradamente é melhor do que não escolher. Você tem a coragem para seguir em frente, o que é raro. Uma pessoa que fica indecisa, incapaz de escolher, nunca chega a parte alguma.
— Mas machuca tanto ver Richard zangado comigo.
— Vou contar um segredo que você só saberia quando fosse velha demais para aproveitar o que ele ensina. — Olhos cheios de lágrimas ergueram-se para o sorriso dele. — Machuca Richard igualmente ficar zangado com você.
— É mesmo?
Ele riu silenciosamente e fez que sim com a cabeça.
— Acredite, minha filha.
— Eu não tinha o direito. Devia ter visto isso antes. Sinto tanto ter feito isso.
— Não diga isso para mim. Diga para ele.
Kahlan se afastou um pouco dele e olhou para o rosto enrugado do Homem Pássaro.
— Acho que vou fazer isso. Obrigada, honrado ancião.
— E, quando se desculpar, apresente minhas desculpas também.
— Por quê? — perguntou Kahlan, intrigada.
Ele suspirou.
— O fato de ser velho, de ser um ancião, não evita que eu tenha idéias idiotas. Hoje eu também cometi um erro, com Richard e com minha sobrinha. Eu também não tinha o direito. Agradeça a ele por mim, por evitar que eu impusesse ações que eu devia questionar, mas não questionei. — Tirou o apito do pescoço. — Dê a ele este presente, com meu agradecimento por abrir meus olhos. Que isto lhe sirva bem. Amanhã mostro a ele como deve ser usado.
— Mas você precisa dele para chamar os pássaros.
Ele sorriu.
— Eu tenho outros. Vá agora. — Kahlan segurou o apito com força e enxugou as lágrimas do rosto.
— Em toda a minha vida, quase nunca chorei. Desde que a fronteira de D’Hara ruiu, parece que é tudo que faço.
— O que nós todos fazemos, minha filha. Vá.
Com um beijo rápido no rosto dele, Kahlan foi embora. Procurou na área aberta mas não viu nem sinal de Richard. As pessoas a quem perguntou não o tinham visto. Ela andou em círculos, procurando. Onde ele estava? Crianças tentavam fazer com que Kahlan dançasse com elas, as pessoas lhe ofereciam comida, outras queriam conversar. Delicadamente, ela se livrou de todos.
Finalmente foi para a casa de Savidlin, quase certa de que ele estaria lá. Mas a casa estava vazia. Kahlan se sentou no chão, pensativa. Richard teria ido embora sem ela? Entrou em pânico. Procurou em volta. Não. A mochila estava ali onde ela a deixara quando foi apanhar a maçã. Além disso, ele não partiria antes da reunião.
Então lembrou. Sabia onde ele estava. Kahlan sorriu, tirou uma das maçãs da mochila dele e foi para os corredores escuros entre as casas do povoado do Povo da Lama, para a casa dos espíritos.
Uma luz se acendeu de repente no escuro, iluminando as paredes em volta dela. A principio a moça não sabia o que era, mas então, olhando entre as casas, viu o relâmpago. Relâmpagos no horizonte, em todas as direções, em toda a volta, estendendo os dedos furiosos no céu para as nuvens escuras, iluminando-as de dentro para fora com cores escaldantes. Sem trovão. Então, desapareceu, deixando tudo escuro outra vez.
Aquele tempo estranho nunca mais ia acabar, ela pensou. Será que algum dia veria as estrelas outra vez, ou o sol? Os magos e suas nuvens!, Kahlan pensou, balançando a cabeça. Imaginou se jamais veria Zedd de novo. Pelo menos as nuvens protegiam Richard contra Darken Rahl.
A casa dos espíritos estava escura, longe do som e da atividade do banquete. Cautelosamente, Kahlan abriu a porta. Richard estava sentado no chão à frente do fogo, a espada na bainha ao seu lado. Ele não se voltou quando ouviu o barulho.
— Sua guia deseja falar com você — ela disse.
A porta rangeu quando ela a fechou. Kahlan se sentou nos calcanhares ao lado dele, com o coração disparado.
— E o que minha guia deseja me dizer? — Ele sorriu, ela pensou sem querer.
— Que ela cometeu um erro — disse ela suavemente, tirando um fiapo da perna da calça. — E que está muito arrependida. Muito, muito mesmo. Não apenas pelo que fez, mas especialmente por não ter confiado em você.
Richard abraçava os joelhos dobrados, as mãos cruzadas. Richard se virou para ela, com brilho quente e vermelho do fogo refletindo nos olhos bondosos.
— Eu tinha ensaiado um longo discurso. Mas agora não consigo lembrar nem uma palavra. Você tem esse efeito em mim — ele sorriu outra vez. — Desculpas aceitas.
Kahlan respirou aliviada. Era como se os pedaços do seu coração tivessem sido juntados outra vez. Olhou para ele.
— Era um bom discurso?
O sorriso ficou mais largo.
— Pareceu, na ocasião, mas agora não acho que fosse bom.
— Você é muito bom para discursos. Quase matou de medo os anciãos, incluindo o Homem Pássaro. — Estendendo o braço, ela passou o apito com a tira de couro pela cabeça dele.
Descruzando as mãos, ele tocou no apito.
— Para que isto?
— É um presente do Homem Pássaro, com um pedido de desculpas pelo que ele tentou obrigar você a fazer. Ele disse que também não tinha o direito e quer agradecer a você com este presente por abrir os olhos dele. Amanhã ele ensina como usar. — Kahlan se sentou de costas para o fogo, de frente para Richard, muito perto dele. A noite estava quente e com o calor do fogo a pele de Richard brilhava de suor. Os símbolos pintados no seu peito e em volta do braço davam-lhe uma aparência selvagem. — Você tem jeito para abrir os olhos dos outros — disse ela. — Acho que deve ter usado magia.
— Talvez tenha usado. Zedd diz que às vezes um truque é a melhor magia.
A voz dele ressoou profundamente dentro dela, dando-lhe uma sensação de fraqueza.
— E Adie disse que você tem a magia da língua. — murmurou ela.
O olhar de Richard parecia penetrar nela, empalando-a com sua força, acelerando sua respiração. Nunca se sentira tão segura, tão relaxada e tão tensa ao mesmo tempo. Um sentimento confuso.
Seus olhos se deliciaram com o rosto dele, com a forma do nariz, o ângulo da face, a linha do queixo. Pararam nos lábios. De repente, Kahlan percebeu que a casa dos espíritos estava quente. Sentia a cabeça vazia.
Olhando outra vez nos olhos dele, tirou a maçã do bolso e deu uma dentada suculenta, arrastando os dentes na polpa. Com um movimento fluido e impulsivo, ela levou a maçã à boca de Richard e segurou para ele dar uma mordida grande e molhada. Seria bom se ele pudesse pôr os lábios daquele modo nos seus, ela pensou.
Por que não? Seria seu destino morrer naquela aventura sem ter a permissão para ser mulher? Será que tinha de ser somente guerreira? Lutar pela felicidade de todos, exceto pela sua? Os Seekers, nos melhores tempos, morriam cedo demais e os tempos não eram dos melhores.
Era o fim dos tempos.
Kahlan sofria só em pensar na morte. Sofria pensando na morte de Richard.
Apertou a maçã contra os dentes dele quando o olhou. Mesmo que ela o possuísse, Richard podia continuar lutando ao seu lado, ela pensou, talvez até com maior determinação. Seria por motivos diferentes, mas ele seria tão letal quanto agora, talvez mais. Porém seria diferente, não a mesma pessoa. Essa pessoa desaparecia para sempre.
Mas pelo menos seria dela. Kahlan o desejava tão desesperadamente, como jamais desejara qualquer coisa antes, que chegava a doer. Deviam morrer sem ter vivido? A necessidade que tinha dele era como um formigamento em todo o seu corpo.
Com ar de brincadeira, tirou a maçã da boca de Richard. O suco escorreu pelo queixo. Lenta e deliberadamente, ela se inclinou e lambeu o suco doce. Ele não se moveu. Seus rostos estavam a poucos centímetros um do outro. Ela partilhava a respiração dele, rápida e quente. Estavam tão perto que quase não podia focalizar os olhos de Richard. Kahlan engoliu o suco doce.
A razão evaporou-se rapidamente, substituída por sentimentos que a tantalizavam com promessas, dominavam-na com uma necessidade escaldante.
Kahlan largou a maçã, levou os dedos molhados aos lábios dele e observou, passando a língua no lábio superior. Richard deixou os dedos dela entrarem na sua boca, sugando o suco devagar, de um dedo de cada vez. Kahlan estremeceu sentindo o interior da boca de Richard, molhado e quente.
Um leve som saiu dos lábios dela. O coração lhe ressoou nos ouvidos. Seu peito arfou. Passou os dedos molhados no queixo dele, no pescoço, no peito, levemente delineando o contorno dos símbolos pintados, sentindo os montes e vales.
Ajoelhada em cima de Richard, Kahlan apertou de leve os mamilos dele, acariciou o peito e fechou os olhos por um momento, cerrando os dentes. Gentilmente, empurrou-o para trás. Ele se deitou sem protesto. Kahlan deitou em cima, com a mão apoiada no peito dele. A sensação a surpreendeu, a suavidade da pele, a umidade do suor, a aspereza dos pêlos, o calor. O peito de Richard subia e descia com a respiração pesada, com a vida.
Com um joelho perto do quadril de Richard, ela pôs o outro entre as pernas dele, olhos nos olhos, seu cabelo cascateando em volta do rosto dele, sempre apoiada no peito forte, sem querer se mover, sem querer perder a conexão com a carne úmida. Uma conexão que incendiava com seu calor.
Entre os joelhos dela, os músculos do quadril de Richard retesaram, acelerando mais ainda sua pulsação. Kahlan abriu a boca para respirar. Perdeu-se nos olhos dele, que pareciam atravessar sua alma, desnudando-a, inundando de fogo todo o seu corpo.
Com a outra mão, desabotoou a camisa e a tirou de dentro da calça.
Pôs a mão na nuca do homem, sempre com o corpo levantado, não encostado no dele, apoiada com a outra mão no peito. Passou os dedos pelo cabelo molhado e segurou com força a cabeça de Richard contra o chão.
Ele pôs a mão grande e forte debaixo do camisão dela, nas costas, acariciando em pequenos círculos, percorrendo a linha da espinha, fazendo-a estremecer, parando entre as omoplatas. Com os olhos semicerrados, ela curvou o corpo para a mão macia e quente, querendo que Richard a puxasse para ele. Kahlan respirava rapidamente, quase ofegante.
Levou o joelho para cima da perna dele. Sons leves escapavam da sua respiração. O peito de Richard arfou. Debaixo dela, Richard nunca lhe pareceu tão grande.
— Eu quero você — murmurou ela.
Abaixou a cabeça. Roçou os lábios nos dele.
Uma expressão de dor apareceu nos olhos de Richard.
— Só se antes me disser o que você é.
Surpresa, Kahlan arregalou os olhos. Moveu um pouco a cabeça para trás. Ela o estava tocando, Richard não podia evitar, ela pensou, não queria que ele tentasse. Tinha somente uma sugestão do seu poder que aos poucos fugia ao seu controle. Kahlan sentia. Encostou outra vez os lábios nos dele, com outro som leve escapando dos seus lábios.
A mão nas suas costas se moveu debaixo do camisão, segurou-lhe uma mecha dos cabelos, puxando de leve, afastando sua cabeça.
— Kahlan. Falo sério. Só se primeiro você me disser.
A razão voltou à sua mente, fria, afogando a paixão. Nunca desejou alguém daquele modo. Como podia tocá-lo com seu poder? Como podia fazer isso com ele? Kahlan se afastou. O que estava fazendo? O que estava pensando?
Ela se sentou nos calcanhares, tirou a mão do peito dele e cobriu a boca com ela. O mundo desmoronou à sua volta. Como podia dizer a ele? Richard ia odiá-la, ela o perderia. Sua cabeça girava.
Richard se sentou e delicadamente pôs a mão no ombro dela.
— Kahlan — disse ele com voz suave, atraindo os olhos dela para os seus —, não precisa dizer se não quiser. Só quando estiver resolvida.
Kahlan se esforçou para não chorar.
— Por favor. — Ela mal podia falar. — Apenas me abrace.
Richard a puxou ternamente para ele, encostou sua cabeça no ombro. Dor, a dor do que ela era, estendeu os dedos gelados outra vez. Ele a abraçou, segurando-a contra o peito, acalentando-a.
— Para isso são os amigos — murmurou ele no ouvido dela.
Kahlan estava vazia demais para chorar.
— Prometo, Richard, que direi. Mas não esta noite. Esta noite apenas me abrace, por favor.
Ele se deitou outra vez devagar, segurando-a contra ele com os braços fortes, e Kahlan mordeu as juntas de uma das mãos e o segurou com força com a outra.
— Quando você quiser. Não antes — prometeu ele.
O horror do que ela era a envolveu com braços frios. Ela estremeceu. Seus olhos se recusaram a fechar por um longo tempo, até que finalmente ela adormeceu; seu ultimo pensamento foi Richard.
— Tente outra vez — Disse o Homem Pássaro. — E pare de pensar no pássaro que você quer— bateu na cabeça de Richard com a mão fechada — daqui.— Espetou com o dedo a barriga de Richard. — Pense daqui!
Richard assentiu quando Kahlan traduziu e levou o apito aos lábios. Soprou, estufando as bochechas. Como sempre, não houve qualquer som. O Homem Pássaro, Richard e Kahlan olharam para a paisagem plana. Os caçadores que os tinham escoltado giraram as cabeças, nervosos, apoiados nas lanças com as pontas para cima.
Saindo aparentemente do nada, estorninhos, andorinhas e pequenos pássaros do campo desceram, mergulhando em reviravoltas e dirigindo-se para o pequeno grupo. Os caçadores abaixaram as cabeças, rindo. O ar se encheu de pequenos pássaros voando freneticamente, escurecendo o céu. Os caçadores, as gargalhadas, se deitaram no chão e cobriram as cabeças. Richard revirou os olhos. Kahlan virou o rosto, rindo também. O homem Pássaro apressadamente levou seu apito aos lábios e soprou, o cabelo prateado solto no vento, tentando desesperadamente mandar os pássaros embora. Finalmente eles atenderam e desapareceram. O silêncio voltou á planície, exceto, é claro, pelas gargalhadas dos caçadores, rolando no chão.
O Homem Pássaro respirou profundamente e pôs as mãos na cintura.
— Eu desisto. Estamos tentando o dia inteiro e tudo está como no começo. Richard, o Esquentado — disse ele —, você é o pior chamador que já vi. Uma criança pode aprender com três tentativas, mas você não tem respiração suficiente para aprender nem que tente pelo resto da vida. É inútil. A única coisa que seu apito diz é: “ Venham, tem comida aqui.”
— Mas eu estava pensando em falcão. Pensei em todos os tipos de pássaros que você disse, do melhor modo possível.
Quando Kahlan traduziu, os caçadores riram mais ainda. Richard olhou para eles, zangado, mas os homens continuaram a rir. O homem Pássaro cruzou os braços e suspirou.
— Não adianta. o dia está no fim, logo teremos a reunião. — Pôs a mão no ombro do Seeker frustrado. — Fique com o presente. Embora nunca possa ajudar você, guarde como lembrança de que, embora você possa ser melhor do que muita gente em várias coisas, isso até uma criança faz melhor.
Os caçadores riram. Com um suspiro, Richard concordou. Apanharam suas coisas e voltaram para o povoado.
Richard se inclinou para Kahlan.
— Eu estava fazendo o melhor possível. De verdade. Não compreendo.
Kahlan sorriu e segurou a mão dele.
— Tenho certeza disso.
A luz começou a esmaecer, mas o dia nublado fora o mais claro daqueles que ela lembrava havia muito tempo e isso ajudou a animá-los. Porém, o que mais a ajudou, foi o modo com que Richard a tratou. Deixou que ela se refizesse da noite anterior sem pedir nada. Apenas a abraçou, deixando-a em paz.
Embora nada mais tivesse acontecido, ela se sentia mais perto de Richard do que nunca, mas sabia que isso não era bom. Dependia só do seu dilema. Quase cometera um grande erro a noite passada. O maior de sua vida. Ainda bem que ele a tinha tirado da beira do abismo. Ao mesmo tempo, parte dela desejava que isso não tivesse acontecido.
Naquela manhã, quando acordou, não sabia o que ele estava sentindo, se estaria magoado, zangado ou se a odiava. Embora tivesse dormindo a noite toda com o peito nu ao lado dele, se virou de costas, embaraçada, para abotoar o camisão. Disse que ninguém jamais tivera um amigo tão paciente. Disse que só esperava algum dia poder provar que era tão boa amiga quanto ele.
— Você já provou. Depositou sua confiança, sua vida em minhas mãos. Empenhou sua vida para me defender. Que prova melhor posso pedir?
Kahlan se virou de frente para ele e, resistindo ao desejo urgente de beijá-lo, agradeceu sua paciência.
— Mas tenho de admitir — sorriu Richard— que nunca mais vou olhar para as maçãs do mesmo modo.
Isso a fez rir meio embaraçada e os dois riram juntos por longo tempo. De algum modo, sentiu-se melhor e retirou da mente o que podia ter sido um espinho.
Richard parou de andar de repente. Kahlan parou também. Os outros continuaram a andar.
— Richard, o que foi?
— O sol — ele empalideceu. — Por um momento, um raio de sol iluminou meu rosto.
Kahlan se virou para o leste.
— Tudo que vejo são nuvens.
— Estava aqui, uma pequena abertura, porém não a vejo mais.
— Acha que significa alguma coisa?
Ele balançou a cabeça.
— Não sei. Mas é a primeira vez em que veja uma abertura nas nuvens desde que Zedd as juntou. Talvez não seja nada.
Recomeçaram a andar, os sons dos tambores chegando até eles, levados pelo vento da planície. Quando chegaram ao povoado, estava escuro. O banquete continuava, como continuaria mais uma noite até terminar a reunião. Todos estavam ainda animados, exceto as crianças, muitas das quais andavam de uma lado para outro, sonolentas, ou dormiam nos cantos.
Os seis anciãos estavam na plataforma. Suas mulheres tinham ido embora. Faziam uma refeição servida por mulheres especiais: as únicas cozinheiras a quem era permitido preparar o banquete da reunião. Kahlan as viu servirem uma bebida aos anciãos. Era diferente de todas as outras bebidas do banquete. Os olhos dos seis estavam vidrados, distantes, como se vissem coisas que ninguém mais via. Kahlan sentiu um arrepio.
Os espíritos dos ancestrais estavam com eles. O Homem Pássaro falou com eles. Quando pareceu satisfeito com o que tinham dito, fez um sinal e todos se levantaram, seguindo em fila para a casa dos espíritos. O som dos tambores e das marimbas mudou, provocando calafrios em Kahlan. O Homem Pássaro se aproximou deles, seus olhos mais penetrantes e intensos do que nunca.
— Está na hora — disse ele. — Richard e eu devemos ir agora.
— Como assim, Richard e você? Eu também vou.
— Não pode.
— Por que?
— Porque a reunião é só para homens.
— Eu sou a guia do Seeker. Preciso estar lá para traduzir.
O Homem Pássaro desviou os olhos, incerto.
— Mas a reunião é só para homens — repetiu, aparentemente não encontrando outro motivo.
Kahlan cruzou os braços.
— Muito bem. Essa terá uma mulher.
Richard olhou dela para o Homem Pássaro e para ela outra vez, sabendo pelo tom de voz que alguma coisa estava acontecendo, mas resolveu não interferir. O Homem Pássaro se inclinou para ela e abaixou a voz.
— Quando nos encontrarmos com os espíritos, será do modo que eles são.
Kahlan entrecerrou os olhos.
— Está dizendo que não podemos estar vestidos?
Ele respirou profundamente e assentiu.
— E devemos estar pintados com lama.
— Ótimo — disse ela, levantando a cabeça. — Não tenho objeção.
Ele recuou um pouco.
— Bem, e o Seeker? Talvez seja bom perguntar a opinião dele.
Kahlan olhou para ele por longo tempo, depois se voltou para Richard.
— Tenho de explicar uma coisa. Quando uma pessoa convoca uma reunião, ás vezes os espíritos fazem perguntas a ela, por intermédio dos anciãos, para terem certeza de estar agindo por uma causa nobre. Se você responder a uma pergunta de uma modo que o espírito considera desonroso ou inverídico... eles podem matá-lo. Não os anciãos, os espíritos.
— Eu tenho a espada— lembrou ele.
— Não, não tem. Se você quer uma reunião deve fazer como os anciãos: enfrentar os espíritos apenas você mesmo. Não pode usar a espada ou roupa e deve ter o corpo pintado a lama. — Kahlan parou para respirar e pôs o cabelo para trás do ombro. — Se eu não tiver lá para traduzir, você pode ser morto simplesmente por não poder responder a uma pergunta que não compreendeu. Então Rahl vence. Preciso estar lá. Mas, para estar lá, não posso estar vestida. O Homem Pássaro está todo nervoso e quer saber o que você acha disso. Ele espera que você me proíba de ir à reunião.
Richard cruzou os braços e olhou nos olhos dela.
— Acho que você está determinada a ir de um modo ou de outro e tirar a roupa na casa dos espíritos.
Os cantos da boca de Richard se ergueram e seus olhos brilharam. Kahlan mordeu o lábio para não rir. O Homem Pássaro olhou de um para outro, confuso.
— Richard!— Ela disse o nome dele em tom de aviso. — Isto é sério. E não espere muito. Vai estar escuro. — Mas continuava se esforçando para não rir.
Richard ficou sério e disse para o Homem Pássaro: — Eu convoquei a reunião. Preciso de Kahlan lá.
Ela quase podia ver o Homem Pássaro se encolher quando traduziu.
— Vocês têm me feito ultrapassar todos os limites desde que chegaram — suspirou. — Por que mudar agora? Vamos.
Lado a lado, Kahlan e Richard acompanharam o Homem Pássaro pelos corredores escuros do povoado, se virando para a direito várias vezes, depois para a esquerda. Richard segurou a mão dela. Kahlan estava muito mais nervosa do que deixava transparecer, ao pensar em ficar nua numa sala com oito homens nus. Mas não ia deixar que Richard fosse à reunião sem ela. Não era hora de deixar escapar uma oportunidade. Tinham trabalhado arduamente e o tempo era curto.
Adotou sua expressão de Confessora.
Antes de chegarem à casa dos espíritos, o Homem Pássaro os fez entrarem, por uma porta estreita, para uma pequena sala em uma casa ao lado. Os outros anciãos estavam lá, sentados no chão, com as pernas cruzadas, olhando para a frente. Ela sorriu para Savidlin, mas ele não retribuiu o sorriso. O Homem Pássaro pegou um pequeno banco e dois potes de argila.
— Quando eu chamar seu nome, saiam. Esperem o chamado.
Quando o Homem Pássaro saiu com o bando e as vasilhas, passando de lado pela porta estreita, Kahlan contou a Richard o que ele tinha dito. Depois de algum tempo, Caldus foi chamado e, em seguida, em pequenos intervalos, todos os anciãos, Savidlin por último. Savidlin não falou com eles, nem sequer demonstrou notar sua presença. Os espíritos estavam nos seus olhos.
Kahlan e Richard esperaram em silêncio na sala escura. Ela segurou o salto da bota, tentando não pensar naquilo em que se tinha comprometido, mas incapaz de pensar em outra coisa.
Richard estaria desarmado, sem a espada, sua proteção. Mas Kahlan não estaria sem seu poder. Ela o protegeria. Embora não tivesse dito, essa era a outra razão pela qual precisava estar na reunião. Se alguma coisa saísse errada, ela morreria, não ele, disso tinha certeza. Kahlan se preparou, concentrando-se. Ouviu o Homem Pássaro chamar Richard.
Ele se levantou.
— Esperemos que isto funcione. Caso contrário, estamos numa grande encrenca. Estou satisfeito por você estar aqui. — Era um aviso para ficar alerta.
— Apenas lembre, Richard, eles são o nosso povo agora, pertencemos ao Povo da Lama. Eles querem nos ajudar, farão o melhor possível.
Kahlan ficou sentada, abraçando os joelhos, esperando até seu nome ser chamado e então saiu para a noite escura e fria. O Homem Pássaro estava sentado no pequeno banco, encostado na parede da casa dos espíritos. Kahlan viu que ele estava nu, com símbolos pintados em linhas dentadas, tiras e curvas no corpo todo, o cabelo prateado até os ombros.
Galinhas empoleiradas em um pequeno muro observavam. Um caçador estava ao lado do homem pássaro, tendo aos pés peles de coiote, roupas e a espada de Richard.
— Tire a roupa — disse o homem pássaro.
— O que é isso? — perguntou ela, apontando para o caçador.
— Ele está aqui para levar as roupas para a plataforma dos anciãos, para que o povo veja que estamos reunidos. Antes do amanhecer, ele voltará, para que todos saibam que a reunião terminou.
— Muito bem, diga a ele para virar de costas.
O homem pássaro deu a ordem. O caçador obedeceu. Ela abriu a fivela do cinto. Fez uma pausa, olhando para o homem pássaro.
— Minha filha — disse ele, suavemente —, esta noite você não é mulher nem homem. Você é uma pessoa da lama. Esta noite eu não sou homem nem mulher. Sou um espírito guia.
Kahlan tirou a roupa e ficou na frente dele, sentindo o ar frio da noite no corpo todo. Ele pegou um punhado de lama branca de um dos potes. Sua mão parou na frente dela. Kahlan esperou. Ele estava visivelmente embaraçado. Ver é uma coisa, tocar é outra.
Kahlan estendeu o braço, segurou a mão dele e a encostou com firmeza no seu corpo, sentindo a lama se achatar.
— Faça — ordenou ela.
Terminado o trabalho, eles abriram a porta e entraram. Ele se sentou entre os anciãos, ela na frente deles, ao lado de Richard. Linhas brancas e pretas se entrecruzavam diagonalmente no rosto dele, uma máscara que todos usavam para os espíritos. Os crânios da prateleira estavam dispostos no centro do círculo. Um fogo pequeno queimava lentamente na lareira atrás dela, com um cheiro acre estranho. Os anciãos olhavam para a frente enquanto entoavam palavras que ela não entendia. Os olhos distantes do homem pássaro se ergueram. A porta se fechou sozinha.
— A partir de agora, até o fim, quando começar a amanhecer, ninguém pode sair. A porta está barrada pelos espíritos.
Kahlan olhou em volta, mas não viu nada. Sentiu um arrepio na espinha. O Homem pássaro pôs a mão dentro de um cesto que estava ao seu lado. Tirou uma pequena rã e passou o cesto para outro ancião. Cada um tirou uma rã e começou a esfregar as costas do animal no peito. Quando o cesto chegou a ela, Kahlan o segurou e olhou para o homem pássaro.
— O que eu faço com isto?
— Essas são rãs de espírito vermelho, muito difíceis de ser encontradas. Têm uma substância nas costas que nos faz esquecer este mundo e nos permite ver os espíritos.
— Honrado ancião, eu posso ser uma pessoa do povo da lama, mas sou também Confessora. Devo sempre controlar meu poder. Se eu esquecer este mundo, posso ser incapaz de fazer isso.
— É tarde demais para recuar agora. Os espíritos estão conosco. Eles a viram, viram em você os símbolos que abrem seus olhos. Você não pode sair. Se houver alguém aqui cego para eles, os espíritos matarão e roubarão seu espírito. Compreendo seu problema, mas não posso ajudar. Você terá de fazer o melhor possível para controlar seu poder. Se não puder, então um de nós está perdido. é um preço que temos de pagar. Se você quer morrer, deixe a rã no cesto. Se quer deter Darken Rahl, tire.
Ela olhou para o rosto severo dele e enfiou a mão no cesto. A rã esperneou e chutou a mão dela quando Kahlan passou o cesto a Richard, dizendo-lhe o que devia fazer.
Engolindo em seco, ela passou as costas pegajosas da rã no peito, entre os seios, no lugar onde não havia símbolos pintados, empurrando-a em círculos como os outros tinham feito. Onde a gosma tocava sua pele tinha a sensação de picadas, de aperto. A sensação a envolveu. Os sons dos tambores e das marimbas cresceram no seus ouvidos até parecer até parecer que eram a única coisa que existia no mundo. Seu corpo vibrava com o ritmo. Em sua mente, ela tomou o controle do seu poder, concentrando-se e então, esperando que fosse suficiente, entregou-se.
Todos deram-se as mãos. As paredes da sala desapareceram. Sua consciência ondulava como círculos concêntricos num lago, flutuando, balançando, inclinando-se. Kahlan sentiu que começava a girar com os outros, em volta dos crânios. Foram todos lançados num vazio, no nada. Raios de luz vindos do centro giravam sobre eles.
Vultos se aproximaram de todos os lados. Apavorada, ela percebeu o que eram. As sombras da passagem.
Sem poder gritar, a respiração presa na garganta, ela apertou a mão de Richard. Tinha de protegê-lo. Tentou se levantar, lançar-se sobre ele para que elas não o tocassem.
Mas seu corpo não se movia. Com horror, viu que as mãos das sombras a seguravam. Lutou para se levantar, para proteger Richard. Sua mente disparou, em pânico. Já estava morta?
Não passava de um espírito agora? Incapaz de se mover?
As sombras olharam para ela. Aquelas coisas do desfiladeiro não tinham rosto. Estas tinham. Rostos de povo da lama.
Não eram as sombras da passagem, ela compreendeu com alívio, mas os espíritos dos ancestrais. Kahlan tomou fôlego e dominou o pânico. Relaxou.
— Quem convoca esta reunião?
Eram os espíritos falando. Todos ao mesmo tempo. O som, oco, plano, morto, quase a impediu de respirar. Mas era a boca do homem pássaro que se movia.
— Quem convoca esta reunião?— repetiu ele.
— Este homem— disse ela—, este homem ao meu lado. Richard, o Esquentado.
As sombras flutuaram entre os anciãos, reunindo-se no centro do círculo.
— Soltem as mãos dele.
Kahlan e Savidlin soltaram as mãos de Richard. Os espíritos giraram no centro do círculo, depois rapidamente fizeram uma fila e passaram através do corpo de Richard.
Richard inalou o ar, lançou a cabeça para trás e gritou em agonia. Kahlan deu um pulo. Os espíritos pairavam agora atrás dele. Os anciãos fecharam os olhos.
— Richard!
Ele levou a cabeça para a frente.
— Está tudo bem. Eu estou bem — disse com voz rouca, mas claramente ainda sentindo dor.
Os espíritos se moveram em círculo atrás dos anciãos, depois se instalaram nos corpos deles, espíritos e homens no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Os anciãos estavam emoldurados por uma suave linha indefinida. Abriram os olhos.
— Por que nos chamou?— perguntou o Homem Pássaro, com a voz oca e harmoniosa.
Kahlan se inclinou um pouco para Richard, sem tirar os olhos do homem pássaro.
— Eles querem saber por quê você convocou a reunião.
Richard respirou profundamente algumas vezes, recuperando-se do que eles tinham feito.
— Convoquei esta reunião porque preciso encontrar um objeto mágico antes que Darken Rahl o encontre. Antes que ele possa usá-lo.
Kahlan traduzia, enquanto os espíritos falavam com Richard por intermédio dos anciãos.
— Quantos homens você matou?— perguntou Savidlin, com a voz dos espíritos.
Richard respondeu sem hesitar:
— Dois.
— Por quê? — perguntou Hajanlet.
— Para evitar que me matassem.
— Os dois?
Ele pensou por um momento.
— O primeiro matei em autodefesa. O segundo matei para defender uma amiga.
— Acha que defender uma amiga dá a você o direito de matar?— Dessa vez foi a boca de Arbrin que se moveu.
— Sim.
— E se ele ia matar sua amiga só para defender a vida de um amigo?
Richard respirou profundamente.
— Qual a finalidade da pergunta?
— A finalidade é que, de acordo com o que você acredita, é justificado matar em defesa de um amigo, então, se ele estava matando para defender um amigo, ele tinha o direito de matar sua amiga. Tinha justificativa. Uma vez que tinha justificativa, isso anula seu direito, não anula?
— Nem todas as perguntas têm respostas.
— Talvez nem todas tenham uma resposta de que você goste.
— Talvez.
Kahlan percebeu, pelo tom da voz, que Richard começava a se irritar. Todos os olhos dos anciãos espíritos estavam nele.
— Você teve prazer em matar esse homem?
— Qual deles?
— O primeiro.
— Não.
— E o segundo?
Os músculos do rosto de Richard ficaram tensos.
— Qual a finalidade da pergunta?
— Todas as perguntas têm uma razão diferente para ser feitas.
— E às vezes as razões não têm nada a ver com a pergunta.
— Resposta à pergunta.
— Só se você me disser a razão dela.
— Você está aqui para nos fazer perguntas. Podemos perguntar suas razões?
— Parece que sim.
— Responda à nossa pergunta ou não responderemos à sua.
— Se eu responder, prometem que responderão à minha?
— Não estamos aqui para negociar. Estamos aqui porque fomos chamados. Responda à pergunta ou a reunião acaba aqui.
Richard respirou profundamente, soltando o ar devagar e olhando para o vazio.
— Sim, tive prazer em matar o homem por causa da magia da Espada da Verdade. É assim que funciona. Se eu o tivesse matado de outro modo, sem a espada, não teria sentido prazer.
— Irrelevante.
— O quê?
— “Se” é irrelevante. “Fiz” não é. Então agora você deu duas razões para matar o segundo homem: defender uma amiga e porque você sentiu prazer. Qual é a razão verdadeira?
— As duas. Matei para defender a vida de uma amiga e por causa da espada tive prazer em matar.
— E se você não precisasse matar para proteger sua amiga? E se você estivesse enganado no seu julgamento? Se a vida da sua amiga não estivesse de fato em perigo?
Kahlan ficou tensa. Hesitou um momento antes de traduzir.
— Em minha mente, a ação não é tão importante quanto a intenção. Eu acreditei realmente que a vida de minha amiga corria perigo. Portanto, considerei justificado matar o homem para protegê-la. Eu tinha apenas um momento para agir. Na minha mente, a indecisão resultaria na morte dela.
“Se os espíritos acham que errei ao matar ou que o homem que matei podia ter uma justificativa, o que anularia meu direito, então discordamos. Alguns problemas não têm solução clara. Alguns problemas não nos dão tempo para analisá-los. Tive de agir com o coração. Um homem sábio me disse certa vez que todo assassino se sente justificado em matar. Eu matei para evitar minha morte ou a de um amigo ou a de um inocente. Se vocês acham que isso é errado, digam agora para que possamos dar um fim a essas perguntas e eu possa procurar as respostas de que preciso.”
— Como dissemos, não estamos aqui para negociar. Você disse que, em sua mente, o ato não é tão importante quanto a intenção. Há alguém que você pretendeu matar, mas não matou?
O som das vozes deles era doloroso. Kahlan sentiu como se estivesse queimando sua pele.
— Vocês interpretaram erroneamente o contexto do que eu disse. Eu matei porque pensei que tinha de matar, pensei que a intenção dele era matar minha amiga, portanto pensei que devia agir, do contrário ela morreria. Não que minha intenção se equacione com o ato. Provavelmente há uma longa lista de pessoas que, em um ou outro momento, eu tive vontade de matar.
— Se você teve vontade, por que não matou?
— Por muitos motivos. Para algumas eu não tinha verdadeira justificativa, era apenas um jogo mental, uma fantasia, para contrabalançar uma injustiça. Mas para algumas, embora me considerasse justificado, consegui escapar sem matar. Outras, bem, simplesmente não matei, isso foi tudo.
— Os cinco anciãos?
Richard suspirou.
— Sim.
— Mas sua intenção era matar.
Richard não respondeu.
— Esse é um caso em que a intenção é igual ao ato?
Richard respondeu: — No meu coração, sim. O fato de ter tido a intenção me feriu quase tanto quanto o ato teria me ferido.
— Então me parece que não interpretamos suas palavras inteiramente fora do contexto.
Kahlan viu lágrimas nos olhos de Richard.
— Por que estão fazendo essas perguntas?
— Para que você quer esse objeto de magia?
— Para deter Darken Rahl!
— E como com esse objeto pode detê-lo?
Richard se inclinou um pouco para trás. Arregalou os olhos. Ele compreendeu. Uma lágrima desceu no seu rosto.
— Porque se eu puder encontrar esse objeto e evitar que vá parar nas mãos dele — murmurou Richard —, ele morrerá. Só assim eu o matarei.
— O que você está então nos pedindo é ajuda para matar outra pessoa. — As vozes ecoaram no escuro, em volta de Kahlan.
Richard balançou a cabeça, assentindo.
— Por isso estamos fazendo essas perguntas. Você está pedindo nossa ajuda para matar. Não acha justo de nossa parte querer saber que tipo de pessoa estaremos ajudando na sua tentativa de matar?
O suor escorria do rosto de Richard.
— Acho que sim. — Ele fechou os olhos.
— Por que você quer matar esse homem?
— Por varias razões.
— Por que você quer matar esse homem?
— Porque ele torturou e matou meu pai. Porque ele torturou e matou muitos outros. Porque ele me matará se eu não o matar. Porque ele matará muitos outros se eu não o matar. É o único modo de detê-lo. Não é possível tentar convencê-lo do contrário. Não tenho opção a não ser matá-lo.
— Considere cuidadosamente a próxima pergunta. Responda com a verdade ou está reunião terminará aqui.
Richard inclinou a cabeça, assentindo.
— Qual a razão, acima de todas as outras, pela qual você quer matar esse homem?
Richard olhou para baixo e fechou os olhos outra vez.
— Porque — murmurou ele, com as lágrimas descendo pelo rosto —, se eu não o matar, ele matará Kahlan.
Kahlan teve a impressão de ter levado um soco no estômago. Mal conseguiu traduzir. Houve um longo silencio. Richard estava despido em mais de um modo. Ela se revoltou contra o que os espíritos estavam fazendo com ele. Também a perturbava profundamente o que ela estava fazendo com ele. Shar tinha razão.
— Se Kahlan não fosse um fator, você mesmo assim ia querer matar esse homem?
— Certamente. Vocês perguntaram a razão acima de todas as outras e eu respondi.
— Qual é o objeto de magia que você procura? — perguntaram eles de repente.
— Isso quer dizer que concordam com meus motivos para matar?
— Não. Quer dizer que, de acordo com nossas razões, resolvemos responder à sua pergunta. Se pudermos. Qual é o objeto de magia que procura?
— Uma das três caixas de Orden.
Quando Kahlan traduziu, os espíritos gemeram como se sentissem dor.
— Não nos é permitido responder a essa pergunta. As caixas de Orden estão ativadas. Esta reunião terminou.
Os anciãos começaram a fechar os olhos. Richard se levantou de um pulo.
— Vão deixar que Darken Rahl mate toda essa gente quando têm o poder de ajudar?
— Sim.
— Deixarão que mate seus descendentes, sua carne e seu sangue? Vocês não são os espíritos dos ancestrais do seu povo, são espíritos traidores!
— Não é verdade.
— Então me digam!
— Não temos permissão.
— Por favor! Não nos deixem ir sem sua ajuda. Posso fazer mais uma pergunta?
— Não temos permissão para dizer onde estão as caixas de Orden. É proibido. Pense e faça outra pergunta.
Richard se sentou e dobrou os joelhos. Esfregou os olhos. Os símbolos pintados em todo o seu corpo o faziam parecer uma criatura selvagem. Cobriu o rosto com as mãos, pensando. Levantou a cabeça bruscamente.
— Vocês não me podem dizer onde estão as caixas. Há outras restrições?
— Sim.
— Quantas caixas Darken Rahl já tem?
— Duas.
Ele olhou para os anciãos.
— Vocês acabam de revelar onde estão duas das caixas. Isso é proibido — ele os fez lembrar. — Ou talvez seja simplesmente um grau indefinido de intenção.
Silêncio.
— Essa informação não é restrita. Sua pergunta?
Richard se inclinou para a frente como um cão farejando a caça.
— Podem me dizer quem sabe onde está a ultima caixa?
Kahlan desconfiou de que Richard sabia a resposta a essa pergunta. Reconheceu o modo de ele cortar o outro lado do pão.
— Sabemos o nome da pessoa que tem a caixa e os nomes de várias outras pessoas próximas, mas não podemos dizer porque seria o mesmo que dizer onde a caixa está isso é proibido.
— Então podem me dizer o nome de uma pessoa que não seja Rahl, que não esteja com a ultima caixa, que não esteja perto dela mas que saiba onde ela está?
— Há uma pessoa cujo nome podemos dizer. Ela sabe onde está a caixa. Se dissermos a você seu nome, isso não o levará à caixa, apenas a essa pessoa. Isso é permitido. Dependerá de você, não de nós, conseguir qualquer informação.
— Esta é a minha pergunta: qual o nome dessa pessoa? Digam seu nome.
Quando eles disseram o nome, Kahlan se sobressaltou. Ela não traduziu. Os anciãos estremeceram ao dizer o nome em voz alta.
— Quem é? Qual é o nome? — perguntou Richard para Kahlan.
Kahlan ergueu os olhos para ele.
— Estamos mortos — murmurou ela.
— Por quê? Quem é?
Kahlan se fechou.
— É aquela feiticeira, Shota.
— E você sabe onde ela está?
Kahlan fez que sim com a cabeça, apavorada.
— Em Agaden Reach — murmurou ela, como se as palavras tivessem gosto de veneno. — Nem mesmo um mago ousaria ir a Reach.
