Era uma trepadeira estranha. Folhas foscas variegadas colavam-se a um talo que se enrolava fortemente em volta do tronco macio de um abeto balsâmico. Seiva escorria do tronco ferido e galhos secos pendiam flácidos como se a árvore estivesse tentando emitir um gemido no ar úmido e frio da manhã. Vagens brotavam da trepadeira aqui e ali em todo o seu comprimento, quase parecendo à procura cautelosa de testemunhas.
Foi o cheiro que primeiro chamou sua atenção, o cheiro de alguma coisa em decomposição que tivesse sido repugnante mesmo em vida. Richard passou os dedos no cabelo Espesso, enquanto sua mente erguia a névoa de desespero que descera sobre ele ao ver a trepadeira. Ele procurou outras, mas não viu qualquer trepadeira. Tudo o mais parecia normal. Os bordos da Floresta Ven, lá no alto, já começavam a se tingir de vermelho, orgulhosamente exibindo o novo manto na brisa leve. Com as noites ficando mais frias, logo seus primos do Bosque Hartland, ao sul, os imitariam. Os carvalhos, os últimos a ceder à estação, vestiam ainda heroicamente seus mantos verdes.
Tendo passado a maior parte da vida nos bosques, Richard conhecia todas as plantas, senão pelo nome, pela aparência. Desde que Richard era pequeno, seu amigo Zedd o levava com ele, quando ia procurar ervas especiais. Ensinou a Richard quais delas devia procurar, onde elas cresciam e por quê, e dava nomes a tudo que viam. Muitas vezes eles apenas conversavam, o velho sempre o tratando como igual, perguntando tanto quanto respondendo. Zedd despertara a fome que Richard tinha de aprender, de saber.
Mas aquela trepadeira, Richard tinha visto só uma vez antes e não nos bosques. Encontrou um broto dela na casa do pai, no frasco de vidro azul de cerâmica feito por Richard quando era pequeno. Seu pai era negociante e viajava muito, à procura de itens exóticos e raros. Pessoas ricas muitas vezes o procuravam, interessadas no que ele podia ter encontrado. Aparentemente ele gostava era da procura, mais que da descoberta, e sempre parecia feliz em se descartar de alguma coisa e partir à procura de outras.
Desde muito cedo, Richard gostava de passar tempo com Zedd, quando seu pai Viajava. Seu irmão Michael, alguns anos mais velho, não se interessava pelos bosques nem pelas divagações instrutivas de Zedd, preferindo passar o tempo com pessoas ricas. Há uns cinco anos Richard saíra de casa para morar sozinho, mas sempre visitava a casa do pai, ao contrário de Michael, que estava sempre ocupado e nunca tinha tempo para visitas. Quando viajava, o pai deixava um bilhete para Richard no frasco azul contando as novidades, um causo ou alguma coisa interessante que tinha visto.
No dia em que, há três semanas, Michael apareceu e disse que seu pai fora assassinado, Richard foi à casa do pai, apesar de o irmão insistir para que não fosse dizendo que ele não podia fazer nada. Havia muito Richard tinha passado da idade em que fazia tudo que o irmão dizia. Procurando poupá-lo, o povo da cidade não deixou que ele visse o corpo. Mas ele viu as poças de sangue marrom e sexo no assoalho de madeira. Quando Richard se aproximou, as vozes se calaram, a não ser para oferecer simpatia, o que mais aprofundou a enorme dor. Ele os ouviu comentar, em murmúrios, as histórias e os rumores sobre coisas além da fronteira.
Magia.
Richard ficou chocado com a desordem deixada na pequena casa do pai, como se o interior tivesse sido atingido por uma tempestade. Pouca coisa estava intocada. O vidro azul de mensagens ainda estava na prateleira e, dentro dele, Richard encontrou o broto da trepadeira, que pôs no bolso. Não tinha idéia do que seu pai queria dizer com aquilo.
A dor da perda e a depressão o dominaram e, embora tivesse ainda o irmão, sentia-se abandonado. O fato de ser um homem adulto não oferecia santuário para a sensação de desamparo, de estar sozinho no mundo, um sentimento que conhecera antes, quando era mais jovem e sua mãe morreu. Mesmo com o pai viajando constantemente, ficando fora de casa às vezes durante semanas, Richard sempre sabia que ele estava em algum lugar, e que voltaria. Agora, nunca mais ia voltar.
Michael não permitiu que ele participasse da procura do assassino. Disse que tinha os melhores homens do exército fazendo isso e queria que Richard ficasse fora, para seu próprio bem. Assim, Richard simplesmente não mostrou o broto da trepadeira para Michael e saía sozinho todos os dias à procura da planta. Durante três semanas, percorrei as trilhas dos Bosques Hartland, todas elas, mesmo as que quase ninguém conhecia, mas não encontrou a trepadeira.
Finalmente, contrariando o próprio julgamento, resolveu dar ouvidos aos murmúrios da sua mente e foi à Floresta Vem, ao norte, perto da fronteira. Os murmúrios no fundo de sua mente o atormentavam com a sensação de que, de algum modo, ele sabia alguma coisa sobre o motivo do assassinato do pai. Eles o desafiavam e tantalizavam com pensamentos fora do seu alcance e riam dele por não descobrir. Richard tentou se convencer de que estava sendo enganado pela dor do pai e que nada daquilo era real.
Pensou que, quando encontrasse a trepadeira, teria uma resposta. Agora a tinha encontrado e não sabia o que pensar. Os murmúrios não mais o provocavam, mas agora eram cheios de ansiedade. Richard sabia que era sua mente e ordenou a si mesmo que parasse de tentar dar aos murmúrios uma vida própria. Zedd lhe tinha ensinado a ser mais sensato.
Richard olhou para o grande pinheiro agonizante. Pensou outra vez na morte do pai. A trepadeira estava lá e agora matava aquela árvore. Não podia ser coisa boa. Embora não pudesse fazer nada pelo pai, não ia permitir que a trepadeira provocasse outra morte. Segurou com força o talo enrolado, puxou e, com músculos poderosos, arrancou as gavinhas do tronco da árvore.
Foi quando a trepadeira o mordeu.
Uma das vagens saltou e picou as costas da sua mão esquerda. Richard pulou para trás, surpreso. Examinando o pequeno ferimento, encontrou um espinho enfiado no corte. A questão estava respondida. A trepadeira significava encrenca. Estendeu a mão para a faca para retirar o espinho, mas não a encontrou. Surpreso a principio, logo compreendeu que não devia permitir que sua depressão o fizesse esquecer algo tão básico como levar a faca quando ia ao bosque. Com as unhas, tentou retirar o espinho. Começou a ficar preocupado e percebeu que o espinho parecia vivo, contorcendo-se e afundando cada vez mais no corte. Quanto mais tentava retira-lo, mais o espinho se aprofundava. Uma onda quente de náusea tomou conta dele quando tentou abrir mais o ferimento, por isso ele parou. O espinho desapareceu sob o sangue que pingava de sua mão.
Olhando em volta, Richard viu as folhas de um vermelho-escuro de uma pequena árvore carregada de frutos vermelhos. Debaixo da árvore, encaixada na dobra de uma raiz, ele encontrou o que procurava: uma planta aum. Aliviado, arrancou cuidadosamente a haste tenra quase pela base e esfregou de leve o líquido espesso e claro no ferimento. Sorriu, pensando no ensinamento de Zedd. A planta aum facilitava a cicatrização. As folhas macias com leve penugem sempre o faziam se lembrar de Zedd. O suco do aum diminuía a dor da picada, mas não a preocupação com a impossibilidade de remover o espinho. Ainda o sentia se contorcendo e se aprofundando cada vez mais.
Richard se agachou e, com os dedos, fez um buraco no solo, plantou o aum e o fixou com terra em volta da haste, para que pudesse reviver.
Os sons da floresta estavam silenciosos. Richard olhou para cima, apertando os olhos quando uma sombra escura se projetou no solo, saltando por cima de galhos e folhas. O ar se encheu de um farfalhar sibilante. O tamanho da sombra era assustador. Pássaros voaram rapidamente para todos os lados, saindo dos seus abrigos nas árvores, com gritos de alarme. Richard continuou a olhar pra cima, procurando entre as aberturas dos galhos verdes e dourados, tentando ver de onde vinha a sombra. Por um momento ele viu algo enorme. Grande e vermelho. Não tinha idéia do que podia ser, mas a lembrança dos rumores sobre coisas que vinham da divida dos estados o deixou gelado até os ossos.