Richard viu o medo no rosto dela e os anciãos estremecerem, abalados.
— Pois então vamos a Agaden Reach procurar a feiticeira Shota — disse ele com voz firme — e descobrir onde está a caixa.
— Nós lhes desejamos boa sorte — os espíritos disseram, pela boca do Homem Pássaro. — As vidas dos nossos descendentes dependem de vocês.
— Obrigado pela ajuda, honrados ancestrais — disse Richard. — Farei o melhor possível para deter Rahl. Para ajudar o nosso povo.
— Você deve usar a cabeça. Darken Rahl é assim. Enfrente Rahl nos termos dele e você perde. Não será fácil. Você terá de sofrer, como nosso povo, como os outros povos, antes de ter pelo menos uma chance de ter sucesso. E, provavelmente, assim mesmo fracassará. Lembre-se de nosso aviso, Richard, o Esquentado.
— Lembrarei as coisas que disseram. Prometo fazer o melhor possível.
— Então testaremos a verdade da sua promessa. Vamos dizer mais uma coisa. — Fizeram uma pausa. — Darken Rahl está aqui. Ele procura você.
Kahlan traduziu apressadamente, levantando-se. Richard ficou ao lado dela.
— O quê? Ele está aqui agora? Onde? O que ele está fazendo?
— Ele está no centro do povoado. Está matando pessoas.
O medo se apossou de Kahlan. Richard deu um passo à frente.
— Tenho de sair daqui. Preciso da minha espada. Tenho de tentar deter Darken Rahl!
— Seja como quiser. Mas ouçam primeiro. Sentem-se — ordenaram eles.
Richard e Kahlan obedeceram, entreolhando-se, de mãos dadas. As lagrimas apareceram nos olhos dela.
— Depressa então — disse Richard.
— Darken Rahl quer você. Sua espada não pode matá-lo. Esta noite a balança do poder pende para o lado dele. Se você for até lá, ele o matará. Você não terá chance. Para vencer, você deve mudar a balança do poder, uma coisa que não pode fazer esta noite. As pessoas que ele está matando morrerão, quer você saia ou não para lutar contra ele. Muitas mais. Para ter sucesso, você deve ter a coragem de deixar que essas pessoas morram esta noite. Deve se salvar para lutar em outro momento. Deve sofrer essa dor. Deve ouvir sua cabeça, e não sua espada, se quiser ter uma chance de vencer.
— Mas tenho de sair daqui mais cedo ou mais tarde!
— Darken Rahl libertou muitos terrores. Ele pode equilibrar muitas coisas, inclusive seu tempo. Ele não tem tempo para esperar a noite inteira. Está confiante, e com razão, de que pode derrotar você a qualquer hora. Não tem motivo para esperar. Logo irá embora para tratar de outros assuntos e deixará para procurar você em outro dia.
“Os símbolos pintados em você abrem nossos olhos para você, permitindo que o vejamos. Fecham os olhos dele para você. Rahl não pode vê-lo. A não ser que você empunhe sua espada. Isso ele pode ver, então você estará nas mãos dele. Enquanto você tiver os símbolos e a magia da sua espada permanecer na bainha, enquanto estiver com o Povo da Lama, ele não poderá encontrá-lo.”
— Mas não posso ficar aqui!
— Não, se deseja deter Darken Rahl. Quando deixar nosso território, o poder dos símbolos desaparecerá e ele poderá ver você outra vez.
Richard respirava pesadamente, suas mãos tremiam. Kahlan sentiu que ele estava muito perto de ignorar o aviso, prestes a sair para lutar.
— A escolha é sua — disseram os espíritos. — Espere aqui enquanto ele mata alguns membros do nosso povo e, quando ele se for, vá procurar a caixa para matá-lo. Ou saia agora e não realize coisa alguma.
Richard fechou os olhos e engoliu em seco. Seu peito arfava com a respiração entrecortada.
— Eu espero — disse ele, com voz quase inaudível.
Kahlan passou os braços em volta do pescoço dele, encostou sua cabeça na dele e os dois choraram. O circulo dos anciãos começou a girar outra vez.
Foi a última coisa que Kahlan lembrou, antes de ser sacudida pelo Homem Pássaro para acordar. Teve a sensação de estar saindo de um pesadelo quando lembrou o que os espíritos tinham dito sobre Rahl estar matando o Povo da Lama e que para encontrar a caixa tinham de ir a Agaden Reach, procurar Shota. Ela estremeceu pensando na feiticeira. Os outros anciãos estavam ao lado dele, ajudando-os a se levantarem. Todos pareciam tristes. As lágrimas ameaçaram encher seus olhos outra vez. Kahlan conseguiu evitá-las.
O Homem Pássaro abriu a porta para o frio da noite, para um céu claro e estrelado. As nuvens tinham desaparecido. Até a nuvem em forma de serpente.
Faltava menos de uma hora para amanhecer e o céu a leste já tinha uma sugestão de cor. Um caçador com ar solene entregou as roupas dos dois e a espada para Richard. Vestiram-se em silencio e saíram.
Uma falange de caçadores e arqueiros rodeava a casa dos espíritos. Muitos estavam sujos de sangue. Richard passou à frente do Homem Pássaro.
— Conte— me o que aconteceu — ordenou ele em voz baixa.
Um homem armado de lança se adiantou. Kahlan esperava ao lado de Richard para traduzir. A raiva fuzilava nos olhos do homem.
— O demônio vermelho veio do céu carregando um homem nas costas. Ele queria você. — Com os olhos em fogo, ele encostou a ponta da lança no peito de Richard, o Homem Pássaro, impassível, pôs a mão na lança, afastando a ponta do peito de Richard. — Quando ele encontrou apenas suas roupas, começou a matar nossa gente. Crianças! — seu peito arfava de raiva. — Nossas flechas não o tocavam. Nossas lanças não o tocavam. Nossas mãos não o tocavam. Muitos dos que tentaram foram mortos pelo fogo da magia. Então ele ficou cada vez mais zangado quando viu que nós usamos o fogo. Apagou todas as fogueiras. Depois montou oura vez nas costas do demônio vermelho e nos disse que, se acendermos fogo outra vez, ele voltará para matar todas as crianças do povoado. Com magia, ele fez Siddin flutuar e o pôs debaixo do braço. Um presente, ele disse, para um amigo. Então foi embora. E onde estavam você e sua espada?
Os olhos de Savidlin se encheram de lágrimas. Kahlan pôs a mão sobre o coração, para aliviar a dor lancinante. Ela sabia para quem era o presente.
O homem cuspiu em Richard. Savidlin se lançou sobre ele mas Richard estendeu o braço e o deteve.
— Ouvi as vozes dos espíritos dos nossos ancestrais — disse Savidlin. — Eu sei que não foi culpa dele!
Kahlan passou o braço em volta dos ombros de Savidlin e o consolou.
— Seja forte. Nós o salvamos uma vez, quando parecia perdido. Nós o salvaremos outra vez.
Ele inclinou a cabeça afirmativamente, tentando ser corajoso. Richard perguntou o que ela tinha dito a Savidlin.
— Uma mentira — respondeu ela — para aliviar a dor.
Richard compreendeu e se virou para o homem com a lança.
— Mostre-me os que ele matou — disse, sem emoção.
— Por quê? — o homem quis saber.
— Para que eu jamais esqueça por que vou matar o homem que fez isso.
Com um olhar furioso para os anciãos, o homem os levou ao centro do povoado. Kahlan procurou parecer impassível para se proteger do que ia ver. Tinha visto isso tantas vezes antes, em outros povoados, em outros lugares. E, como esperava, era igual. Amontoados, em terrível confusão ao lado da parede, alguns sem braços ou sem parte do rosto. A sobrinha do Homem Pássaro estava entre eles. Sem demonstrar emoção, Richard atravessou o caos das pessoas que choravam e se lamentavam, passou pelos mortos, a calma no olho do furacão. Ou talvez, Kahlan pensou, o relâmpago prestes a atacar.
— Foi isso que você nos trouxe — sibilou o homem. — Isso é culpa sua!
Richard viu que todos inclinavam as cabeças, concordando, e se virou para o homem com a lança. Disse, com voz tranqüila: — Se ajuda a diminuir a dor que estão sentindo, então ponham a culpa em mim. Eu prefiro culpar aquele que tem o sangue deles nas mãos. — Dirigiu-se ao Homem Pássaro e aos outros anciãos: — Até tudo isto acabar, não acendam fogo. Só servirá para provocar mais mortes. Eu juro que deterei esse homem ou morrerei tentando. Muito obrigado, meus amigos, por me ajudarem.
Olhou para Kahlan. Seus olhos intensos revelavam fúria provocada pelo que acabava de ver. Cerrou os dentes.
— Vamos encontrar essa feiticeira.
Não tinham escolha, é claro. Mas Kahlan conhecia Shota.
Eles iam morrer.
Seria melhor perguntar a Darken Rahl onde poderiam encontrar a caixa.
Kahlan foi até o Homem Pássaro e impulsivamente o abraçou.
— Lembre-se de mim — murmurou ela.
Quando se separaram, o Homem Pássaro olhou tristemente para o povo.
— Estes dois precisam de homens para guardá-los até saírem a salvo da nossa terra.
Savidlin se adiantou imediatamente. Sem hesitar, um grupo de dez dos seus melhores caçadores se pôs ao seu lado.
A princesa Violeta se virou de repente e esbofeteou Rachel. Com força. Rachel não tinha feito nada errado, é claro. A princesa apenas gostava de bater no rosto dela quando Rachel menos esperava. A princesa achava graça nisso. Rachel não tentou disfarçar a dor; se não doesse bastante a princesa repetiria a brincadeira. Rachel pôs a mão no rosto que queimava, o lábio inferior tremendo, olhos cheios de lágrimas, mas não disse nada. Voltando-se para a parede brilhante e polida, repleta de pequenas gavetas de madeira, a princesa enfiou o dedo gorducho em uma alça dourada e abriu outra gaveta, dela tirando um cintilante colar de pedras grandes azuis.
— Este é bonito. Levante meu cabelo.
Virou-se de frente para o espelho emoldurado, admirando-se enquanto prendia o fecho do colar no pescoço gordo e Rachel segurava o cabelo longo, castanho e opaco. Rachel olhou para a própria imagem no espelho, examinando a marca vermelha no rosto. Ela detestava se olhar no espelho, detestava ver seu cabelo cortado muito curto pela princesa. Não tinha permissão para deixar crescer o cabelo, ela era ninguém, mas queria tanto que pelo menos tivesse sido cortado igual... Quase todas tinham o cabelo cortado curto, mas bem cortado. A princesa Violeta queria que as outras pessoas achassem Rachel feia.
Rachel passou o peso do corpo de um pé para o outro e girou o tornozelo para aliviar a rigidez. Tinham passado a tarde toda no quarto de jóias da rainha, a princesa experimentando uma jóia depois da outra, depois desfilando na frente do espelho alto. Era a coisa que ela mais gostava de fazer, experimentar as jóias da rainha na frente do espelho. Como sua companheira de folguedos, Rachel era obrigada a lhe fazer companhia, para garantir que a princesa se divertisse. Dezenas de pequenas gavetas estavam abertas, algumas escancaradas, outras meio fechadas. Colares e braceletes estavam dependurados na beirada de umas, como línguas brilhantes. Mais se espalhavam no chão ao lado de broches, tiaras e anéis.
A princesa apontou para um anel de pedra azul no chão.
— Dê-me aquele.
Rachel passou por baixo do dedo estendido na sua frente e a princesa se olhou no espelho, virando a mão de um lado para o outro. Passou a mão pelo bonito vestido de cetim azul-claro, admirando o anel. Com um longo suspiro de tédio, foi até o belo Pedestal de mármore branco, na outra extremidade da sala das jóias. Estava olhando para o objeto favorito da mãe, o objeto que ela acariciava sempre que tinha oportunidade.
Os dedos gorduchos da princesa Violeta retiraram do lugar de honra a caixa ornada com pedras preciosas.
— Princesa Violeta! — exclamou Rachel, antes que tivesse tempo de pensar. — Sua mãe não quer que você toque nisso.
A princesa, com uma expressão de inocência, jogou a caixa para ela. Rachel com uma exclamação abafada, pegou a caixa, com medo de que ela batesse na parede. Apavorada, imediatamente a pôs no chão, como se fosse uma brasa. Recuou, com medo de apanhar se fosse encontrada perto da preciosa caixa da rainha.
— Qual é o problema?— disse a princesa Violeta, zangada. — A magia não a deixa sair desse quarto. Ninguém vai roubar essa caixa ou coisa assim.
Rachel não sabia coisa alguma sobre magia, mas sabia que não queria ser apanhada tocando na caixa da rinha.
— Vou descer para a sala de jantar — disse a princesa, com o nariz petulantemente no ar — para ver a chegada dos convidados e esperar o jantar. Limpe esta bagunça horrível, depois vá até a cozinha e diga aos cozinheiros que não quero minha carne esturricada como couro, como da última vez, senão conto para minha mãe e eles levam uma boa sova.
— É claro, princesa Violeta. — Rachel se curvou numa cortesia.
A princesa, com o nariz no ar, disse: — E...?
— E...obrigada, princesa Violeta, por me trazer e me deixar ver como fica bonita com essas jóias.
— Bem, é o mínimo que posso fazer. Você deve ficar cansada de ver sua cara feia no espelho. Minha mãe diz que devemos fazer coisas boas para os menos afortunados. — Tirou uma coisa do bolso. — Tome. Fique com a chave e tranque a porta quando terminar de arrumar tudo.
Rachel fez uma cortesia.
— Sim princesa Violeta.
Quando estava pondo a chave na mão de Rachel, a outra mão da princesa apareceu do nada e esbofeteou Rachel inesperadamente, com força também inesperada. Rachel, atordoada, viu a princesa sair do quanto com uma risada eqüina e estridente. A risada da princesa machucou quase tanto quanto o tapa.
Com lágrimas descendo pelo rosto, Rachel, de quatro no chão, começou a apanhar punhados de anéis do tapete. Parou e sentou-se por um momento, tocando cautelosamente com as pontas dos dedos o lugar da bofetada. Doía demais.
Deliberadamente, ela trabalhou em volta da caixa da rainha, olhando para ela desconfiada, com medo de tocá-la, mas sabendo que teria de pegar a caixa para pôr no lugar. Trabalhou lenta e meticulosamente, guardando as jóias nos lugares certos, fechando as gavetas com cuidado, esperando nunca terminar para não ter de pegar a caixa, a coisa favorita da rainha, o objeto mais precioso do mundo.
A rainha não ia gostar nem um pouco se souber que uma “ninguém” a tinha tocado. Rachel sabia que a rainha estava sempre mandando cortar cabeças. Às vezes a princesa fazia Rachel assistir a uma decapitação, mas Rachel sempre fechava os olhos. A princesa não fechava.
Quando todas as jóias estavam guardadas, ela olhou de soslaio para a caixa no chão. Teve a impressão de que a caixa a olhava, como se fosse contar para a rainha. Finalmente abaixou-se e, com os olhos arregalados, a apanhou. Segurando-a com o braço estendido, ela andou cuidadosamente no tapete, apavorada, com medo de deixá-la cair. Pôs a caixa no lugar o mais lentamente possível, com cuidado, temendo que alguma jóia caísse de dentro dela. Retirou a mão rapidamente, aliviada.
Virou-se para trás e viu a barra de um manto prateado que ia até o chão. Prendeu a respiração. Não ouvira passos. Sua cabeça se levantou, quase involuntariamente seguindo a linha do manto, e seus olhos passaram pelas mãos enfiadas nos punhos das mangas, até a barba longa, branca e pontuda, subiram para o rosto, para o nariz adunco, a cabeça calva e os olhos escuros voltados para seu rosto assustado.
O mago.
— Mago Giller — disse ela com voz fraca, esperando ser morta a qualquer momento. — Eu estava pondo a caixa no lugar. Por favor, por favor, não me mate. — Com o rosto crispado de medo, tentou recuar, mas seus pés não se moviam. — Por favor. — Pôs a bainha do vestido na boca e a mordeu, choramingando.
Rachel fechou os olhos com força e estremeceu quando o mago começou a se abaixar.
— Minha filha — disse ele com voz suave. Rachel abriu um olho cautelosamente e, com surpresa, viu o mago sentado no chão, o rosto à altura do seu. — Eu não vou matar você.
Rachel abriu o outro olho com a mesma cautela.
— Não? — Não acreditou nele. Alarmada, viu que a porta estava fechada, seu único meio de fuga bloqueado.
— Não — sorriu ele, balançando a cabeça calva. — Quem tirou a caixa do pedestal?
— Estávamos brincando. Só isso, brincando. Eu estava pondo a caixa no lugar para a princesa. Ela é muito boa para mim, muito boa. Eu queria ajudá-la. A princesa é uma pessoa maravilhosa. Eu a amo, ela é tão boa para mim...
Ele pôs um dedo sobre os lábios dela.
— Já entendi, minha filha. Então você é a companheira de brinquedos da princesa?
Ela inclinou a cabeça e assentiu ansiosa.
— Rachel.
O sorriso dele ficou mais largo.
— Um belo nome. Muito prazer em conhecer você, Rachel. Desculpa se a assustei. Eu vim apenas verificar a caixa da rainha.
Nunca ninguém tinha dito que seu nome era bonito. Mas o mago fechara a porta pesada.
— Não vai me matar? Nem me transformar em uma coisa horrível?
— Claro que não — ele riu. Virou a cabeça, olhando para ela com um olho fechado. — O que são essas marcas vermelhas no seu rosto?
Ela não respondeu, assustada demais para contar. Lenta e cuidadosamente ele estendeu o braço e tocou num lado do rosto dela, depois no outro. Rachel arregalou os olhos. O ardor da bofetada passou por completo.
— Melhor?
Ela fez que sim com a cabeça. Os olhos dele eram muito grandes, vistos assim de perto. Rachel sentiu que devia contar e contou.
— A princesa bate em mim — admitiu, envergonhada.
— Verdade? Então ela não é tão boa assim?
Rachel balançou a cabeça, olhando para o chão. Então o mago fez uma coisa que a deixou atônica. Ele a abraçou brevemente. Rachel ficou rígida por um momento, depois passou a mão em volta do pescoço dele, retribuindo o abraço. As suíças longas e brancas fizeram cócegas no lado do rosto dela e no pescoço, mas mesmo assim ela gostou.
Ele olhou tristemente nos olhos dela.
— Eu sinto muito, minha filha. A princesa e a rainha podem ser muito cruéis.
A voz dele é tão bonita, ela pensou, é como a de Brophy. Um largo sorriso curvou os lábios dele, sob o nariz adunco.
— Vamos fazer uma coisa. Tenho algo aqui que pode ajudar. — Enfiou a mão magra num bolso do manto e olhou para cima quando seus dedos tocaram no que estava procurando. Rachel arregalou os olhos quando viu a boneca com cabelo curto, louro como o dela. Ele bateu de leve na barriga da boneca. — Esta é uma boneca problema.
— Boneca problema? — murmurou ela.
— Sim. — Ela viu as rugas profundas nos cantos do sorriso dele. — Quando você tem problemas, você conta à boneca e ela os leva embora. Ela tem magia. Tome, experimente.
Rachel mal podia respirar quando estendeu as duas mãos e pegou a boneca cuidadosamente, ela a apertou contra o peito, abraçando com força. Então, hesitante e vagarosamente, ela a afastou e examinou o rosto. Seus olhos se encheram de lágrimas.
— A princesa Violeta diz que sou feia — disse à boneca.
A boneca sorriu. Rachel abriu a boca.
— Eu amo você — disse a boneca com voz fina.
Surpresa, Rachel deixou escapar uma exclamação abafada, depois riu feliz e abraçou a boneca com força outra vez. Rachel riu muito, balançando o corpo para frente e para trás, com a boneca apertada contra o peito.
Então, ela lembrou. Estendeu a boneca para o mágico e virou o rosto.
— Não tenho permissão para ter uma boneca. A princesa disse. Ela a jogará no fogo, foi o que ela disse. Se eu tivesse uma boneca, ela a jogaria no fogo. — Rachel mal podia falar, com um nó na garganta.
— Bem, deixe-me pensar — o mago passou a mão na barba. — Onde você dorme?
— Quase sempre no quarto da princesa. Ela me tranca na caixa à noite. Eu acho que é uma maldade. Às vezes, quando ela diz que eu fui má, ela me faz sair do castelo à noite e tenho de dormir lá fora. Ela acha isso uma maldade muito maior, mas eu gosto porque tenho um lugar secreto para dormir num pinheiro amigo.
“Pinheiros caprichosos não têm fechaduras, o senhor sabe. Posso ir ao banheiro quando preciso. Às vezes faz muito frio, mas tenho um monte de palha para me cobrir. Tenho de voltar de manhã, antes que ela mande alguém me procurar e eles descubram meu lugar secreto. Eu não quero que eles descubram. Contariam à princesa e ela não me mandaria mais para fora.”
O mago segurou o rosto dela ternamente, com as duas mãos. Isso a fez se sentir especial.
— Minha filha — murmurou ele —, penso que talvez eu tenha parte da culpa. — Os olhos dele estavam cheios de lágrimas; Rachel não sabia que os magos tinham lágrimas. Então o sorriso voltou e ele levantou um dedo.— Tenho uma idéia. Você conhece o jardim, o jardim formal?
— Passo por ele para ir ao meu lugar secreto, quando ela me põe para fora à noite. A princesa me obriga a sair pelo muro que fica perto do portão do jardim. Ela receia que alguém me abrigue durante a noite. Ela diz que não devo ir à cidade nem ao campo. Devo ir para o bosque, como castigo.
— Muito bem, no caminho central do jardim, há urnas pequenas dos dois lados, com flores amarelas.— Rachel sabia quais eram.— Vou esconder sua boneca na terceira urna a direita. Só você.— Ele guardou a boneca cuidadosamente no bolso do manto. — Na próxima vez em que você for posta para fora à noite, vá até lá que encontrará sua boneca. Então pode guardá-la no seu lugar secreto, onde ninguém pode encontrá-la ou tira-la de você.
“Darei também a você um acendedor de fogo mágico. Basta juntar alguns gravetos numa pilha pequena com pedras em volta, encostar o acendedor mágico neles e dizer: ‘Acenda para mim’, que os gravetos se acendem e você não sentirá frio.”
Rachel o abraço tanto, que ele teve de bater de leve nas costas dela, para que parasse.
— Muito obrigada, mago Giller.
— Pode me chamar de Giller quando estivermos sozinhos; é como me chamam meus bons amigos.
— Muito obrigada pela boneca, Giller. Ninguém jamais me deu alguma coisa antes. Vou cuidar muito bem dela. Tenho de ir agora. Preciso ralhar com os cozinheiros, pela princesa. Depois tenho de me sentar e ver a princesa comer. — Ela sorriu. — Depois tenho de pensar em fazer alguma coisa má, para que a princesa me ponha para fora esta noite.
O mago sorriu e seus olhos brilharam. Despenteou o cabelo dela com a mão grande. Giller a ajudou a abrir a porta pesada, que trancou, e deu a chave a ela.
— Eu gostaria tanto de que pudéssemos conversar outra vez! — ela disse, olhando para ele.
O mago sorriu.
— Conversaremos Rachel, conversaremos. Tenho certeza.
Acenando para ele, ela correu pelo corredor longo e vazio, muito mais feliz do que jamais se sentira desde que foi morar no palácio. Era um caminho longo, muito longo, até a cozinha, descendo escadas, passando por salões com tapetes e quadros nas paredes, por salas com janelas altas com cortinas douradas e vermelhas e cadeiras de veludo vermelho com pernas douradas, longas tapeçarias com figuras de homens a cavalo, lutando, passando por guardas imóveis como pedras na frente das portas enfeitadas ou marchando de dois em dois e por criados que corriam para todos os lados carregando roupas de cama e mesa, bandejas, vassouras, esfregões e baldes cheios de água com sabão.
Os guardas e os criados pareciam não ver Rachel, embora ela estivesse correndo. Sabiam que ela era a companheira de brincadeiras da princesa Violeta e muitas vezes a viam correndo pelo castelo, cumprindo as ordens da princesa.
Estava sem fôlego quando chegou a cozinha, cheia de vapor, fumaça e barulho. Os ajudantes corriam carregando sacos pesados, panelas grandes ou bandejas quentes, tentando não se chocar uns com os outros. As pessoas picavam coisas que ela não podia ver nas mesas altas e nos cepos enormes. Panelas tiniam, cozinheiros gritavam ordens, ajudantes tiravam frigideiras e tigelas de metal dos ganchos e dependuravam outras. Havia um constante raspar de colheres mexendo e batendo, o silvo agudo do óleo com alho e manteiga, cebolas e temperos nas panelas quentes; todos pareciam gritar ao mesmo tempo. Aquele lugar caótico cheirava tão bem que Rachel ficava atordoada.
Puxou a manga de um dos dois cozinheiros-chefes, tentando dizer a ele que tinha um recado da princesa, mas ele discutia com outro cozinheiro e mandou que ela fosse embora até terminar a discussão. Ela se sentou num banquinho ao lado dos fornos, encostada nos tijolos. A cozinha cheirava tão bem e ela estava com tanta fome...Mas sabia que ia ter problemas se pedisse comida.
Os cozinheiros-chefes estavam ao lado de uma grande vasilha de barro agitando os braços e gritando um com o outro. De repente, a vasilha caiu com um baque surdo, partiu-se ao meio e um liquido marrom inundou o chão. Rachel subiu no banco para não molhar os pés. Os cozinheiros ficaram imóveis, quase tão brancos quanto sua roupa.
— O que vamos fazer agora? — perguntou o mais baixo. — Não temos mais os ingredientes que o Pai Rahl mandou.
— Espere um pouco — disse o mais alto, levando a mão a testa —, deixe-me pensar. Apertou o rosto com as mãos, depois levantou os braços.
— Tudo bem. Tudo bem. Tive uma idéia. Pegue outra vasilha e fique de boca fechada. Talvez possamos salvar nossas cabeças. Apanhe outros ingredientes.
— Quais ingredientes? — gritou o mais baixo, muito vermelho.
O cozinheiro alto se inclinou para ele.
— Ingredientes marrons.
Rachel os viu correrem de um lado para o outro, pegando coisas, derramando líquidos, acrescentando ingredientes, mexendo, provando. Finalmente os dois sorriram.
— Tudo bem, tudo bem, vai dar certo, acho. Deixe que eu fale — disse o mais alto.
Rachel desceu do banquinho, foi nas pontas dos pés até o cozinheiro e puxou a manda dele.
— Você! Ainda está aqui? O que você quer? — disse ele, irritado.
— A princesa Violeta mandou dizer para não esturricar o bife outra vez, senão ela faz a rainha mandar aqueles homens baterem em você. — Olhou para o chão. — Ela me mandou dizer isso.
O homem olhou para ela por algum tempo, depois se voltou para o cozinheiro mais baixo, sacudindo o dedo.
— Eu disse! Eu disse para você! Desta vez tire o bife do centro e não misture os pratos, do contrario perdemos nossas cabeças. E você não viu nada disso. — disse ele para Rachel, indicando a vasilha de barro com um movimento circular do dedo.
— Cozinhando? Não quer que eu diga a ninguém que o vi cozinhando? Tudo bem — disse ela um pouco confusa e saiu nas pontas dos pés pelo chão molhado. — Não vou dizer a ninguém, prometo. Não gosto de ver gente sendo machucada por aqueles homens com chicotes. Não vou dizer nada.
— Espere um pouco — chamou ele — Rachel, não é isso?
Ela se virou para trás e fez sim com a cabeça.
— Volte aqui.
Ela não queria, mas voltou nas pontas dos pés. Ele apanhou uma faca enorme que a principio a assustou, se virou para um prato na mesa atrás dele e cortou um pedaço suculento de carne. Rachel nunca tinha visto nada igual, com gordura e cartilagem em volta, pelo menos não tão de perto. Era como a carne que a rainha e a princesa comiam. O cozinheiro colocou a carne na mão dela.
— Desculpe-me por ter gritado com você, Rachel. Sente-se naquele banquinho, coma isso e depois trate de se lavar muito bem para que ninguém saiba. Está bem?
Rachel correu para o banquinho com o prêmio, esquecendo de andar nas pontas dos pés. Era a coisa melhor, mais deliciosa que jamais tinha comido. Tentou comer devagar enquanto olhava toda aquela gente correndo, batendo panelas e carregando coisas, mas não conseguiu. O suco da carne lhe escorria pelos braços e pingava dos cotovelos.
Quando terminou, o cozinheiro baixo enxugou suas mãos, braços e rosto com uma toalha e pôs na mão dela, como o outro cozinheiro tinha feito com a carne, uma fatia de torta de limão. Disse que ele mesmo tinha feito e queria saber se estava boa. Ela disse, com toda a sinceridade, que era a coisa mais gostosa que já tinha comido. Ele sorriu.
Aquele fora o melhor dia de que se lembrava. Duas coisas boas no mesmo dia: a boneca problema e agora a comida. Rachel se sentiu uma rainha.
Mais tarde, sentada na grande sala de jantar na sua pequena cadeira atrás da princesa, foi a primeira vez em toda a sua vida em que seu estomago não roncou de fome enquanto as pessoas importantes comiam. A mesa principal onde estavam ficava três degraus mais alta do que as outras, de modo que, se ela se sentasse ereta, podia ver toda a sala mesmo da sua cadeirinha. Os criados iam de um lado para o outro servindo, tirando pratos ainda com comida, servindo vinho e trocando bandejas quase vazias por outras cheias, que chegavam da cozinha.
Ela olhava para todas as belas senhoras e para os cavalheiros vestidos com roupas finas e casacos com galões coloridos, sentados às longas mesas, comendo nos pratos elegantes e, pela primeira vez, ela sabia qual era o gosto da comida. Ainda não compreendia por que precisavam de tantos garfos e colheres. Certa vez, ela perguntou à princesa por que havia tantos garfos e colheres e a princesa disse que era uma coisa que uma ninguém como Rachel jamais precisava saber.
De modo geral, Rachel era ignorada nos banquetes. A princesa só virava para trás e olhava para ela uma vez ou outra. Rachel estava ali só porque era a companheira de folguedos da princesa Violeta, só por uma questão de importância, ela achava. A rainha também tinha pessoas atrás dela, de pé ou sentadas, quando comia. A rainha dizia que Rachel servia para a princesa praticar a arte da liderança.
Ela se inclinou para a frente e murmurou:
— Seu bife grelhado está com bastante suco, princesa Violeta? Eu disse aos cozinheiros que era maldade dar a você carne ruim e que você disse para nunca mais fazerem isso.
A princesa Violeta olhou para trás, com o molho pingando do queixo.
— Está suficientemente bom para que eles não sejam chicoteados. E, você tem razão, eles não deviam ser tão malvados comigo. Está na hora de aprenderem.
A rainha Milena estava, como sempre, com seu cãozinho no braço. Ele empurrava o braço gordo dela com as patas pequeninas e magras, deixando-lhe marcas na pele. A rainha dava a ele pedaços de carne melhores do que Rachel jamais tinha comido. Antes desse dia, é claro, ela pensou com um sorriso.
Rachel não gostava do cachorrinho. Ele latia muito e, as vezes, quando a rainha o punha no chão, corria para ela e mordia sua perna com os dentinhos afiados e Rachel não ousava dizer nada. Quando o cão a mordia, a rainha sempre dizia para ele ter cuidado para não se machucar. Sempre falava com o cão com uma voz engraçada, aguda mas doce.
Enquanto a rainha e seus ministros falavam sobre uma espécie de aliança, Rachel balançava as pernas, batia um joelho no outro, pensando na boneca problema. O mago estava atrás e à direita da rainha, oferecendo conselhos quando eram pedidos. Ele estava imponente com seu manto prateado. Rachel nunca prestara atenção a Giller antes, ele era apenas uma das pessoas importantes da rainha, sempre com ela, como o cãozinho. Agora, olhando para ele, o mago era a pessoa mais bondosa que já tinha visto.
Ele a ignorou durante todo o jantar; nem uma vez a olhou. Rachel achou que ele não queria chamar atenção para ela, o que podia enfurecer a princesa. Era uma boa idéia. A princesa Violeta ficaria zangada se soubesse que Giller tinha dito que o nome de Rachel era bonito.
O cabelo comprido da rainha chegava até as costas da cadeira elegante, balançando as ondas quando suas pessoas importantes falavam com ela e ela balançava a cabeça.
Quando terminou o jantar, os criados entraram com um carrinho com a vasilha de barro em que Rachel tinha visto os cozinheiros preparando o liquido, que foi servido em taças com uma concha e levado aos convidados. Todos pareciam considerar a bebida importante.
A rainha se levantou, segurando sua taça, com o cão no outro braço.
— Senhores e senhoras, presenteio todos com a bebida do esclarecimento, para que possamos ver a verdade. É um artigo muito precioso. A poucos é oferecida a oportunidade do esclarecimento. Eu tenho tomado muitas vezes, é claro, para ver a verdade, ao modo do Pai Rahl, para conduzir meu povo ao bem comum. Bebam.
Alguns pareceram não querer beber, mas apenas por um minuto. Então, todos tomaram o líquido marrom. A rainha bebeu depois de ver que todos tinham bebido. Então se sentou, com uma expressão estranha. Inclinou-se para um criado e murmurou alguma coisa. Rachel começou a ficar preocupada; a rainha estava franzindo a testa. Quando a rainha franzia a testa, pessoas eram decapitadas.
O cozinheiro alto apareceu sorridente. Levantando um dedo, a rainha o chamou para mais perto. A testa dele estava molhada de suor. Rachel achou que era por causa do calor da cozinha. Ela estava sentada atrás da princesa, à direita da rainha, e podia ouvir o que eles diziam.
— Isto não tem o mesmo gosto — disse ela com sua voz cruel. Nem sempre ela usava esse tom de voz, mas quando usava todos tinham medo.
— Ah, bem, vossa majestade, a senhora compreende, na verdade, bem, não é. Quero dizer, o gosto não é o mesmo. — Ela ergueu as sobrancelhas e ele começou a falar mais depressa. — A senhora compreende, bem, na verdade, bem, eu sabia que este jantar era importante e não ia querer que nada desse errado. A senhora compreende. Não ia querer que alguém não fosse esclarecido, que não visse seu brilhantismo em tudo isto, bem, em todo esse negócio, por isso, a senhora compreende, bem — ele se inclinou para ela e abaixou a voz para falar confidencialmente —, portanto, tomei a liberdade de fazer a bebida do esclarecimento mais forte. Muito mais forte, na verdade, a senhora compreende. Desse modo, ninguém deixaria de ver a verdade em tudo que a senhora diz. Garanto, vossa majestade, é tão forte, que ninguém deixará de ser esclarecido.
Ele se inclinou mais para ela e baixou mais a voz.
— Na verdade, vossa majestade, é tão forte que aquele que não for esclarecido e se opuser à senhora depois de beber, bem, só pode ser um traidor.
— É mesmo? — murmurou a rainha surpresa. — Bem, eu achei que estava mais forte.
— Muito perceptivo da sua parte, vossa majestade, muito perceptivo. Vossa majestade tem o paladar muito apurado. Eu sabia que não podia enganá-la.
— Certamente. Mas tem certeza de que não está forte demais? Já posso sentir o esclarecimento tomando conta de mim.
— Vossa majestade — ele olhou para os convidados —, quando se trata do vosso reino, tive medo de fazer fraca demais. — Ele levantou as sobrancelhas. — Para que nenhum traidor passe despercebido.
Finalmente, ela sorriu.
— Você é um cozinheiro sábio e leal. A partir de agora, você é o encarregado exclusivo da bebida do esclarecimento.
— Muito obrigado, vossa majestade.
Ele fez uma porção de curvaturas e se retirou. Rachel ficou contente por ele não ter tido problemas.
— Senhores e senhoras, um oferecimento especial. Esta noite mandei o cozinheiro preparar a bebida do esclarecimento extra forte. — Ela estalou os dedos. — Tragam o tolo.
Os guardas entraram com um homem e o fizeram ficar no centro da sala, bem na frente da rainha, com todas as mesas em volta. Ele era grande e forte mas estava acorrentado. A rainha se inclinou para a frente.
— Nós todos aqui concordamos em que uma aliança com nosso aliado Darken Rahl trará grandes benefícios para todo o nosso povo, de que nós todos tiraremos proveito, juntos. Que os povos menores, os trabalhadores, os camponeses serão os mais beneficiados. Que serão libertados da opressão daqueles que só os querem explorar, para beneficio próprio, por ouro, por ganância. Que a partir de agora nós todos trabalharemos para o bem comum, não por objetivos pessoais. — A rainha franziu a testa. — Por favor, diga a todos esses senhores e senhoras ignorantes — indicou toda a sala com o braço — do quanto você é mais inteligente do que eles e por que terá permissão de trabalhar só para você mesmo, em vez de para todos os seus semelhantes.
O homem estava furioso. Rachel desejou que ele mudasse de atitude antes de se meter em encrenca.
— O bem comum — disse ele, indicando também a sala com o braço erguido como a rainha, só que suas mãos estavam acorrentadas —, é isto o bem comum? Todos vocês, nobres, parecem estar se deliciando com a boa comida, o calor do fogo. Meus filhos vão dormir com fome esta noite porque grande parte da colheita foi tomada de nós, pelo bem comum, por aqueles que resolveram não trabalhar, mas comer o fruto do meu trabalho.
Todos riram.
— E você nega comida a eles, simplesmente porque terão a boa fortuna de ver suas colheitas melhorarem? — perguntou a rainha. — Você é um homem egoísta.
— As colheitas só melhorarão se eles primeiro plantarem as sementes.
— Então você se importa tão pouco com seus semelhantes que os condena à fome?
— Minha família passa fome! Para alimentar outros, para alimentar o exército de Rahl. Para alimentar senhores e senhoras da classe alta que não fazem nada a não ser discutir e resolver o que fazer com minha colheita, como dividir o produto do meu labor entre outros.
Rachel queria que o homem ficasse quieto. Ele ia ter a cabeça cortada. Mas os convidados e a rainha achavam graça.
— E minha família sente frio — disse ele mais zangado ainda —, porque não podemos acender fogo. — Apontou para algumas lareiras. — Mas aqui há fogo para aquecer as pessoas que me dizem que agora somos iguais, que não haverá mais ninguém melhor do que outros e por isso não me permitem guardar o que é meu. Não é estranho que as pessoas que dizem que seremos todos iguais com a aliança com Darken Rahl e que não trabalham, a não ser para dividir o fruto do meu labor, estejam todas aquecidas e com boas roupas? Mas minha família passa fome e sente frio.
Todos riram. Rachel não riu. Ela sabia o que era ter fome e sentir frio.
— Senhoras e senhores — disse a rainha, com um riso desdenhoso —, eu não lhes prometi uma verdadeira diversão? A bebida do esclarecimento nos faz ver o quanto esse homem é tolo e egoísta. Pensem um pouco, ele acredita realmente que é direito ganhar dinheiro enquanto os outros morrem de fome. Ele põe seus ganhos acima da vida dos seus semelhantes. Por sua ganância, ele matará os que têm fome.
Todos riram com a rainha.
A rainha bateu com a mão na mesa. Pratos saltaram e alguns copos caíram, manchando de vermelho a toalha branca. Todos ficaram quietos, exceto o pequeno cão, que latiu para o homem. — Esse é o tipo de ganância que acabará quando o Exército Popular da Paz vier nos ajudar a dar cabo dessas sanguessugas humanas que sugam nosso sangue! — o rosto redondo da rainha estava tão vermelho quanto as manchas de vinho na toalha.
Todos aplaudiram por longo tempo. A rainha se sentou sorrindo, finalmente.
O rosto do homem estava vermelho como o dela.
— Não é estranho que agora, que eu e todos os fazendeiros, todos os operários das cidades trabalhamos para o bem comum, não haja suprimentos ou comida para todos, como antes?
A rainha se levantou de um salto.
— É claro que não — gritou ela. — Por causa de pessoas gananciosas como você! — respirou profundamente varias vezes até diminuir a vermelhidão do rosto e então se voltou para a princesa.
— Violeta, minha querida, mais cedo ou mais tarde você terá de aprender assuntos de Estado. Deve aprender a servir ao bem do publico para todo o nosso povo. Por isso, ponho o assunto em suas mãos, para que você adquira experiência. O que você faria com esse traidor do nosso povo? O que você escolher, querida, será feito.
A princesa Violeta ficou de pé. Sorrindo, olhou em volta.
— Eu digo — ela se inclinou um pouco para a frente e olhou para o homem grande acorrentado. — Eu digo: cortem a cabeça dele!
Todos aplaudiram outra vez. Os guardas arrastaram o homem, que saiu gritando nomes que Rachel não entendeu. Ela ficou triste por ele e por sua família.
Depois de conversar por mais algum tempo, todos decidiram assistir à decapitação do homem. Quando a rainha saiu e princesa Violeta disse a ela que estava na hora de assistir ao espetáculo, Rachel se levantou com os punhos fechados nos dois lados do corpo.
— Você é mesmo malvada. Você é mesmo malvada dizendo para cortar a cabeça do homem!
A princesa pôs as mãos na cintura.
— Sou mesmo? Muito bem, pos então você pode passar a noite lá fora!
— Mas, princesa Violeta, está fazendo tanto frio!
— Muito bem, enquanto estiver congelando, pode pensar na sua ousadia em falar comigo nesse tom! E, para se lembrar da próxima vez, vai ficar lá fora o dia inteiro amanhã também! — o rosto dela estava crispado de raiva, como o da rainha ficava algumas vezes. — Isso lhe ensinará a ter mais respeito.
Rachel começou a dizer alguma coisa, mas se lembrou da boneca problema e de que ela mesmo queria ficar fora do castelo. A princesa apontou para a porta em arco.
— Vá. Agora mesmo, sem jantar. — Bateu o pé no chão.
Rachel olhou para o chão, fingindo que estava triste.
— Sim, princesa Violeta — disse ela, fazendo uma cortesia.
Saiu com a cabeça baixa e atravessou o grande hall de entrada com tapeçarias nas paredes. Ela gostava de olhar as cenas das tapeçarias, mas dessa vez não levantou os olhos, para o caso de a princesa notar que ela estava feliz por ter sido posta para fora. Guardas com peitorais brilhantes de metal, espadas e lanças abriram os pesados portões de ferro para ela, sem dizer nada. Eles nunca diziam coisa alguma quando a deixavam sair ou entrar. Sabiam que ela era a companheira de brincadeiras da princesa, uma ninguém.
Assim que saiu, Rachel tentou não andar muito depressa, para o caso de alguém estar olhando. A pedra era fria como gelo debaixo dos seus pés. Cautelosamente, aquecendo as mãos debaixo das axilas, ela desceu os largos degraus, um de cada vez, para não cair. Finalmente chegou ao caminho de lajes de pedra. Mais guardas patrulhavam o lado de fora do castelo, mas eles a ignoraram. Eles a viam sempre. Quanto mais perto chegava do jardim, mais depressa ela andava.
Rachel diminuiu o passo na passagem principal do jardim e esperou que os guardas estivessem de costas. A boneca problema estava onde Giller dissera que estaria. Pondo o acendedor de fogo no bolso, abraçou a boneca com força e depois a escondeu nas costas. Murmurava para ela que ficasse quieta. Mal podia esperar para chegar ao pinheiro amigo e contar à boneca a maldade da princesa mandando cortar a cabeça do homem. No escuro, ela olhou em volta.
Não havia pessoa alguma por perto, ninguém para ver Rachel falando com a boneca. No muro externo, mais homens patrulhavam os caminhos altos e os guardas da rainha estavam no portão, rígidos, com suas armaduras. Usavam uniformes elegantes por cima da armadura, túnicas vermelhas sem mangas com o brasão da rainha, uma cabeça de lobo negro no centro. Quando levantaram a pesada barra de ferro e dois deles abriram a porta pesada que rangia, nem olharam para ver o que ela levava escondido nas costas.
Quando Rachel ouviu o baque da barra de ferro se fechando, se virou para trás, para as costas dos guardas, e só então sorriu e começou a correr; era um longo caminho.
Em uma torre alta, olhos escuros vigiavam. Viram quando ela passou pela guarda pesada sem despertar a menor suspeita ou interesse, como um suspiro entre os dentes, como passou pelo portão do jardim que já havia impedido a entrada de exércitos e de traidores, viram quando ela cruzou a ponte onde centenas de inimigos tinham morrido em combate, sem vencer a batalha, viram quando ela correu pelo campo, descalça, desarmada, inocente e entrou na floresta. Para seu lugar secreto.
Furioso, Zedd bateu com a mão aberta na placa fria de metal. A porta de pedra maciça se fechou lentamente. Ele teve de passar por cima dos corpos dos guardas de D’Hara para chegar ao muro baixo. Seus dedos tocaram a pedra lisa e familiar quando ele se inclinou para a frente, olhando para a cidade adormecida lá embaixo.
Daquele muro alto, no sopé da montanha, a cidade parecia bastante calma. Mas ele já tinha se esgueirado pelas ruas escuras e visto os soldados por toda a parte. Soldados que estavam na cidade ao custo de muitas vidas dos dois lados.
Mas isso não era o pior.
Darken Rahl devia ter estado ali. Zedd bateu com a mão fechada na pedra. Só Darken Rahl podia ter feito aquilo.
A teia intrincada dos escudos devia ter resistido, mas não resistiu. Zedd estiveram fora muitos anos. Fora um tolo.
— Nada é fácil — murmurou o mago.
— Kahlan — perguntou Richard —, lembra quando estávamos com o Povo da Lama e aquele homem disse que Rahl tinha aparecido montado em um demônio vermelho? Você sabe do que ele estava falando?
Depois de viajaram três dias na planície com Savidlin e seus caçadores, eles se despediram com a promessa nos olhos tristes de fazer o possível para encontrar Siddin e havia uma semana subiam para as terras altas, na Rang’Shada, a vasta cordilheira rochosa que, segundo Kahlan, estendia-se para o nordeste, atravessando a parte detrás de Midlands, e abrigava em suas montanhas o lugar remoto chamado Agaden Reach. Um lugar, ela disse, circundando por montes escarpados, como uma coroa de espinhos destinada a afastar estranhos.
— Você não sabe? — perguntou Kahlan surpresa.
Richard balançou a cabeça e ela se sentou em uma rocha para tomar fôlego. Richard tirou a mochila dos ombros com um gemido cansado e se sentou pesadamente no chão, encostado em uma pequena rocha, e estendeu os braços para trás e para cima, para descansar os músculos. Kahlan estava diferente, ele pensou, agora sem a lama negra e branca no rosto. Richard tinha se acostumado com o disfarce nos três dias que levaram para deixar as terras do Povo da Lama.
— Então, o que era? — perguntou ele outra vez.
— Um dragão.
— Um dragão! Existem dragões em Midlands? Nunca pensei que dragões fossem criaturas reais.
— Pois são — ela olhou para ele, intrigada. — Pensei que você soubesse. — Ele apenas balançou a cabeça. — Bem, acho que não podia saber, uma vez que na há magia em Westland. Dragões têm magia. Acredito que seja assim que eles voa, com a ajuda da magia.
— Sempre pensei que fossem apenas lendas, velhas histórias. — Jogou uma pedra para longe e a viu ricochetear na rocha.
— Velhas histórias de coisas lembradas, talvez. Seja como for, eles são bem reais. — Com o polegar, levantou o cabelo atrás da cabeça, para refrescar, e fechou os olhos. — Há várias espécies. Cinzentos, verdes, vermelhos e de algumas outras cores, menos comuns. Os cinzentos são menores e tímidos. Os verdes são muito maiores. O inteligente e o maior de todos é o vermelho. Algumas pessoas em Midlands têm os cinzentos como animais de estimação e para caçar. Ninguém tem em casa os verdes, são muito burros, tem mau gênio e podem ser muito perigosos. — Abriu os olhos, inclinou a cabeça e olhou para ele. — Os vermelhos são completamente diferentes, eles fritam e comem você num piscar de olhos. E são inteligentes.
— Eles comem gente! — Richard apertou os olhos com as palmas das mãos e gemeu.
— Só quando estão com muita fome ou muita raiva. Nós não seriamos uma boa refeição para eles. — Quando Richard tirou as mãos dos olhos, viu os olhos verdes fixos nele. — O que não compreendo é o que Rahl estava fazendo com um dragão.
Richard se lembrou da coisa vermelha no céu, que voou por cima dele na parte alta da Floresta Vem, um pouco antes de ter encontrado Kahlan. Jogou outra pedra pequena na rocha. — Deve ser assim que ele cobre tanto território.
Kahlan balançou a cabeça lentamente.
— Não. Estou dizendo que não compreendo por que um dragão vermelho se submeteria a isso. Eles são extremamente independentes, não tomam partido nos assuntos dos humanos, na verdade pouco se importam. Preferem morrer a ser subjugados. E lutam ferozmente para evitar isso, acredite. Como eu disse, eles tem magia e podem opor boa resistência a qualquer pessoa de D’Hara, pelo ao menos durante algum tempo. Mesmo que Rahl o ameaçasse de morte com alguma das suas mágicas, ele não se importaria, os dragões vermelhos preferem morrer a ser dominados.
“Simplesmente lutaria ate matar o adversário ou ser morto. — Ela se inclinou um pouco para ele e abaixou a voz. — A idéia de um dragão voando com Rahl nas costas é muito estranha. Não posso imaginar qualquer pessoa dominando um dragão vermelho.”
Ela olhou para ele por um momento, depois endireitou o corpo e começou a tirar o líquen de uma rocha.
— Esses dragões são uma ameaça para nós? — Richard achou idiota perguntar se um dragão era perigoso, mas perguntou.
— Provavelmente não. Muitas vezes vi dragões vermelhos de perto. Certa vez, eu estava andando numa estrada e um mergulhou no campo ao meu lado. E pegou duas vacas. Levou embora cada uma em uma garra. Se encontrarmos um vermelho e ele estiver mal-humorado, suponho que pode ser um problema, mas é pouco provável.
— Já encontramos um vermelho — lembrou ele em voz baixa — e foi um grande problema.
Kahlan não respondeu. Por sua expressão, a lembrança obviamente a torturava tanto quanto a ele.
— Ora, ai estão vocês! — exclamou uma voz estranha.
Os dois se sobressaltaram. Richard levantou-se rapidamente com a mão na espada. Kahlan estava meio agachada, pronta para o que desse e viesse.
— Sentem-se, sentem-se. — O velho sacudiu as duas mãos e caminhou para eles. — Não quis assustar vocês. — A barba branca balançava quando ele ria. — É só o Velho John, que veio procurar vocês. Sentem-se, sentem-se.
A barriga dele redonda e mole tremia debaixo do manto marrom-escuro quando ele ria. O cabelo branco era repartido com uma linha retas no meio da cabeça, sobrancelhas longas e crespas e pálpebras caídas protegiam os olhos castanhos. O rosto alegre e redondo se enrugou com um largo sorriso enquanto ele esperava. Kahlan cautelosamente voltou a se sentar. Richard se sentou na rocha na qual estava apenas encostado.
— Como assim, estava nos procurando? — perguntou em tom não completamente amistoso.
— Meu velho amigo, o mago, me mandou procurar vocês.
Richard levantou de um pulo.
— Zedd! Zedd o mandou?
O Velho John segurou a barriga para rir mais.
— Quantos velhos magos você conhece, meu rapaz? É claro que foi o velho Zedd. — Puxou de leve a barba, arrancou alguns fios e olhou para eles com um olhar fechado. — Ele tinha negócios urgentes para tratar, mas precisa de vocês agora. Por isso me pediu para vir chamar vocês. Como eu não tinha nada melhor para fazer, eu disse sim. Ele me disse onde poderia encontrá-los. Ao que parece, ele estava certo, como sempre.
Richard sorriu.
— Muito bem, como vai ele? Onde ele está e para que precisa de nós?
O Velho John puxou a barba com mais força, balançando a cabeça e sorrindo.
— Ele me disse, disse-me que você faria uma porção de perguntas. Ele está ótimo. O negocio é que não sei para que ele precisa de vocês. Quando o velho Zedd está irritado, você não pergunta nada, apenas faz o que ele pede. Foi o que fiz. E aqui estou.
— Onde ele está? Está muito longe? — Richard estava feliz porque ia ver Zedd outra vez.
O Velho John coçou o queixo e se inclinou um pouco para frente.
— Depende. Por quanto tempo você pretende ficar parado ai, batendo papo?
Richard sorriu e pegou a mochila, o cansaço esquecido. Kahlan deu um dos seus sorrisos especiais com os lábios fechado quando começaram a subir uma trilha rochosa, seguindo o Velho John. Richard deixou Kahlan ir na frente, enquanto ele vigiava o bosque. Kahlan tinha dito que não estavam longe da casa da feiticeira.
Só agora Richard percebia o quanto estava tenso, preocupado com o velho amigo. Sabia que Adie tomaria conta dele muito bem, mas ela não prometera que Zedd ficaria bom. Richard esperava que isso significasse que Chase estava bem. Estava mais que entusiasmado com a idéia de ver Zedd outra vez. Tinha tanta coisa para contar, para perguntar... Sua mente estava a mil.
— Então ele está bem? — perguntou Richard ao Velho John, que ia a frente dos dois. — Ele sarou! Não emagreceu muito, emagreceu? Zedd não se pode dar ao luxo de perder peso.
— Não — O Velho John riu sem virar para trás —, ele está o mesmo de sempre.
— Bem, espero que ele não tenha acabado com a sua comida.
— Não se preocupe, meu rapaz. Quanto um velho mago magérrimo pode comer?
Richard sorriu. Zedd podia estar bem, mas não devia estar curado de todo, do contrario não teria sobrado nem uma migalha de comida do Velho John.
Depois de algumas horas, durante as quais se apressaram para acompanhar o passo do Velho John, o bosque ficou mais fechado, mais escuro, as arvores maiores e mais juntas. A trilha era rochosa, difícil, principalmente naquele passo acelerado. Vozes de pássaros estranhos ecoavam na escuridão. Chegaram a uma encruzilhada. O Velho John entrou na trilha da esquerda, sem hesitar. Kahlan foi atrás dele. Richard parou, preocupado com alguma coisa, mas não conseguia descobrir o que era. Sempre que tentava lembrar, seu pensamento voltava para Zedd. Kahlan ouviu quando ele parou, se virou para trás e foi até ele.
— Qual o caminho para a feiticeira? — perguntou Richard.
— Para a esquerda — respondeu Kahlan, com alivio na voz, porque o velho tinha entrado à direita. Com um dedo debaixo da alça da mochila, ela apontou com o queixo para varias escarpas que ele via por cima dos galhos mais altos das árvores. — Aquelas são algumas das montanhas que circulam Agaden Reach. — Os picos cobertos de neve brilhavam no ar fino da montanha. Richard nunca tinha visto cordilheiras mais inóspitas. Um anel de espinhos.
Ele olhou para a trilha da esquerda. Parecia muito usada e desaparecia rapidamente na floresta densa. O Velho John parou e se virou com as mãos na cintura.
— Vocês vem ou não?
— Você acha que Zedd pode esperar?
O Velho John deu de ombros e puxou a barba.
— Não sei. Mas não me teria mandado se não fosse importante. Você resolve, meu rapaz. Mas Zedd é assim.
Richard desejou não ter de tomar aquela decisão. Desejou saber que Zedd podia esperar. Desejou saber o que Zedd queria. Pare de desejar e comece a pensar, ele ordenou a si mesmo.
Olhou para o velho homem.
— Quanto falta?
O Velho John olhou através das árvores para o sol do fim da tarde, puxando a barba.
— Se não pararmos cedo e não dormirmos até amanha, chegaremos mais ou menos ao meio-dia amanha. — Olhou para Richard esperando.
Kahlan não disse nada, mas Richard sabia o que ela estava pensando. Por ela, nem chegariam perto de Shota e, mesmo que fosse primeiro aonde Zedd estava, que não era tão longe, poderiam voltar, se preciso. E talvez Zedd até soubesse onde estava a ultima caixa e então não precisariam ir a Agaden Reach. Tinha mais sentido ir ao encontro de Zedd. Era o que Kahlan diria.
— Você tem razão — disse Richard.
— Eu não falei nada. — Kahlan pareceu confusa.
Richard disse, com largo sorriso: — Eu ouvi você pensando. Você tem razão. Vamos com o Velho John.
— Eu não sabia que pensava tão alto — resmungou ela.
— Se não pararmos — disse ele para o Velho John —, podemos chegar antes do amanhecer.
— Eu sou velho — Ele se queixou com um suspiro. — Mas sei o quanto você está ansioso. E sei o quanto ele precisa de vocês. — Sacudiu o dedo para Richard. — Eu devia ter ouvido quando Zedd me avisou a seu respeito.
Richard riu e fez Kahlan continuar à frente dele. Ela andou depressa para alcançar o velho, que já estava andando.
Richard olhou distraidamente para Kahlan, viu quando ela afastou uma teia de aranha do rosto e cuspiu a parte que lhe tinha entrado na boca. Alguma coisa o incomodava, alguma coisa estava errada. Richard gostaria de saber o que era. Tentou descobrir, mas só conseguia pensar em Zedd, no quanto queria vê-lo e que mal podia esperar para falar com ele. Ignorou a sensação de que olhos os observavam.
— Sinto falta especialmente do meu irmão — disse ela a boneca. Olhou para longe. — Disseram que ele morreu — disse, suavemente.
Rachel passou grande parte do dia contando à boneca todos os problemas que conseguia lembrar. Quando seus olhos se encheram de lagrimas, a boneca disse que a amava e isso a fazia sentir-se bem. Às vezes achava graça.
Rachel pôs outro graveto no fogo. Era tão bom estar aquecida e ter luz! Mas mantinha o fogo bem pequeno, como Giller recomendara. A luz evitava que tivesse medo do bosque, especialmente à noite. Logo a noite chegaria. Às vezes barulhos no escuro a faziam chorar de medo.
— Foi quando morava naquele lugar que te falei. Com as outras crianças, antes de a rainha me escolher. Eu gostava muito mais de lá do que de morar com a princesa. Eles eram bons. — Olhou para a boneca para ver se ela estava ouvindo. — Um homem, Brophy, aparecia algumas vezes. As pessoas falavam mal dele, mas ele era bom para as crianças. Bom como Giller. Brophy também me deu uma boneca, mas a rainha não me deixou levar quando fui morar no castelo. Não me importei, porque estava muito triste com a morte do meu irmão. Ouvi dizer que tinha sido assassinado. Por que as pessoas matam crianças?
A boneca apenas sorriu. Rachel retribuiu o sorriso.
Ela pensou no novo menininho que tinha visto a rainha trancar num quarto. Ele falava engraçado e era engraçado, mas a fez se lembrar do seu irmão, porque ele parecia apavorado. Seu irmão também estava sempre assustado. Rachel sabia quando ele estava assustado porque ele ficava inquieto e agitado o tempo todo. Sentia muita pena do novo menino e queria ser importante, para poder ajudá-lo.
Rachel estendeu as mãos para o fogo para se aquecer por um minuto, depois as pôs nos bolsos. Estava com fome. Algumas frutas silvestres foi tudo que encontrou para comer. Ofereceu uma grande à boneca. A boneca não parecia estar com fome e Rachel comeu a fruta, depois mais um punhado delas, até acabar. Continuava com fome mas não queria sair para procurar mais. O lugar onde as frutas cresciam não ficava perto e começava a escurecer. Não queria andar no bosque à noite. Queria estar no seu pinheiro com sua boneca. Ao lado do calor e da luz do fogo.
— Talvez a rainha fique mais bondosa quando conseguir a aliança. Talvez fique mais feliz e não mande cortar cabeças. A princesa me faz assistir às execuções com ela, mas eu não gosto de ver e fecho os olhos. Agora até a princesa Violeta manda cortar cabeças. Ela fica mais malvada a cada dia. Agora tenho medo de que mande cortar a minha cabeça. Eu gostaria de fugir e nunca mais voltar. E de levar você comigo.
A boneca sorriu.
— Eu amo você, Rachel.
Ela abraçou a boneca com força, depois lhe beijou a cabeça.
— Mas, se fugirmos, a princesa Violeta manda os guardas nos procurarem e joga você no fogo. Não quero que ela jogue você no fogo. Eu amo você.
— Eu amo você, Rachel.
Rachel abraçou outra vez a boneca e se deitou na palha. Tinha de voltar no dia seguinte e a princesa ia continuar a ser má para ela. Teria de deixar a boneca, ela sabia, para que não fosse jogada no fogo.
— Você é a melhor amiga que já tive. Você e Giller.
— Eu amo você, Rachel.
Ela começou a se preocupar, pensando no que podia acontecer com sua boneca sozinha no abrigo do pinheiro. Ela ia se sentir sozinha. E se a princesa nunca mais a mandasse para fora, se alguém descobrisse que ela queria ser mandada para fora e não a deixasse sair mais do palácio, só por maldade?
— Sabe o que eu devia fazer? — perguntou a boneca, olhando para o fogo dentro do pinheiro.
— Ajudar Giller — disse a boneca.
Ela levantou o corpo, apoiada num cotovelo e olhou para a boneca.
— Ajudar Giller?
A boneca inclinou a cabeça afirmativamente.
— Ajudar Giller.
Raios de sol poente refletiam na camada de folhas, deixando a trilha clara e brilhante entre a massa escura do bosque nos dois lados. Richard ouvia as botas de Kahlan passando nas rochas escondidas sob o tapete colorido. Um leve cheiro de decomposição enchia o ar. Folhas caídas apodreciam nos lugares baixos e úmidos e nas espessas pilhas depositadas nas rochas pelo vento.
Embora começasse a esfriar, nenhum dos dois usava capa, aquecidos pelo exercício de acompanhar o passo acelerado do Velho John. Richard continuava tentando pensar em Zedd, mas seu pensamento era constantemente interrompido e tinha de voltar atrás, para continuar. Quando percebeu que começava a perder o fôlego, tirou Zedd da cabeça. Mas um pensamento não o deixava: alguma coisa não escava certa.
Finalmente, permitiu que a cautela tomasse conta de sua mente. Como um homem velho podia manter aquele passo e parecer descansado e calmo? Richard pôs a mão na testa, imaginando que talvez estivesse doente, com febre. Sentia o corpo quente. Talvez não estivesse bem, talvez houvesse alguma coisa errada com ele. Havia dias estavam andando, mas nunca com tanta urgência. Não, ele estava bem, apenas um pouco sem fôlego.
Por algum tempo, observou Kahlan andando à sua frente. Ela também começava a ter dificuldade para acompanhar o Velho John. Ela tirou outra teia de aranha do rosto e continuou a andar. Richard percebeu que, como ele, Kahlan respirava pesadamente.
Por algum motivo, a cautela de Richard começou a se transformar em pressentimento. Richard percebeu vagamente alguma coisa à esquerda, no bosque, acompanhando-os. É só um pequeno animal, pensou. Mas parecia uma coisa com braços longos, deslizando no chão, e depois desapareceu. Richard sentiu a boca seca. Deve ser minha imaginação, pensou.
Voltou a atenção novamente para o Velho John. Em alguns lugares, a trilha era larga, estreita em outros, com galhos que iam quase até o meio. Quando Kahlan e Richard passavam, às vezes roçavam neles, outras vezes os afastavam. Mas não o Velho John. Ele andava no centro da trilha, evitando os galhos, segurando a capa com as duas mãos contra o corpo.
Richard notou os fios de uma teia de aranha cintilando dourada à luz do sol poente, estendida de um lado ao outro da trilha, na frente de Kahlan. A teia se partiu contra a perna dela quando Kahlan passou.
O suor da sua testa imediatamente ficou frio como gelo.
Como o Velho John conseguiu não partir a teia de aranha?
Olhou pau cima e viu um galho com a ponta em cima da trilha. O velho se desviou. Mas a ponta passou através do seu braço, como se estivesse passando por fumaça.
Respirando rapidamente, Richard olhou para as marcas dos pés de Kahlan num trecho de terra macia. Não havia qualquer marca dos pés do Velho John.
Richard estendeu a mão, segurou na camisa de Kahlan e a puxou para ele. Kahlan gritou, surpresa. Richard a empurrou para trás dele e desembainhou a espada.
O Velho John parou e se virou a meio, ouvindo o barulho da espada.
— O que foi, meu rapaz? Viu alguma coisa? — Sua voz parecia o silvo de uma serpente.
— Na verdade, vi — Richard segurou a espada com as duas mãos, com as pernas em posição de defesa, o peito arfando. Sentiu a cólera inundar seu medo. — Como é que você não quebra teias de aranha quando passa por elas, nem deixa pegadas no chão!
Com um sorriso lento e malicioso, o Velho John olhou para ele, avaliando-o com um olho fechado.
— Não esperava que um velho amigo do mago tivesse algum talento especial?
— Talvez — disse Richard, olhando para a esquerda e para a direita, vigilante.
— Mas diga uma coisa, Velho John, qual é o nome do seu velho amigo?
— Ora, é Zedd. — Ergueu as sobrancelhas. — Como eu podia saber se ele não fosse meu amigo? — Sua capa estava bem fechada em volta do corpo e a cabeça, enfiada nos ombros.
— Fui eu quem idiotamente disse a você que o nome dele era Zedd. Agora diga o sobrenome do seu velho amigo.
O Velho John olhou para ele carrancudo, os olhos movendo-se vagarosamente em volta, avaliando, medindo. Olhos de animal.
Com um rugido brusco que fez Richard se encolher, o velho se virou e abriu a capa. No tempo que levou para virar completamente, ele ficou duas vezes maior do que era antes.
Um pesadelo impossível se fez realidade: pêlo e garras e presas, onde até poucos momentos atrás havia um homem.
Uma criatura que rosnava e mordia.
Com uma exclamação abafada, Richard olhou para a mandíbula aberta da besta que rugiu e deu um passo gigantesco para a frente. Richard deu três passos para trás. Ele empunhou a espada com tanta força que suas mãos doíam. O bosque ecoou com o grito ensurdecedor da coisa, profundo, selvagem, cruel. A boca se arreganhava a cada rugido. Inclinou-se sobre Richard, os olhos vermelhos e encovados brilhando, rilhando os dentes. Richard recuou rapidamente, protegendo-se com a espada. Olhou de relance para trás, mas não viu Kahlan.
Então a coisa atacou. Richard não teve tempo de brandir a espada. Tropeçou numa raiz e caiu para trás. Não conseguiu tomar fôlego. Instintivamente levantou a espada para empalar a coisa, esperando que ela se atirasse sobre ele.
Dentes afiados e agudos se lançaram estalando, na direção da espada, quando ele a levantou, mas o animal não se aproximou. Olhos vermelhos furiosos olharam para a arma erguida. Recuou e olhou para o bosque, à direita. Abaixou as orelhas e rosnou para alguma coisa no bosque.
O animal pegou uma pedra duas vezes do tamanho da cabeça de Richard, encheu o ar com seu grito, respirou profundamente e, com um rugido, apertou a pedra com as garras. Poeira e lascas de pedra subiram no ar. A besta olhou em volta, virou para trás e deslizou para o meio das árvores.
Richard ficou deitado de costas, ofegante, olhando para o bosque, esperando que a coisa reaparecesse. Chamou Kahlan em voz alta. Ela não respondeu.
Antes que ele tivesse tempo de ficar de pé, uma coisa cinzenta com braços longos saltou em cima dele, derrubando-o outra vez. A coisa gritava de raiva. Mãos fortes e nodosas seguraram as suas, tentando tirar a espada. Um dos braços se estendeu e bateu no queixo dele com as costas da mão, quase o deixando inconsciente. Lábios brancos se curvaram, revelando dentes afiados, quando o animal rugiu. Olhos amarelos saltados olharam para ele. O animal tentou desesperadamente chutar o rosto de Richard. Richard segurou a espada com toda a força, tentando se libertar dos dedos fortes e longos.
— Minha espada — rosnou a coisa. — Me dá. Me dá minha espada.
Agarrados desesperadamente, os dois rolaram no chão, folhas e gravetos voando. Uma das mãos se estendeu para trás, agarrou o cabelo de Richard e bateu com sua cabeça no chão, procurando levá-lo para uma rocha. Com um rosnado, de repente ele tentou outra vez segurar o punho da espada, tirando uma das mãos suadas de Richard e batendo na outra. Seu grito estridente quebrou a quietude da floresta. Dedos musculosos começaram a puxar a mão de Richard do punho, unhas afiadas penetraram sua carne.
Richard sabia que estava perdendo. A pequena criatura musculosa, a despeito do tamanho, era mais forte do que ele. Tinha de fazer alguma coisa ou perderia a espada.
— Dê para mim — sibilou a criatura, virando de repente a cabeça para trás, para ele, rilhando os dentes, tentando morder seu rosto. Os espaços entre os dentes estavam cheios de restos esponjosos de comida. O hálito pesado cheirava a podridão. A cabeça brilhante e calva tinha manchas escuras.
Quando mais uma vez eles rolaram no chão, Richard desesperadamente levou a mão ao cinto e tirou a faca da bainha. Num instante, a faca estava encostada nas dobras do pescoço da coisa.
— Por favor! — berrou a criatura. — Não matar! Não matar!
— Então, largue a espada! Agora!
A coisa, lenta e relutantemente, soltou a mão. Richard estava deitado de costas, a coisa fedida e pútrida no seu peito. Ela relaxou o corpo em cima dele.
— Por favor, não me mate — repetiu num murmúrio.
Richard se desvencilhou da criatura nojenta, agora deitada de costas. Pôs a ponta da espada no peito dela. Os olhos amarelos estavam apavorados.
A fúria da espada, que parecia confusa e perdida, finalmente o envolveu.
— Se eu desconfiar de que você vai fazer alguma coisa que não quero que faça... — Richard empurrou a ponta da espada no peito da coisa. — Eu atravesso seu peito. Compreende? — O monstro fez que sim com a cabeça. Richard se inclinou para ele. — Para onde foi seu amigo?
— Amigo?
— Aquela coisa grande que quase me pegou antes de você me pegar.
— O Calthrop. Não amigo — ele choramingou. — Homem de sorte. Calthrop mata à noite. Estava esperando noite chegar. Para matar você. Ele tem poder à noite. Homem de sorte.
— Não acredito em você! Você estava com ele.
— Não. — Ele fez uma careta. — Eu só o segui. Até ele matar você.
— Por quê?
Os olhos saltados miraram a espada.
— Minha espada. Por favor, me dá.
— Não!
Richard olhou em volta, procurando Kahlan. A mochila dela estava no chão, um pouco atrás dele, mas a moça não estava em parte alguma. De repente, Richard ficou gelado. Examinou a área rapidamente. Sabia que o Calthrop não estava com ela, ele tinha ido sozinho para o bosque. Com a ponta da espada encostada no peito da criatura no chão, ele gritou por ela, esperando que Kahlan respondesse ao seu chamado. Nenhuma resposta.
— A senhora está com a moça bonita.
Richard olhou furioso para os olhos amarelos.
— Do que você está falando?
— A senhora. Ela levou a moça bonita, — Richard empurrou a capada no peito dele, indicando que queria ouvir mais e imediatamente. — Nós estávamos seguindo vocês. Vendo o Calthrop brincar com vocês. Para ver o que ia acontecer. — Os olhos amarelos saltados foram outra vez para a espada.
— Para roubar a espada — disse Richard, furioso.
— Não roubar! Minha! Me dá! —— Outra vez começou a estender a mão para a espada até Richard empurrar mais um pouco a lâmina outra vez. A criatura ficou imóvel.
— Quem é a sua dona?
— Senhora! — Ele estremeceu, pedindo socorro. — Senhora é Shota.
Richard inclinou um pouco a cabeça para trás.
— Sua dona é a feiticeira Shota?
A criatura assentiu vigorosamente com a cabeça.
A mão de Richard apertou o punho da espada.
— Por que ela levou a moça bonita?
— Não sei. Talvez para brincar. Talvez para matar. — O monstro olhou para ele. — Talvez para pegar você.
— Vire de bruços — disse Richard. A criatura se encolheu. — Vire ou eu o atravesso!
Ele se virou, tremendo. Richard pôs o pé nas costas dele, debaixo da curva aguda da coluna. Tirou uma corda da mochila e fez um nó corrediço em volta do pescoço da criatura. — Você tem nome?
— Companheiro. Sou o companheiro da senhora. Samuel.
Richard o levantou, folhas estavam grudadas na pele cinzenta do peito.
— Muito bem, Samuel, vamos procurar sua senhora. Você vai na frente. Se fizer um movimento errado, aperto a corda no seu pescoço. Compreendeu?
Samuel fez que sim com a cabeça rapidamente, depois, olhando para a corda, balançou a cabeça mais devagar.
— Agaden Reach. Companheiro leva você lá. Não me mata?
— Se me levar até tua dona e se a moça bonita estiver bem, não mato você.
Richard puxou um pouco a corda para que Samuel soubesse quem mandava, depois embainhou a espada.
— Tome você leva a mochila da moça bonita.
Samuel tirou a mochila das mãos de Richard.
— Minha. Me dá! — Mãos grandes começaram a remexer na mochila.
Richard puxou a corda com força.
— Isso não pertence a você. Tire as mãos de dentro!
Olhos amarelos saltados cheios de ódio, voltaram-se para ele.
— Quando a senhora matar você, eu como você.
— Se eu não comer você antes — zombou Richard. — Estou faminto. Talvez coma um ensopado de Samuel no caminho.
O ódio foi substituído por uma expressão de puro terror.
— Por favor, não me mate! Samuel leva você à senhora, à moça bonita. Prometo. — Pôs a mochila nas costas e deu alguns passos, até esticar a corda ao máximo. — Siga Samuel. Depressa — disse ele, querendo provar que valia mais vivo. — Não cozinha Samuel, por favor — repetiu ele várias vezes num murmúrio, enquanto seguiam pela trilha.
Richard não tinha idéia de que espécie de criatura era Samuel. Havia algo familiar e inquietante nele. Não era muito alto, mas era extremamente forte. O queixo de Richard ainda estava dolorido no lugar que Samuel tinha atingido e o pescoço e a cabeça doíam por terem sido batidos no chão.
Braços longos quase tocavam o chão quando Samuel andava com um gingado estranho e ele repetia sem cessar que não queria que o cozinhassem. Calça curta escura presa por tiras de pano era tudo que vestia. Os pés, as mãos e os braços eram de tamanho desproporcional. A barriga era redonda e parecia cheia, do quê, Richard só podia imaginar. Não tinha pêlo algum e a pele parecia não ver o sol havia anos. Uma vez ou outra, Samuel pegava um graveto ou uma pedra e dizia “Meu! Me dá!” para ninguém em particular, mas logo perdia o interesse e jogava fora.
Vigiando atentamente o bosque e Samuel, Richard seguiu o companheiro, incitando-o a andar mais depressa. Temia por Kahlan e estava furioso consigo mesmo. O Velho John, ou o Calthrop, fosse o que fosse, tinha-o enganado completamente. Não podia acreditar que tivesse sido tão idiota. Acreditou na história dele porque queria muito acreditar que ia ver Zedd. Exatamente o que ele dizia a todos para não fazer. E foi o que ele fez, dando ao monstro a informação que ele repetiu para provar sua autenticidade. Estava furioso com a própria idiotice. Estava também dolorosamente envergonhado.
As pessoas acreditavam porque queriam acreditar, ele tinha dito a Kahlan, e foi exatamente o que fez. E agora a feiticeira estava com ela, o que Kahlan temia tanto, e tudo por sua estupidez, por ter baixado a guarda. Parecia que sempre que baixava a guarda era Kahlan quem pagava. Se a feiticeira fizesse algum mal a Kahlan, ia conhecer a ira do Seeker.
Mais uma vez, Richard se censurou. Estava se deixando levar pela imaginação. Se Shota quisesse matar Kahlan, já o teria feito. Não a teria levado para Agaden Reach. Mas por que levá-la para lá? A não ser, como Samuel dizia, para brincar com ela. Richard tentou afastar esse pensamento. Quem a feiticeira queria era ele. Provavelmente por isso o Calthrop tivesse fugido tão depressa, a feiticeira o assustou.
Quando chegaram à encruzilhada por onde tinham passado antes, Samuel entrou imediatamente para a trilha da esquerda. Começava a escurecer, mas o companheiro não diminuiu o passo. A trilha subia em ziguezague e logo estavam fora das árvores, numa trilha aberta na rocha, na direção dos picos escarpados cobertos de neve.
Na neve iluminada pelo luar, Richard viu duas marcas de pé, uma delas de Kahlan. Um bom sinal, pensou, ela ainda estava viva. Não parecia que Shota tinha intenção de matá-la, pelo menos não imediatamente.
Contornando a parte inferior dos picos nevados, a trilha levava à margem da neve molhada, pesada e difícil. Richard compreendeu que, sem Samuel para guiá-lo, levaria dias para escalar aqueles picos. O vento frio entrava nas aberturas das rochas, levando filetes longos da respiração deles no ar gelado. Samuel tremia de frio. Richard vestiu o casaco, depois tirou o de Kahlan da mochila que Samuel carregava.
— Isto é da moça bonita. Você pode usar por enquanto, para se aquecer.
Samuel arrancou o agasalho das mãos dele.
— Meu. Me dá!
— Se é assim, não deixo você usar. — Richard puxou a corda e tirou a capa dele. — Por favor! Samuel com frio — choramingou ele. — Por favor! Usar casaco da moça bonita?
Richard devolveu o casaco. Dessa vez, o companheiro o pegou devagar e pôs nos ombros. A criaturinha dava arrepios em Richard. Tirou da mochila um pedaço de pão de uva e comeu, sem parar de andar. Samuel virava a cabeça constantemente para ver Richard comer. Quando não agüentou mais, Richard ofereceu um pedaço a Samuel.
Ele estendeu as mãos grandes.
— Meu! Me dá! — Richard afastou o pão dele. Olhos amarelos suplicantes se ergueram para ele à luz da lua. — Por favor? — Cuidadosamente, Richard pôs o pio nas mãos ávidas.
Samuel começou a conversar, enquanto andavam na neve. O pão foi todo comido de uma vez. Richard sabia que, se tivesse oportunidade, Samuel lhe cortaria a garganta sem pensar duas vezes. Parecia uma criatura sem nenhuma qualidade.
— Samuel, por que Shota quer você por perto? Samuel olhou para trás, os olhos amarelos intrigados. —Samuel companheiro.
— E sua dona não vai ficar zangada com você por me levar a ela?
Com um som gorgolejante que Richard interpretou como risada, Samuel disse: — Senhora não tem medo do Seeker.
Quase ao nascer do dia, na borda da descida para um bosque escuro, o longo braço de Samuel apontou para baixo.
— Agaden Reach — gorgolejou ele. Olhou para trás com um sorriso desafiador. — Senhora.
O calor era opressivo no bosque. Richard tirou o casaco e o guardou na mochila, depois guardou o de Kahlan. Samuel olhou sem protestar. Ele parecia feliz, confiante por voltar a Agaden Reach. Richard fingiu ver para onde estavam indo, para não dar ao companheiro a idéia de que era quase cego no escuro. Deixou-se guiar pela corda, como um cego. Samuel continuava a andar como se fosse dia claro. Sempre que virara para trás a cabeça calva, os olhos amarelos brilhavam como lanternas.
Quando a luz da manhã lentamente penetrou no bosque, Richard começou a ver as arvores grandes, com tiras longas de musgo, trechos pantanosos com o vapor subindo da água negra e turva, olhos que vigiavam e piscavam nas sombras. Gritos ocos cortavam a névoa e o vapor enquanto ele escolhia o caminho cautelosamente entre o emaranhado de raízes. O lugar lembrava um pouco o Pântano Skow. Tinha o mesmo cheiro rançoso.
— Quanto falta?
— Perto. — Samuel sorriu.
Richard esticou a corda.
— Lembre que, se alguma coisa der errada, você morre primeiro.
O sorriso desapareceu dos lábios brancos.
Aqui e ali, na lama, Richard via o par de pegadas que vira na neve, Kahlan ainda estava andando. Vultos escuros os seguiam escondidos nas sombras, nos arbustos, às vezes soltando berros e uivos. Richard imaginava e se preocupava, pensando se haveria mais coisas como Samuel. Ou piores. Algumas iam pelo alto das árvores, onde não podiam ser vistas. Richard não pôde evitar um arrepio.
Samuel saiu da trilha, desviando-se das raízes retorcidas de uma arvores anã com tronco grosso.
— O que você está fazendo? — perguntou Richard, fazendo-o parar.
Samuel virou e sorriu para ele.
— Veja. — Apanhou um pedaço de pau forte do tamanho do seu pulso e jogou nas raízes da arvore. As raízes soltaram, enrolando-se em volta do pau, puxando-o para o meio da massa de tentáculos. Richard ouviu o pau ser quebrado. Samuel gorgolejou, feliz.
Quando o sol subiu mais, o bosque de Agaden Reach pareceu ficar mais escuro. Galhos mortos se entrelaçavam no algo e a névoa ocasionalmente passava entre eles.
Às vezes Richard nem enxergava Samuel na outra ponta da corda molhada. Mas sempre ouvia coisas arranhando, raspando, assobiando, coisas invisíveis estalando. Às vezes a névoa se espiralava à passagem de criaturas próximas mas invisíveis.
Richard lembrou o que Kahlan tinham dito: eles iam morrer. Tentou não pensar nisso. Kahlan dissera que não conhecia a feiticeira, só tinha ouvido falar nela. Mas o que ouviu a deixou apavorada. Os que entraram lá jamais saíam. Nem mesmo um mago iria a Agaden Reach, ela disse. Mas era informação de segunda mão, ela nunca tinha visto Shota. Talvez as histórias fossem exageradas. Ele examinava atentamente o bosque ameaçador e sinistro. E talvez não fossem.
À frente deles, através da massa emaranhada das árvores, o sol aparecia e ouvia-se o som da água corrente. Quanto mais se adiantavam, mais claro tudo ficava. Logo chegaram ao fim do bosque escuro. A trilha simplesmente acabava ali. Samuel gorgolejou de alegria.
Lá embaixo estendia-se um vale comprido, verde, claro, iluminado pelo sol. Gigantescos picos rochosos erguiam-se quase retos em volta. Campos de relva dourada entre grupos de carvalhos, faias e bordo com as ricas cores de outono farfalhavam na brisa.
Da floresta escura onde estavam, parecia a noite olhando para o dia. A água despencava verticalmente da rocha, desaparecendo silenciosamente no ar, até chegar aos lagos limpos e aos regatos lá embaixo, com um rugido e um silvo distante. Borrifos de água chegavam até eles, molhando seus rostos.
Samuel apontou para o vale.
— Senhora.