A trepadeira era um problema, ele pensou outra vez. Aquela coisa no céu também era. Lembrou o que o povo sempre dizia: “Problemas geram três filhos”, e teve certeza que não queria conhecer o terceiro.
Procurando ignorar o medo, ele começou a correr. Isso era só conversa de gente supersticiosa, pensou. Tentou imaginar o que podia ser tão grande e vermelho. Era impossível, nada do que voava tinha aquele tamanho. Talvez fosse uma nuvem ou um artifício da luz. Mas não conseguiu se enganar. Não era uma nuvem.
Olhando para cima, sem parar de correr, tentando ver outra vez a sombra, seguiu para a trilha que circundava a encosta. Richard sabia que no outro lado da trilha havia uma descida íngreme, de onde poderia ver o céu sem o empecilho das árvores. Galhos de árvores molhados pela chuva da noite anterior lhe batiam no rosto enquanto ele corria pela floresta, saltando por cima de árvores caídas e de pequenos regatos forrados de pedras. O mato lhe batia nas calças. Retalhos de sol o faziam olhar para cima, mas negavam a vista que ele queria. Respirava rápida e entrecortadamente, o suor no seu rosto era frio e ele sentia as batidas do coração, enquanto descia descuidadamente a encosta. Finalmente saiu de baixo das árvores e entrou na trilha, quase caindo.
Olhando para o céu, ele viu a coisa muito distante e agora pequena demais para ser identificada, mas teve a impressão de que tinha asas. Apertando os olhos e protegendo-os com a mão contra a claridade, ele procurou se certificar de que tinha asas e se movia. A sombra deslizou para trás de uma colina e desapareceu. Richard nem teve tempo de ver se era realmente vermelha.
Ofegante, Richard saltou em um bloco de granito ao lado da trilha, sem perceber que amassava gravetos mortos de uma árvore nova ao seu lado, olhando para baixo, para o Lago Trunt. Talvez fosse melhor contar a Michael o que tinha acontecido, falar da trepadeira e da coisa vermelha no céu. Sabia que Michael ia rir da última parte. Muitas vezes, Richard também tinha achado graça naquelas mesmas histórias.
Não, Michael só ficaria zangado com ele por ter ido até o norte, para perto da divisa, contrariando suas ordens para não tomar parte na procura do assassino. Sabia que o irmão se importava com ele, por isso sempre estava chamando sua atenção. Agora que estava crescido, podia rir das ordens constantes de Michael, mas ainda tinha de enfrentar seu desagrado.
Richard partiu outro graveto e, frustrado, o atirou numa rocha plana. Resolveu que não devia considerar-se o único. Afinal, Michael estava sempre dizendo a todo mundo o que devia fazer, até a seu pai.
Afastou da mente aquele julgamento do irmão. Hoje era um grande dia para Michael. Seria empossado no cardo de Primeiro Conselheiro. Ficaria encarregado de tudo agora, não apenas da cidade de Hartland como antes, mas de todas as cidades e vilarejos de Westland, até do povo do campo. Responsável por tudo e por todos. Michael merecia o apoio de Richard, precisava dele. Michael também tinha perdido o pai.
Naquela tarde haveria uma cerimônia e uma grande comemoração na casa de Michael. Gente importante estaria lá, vindo dos rincões mais distantes de Westland. Richard deveria estar presente também. Pelo menos a comida seria boa. Richard só então percebeu que estava faminto.
Ali sentado, olhou para o lado oposto ao Lago Trunt, lá embaixo. Daquela altura, a água clara revelava partes alternadas de pedra e o mato verde em volta dos poços profundos. Na beira da água, a Trilha Hawkers seguia sinuosa, saindo do meio das árvores e entrando, em alguns lugares perfeitamente visível, em outros escondida. Richard tinha estado muitas vezes naquela parte da trilha. Na primavera a trilha era molhada e lamacenta ao lado do lado, mas afora, quase no fim do ano, estaria seca. Em regiões mais ao norte e ao sul, a trilha seguia pelo meio da Floresta Ven, passando perigosamente perto da fronteira. Por isso, a maioria dos viajantes a evitava, preferindo as trilhas dos Bosques Hartland.
Richard era guia florestal e conduzia com segurança os viajantes pelas florestas de Hartland. A maior parte era de dignitários que queriam mais o prestígio de um guia local do que orientação sobre o caminho.