Richard assentiu com a cabeça e o fez continuar. Samuel os levou atrás de um labirinto de arbustos, árvores muito juntas e pedras cobertas de samambaias, para um lugar que Richard jamais teria encontrado sem o pequeno guia. Uma trilha escondida atrás de rochas e trepadeiras, à beira do precipício, que descia para o vale. Da trilha, a vista do belo lugar lá embaixo era panorâmica. As árvores pareciam pequenas nas encostas das colinas, os regatos serpenteavam entre os campos, sob o céu brilhante e azul.
No centro de tudo, entre tapetes de bonitas árvores, Richard viu um belo lugar de graça e esplendor. Espirais delicadas se erguiam, pontes frágeis ligavam uma torre à outra, escadas espiralavam em volta de torreões. Bandeiras e flâmulas coloridas em todas as pontas tatalavam suave e preguiçosamente ao vento. O palácio magnífico parecia querer alcançar o céu.
Richard ficou em silencio por um momento, boquiaberto, sem poder acreditar no que via. Ele amava sua casa em Hartland, mas lugar nenhum se comparava àquele. Era simplesmente o lugar mais bonito que já vira. Jamais teria imaginado que uma visão de tanta beleza pudesse existir.
Os dois retomara a caminhada, descendo para o vale. Havia degraus em alguns lugares, milhares deles, cortados na pedra, espiralando, formando túneis, passando por baixo dos que estavam acima. Samuel desceu correndo, como se tivesse feito aquilo milhares de vezes. Evidentemente, ele estava contente por voltar para casa, para a proteção da sua senhora.
Lá embaixo, à luz do sol, uma estrada atravessava as encostas arborizadas e os campos relvados. Samuel seguia com seu gingar estranho, rindo sozinho. Richard, de vez em quando, puxava a corda para lembrá-lo de que ele ainda segurava a outra ponta.
Quando começaram a cruzar o solo do vale, seguindo um regato durante algum tempo, aproximando-se do palácio, o arvore ficou mais fechado; cada árvore era um magnífico espécime, sombreando a estrada ou o campo, protegendo-os da luz clara do sol. A estrada subiu um pouco. No alto da subida, as árvores pareciam ter sido amontoadas, abrigando, circundando um lugar mais adiante.
Entraram numa catedral fechada e imóvel de árvores.
Richard ouviu o som de água correndo entre rochas cobertas de musgo. Raios brumosos de sol penetravam a quietude do lugar. Sentia-se o aroma de relva e folhas.
Samuel estendeu o braço. Richard olhou para onde ele apontava, para o centro de um lugar aberto e abrigado. Do centro de uma rocha, a água borbulhava e corria pelos lados até um pequeno regato pontilhado de pedras verdes. Certa mulher com um vestido longo, cabelo castanho, de costas para eles, sentada na beirada da rocha, na paisagem salpicada de sol passava a mão na água. Mesmo de costas, ela parecia familiar.
— Senhora — disse Samuel, com olhos vidrados. Apontou outra vez, para o lado da estrada, mais perto deles. — Moça bonita.
Richard viu Kahlan de pé, rígida. Havia algo estranho nela. Alguma coisa se movia sobre seu corpo. Samuel virou a cabeça deformada para trás e apontou para a corda. Olhou para Richard com os olhos amarelos.
— Seeker prometeu — disse ele, num rosnado.
Richard desamarrou a corda, tirou a mochila de Kahlan dos ombros dele e a pôs no chão. Samuel franziu os lábios sem cor para Richard, sibilando e, bruscamente, correu para a sombra e se acocorou, observando.
Richard engoliu em seco quando caminhou para Kahlan, com um nó no estômago. Sobressaltado, viu o que se movia nela.
Serpentes.
Kahlan estava coberta por várias serpentes que se contorciam. As que ele reconheceu eram todas venenosas. Serpentes grandes e gordas se enrolavam nas pernas dela, uma lhe apertava a cintura, outras se enrolavam nos braços nos dois lados do corpo. Cobras pequenas se esgueiravam entre o cabelo, com a língua de fora, outras em volta do pescoço, outras ainda rastejavam na frente do camisão, enfiando as cabeças entre os botões. Com esforço, Richard controlou a respiração ao se aproximar. Seu coração batia forte. Lágrimas desciam pelo rosto de Kahlan e ela estremeceu um pouco.
— Fique imóvel — disse ele em voz baixa. — Vou tirá-las daí.
— Não — murmurou ela, os olhos arregalados, em pânico —, se tocar nelas, ou se eu me mexer, elas me picam.
— Tudo bem — ele tentou tranqüilizá-la. Vou tirar você disso.
— Richard — suplicou ela num murmúrio. — Eu estou morta. Deixe-me. Saía daqui. Fuja.
Richard sentiu um aperto na garganta. Viu nos olhos dela o quanto Kahlan se esforçava para conter o pânico. Tentou parecer o mais calmo possível para animá-la.
— Não vou abandonar você — ele murmurou.
— Por favor, Richard — disse ela num murmúrio rouco —, por mim, antes que seja tarde demais. Fuja.
Uma serpente venenosa fina e listrada, com a causa enrolada para cima, abaixou a cabeça na frente do rosto dela e bateu de leve com a língua em Kahlan. Kahlan fechou os olhos e outra lágrima desceu no seu rosto. A cobra rastejou pelo rosto dela e desceu para a clavícula. O corpo listrado desapareceu dentro do camisão. Kahlan deixou escapar um gemido leve.
— Eu vou morrer. Você não pode me salvar. Por favor, Richard, salve-se. Fuja. Fuja enquanto ainda tem chance.
Richard temia que ela se movesse deliberadamente, para ser picada, para tentar salvá-lo, se não tivesse motivo para ficar. Precisava convencê-la de que não adiantaria. Olhou para ela, muito sério.
— Não. Vim aqui para descobrir onde está a caixa. Não vou embora enquanto não souber. Agora, não se mexa.
Kahlan arregalou os olhos por causa do que a serpente fazia no seu camisão. Mordeu com força o lábio inferior e franziu a testa. Richard engoliu em seco.
— Kahlan, agüente firme. Tente pensar em outra coisa.
Furioso, ele foi até a mulher sentada na rocha, ainda de costas para ele. Alguma coisa ao avisou para não desembainhar a espada, mas ele não podia, não queria evitar a raiva com o que ela fazia com Kahlan. Ele cerrou os dentes.
Quando chegou perto dela, a mulher se levantou e virou gentilmente para ele, dizendo seu nome com uma voz que Richard reconheceu.
Seu coração saltou para a garganta quando viu o rosto dela.
Era sua mãe.
Como que atingido por um raio, todo seu corpo ficou rígido. A fúria amorteceu e desapareceu, recuando à idéia de intenção mortal e sua mãe na mesma imagem.
— Richard. — Ela sorriu tristemente para ele, mostrando no sorriso o quanto o amava e sentia falta dele.
A mente de Richard disparou, tentando compreender o que estava acontecendo incapaz de encaixar o que via no que sabia. Não podia ser simplesmente era impossível.
— Mãe? — murmurou ele.
Braços que ele conhecia e de que se lembrava o envolveram, confortando-o, enchendo-lhe os olhos de lagrimas e formando um nó na sua garganta.
— Oh, Richard — disse ela suavemente —, quanta saudade tive de você! — Passou os dedos no cabelo dele. — Quanta saudade tive de você!
Atordoado, Richard lutou para controlar a emoção. Esforçou-se para pensar em Kahlan. Não podia desapontá-la outra vez, deixando-se enganar. Kahlan estava naquela situação porque tinha deixado que o enganassem. Esta não era sua mãe, era Shota, uma feiticeira. Mas, e se tivesse errado?
— Richard, por que você veio a mim?
Richard pôs as mãos nos pequenos ombros da mulher e a empurrou gentilmente.
As mãos dela abraçaram sua cintura com afeição. Ela não era sua mãe, ele se esforçava para pensar, era a feiticeira, uma feiticeira que sabia onde estava a ultima caixa de Ordem, o que ele precisava saber. Mas por que fazia aquilo? E se estivesse enganado? Isso de algum modo podia ser verdade?
Passou o dedo na pequena cicatriz acima da sobrancelha dela, delineando a marca tão conhecida. Uma cicatriz causada por ele. Estava brincando com Michael, com suas espadas de madeira, e acabava de saltar de cima da cama, desferindo um golpe tolo e violento contra o irmão, quando sua mãe entrou no quarto, sua espada atingiu na testa. O grito dela o apavorou.
Nem a sova que levou do pai foi tão dolorosa quanto a idéia do que tinha feito à sua mãe. O pai mandou para a cama sem jantar e naquela noite, quando estava escuro, ela sentou na beirada da cama e acariciou a cabeça dele enquanto Richard chorava. Ele lhe perguntou se estava doendo muito. Ela sorriu e disse:
— Não tanto quanto magoou você — murmurou a mulher a sua frente.
Richard arregalou os olhos e sentiu um arrepio.
— Como você....
— Richard — ele ouviu uma voz calma alertando-o. — Fique longe dela. — Era a vozde Zedd.
Sua mãe pôs a mão no rosto dele. Richard a ignorou e virou para trás, olhando para
A entrada, para o topo da subida. Era Zedd ou, pelo menos, ele pensou que fosse. Parecia-se com ele, mas afinal, aquela mulher também se parecia com sua mãe. Zedd estava ali, com uma expressão que Richard conhecia, uma expressão fria de aviso de perigo.
— Richard — soou a voz de Zedd outra vez.— Faça o que eu digo. Afaste-se dela. Agora.
— Por favor, Richard — implorou sua mãe —, não me deixe. Você não me reconhece?
Richard se voltou para o rosto suave.
— Sim, você é Shota.
Segurou os pulsos da mulher, tirou as mãos dela de sua cintura e recuou. Quase chorando ela o viu se afastar.
De repente, ela se voltou para o mago. Ergueu as mãos. Com um estalo ensurdecedor, um relâmpago azul saiu dos seus dedos e se dirigiu para o mago. Zedd imediatamente ergueu um escudo, como vidro refletindo a luz. A luz de Shota bateu no escudo com ruído e se desviou, atingindo um carvalho enorme e estilhaçando o tronco. A árvore caiu por terra. O solo tremeu.
As mãos de Zedd já estavam levantadas. Fogo de mago saiu dos dedos curvos, gritando furiosamente no ar.
— Não!— gritou Richard.
A bola de chama liquida iluminou a área sombreada com intensa luz amarela.
Ele não podia deixar que aquilo acontecesse. Shota era o único meio de encontrar a caixa! O único meio de deter Rahl!
O fogo, com gemido lamentoso, se dirigiu diretamente para Shota. Ela ficou imóvel.
— Não! — Richard desembainhou a espada e saltou para a frente dela. Segurou o punho da espada com uma das mãos, a ponta com a outra, horizontalmente, como um escudo.
A magia o envolveu. A ira o dominou. O fogo estava em cima dele. O rugido das chamas lhe enchia os ouvidos. Richard virou o rosto, fechou os olhos, prendeu a respiração e cerrou os dentes, esperando morrer. Mas não tinha escolha. A feiticeira era sua única chance. Não podia deixar ela fosse morta.
O impacto o fez recuar um passo. Sentiu o calor. Mesmo com os olhos fechados, via a luz. O fogo do mago gemeu de raiva quando atingiu a espada, explodindo em volta dele.
Então, silencio. Richard abriu os olhos. O fogo do mago tinha desaparecido. Zedd não perdeu tempo. Já estava lançado um punhado de poeira mágica que cintilava no ar. Richard viu alguma coisa às suas costas, a poeira mágica da feiticeira. Brilhava como cristais de gelo, amortecendo o brilho da poeira de Zedd, e se chocou contra ele.
Zedd ficou imóvel, com a mão no ar.
— Zedd!
Nenhuma resposta. Richard se virou rapidamente para a feiticeira. Ela não era mais sua mãe. Shota estava com um vestido de fazenda muito fina de varias cores, as pregas e as pontas flutuando na brisa leve. O cabelo farto e ondulado era ruivo, a pele imaculada. Olhos amendoados e brilhantes se fixaram nele. Era tão bonita quanto o palácio atrás dela e o vale que o rodeava. Tão atraente que quase o deixou sem fôlego e isso teria acontecido, não fosse pela raiva que sentia.
— Meu herói — disse ela com uma voz que não era mais de sua mãe. Com um leve sorriso, continuou: — Totalmente desnecessário, mas o que conta é a intenção. Estou impressionada.
— E quem é você agora? Outra visão da minha mente? Ou a verdadeira Shota? — Richard estava furioso. Reconhecia muito bem a fúria da espada, mas resolveu não usar.
Com um largo sorriso, ela disse: — Essas roupas são realmente você — provocou — ou uma coisa que usa de vez em quando para um objetivo determinado?
— E qual o seu objetivo agora?
Ela ergueu a sobrancelha.
— Ora, agradar a você, Richard. Só isso.
— Com uma ilusão?
— Não — a voz ficou mais macia. — Isto não é ilusão, é como apareço para mim mesmo, pelo menos na maior parte do tempo. Isto é real.
Richard ignorou a resposta e apontou para a estrada com a espada.
— O que fez com Zedd?
Ela deu de ombros com um sorriso tentador.
— Apenas evitei que ele me fizesse mal. Pelo menos por um momento. — Os olhos amendoados brilharam sob a sobrancelha. — Eu o matarei mais tarde, depois que tivermos conversado.
Richard apertou o punho da espada.
— E Kahlan?
Shota olhou para Kahlan que continuou imóvel, pálida, lábios tremendo, olhos fixo em Shota. Richard sabia que Kahlan temia aquela mulher mais do que temia as cobras. Shota franziu a testa, depois voltou a sorrir tentadoramente, olhando para ele.
— Ela é uma mulher muito perigosa. — Seus olhos demonstravam muito maior conhecimento do que seria normal para a idade que aparentava. — Mais perigosa do que ela mesma imagina. Tenho de protegê-la de si mesma. — Deu de ombros outra vez, segurando uma ponta flutuante do vestido fino. O resto do vestido foi para o lugar, como se a brisa tivesse parado. — Fiz isso para que ela ficasse imóvel. Se se mover, as serpentes a atacarão, mas não se ficar imóvel. — Shota pensou por um momento. — Eu a matarei mais tarde também. — Sua voz parecia muito bondosa, por demais agradável para as palavras que proferia.
Richard pensou em usar a espada para decapitar a feiticeira. Sua raiva o exigia. Ele visualizou a cena concentradamente, esperando que Shota pudesse ver também. Então amainou a cólera, mas continuou alerta.
— E eu? Não tem medo de mim?
Shota sorriu.
— Um Seeker? — levou as mãos para os lábios para esconder o sorriso. — Não, acho que não.
Richard mal podia se conter.
— Talvez devesse temer.
— Talvez. Talvez em tempos normais. Mas estes não são tempos normais. Do contrario, porque você estaria aqui? Para me matar? — Seu olhar dizia que Richard devia se envergonhar por dizer coisa tão idiota, depois de uma volta completa em torno dele. Richard girou com ela, mantendo a espada entre os dois, embora isso não parecesse intimidá-la. — São tempos que exigem estranhas alianças, Richard. Só os fortes e sábios reconhecem isso. — Parou, cruzou os braços, avaliando— o com um sorriso pensativo. — Meu herói! Ora, não me lembro da última vez que alguém pensou em salvar minha vida. — inclinou-se para ele. — Muito galante. De verdade. — Passou um braço pela cintura dele. Richard queria parar com aquilo, mas não fez nada.
— Não fique lisonjeada. Tive meus motivos. — Richard achava a atitude descontraída dela enervante e extremamente atraente. Sabia que não tinha razão para se sentir atraído por ela. Shota acabava de dizer que ia matar seus dois melhores amigos e, ao ver Kahlan, sabia que ela falava sério. Pior ainda, sua espada estava fora de bainha, a fúria solta. Richard compreendeu que até aquela magia estava sendo enfeitiçada. Tinha a sensação de estar se afogando e, com surpresa, notou que era uma experiência agradável.
O sorriso dela se alargou, os olhos amendoados cintilaram.
— Como eu disse, só os fortes e sábios são necessários para a aliança. O mago não foi bastante sábio, ele tentou me matar. Ela também não é. Chegou a não querer vir aqui. Só você foi bastante sábio para ver que estes tempos exigem uma aliança como a nossa.
Richard esforçou para demonstrar certo nível de ofensa.
— Não faço aliança com pessoas que matam meus amigos.
— Mesmo quando eles tentam me matar primeiro? Não tenho o direito de me defender? Devo deitar e morrer porque os assassinos são seus amigos? Richard — disse ela, sacudindo a cabeça com um sorriso intrigado —, pense no que está dizendo. Veja as coisas com meus olhos.
Richard pensou, mas não disse nada. Shota apertou a cintura dele carinhosamente.
— Mas você foi muito galante. Você meu herói, fez uma coisa muito rara. Arriscando a vida por mim, uma feiticeira. Esse tipo de coisa que não fica sem recompensa. Você ganhou um desejo. Qualquer coisa que queira, é só dizer, que será concedida. — Com a mão livre, fez movimentos deslizando no ar. — Qualquer coisa, tem minha palavra.
Richard começou a abrir a boca. Mas Shota pôs um dedo delicadamente nos seus lábios. Encostou nele o corpo morno e firme sob a fazenda fina do vestido.
— Não estrague a opinião que eu tenho de você falando depressa demais. Deve haver alguma coisa que você quer. Não desperdice o desejo. Pense cuidadosamente antes de pedir. É um desejo importante oferecido por uma razão e talvez o mais importante desejo que você jamais terá. Pressa pode significar a morte.
Richard ferveu de raiva, a despeito da estranha atração que sentia por ela.
— Não preciso pensar. Meu desejo é que não mate meus amigos. Liberte— os e deixe-os irem ilesos.
Shota suspirou.
— Temo que isso complique as coisas.
— É mesmo? Então, sua palavra não vale nada?
Ela olhou zangada para ele. Sua voz estava áspera.
— Minha palavra vale tudo. Simplesmente quero que você saiba que isso vai complicar as coisas. Você veio à procura da resposta de uma pergunta importante. Você ganhou um desejo. Basta fazer a pergunta, que terá seu desejo realizado. Não é isso que você quer realmente? Pergunte a você mesmo o que é mais importante: quantos morrerão se não cumprir seu dever? — Apertou a cintura dele outra vez, o belo sorriso voltando. — Richard, a espada o está confundindo. A magia interfere com seu julgamento. Embainhe a espada e pense outra vez. Se for sensato, dará atenção á minha advertência. Ela tem razão de ser.
Zangado, Richard pôs a espada na bainha, para mostrar que não ia mudar de opinião. Olhou para Zedd, imóvel, petrificado. Olhou para Kahlan, com as cobras rastejando em cima dela. Quando seus olhos se encontraram, seu coração doeu por ela. Sabia que Kahlan queria que ele fizesse, via nos olhos dela. Queria que ele usasse o desejo para encontrar a caixa. Richard desviou a vista, incapaz de ver aquele tormento por mais tempo. Olhou determinado para Shota.
— Embainhei a espada, Shota. Isso não muda nada. Você vai responder à minha pergunta de qualquer modo. Sua vida também depende de eu saber a resposta. Você praticamente admitiu isso. Não estou desperdiçando meu desejo. Usá-lo para conseguir uma resposta que você pretende dar, isso sim, seria desperdiçar a vida dos meus amigos. Agora, conceda meu desejo!
— Caro Richard — disse ela com voz suave—, um Seeker precisa de raiva, mas não deixe que isso exclua da sua mente a sabedoria. Não julgue precipitadamente ações que não compreende inteiramente. Nem todos os atos são o que parecem. Alguns têm como objetivo salvar você.
Shota passou a mão lentamente na face de Richard, fazendo-o outra vez se lembrar da mãe. A suavidade dela o fez se acalmar e de algum modo o deixou triste. Naquele momento, sentiu medo do enfraquecimento dela.
— Por favor, Shota — murmurou ele. — Já fiz meu pedido. Conceda-o.
— Seu pedido, meu caro Richard, é concedido — disse ela tristemente, num murmúrio.
Richard se voltou para Kahlan. As cobras continuavam em cima dela.
— Shota, você prometeu.
— Prometi não matá-la e deixar que ela se vá. Quando você for, ela poderá ir com você, não a matarei. Ocorre que ela ainda é um perigo para mim. Se ficar quieta, as cobras não a atacarão.
— Você disse que Kahlan teria tentado matar você. Isso não é verdade, ela me guiou até aqui à procura de sua ajuda, como eu. Embora ela não tivesse a intenção de fazer mal a você, você a teria matado. E agora faz isso!
— Richard — ela pôs um dedo no queixo, pensando —, você veio pensando que sou malvada, não foi? Mesmo sem saber coisa alguma a meu respeito, estava preparado para me fazer mal, com base no que a sua mente inventou. Você aceitou o que ouviu de outros.— A voz dela era maligna. — Pessoas que tem inveja ou sentem medo dizem essas coisas. As pessoas também dizem que usar fogo é errado e que os que usam fogo são pessoas más. Muitos dizem que o velho mago é malvado e que muita gente morre por causa dele. Isso faz com que seja verdade? Algumas pessoas do Povo da Lama dizem que você levou a morte ao seu povoado. Isso faz com que seja verdade. Só porque os tolos dizem que é?
— Que espécie de pessoa tentaria me fazer pensar que é minha falecida mãe? — perguntou ele amargamente.
Shota ficou realmente magoada.
— Você não ama sua mãe?
— Claro que amo.
— Que maior presente pode uma pessoa dar do que a volta de um ente querido que se foi? Você não ficou contente por rever sua mãe? Eu pedi alguma coisa em troca? Exigi pagamento? Por um instante dei a você uma coisa bela, pura, a lembrança viva do seu amor por ela e o dela por você, à custa do um esforço que você nem pode imaginar, e você considera isso maldade. E, como pagamento, pensou em cortar minha cabeça com sua espada!
Richard engoliu a seco mas não respondeu. Desviou os olhos, inesperadamente envergonhado.
— Sua mente está envenenada pelas palavras dos outros? Por seus medos? Tudo que peço é ser julgada por meus atos, ser vista como sou, não como os outros dizem. Richard não seja um soldado desse exercito silencioso de tolos.
Richard não sabia o que dizer, ouvindo-a falar das suas próprias crenças a respeito da feiticeira.
— Olhe em volta — disse Shota, estendendo o braço. — Este é um lugar feio? De maldade?
— É o lugar mais belo que já vi — admitiu Richard em voz baixa. — Mas isso não prova nada. O que me diz daquele lugar lá em cima?— Apontou com o queixo para o bosque escuro no alto.
Ela olhou rapidamente.
— Pense nele como um fosso. — Shota sorriu com orgulho. — Afasta os tolos que me querem fazer mal.
Richard guardou a pergunta difícil para o fim.
— E ele? — Olhou para a sombra, de onde Samuel olhava para eles com olhos brilhantes.
Olhando para os olhos de Richard, ela disse, com voz repleta de tristeza: — Samuel, venha cá.
A criatura nojenta atravessou a relva até chegar perto de Shota e se encostou nela, gorgolejando feliz. Os olhos de Samuel estavam fixos na espada. Shota abaixou a mão e acariciou ternamente a cabeça calva. Depois sorriu bravamente para Richard.
— Acho que cabe uma apresentação formal. Richard, permita que apresente Samuel, seu predecessor. O Seeker.
Richard olhou para baixo, para o companheiro, com os olhos arregalados, mudo.
— Minha espada! Me dá! — Samuel começou a estender a mão. Shota disse o nome dele sem tirar os olhos de Richard e a criaturinha imediatamente recolheu o braço e se encostou outra vez nela. — Minha espada — ele se queixou em voz baixa.
— Por que ele é assim? — perguntou Richard cautelosamente, com medo da resposta.
— Você não sabe mesmo, sabe? — Shota ergueu uma sobrancelha olhando atentamente para o rosto dele. O sorriso tristonho reapareceu. — A magia. O mago não avisou a você?
Richard balançou a cabeça lentamente, incapaz de falar. Sua língua estava grudada no céu da boca.
— Muito bem, sugiro que tenha uma conversa com ele.
Richard disso com esforço: — Está dizendo que a magia vai fazer isso comigo?
— Lamento Richard, não posso responder. — Com um suspiro, ela continuou: — Um dos meus talentos é ter visões do passar do tempo, do modo em que os eventos fluem para o futuro. Mas esse é o tipo de magia de mago que não posso ver. Sou cega para ela. Não posso ver como o tempo flui para a frente.
— Samuel foi o último Seeker. Veio para cá há muitos anos, desesperado à procura de ajuda. Mas não foi capaz de fazer coisa alguma por ele, a não ser ter pena. Então o velho mago veio de repente, um dia, e tomou a espada dele. — Ergueu uma sobrancelha. — Foi uma experiência muito desagradável para nós dois. Infelizmente, tenho de admitir que não gosto muito do velho mago. — Seu rosto se abrandou outra vez. — Até hoje, Samuel pensa que a espada da verdade é dele. Mas eu sei das coisas. Os magos, através dos tempos, têm sido guardiões da espada e, portanto, da sua magia. Só dão a espada a simples Seekers por determinado tempo.
Richard lembrou que Zedd tinha dito que o último falso Seeker fora atraído por uma feiticeira e por isso tirou a espada dele. Kahlan estava enganada. Havia pelo menos um mago que ousaria ir a Agaden Reach.
— Talvez porque ele não fosse um verdadeiro Seeker. — Richard tentou de tranqüilizar. Sentia a língua ainda grossa.
Shota pareceu realmente preocupada;
— Talvez. Eu simplesmente não sei.
— Deve ter sido isso — murmurou ele. — Tem de ser. Zedd teria me avisado. Ele é meu amigo.
Shota olhou para ele muito séria.
— Richard, há coisas mais importantes em jogo do que amizade. Zedd sabe disso e eu também. Afinal, você escolheu essas coisas em vez da vida dele, quando precisou.
Richard olhou para Zedd. Como queria falar com ele! Precisava tanto do mago naquele momento! Podia isso ser verdade, poderia ele ter trocado a informação sobre a caixa pela vida de Zedd, facilmente, sem pensar duas vezes?
— Shota, Você prometeu libertar Zedd.
Shota olhou atentamente por um momento.
— Desculpe, Richard. — Sacudiu a mão no ar, na direção de Zedd. Zedd oscilou e desapareceu.
— Foi só uma pequena ilusão, uma demonstração. Na verdade, não era o velho mago.
Richard pensou que devia se zangar, mas não se zangou. Apenas ficou um pouco magoado com o truque, mas triste por Zedd não estar ali com ele. Então, um medo gelado tomou conta dele e ficou todo arrepiado.
— Aquela é mesmo Kahlan? Ou você já a matou e me apresentou sua imagem, outro truque? Outra demonstração?
Shota respirou profundamente.
— Infelizmente — ela suspirou — ela é real. Esse é o problema.
Shota deu o braço a ele e o levou para frente de Kahlan. Samuel foi atrás e ficou ao lado deles. Seus braços eram tão longos que, de pé, olhando de um para o outro, seus dedos desenhavam círculos na terra.
Shota olhou para Kahlan por um momento, aparentemente perdida em pensamentos, como que tentando resolver um dilema. Richard só queria tirar aquelas cobras de cima dela. Apesar das palavras de ajuda e de amizade da feiticeira, Kahlan ainda morria de medo, não das cobras, mas da feiticeira. Era Shota que seus olhos acompanhavam, como os olhos de um animal numa armadilha, acompanham o caçador, não a armadilha.
— Richard — perguntou Shota, olhando nos olhos de Kahlan —, será que você poderia matá-la se fosse preciso? Se ela fosse uma ameaça ao seu sucesso, teria coragem de matá-la? Se isso significasse a vida de todos os outros? Diga-me a verdade.
A despeito do tom descontraído de Shota, as palavras penetraram nele com um punhal gelado. Richard olhou para os olhos de Kahlan, depois para a mulher ao seu lado.
— Ela é minha guia. Preciso dela — disse ele, simples e calmamente.
Olhos grandes amendoados se voltaram frios para ele.
— Seeker, não foi isso que eu perguntei.
Richard não disse nada, tentando evitar que seu rosto revelasse alguma coisa.
Shota sorriu, com pena.
— Como pensei. Por isso você cometeu um erro com seu desejo.
— Não cometi erro algum — protestou Richard —, se eu não tivesse usado daquele modo, você a mataria?
— Sim — admitiu Shota sinistramente. — Eu a mataria. A imagem de Zedd foi um teste. Você passou no teste e, como recompensa, eu lhe concedi um desejo, não para que tivesse algo que deseja, mas para que eu pudesse praticar um ato realmente importante para você, porque você não tem coragem necessária. Esse foi seu segundo teste. Nesse, caro rapaz, você fracassou. Devo honrar seu desejo. Esse foi seu erro, devia ter deixado que eu a matasse para você.
— Você é louca! Primeiro tenta me dizer que não é malvada, que devo julgá-la por suas ações e agora prova sua verdadeira natureza dizendo que cometi um erro quando não permiti que matasse Kahlan! E para que? Uma ameaça imaginária! Ela não fez nada para ameaçar você, nem fará. Tudo que ela quer é deter Darken Rahl, assim como eu. Assim como você!
Shota ouviu pacientemente. O olhar atemporal passou por seus olhos outra vez.
— Você não ouviu quando eu disse que nem todos os atos são o que parecem? Que alguns têm por objetivo salvar você? Mais uma vez, você julga depressa demais, sem conhecer todos os fatos.
— Kahlan é minha amiga. Esse é o único fato que importa.
Shota suspirou, como se esforçasse, para não perder a paciência e estivesse tentando ensinar uma coisa a uma criança. Richard a olhou, sentido-se um idiota.
— Richard, escute. Darken Rahl ativou as caixas da Ordem. Se ele tiver sucesso, ninguém terá poder para detê-lo. Jamais. Muita gente vai morrer. Você. Eu. É do meu interesse ajudar você, porque é o único que tem uma chance de deter Darken Rahl. Como ou por quê eu não sei, mas posso ver o fluxo do poder. Você é o único que tem chance.
“Isso não significa que terá sucesso, apenas que tem uma chance. Por menor que seja, está dentro de você. Saiba também que existem forças para derrotá-lo, antes que tenha oportunidade de usar sua chance. O velho mago não tem poder de deter Rahl. Por isso ele deu a espada a você. Eu não tenho o poder de deter Rahl, mas tenho poder para ajudar. É tudo que quero fazer e, fazendo isso, ajudo a mim mesma. Não quero morrer. Se Rahl vencer, eu morro.”
— Eu sei. Por isso disse que você responderia à minha pergunta sem eu precisar usar o desejo.
— Mas sei de outras coisas, Richard que você não sabe.
Os belos olhos o estudaram atentamente, com uma tristeza dolorosa. Tinham o mesmo fogo dos olhos de Kahlan. O fogo da inteligência. Richard sentiu nela a necessidade de ajudá-lo. De repente, sentiu medo do que ela sabia, porque percebeu que a intenção de Shota não era fazer mal a ele, mas simplesmente aceitar a verdade. Viu Samuel vigiando a espada e olhou para a própria mão segurando o punho da arma, sentindo as letras em relevo da palavra Verdade.
— Shota, o que mais você sabe?
— As coisas mais fáceis primeiro — suspirou ela. — sabe quando você deteve o fogo do mago com a espada? Pratique esse movimento. Fiz esse teste por um motivo. Zedd usará o fogo do mago contra você. Só que da próxima vez, será real. O fluxo do tempo não diz quem vencerá, só que você tem uma possibilidade de vencê-lo.
Richard arregalou os olhos.
— Isso não pode ser verdade.
— Verdade — disse ela, acentuando as palavras —, como um dente dado por um pai para identificar o guardião do livro, para mostrar como realmente ele foi tomado.
Isso abalou Richard.
— E não, não sei quem é o guardião. — os olhos dela pareciam queimá-lo. — Você terá de descobrir sozinho.
Richard mal podia respirar, mal conseguiu fazer a pergunta seguinte.
— Se essa é a parte fácil, qual é a difícil?
O cabelo ruivo pousou no ombro dela quando Shota virou a cabeça, desviando os olhos dele, e olhou para Kahlan, que continuava imóvel, enquanto as cobras rastejavam no seu corpo.
— Eu sei quem ela é e que é uma ameaça para mim...— Não terminou a frase e o olhou outra vez. — Está claro que você não sabe quem ela é, do contrario não estariam juntos. Kahlan tem um poder. Um poder mágico.
— Isso eu sei — disse Richard cautelosamente.
— Richard. — Shota tentava encontrar as palavras para algo que achava difícil.— E sou uma feiticeira. Como já sabe, um dos meus poderes é ver as coisas que estão para acontecer. Por isso os tolos têm medo de mim. — Aproximou desconfortavelmente o rosto do dele. Se hálito cheirava rosa. — Por favor, Richard, não seja um desses tolos, não tenha medo de mim por causa das coisas sobre as quais não tenho controle. Posso ver a verdade dos eventos futuros, não os determino ou controlo. E justamente porque os vejo não quer dizer que me sinto feliz com eles. Só por nossas ações no presente podemos mudar o futuro. Tenha a sabedoria de usar as vantagens da verdade, não se limite a reclamar.
— E qual a verdade você vê, Shota? — perguntou Richard.
A intensidade dos olhos dela o fez prender a respiração e Shota continuou com a voz cortante com uma lâmina afiada.
— Kahlan tem um poder e, se ela não for morta, ela o usará contra você. –observou atentamente os olhos dele. — Não há duvida sobre a verdade disso. Sua espada pode protegê-lo do fogo do mago, mas não o protegerá do toque das mãos dela.
Richard sentiu o impacto daquelas palavras como se estivessem cortando se coração.
— Não! — murmurou Kahlan. Os dois olharam para ela, para o rosto crispado de dor, — Não farei isso! Shota, eu juro, não poderia fazer isso com ele.
As lagrimas desciam no seu rosto. Shota chegou perto de Kahlan e, passando a mão no meio das cobras, tocou o rosto dela ternamente.
— Se você não for morta, lamento, mas fará o que eu disse. — Uma lágrima desceu no rosto da moça e Shota a enxugou com o polegar. — Você já chegou muito perto uma vez— disse Shota, com surpreendente compaixão. — Muito perto. — Balançou a cabeça de leve. — Isso é verdade, não é? Diga a ele se estou ou não dizendo a verdade.
Kahlan olhou para Richard. Ele contemplou as profundezas dos olhos verdes e lembrou das três vezes que ela o havia tocado quando ele segurava a espada e como o contato despertava a ira da magia. Na ultima vez, no povoado do Povo da Lama, quando as sombras apareceram, a reação mágica foi tão forte que ele quase a trespassou com a lâmina, antes de ver que era ela. Kahlan franziu as sobrancelhas e desviou os olhos dos dele. Mordeu o lábio inferior e um pequeno gemido lhe escapou da garganta.
— É verdade? — Perguntou Richard num murmúrio, com o coração na boca. — você esteve muito perto de usar seu poder contra mim, como Shota diz?
Kahlan empalideceu. Com um gemido baixo e doloroso, fechou os olhos e chorou perdidamente. — Por favor, Shota, mate-me. Você deve. Jurei proteger Richard, para deter Rahl. Por favor — implorou entre soluços. — É o único meio. Você deve me matar.
— Eu não posso — murmurou Shota. — Eu concedi um desejo. Um desejo muito tolo.
Richard mal podia suportar a dor de ver Kahlan pedindo para morrer. O nó na garganta ameaçava sufocá-lo.
De repente, Kahlan deu um grito e levantou os braços para que as cobras a picassem. Richard se lançou para as serpentes, porém elas haviam desaparecido. Kahlan ficou com os braços erguidos, procurando as cobras que não estavam mais ali.
— Desculpe, Kahlan. Se eu deixasse que elas a picassem, a concessão do desejo seria quebrada.
Kahlan caiu de joelhos chorando, com o rosto no chão, os dedos cavando a terra.
— Sinto muito, Richard — disse ela, chorando. Agarrou as hastes de relva, depois segurou a perna da calça de Richard. — Por favor, Richard — soluçou ela —, por favor. Jurei proteger você. Tantos já morreram! Pegue sua espada e me mate. Faça isso. Por favor. Richard, acabe comigo.
— Kahlan... eu jamais poderia... — Não conseguiu dizer mais.
— Richard— disse Shota, quase chorando também —, se ela não for morta antes que Rahl abra as caixas, usará o poder contra você. Não há dúvida. Isso não pode ser mudado se ela viver. Eu concedi seu desejo. Não posso matá-la. Por isso você deve fazê-lo.
— Não! — gritou ele.
Com um gemido angustiado, Kahlan desembainhou sua faca. Richard segurou-lhe o pulso.
— Por favor, Richard — exclamou ela, encostando nele —, você não compreende. Tenho de fazer isso. Se eu viver, serei responsável pelo que Rahl fará. Por tudo que acontecer.
Richard a fez se levantar e com um braço a puxou para ele, enquanto com o outro impediu que ela usasse a faca. Olhou furioso para Shota, parada, com os braços dos dois lados do corpo, observando os dois. Aquilo tudo seria possível? Podia ser verdade? Richard desejou ter dado ouvido a Kahlan e não ter procurado Shota.
Afrouxou o braço em volta de Kahlan, quando percebeu que a estava machucando. Atordoado, perguntou-se se devia deixar que ela se matasse. Sua mão tremeu.
— Por favor, Richard — disse Shota, com os olhos cheios de lágrimas —, pode me odiar pelo que eu sou, se quiser, mas não me odeie por dizer a verdade.
— A verdade como você a vê, Shota! Mas talvez não a verdade como será. Não vou matar Kahlan só por causa do que você disse.
Shota assentiu tristemente, balançando a cabeça, olhando para ele através das lágrimas.
— A rainha Milena está com a caixa de Ordem. — Sua voz era pouco mais de um murmúrio. — Mas ouça este aviso: ela não a terá por muito tempo. Se você resolver ouvir a verdade como eu a vejo. — Virou-se para o seu companheiro. — Samuel — disse ela gentilmente —, conduza os dois para fora de Agaden Reach. Não pegue nada que pertence a eles. Eu ficaria muito aborrecida. E isso inclui a Espada da Verdade.
Richard viu uma lágrima no rosto de Shota, quando ela se voltou sem olhar para ele e começou a andar na estrada. Parou de repente e ficou imóvel, o belo cabelo ruivo afagando os ombros e quase metade das costas do vestido fino. Levantou a cabeça, mas não se virou para ele.
— Quando tudo terminar — disse ela com voz entrecortada — e se por acaso você vencer... nunca mais venha aqui. Se vier... eu o matarei.
Continuou a andar em direção do palácio.
— Shota — murmurou ele com voz rouca. — Sinto muito.
Ela não parou nem olhou para trás.
Quando ela virou a curva do corredor, quase tropeçou nas pernas do mago Giller, tão silenciosamente ele andava. Seus olhos percorreram o manto prateado até o rosto, lá em cima.
— Giller, você me assustou!
As mãos dele estavam enfiadas nas mangas do manto.
— Desculpe, Rachel, eu não queria assustar você. — Olhou para os dois lados do corredor e se abaixou. — O que está fazendo?
— Levando recados. — disse ela, respirando profundamente. — a princesa Violeta quer que eu vá falar com os cozinheiros e depois com as lavadeiras para dizer que ela encontrou uma mancha de molho em um dos seus vestidos e que ela nunca derramaria molho no vestido e que elas devem ter feito isso e se ela encontrar outra mancha, manda cortar as cabeças delas. Eu não quero dize isso, elas são tão boazinhas! — Tocou no galão prateado da manga de Giller. — Mas se eu não disser, ficarei muito encrencada.
— Muito bem, diga o que ela mandou, tenho certeza de que as lavadeiras vão saber que são palavras da princesa.
Rachel olhou para os olhos grandes e escuros.
— Todo mundo sabe que ela derrama molho no vestido.
Giller riu baixinho.
— Tem razão, eu mesmo já vi. Mas não vale a pena puxar o rabo de um texugo adormecido. — Ela não entendeu e fez uma careta. — Isso quer dizer que você vai arranjar problemas se disser isso a ela, por isso é melhor ficar calada.
Rachel sabia que era verdade. Giller olhou outra vez para os dois lados. Não viu pessoa alguma.
Inclinou-se para Rachel e murmurou:
— Sinto não ter podido falar com você. Encontrou a boneca problema?
Ela sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.
— Muito obrigada. Giller. Ela é maravilhosa. Fui mandada para fora duas vezes depois que você me deu a boneca. Ela me disse que não devo falar com você a não ser que você diga que posso, por isso esperei. Nós conversamos muito e eu me senti muito melhor.
— Fico contente com isso, minha filha — sorriu ele.
— Eu a chamo de Sara. Uma boneca deve ter um nome, você entende.
— É mesmo? — Giller ergueu uma sobrancelha. — Eu não sabia disso. Muito bem, Sara é um belo nome para ela.
Rachel sorriu satisfeita por Giller gostar do nome da boneca. Passou o braço pelo pescoço do mago e, com o rosto perto do ouvido dele, disse: — Sara tem contado os problemas dela também — disse em voz baixa. — Prometi a ela que vou ajudar você. Eu nunca imaginei que você também quisesse fugir. Quando podemos ir, Giller? Estou ficando com muito medo da princesa Violeta.
Giller bateu de leve nas costas dela com a mão grande quando a menina o abraçou.
— Logo, minha filha. Mas tenho de preparar umas coisas antes, para que não nos encontrem e nos tragam de volta. Não queremos isso, certo?