Richard percebeu um movimento. Sem saber o que era, olhou atentamente para um ponto no lado oposto do lago. Quando olhou outra vez, onde a trilha passa por trás de um grupo de árvores, teve certeza: era uma pessoa. Talvez se amigo Chase. Quem mais a não ser um guarda da fronteira podia estar por ali?
Richard desceu da pedra, afastando os gravetos, e deu um passo à frente. O vulto seguiu pela trilha até sair do meio das árvores, na beira do lago. Não era Chase, era uma mulher. Uma mulher de vestido. Que mulher estaria andando ali tão longe, na Floresta Ven, de vestido? Richard a viu seguir ao lado da praia do lado, desaparecendo e reaparecendo na trilha. Não parecia estar com pressa, mas também não estava passeando. Movia-se com o passo ritmado de um caminhante experiente. Isso fazia sentido. Ninguém morava perto do Lago Trunt.
Outro movimento chamou sua atenção. Richard examinou os vultos. Atrás dela havia outros. Três, não, quatro homens, que usavam mantos com capuz, próprios para andar na floresta, seguiam, mantendo alguma distância. Moviam-se cautelosamente. De pedra em pedra, de árvore em árvore. Esperando, movendo-se. Richard olhou atentamente para os vultos.
Eles a seguiam furtivamente.
Richard teve certeza. Aquele era o terceiro problema.
Richard ficou paralisado, sem saber o que fazer; Não tinha certeza de que os quatro homens estavam mesmo seguindo a mulher, pelo menos não até ser tarde demais. Afinal, não era da sua conta. Além disso, ele nem tinha levado sua faca. Que chance tinha um homem desarmado contra quatro? Ele viu a mulher continuar seu caminho pela trilha. Viu os homens atrás dela.
Que chance tinha aquela mulher?
Ele se agachou, com os músculos retesados. Com o coração disparado, tentava não pensar no que podia fazer. O sol da manhã lhe aquecia o rosto e o medo acelerava sua respiração. Richard sabia da existência de um pequeno atalho que saía da trilha Hawkers, um pouco à frente de onde a mulher estava. Apressadamente, tentou se lembrar do lugar exato. A primeira bifurcação do atalho à esquerda da mulher continuava, dando volta ao lado e na colina à sua esquerda, seguindo para onde ele estava. Se a mulher ficasse na trilha principal, Richard podia esperar por ela e avisá-la da presença dos homens. E depois? Além disso, iria demorar muito; os homens a alcançariam antes. Então teve uma idéia. Ergueu-se e começou a correr na trilha.
Se pudesse alcançá-la antes dos homens e antes do atalho, poderia levá-la para a bifurcação certa. A trilha seguida para fora das árvores, para plataformas abertas, longe da fronteira, na direção da cidade de Hartland, onde ela teria ajuda. Se agissem rapidamente, Richard poderia esconder as pegadas da mulher. Os homens não saberiam que os dois tinham tomado à trilha lateral. Pensariam que ela continuava na principal, pelo menos por algum tempo, o suficiente para enganá-los e levar a mulher para lugar seguro.
Ainda ofegante por causa da corrida anterior, Richard corria o mais depressa possível. A trilha seguia agora para as árvores. Assim pelo menos ele não precisava preocupar-se em ser visto pelos homens. Raios de sol surgiram em flashes enquanto ele corria, Velhos pinheiros ladeavam a trilha, com um tapete macio de agulhas que abafava seus passos.
Depois de algum tempo, ele começou a procurar a trilha lateral. Não tinha certeza de quanto tinha corrido, a floresta não tinha qualquer ponto de referência e Richard não lembrava exatamente onde ficava o atalho. Era pequeno e fácil de passar despercebido. Esperando encontrá-lo a cada curva, ele continuou a correr. Tentava imaginar o que diria à mulher quando finalmente a alcançasse. Sua mente corria com a mesma velocidade das pernas. Ela poderia pensar que ele era um dos homens que a seguiam ou ficar com medo dele ou até não acreditar nele. Richard não teria muito tempo para convencê-la a seguir com ele, que ele a queria ajudar.
Chegando ao alto de uma pequena subida, ele procurou outra vez o atalho, mas não o viu e continuou a correr. Sua respiração estava agora entrecortada. Richard sabia que, se não alcançasse o atalho antes dela, ficariam encurralados e a única opção seria correr mais do que os quatro homens ou lutar. Ele estava muito cansado para qualquer uma dessas coisas. Pensando nisso, apressou ainda mais o passo. O suor lhe escorria nas costas, grudando a camisa no corpo. O ar frio da manhã tinha se transformado em um calor abafado, mas ele sabia que era impressão, por causa do esforço que estava fazendo. A floresta passava como uma névoa nos dois lados da trilha.
Um pouco antes de uma curva fechada para a direita, chegou finalmente ao atalho, quase passando por ele. Procurou rapidamente qualquer sinal de a mulher já houvesse passado por ali e seguido pela trilha menor. Não encontrou nada. Aliviado, Richard se ajoelhou e sentou nos calcanhares, exausto.
A primeira parte estava feita. Tinha chegado antes dela. Agora tinha de fazer com que ela acreditasse nele antes que fosse tarde demais.
Apertando com a mão o lado do corpo onde sentia uma dor aguda e ainda tentando tomar fôlego, começou a imaginar se não ia parecer tolo. E se ela estivesse apenas brincando com os irmãos? Todos, menos ele, iam dar boas risadas.
Olhou para o ferimento na mão. Estava vermelho e latejava. Lembrou-se da coisa no céu. Pensou no modo com que a mulher andava, como quem ia a algum lugar, não como alguém que estivesse brincando. Era uma mulher, não uma menina. Lembrou-se do medo que sentiu quando viu os quatro homens. Quatro homens seguindo cautelosamente uma mulher. A terceira coisa estranha daquela manhã. O terceiro filho do problema. Não, Richard balançou a cabeça, aquilo não era uma brincadeira, ele sabia o que tinha visto. Não era um jogo. Eles a estavam perseguindo.
Richard se ergueu. Ondas de calor emanavam do seu corpo. Inclinando para frente com as mãos segurando os joelhos, respirou profundamente algumas vezes antes de ficar de pé.
Então a jovem mulher surgiu na curva, bem à frente dele. Por um momento, Richard prendeu a respiração. O cabelo castanho era farto, brilhante e comprido, complementando o contorno do corpo. Era alta, quase da altura dele, e devia ter mais ou menos a mesma idade. O vestido era diferente de todos os que Richard já tinha visto, quase branco, decote quadrado, interrompido apenas por uma pequena bolsa quadrada de couro na cintura. A textura do tecido era fina e macia, quase cintilante, sem nenhum dos enfeites que ele estava acostumado a ver nas mulheres, nenhum estampado, nenhuma cor que distraísse a atenção do modo pelo qual acariciava o corpo. Elegante na sua simplicidade. Ela parou de repente e a saia ondulou suavemente sobre suas pernas.
Richard se aproximou e parou a três passos dela, para não parece ameaçador. Ela ficou imóvel, com os braços ao lado do corpo. Suas sobrancelhas tinham o arco gracioso das asas de uma ave de rapina em pleno vôo. Os olhos verdes fitavam os dele sem medo. A conexão era tão intensa que ameaçava consumir sua noção de individualidade. Richard sentia que sempre a conhecera, que ela sempre fora parte dele, que seus anseios eram os dele. Ela o prendeu com o olhar como uma garra de ferro, procurando seus olhos como quem procura a alma, buscando resposta para alguma coisa. Estou aqui para ajudar, ele pensou. Estava sendo mais sincero do que nunca.
A intensidade do olhar diminuiu, libertando-o. Nos olhos dela, ele uma coisa que o atraiu mais do que tudo: inteligência. Viu a claridade da chama que havia nela e teve a sensação da completa integridade da mulher. Richard se sentiu seguro.
Um alarme soou em sua mente e o fez lembrar porque estava ali e que o tempo era precioso.
— Eu estava lá em cima — apontou para o alto da colina — e vi você. — Ela olhou para onde ele apontava. Richard olhou também e percebeu que estava apontando para um emaranhado de galhos. De onde estavam não podiam ver a colina porque as árvores bloqueavam a vista. Ele abaixou o braço, tentando ignorar o engano. Os olhos dela se voltaram para os dele, esperando.
Richard começou outra vez em voz baixa.
— Eu estava no alto de uma colina, acima do lago. Vi você na trilha ao lado praia. Alguns homens a perseguem.