Rachel balançou a cabeça encostada no ombro dele e então ouviu passos. Giller se levantou, olhando para o salão.
— Rachel seria muito ruim se nos vissem conversando. Alguém pode... ficar sabendo da boneca. De Sara.
— Acho melhor eu ir — disse ela, apressadamente.
— Não temos tempo. Fique encostada na parede e me mostre o quanto pode ser corajosa e quieta.
Rachel obedeceu e Giller ficou à frente dela, escondendo-a com seu manto. Rachel ouviu o tilintar da armadura. Deve ser algum guarda, ela pensou. Então ouviu os latidos finos. O cachorro da rainha! Devia ser a rainha com seus guardas! Estariam numa boa trapalhada, se a rainha a encontrasse escondida atrás do mago. Ela podia descobrir a boneca! Rachel se encolheu mais entre as pregas do manto, que mexeram quando Giller se inclinou.
— Majestade — disse Giller, quando ergueu o corpo.
— Giller! — exclamou ela, com sua voz zangada. — O que está fazendo emboscado aqui?
— Emboscado, majestade? Pensei que sou empregado para não permitir que alguém fique emboscado por aí. Eu estava só verificando o selo mágico na sala das jóias, para ter certeza de que ninguém mexeu na caixa. — Rachel ouviu o cãozinho farejando o manto de Giller. — Se for vosso desejo, majestade, deixo as coisas ao sabor do destino e não investigo mais quando ficar preocupado. — O cão foi para o lado de Giller, bem perto de Rachel. Ela o ouviu farejar. Rachel desejou que ele seguisse seu caminho antes que ela fosse descoberta. — Nós todos iremos dormir à noite com uma prece aos nos espíritos para que, quando o Pai Rahl chegar, tudo esteja em ordem. E se alguma coisa estiver errada, podemos simplesmente dizer a ele que não queríamos ver alguém emboscado por aí, por isso não verificamos. Talvez ele compreenda.
O cãozinho começou a rosnar. Os olhos de Rachel começavam a se encher de lágrimas.
— Não precisa se irritar, Giller, eu só estava perguntando. — Rachel via o focinho negro debaixo do manto do mago. — Precioso, o que você encontrou ai? O que é, meu pequeno Precioso?
O cachorro rosnou e latiu. Giller recuou um pouco, espremendo Rachel contra a parede. Rachel tentou pensar em Sara, desejando estar com ela naquele momento.
— O que foi, Precioso? O que você farejou?
— Receio, Majestade, ter estado emboscando também nos estábulos. Tenho certeza de que é isso que ele está farejando. — Giller enfiou a mão no manto, bem na altura da cabeça de Rachel.
— Os estábulos. — A voz dela continuava irritada. — O que você podia ter para investigar nos estábulos? — Rachel ouviu a voz da rainha subir de tom, quando ela se inclinou para pegar o cachorro. — O que está fazendo aí, Precioso?
Tremendo, Rachel mordeu a bainha do vestido para não fazer barulho. Giller tirou a mão de dentro do manto. Ela viu uma pitada de alguma coisa entre o polegar e o indicador dele. O cachorro enfiou a cabeça debaixo do manto e começou a latir. Giller abriu os dedos e a poeira brilhante caiu na cabeça do cão, que começou a espirrar. Então Rachel viu a mão da rainha tirando o cachorrinho de lá.
— Pronto, pronto, meu Precioso. Está tudo bem agora. Pobrezinho. — Rachel a ouviu beijar o focinho do cão como fazia sempre; depois ela também começou a espirrar. — Como você dizia, Giller, o que um mago tem de fazer num estábulo?
— Como eu dizia, majestade — a voz de Giller também podia ficar desagradável, mas Rachel achou graça porque ele estava falando com a rainha —, se um assassino quisesse entrar no castelo de uma rainha e trespassá-la com uma gorda flecha, acha que entraria pelo portão principal, calmamente? Ou ia preferir atacar com a besta, escondendo-se debaixo do feno ou atrás de alguns sacos? E depois sair do estábulo no escuro?
— Bem... eu... mas há... você acha... descobriu alguma coisa...
— Mas uma vez que vossa majestade não me quer ver emboscado no estábulo também, vou tirar o local da minha lista. Mas se não se importar, a partir de agora, quando vossa majestade estiver diante do publico, ficarei bem longe. Não quero atrapalhar se um dos seus súditos quiser demonstrar seu amor pela rainha.
— Mago Giller — a voz dela estava agradável agora, como quando falava com o cachorrinho —, por favor, perdoe-me. Ando irritada ultimamente com a iminente visita do Pai Rahl. Só quero que tudo corra bem. Então nós todos teremos tudo que desejamos. Sei que você vela por meus interesses. Por favor, continue e esqueça a momentânea tolice de uma dama.
— Como quiser, majestade. — Ele se curvou outra vez.
A rainha saiu rapidamente, espirrando; Rachel ouviu parar o ruído forte dos passos dela e o tilintar da armadura.
— A propósito, mago Giller — disse ela, olhando para trás —, eu não lhe contei? Chegou um mensageiro. Disse que o Pai Rahl estará aqui mais cedo do que esperamos. Muito mais cedo. Amanhã, para ser mais precisa. Ele espera receber a caixa, é claro, para selar a aliança. Por favor, trate disso.
A perna de Giller estremeceu com tanta força que quase derrubou Rachel.
— É claro, majestade. — Giller fez outra curvatura. — Amanhã! — resmungou ele. — Malditos espíritos, eu não estou pronto.
— O que foi, Giller?
— Rachel — murmurou ele, com o nariz adunco muito perto do dela. — A princesa está no quarto agora?
— Não — Rachel murmurou também. — Ela foi escolher tecido para um novo vestido, para quando o Pai Rahl chegar.
— Você sabe onde ela guarda a chave do quarto das jóias?
— Sei. Quando não está com ela, guarda na escrivaninha. Na gaveta do lado da janela.
Ele saiu andando pelo corredor, carregando Rachel, para o quarto da princesa. Os pés de Giller eram tão quietos no tapete que Rachel nem ouviu os passos.
— Mudança de planos, minha filha. Você pode ser corajosa por mim? E por Sara?
Ela fez que sim com a cabeça e abraçou o pescoço dele para se firmar. Giller passou por todas as portas de madeira escura, pontudas em cima, até chegar à maior de todas, uma porta dupla um pouco recuada do corredor com um pequeno hall de entrada na frente, emoldurada por pedra cinzelada. Era o quarto da princesa. Ele abraçou Rachel com força.
— Tudo certo — murmurou Giller —, você entra e apanha a chave. Eu fico aqui de guarda.
Giller pôs Rachel no chão.
— Vá depressa agora. — Ela entrou e ele fechou a porta.
As cortinas estavam abertas, deixando entrar a luz do sol, por isso ela viu logo que o quarto estava vazio. Ninguém estava fazendo limpeza ou coisa assim. O fogo na lareira tinha se apagado e os criados não tinham ainda acendido outro para a noite. A cama grande com dossel já estava arrumada. Rachel gostava da colcha com todas as pequenas flores. Combinava com o dossel, agora aberto, e com as cortinas. Rachel sempre se perguntava por que a princesa precisava de uma cama tão grande. Dava para dez pessoas. De onde ela vinha, seis meninas dormiam juntas em uma cama com a metade do tamanho daquela e a colcha não era estampada. Rachel imaginava como seria dormir na cama da princesa. Rachel nunca havia sequer sentado nela.
Sabia que Giller estava com pressa, por isso atravessou o quarto sobre o tapete espesso, até a escrivaninha polida de madeira elegantemente espiralada. Enfiou o dedo na alça de ouro e abriu a gaveta. Isso a fez ficar nervosa, embora já tivesse feito antes sem que a princesa tivesse mandado. A chave grande do quarto das jóias estava no escaninho forrado de veludo ao lado da chave da caixa onde Rachel dormia. Pôs a chave no bolso e fechou a gaveta, com cuidado.
Quando já estava quase na porta, olhou para o canto onde ficava a caixa em que dormia. Sabia que Giller estava com pressa, mas assim mesmo foi até a caixa — precisava verificar. Entrou na caixa escura e foi até o fundo, onde o cobertor estava dobrado. Cuidadosamente puxou o cobertor.
Sara olhou para ela. A boneca estava exatamente onde ela a deixara.
— Tenho de ir depressa — murmurou ela. — Volto mais tarde.
Rachel beijou a cabeça da boneca e a cobriu outra vez com o cobertor, escondendo-a no canto, onde ninguém a encontraria. Sabia que era perigoso levar a boneca para o palácio, mas não suportava a idéia de deixá-la sozinha no abrigo do pinheiro. Rachel sabia como era solitário e assustador lá dentro, sob os galhos do pinheiro.
Correu para a porta, entreabriu-a e olhou para Giller. Ele fez sinal de que ela podia sair.
— A chave.
Rachel tirou a chave do mesmo bolso onde guardava o acendedor que Giller lhe tinha dado e o mostrou orgulhosamente a Giller. Ele sorriu e disse que ela era uma boa menina. Nunca ninguém a chamava de boa menina, pelo menos não havia muito tempo. Giller a pegou no colo outra vez e andou rapidamente pelo corredor, depois desceu a escada estreita de serviço. Ela mal ouvia os passos dele no chão de pedra. As calças dele faziam cócegas no rosto dela. Acabou de descer a escada e Giller a pôs no chão.
— Rachel — disse ele, abaixando-se para ficar à altura dela —, ouça com atenção isto não é uma brincadeira. Precisamos sair do castelo, senão cortam nossas cabeças, como Sara disse. Mas devemos agir com inteligência para não sermos apanhados. Se formos depressa, sem fazer a coisa certa primeiro, eles nos encontram. E se formos muito vagarosos, bem, é melhor não sermos vagarosos demais.
Ela começou a sentir lágrimas nos olhos.
— Giller, tenho medo de ter a cabeça cortada. Dizem que dói muito.
Giller a abraçou com força.
— Eu sei, minha filha, eu também tenho medo. — pôs as mãos nos ombros da menina e, olhando nos olhos dela, continuou: — Mas confie em mim; se fizer exatamente o que eu disser e for bastante corajosa, sairemos daqui e iremos para onde ninguém corta a cabeça das pessoas, nem as tranca em caixas e onde você pode ter sua boneca, que jamais a tirarão de você nem a jogarão no fogo. Está bem?
As lágrimas secaram.
— Isso será maravilhoso, Giller.
— Mas você tem de ser corajosa e fazer o que eu disser. Uma parte pode ser difícil.
— Vou fazer, prometo.
— E eu prometo, Rachel, que farei o que for preciso para proteger você. Estamos nisto juntos, você e eu, mas muitas outras pessoas dependem disto também. Se fizermos um bom trabalho, poderemos fazer com que muitas outras pessoas inocentes nunca mais tenham a cabeça cortada.
Ela arregalou os olhos.
— Eu gostaria disso, Giller. Detesto quando cortam as cabeças das pessoas. Fico morrendo de medo.
— Muito bem; então, a primeira coisa que você tem a fazer é dar o recado para os cozinheiros, como foi mandada, e quando estiver na cozinha, pegue um pão, o maior que encontrar. Não importa como vai fazer isso, roube, se for preciso. Depois leve-o no quarto das jóias. Use a chave e espere por mim lá dentro. Preciso tratar de umas coisas. Então digo o que mais terá de fazer. Acha que é capaz disso?
— Claro. É fácil.
— Pois então vá.
Ela entrou no grande salão do primeiro andar e Giller subiu a escada silenciosamente. A escada da cozinha ficava no outro lado da escadaria no centro, usada pela rainha. Rachel gostava de subir a grande escada com a princesa porque tinha tapete e não era fria como a de pedra que ela devia usar. O salão era aberto no meio, onde a escada grande ia dar em um salão assoalhado com quadrados de mármore brancos e pretos. Eram muito frios sob seus pés.
Rachel tentava pensar em um meio de apanhar um pão grande sem precisar roubar, quando viu a princesa Violeta atravessando a sala, na direção da escadaria. A costureira e duas ajudantes a acompanhavam, carregando peças de tecido cor-de-rosa. Rachel procurou um lugar para se esconder, mas já tinha sido vista pela princesa.
— Bom você estar aqui, Rachel — disse a princesa. — Venha cá.
Rachel obedeceu e fez uma curvatura.
— Sim, princesa Violeta.
— O que você está fazendo?
— O que você mandou. Estava indo para a cozinha.
— Muito bem.. não precisa ir.
— Mas, princesa Violeta, tenho de ir!
A princesa franziu a testa.
— Por quê? Estou dizendo que não precisa.
Rachel mordeu os lábios; a testa franzida da princesa a apavorava. Tinha de pensar no que Giller diria.
— Bem, se não quer que eu vá, não vou — disse ela. — Mas seu almoço foi simplesmente horrível e eu detestaria ver você comer outra refeição igual. Deve estar faminta por alguma coisa boa. Mas se não quer que eu vá, não vou.
A princesa pensou por um minuto.
— Pensando melhor, vá em frente, foi mesmo horrível. Não deixe de dizer a eles o quanto estou zangada!
— Sim, princesa Violeta. — Fez uma cortesia e deu alguns passos.
— Vou fazer uma prova do vestido. — Rachel virou para trás. — Depois quero ir ao quarto das jóias para experimentar algumas que combinem com meu vestido novo. Quando der o recado para os cozinheiros, apanhe a chave e me espere lá.
Rachel teve a impressão de que seus lábios estavam grudados.
— Mas, princesa, não prefere esperar até amanhã, quando o vestido estiver pronto, para escolher as jóias?
A princesa Violeta ficou surpresa.
— Bem, sim, isso seria muito bom, experimentar as jóias com o vestido. — Pensou por algum tempo e começou a subir a escada. — Ainda bem que você pensou nisso.
Rachel respirou e foi para a escada de serviço. A princesa a chamou.
— Pensando bem, Rachel, preciso escolher alguma coisa para o jantar desta noite, portanto, preciso ir ao quarto das jóias. Encontre-se lá comigo daqui a pouco.
— Mas, princesa...
— Nada de mas. Depois de dar o recado aos cozinheiros, vá apanhar a chave e me espere no quarto das jóias. Irei para lá assim que terminar a prova.
A princesa subiu a escadaria e desapareceu.
O que ia fazer agora? Giller ia se encontrar com ela no quarto das jóias também. Sua respiração estava entrecortada, como se fosse chorar. O que ia fazer?
Faria o que Giller tinha dito. Ia ser corajosa. Para que as pessoas não tivessem as cabeças cortadas. Conteve o choro e desceu para a cozinha, imaginando para quê Giller queria um pão grande.
— Muito bem, o que você acha? — murmurou ele. — Alguma idéia?
Kahlan estava deitada no chão muito perto dele, olhando para a cena lá embaixo.
— Nem posso imaginar — murmurou ela. — Nunca vi tantos gares de cauda curta juntos.
— O que eles estarão queimando?
— Não estão queimando nada. A fumaça sai do chão. Este lugar se chama Fonte de Fogo. Aquelas são as aberturas por onde a fumaça sai e em outra a água ferve de baixo para cima e mais adiante onde outras coisas fervem, líquido amarelo malcheiroso e lama espessa. Não tenho idéia do que os gares estão fazendo aqui.
— Bem, olhe para lá, para o fundo, onde a encosta começa a subir, onde fica a maior abertura. Tem alguma coisa em cima dela, uma coisa oval envolta em vapor. Eles estão sempre indo até lá, para tocar na coisa.
Kahlan balançou a cabeça.
— Você enxerga melhor do que eu. Não vejo o que é, nem mesmo se é redonda.
Richard sentia e ouvia roncos debaixo dos pés, alguns acompanhados por enorme emissão de vapor. O cheiro horrível e sufocante de enxofre chegava até as árvores anãs, no penhasco onde estavam escondidos.
— Talvez seja bom olhar mais de perto — murmurou ele, meio para si mesmo, olhando para os gares.
— Isso seria mais do que tolice — murmurou ela zangada. — Seria estupidez completa. Um gar já é problema suficiente, ou será que esqueceu tão depressa? Deve haver dúzias deles lá embaixo.
— Você tem razão. O que é aquilo atrás deles, um pouco acima, no lado da montanha? Uma caverna?
Ela olhou para a abertura escura.
— Sim, chama-se a Caverna do Shadrin. Dizem que atravessa a montanha e vai até o vale, no outro lado. Mas não sei se alguém tem certeza, nem se existe alguém disposto a descobrir.
Richard viu os gares despedaçando um animal, brigando sobre a presa.
— O que é um shadrin?
— Shadrin é uma besta que supostamente vive na caverna. Alguns dizem que é um mito, outros juram que é real, mas ninguém quer se certificar.
Richard olhou para ela.
— E o que você acha?
Kahlan deu de ombros.
— Eu não sei. Há muitos lugares em Midlands onde supostamente existem feras. Estive em muitos deles e não encontrei fera nenhuma. A maioria dessas histórias é apenas isso, uma história. Mas não todas.
Richard ficou satisfeito de ouvir Kahlan falar. Era muito mais do que ela dizia havia dias. O comportamento estranho dos gares aparentemente despertou sua curiosidade e a tirou, por alguns instantes, do distanciamento. Mas não podiam ficar deitados ali conversando. Estavam perdendo tempo, além disso, se demorassem mais, as moscas dos gares os encontrariam. Arrastaram-se para trás, para longe da borda do penhasco, com as cabeças abaixadas e sem fazer barulho. Kahlan se recolheu outra vez no silencio.
Uma vez longe dos gares, voltara para a estrada, a caminho de Tamarang, a terra do agreste governada pela rainha Milena. Logo chegaram a uma encruzilhada. Richard calculou que deviam ir para a direita porque Kahlan dissera que Tamarang ficava a leste. Os gares e a Fonte de Fogo estavam à esquerda deles. Kahlan seguiu pela estrada da esquerda.
— O que está fazendo? — Richard tinha de vigiá-la de perto, desde que saíram de Agaden Reach. Não podia mais confiar nela. Tudo que Kahlan queria era morrer e ele sabia que ia conseguir, se ele não vigiasse seus menores movimentos.
Ela olhou para ele com o rosto inexpressivo dos últimos dias.
— Isso se chama uma encruzilhada invertida. Lá na frente, onde não dá pra ver, por causa da disposição do terreno e do bosque fechado, as estradas se entrecruzam e mudam de direção. Por causa do arvoredo fechado, é difícil dizer onde está o sol, para onde você está indo. Se tomarmos a estrada da direita aqui, vamos chegar aos gares. A da esquerda nos leva a Tamarang.
Richard ficou intrigado.
— Por que alguém se daria ao trabalho de construir uma estrada como esta?
— É só um pequeno modo entre os muitos usados pelos dirigentes de Tamarang para confundir invasores e afastá-los do agreste. As vezes isso os detinha o tempo suficiente para que os defensores recuassem e se reagrupassem, se fosse preciso, e então voltaram ao ataque.
Ele olhou para ela por algum tempo, tentando resolver se era verdade. Irritava Richard ter de se preocupar em saber se Kahlan estava dizendo a verdade.
— Você é a guia — disse ele, afinal. — Vá em frente.
Em silencio, Kahlan começou a andar. Richard não sabia por quanto tempo ia suportar aquilo. Kahlan só falava quando era necessário, não ouvia quando ele tentava conversar e recuava sempre que ele se aproximava. Era como se ele fosse veneno, mas Richard sabia que ela se preocupava com o próprio contato. Teve esperança de que o fato de ela ter falado quando viram os gares significasse uma mudança, mas se enganou. Kahlan voltara rapidamente à atitude sombria. A cada passo, ela se distanciava mais e mais dele. Richard sabia que a estava perdendo, mas não tinha idéia do que podia fazer.
À noite, quando Kahlan vigiava e ele dormia, tinha de amarrar as mãos e os pés dela para que não se matasse. Na primeira vez em que ele a amarrou, Kahlan aceitou indiferente. Para ele foi muito doloroso. Mesmo assim, tinha de dormir com um olho aberto. Dormia aos pés dela; assim, se Kahlan visse ou ouvisse alguma coisa, podia acordá-lo. Richard estava morto de cansaço com toda aquela tensão.
Desejou nunca ter procurado Shota. A idéia de que Zedd se voltaria contra ele era inconcebível. A idéia de que Kahlan também faria isso era insuportável.
Richard comeu alguma coisa. Procurava dar um tom alegre à voz para animá-la.
— Tome, coma um pouco deste peixe seco — disse ele, sorrindo –, está realmente horrível.
Ela não sorriu.
— Não, obrigada. Não estou com fome.
Só com esforço Richard mantinha o sorriso e disfarçava a ira. Sua cabeça latejava.
— Kahlan, há dias você quase não come. Precisa comer.
— Eu disse que não quero.
— Vamos. Por mim? — insistiu ele.
— O que você vai fazer agora? Vai me segurar e me dar comida à força?
A voz calma dela o deixou furioso, mas ele disfarçou do melhor modo possível com o tom de voz, senão com as palavras.
— Se for preciso.
Ela se virou para ele.
— Richard, por favor! Deixe-me ir! Não quero estar com você! Deixe-me ir! — Era a primeira vez que ela demonstrava emoção desde Agaden Reach.
Foi a vez de Richard esconder suas emoções.
— Não.
Kahlan olhou para ele com fogo nos olhos verdes.
— Não pode me vigiar a cada minuto. Mas cedo ou mais tarde...
— Cada minuto.. se for preciso.
Entreolharam-se furiosos. Então a emoção desapareceu do rosto dela e Kahlan continuou a andar.
Tinham parado só por alguns minutos, mas foi o bastante para que a coisa que os seguia cometesse outro erro, um erro rato. Baixou a guarda brevemente e se aproximou mais — o suficiente para que Richard visse os ferozes olhos amarelos outra vez, apenas por um instante.
Richard sabia que estavam sendo seguidos desde o segundo dia da viagem. Anos passados sozinho nos bosques faziam com que percebesse quando alguém ou alguma coisa o seguia. Era um jogo que ele e os outros guias faziam às vezes no Bosque Hartland, ver até onde podiam seguir uns aos outros sem ser descobertos. Fosse o que fosse que os seguia agora, era bom nesse jogo. Mas não tanto quanto Richard. Por três vezes, agora Richard vira os olhos amarelos, quando ninguém mais teria visto.
Sabia que não era Samuel, o amarelo era mais escuro e os olhos mais juntos — e a coisa era mais esperta. Não podia ser um sabujo do coração. Eles teriam atacado muito tempo antes. Fosse o que fosse, apenas vigiava.
Richard estava certo de que Kahlan não tinha visto. Ela estava muito distante, perdida nos seus pensamentos sombrios. Mais cedo ou mais tarde a coisa apareceria e Richard estaria pronto. Mas com Kahlan daquele jeito, não precisava de mais problemas.
Ele não olhou para trás, mostrando que suspeitava, não voltou na estrada e não fez um circulo inesperado, como ele e os outros guias chamava de manobra, mas deixou que seus olhos percebessem as imagens rápidas quando elas apareciam, sem dar a perceber que as tinha visto. Estava razoavelmente certo de que a coisa que os seguia não desconfiava de que ele a tinha visto. Por enquanto, era assim que ele queria continuar. A vantagem estava do seu lado.
Observou Kahlan andando com os ombros curvados para a frente, imaginando o que faria quando chegassem a Tamarang. Quer Richard gostasse ou não, ela estava vencendo aquela batalha lenta, simplesmente porque as coisas não podiam continuar assim. Ela podia fracassar muitas vezes, mas bastava ter sucesso uma vez. Richard tinha de vencer sempre. Um descuido faria com que Kahlan desse fim à própria vida. No fim, Richard sabia, ele não podia vencer, sabia que ia perder e não conseguia pensar em nada para mudar aquilo.
Rachel sentou na banqueta baixa, na frente da cadeira alta recoberta de veludo vermelho, botões e entalhes de ouro, esperando, batendo os joelhos. Depressa, Giller, ela pensava, depressa, antes que a princesa chegue. Olhou para a caixa da rainha. Esperava que, quando a princesa viesse experimentar as jóias, não tocasse na caixa outra vez. Rachel detestava quando ela fazia aquilo, ficava morrendo de medo.
A porta se abriu um pouco e a cabeça de Giller apareceu.
— Depressa, Giller — murmurou ela.
O rosto dele entrou. Pôs a cabeça para fora, olhou para os dois lados do corredor e fechou a porta. Olhou para ela.
— Pegou o pão?
— Está aqui. — Tirou o embrulho de baixo da cadeira e pôs na banqueta. — Embrulhei numa toalha para ninguém ver.
— Muito bem — ele sorriu e deu as costas para ela.
Rachel sorriu para ele, depois franziu a testa.
— Tive de roubar. Nunca roubei nada antes.
— Pode estar certa de que foi por uma boa causa. — ele olhou para a caixa.
— Giller, a princesa Violeta vem para cá.
Ele arregalou os olhos.
— Quando?
— Ela disse que depois de provar o vestido novo. Ela é muito exigente, por isso pode demorar um pouco, mas talvez não. Ela gosta de experimentar jóias na frente do espelho.
— Malditos espíritos — murmurou Giller —, nada é muito fácil. — Virou-se e tirou a caixa da rainha do pedestal de mármore.
— Giller! Não deve tocar nisso! É da rainha!
Ele pareceu enlouquecido quando olhou para ela.
— Não! Não é! Espere um pouco, que eu explico.
Pôs a caixa no chão, ao lado do pão. Tirou do manto outra caixa. — O que você acha desta? — Com um sorriso de canto de boca, estendeu a caixa para ela.
— Parece igual!
— Ótimo. — Pôs a caixa no pedestal, se sentou no chão ao lado dela e da banqueta. — Agora, ouça com atenção, Rachel. Não temos muito tempo e é muito importante que você compreenda.
Rachel viu que ele falava sério.
— Vou prestar atenção, Giller.
Ele pôs a mão na caixa.
— Esta caixa tem magia e não pertence à rainha.
Rachel ficou intrigada.
— Não? De quem é então?
— Não tenho tempo para explicar agora. Talvez depois que estivermos longe daqui. O importante é que a rainha é uma pessoa má. — Rachel concordou, inclinando a cabeça. Sabia que era verdade. — Ela corta cabeças só para se divertir. Não se importa com ninguém, a não ser ela mesma. Ela tem poder. Poder significa que pode fazer o que quiser. Esta caixa tem magia e a ajuda a ter poder. Por isso ela a pegou.
— Compreendo. Como a princesa tem poder, pode me esbofetear, picar meu cabelo e rir de mim.
— É isso. Muito bem, Rachel. Agora, há um homem pior ainda do que a rainha. O nome dele é Darken Rahl.
— O pai Rahl? — Rachel ficou confusa. — Todo mundo diz que ele é bom. A princesa diz que é o melhor homem do mundo.
— A princesa também diz que não derrama molho no vestido. — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Isso é mentira.
Giller pôs as mãos nos ombros dela, muito suavemente.
— Ouça com atenção. Darken Rahl, o Pai Rahl, é o homem mais cruel que já existiu no mundo. Ele faz mal a mais gente do que a rainha pode pensar. É tão malvado que até mata crianças. Você sabe o que isso significa, matar alguém?
Rachel ficou triste e assustada.
— Significa que você corta a cabeça e faz a pessoa morrer.
— E do mesmo modo que a princesa ri quando a esbofeteia, Darken Rahl ri quando mata as pessoas. Sabe como a princesa é no jantar, com todos os cavalheiros e as damas, como é agradável e bem-educada? Mas quando está sozinha com você ela bate no seu rosto?
Rachel fez que sim com a cabeça, sentindo um nó na garganta.
— Ela não quer que saibam o quanto é malvada.
Giller levantou um dedo.
— Exatamente! Você é uma menina muito inteligente. Muito bem, o Pai Rahl também é assim. Não quer que saibam que ele é malvado, por isso pode ser muito cortês e parecer o melhor homem do mundo. Aconteça o que acontecer, Rachel, fique sempre longe dele, se puder.
— Vou ficar, pode estar certo.
— Mas se ele falar com você, seja delicada também, não deixe que ele desconfie de que você sabe. Não deve deixar que os outros saibam tudo que você sabe. Assim estará segura.
— Como Sara — sorriu ela. — Não deixo que ninguém saiba que ela existe, para que não a possam tomar de mim. Desse modo, ela está segura.
Ele a abraçou rapidamente.
— Louvados sejam os espíritos. Você é uma criança inteligente. — Rachel ficou feliz. Ninguém nunca tinha dito que ela era inteligente. — Agora, ouça com atenção. Esta é a parte importante.
— Vou ouvir, Giller.
Ele pôs outra vez a mão na caixa.
— Esta caixa tem magia. Quando a rainha a der ao Pai Rahl, ele vai poder usar essa magia para fazer mal às pessoas. Vai cortar muitas cabeças mais. A rainha é uma pessoa malvada e quer que ele faça isso, por isso vai dar a caixa a ele.
Rachel arregalou os olhos.
— Giller, não podemos deixar que ela dê a caixa a ele. Senão, todo mundo vai ter a cabeça cortada.
Um largo sorriso apareceu sob o nariz adunco. Giller segurou o queixo dela.
— Rachel, você é a menina mais inteligente que já conheci. De verdade.
— Temos de esconder a caixa como eu escondi Sara!
— É o que vamos fazer — Giller apontou para a caixa que acabava de pôr no pedestal. — Essa é uma caixa falsa. Isso quer dizer que eles serão enganados por algum tempo e poderemos sair daqui antes que descubram que a verdadeira desapareceu.
Ela olhou para a caixa falsa. Era igual à verdadeira.
— Giller, você é o homem mais inteligente que já conheci.
O sorriso dele esfriou um pouco.
— Na verdade, minha filha, acho que sou inteligente demais para meu próprio bem. — O sorriso aqueceu outra vez. — Ouça o que vamos fazer.
Giller pegou o pão roubado da cozinha e o partiu ao meio. Com as mãos grandes, tirou um pouco do miolo. Uma parte enfiou na boca, suas bochechas estufaram, era miolo demais. Ele pôs um pouco na boca de Rachel. Ela mastigou o mais depressa possível. Estava bom, ainda quente. Quando terminaram de comer, ele pôs a caixa verdadeira no meio do pão, juntou as duas partes e mostrou para ela.
— O que você acha?
Ela fez uma careta.
— Está todo rachado. Todos vão saber que foi partido.
Ele balançou a cabeça.
— Inteligente. Você é mesmo inteligente. Muito bem, como sou mago, talvez eu possa fazer alguma coisa. O que você acha?
— Talvez.
Giller pôs o pão no colo e girou as mãos no ar por cima dele. Abaixou as mãos e segurou o pão na frente dela outra vez. As rachaduras tinham desaparecido! O pão parecia novo em folha!
— Agora, ninguém vai saber — ela riu, divertida.
— Esperemos que você tenha razão, minha filha. Teci uma teia de mago, um encantamento mágico em volta do pão, para que ninguém possa ver a magia da caixa dentro dele.
Giller estendeu o pano em cima da banqueta e pôs o pão em cima, depois virou os quatro cantos para dentro e atou com um nó. Levantou o embrulho pelo nó e o pôs na palma da outra mão, na frente dela. Olhou nos olhos de Rachel sem sorrir. Parecia quase triste.
— Agora a parte difícil, Rachel. Temos de tirar a caixa daqui. Não podemos esconder no castelo, porque seria encontrada. Lembra onde escondi a boneca, no jardim?
Rachel sorriu orgulhosa. Sim, ela lembrava.
— Terceira urna à direita.
— É onde vou esconder isto, como escondi a boneca. Você deve apanhá-la, como apanhou a boneca e levá-la para fora do castelo. — Inclinou-se para ela. — Tem de fazer isso esta noite.
Rachel começou a enrolar a bainha do vestido com o dedo. As lágrimas apareceram nos seus olhos.
— Giller, tenho medo de tocar na caixa da rainha.
— Sei que tem medo. Mas não se lembra de que a caixa não é da rainha? Você quer evitar que toda aquela pobre gente tenha a cabeça cortada, não quer?
— Sim — choramingou ela. — Mas você não pode tirar a caixa do castelo?
— Se pudesse, juro, Rachel, que tiraria. Mas não posso. Algumas pessoas me vigiam e não querem que eu saia do castelo. Se me encontrassem com a caixa, então o Pai Rahl ficaria com ela e não podemos permitir isso, podemos?
— Não... — Então ela ficou realmente apavorada. — Giller, você disse que ia fugir comigo. Você prometeu.
— E pretendo cumprir essa promessa, acredite. Mas posso levar alguns dias para poder sair de Tamarang. É muito perigoso a caixa ficar aqui mais um dia e eu não posso levá-la para fora. Você deve fazer isso. Leve para seu lugar secreto, para seu pinheiro amigo. Espere por mim lá até eu poder cobrir sua fuga, que vou me encontrar com você.
— Acho que eu consigo. Se você diz que é importante, vou tentar.
Giller se sentou na banqueta. Levantou Rachel, segurando-a pela cintura e a pôs no colo.
— Rachel, ouça bem. Mesmo que você viva cem anos, nunca mais vai fazer uma coisa tão importante. Deve ser corajosa, mais corajosa do que nunca. Não deve confiar em ninguém. Não deve deixar que alguém pegue a caixa. Dentro de alguns dias, estarei com você, mas, se alguma coisa sair errada e eu não aparecer, você deve se esconder com a caixa até o inverno. Então tudo estará bem. Se eu conhecesse alguém que pudesse ajudar você, eu o procuraria. Mas não conheço. Você é a única pessoa que pode fazer isso.
Rachel olhou arregalada para ele.
— Eu sou tão pequena... — disse ela.
— Por isso estará segura. Todos pensam que você é ninguém. Mas isso não é verdade. Você é a pessoa mais importante do mundo, mas pode enganá-los porque eles não sabem. Você tem de fazer isso, Rachel. Preciso muito da sua ajuda, bem como todas as outras pessoas. Sei que é bastante inteligente e corajosa.
Rachel viu que os olhos dele estavam cheios de lágrimas.
— Vou tentar, Giller. Vou ser corajosa. Você é o melhor dos melhores homens do mundo. Se me diz para fazer, eu faço.
Ele balançou a cabeça.
— Eu fui um homem muito tolo, Rachel, nem de perto tenho sido o melhor homem do mundo. Se eu tivesse sido sensato antes e me lembrasse do que me ensinaram, do meu verdadeiro deve, da razão pela qual me tornei mago, talvez não tivesse de pedir isso a você. Mas, assim como esta é a coisa mais importante que você jamais fará na vida, é também a mais importante que jamais farei. Você não pode fracassar, Rachel. Não pode. Aconteça o que acontecer, não deixe que ninguém a detenha. Ninguém.
Ele pôs um dedo de cada lado da testa dela e Rachel teve uma sensação de segurança. Sabia que ia conseguir e que nunca mais precisaria obedecer à princesa. Seria livre. Giller retirou os dedos bruscamente.
— Vem vindo alguém — murmurou ele. Beijou rapidamente a cabeça dela. — Que os bons espíritos a protejam, Rachel.
Giller se levantou e encostou na parede, atrás da porta. Guardou o pão sob o manto e encostou um dedo nos lábios. A porta se abriu e Rachel se levantou de um salto. Era a princesa Violeta. Rachel fez uma curvatura. Quando ergueu o corpo, a princesa a esbofeteou, depois riu. Rachel olhou para o chão e, enquanto esfregava o rosto, contendo as lágrimas, viu um pedaço de pão entre os pés da princesa Violeta. Olhou rapidamente para Giller espremido na parede atrás da porta. Ele viu também. Mais quieto do que um gato, ele se curvou e pegou o pedaço de pão, pôs na boca e saiu pela porta atrás da princesa Violeta, sem que ela o visse.
Kahlan estendeu os braços para ele, as mãos fechadas, os pulsos muito juntos, esperando que Richard os amarasse com a corda. Os olhos parados olhavam para alguma coisa. Kahlan tinha dito que não estava cansada, mas Richard estava — sua cabeça latejava tanto que chegava a provocar náuseas —, por isso ela ia fazer o primeiro turno da vigia. Richard não sabia de que adiantava aquela vigia, olhando daquele modo sem ver. Ele amarrou com força os pulsos dela, vendo desapareceu sua ultima esperança. Nada estava mudando, nada estava ficando melhor, como tinha esperado, era apenas uma batalha sem fim, Kahlan querendo morrer, Richard tentando constantemente evitar.
— Não posso continuar a fazer isso — murmurou ele, olhando para os pulsos dela à luz da pequena fogueira. — Kahlan, é você que quer morrer mas é a minha que está matando.
Os olhos verdes ergueram-se para ele, refletindo a luz do fogo.
— Então deixe-me ir, Richard. Por favor, se gosta um pouco de mim, deixe-me ir.
Ele deixou cair a corda. Com mãos tremulas, tirou do cinto a faca de Kahlan e olhou para ela por um minuto. O brilho da lâmina parecia obscuro aos seus olhos. Segurando com força o cabo da arma, ele a pôs na bainha na cintura de Kahlan.
— Você venceu. Saia daqui. Saia da minha frente.
— Richard...
— Eu disse, saia! — Apontou para o caminho por onde tinham vindo. — Volte e deixe que os gares se encarreguem disso. Você pode não fazer um bom trabalho com faca! Detesto pensar que você pode não fazer a coisa direito e que depois de tudo isso possa não morrer.
Deu as costas para ela e se sentou num abeto derrubado pelo vento, à frente do fogo. Ela olhou para ele em silencio, depois deu alguns passos.
— Richard.. depois de tudo que passamos juntos, não quero que termine assim.
— Não me importa o que você quer. Você perdeu esse direito. — Então, com esforço disse: — Saia da minha frente.
Kahlan olhou para o chão. Richard se inclinou para a frente, os cotovelos nos joelhos, o rosto nas mãos trêmulas. Teve vontade de vomitar.
— Richard — disse ela suavemente —, quando tudo isto terminar, espero que possa pensar em mim sem rancor, com mais carinho do que sente agora.
Foi a gota d’água. Ele se levantou do tronco caído e agarrou o camisão dela.
— Vou me lembrar de você pelo que você é! Uma traidora! Traidora de todos os que morreram, de todos que vão morrer! — Assustada, ela tentou se livrar dele, mas Richard não permitiu. — Traidora de todos os magos que deram a vida, de Shar, Siddin e das pessoas do Povo da Lama que foram mortas. Traidora de sua irmã!
— Isso não é verdade...
— Traidora de todos esses e de outros mais! Se eu falhar e Rahl vencer, será graças a você. É a você que Darken Rahl deverá agradecer. Você o terá ajudado!
— Faço isso para ajudar você! Você ouviu o que Shota disse. — Ela começou a ficar zangada também.
— Não venha com isso. Não caio nessa. Sim, ouvi o que Shota disse. Ela disse que você e Zedd se voltarão contra mim. Não disse que estarão errados!
— Como assim?
— Isso não é uma aventura para mim. É para deter Rahl! Como você sabe que quando tivermos a caixa não serei eu quem vai entregá-la a ele? E se eu for o traidor e a única chance de evitar que Rahl tenha a caixa é você e Zedd tentarem me deter?
— Isso não tem sentido.
— Tem mais sentido do que você e Zedd tentarem me matar? Seria necessário que os dois estivessem errados, mas, se eu for o traidor, será necessário só um estar. É apenas um enigma idiota de uma feiticeira! Você vai morrer por um enigma idiota! Não podemos saber o que acontecerá. Não podemos saber o significado do que ela disse, qual será a verdade! Ou se há alguma verdade. Não enquanto não acontecer! Só então podemos saber o que significa e tenta resolver.
— Só sei que não me posso permitir viver para realizar a profecia. Você é o fio que tece esta luta.
— E esse fio não pode tecer sem a agulha! Você é minha agulha. Sem você, eu não teria chegado até aqui. A cada curva preciso de você. Hoje, na encruzilhada invertida, eu teria tomado o caminho errado. Você conhece a rainha, eu não. Mesmo que eu consiga a caixa sem você, e depois? Para onde irei? Não conheço Midlands. Para onde eu iria, Kahlan, diga-me. Como saberei onde posso estar seguro? Posso ir diretamente para as mãos de Rahl, levar a caixa diretamente a ele.
— Shota disse que você é o único com alguma chance. Sem você, tudo estará perdido. Não sem mim. Sem você. Ela disse que se viver... Richard, não posso permitir isso. Não vou permitir.
— Você está nos traindo — ele insistiu num murmúrio.
Kahlan balançou a cabeça devagar.
— A despeito do que você pensa, Richard, faço isso por você.
Com um grito, Richard a empurrou para trás com toda a força. Kahlan caiu de costas no chão. Richard ficou de pé ao lado dela, olhando furioso para baixo, com a poeira erguendo-se em volta dos pés.
— Não se atreva a dizer isso! — gritou ele, fechando os punhos. — Faz isso por você mesma, porque não tem coragem para enfrentar o que a vitória exige! Não se atreva a dizer que faz isso por mim!
Kahlan se levantou, sem tirar os olhos dele.
— Richard, eu daria quase tudo para que você não se lembrasse de mim desse modo. Mas faço o que devo fazer. Por você. Para que você tenha uma chance. Jurei proteger o Seeker com a minha vida. Chegou a hora do pagamento. — As lágrimas desciam no seu rosto entre a poeira.
Ao ver Kahlan se virar e desaparecer no escuro, Richard sentiu como se alguma coisa tivesse se desligado dentro dele e a vida estivesse escoando do seu corpo.
Foi para perto do fogo e deslizou o corpo para baixo, encostado no tronco caído, até se sentar no chão. Ergueu os joelhos e passou os braços em volta, apoiou o rosto neles e chorou como jamais tinha chorado.