Sem nenhum sinal de emoção, ela continuou a olhar nos olhos dele.
— Quantos?
Richard estranhou a pergunta, mas respondeu.
— Quatro.
Ela ficou pálida.
Virou a cabeça para trás, para o bosque, examinando as sombras, depois voltou-se outra vez para Richard; os olhos verdes procuraram os dele.
— Você resolveu me ajudar? — A não ser pela palidez, não havia qualquer sinal de emoção no rosto bonito.
Antes de ter tempo para pensar, Richard disse: — Resolvi.
A expressão dela se abrandou.
— O que acha que devemos fazer?
— Há um pequeno atalho que começa aqui. Se seguirmos por ele e os homens continuarem na trilha principal, podemos escapar da perseguição.
— E se eles também tomarem o atalho?
— Esconderei nossas pegadas. — Richard balançou a cabeça, tentando tranqüilizá-la. — Eles não farão isso. Olhe, não temos tempo...
— E se fizerem? — interrompeu ela. — Então, qual é o seu plano?
Richard olhou para ela, calado por um momento.
— Eles são muito perigosos?
Ela ficou tensa.
— Muito.
O modo com que ela disse a palavra o fez começar a respirar outra vez. Por um momento, uma expressão de intenso terror passou pelos olhos dela.
Richard passou os dedos no cabelo.
— Bem, o atalho é estreito e escondido. Não poderão nos encurralar.
— Você tem uma arma?
Richard balançou negativamente a cabeça, furioso demais para revelar em voz alta seu esquecimento.
Ela disse: — Então vamos, depressa.
Uma vez tomada a decisão, ficaram em silêncio para que os homens não os localizassem. Rapidamente Richard escondeu os sinais da sua passagem e fez sinal para que ela fosse na frente, de modo que ele ficasse entra ela e os perseguidores. Ela não hesitou. Seu vestido flutuou quando ela se moveu rapidamente. A folhagem viçosa do Ven avançava nos dois lados, fazendo da trilha uma passagem estreita, verde e escura, entre o mato alto e os galhos. Não dava para ver nada em volta. Mas pelo menos o que ele podia ver, estava livre. Ela seguiu rapidamente, sem precisar de encorajamento.
Depois de algum tempo, chegaram a uma subida pedregosa e as árvores rarearam, melhorando a vista. A trilha seguida sinuosa por trechos profundamente sombreados, atravessando ravinas cobertas de folhas. Folhas secas espalhavam-se à passagem dos dois. Pinheiros e abetos deram lugar a árvores grandes, a maior parte vidoeiros; os galhos ondulavam no alto e pequenas manchas de sol dançavam no solo da floresta, os troncos brancos dos abetos com pintas negras pareciam centenas de olhos. A não ser pelo crocitar de alguns corvos, era um lugar silencioso e calmo.
Na base do muro de granito que a trilha seguia, Richard levou um dedo aos lábios e fez sinal para que ela andasse com cuidado, para evitar ecos que os traíssem. Ele ouvia o crocitar dos corvos ecoando pelas colinas. Richard conhecia aquele lugar, a parede de rocha podia levar os sons a quilômetros de distância. Ele apontou para as rochas cobertas de musgo no solo da floresta. Fez sinal indicando que os dois deviam subir nas rochas para não quebrar com os pés os gravetos escondidos debaixo das folhas. Afastou algumas folhas mostrando os gravetos e fingiu que os quebrava, depois levou a mão em concha à orelha. Ela fez sinal de que compreendia, ergueu a saia com uma das mãos e começou a subir as rochas.
Richard tocou no braço dela. A jovem olhou para trás e ele gesticulou, fingindo que caía, avisando que o musgo tornava as pedras escorregadias. Ela sorriu e assentiu com a cabeça, mostrando ter compreendido. O sorriso inesperado o aqueceu, aparando as arestas do medo. Richard se permitiu uma pequena dose de confiança na fuga, enquanto ela passava de uma rocha coberta de musgo para outra.
À medida que a trilha ficava mais íngreme, o número de árvores diminuía. A rocha no solo impossibilitava o crescimento das raízes. Logo as únicas árvores cresciam nas frinchas, eram nodoas, retorcidas e pequenas, não oferecendo proteção contra o vento, que podia arrancá-las daquela base precária.