Sentada na banqueta baixa atrás da princesa, Rachel batia um joelho no outro, pensando em um meio de fazer com que a princesa a mandasse sair do castelo para levar a caixa e nunca mais voltar. Pensava no pão com a caixa dentro, que a esperava no jardim. Estava com medo, mas excitada também. Porque estaria ajudando toda aquela gente a não ter a cabeça cortada. Era a primeira vez em que se sentia como uma pessoa importante. Torceu a bainha do vestido. Mal podia esperar para sair dali.
Todos os cavalheiros e damas tomavam a bebida especial. Pareciam felizes. Giller estava de pé atrás da rainha, com os outros conselheiros. Conversava em voz baixa com o artista da corte. Rachel não gostava do artista, ele a assustava, sempre sorria de modo estranho para ela. E tinha só uma das mãos. Rachel ouvira os criados dizendo que tinham medo de que o artista os pintasse num quadro.
Os convidados começaram a ficar assustados. Olharam para a rainha e começaram a se levantar. Rachel olhou para a rainha e viu que eles não estavam olhando para ela, mas para outra coisa atrás dela. Rachel arregalou os olhos quando viu os dois homens grandes.
Eram os maiores homens que já tinha visto. Suas camisas não tinham mangas, mas os braços exibiam argolas de metal com pontas aguçadas. Eram musculosos e seu cabelo era amarelo. Pareciam os homens mais malvados do mundo, piores até do que os guardas das masmorras. Eles olharam em volta, para os convidados, depois ficaram de pé, cada um de um lado do arco de entrada da sala atrás da rainha, e cruzaram os braços. A rainha bufou e se virou para trás para ver o que estava acontecendo.
Um homem de olhos azuis, cabelo louro comprido, vestindo um manto branco com uma faca com cabo de ouro no cinto entrou na sala. Era o homem mais bonito que Rachel já tinha visto. Ele sorriu para a rainha. Ela se levantou de um salto.
— Que surpresa! — disse ela com sua voz mais gentil. — É uma honra para nós. Mas o esperávamos amanhã.
O homem sorriu oura vez gentilmente para ela.
— Não pude esperar para vir aqui, para ver seu rosto adorável outra vez. Perdoe-me por ter vindo mais cedo, majestade.
Com uma risadinha nervosa, a rainha estendeu a mão para ser beijada. Estava sempre fazendo todo mundo beijar sua mão. Rachel ficou surpresa com o que o homem bonito tinha dito. Nunca pensou que alguém pudesse achar adorável o rosto da rainha. A rainha segurou as mãos dele e o levou para a frente dos convidados.
— Senhores e senhoras, permitam-me que lhes apresente o Pai Rahl.
Pai Rahl! Rachel olhou em volta para ver se alguém a vira dar um pulo na banqueta, mas estavam todos olhando para o Pai Rahl. Rachel tinha certeza de que ele ia olhar para ela e descobrir que estava pronta para fugir com a caixa. Olhou para Giller, mas ele não a olhou. Estava muito pálido. O Pai Rahl chegara antes de ela fugir com a caixa! O que Rachel ia fazer?
Ia fazer o que Giller tinha dito: ser corajosa e salvar todas aquelas pessoas que agora estavam ali de pé. O cachorrinho latiu. Pai Rahl se voltou para o lugar de onde vinha o som e o cachorro parou de latir e começou a ganir baixinho. Ele voltou a olhar para os convidados, que estavam em completo silêncio.
— O jantar terminou. Vão nos dar licença agora — disse ele, com voz suave.
Todos começaram a murmurar. Os olhos azuis os observavam. O murmúrio cessou e as pessoas começaram a se retirar, vagarosamente a principio, depois depressa. Pai Rahl olhou para alguns conselheiros e eles saíram, satisfeitos. Para poucos ele não olhou, incluindo Giller, e eles ficaram. A princesa Violeta também ficou e Rachel tentou se esconder atrás dela para não ser notada. A rainha sorriu e levantou a mão, indicando a mesa.
— Não quer se sentar, Pai Rahl? Tenho certeza de que fez uma viagem cansativa. Permita que o sirvam de alguma coisa para comer. Temos um belo assado esta noite.
Ele olhou para ela com os olhos parados.
— Não aprovo carnificina de animais indefesos para comer-lhes a carne.
Rachel pensou que a rainha ia sufocar.
— Bem, então... temos também uma ótima sopa de nabos e algumas outras coisas, tenho certeza de que deve haver alguma coisa; se não tivermos, os cozinheiros podem preparar o que for do...
— Talvez em outra ocasião. Não estou aqui para comer, estou aqui para receber sua contribuição à aliança.
— Mas... é muito mais cedo do que eu esperava, não terminamos a redação do acordo, muitos papéis ainda precisam ser assinados e com certeza vai querer examiná-los primeiro.
— Terei prazer em assinar o que estiver pronto e dou minha palavra de que assinarei qualquer documento adicional que tenham redigido. Confio na sua honestidade para fazermos um acordo justo — sorriu ele. — Não tem intenção de me enganar com seus acordos, tem?
— É claro que não, Pai Rahl.
— Pois então é isso. Por que vou precisar de que alguém examine os papéis, se está sendo honesta comigo? Está sendo honesta, não foi o que disse?
— Bem, é claro que estou. Acho que não há necessidade... mas isso é muito fora do comum.
— Como nossa aliança. Então, vamos em frente.
— Sim. Sim, é claro. — Voltou-se para um dos conselheiros. — Vá apanhar tudo sobre a aliança que já estiver pronto. Traga penas e tinta. E o meu selo. — O conselheiro fez uma mesura e saiu. A rainha se virou para Giller. — Seja onde for que tenha escondido a caixa, vá buscá-la.
Giller curvou o corpo.
— É claro, majestade.
Rachel se sentiu sozinha e com medo quando Giller saiu da sala, com o manto prateado flutuando atrás dele.
Enquanto esperavam, a rainha apresentou a princesa ao Pai Rahl. Rachel ficou atrás da cadeira da princesa quando ela se adiantou para ter a mão beijada. O Pai Rahl se inclinou para ela, beijou sua mão e disse que ela era tão bonita quanto a mãe. A princesa sorriu muito e encostou no peito a mão que ele tinha beijado.
O conselheiro voltou com seus auxiliares; cada um carregava braçadas de papéis. Empurraram os pratos da mesa, fazendo lugar para os papéis, virados para a rainha e para o Pai Rahl. Um dos auxiliares pingou cera vermelha derretida nos papéis e a rainha calcou seu selo. Pai Rahl disse que não tinha selo, mas que bastava assinar seu nome, que tinha certeza de que o reconheceriam no futuro. Giller voltou e ficou num lado, esperando que terminassem. Os homens começaram a recolher os papéis, discutindo sobre a ordem em que deviam ser arrumados. A rainha fez sinal para Giller se adiantar.
— Pai Rahl — disse Giller com seu sorriso mais amável —, permita-me entregar ao senhor a caixa de Orden da rainha Milena. — Estendeu a caixa falsa com as duas mãos, cuidadosamente, como se fosse a verdadeira. As jóias que a ornavam cintilavam.
Pai Rahl sorriu e, cuidadosamente também, tirou a caixa das mãos de Giller. Ele a virou de um lado para outro por um momento, olhando para as belas jóias. Então fez sinal para um dos homens grandes, com todos aqueles músculos, se adiantar. O homem obedeceu e Pai Rahl, olhando nos olhos dele, lhe entregou a caixa.
O homem apertou a caixa com uma das mãos e a esfacelou. A rainha arregalou os olhos.
— O que significa isso? — ela perguntou.
O rosto do Pai Rahl era agora assustador.
— É o que eu quero saber, majestade. Esta caixa é falsa.
— Ora, simplesmente não é possível... de modo algum... eu tenho certeza... — A rainha voltou-se para Giller. — Giller! O que você sabe sobre isso?
Com as mãos enfiadas nos pinhos do manto, ele disse: — Majestade, eu não compreendo... ninguém quebrou o selo mágico, eu mesmo tomei conta disso. Garanto que é a mesma caixa que estou guardando desde que vossa majestade a pôs em minhas mãos. Devia ser falsa desde o principio. Fomos enganados. É a única explicação possível.
Os olhos azuis do Pai Rahl não deixaram o rosto de Giller enquanto ele falava. Então ele olhou para um dos seus homens. O guarda agarrou por trás da gola o manto de Giller e com uma das mãos o ergueu do chão.
— O que está fazendo? Largue-me, seu brutamontes! Respeite um mago ou vai se arrepender, eu garanto! — Seus pés balançavam no ar.
Rachel sentiu um nó na garganta e os olhos cheios de lágrimas. Tentou se corajosa e não chorar. Sabia que, se chorasse, podia ser notada.
Pai Rahl lambeu as pontas dos dedos.
Não é a única explicação possível, mago. A caixa verdadeiramente tem magia, um tipo especial de magia. A magia desta caixa está errada. Uma rainha não poderia notar. Mas um mago sim.
Pai Rahl sorriu para a rainha.
— O mago e eu vamos agora ter uma conversa particular. — Saiu da sala, com o manto branco flutuando atrás dele. O homem que segurava Giller no ar saiu com ele. O outro homem grande parou na frente da porta com os braços cruzados. Os pés de Giller não tocavam o chão.
Rachel quis correr atrás de Giller, temendo por ele. Viu quando ele virou a cabeça e olhou para as pessoas na sala. Os olhos escuros e arregalados do mago por um segundo olharam diretamente nos olhos dela. Então ele ouviu uma voz dentro da sua cabeça, clara como se ele tivesse gritado. A voz gritou apenas uma palavra:
Fuja.
Então ele se foi. Rachel queria chorar. Em vez disso, mordeu a bainha do vestido. Todos em volta da rainha começaram a falar ao mesmo tempo. James, o artista da corte, apanhou alguns pedaços da caixa falsa e os examinou, virando de um lado para outro, apoiando no braço que não tinha mão. A princesa Violeta tirou dele um pedaço grande e passou a mão nas jóias.
Rachel se lembrou da voz dentro da sua cabeça, a voz de Giller, dizendo para ela fugir. Olhou em volta. Ninguém prestava atenção nela. Deu a volta às mesas, com a cabeça mais baixa do que as toalhas, para não ser vista. Quando chegou ao outro lado da sala, olhou para trás para ver se alguém estava olhando. Ninguém.
Tirou alguma comida das bandejas, um pedaço de carne, três pãezinhos e um pedaço grande de queijo duro. Guardou tudo nos bolsos e olhou outra vez para as pessoas que estavam na sala.
Então correu para o corredor. Continha-se para não chorar, procurando ser corajosa para Giller. Seus pés descalços deslizavam no tapete e ela passou pelas tapeçarias penduradas na parede. Antes de chegar aos guardas das portas, diminuiu o passo, para que eles não dissessem nada. Os guardas do lado de fora apenas a olharam brevemente.
Rachel enxugou algumas lágrimas do rosto quando desceu os degraus frios. Tentava evitar as lágrimas, mas algumas escaparam. Os guardas a ignoraram quando ela passou rapidamente pelas pedras em direção ao jardim.
Longe dos archotes presos nas paredes no lado de fora do castelo, estava escuro, mas Rachel sabia o caminho. A grama estava molhada sob seus pés. Na terceira urna, ela se ajoelhou, olhou em volta para ver se havia alguém por perto e pôs a mão debaixo das flores. Sentiu o pano que envolvia o pão e o tirou da floreira. Desfez o nó, abriu as quatro pontas, tirou do bolso a carne, os pãezinhos e o queijo, pôs tudo em cima do pão, depois dobrou para cima outra vez as pontas e deu um nó.
Quando se preparava para correr para o portão externo, ela lembrou e deixou escapar uma exclamação abafada. Parou rígida, com os olhos muito abertos.
Tinha esquecido Sara! A boneca estava ainda na caixa onde ela dormia! A princesa Violeta ia encontrá-la e jogá-la no fogo! Não podia deixar a boneca lá. Estava fugindo para nunca mais voltar. Sara ficaria com medo sem ela. Seria queimada.
Pôs o pão outra vez debaixo das flores, olhou em volta e correu para o castelo. Teve de andar devagar quando chegou perto, outra vez iluminada pela luz dos archotes. Um dos guardas olhou para ela.
— Eu acabei de deixar você sair — disse ele.
Rachel engoliu em seca.
— Eu sei, mas agora preciso voltar por uns dez minutos.
— Esqueceu alguma coisa?
Ela fez que sim com a cabeça e a custou conseguir dizer: — Sim.
O guarda balançou a cabeça e ergueu a pequena janela.
— Abra a porta — disse ele para o guarda que estava no lado de dentro. Rachel ouviu a tranca sendo retirada.
Uma vez dentro do castelo, Rachel olhou para os lados. O salão com o chão de mármore branco e preto e a escadaria ficavam em frente, logo depois vinha os corredores longos e algumas salas grandes. Uma delas era a sala de jantar. Era o caminho mais curto. Mas a rainha ou a princesa podia estar lá ou até mesmo o Pai Rahl. Podiam vê-la. Rachel não podia ser vista. A princesa Violeta era capaz de levá-la para o quarto e trancá-la na caixa. Já era tarde.
Rachel virou-se e entrou na pequena porta à direita. Era o corredor de serviço, muito mais longo, mas ninguém importante a deteria ali, todos sabiam que ela era a companheira de brincadeiras da princesa e não queriam que a princesa ficasse zangada com eles. Teria de passar pela sala em que ficavam os criados, debaixo dos salões e da cozinha.
A escada era de pedra, com as bordas dos degraus gastas. Uma janela no alto deixava passar a chuva e os degraus estavam sempre molhados com a água que escorria das paredes, em alguns lugares pouco, em outros muito e os degraus eram cobertos de limo. Archotes em suportes de ferro faziam com que as pedras e os degraus parecessem vermelhos e amarelos.
Havia algumas pessoas nos corredores no fim da escada, criados carregando roupa de cama e mesa e mulheres faxineiras com baldes de água e esfregões e homens carregando lenha para as lareiras lá em cima. Alguns paravam para conversar em voz baixa. Pareciam nervosos. Rachel ouviu o nome de Giller e sentiu nó na garganta.
Quando passou pelo alojamento dos criados, todos os lampiões a óleo estavam acesos, dependurados nas vigas grandes do teto e em volta deles um grupo conversavam, cada um contando o que tinha visto. Rachel viu um homem falando alto com as mulheres em volta e alguns homens. Era o Sr. Sanders, o criado que usava o sobretudo bonito e cumprimentava as belas senhoras e os cavalheiros que chegavam para jantar e anunciava os nomes deles quando entravam na sala.
— Eu mesmo ouvi dos dois que guardavam a sala de jantar. Sabem de quem estou falando, o jovem Frank e o outro, o que anda mancando, Jenkins. Contaram que os Guardas de D’Hara disseram para que eles pessoalmente que vai haver uma revista no castelo, de alto a baixo.
— O que estão procurando? — perguntou uma mulher.
— Não sei. Pelo menos eles não disseram a Frank e Jenkins. Mas seja lá o que for, eu não queria que estivesse comigo. Aqueles homens de D’Hara podem dar pesadelos em quem está acordado.
— Eu queria que encontrassem o que procuram debaixo da cama de Violeta — disse alguém.
— Seria bom que ela tivesse um pesadelo, para variar, em vez de dar pesadelos à gente .
Todos riram.
Rachel continuou seu caminho atravessando a grande sala de depósito com colunas. Num lado ficavam os barris enfileirados, uns em cima dos outros; caixas, engradados e sacos, no outro. Cheirava a bolor e umidade e ela ouvia os ratos correndo. Atravessou pelo centro, passou pelos lampiões que pendiam dos lados das colunas, até uma porta pesada, no outro lado. As dobradiças de ferro rangeram quando ela puxou a argola de ferro e abriu a porta. Esfregou a mão na pedra para limpar a ferrugem da argola. Outra porta grande à direita levava à masmorra. Rachel subiu a escada. Estava escura, só com um archote no alto, e ela ouvia a água pingando e escoando nas paredes. Passou pela porta entreaberta no topo da escada e foi para os corredores frios com blocos de pedra como o vento que passava por eles. Estava assustada demais para chorar. Queria que Sara estivesse a salvo, com ela, bem longe dali.
Finalmente, no último andar, ela espiou pela porta para os dois lados do corredor que passava pelo quarto da princesa Violeta. O corredor estava vazio. Nas pontas dos pés, sobre o tapete com os desenhos de barcos, chegou à entrada do quarto, um pouco afastada do corredor. Verificou o corredor outra vez. Cautelosamente, entreabriu a porta. O quarto estava escuro. Ela entrou e fechou a porta.
Havia fogo na lareira, mas nenhum lampião aceso. Atravessou o quarto, sentindo o tapete espesso sob os pés descalços. Foi como se um vento gelado tivesse passado por ela.
— Procurando alguma coisa? — Era a voz da princesa Violeta.
Por um momento ela não conseguiu se mover. Sua respiração ficou difícil, mas lutou para conter as lágrimas. Não podia deixar que a princesa Violeta a visse chorando. Saiu da caixa de costas e viu um vulto escuro à frente do fogo. Era a princesa Violeta. Ela deu um passo à frente, afastando-se da lareira, na direção de Rachel. Suas mãos estavam atrás das costas. Não dava para ver o que ela segurava.
— Eu ia entrar na caixa para dormir.
— É mesmo? — Rachel agora podia ver melhor no escuro. Viu o sorriso da princesa Violeta. — Por acaso não estava procurando isto, estava?
Tirou as mãos das costas e Rachel viu Sara. Rachel arregalou os olhos e de repente compreendeu que precisava usar todas as cartas que tinha.
— Princesa Violeta, por favor... — choramingou ela. Estendeu a mão, suplicando.
— Venha cá, vamos conversar.
Lentamente ela se aproximou da princesa e parou na frente dela, torcendo a bainha do vestido. Bruscamente a princesa a esbofeteou, com mais força do que nunca. Foi tão forte que a empurrou para trás. Rachel soltou um grito e levou a mão ao rosto. Seus olhos se encheram de lágrimas. Fechou o punho no bolso, determinada a não chorar dessa vez.
A princesa se aproximou dela e bateu na outra face com as costas da mão. As juntas dos seus dedos doeram mais do que na primeira bofetada. Rachel cerrou os dentes e segurou com força uma coisa no bolso, para impedir as lágrimas.
A princesa Violeta voltou para perto da lareira.
— O que eu disse que faria se você tivesse uma boneca?
— Princesa Violeta, por favor, não faça isso... — Rachel tremia por causa da dor no rosto e porque estava muito assustada. — Por favor, deixe-me ficar com ela. Ela não faz qualquer mal a você.
Com um riso malvado, a princesa disse: — Não. Vou jogar no fogo, como eu disse que faria. Para você aprender. Qual é o nome dela?
— Ela não tem nome.
— Bem, não faz mal, queimará do mesmo modo.
Virou-se para a lareira. Rachel segurava ainda alguma coisa. Tirou do bolso e olhou.
— Se jogar minha boneca no fogo, vai se arrepender.
A princesa se virou para ela rapidamente.
— O que você disse? Como se atreve a falar comigo desse modo? Você é ninguém, eu sou uma princesa.
Rachel encostou o acendedor mágico na toalha que cobria uma pequena mesa de mármore, ao seu lado.
— Acenda para mim — murmurou ela.
A toalha pegou fogo. A princesa ficou surpresa. Rachel encostou o acendedor num livro, sobre outra mesa de mármore. Olhou rapidamente para os olhos da princesa, para se certificar que ela estava vendo, murmurou outra vez e, com um rugido, o livro também se incendiou. A princesa Violeta arregalou os olhos. Rachel pegou o livro por uma ponta e o jogou na lareira. Virou-se para trás, deu um passo e encostou o acendedor na princesa.
— Dê-me a boneca ou eu ponho fogo em você.
— Você não ousaria...
— Agora mesmo! Se não der, ponho fogo em você e sua pele vai ficar toda queimada.
A princesa Violeta deu a boneca a ela.
— Tome. Por favor, Rachel, não me queime. Tenho medo do fogo.
Rachel pegou a boneca com a mão esquerda e a apertou contra o peito, com o acendedor ainda encostado na princesa. Rachel começou a ter pena dela. Então pensou na dor do seu rosto. Doía mais que nunca.
— Vamos esquecer tudo isso, Rachel. Pode ficar com a boneca, está bem? — A voz dela era agradável agora, não agressiva como antes.
Rachel sabia que era um truque. Assim que houvesse guardas por perto, a princesa mandaria cortar sua cabeça. Então a princesa Violeta ia rir de verdade e também queimaria Sara.
— Entre na caixa — disse Rachel. — Para ver como é bom.
— O quê?
Rachel empurrou o acendedor contra a princesa.
— Agora mesmo ou ponho fogo em você.
A princesa Violeta andou devagar, com o acendedor nas suas costas.
— Rachel, pense no que está fazendo; quer mesmo...
— Cale a boca e entre. A não ser que queira pegar fogo.
A princesa ficou de quatro e entrou na caixa. Rachel se abaixou para olhar.
— Vá para o fundo.
A princesa obedeceu. Rachel bateu a porta e foi até a gaveta apanhar a chave. Trancou a porta de ferro e guardou a chave no bolso. Ajoelhou-se e olhou para dentro, pela pequena portinhola. Mal dava para ver os olhos da princesa, no escuro.
— Boa noite, Violeta, Vá dormir. Esta noite vou dormir na sua cama. Estou cansada da sua voz. Se fizer algum barulho, ponho fogo em você. Entendeu?
— Entendi — disse a princesa com voz fraca.
Rachel pôs Sara no chão para erguer o tapete de pele e cobrir com ele a caixa. Foi até a cama e se sentou com força. Fazendo ranger as molas, para que a princesa pensasse que ela ia se deitar.
Sorrindo, Rachel foi nas pontas dos pés até a porta, abraçando Sara.
Depois de voltar pelo caminho que tinha percorrido, passando pelos corredores de serviço e pela porta no fim, olhou cuidadosamente pêra os dois lados do hall de entrada e foi até a porta grande onde ficavam os guardas. Rachel não disse nada. Não conseguia pensar em coisa alguma para dizer. Apenas ficou parada, esperando que eles abrissem a porta.
— Então foi isso que você esqueceu, uma boneca — disse o guarda.
Ela assentiu, balançando a cabeça.
Ouviu a porta se fechar atrás dela quando entrou no escuro e foi para o jardim. Havia mais guardas que de hábito, com roupa diferente. Olharam para ela com mais atenção do que os outros costumavam olhar. Ouviu os guardas do castelo explicando quem ela era. Tentou evitar que a vissem olhar para trás quando passou com a boneca apertada contra o peito, procurando conter a vontade de sair correndo.
O Embrulho com o pão e a caixa estavam no mesmo lugar, debaixo das flores. Rachel o tirou, segurando-o pelo nó com uma das mãos. Atravessando o jardim, imaginou se a princesa Violeta ainda pensava que Rachel dormia na sua cama ou se tinha descoberto seu truque e estava gritando pedindo socorro. Se ela tivesse gritado e fosse socorrida pelos guardas, podiam já estar à sua procura. Ela havia feito o caminho mais longo, levou muito tempo voltando para o castelo e saindo outra vez. Rachel prestou atenção para ver se ouvia gritos indicando que procuravam alguém.
Mal podia respirar, esperando sair do castelo antes que começassem a busca. Lembrou-se do Sr. Sanders dizer que iam revistar todo o castelo. Sabia o que procurava. Queriam a caixa. Tinha prometido a Giller tirá-la do castelo para que não a encontrassem e não pudessem fazer mal a tanta gente.
Havia uma porção de homens no alto do muro. Quando ela estava quase na porta, diminuiu o passo. Antes eram dois os guardas. Agora havia três. Dois ela reconheceu — eram os túnicas vermelhas com a cabeça do lobo negro, a guarda da rainha — mas o outro vestia couro negro e era maior. Era um dos novos homens. Rachel não sabia se devia continuar ou fugir. Mas fugir para onde? Tinha de passar pelo portão para começar a correr.
Antes que tivesse tempo de resolver, eles a viram, por isso ela continuou a andar. Um dos guardas da rainha se virou para retirar a tranca. O novo homem estendeu o braço para detê-lo.
— É só a companheira de brincadeiras da princesa. A princesa a põe para fora às vezes.
— Ninguém sai — disse o homem.
O guarda do castelo ficou imóvel.
— Desculpe, pequenina, mas você ouviu, ninguém sai.
Rachel ficou parada, com a boca fechada. Olhou para o novo homem e ele a olhou. Engoliu em seco. Giller dependia dela para tirar a caixa do castelo. Não havia outra saída. Tentou pensar no que Giller faria.
— Está bem — disse ela, finalmente —, está frio está noite. Acho melhor mesmo eu ficar aqui dentro.
— Isso mesmo, agora vá — disse o guarda da rainha. — Vai ficar no castelo esta noite.
— Qual o seu nome? — perguntou Rachel.
O guarda ficou surpreso.
— Reid, lanceiro da rainha.
Com a boneca na mão, Rachel apontou para outro guarda.
— E o seu?
— Walcott, lanceiro da rainha.
— Lanceiro da rainha Reid e lanceiro da rainha Walcott — repetiu ela. — Muito bem, acho que vou lembrar. — Apontou para o novo homem, sacudindo a boneca para cima e para baixo perto do braço dele. — E qual o seu nome?
Ele pôs os polegares no cinto.
— Por que quer saber?
Rachel abraçou a boneca com força.
— Bem, a princesa gritou comigo, quando disse para eu sair esta noite. Se eu não sair, ela vai ficar danada da vida e vai querer cortar minha cabeça por não fazer o que ela mandou, por isso quero dizer a ela quem não me deixou sair. Quero seus nomes para ela não pensar que estou inventando e poder vir perguntar a vocês. Ela me dá medo. Começou a dizer que vai cortar a cabeça de muita gente.
Os três recuaram um pouco e se entreolharam.
— É verdade — disse Reid, o lanceiro da rainha, para o novo homem. — A princesa está ficando igualzinha à mãe. Um problema e tanto, agora que a mãe permite que ela comece a usar o machado.
— Ninguém sai, essas são nossas ordens — disse o novo homem.
— Bem, nós dois somos a favor de obedecer às ordens da princesa. — Reid, o lanceiro da rainha, se virou para o lado e cuspiu no chão. — Agora, se você quer que a menina fique aqui dentro, tudo bem para nós, desde que fique bem claro qual a cabeça que vai rolar. Se chegar a isso, nós dissemos para deixá-la sair. Não vamos ter as cabeças cortadas como você. — o outro guarda, Walcott, concordou. — Não pela ameaça de uma menininha desse tamanho. — Estendeu a mão na altura da cabeça dela. — Não vou dizer que três soldados grandes e fortes acharam que ela podia ser perigosa. A decisão é sua, mas a cabeça também será a sua, não as nossas se desobedecer às ordens da princesa. Vai responder ao carrasco, não a nós.
O novo homem olhou para ela. Parecia zangado. Olhou para os outros dois por algum tempo, depois para ela outra vez.
— Bem, é evidente que ela não é uma ameaça. As ordens foram dadas para proteger o castelo de ameaças, portanto, acho...
Walcott, lanceiro da rainha, começou a levantar a pesada tranca da porta.
— Mas quero saber o que ela tem aí — disse o novo homem.
— Só meu jantar e minha boneca — disse Rachel, tentando fazer parecer que era algo sem importância.
— Vamos dar uma olhada.
Rachel pôs o embrulho no chão e desatou os nós, abrindo o pano. Entregou Sara a ele.
O guarda pegou Sara com a mão grande e a virou de um lado para o outro, examinando. Virou de cabeça para baixo e levantou o vestido com a ponta de um dedo. Rachel chutou a perna dele com toda a força.
— Não faça isso! Não tem respeito? — gritou ela.
Os outros dois guardas riram.
— Encontrou alguma coisa perigosa aí embaixo? — perguntou Reid, lanceiro da rainha.
O novo homem olhou para os outros dois e devolveu a boneca a Rachel.
— O que mais você tem aí?
— Eu já disse, meu jantar.
Ele começou a se inclinar.
— Bem, uma coisinha pequena como você não precisa de um pão inteiro.
— É meu! — gritou ela. — Tire a mão!
— Deixe para lá — disse Walcott, lanceiro da rainha. — Ela recebe pouca comida. Acha que parece que a princesa a alimenta demais?
O novo homem endireitou o corpo.
— Acho que não — respirou profundamente. — Vá em frente. Saia daqui.
Rachel amarrou o pano em volta do pão e do resto da comida, segurou com força pelo nó, passou entre as pernas dos homens e foi para a porta.
Quando ouviu a tranca se fechar no lugar, começou a correr. Correu o mais depressa possível, sem olhar para trás, como medo de descobrir que estava sendo seguida. Depois de algum tempo, achou que precisava ter certeza. Não havia ninguém. Ofegante, ela parou para tomar fôlego e se sentou numa raiz, no meio da estrada.
Viu a silhueta do castelo contra o céu estrelado, o alto do muro denteado, as torres iluminadas. Nunca mais voltaria para lá, nunca. Ela e Giller iriam para um lugar onde as pessoas eram boas e jamais voltariam. Ouviu uma voz.
— Rachel? — Era Sara.
Pôs Sara no colo, em cima do embrulho.
— Estamos seguras agora, Sara. Nós saímos.
Sara sorriu.
— Estou tão contente, Rachel.
— Nunca mais voltaremos àquele lugar horrível.
— Rachel, Giller quer que você saiba uma coisa.
Ela se inclinou para a boneca. Mal podia ouvir a voz de Sara.
— O que é?
— Ele não pode ir com você. Você deve seguir em frente sem ele.
Rachel sentiu as lágrimas chegando.
— Mas eu quero que ele vá comigo.
— Ele também gostaria, mais do que qualquer coisa, mas ele precisa ficar e evitar que encontrem você, para que você possa fugir. É o único meio de garantir sua segurança.
— Mas tenho medo de ir sozinha.
— Não estará sozinha, Rachel, eu estarei com você. Sempre.
— Mas o que vou fazer? Para onde devo ir?
— Você precisa fugir. Giller diz para não ir ao seu pinheiro amigo, eles a encontrarão. — Rachel arregalou os olhos quando ouviu isso. — Vá para outro pinheiro, depois, no dia seguinte, para outro, sempre fugindo e se escondendo, até chegar o inverno. Então, procure pessoas boas que possam tomar conta de você.
— Tudo bem, se Giller diz, é o que vou fazer.
— Rachel, Giller quer que você saiba que ele a ama.
— Eu também o amo — disse Rachel — mais do que tudo no mundo.
A boneca sorriu.
De repente, o bosque se iluminou com uma luz amarela e azul. Rachel olhou para cima. Então ouviu um baque surdo que a fez dar um pulo. Abriu a boca e arregalou os olhos.
Uma gigantesca bola de fogo saiu de trás dos muros do castelo.
A bola de fogo subiu, expelindo fagulhas e fumaça. O fogo se transformou em fumaça negra à medida que subiu, até tudo ficar escuro outra vez.
— Você viu isso? — perguntou Rachel a Sara.
Sara não disse nada.
— Espero que Giller esteja bem.
Rachel olhou para a boneca, mas Sara não disse nada, nem sorriu.
Rachel a abraçou com força e apanhou o embrulho.
— Acho melhor irmos, como Giller disse.
Quando passou pelo lago, jogou na água a chave da caixa de dormir e sorriu quando a ouviu mergulhar.
Sara não disse nada enquanto se distanciavam do castelo. Seguindo a estrada, Rachel lembrou-se de que Giller tinha dito que ela não devia ir para o mesmo pinheiro. Virou para trás e seguiu uma trilha de veados, passando pelas amoreiras silvestres, seguindo em outra direção.
Para oeste.
Ouviu um barulho. Fraco, suave, como uma chuva leve.
Meio adormecido, meio acordado, não fez sentido, por mais que se esforçasse por entender. Lentamente a principio, depois com urgência acelerada, ele acordou, sentindo o cheiro da carne sendo preparada. Imediatamente se arrependeu da experiência de ficar consciente, com a lembrança do que tinha acontecido, sentindo saudades de Kahlan. Estava com os joelhos encostados no peito e a cabeça encostada neles. A casca áspera da arvore em que se encostava incomodava suas costas e seus músculos estavam rígidos, quase paralisados por ter dormido a noite toda na mesma posição. Com a cabeça encostada nos joelhos não podia ver nada, a não ser que o dia apenas começava a raiar.
Havia alguém ou alguma coisa perto dele.
Fingindo que dormia ainda, ele verificou a posição das próprias mãos em relação às armas. A espada estava relativamente longe e não seria fácil desembainhá-la. A faca não. As pontas dos seus dedos tocaram o cabo de nogueira. Dobrando os dedos devagar, cautelosamente, conseguiu levar a lamina para a palma da mão. Fosse o que fosse, estava à sua esquerda. Um salto e um golpe com a faca, ele pensou.
Olhou disfarçadamente. Chocado, viu que era Kahlan. Ela estava sentando, encostada no tronco caído, olhando para ele. Um coelho cozinhava no fogo. Richard se sentou, com o corpo ereto.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ele, cautelosamente.
— Podemos conversar?
Richard embainhou a faca e esticou as pernas, massageando para ativar a circulação. — Pensei que tínhamos dito tudo a noite passada. — Imediatamente fez uma careta, ouvindo as próprias palavras. Kahlan olhou para ele inexpressivamente. — Desculpe — disse ele, amenizando o tom de voz. — É claro que podemos conversar. Sobre o que você quer falar?
Ela deu de ombros à luz fraca do começo do dia.
— Eu estive pensando muito. — Ela tirava a casca branca de um pedaço de galho de bétula que ele cortara para fazer fogo na noite anterior. — A noite passada, depois que fui embora, bem, eu sabia que você estava com dor de cabeça.
— Como sabia?
Ela deu de ombros outra vez.
— Eu sempre sei, por seus olhos, quando você está com dor de cabeça. — A voz dela era suave. — Eu sabia que ultimamente você não tem dormido muito por minha culpa, por isso resolvi antes... antes de ir, vigiar enquanto você dormia. Por isso fui para lá — apontou com o galo —, para aquelas árvores, de onde podia ficar de olho em você. — Olhou para o galho de bétula e continuou a tirar a casca. — Eu queria ter certeza de que você ia dormir um pouco.
— Você passou a noite inteira lá? — Richard tinha medo de pensar no que tudo aquilo podia significar.
Ela fez que sim com a cabeça, mas não ergueu os olhos.
— Enquanto eu estava de vigia, resolvi fazer uma armadilha, como você me ensinou, para ver se apanhava alguma coisa para o desjejum. Enquanto estava sentada lá, pensei muito. A maior parte do tempo eu chorei. Não podia suportar que você pensasse aquelas coisas de mim. Doía só de pensar. Fiquei zangada também.
Richard resolveu que era melhor não dizer nada enquanto ela se esforçava para encontrar as palavras certas. Ele não sabia o que dizer e tinha medo de dizer alguma coisa que a fizesse ir embora outra vez. Kahlan puxou uma tira da casca do galho e o atirou no fogo, onde ela pegou fogo.
— Então pensei no que você disse e resolvi que precisava dizer algumas coisas sobre como se conduzir quando estiver com a rainha. Então lembrei que precisava dizer também quais as estradas que devem ser evitadas e para onde você deve ir. Fiquei pensando nessas coisas que precisava dizer, coisas que você precisa saber. Quando menos esperava, concluí que você estava certo. Sobre tudo.
Richard achou que parecia que ela ia chorar, mas Kahlan não chorou.descascando o galho com a unha, ela evitava os olhos dele. Ele continuou calado. Então ela fez uma pergunta que Richard não esperava.
— Você acha que Shota é bonita?
Ele sorriu.
— Sim, mas não tanto quanto você.
Kahlan sorriu e empurrou o cabelo para trás do ombro.
— Poucos ousariam dizer isso a uma... — Parou de falar outra vez. Seu segredo estava entre os dois como uma terceira pessoa. Ela começou outra vez. — Há um provérbio de mulheres velhas que talvez você já tenha ouvido: “Nunca deixe uma bela mulher escolher o caminho para você, quando há um homem na linha de visão dela.”
Richard riu e se levantou para mover as pernas.
— Não, eu nunca tinha ouvido. — Ele se inclinou um pouco para ela e cruzou os braços. Não achava que Kahlan precisava se preocupar com a idéia de Shota roubar seu coração. Shota tinha dito que o mataria se o visse outra vez. Mesmo sem esse juramento, Kahlan não tinha motivo para se preocupar.
Ela jogou fora o galho e ficou de pé ao lado dele, encostada na árvore caída. Finalmente, olhou nos olhos dele e franziu as sobrancelhas.
— Richard — sua voz era quase um murmúrio —, a noite passada eu concluí que fui uma idiota. Tive medo de que a feiticeira me matasse e de repente compreendi que ela ia conseguir. Só que eu estava fazendo isso para ela, deixando que ela escolhesse o meu caminho.
“Você estava certo sobre tudo. Eu devia saber e dar ouvidos ao que o Seeker diz. — Olhou para o chão e depois para ele outra vez. — Se... não for tarde demais, eu gostaria de ter meu emprego de volta, como sua guia.”
Richard mal podia acreditar que tudo tinha acabado. Nunca se sentira tão feliz, tão aliviado em toda a vida. Em vez de responder, ele a abraçou e puxou para bem junto dele. Os braços de Kahlan o envolveram e ela apoiou a cabeça no peito dele por um momento. Então se afastou.
— Richard, há uma outra coisa. Antes que você diga que me aceita de volta, precisa ouvir o resto. Não posso continuar sem falar a meu respeito. Sobre o que eu sou. Está partindo meu coração porque você me considera sua amiga. Eu devia ter contado antes. Nunca tive um amigo como você e não queria que isso acabasse. — Desviou os olhos dos dele. — Mas agora preciso contar — acrescentou debilmente.
— Kahlan, eu já disse antes, você é minha amiga e nada pode mudar isso.
— Esse segredo pode. — Os ombros dela estavam curvados para a frente. — É sobre magia.
Richard já não tinha certeza de que queria saber o segredo. Acabava de recuperar Kahlan e não queria perdê-la outra vez. Agachou na frente do fogo e apanhou a vara com o coelho. Fagulhas saltaram no escuro. Ficou orgulhoso por ela ter pegado o coelho sozinha, do modo como ele tinha ensinado.
— Kahlan, não me importo com seu segredo. Eu me importo com você, isso é tudo. Não precisa me contar. Venha, o coelho está pronto, venha comer.
Cortou um pedaço com a faca e o deu a ela. Kahlan se sentou no chão ao lado dele e afastou o cabelo do rosto. A carne estava quente, por isso ela segurou com as pontas dos dedos e assoprou para esfriar. Richard cortou outro pedaço e sentou.
— Richard, quando você viu Shota pela primeira vez, ela se parecia mesmo com sua mãe?
Richard olhou para o rosto dela iluminando pelo fogo e assentiu balançado a cabeça, antes de começar a comer.
— Sua mãe era muito bonita. Você tem os olhos dela e a boca.
Richard sorriu, lembrando.
— Mas não era realmente ela.
— Então você ficou zangado por Shota ter fingido ser alguém que não podia ser? Por ter enganado você? — ela comeu um pedaço do coelho, soprando com a carne na boca porque ainda estava quente. Olhou demoradamente para Richard.
Ele deu de ombros, ainda irritado com a lembrança.
— Acho que sim. Não foi justo.
Kahlan comeu por um minuto.
— Por isso deve contar quem eu sou, mesmo que você me odeie por isso, porque você tem sido meu amigo. Embora eu não tenha sido a amiga que você merece.
O outro motivo pelo qual voltei foi não querer que você saiba por outra pessoa. Queria que soubesse por mim. Depois que eu contar, se você quiser, vou embora.
Richard olhou para o céu, para a cor que chegava devagar. De repente, desejou que Kahlan não contasse o que ela era, desejou que as coisas ficassem como estavam.
— Não se preocupe. Não vou mandar você embora. Temos um trabalho para fazer. Lembre-se do que Shota disse. A rainha não terá a caixa por muito mais tempo. Isso quer dizer que alguém a vai tirar dela. Melhor nós do que Darken Rahl.
Kahlan pôs a mão no braço dele.
— Não quero que você decida antes de ouvir o que vou dizer, até você saber o que eu sou. Então, se quiser que eu vá, vou compreender. — Olhou nos olhos dele. — Richard, só quero que você saiba que jamais gostei de alguém como gosto de você, nem gostarei. Mas não é possível passar disso. Isso não pode levar a coisa alguma. Pelo menos a nada que seja bom.
Richard recusava-se a acreditar. Havia uma saída, tinha de haver. Respirou profundamente, soltando o ar devagar.
— Muito bem, então, diga logo.
— Lembra quando eu disse que algumas pessoas de Midlands eram criaturas de magia? E que não podiam desfazer-se dessa magia porque era parte dela? — Ele fez que sim com a cabeça. — Eu sou uma dessas criaturas. Sou mais do que uma mulher.
— Então, o que você é?
— Sou uma Confessora.
Confessora.
Richard conhecia aquela palavra.
Todos os seus músculos ficaram rígidos. A respiração se prendeu na garganta. O Livro das Sombras contadas lhe inundou a mente. A verificação da verdade das palavras do Livro das Sombras Contadas, quando feita por outra pessoa, não lida por quem comanda as caixas, só pode ser garantida com o uso de uma Confessora.
Sua mente disparou folheando as páginas, examinando as palavras, tentando lembrar todo o livro. Richard sabia cada palavra e Confessora aparecia apenas um vez, no começo. Lembrava-se de ter ficado intrigado, querendo saber o que podia ser uma Confessora. Nem mesmo tinha certeza de que fosse uma pessoa. Sentiu o peso do dente dependurado no seu pescoço.
Kahlan olhou intrigada para ele.
— Você sabe o que é uma Confessora?
— Não — disse ele. — Já ouvi a palavra, isso é tudo... dita por meu pai. Mas não sei o que significa. — Controlou-se com esforço. — Então, o que significa ser uma Confessora?
Kahlan dobrou os joelhos e passou os braços em volta deles.
— É um poder, poder mágico passado de mãe para filha, quase tão antigo quanto a terra, anterior à idade das trevas.
Richard não sabia o que era a “idade das trevas”, mas não interrompeu.
— É uma coisa inata em nós, a magia é parte de nós e não pode ser separada, como você não pode ser separado do seu coração. Uma Confessora terá filhas Confessoras. Sempre. Mas o poder não é igual em todas; em algumas é fraco, em outras, mais forte.
— Então não pode livrar-se dele, mesmo que queira. Mas que tipo de magia?
Ele olhou para o fogo.
— É um poder evocado pelo toque. Está sempre dentro de nós. Não o trazemos para fora para ser usado, mas devemos sempre tê-lo sob controle, relaxando esse controle para usá-lo, deixando-o sair.
— Assim como controlar o estômago.
Ela riu da analogia.
— Mais ou menos.
— E o que esse poder faz?
Kahlan torceu a ponta do casaco.
— Não se revela muito bem em palavras. Nunca pensei que fosse tão difícil explicar, mas para quem não é de Midlands, bem, é difícil pôr em palavras. Nunca tive de definir esse poder antes, nem mesmo sei se pode ser definido. É como tentar explicar o fogo para um cego.
— Tente.
Ela olhou nos olhos dele.
— É o poder do amor.
Richard quase riu.
— E devo ter medo do poder do amor?
Kahlan ficou rígida, a indignação surgiu nos seus olhos, indignação e aquele olhar atemporal que ele vira em Shota e Adie, como se suas palavras fossem desrespeitosas, como se até seu leve sorriso fosse insolente. Jamais Kahlan o tinha olhado daquele modo. Compreendeu que ela não estava acostumada a ver alguém rir do seu poder e de quem ela era. Aquele olhar dizia mais sobre seu poder do que qualquer palavra. Fosse qual fosse sua magia, não era definitivamente uma coisa de que se pudesse rir. Seu sorriso desapareceu. Quando teve certeza de que Richard não ia dizer mais nada parecido, continuou:
— Você não compreende. Não leve na brincadeira. — Entrecerrou os olhos. — Uma vez tocado por meu poder, você nunca mais será o mesmo. Mudará para sempre. Será para sempre dedicado a quem o tocou, acima de tudo o mais. O que você desejava, o que você era, não significava mais nada. Sua alma não lhe pertence mais, porém a ela. A pessoa que você era deixa de existir.
Richard sentiu um arrepio nos braços.
— Quanto tempo dura essa magia ou seja lá o que for?
— Enquanto a pessoa tocada viver — disse ela.
O arrepio percorreu todo o corpo dele.
— É como se você enfeitiçasse a pessoa?
— Não exatamente, mas se ajuda a compreender, acho que pode dizer que sim. Porém o toque de uma Confessora é muito mais do que isso. Muito mais poderoso e definitivo. Um feitiço pode ser desfeito. Meu toque, não. Você estava sendo enfeitiçado pela Shota, embora sem perceber. É uma coisa que faz parte delas. As feiticeiras não podem evitar. Mas a ira que vem da espada o protegeu.
“O toque do meu poder é todo de uma vez e final. Nada pode proteger dele. A pessoa tocada não pode ser trazida de volta porque, uma vez tocada por mim, ela não existe mais. Ela se foi para sempre. Seu livre arbítrio se foi. Um dos motivos pelos quais eu tinha medo de procurar Shota era porque as feiticeiras odeiam Confessoras. Elas têm um ciúmes feroz do nosso poder, porque uma vez tocada, a pessoa é totalmente dedicada a nós. Quem é tocada por uma Confessora faz qualquer coisa que ela mandar. — Olhou muito séria para ele. — Qualquer coisa.”
Richard sentiu a boca seca e seus pensamentos se espalharam em todas as direções, tentando desesperadamente manter as esperanças, os sonhos. O único meio de controlar isso era ganhar tempo, era fazer perguntas.
— Funciona com qualquer pessoa?
— Qualquer ser humano. Exceto Darken Rahl. Os magos me avisaram que a magia de Orden o protege do nosso toque. Ele não tem nada a temer da minha parte. Nos que não são humanos, em geral não funciona porque eles não são capazes de compaixão, que a magia exige para funcionar. Um gar, por exemplo, não seria mudado por meu toque. Funciona em algumas criaturas, mas não exatamente como nos seres humanos.
Richard a olhou.
— Shar? Você a tocou, não tocou?
Kahlan assentiu, inclinando a cabeça.
— Sim, ela estava morrendo e solitária. Sofria a dor de estar longe dos seus iguais, a dor de morrer sozinha. Ela me pediu para tocá-la. Meu toque substitui o medo pelo amor por mim, que não deixava espaço para a dor, para a solidão. Nada sobrou dela, a não ser seu amor por mim.
— E quando eu a conheci, quando o quad nos perseguia? Você tocou em um dos homens também, não tocou?
Kahlan inclinou a cabeça outra vez afirmativamente, se encostou no tronco caído, fechou bem o manto e olhou para o fogo.
— Embora eles tenham jurado me matar, quando toco neles, eles são meus — disse ela, firmemente. — Eles lutarão até a morte para me proteger. Por isso Rahl manda quatro homens para matar uma Confessora. Espera que ela toque um deles e então os outros três podem matá-lo e à Confessora. Em raras ocasiões, ele mata os outros três. Isso aconteceu comigo, com o quad que me perseguiu antes de os magos me mandarem para a fronteira. Um quad é a unidade mais econômica que ele pode mandar, quase sempre tem sucesso e, quando não tem, Rahl simplesmente manda outro.
“Não fomos mortos no penhasco porque você os separou. O que eu toquei matou outro, enquanto você lutava contra os dois restantes. Então ele foi atrás dos dois, mas você tinha empurrado um para o precipício. Por isso ele usou a própria vida para levar o líder também para baixo. Fez isso porque não havia chance de perder uma luta a espada. Significava a vida dele também, mas isso não importava depois que eu o toquei. Era o único meio de ter certeza de que me protegeria.”
— Você não podia simplesmente tocar nos quatro?
— Não. O poder se gasta cada vez que é usado. Leva algum tempo para voltar.
Richard sentiu o punho da espada no cotovelo e de repente teve uma idéia.
— Quando passamos para o outro lado da fronteira e aquele último homem do quad estava atrás de você e eu o matei... na verdade, eu não estava salvando sua vida, estava?
Ela ficou calada por algum tempo antes de responder.
— Um homem, por maior e mais forte que seja, não constitui ameaça para uma Confessora, mesmo para uma Confessora fraca, muito menos para mim. Se você não tivesse chegado naquela hora... eu teria resolvido. Sinto muito, Richard — murmurou ela —, mas você não precisava matá-lo. Eu teria resolvido.
— Bem — disse ele secamente —, pelo menos eu a poupei de fazer isso.
Kahlan não disse nada, apenas olhou tristemente para ele. Não podia dizer nada que servisse de consolo para Richard.
— Quanto tempo? — perguntou ele. — Em quanto tempo uma Confessora recupera o poder?
— Em cada uma o poder é diferente. Em algumas é mais fraco e pode levar vários dias e noites para ser recobrado. Na maior parte delas, leva cerca de um dia e uma noite.
Richard olhou para ela.
— E em você?
Kahlan olhou nos olhos dele, quase como se desejasse que a pergunta não tivesse sido feita.
— Cerca de duas horas.
Richard olhou para o fogo, não gostando da resposta.
— Isso é incomum?
Kahlan suspirou.
— Foi o que me disseram — continuou com a voz cansada. — Menor tempo de recuperação significa também que o poder é mais forte, funciona com maior força em quem é tocado. Por isso alguns membros do quad tocados por mim podem matar os outros três. Não aconteceria isso com uma Confessora com poder menor.
“A posição da Confessora depende do seu poder porque as que têm mais força terão filhas com maior chance de ter também poder mais forte. Nenhuma Confessora inveja as que são mais fortes, sente apenas afeição e devoção mais profundas nos tempos de crise, como desde que Rahl atravessou a fronteira. As que têm postos mais baixos protegem as outras com a própria vida, se for preciso.”
Richard tinha certeza de que ela não diria se ele não perguntasse.
— E qual o seu posto?
Kahlan olhou fixamente para o fogo.
— Todas as Confessoras me seguem. Muitas ofereceram a vida para me proteger... — fez uma pausa — ... para que eu possa sobreviver e de algum modo usar meu poder para deter Rahl. É claro que agora não há qualquer uma para me seguir. Só eu ainda estou viva. Darken Rahl matou todas.
— Lamento, Kahlan — disse ele suavemente. Richard começava a compreender a importância do que ela era. — Então você tem um título? Qual é?
— Eu sou a Madre Confessora.
Richard ficou tenso. O título de Madre Confessora tinha a força de uma terrível autoridade. Ele ficou impressionado. Sempre soube que Kahlan era importante, mas já tinha tratado com pessoas importantes na sua profissão de guia e aprendera a não se impressionar com elas. Mas nunca pensou que ela fosse tão preeminente. Madre Confessora. Mesmo sendo apenas um guia e ela tão importante, não fazia diferença, podia aceitar isso. Certamente ela também podia.
Não ia perder Kahlan ou mandá-la embora por causa do que ela era.
— Não sei o que significa. É algo assim como uma princesa ou uma rainha?
Kahlan ergueu uma sobrancelha.
— As rainhas se curvam perante uma Madre Confessora.
Agora ele estava intimidado.
— Você é mais do que uma rainha? — ele estremeceu.
— Lembra o vestido que eu usava quando me conheceu? É o vestido da Confessora. Nós todas o usamos para que todos saibam quem somos, embora a maioria das pessoas em Midlands possa nos reconhecer com qualquer roupa. Todas as Confessoras, de qualquer idade, usam um vestido preto de Confessora; exceto a Madre Confessora, que usa um vestido branco. — Kahlan parecia um pouco aborrecida por ter de explicar sua importância. — É muito estranho para mim explicar tudo isso, Richard. Todos em Midlands sabem, por isso nunca precisei pensar em como dizer. Parece tão... eu não sei. Tão arrogante.
— Bem, eu não sou de Midlands. Apenas tente. Preciso compreender.
Kahlan olhou para ele.
— Reis e Rainhas são donos de suas terras, cada um tem seu domínio. Há muitos em Midlands. Outras terras são governadas de modos diferentes, como por conselhos. Algumas são lugares de criaturas mágicas. Os fogos-fátuos, por exemplo — não-humanos vivem em suas terras.
“O lugar onde vivem as Confessoras, meu lar, chama-se Aydindril. É também o lar dos magos e do Conselho Central de Midlands. Aydindril é um belo lugar. Há muito tempo não vou ao meu lar — disse ela, tristemente. — As Confessoras e os magos são muito unidos, ligados, da mesma forma como o velho Zedd é ligado ao Seeker.
“Ninguém é dono de Aydindril. Nenhum governante ousaria reclamá-lo, todos têm medo, medo das Confessoras e dos magos. Todas as terras de Midlands contribuem para sustentar Aydindril. Todos pagam tributos. As Confessoras estão acima da lei de qualquer terra, como o Seeker está acima de qualquer lei que não seja a dele. Mas, ao mesmo tempo, servimos ao povo de Midlands através do Conselho Central.
“No passado, governantes arrogantes pensaram em fazer as Confessoras obedecerem à sua palavra. Naquele tempo, havia Confessoras de larga visão, agora reverenciadas como lendas, que sabia que deviam plantar as bases da nossa independência ou se submeter para sempre ao domínio; então, a Madre Confessora dominou os governantes com seu poder. Eles foram retirados dos tronos e substituídos por outros, que compreendiam que as Confessoras deviam ser deixadas em paz. Os governantes antigos, que foram dominados, ficaram em Aydindril como pouco mais do que escravos. As Confessoras os levavam com elas quando viajavam para terras diferentes, faziam-nos carregar as provisões e cuidar do conforto da viagem. Naquele tempo, as Confessoras eram rodeadas de mais cerimônia do que hoje. De qualquer modo, isso causava a impressão desejava.”
— Eu não compreendo — disse Richard. — Reis e rainhas devem ser lideres poderosos. Eles não tinham proteção? Não tinha guardas e outros encarregados da sua segurança? Como uma Confessora chegou perto de um rei ou de uma rainha para poder tocá-los?
— Sim, eles têm proteção, muita, na verdade, mas não é tão difícil quanto parece. Uma Confessora toca uma pessoa, talvez um guarda, e tem um aliado, ele a leva a outra pessoa e logo ela está dentro. Cada pessoa que ela toca pode levá-la a outra de posição mais alta e assim ganha mais aliados. Seguindo a hierarquia, à medida que ascende, ela pode chegar ao rei ou à rainha mais cedo do que se pode imaginar, antes que alguém comece a perceber, muito menos dar o alarme. Qualquer Confessora pode fazer isso. Para a Madre Confessora é mais fácil ainda.
“A Madre Confessora com um grupo de suas irmãs pode se espalhar num castelo como uma praga. Não que o esforço seja isento de perigo, muitas Confessoras morreram, mas o objetivo valia a pena. Por isso nenhuma terra é fechada a uma Confessora, por mais difícil que seja para as demais.
“Fechar uma terra a uma Confessora é o mesmo que uma admissão de culpa e o bastante para fazer com que o líder seja deposto. Por isso o Povo da Lama, por exemplo, permite minha entrada, embora nem sempre deixe entrar estranhos. Não permitir acesso a uma Confessora levanta perguntas e suspeitas. Um líder envolvido em qualquer tipo de conspiração dará de boa vontade acesso livre a uma Confessora, para tentar esconder sua participação na subversão.
“Naquele tempo, algumas Confessoras estavam mais do que dispostas a usar seu poder à vontade, para acabar com o que estava errado, conforme sua opinião. Os magos exerceram influencia para controlar essa prática, mas o zelo das Confessoras mostrou ao povo o que elas eram capazes de fazer. Mas isso foi em outros tempos.”
Depor um governante. Outros tempos os não, para Richard era difícil aceitar, justificar.
— O que dava esse direito às Confessoras?
Kahlan balançou a cabeça devagar.
— O que estamos fazendo agora, você e eu, é muito diferente do que foi feito no passado? Depor um governante? Nós todos fazemos o que achamos que devemos fazer, o que achamos certo.
Richard mudou de posição, embaraçado.
— Eu compreendo seu ponto de vista — admitiu. — Você já fez isso antes? Depor um governante?
Kahlan balançou a cabeça.
— Ainda assim, os líderes das terras procuravam evitar minha atenção. É muito parecido com o que acontece com o Seeker. Pelo menos era, antes de termos nascido. Então, os Seekers eram mais temidos e respeitados do que as Confessoras. — Olhou para ele de modo significativo. — Eles também destronaram reis. Mas agora, porque o Velho Mago foi ignorado e a espada se tornou um favor político, são vistos como muito menos, pouco mais do que peões, ladrões.
— Não tenho certeza de que isso tenha mudado — disse Richard, mais para si mesmo do que para ela. — Na maior parte do tempo, sinto-me como nada mais do que um peão, movido por outros. Até por Zedd e...
Ele fechou a boca e não terminou a frase, Kahlan a terminou para ele.
— E por mim.
— Não era o que eu queria dizer. Só que, às vezes, gostaria de nunca ter ouvido falar na Espada da Verdade. Porém, ao mesmo tempo, não posso deixar Rahl vencer, portanto, estou preso ao meu dever. Acho que não tenho escolha e é isso que detesto.
Sorrindo tristemente, Kahlan dobrou as pernas debaixo do corpo.
— Richard, quando você compreender o que sou, espero que possa lembrar que comigo também é assim. Eu também não tenho escolha. Mas comigo é pior porque nasci com meu poder. Pelo menos quando isso terminar você pode devolver a espada, se quiser. Eu sou Confessora por toda a vida. — Depois de uma pausa, acrescentou: — Desde que conheci você, pagaria qualquer preço para poder desistir e ser apenas uma mulher normal.
Richard não sabia o que fazer com as mãos, por isso apanhou um graveto e começou a rabiscar a terra.
— Eu ainda não compreendo por que vocês são chamadas de Confessoras. O que significa Confessora? — Só com grande dificuldade ele conseguia olhar para ela.
Viu a expressão de sofrimento de Kahlan e teve pena dela.
— É o que fazemos. Somo os árbitros finais da verdade. Por isso os magos nos deram o poder, em tempos há muito esquecidos. É como servimos o povo.
— Árbitro final da verdade — repetiu ele intrigado. — Mais ou menos como um Seeker.
— Seekers e Confessoras estão ligados propositalmente. De certo modo, somos os lados opostos da mesma magia. Os magos de outrora eram quase como governantes e ficaram frustrados com a corrupção entre eles. Odiavam mentiras e fraudes. Queriam um meio de evitar que os lideres corruptos usassem seu poder para enganar e subverter o povo. Você compreende, esses lideres inescrupulosos simplesmente acusavam os inimigos políticos de um crime e os executavam, desonrando-os e os eliminando ao mesmo tempo.
“Os magos queria um meio de acabar com isso. Precisavam de alguma coisa que não permitisse qualquer margem de dúvida. Então criaram certa magia e deram a ela vida própria. Criaram as Confessoras, escolhendo-as de um grupo seleto de mulheres. Selecionaram com cuidado porque, uma vez tomando vida nessas mulheres, o poder teria vida própria e passaria de mãe para filha para sempre.”
Ela olhou para o graveto que rabiscava a esmo na terra.
— Usamos nosso poder para encontrar a verdade, quando a verdade é importante. Agora é usado especialmente para ter certeza de que uma pessoa condenada à morte é realmente culpada. Quando uma pessoa é condenada à morte, nós a tocamos e, quando ela é nossa, fazemos com que confesse.
Richard, quase sem perceber, inclinou-se para a frente, o graveto imóvel. Obrigou-se a se mover quando ela continuou.
— Uma vez tocado, até o mais cruel assassino obedece às nossas ordens e confessa os crimes. Ocasionalmente, o tribunal não tem certeza de estar com o homem certo e a Confessora é chamada para descobrir a verdade. Na maioria dos lugares, segundo a lei, ninguém pode ser condenado à morte sem antes confessar, assim todos podem ter certeza de que ele é o homem certo, de que não estão deixando escapar o culpado e de que não se trata de vingança política.
“Alguns povos de Midlands ao usam as Confessoras; o Povo da Lama, por exemplo. Não querem o que consideram interferência de estranhos. Mas, mesmo assim, eles nos temem porque sabem o que podemos fazer. Respeitamos a vontade desses povos. Não há lei que os obrigue a usar nossos serviços. Mas os forçamos a aceitar quando há uma suspeita de fraude de qualquer tipo. Mas a maior parte faz uso dos nossos poderes. Acham prático.
“Foram as Confessoras que descobriram a conspiração e a subversão a favor de Darken Rahl. Para descobrir verdades importantes, como essa foi, os magos criaram as Confessoras e os Seekers. Darken Rahl não gostou nada quando descobrimos seus planos.
“Em casos raros, uma pessoa condenada à morte sem o uso de uma Confessora nos chama para provar sua inocência. Em toda Midlands, esse é um direito dos condenados.”
Sua voz ficou mais branda, mais fraca.
— É o que eu mais detesto. Uma pessoa culpada não chama a Confessora, só servirá para provar sua culpa. Mesmo antes de tocar nesses homens, sei que são inocentes, mas devo tocá-los mesmo assim. Se você visse o olhar deles quando eu os toco, compreenderia. Então, quando somos chamadas e mesmo quando eles são inocentes, são deixados...
Richard perguntou: — Quantas confissões você já ouviu?
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Incontáveis. Passei a metade da minha vida em prisões e masmorras, com os mais vis e odiosos animais que se pode imaginar, mas muitos parecem não passar de bondosos comerciantes ou um irmão, pai ou vizinho. Durante muito tempo, no começo, isso provocava pesadelos tão horríveis que eu tinha medo de dormir. As histórias das coisas que tinham feito... você nem pode imaginar.
Richard jogou fora o graveto e segurou as mãos dela. Kahlan começou a chorar.
— Kahlan, você não precisa...
— Lembro-me do primeiro homem que matei. — Seus lábios tremeram. — Ainda sonho com ele. Ele me confessou as coisas que tinha feito com as três filhas do vizinho... a mais velha tinha apenas cinco anos. Ele olhou para mim depois de ter contado as coisas mais horríveis e disse: “O que deseja, minha senhora?” e, sem pensar, eu disse: “Desejo que você morra.” — Ela enxugou as lágrimas do rosto com dedos trêmulos. — Ele caiu morto imediatamente.
— O que o povo do lugar disse?
— O que podia dizer a uma Confessora que acabava de fazer o homem cair morto na frente deles, apenas com uma ordem? Todos recuaram e abriram caminho para mim quando fui embora. Não é uma coisa que todas as Confessoras podem fazer. Até meu mago ficou espantado.
Richard franziu a testa.
— Seu mago?
Ela terminou de enxugar as lágrimas.
— Os magos consideram seu dever nos proteger, porque somos universalmente temidas e odiadas. As Confessoras quase sempre viajam sob proteção de um mago. Um é... bem, um era designado a cada uma de nós quando éramos chamadas para ouvir uma confissão. Rahl conseguiu nos separar dos nosso magos e agora eles também estão mortos. Menos Zedd e Giller.
Richard pegou o coelho grelhado. Começava a esfriar. Cortou um pedaço e deu a ela, depois cortou outro.
— Por que as Confessoras são temidas e odiadas?
— Os parentes e amigos dos homem que vai ser executado nos odeiam porque geralmente não acreditam que ele possa ter feito as coisas que confessou. Preferem acreditar de que algum modo, o enganamos para fazê-lo confessar. — Ela tirou um pequeno pedaço da carne e comeu. — Descobri que nem sempre as pessoas querem saber a verdade. Tem pouco valor para elas. Alguns tentaram me matar. Essa é uma das razoes pelas quais um mago está sempre conosco, para nos proteger até recuperarmos nosso poder.
Richard comeu um pedaço da carne.
— Não me parece razão suficiente.
— É mais do que simplesmente o que fazemos. Deve parecer muito estranho para quem não viveu com isso. Os costumes de Midlands, a magia, tudo deve parecer estranho para você.
Estranho não era a palavra certa, ele pensou. Assustador era bem melhor.
— As Confessoras são independentes e as pessoas se ressentem disso. Homens se ressentem do fato de nenhum deles poder mandar em nós, nem dizer o que devemos fazer. As mulheres se ressentem do fato de não termos a mesma vida que elas, não vivermos tradicionalmente como todas as mulheres, não cuidarmos de um homem nem nos submetermos a qualquer um deles. Somos consideradas privilegiadas. Nosso cabelo é comprido, um símbolo de autoridade, elas devem usar o cabelo curto, um sinal de submissão aos seus homens e a qualquer outra pessoa de posição superior. Para você, pode parecer coisa insignificante, mas, para o nosso povo, nada que tenha a ver com poder é insignificante. Uma mulher que deixa o cabelo crescer além do comprimento apropriado à sua posição é obrigada a se desfazer de parte dessa posição, como castigo. Em Midlands, o cabelo longo de uma mulher é sinal de autoridade, quase de desafio. É sinal de que podemos fazer o que queremos e ninguém nos pode dar ordens, somos uma ameaça para todos. Como sua espada dá a todos essa mesma mensagem. Nenhuma Confessora usa cabelo curto e isso amargura as pessoas, o fato de ninguém nos poder obrigar a cortar o cabelo. Fazemos para todos o que ninguém gosta de fazer e não somos livres para escolher nosso modo de vida. Somos prisioneiras do nosso poder.
Kahlan acabou de comer a carne que Richard tinha dado enquanto ele pensava na ironia do fato de a Confessora levar amor aos criminosos mais odiosos e não poder levá-los àqueles com quem desejam estar. Ele sabia que ela tentava explicar mais alguma coisa.
— Eu acho seu cabelo comprido bonito — disse ele. — Gosto dele assim.
Kahlan sorriu.
— Obrigada. — Jogou os ossos no fogo e por algum tempo ficou observando, depois olhou para as mãos e estalou uma unha de um polegar na do outro. — E então há a escolha de um parceiro.
Richard acabou o pedaço de carne e jogou o osso no fogo. Recostou no tronco caído. Não gostou do que ela disse.
— Escolha de um companheiro? Como assim?
Kahlan olhou para as mãos, como procurando refúgio nelas.
— Quando a Confessora chega à idade de procriar, deve escolher um companheiro. Pode escolher qualquer homem, mesmo que seja casado. Pode percorrer toda Midlands à procura de um pai adequado para suas filhas, um homem forte e talvez um que ela ache bonito. O que ela quiser.
“Os homens têm pavor de uma Confessora que está à procura de companheiro porque não querem ser escolhidos, tocados por ela. As mulheres se apavoram porque não querem que seu homem, seu irmão ou seu filho seja escolhido. Todas sabem que não podem fazer nada. Quem se opõe à escolha de uma Confessora é tomada por ela. As pessoas têm medo de mim, primeiro porque sou a Madre Confessora e depois porque há muito tempo devia ter escolhido um companheiro.”
Richard se apegou ainda tenazmente às suas esperanças e aos seus sonhos.
— Mas e se você gostar de alguém e esse alguém gostar de você?
Kahlan balançou a cabeça tristemente.
— As confessoras não têm amigos, a não ser as outras Confessoras. Isso não é problema, ninguém jamais gostaria de uma Confessora. Todos os homens têm medo de nós. — Ela não disse que era um problema agora. Sua voz começou a ficar entrecortada outra vez. — Aprendemos desde muito cedo que o companheiro que escolhermos deve ser um homem forte, para que os filhos sejam fortes. Mas não deve ser alguém de quem gostamos porque nós o destruiremos. Por isso o que há entre nós dois jamais levará a nada.
— Mas... por quê? — Richard estava lutando contra as palavras dela, contra o poder de Kahlan.
— Porque... — Ela desviou os olhos, incapaz de disfarçar a dor, e os olhos verdes se encheram de lágrimas. — Porque, no arroubo da paixão, o controle da Confessora sobre seu poder pode relaxar e então ele não será mais a pessoa de quem ela gosta. De modo nenhum ela pode evitar isso. De modo nenhum. Ele será dela, mas não a mesma pessoa. Aquele de quem ela gosta estará com ela mas só por causa da magia, não mais por escolha e não por querer. Será apenas uma concha com o que ela pôs dentro dele. Nenhuma Confessora quer isso para um homem de quem ela gosta.
“Por isso as Confessoras, desde tempos imemoriais, se fecham para os homens, temendo gostar de algum. Não somos sem coração, como pensam, temos medo do que o nosso toque pode fazer para um homem de quem gostamos. Algumas Confessoras escolhem homens dos quais ninguém gosta, que são até mesmo odiados, para não destruir outros de bom coração. Embora poucas façam isso, é assim que resolvemos o assunto e temos esse direito. Nenhuma confessora critica as que fazem essa escolha, nós compreendemos.”
Olhou para ele com os olhos marejados de lágrimas, pedindo sua compreensão.
— Mas... eu podia... — Richard não encontrava nenhuma defesa para seu coração.
— Eu não poderia. Para mim, seria o mesmo que você querer estar com sua mãe e, em vez disso, ficar com Shota, parecendo ser ela. Mas não seria ela. Seria apenas uma ilusão de amor. Você compreende? — exclamou ela. — Acha que isso lhe traria alguma alegria verdadeira?
Richard sentiu desmoronar as esperanças do seu mundo nas chamas da compreensão. Seu coração mergulhou nas cinzas.
— A casa dos espíritos — perguntou ele com voz seca —, era disso que Shota estava falando? Quando disse que você esteve muito perto de usar seu poder em mim? — Seu tom foi um pouco mais frio do que ele pretendeu.
— Sim — disse Kahlan, procurando conter as lágrimas. — Eu sinto muito, Richard. — Ela cruzou os dedos. — Nunca antes gostei de alguém como gosto de você. Eu queria tanto estar com você! Quase esqueci quem sou. Quase não importava mais — as lágrimas começaram a descer no seu rosto. — Compreende o quanto meu poder é perigoso? Vê com que facilidade posso destruir você? Se não me tivesse feito parar... você estaria perdido.
Richard sentiu uma agonia de compaixão por ela, pelo que ela era e pelo fato de não poder fazer nada, e sentiu a própria dor, a sensação de perda, mesmo sabendo que não havia nada para perder; Kahlan jamais poderia ser sua, ou mais precisamente, ele jamais poderia ser dela. Tudo não passava de uma fantasia de sua mente.
Zedd tentara avisá-lo, tentara evitar toda essa dor. Por que não tinha dado atenção a ele? Por que tinha de ser tão idiota, pensando que era bastante inteligente para encontrar uma solução? Richard sabia por quê. Levantou-se vagarosamente e deu um passo para o fogo, para que Kahlan não visse suas lágrimas. Com esforço, conseguiu falar.
— Por que você sempre diz “ela”, a “filha” dela? Por que sempre mulher? E os filhos homens? As Confessoras não têm filhos homens? — Ouviu a própria voz como se estivesse raspando em cascalho.
Ouviu os estalos do fogo durante o longo tempo que ela levou para responder. Voltou-se quando ouviu que Kahlan estava chorando. Ela ergueu os olhos e estendeu a mão para que ele a ajudasse a se levantar. Então, encostada no tronco caído, Kahlan pôs o cabelo para trás e cruzou os braços.
— Sim. As Confessoras têm filhos homens. Não tão frequentemente quanto no passado, mas ainda têm. Mas o poder é mais forte neles, é recuperado imediatamente. Às vezes o poder se torna tudo para eles e os corrompe. Esse foi o erro dos magos.
“Por isso escolheram as mulheres, mas não se lembraram que o poder podia ter vida própria. Não pensaram que o poder passaria para todos os filhos e seria tão diferente nos homens.
“Há muito tempo, alguns Confessores uniram forças e criaram um reino de terrível crueldade. Foi chamado o tempo das trevas. Os Confessores deram origem a ele. Foi mais ou menos como agora com Darken Rahl. Finalmente os magos os caçaram e o mataram. Muitos magos morreram também. Desde então, eles apenas servem ao povo, ajudando como podem. Mas não interferem mais com os governantes. Aprenderam a amarga lição.”
Kahlan olhou para baixo, desviando os olhos dos dele, e continuou:
— Por algum motivo, é preciso a compaixão exclusiva das mulheres para controlar o poder, para se livrar das más influencias. Os magos não sabem por quê. O mesmo se dá com o Seeker. Ele de ser a pessoa certa, descoberta por um mago. Do contrário, usará o poder para fins corruptos. Por isso Zedd ficou tão zangado com o Conselho de Midlands por tirar dele a responsabilidade de nomear o Seeker. Os Confessores, não todos, mas a maioria, não conseguiam manter a noção de equilíbrio com o poder. Não tinham a força de controlar o poder quando era preciso. — Kahlan olhou para ele.
“Quando queriam uma mulher, simplesmente usavam o poder. Muitas mulheres. Não tinham controle algum, nem qualquer noção de responsabilidade do que faziam. Pelo que me contaram, o tempo das trevas foi uma longa noite de terror. O reinado durou anos. Os magos tiveram de matar muitos. Finalmente assassinaram toda a prole dessa luxuria, para evitar que o poder se disseminasse descontroladamente. Dizer que os magos ficaram furiosos é dizer pouco.”
— Então, o que acontece agora? — perguntou ele com voz cansada. — O que acontece quando uma Confessora tem um filho?
Kahlan hesitou, detendo os soluços.
— Quando nasce um menino, ele é levado a um lugar especial no centro de Aydindril e a mãe o põe sobre a Pedra. — Ela mudou de posição. Evidentemente, estava tendo dificuldade de falar naquilo. Richard segurou a mão dela entre as suas e a acariciou com os polegares, muito embora sentisse que não tinha o direito de tocar em Kahlan daquele modo famílias. — Como eu disse, um homem tocado por uma Confessora faz tudo que ela mandar. — Richard sentiu a mão dela tremer. — A mãe diz ao marido o que ele deve fazer... e ele... põe um bastão no pescoço da criança... e... pisa nas duas pontas.
Richard soltou a mão dela. Passando os dedos no cabelo, olhou para o fogo.
— Todos os filhos homens?
— Sim — admitiu ela com voz quase inaudível. — Não se pode arriscar que um Confessor fique vivo porque ele pode ser incapaz de controlar o poder e usá-lo para dominar os outros, trazendo de volta o tempo das trevas. Os magos e as Confessoras vigiam atentamente uma Confessora grávida e fazem de tudo para confortá-la se tiver um filho homem que deverá ser... — Não terminou a frase.
De repente, Richard compreendeu que odiava Midlands, com um ódio só superado pelo que sentia por Darken Rahl. Pela primeira vez, compreendeu por que o povo de Westland havia escolhido um lugar sem magia. Desejou estar de volta a Westland, longe de qualquer magia. Seus olhos se encheram de lágrimas quando pensou no quanto sentia falta do Bosque Hartland. Jurou que, se conseguisse deter Rahl, faria erguer novamente a fronteira. Sem dúvida, Zedd o ajudaria nisso. Richard compreendia agora por que Zedd também queria ficar longe de Midlands. E, quando a fronteira fosse restaurada, Richard estaria no outro lado. Para o resto da vida.
Mas antes disso havia a espada. Não devolveria a Espada da Verdade. Ele a destruiria.
— Muito obrigado, Kahlan — disse ele —, por me contar. Eu não ia querer ouvir de outra pessoa. — Sentia seu mundo se reduzir a nada. Sempre vira sua campanha contra Rahl como o começo de sua vida, um ponto de onde partiria para a frente, para onde tudo era possível. Agora, deter Rahl era um fim. Não só para Rahl, mas para ele. Não havia nada além tudo depois daquilo estava morto. Quando conseguisse deter Rahl e Kahlan estivesse a salvo, voltaria para Hartland sozinho e sua vida teria terminado.
Richard ouviu Kahlan chorando atrás dele.
— Richard, se você quer que eu vá embora, por favor, não tenha medo de dizer. Eu compreenderei. As Confessoras estão acostumadas com isso.
Richard olhou para o fogo que morria e fechou os olhos com força, tentando desfazer o nó na garganta, tentando conter as lágrimas. A dor atormentava seu peito, dificultando a respiração.
— Por favor, Kahlan, existe algum modo — perguntou ele —, qualquer modo... de podermos... de nós...
— Não — gemeu ela.
Ele esfregou as mãos trêmulas. Tudo estava perdido para ele.
— Kahlan — finalmente conseguiu dizer —, há alguma lei, ou alguma regra, ou coisa assim que nos impeça de sermos amigos?
Ela respondeu com uma exclamação chorosa.
— Não!
Richard se voltou para ela e a abraçou.
— Eu bem que preciso de uma pessoa amiga agora — murmurou ele.
— Eu também — disse ela retribuindo o abraço. — Mas não posso ser nada mais.
— Eu sei — as lágrimas desciam no rosto de Richard. — Mas, Kahlan, eu amo...
Ela pôs o dedo sobre os lábios dele.
— Não diga isso. Por favor, Richard, nunca diga isso.
Ela podia fazer com que ele na dissesse em voz alta, mas não calar sua mente.
Ela soluçou abraçada a ele e Richard lembrou quando estavam no pinheiro amigo, logo depois de se conhecerem, quando o mundo subterrâneo quase a levou. Kahlan o abraçou então e ele pensou que ninguém jamais a tinha abraçado. Agora sabia por quê. Encostou o rosto na cabeça dela.
Uma pequena chama de cólera lampejou nas cinzas dos seus sonhos.
— Você já escolheu seu companheiro?
Ela balançou a cabeça.
— Tenho coisas mais importantes para pensar agora. Mas se vencermos e eu viver... então terei de escolher.
— Prometa uma coisa.
— Se puder.
Sua garganta estava tão quente que ele teve de engolir duas vezes antes de falar.
— Prometa que não vai escolher antes que eu esteja de volta a Westland. Não quero saber quem é ele.
Ela soluçou por um momento, segurando com força a camisa dele.
— Eu prometo.
Depois de algum tempo abraçados, Richard tentando se controlar, lutando contra a escuridão, forçou um sorriso.
— Você está errada sobre uma coisa.
— Sobre o que?
— Você disse que nenhum homem pode comandar uma Confessora. Está errada. Eu comando a Madre Confessora. Você jurou me proteger, exijo que cumpra seu dever de guia.
Com o rosto no peito dele, ela disse, com um riso doloroso; — Você tem razão. Meus parabéns, você é o primeiro homem que faz isso. E quais as ordens do meu mestre para sua guia?
— Que ela não me preocupe mais com tentativas de tirar a própria vida. Eu preciso dela. E que nos leve à rainha e à caixa antes de Rahl e nos faça sair ilesos.
Kahlan inclinou a cabeça encostada no peito dele.
— Suas ordens serão cumpridas, meu senhor. — Afastou-se e pôs as mãos nos braços de Richard, sorrindo entre as lágrimas. — Como é que você consegue me fazer sentir melhor, mesmo nos piores momentos da minha vida?
Ele deu de ombros e fez um esforço para sorrir, embora estivesse morrendo por dentro.
— Eu sou o Seeker. Posso fazer qualquer coisa. — Queria dizer mais, porém a voz não saiu.
Com um sorriso, ela balançou a cabeça.
— Você é uma pessoa muito rara, Richard Cypher — murmurou Kahlan.
Tudo que ele queria naquele momento era ficar sozinho para poder chorar.
Com o pé, Richard jogou terra sobre as brasas da fogueira, abafando o único calor da madrugada fria do novo dia. O céu começou a se iluminar com um azul gelado e um vento cortante soprava do oeste. Pelo menos, o vento estaria nas costas deles, Richard pensou. Ao lado do seu outro pé, estava o galho que Kahlan tinha usado para assar o coelho — o coelho que apanhou sozinha com uma armadilha ensinada por ele.
Sentiu um calor no rosto pensando nisso, pensando num guia florestal ensinando aquelas coisas a Kahlan. À Madre Confessora. Mais do que uma rainha. As rainhas se curvam para a Madre Confessora. Quem ele pensava que era? Zedd tentara avisá-lo. Se ao menos ele tivesse ouvido...
O vazio ameaçou tomar conta dele. Pensou no irmão, nos amigos Zedd e Chase. Embora não preenchessem o vazio, pelo menos ainda tinha os três. Viu Kahlan pôr a mochila nos ombros. Ela não tinha pessoa alguma. Suas únicas amigas, as outras Confessoras, estavam mortas. Kahlan estava sozinha no mundo, sozinha em Midlands, rodeada por pessoas que ela tentava salvar, que a temiam e odiavam e por inimigos que queriam matá-la e não tinha nem mesmo um mago para protegê-la.
Richard compreendeu por que ela não quis contar antes. Ele era seu único amigo. Sentiu-se um tolo por pensar só em si mesmo. Se amigo era tudo que podia ser, então amigo ele seria. Mesmo que isso o matasse.
— Deve ter sido difícil me contar tudo isso — disse ele, ajustando a espada.
Kahlan fechou bem o casaco, protegendo-se das rajadas de vento. Sua expressão era outra vez calma, não demonstrando nada, a não ser os traços de dor que ele podia ver, agora que a conhecia bem.
— Teria sido mais fácil me matar.
Ele a viu começar a andar e a seguiu. Se Kahlan tivesse contado no começo, ele se perguntou, ainda estaria com ela? Se tivesse contado antes de conhecê-la como conhecia agora, teria medo de ficar perto dela, como todos tinham? Talvez ela estivesse certa em ter medo de contar antes. Mas, pelo menos, o teria poupado do que sentia agora.
Perto do meio-dia, chegaram a uma encruzilhada marcada com uma pedra com a metade da altura dele. Richard parou, examinando os símbolos gravados nas faces polidas.
— O que significam?
— Indicam a direção das cidades e dos povoados e a distância — disse ela, pondo as mãos nas axilas para aquecê-las. Inclinou a cabeça para uma das trilhas. — Se quisermos evitar movimento, este é o melhor caminho.
— Fica muito longe?
Ela olhou para a pedra.
— Geralmente viajo pelas entradas entre as cidades, não por estas trilhas menos usadas. O marco não dá a distância daqui, só da entrada, mas dentro de alguns dias poderei calcular.
Richard tamborilou os dedos no punho da espada.
— Há cidades por perto?
— Estamos a uma hora de Horners Mill. Por quê?
— Pouparíamos tempo se tivéssemos cavalos.
Ela olhou para a trilha, como se pudesse ver a cidade.
— Horners Mill é uma cidade madeireira, uma serraria. Deve haver muitos cavalos, mas talvez não seja uma boa idéia. Ouvi dizer que o povo simpatiza com D’Hara.
— Por que não damos uma olhada? Se tivéssemos cavalos, economizaríamos pelo menos um dia. Tenho algumas moedas de prata e uma ou duas peças de ouro. Talvez possamos comprar alguns.