Eles saíram silenciosamente do meio das árvores para as prateleiras de rocha. A trilha nem sempre era marcada com clareza e havia muitos desvios falsos. Ela frequentemente o consultava com o molhar e ele indicava o caminho, apontando em silêncio. Richard se perguntava qual seria o nome dela, mas o medo dos quatro homens o mantinha calado. Embora a trilha fosse íngreme e difícil, ele nunca precisava diminuir a marcha. Ela era hábil e rápida na escalada. Richard notou que ela calçava botas de couro macio, do tipo usado para viagem.
Havia mais de uma hora tinham saído do meio das árvores, subindo sempre, sob o sol. Seguiam para o leste, nas prateleiras de rocha antes de a trilha virar para oeste, adiante. Os homens, se os tinham seguido, teriam de olhar para o sol para vê-los. Os dois andavam com o corpo dobrado para frente e ele sempre olhava para trás, à procura de algum sinal dos homens. Quando os vira na margem do Lago Trunt, estavam bem escondido, mas ali era aberto demais para se esconder. Ele não viu nada e começou a se sentir melhor. Não estavam sendo seguidos, os homens não estavam perto, provavelmente se encontravam a quilômetros de distância na Trilha Hawkers. Quanto mais longe da fronteira e mais perto da cidade, melhor se sentia. Seu plano dera resultado.
Não vendo sinal de estar sendo seguido, Richard, mais aliviado, gostaria de parar para descansar, pois sua mão ferida latejava, mas a mulher não parecia precisar ou querer descanso. Continuava a andar como se os homens estivessem rentes aos seus calcanhares. Richard se lembrou da expressão dela quando perguntou se eles eram perigosos e perdeu toda a vontade de descansar.
À medida que a manhã avançava, o ar ficava quente demais para aquela época do ano. O céu estava claro, puro azul, com apenas poucas nuvens brancas. Uma das nuvens tinha a forma ondulante de uma serpente, com a cabeça abaixada e a causa para cima. Por ser uma forma pouco comum, Richard se lembrou de ter visto aquela mesma nuvem mais cedo — ou na véspera. Precisava de recordar, para contar a Zedd da próxima vez em que estivesse com ele. Zedd sabia ler as nuvens e, se Richard não lhe contasse, teria que agüentar um sermão de uma hora sobre o significado das nuvens. Provavelmente Zedd estava naquele momento vendo nuvens estranhas, pensando se Richard estaria vendo também.
A trilha os levou para a face sul da Montanha Blunt, onde atravessava um penhasco escarpado que dera o nome à montanha. Atravessando o penhasco no meio, a trilha oferecia uma vista panorâmica da parte sul da Floresta Ven e à esquerda, entre nuvens e névoa, quase escondidos atrás do muro de rocha, dos picos altos e escarpados da fronteira, Richard viu árvores marrons agonizantes, destacando-se no tapete verde. Mais próximas da divisa, as árvores mortas eram em maior número. Era a trepadeira, ele pensou.
Os dois avançavam rapidamente na trilha do penhasco. Estavam completamente desabrigados, em campo aberto, e podiam ser vistos facilmente, mas depois do penhasco a trilha seguia para os Bosques de Hartland e para a cidade. Mesmo que os homens tivessem descoberto o erro e procurassem segui-los, Richard e a mulher estavam muito à frente deles.
Aproximando-se do lado oposto da face do penhasco, a trilha alargava, permitindo que duas pessoas andassem lado a lado. Apoiando-se com a não na rocha, Richard olhou para o lado, para os campos do penhasco, centenas de metros abaixo. Depois olhou para trás. Não havia ninguém. Quando ele voltou para a trilha, a mulher parou de repente, a saia do vestido rodopiando em volta das suas pernas.
Na trilha, na frente deles, até há pouco vazia, viram dois homens, Richard era maior do que a média, mas os homens eram muito maiores do que ele. Os capuzes dos mantos escuros ocultavam seus rostos, mas não escondiam os corpos musculosos. Richard tentou compreender como os homens tinham chegado antes deles.
Os dois viraram, prontos para correr. Da rocha acima deles, duas cordas desceram e outros dois homens saltaram para a trilha, com um baque surdo. Bloqueavam qualquer caminho de fuga. Eram tão grandes quanto os dois primeiro. Fivelas e correias de couro sob os mantos prendiam um arsenal que cintilava à luz do sol.