— Acho que, se tivermos cuidado, podemos ir até lá. Mas nem pense em mostrar sua prata ou seu ouro. As moedas têm a marca de Westland e as pessoas daqui consideram uma ameaça tudo o que vem do outro lado da fronteira. São histórias e superstições.
— Muito bem, então como podemos conseguir os cavalos? Roubando?
Kahlan ergueu uma sobrancelha.
— Esqueceu tão depressa? Você está com a Madre Confessora. Tudo o que tenho de fazer é pedir.
Richard disfarçou o desagrado do melhor modo possível.
— Vamos dar uma olhada.
Horners Mill ficava à margem do Rio Callisidrin; as águas lamacentas forneciam força à serraria e ao transporte das toras de madeira. Desaguadouros serpenteavam pelas áreas de trabalho e as construções decrépitas da serraria se erguiam mais altas do que as outras estruturas. Madeira cortada se empilhava em galpões abertos ou debaixo de lonas, à espera de barcaças que as levariam pelo rio ou de carroças que as levariam pela estrada. Na encosta se erguiam casas muito juntas umas das outras acima da serraria, aparentemente construídas a princípio como abrigos provisórios e, com o passar dos anos, por infelicidade se tornaram permanentes.
Mesmo a distância, Richard e Kahlan viram que havia alguma coisa errada. A serraria estava parada, as ruas vazias. A cidade deveria estar vibrando de atividade. Devia haver pessoas nas lojas, nas docas, na serraria e nas ruas, mas não havia sinal de gente ou animais. A cidade parecia se encolher no silêncio, a não ser por algumas lonas tatalando ao vento e alguns painéis de lata guinchando e batendo nos prédios da serraria.
Quando chegaram perto, o vento levou até eles algo mais do que lonas tatalando e latas tilintando, levou o cheiro pútrido da morte. Richard verificou se a espada estava solta na bainha.
Corpos inchados, quase prestes a estourar, os botões das roupas esticados e fluido escorrendo atraíram nuvens de moscas. Os mortos estavam nos cantos e encostados nos prédios, como folhas de outono empilhadas pelo vento. Quase todos tinham ferimentos horríveis, alguns estavam atravessados por lanças quebradas. O silêncio parecia vivo. Portas arrombadas pendiam em ângulos estranhos, presas a uma única dobradiça ou estavam no meio da rua com objetos de uso pessoal e móveis. Todas as janelas estavam quebradas. Alguns prédios não passavam de pilhas queimadas e frias de vigas e entulho. Richard e Kahlan cobriram o nariz e a boca com os casacos, tentando se proteger do cheiro, enquanto olhavam para os mortos.
— Rahl? — perguntou Richard.
Ela olhou de longe para vários corpos amontoados.
— Não. Rahl não mata assim. Isto foi uma batalha.
— Para mim parece mais uma carnificina.
Kahlan concordou.
— Lembra-se dos mortos do Povo da Lama? É assim que Rahl mata. Sempre da mesma forma. Isto é diferente.
Atravessaram a cidade, sempre perto dos prédios, longe do centro da rua, ocasionalmente desviando-se do sangue e dos outros restos de matéria. Todas as lojas tinham sido saqueadas e o que não foi levado estava destruído. Saindo de uma das lojas, uma peça de fazenda azul-clara desenrolada com manchas escuras, atravessava a rua, jogada fora por estar manchada com o sangue do dono da loja. Kahlan puxou a manga de Richard e apontou. Numa parede estava escrita esta mensagem em sangue: MORTE A TODOS QUE RESISTEM A WESTLAND.
— O que você acha que significa? — perguntou ela em voz baixa, como se os mortos pudessem ouvir.
Richard olhou para as palavras escritas com sangue.
— Não tenho a mínima idéia. — Começou a andar, virando para trás duas vezes e olhando para as palavras na parede. Richard viu uma carroça na frente de uma loja de cereais. Estava cheia pela metade com móveis pequenos e roupas; o vento açoitava as mangas dos vestidos pequeninos. Trocou um olhar com Kahlan. Alguém estava vivo e parecia que se preparava para sair da cidade.
Ele entrou cautelosamente no vão sem porta da loja, Kahlan atrás. O sol entrava pela porta e pela janela, formando listras na poeira, iluminando sacos rasgados de grãos e barris quebrados. Richard ficou ao lado da porta até seus olhos se adaptarem ao escuro. Viu marcas recentes de pés, quase todas pequenas, na poeira. Seguiu as marcas com os olhos até atrás do balcão. As pessoas estavam escondidas, trêmulas de medo.
— Não vou machucar vocês — disse ele gentilmente —, saiam daí.
— Você é um soldado do Exército Popular da Paz e está aqui para nos ajudar? — perguntou uma voz de mulher de trás do balcão.
Richard e Kahlan se entreolharam.
— Não — disse Kahlan. — Somos... apenas viajantes, de passagem.
Uma mulher com o rosto sujo molhado de lágrimas e cabelo curto despenteado levantou a cabeça. O vestido simples marrom estava sujo e rasgado. Richard tirou a mão do punho da espada para não a assustar. O lábio dela tremia, olhou para ele com os olhos fundos e fez sinal para os outros saírem do esconderijo. Eram seis crianças — cinco meninas e um menino —, outra mulher e um velho. Quando saíram, as crianças agarradas à saia da mulher, os três adultos olharam rapidamente para Richard, depois, espantados, para Kahlan. Arregalaram os olhos e recuaram, encostando na parede. Richard, a princípio confuso, percebeu que olhavam para o cabelo dela.
Os três adultos se ajoelharam, com as cabeças abaixadas, olhos no chão; as crianças esconderam o rosto nas saias das mulheres. Olhando brevemente para Richard, Kahlan fez sinal para que se levantassem. Com os olhos no chão, não viram seu gesto.
— Levantem-se — disse ela —, não há necessidade disso. Levantem-se.
Ergueram as cabeças, confusos. Olharam para as mãos dela, que faziam sinal para que se levantassem. Obedeceram com grande relutância.
— As suas ordens, Madre Confessora — disse uma das mulheres com voz tremula. — Perdoe-nos, somos gente humilde. Perdoe-nos por...
Kahlan interrompeu.
— Qual o seu nome?
A mulher fez uma profunda curvatura e ficou curvada.
— Sou Regina Clark, Madre Confessora.
Kahlan segurou os ombros dela e a fez erguer o corpo.
— Regina, o que aconteceu aqui?
Os olhos de Regina se encheram de lágrimas, olhou timidamente para Richard, e seus lábios tremeram. Kahlan olhou para ele.
— Richard — disse ela suavemente —, por que você não leva o velho e as crianças para fora?
Richard compreendeu. As mulheres estavam assustadas demais para falar na frente dele. Deu o braço ao velho e levou quatro das crianças para fora. Duas meninas mais novas recusaram-se a largar as saias das mulheres, mas Kahlan, com um gesto, fez Richard entender que estava tudo bem.
As quatro crianças, muito juntas, se sentaram no degrau na frente da casa. Nenhuma quis responder quando ele perguntou seus nomes, sequer olhavam para ele a não ser com olhares rápidos e assustados, para ter certeza de que ele não estava chegando mais perto delas. O velho só olhou para longe quando Richard perguntou o nome dele.
— Pode me dizer o que aconteceu aqui? — perguntou Richard.
O homem olhou para a rua.
— Gente de Westland...
As lágrimas não permitiram que ele dissesse nada mais. Temendo insistir, Richard resolveu deixar o velho em paz. Ofereceu-lhe um pedaço de carne-seca que tirou da mochila, mas o homem ignorou. As crianças recuaram quando ele ofereceu a carne. Richard a guardou na mochila. A menina mais velha, adolescente, olhou para ele como se Richard fosse matá-los ou come-los todos. Ele nunca tinha visto pessoas, tão apavoradas. Para não a assustar e às outras crianças mais do que elas já estavam, ele manteve distância e prometeu que não lhes ia lazer mal, nem tocar neles. Aparentemente, as crianças não acreditaram, Richard a todo momento olhava para a porta. Não estava a vontade e queria que Kahlan saísse.
Finalmente ela saiu; o rosto expressava interna calma e muita tensão. Richard se levantou e as crianças correram para dentro da casa. O velho ficou onde estava. Richard segurou o braço dele e o levou para a porta.
— Não há cavalos aqui — disse Kahlan, olhando para a frente, voltando para o caminho por que tinham vindo. — Acho melhor sairmos das estradas, ficar nas trilhas menos usadas.
— Kahlan, o que está acontecendo? — Ele olhou para trás. — O que aconteceu aqui?
Ela olhou para a mensagem sangrenta na parede quando passaram por ela. MORTE A TODOS QUE RESISTEM A WESTLAND.
— Missionários vieram e falaram para o povo da glória de Darken Rahl. Costumaram vir sempre, contando ao conselho as coisas que teriam quando D’Hara governasse as terras. Dizendo do amor de Darken Rahl pelo povo.
— Isso é loucura! — murmurou Richard asperamente.
— Mesmo assim o povo de Horners Míll foi convencido. Todos concordaram em declarar a cidade território de D’Hara. O Exército Popular da Paz entrou na cidade, tratando todos com o maior respeito, comprando mercadorias dos comerciantes, gastando prata e ouro. — Ela apontou para as fileiras de madeira debaixo das lonas. — Os missionários fizeram o que tinham prometido. Chegaram pedidos de madeira. Muita madeira. Para construir novas cidades onde o povo pudesse viver com prosperidade sob o novo e esplêndido governo do Pai Rahl.
Richard balançou a cabeça, atônito. — E então?
— A notícia se espalhou, havia mais trabalho do que o povo da cidade podia dar conta. Trabalho para o Pai Rahl. Mais homens vieram para ajudar a despachar os pedidos. Enquanto tudo isso acontecia, os missionários falavam sobre a ameaça de Westland. A ameaça de Westland para o Pai Rahl.
— De Westland! — disse Richard incrédulo.
— Então os homens do Exército Popular da Paz deixaram a cidade, dizendo que iam lutar contra as forças de Westland para proteger as outras cidades que haviam jurado obediência a Darken Rahl. O povo pediu que deixassem alguns homens, para proteção. Em troca da lealdade e devoção do povo, eles acederam.
Richard a fez passar na frente dele e olhou para trás.
— Então não foi o exército de Rahl que fez isto?
A trilha era larga e ela esperou que Richard estivesse ao seu lado para responder.
— Não. Elas disseram que tudo correu bem por algum tempo. Então, mais ou menos há uma semana, ao nascer do dia, uma unidade do exército de Westland atacou a cidade, matando os homens de D’Hara. Depois disso começaram a matar as pessoas indiscriminadamente e a saquear a cidade. Enquanto matavam, os soldados de Westland gritavam que era isso que acontecia a quem seguia Rahl, a todos que resistiam a Westland. Antes do pôr-do-sol eles se foram.
Richard segurou o ombro do camisão dela e a fez se virar para ele.
— Não é verdade. O povo de Westland não faria isso! Não foram eles! Não pode ter sido!
Kahlan olhou para de.
— Richard, eu não disse que era verdade. Estou apenas contando o que me contaram, o que esse povo acredita que aconteceu.
Richard soltou o camisão dela, com mais de um motivo para corar. Não pôde deixar de dizer: — Nenhum exército de Westland jamais fez isso. — Começou a voltar para a trilha, mas Kahlan segurou o braço dele.
— Isso não foi tudo.
Pela expressão dos olhos dela, Richard teve certeza de que não queria ouvir o resto. Inclinou a cabeça para que ela continuasse.
— Os que ficaram vivos começaram a deixar a cidade imediatamente, levando tudo que podiam carregar. Outros saíram no dia seguinte, alguns depois de enterrar membros das suas famílias. Naquela noite, um destacamento de homens de Westland voltou, uns cinqüenta, mais ou menos. Havia apenas um punhado de gente na cidade. Disseram que os que tinham resistido aos homens de Westland não podiam ser enterrados, mas deixados para os animais, como lembrança do que acontecia a quem resistia a Westland. Para enfatizar, reuniram todos os homens e os meninos ainda vivos e os executaram. — Pelo tom de voz de Kahlan quando disse executaram, Richard decidiu que não queria saber como. — O menino e o velho não foram vistos, senão estariam mortos também. As mulheres foram obrigadas a olhar. — Kahlan parou de falar.
— Quantas mulheres restaram?
Kahlan balançou a cabeça.
— Não sei, não muitas. — Olhou para trás, para a cidade, e então voltou para ele os olhos intensamente furiosos. — Os soldados violentaram as mulheres. E as meninas. — Os olhos dela queimavam os de Richard. — Cada uma dessas meninas que você viu foi violentada pelo menos...
— Os homens de Westland não fizeram isso!
Kahlan o olhou atentamente.
— Eu sei. Mas quem, então? Por quê? — Ela voltou a ficar calma.
Richard olhou para ela, frustrado.
— Não podemos fazer nada por eles?
— Nossa tarefa não é proteger algumas pessoas ou os mortos, é proteger os vivos, detendo Darken Rahl. Não temos tempo sobrando, precisamos chegar a Tamarang.
— Tem razão — admitiu ele com relutância. — Mas eu não gosto disso.
— Eu também não. —Seu rosto ficou menos duro. — Richard, acho que estaremos seguros. Seja qual for o exército que fez aquilo, não deve voltar por causa de algumas mulheres e crianças, estará à procura de caça maior.
Grande consolo, os assassinos estavam caçando grupos maiores de pessoas para matar, em nome de sua terra natal. Richard pensou no quanto detestava tudo aquilo e lembrou que, quando voltasse a Hartland, seu maior problema era o irmão estar sempre dizendo o que ele devia fazer.
— Um grupo tão grande de soldados não viajaria por uma trilha num bosque tão fechado quanto este; eles viajam pelas estradas, mas acho melhor começarmos a procurar pinheiros amigos para passar a norte. Nunca se sabe quem pode estar nos vigiando,
Kahlan concordou.
— Richard, muita gente da minha terra juntou-se a Rahl e tem cometido crimes indizíveis. Isso faz com que pensem mal de mim?
— É claro que não.
— E eu também não pensaria que foram soldados de Westland. Você não é culpado de crime algum quando seus compatriotas fazem coisas que você odeia. Estamos em guerra, estamos tentando fazer o que nossos ancestrais fizeram no passado, Seekers e Confessoras. Destronar um governante. Neste caso, só podemos contar com duas pessoas. Você e eu. — Olhou para ele intensamente. Richard percebeu que segurava outra vez o punho da espada. — Pode chegar um tempo quando será só você. Nós todos fazemos o que temos de fazer. — Não foi Kahlan quem falou, mas a Madre Confessora.
Foi um momento difícil e embaraçoso até ela se virar e começar a andar. Richard fechou bem o casaco, sentindo-se gelado de fora para dentro e de dentro para fora.
— Não foram os soldados de Westland — resmungou ele, seguindo atrás dela.
— Acenda para mim — disse Rachel. A pequena pilha de gravetos com pedras em volta se acendeu, iluminando o interior do pinheiro amigo com um brilho vermelho. Ela guardou o acendedor no bolso e, com um arrepio, estendeu as mãos para o fogo, olhando para Sara no seu colo.
— Estaremos seguras aqui esta noite — disse ela à boneca. Sara não respondeu. Não falava desde a noite em que fugiram do castelo, por isso Rachel fingiu que ela estava falando, dizendo que a amava. Deu um abraço apertado na boneca.
Tirou algumas frutas silvestres do bolso e comeu uma de cada vez, aquecendo as mãos entre uma e outra. Mordiscou o pedaço de queijo duro que trouxera do castelo. Todos os outros alimentos tinham acabado. Exceto o pão, é claro. Mas Rachel não podia comer aquilo, a caixa estava escondida dentro dele.
Rachel sentia muita falta de Giller, mas tinha de fazer o que ele tinha dito, encontrar um pinheiro amigo diferente cada noite. Não sabia a que distância estava do castelo. Continuava a andar enquanto era dia, com o sol nas costas de manhã e no rosto no fim da tarde. Tinha aprendido isso com Brophy. Ele chamava de viajar pelo sol. Imaginava que era o que ela estava fazendo: viajando.
Um galho do pinheiro se moveu e Rachel se sobressaltou. Viu a mão grande segurando o galho. Então a lâmina brilhante de uma longa espada. Olhou arregalada, sem poder se mexer.
Um homem pós a cabeça dentro do pinheiro.
— O que temos aqui? — sorriu ele.
Rachel ouviu um gemido fraco e percebeu que vinha da sua garganta. Continuava sem poder se mexer. Apareceu a cabeça de uma mulher atrás dele. Rachel apertou a boneca contra o peito.
— Guarde a espada — disse a mulher —, você está assustando a menina.
Rachel puxou o pão parcialmente descoberto para perto dela. Queria fugir, mas suas pernas não funcionavam. A mulher entrou no pinheiro, aproximou-se e se abaixou. Empurrando o homem para trás. Rachel olhou para ela e então viu o cabelo comprido, iluminado pelo fogo. Arregalou mais ainda os olhos e outro gemido saiu da sua garganta. Finalmente suas pernas se mexeram um pouco e a levaram para trás, contra o tronco da árvore. Rachel puxou o pão para si. Mulheres de cabelo comprido sempre significavam encrenca. Rachel mordeu o pé de Sara, ofegante, um gemido saindo com cada respiração. Apertou Sara com toda a força. Desviou os olhos do cabelo da mulher, olhando para os lados, procurando um lugar para fugir.
— Não vou machucar você — disse a mulher. Sua voz era agradável, mas a princesa Violeta às vezes dizia a mesma coisa antes de esbofetear seu rosto.
A mulher tocou no braço de Rachel. Ela gritou e pulo para trás.
— Por favor — pediu ela —, não queime Sara.
— Quem é Sara? — perguntou o homem.
A mulher se virou para trás e o fez ficar calado. Voltou a olhar para Rachel, os olhos da menina fixos no cabelo que chegava abaixo dos ombros.
— Não vou queimar Sara — disse ela, com sua bela voz. Rachel sabia que quando uma mulher de cabelo comprido falava daquele jeito, provavelmente estava mentindo. Mas a voz dela parecia estar dizendo a verdade.
— Por favor — gemeu ela. — Não podem nos deixar em paz?
— Nós? — a mulher olhou em volta. Depois outra vez para Sara. — Ah, compreendo. Então esta é Sara? — Rachel fez que sim com a cabeça, mordendo com mais força o pé de Sara. Sabia que ia levar um tapa se não respondesse a uma mulher de cabelo comprido. — É uma boneca muito bonita. — Ela sorriu. Rachel desejou que ela não sorrisse. Quando mulheres de cabelo comprido sorriam, quase sempre significava que ela teria problemas.
O homem pôs a cabeça na frente da mulher.
— Meu nome é Richard. Qual o seu?
Ela gostou dos olhos dele.
— Rachel.
— Rachel. Um nome bonito. Mas tenho de dizer, Rachel, que você tem o cabelo mais feio que já vi.
— Richard! — exclamou a mulher. — Como pode dizer uma coisa dessas?
— Bem, é verdade. Quem o cortou assim, alguma bruxa velha?
Rachel riu.
— Richard — exclamou a mulher outra vez. — Você vai assustar a menina.
— Bobagem. Rachel, eu tenho uma tesourinha na minha mochila e sei cortar cabelo muito bem. Gostaria de que eu arrumasse seu cabelo? Pelo menos posso cortar reto. Se deixar desse jeito, pode assustar um dragão ou coisa parecida.
Rachel riu outra vez.
— Sim, por favor. Gostaria do meu cabelo cortado direito.
— Muito bem, então venha se sentar no meu colo, que já arrumaremos isso.
Rachel se levantou procurando ficar longe da mulher, pelo menos tanto quanto era possível dentro do pinheiro, olhando para as mãos dela. Richard a pôs no colo, levantando-a com as mãos grandes. Puxou algumas mechas de cabelo.
— Vejamos o que temos aqui.
Rachel não tirou os olhos da mulher, com medo de um tapa. Richard também olhou para Kahlan. Apontou com a tesoura.
— Esta é Kahlan. No começo ela me assustou também. Ela é muito feia, não é?
— Richard! Onde você aprendeu a falar desse jeito com crianças?
Ele sorriu.
— Aprendi com um guarda da fronteira que conheço.
Rachel não pôde deixar de rir.
— Não acho que ela seja feia. Acho que é a mulher mais bonita que já vi. — Era verdade. Mas o cabelo comprido de Kahlan a apavorava.
— Bem, muito obrigada, Rachel, você também é muito bonita. Está com fome?
Rachel não devia dizer a ninguém com cabelo comprido, dama ou cavalheiro, que estava com fome. A princesa Violeta dizia que não era apropriado e certa vez a castigou por dizer que estava com fome, quando perguntaram. Ela ergueu os olhos pra Richard. Ele sorriu, mas ela ainda estava com medo de dizer a Kahlan que estava com fome.
Kahlan bateu de leve no braço dela.
— Aposto que está. Nós pegamos alguns peixes e, se nos deixar usar seu fogo, repartiremos os peixes com você. O que acha? — Ela sorriu gentilmente.
Rachel olhou outra vez para Richard. Ele piscou um olho e suspirou.
— Acho que peguei mais do que podemos comer. Se não nos ajudar, teremos de jogar fora.
— Está bem, se vão jogar fora, ajudo a comer.
Kahlan começou a tirar a mochila do ombro.
— Onde estão seus pais?
Rachel disse a verdade porque não conseguia pensar em outra coisa para dizer.
— Mortos.
As mãos de Richard pararam de trabalhar por um momento e depois recomeçaram. Kahlan pareceu triste, mas Rachel não sabia se era de verdade ou não. Kahlan apertou de leve o braço dela.
— Eu sinto muito, Rachel — Rachel não se sentia tão triste, não se lembrava dos pais, só do lugar em que tinha morado com as outras crianças.
Richard continuou a cortar o cabelo, enquanto Kahlan pegou uma frigideira e começou a fritar o peixe. Richard tinha razão, era muito peixe. Kahlan pôs algum tempero, como Rachel tinha visto os cozinheiros fazerem. O cheiro era tão bom que seu estômago começou a roncar. Pequenos pedaços de cabelo caíram em volta dela. Rachel sorriu, pensando como a princesa Violeta ficaria furiosa se soubesse que o cabelo de Rachel estava bem cortado. Richard cortou um dos cachos longos, amarrou um pedaço de trepadeira na extremidade e pôs o cabelo na mão dela. Rachel olhou para ele, intrigada.
— Você deve guardar isto. Se um dia gostar de um rapaz, pode dar a ele uma mecha do seu cabelo e ele pode guardar no bolso, perto do coração. — Richard piscou para ela. — Para se lembrar de você.
Rachel riu.
— Você é o homem mais bobo que já vi. — Ele riu. Kahlan olhou para ele e sorriu. Rachel guardou o cabelo no bolso. — Você é um lorde?
— Sinto muito, Rachel, mas sou um mero guia florestal. — Rachel ficou um pouco triste, mas logo achou bom que ele não fosse um lorde. Richard tirou da mochila um espelhinho e o deu a ela. — Dê uma olhada. Diga o que acha.
Rachel levantou o espelho tentando ver sua imagem e levou um minuto para pôr no lugar certo para poder ver à luz do fogo. Era o menor espelho que já tinha visto. Rachel arregalou os olhos e eles se encheram de lágrimas.
Abraçou Richard.
— Oh, muito obrigada, Richard, muito obrigada. Nunca meu cabelo esteve tão bonito. — Richard a abraçaou e a sensação foi melhor ainda do que quando Giller a abraçava. Uma de suas mãos grandes e quentes esfregou as costas dela. Foi um longo abraço, o maior que Rachel já tinha recebido, e ela desejou que nunca acabasse. Mas acabou.
Kahlan balançou a cabeça.
— Você é uma pessoa muito rara, Richard Cypher — murmurou ela.
Kahlan espetou um grande pedaço de peixe num graveto e o deu a Rachel, dizendo que ela devia assoprar para não queimar a boca. Rachel assoprou um pouco, mas estava com muita fome para assoprar muito. Foi o melhor peixe de sua vida. Tão bom quanto o pedaço de carne que os cozinheiros lhe tinham dado.
— Pronta para outro pedaço? — perguntou Kahlan. Rachel fez que sim. Então Kahlan tirou uma faca do cinto. — Será que podemos comer um pedaço de pão com o peixe? — Estendeu a mão para o pão.
Rachel mergulhou para o pão, pegando antes de Kahlan e o apertou contra o peito.
— Não! — Firmando os calcanhares no chão, arrastou-se para longe de Kahlan.
Richard parou de comer. Kahlan franziu a testa. Rachel enfiou a mão no bolso, segurando o acendedor que Giller tinha dado.
— Rachel, qual o problema? — perguntou Kahlan.
Giller tinha dito para não confiar em ninguém. Tinha de pensar em alguma coisa. O que Giller diria?
— É para minha avó! — Rachel sentiu uma lágrima descer no rosto.
— Muito bem, se é para sua avó — disse Richard —, não tocaremos nele. Prometo. Certo, Kahlan?
— É claro. Desculpe, Rachel, nós não sabíamos. Eu também prometo. Você me perdoa?
— Rachel — perguntou Richard. — Onde está sua avó?
Rachel ficou rígida. Na verdade, não tinha avó. Tentou se lembrar de algum lugar de que tivesse ouvido falar. Pensou nos lugares que ouvira os conselheiros da rainha citar. Disse o primeiro nome que veio à sua cabeça.
— Horners Mill.
Antes de acabar de falar percebeu que tinha cometido um erro. Richard e Kahlan olharam para ela, assustados, depois se entreolharam. Tudo ficou silencioso por um minuto. Rachel não sabia o que ia acontecer. Olhou para os lados do abrigo do pinheiro, para os espaços entre os galhos.
— Rachel, não vamos tocar no pão da sua avó — disse Richard. — Nós prometemos.
— Venha, coma mais um pedaço de peixe — disse Kahlan. — Pode deixar o pão ali, não vamos tocar nele.
Rachel continuou imóvel. Pensou em fugir o mais depressa possível, mas sabia que não podia correr mais depressa e eles a pegariam. Tinha de fazer o que Giller disse, esconder a caixa até o inverno, do contrário toda aquela gente teria as cabeças cortadas.
Richard pegou Sara e a pôs no colo. Fingiu que dava um pedaço de peixe à boneca.
— Sara vai comer todo o peixe. Se você quiser mais, acho bom vir até aqui e pegar sua parte. Venha, pode se sentar no meu colo e comer. Está bem?
Rachel olhou para os dois, um de cada vez, tentando decidir se diziam a verdade. Mulheres com o cabelo comprido mentiam facilmente. Richard a pôs no colo e Sara no colo dela.
Rachel se aconchegou no peito dele enquanto todos comiam o peixe. Não olhou para Kahlan. Às vezes não era apropriado olhar para uma mulher de cabelo comprido, a princesa Violeta dizia. Rachel não queria fazer nada que merecesse um tapa no rosto. Também não queria sair do colo de Richard. Era quente e a fazia sentir-se segura.
— Rachel — disse Richard. — Sinto muito, mas não podemos deixar você ir a Horners Mill. Não é seguro.
— Tudo bem, vou para algum outro lugar.
— Temo que não seja seguro em lugar algum. Levaremos você conosco para que esteja segura.
— Para onde?
Kahlan sorriu.
— Nós vamos a Tamarang, para ver a rainha. — Rachel parou de mastigar. Não conseguia respirar. — Levamos você conosco. Tenho certeza de que a rainha encontrará alguém para tomar conta de você, se eu pedir.
— Kahlan, você tem certeza disso? — perguntou Richard em voz baixa. — Que tal o mago?
Kahlan respondeu suavemente.
— Trataremos disso depois que eu esfolar Giller.
Rachel engoliu para poder respirar. Ela sabia! Sabia que não devia confiar numa mulher de cabelo comprido. Ela quase chorou, estava começando a gostar de Kahlan. Richard era tão bom! Por que ele era bom para Kahlan? Por que estava com uma mulher tão má, capaz de fazer mal a Giller? Devia ser côo quando ela era boa para a princesa Violeta, só para não ser maltratada. Ele devia ter medo de ser maltratado. Teve pena de Richard. Teve vontade de poder fugir de Kahlan, como estava fugindo da princesa Violeta. Talvez devesse contar a ele sobre a caixa e ele podia fugir de Kahlan com ela.
Não. Giller disse para não confiar em ninguém. Ele também devia ter medo de Kahlan e podia contar a ela. Tinha de ser corajosa por Giller. Por todas aquelas pessoas. Por isso tinha de fugir deles.
— Podemos tratar disso de manhã — disse Kahlan. — Acho bom dormir um pouco para sairmos logo à primeira luz do dia.
Richard abraçou Rachel.
— Eu fico com o primeiro turno da vigia. Você procure dormir um pouco.
Ele entregou a menina a Kahlan. Rachel mordeu a língua para não gritar. Kahlan a abraçou com força. Rachel olhou para a faca. Nem a princesa tinha uma faca. Estendeu os braços para Richard, choramingando. Richard sorriu e pôs Sara nas mãos dela. Não era o que Rachel queria, mas abraçou Sara e mordeu o pé dela para não chorar.
Richard passou a mão na cabeça dela.
— Vejo você de manhã, pequenina.
Então ele se foi e Rachel ficou sozinha com Kahlan. Fechou os olhos com força. Tinha de ser corajosa. Não podia chorar. Mas chorou.
Kahlan a abraçou carinhosamente. Rachel estremeceu. Dedos acariciaram seu cabelo. Kahlan a embalou, enquanto Rachel olhava para uma abertura escura entre os galhos, no outro lado do pinheiro. O peito de Kahlan fazia pequenos movimentos estranhos e Rachel percebeu, atônita, que ela estava chorando. Kahlan encostou o rosto na cabeça dela.
Rachel quase começou a acreditar... mas então lembrou do que a princesa Violeta dizia às vezes, que doía mais castigar do que ser castigada. Rachel tentou imaginar o que Kahlan planejava para fazê-la chorar. Nem mesmo a princesa Violeta chorava quando se tratava de castigar. Rachel chorou mais e estremeceu.
Kahlan enxugou as lágrimas do rosto dela com as mãos. As pernas de Rachel estavam fracas demais para correr.
— Você está com frio? — murmurou Kahlan. Parecia ainda haver lágrimas na sua voz.
Rachel tinha medo de que, fosse qual fosse sua resposta, levaria um tapa. Fez que sim com a cabeça, pronta para o que desse e viesse. Mas Kahlan tirou um cobertor da mochila e enrolou em volta das duas e Rachel pensou que devia ser para dificultar sua fuga.
— Venha, deite mais perto e eu conto uma história. Assim uma aquece a outra. Está bem?
Rachel deitou de lado, encostada em Kahlan, que a puxou para muito perto e a abraçou. Estava bom, mas Rachel sabia que era um truque. O rosto de Kahlan estava perto do seu ouvido e ela ficou ali deitada e Kahlan contou a história do pescador que virou peixe. As palavras criavam imagens em sua mente e por algum tempo Rachel esqueceu seus problemas. Ela e Kahlan chegaram a rir juntas. Quando terminou a história, Kahlan beijou a cabeça de Rachel e acariciou-lhe a testa.
Rachel fingiu que Kahlan não era malvada. Não fazia mal fingir. Nada era tão agradável quanto os dedos dela em sua testa e as pequenas canções cantadas nos seus ouvidos. Rachel pensou que devia ser essa a sensação de ter uma mãe.
Contra a vontade, ela adormeceu e teve sonhos maravilhosos.
Acordou no meio da noite quando Richard chamou Kahlan, mas fingiu que estava dormindo.
— Você quer continuar a dormir com ela? — murmurou ele.
Rachel prendeu a respiração.
— Não — respondeu Kahlan. — Vou fazer meu turno de vigia.
Rachel ouviu Kahlan vestir o casaco e sair do abrigo do pinheiro. Prestou atenção na direção dos passos dela. Depois de pôr mais lenha no fogo, Richard se deitou. Rachel viu o abrigo se iluminar. Sabia que Richard a olhava, sentiu os olhos dele nas suas costas. Queria muito dizer a ele o quanto Kahlan era malvada e pedir que fugisse com ela. Ele era um homem muito bom e seus abraços as melhores coisas do mundo. Richard puxou o cobertor dela para cima, agasalhando-a melhor. Lágrimas desceram no rosto da menina.
Ela o ouviu deitar de costas e puxar o cobertor. Rachel esperou até ter certeza de que ele estava dormindo e saiu de baixo do cobertor.
Kahlan se virou quando ele afastou o galho, entrou no abrigo do pinheiro amigo, se sentou na frente do fogo e começou a guardar as coisas na mochila.
— E então?
Richard olhou para ela zangado.
— Encontrei rastos dela indo para oeste, de onde viemos. Chegaram à trilha a alguns metros daqui. Foram feitos há horas. — Apontou para o chão no fundo do abrigo do pinheiro. — Foi por ali que ela saiu. Deu uma volta pelo bosque para que você não a visse. Já rastreei homens que não queriam ser encontrados e suas pegadas eram fáceis de seguir. Ela anda por cima de raízes e das pedras e é muito pequena para deixar pagadas. Você viu os braços dela?
— Vi as longas equimoses. Feitas de uma vara.
— Não, estou falando dos arranhões.
— Não vi arranhão algum.
— Exatamente. Tem carrapichos no vestido, ela passou por espinheiros, mas seus braços não estão arranhados. Ela é leve e evita tocas nas coisas. Um adulto passaria direto, deixando rastos de galhos quebrados. Que nunca toca em alguma coisa. Você devia ver o rastro que deixei procurando seguir sua pista, um rastro que até um cego poderia seguir. Ela se move no meio do mato como o ar. Mesmo quando voltar à trilha, não consegui perceber por algum tempo. Está descalça, não gosta de pisar na água ou na lama— esfria os pés —, por isso pisa onde está seco, onde deixa marcas.
— Eu devia ter visto quando ela fugiu.
Richard percebeu que Kahlan pensou que ele a estava culpando. Disse, irritado:
— Não foi culpa sua, Kahlan. Se eu estivesse de vigia também não teria visto. Ela não quer ser vista. É uma menininha muito esperta.
Isso não serviu de consolo para Kahlan.
— Mas você pode seguir os passos dela, não pode?
Richard olhou de soslaio para ela.
— Eu posso — cevou a mão ao bolso da camisa. — Encontrei isto no meu bolso. — Ergueu uma sobrancelha. — Sobre o meu coração. — Mostrou o cabelo de Rachel atado com uma trepadeira e girou entre os dedos. — Para me lembrar dela.
Muito pálida, Kahlan se levantou.
— Foi culpa minha. — Saiu do abrigo do pinheiro. Richard tentou segurar o braço dela, mas Kahlan de livrou.
Richard largou a mochila e foi atrás. Kahlan parou a distancia com os braços cruzados, de costas para ele, olhando para o bosque.
— Kahlan, você não tem culpa.
— Foi o meu cabelo. Não viu o medo nos olhos dela, quando olhou para o meu cabelo? Já vi esse olhar milhares de vezes. Tem idéia do que é assustar as pessoas, até as crianças o tempo todo? — Richard ficou calado. — Richard quer cortar meu cabelo?
— O que?
Os olhos dela imploravam.
— Você corta o meu cabelo?
Ele viu sofrimento no rosto dela.
— Por que você mesma não corta?
— Não posso. A magia não permite que uma Confessora corte o próprio cabelo. Se tentar, a dor é insuportável.
— Como pode ser isso?
— Lembra da dor que sentiu com a magia da espada, quando matou um homem pela primeira vez? É igual. Deixa a Confessora inconsciente antes que possa terminar de cortar. Tentei uma só vez. Toda confessora tenta uma vez. Mas só uma. Nosso cabelo deve ser cortado por outra, quando precisa ser aparado. Mas nenhuma se atreve a cortar curto. — Virou-se para ele outra vez. — Faria isso por mim? Cortaria meu cabelo?
Richard desviou os olhos dos dela para o céu que começava a clarear, tentando compreender o que sentia, o que ela devia estar sentindo. Havia tanta coisa que não sabia sobre ela... Sua vida, seu mundo eram um mistério para ele. Houve um tempo em que queria saber tudo. Agora tinha certeza de que nunca saberia, o abismo entre eles estava repleto de magia. Magia destinada, ao que parecia, explicitamente a separá-los.
Finalmente olhou para ela.
— Não.
— Posso saber por quê?
— Porque eu a respeito pelo que você é. A Kahlan que conheci não ia querer enganar as pessoas, tentando parecer o que não é. Mesmo que enganasse alguns, não mudaria nada. Você é quem é, a Madre Confessora. Não podemos ser mais ou menos do que somos. — Ele sorriu.— Uma mulher sensata, minha amiga, disse isso certa vez.
— Qualquer homem gostaria de cortar o cabelo de uma Confessora.
— Não esse aqui. Este é seu amigo.
Ela assentiu, inclinando a cabeça, ainda com os braços cruzados.
— Ela deve estar com frio. Nem levou cobertor.
— Também não levou comida, a não ser aquele pão que está guardando por algum motivo, apesar de estar faminta.
Finalmente Kahlan sorriu.
— Ela comeu mais do que nós dois juntos. Pelo menos está com a barriga cheia. Richard quando ela chegar a Horners Mill...
— Ela não vai para Horners Mill.
Kahlan chegou mais perto dele.
— Mas é onde a avó dela está.
Richard balançou a cabeça.
— Ela não tem avó. Quando disse que a avó estava em Horners Mill e eu disse que ela não podia ir para lá, Rachel nem hesitou. Simplesmente resolveu que iria para outro lugar. Nem pensou, não perguntou da avó, não fez qualquer objeção. Ela está fugindo de alguma coisa.
— Fugindo? Talvez das sombras que fizeram aquele ferimento no seus braços.
— E nas costas. Sempre que meus dedos tocavam algum, ela se encolhia, mas não dizia nada. Ela queria tanto ser abraçada! — Kahlan franziu a testa, sentindo pena de Rachel. — Ela diria que está fugindo de quem cortou seu cabelo daquele jeito.
— O cabelo?
Ele fez que sim com a cabeça.
— Era uma marca, talvez de propriedade. Ninguém cortaria daquele modo a não ser como uma mensagem. Especialmente em Midlands, onde todos prestam tanta atenção ao cabelo. Uma mensagem deliberada, uma mensagem de poder sobre ela. Por isso eu cortei, para remover a marca.
Kahlan olhou para longe.
— Por isso ela ficou tão feliz — murmurou.
— Mas há mais do que simplesmente fugir. Ela mente com mais facilidade do que um jogador. Com facilidade de quem precisa intensamente mentir.
Kahlan olhou para ele.
— Por quê?
— Eu não sei — suspirou. — Mas tinha algo a ver com aquele pão.
— O pão? Você acha mesmo isso?
— Ela não tinha sapatos, nem casaco, nada além da boneca. É sua possessão mais preciosa, é delicada a ela, e deixou que nós a tocássemos. Mas não permitiu que chegássemos perto do pão. Não sei muita coisa sobre magia em Midlands, mas de onde venho, uma menina não dá mais valor a um pão do que a uma boneca e não acredito que aqui seja diferente. Viu os olhos dela quando você tentou pegar o pão e ela o segurou imediatamente? Se Rachel tivesse uma faca e você não tivesse recuado, ela a teria usado em você.
— Richard — discordou ela —, você não pode realmente pensar isso de uma menina. Um pão não pode ser mais importante do que ela.
— Não? Você mesma disse que ela comeu mais do que nós dois juntos. Comecei a pensar que fosse parente do Zedd. Explique por quê, se ela estava faminta, não tinha tirado nem um pedaço do pão? — Richard balançou a cabeça. — Alguma coisa está acontecendo e aquele pão é o centro de tudo.
Kahlan deu um passo para ele.
— Então, vamos atrás dela?
Richard sentiu o peso do dente dependurado no seu pescoço. Respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Não. Como Zedd gosta de dizer, nada é fácil. Como podemos justificar o fato de irmos atrás de uma menina para resolver o enigma do pão, enquanto Rahl procura a caixa?
Kahlan segurou a mão dele.
— Detesto o que Darken Rahl fez conosco, o modo com que ele nos obriga a fazer coisas. — Apertou a mão dele. — Ela entrou muito depressa nos nossos corações.
Richard a abraçou.
— É verdade. Rachel é uma menininha especial. Espero que encontre o que procura e que esteja segura. — Foi até o pinheiro amigo, para apanhar as coisas deles. — Vamos embora.
Nenhum dos dois queria pensar no que sentia, que estavam abandonando Rachel, condenando-a a perigos que ela desconhecia e contra os quais estava indefesa, por isso se concentraram em percorrer a maior distancia, o mais depressa possível. O dia continuou claro e chegaram a uma vasta área de floresta; com a pressa, nem notaram o frio.
Richard sempre gostava de encontrar uma teia de aranha estendida no meio da trilha. Começava a pensar nas aranhas como guardiãs. Quando era guia, não gostava de teias de aranha no rosto. Obrigada, irmã aranha, ele pensava agora, cada vez que passava por uma.
Quase ao meio dia, pararam para descansar nas rochas aquecidas pelo sol em um regato gelado, Richard passou água fria no rosto, tentando criar mais energia. Já estava cansado. Almoçaram comida fria que durou apenas o tempo de descer pela garganta. Enfiaram os últimos pedaços na boca, limparam as mãos nas pernas das calças e desceram da rocha plana e cor-de-rosa.
Por mais que tentasse não pensar em Rachel, Richard não podia evitar...
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