Richard se virou rapidamente para os dois primeiros. Eles calmamente tiraram os capuzes. Tinham os cabelos espessos e louros, pescoços grossos e rostos fortes e bonitos.
— Você pode passar, rapaz. Nosso negócio é com a moça. — A voz era profunda, quase amistosa. Porém, a ameaça era cortante como uma lâmina afiada. Ele tirou as luvas de couro e as enfiou no cinto, sem olhar para Richard. Evidentemente não o considerava um obstáculo. Parecia ser o chefe, os outros três esperavam em silêncio.
Era a primeira vez que Richard se via numa situação como aquela. Sempre conseguia evitar encrencas. Nunca se descontrolava e geralmente podia transformar carrancas em sorriso, com seu modo afável. Quando falar não adiantava, ele era bastante rápido e forte para fazer cessar ameaças antes que alguém saísse ferido e, quando necessário, dele simplesmente ia embora. Sabia que aqueles homens não estavam interessados em conversa e evidentemente não tinham medo dele. Richard desejou poder ir embora.
Olhou para os olhos verdes e viu uma mulher orgulhosa pedindo a sua ajuda.
Aproximou-se dela e disse em voz baixa e firme: — Não vou abandoná-la.
Viu alívio no rosto dela.
Com um leve suspiro, ela pôs a mão no braço dele.
— Fique na frente deles, não deixe que me ataquem todos de uma vez — murmurou ela — e tenha o cuidado de não tocar em mim quando eles atacarem. — Apertou o braço de Richard para se certificar de que ele havia compreendido. Richard não compreendeu o motivo das instruções, mas inclinou de leve a cabeça, concordando. — Que os bons espíritos estejam conosco — disse ela. Com as mãos aos lados do corpo, virou-se para os dois homens que estava atrás; o rosto estava calmo e impassível.
— Siga seu caminho, rapaz. — A voz do líder era áspera agora. Os ferozes olhos azuis fulguravam. Ele rilhou os dentes. — É a última vez que digo.
Richard engoliu em seco.
Tentou parecer seguro.
— Nós dois vamos passar. — parecia que seu coração ia sair pela boca.
— Não hoje — disse o líder com convicção. Tirou do cinto uma ameaçadora faca curva.
O homem ao seu lado tirou da bainha, presa às costas, uma adaga. Com um sorriso cruel, passou a lâmina na parte interior do próprio antebraço musculoso, tingindo o ferro de vermelho. Atrás, Richard ouviu outra adaga sendo desembainhada. Paralisado de terror, ele pensou que tudo estava acontecendo depressa demais. Não tinham a menor chance.
Por um breve momento, ninguém se moveu. Richard estremeceu quando os deram grito de guerra de homens preparados para morrer lutando. Atacaram com um ímpeto assustador. O homem com a adaga a girou acima da cabeça e investiu contra Richard. Ouviu um dos que estavam atrás agarrar a mulher, enquanto o homem com a espada se lançava sobre eles.
Então, um pouco antes do homem alcançá-lo, ouviram um impacto no ar, como um trovão silencioso e violento, que fez seu corpo todo gritar de dor. A poeira de levantou em círculo em volta deles, como num ringue.
O homem com a adaga também sentiu dor e por um momento a sua atenção se desviou de Richard para a mulher. Quando ele voltou a atacar, Richard se encostou na parede de rocha e com os dois pés o atingiu com toda a força bem no meio do peito. O homem arregalou os olhos, surpreso, e caiu para trás, nas rochas, com a adaga ainda segura nas duas mãos acima da cabeça.
Atônito, Richard viu o outro homem que estava atrás dele despencar no espaço, com o peito ferido sangrando. Antes que tivesse tempo de pensar no que podia ter acontecido, o chefe com a faca curva passou por ele e investiu contra a mulher. Com uma das mãos empurrou Richard contra a parede com toda a força. O golpe tirou o ar dos pulmões de Richard e ele bateu a cabeça na rocha. Lutando para não perder a consciência, seu único pensamento era que precisava impedir que o homem a alcançasse.
Reunindo forças que desconhecia ter, Richard segurou o pulso do líder e o fez virar para trás. A lâmina cintilou à luz do sol. Richard viu a fúria selvagem nos olhos azuis do homem. Richard nunca sentiu tanto medo.
Naquele momento, sabia que ia morrer.
Parecendo sair do nada, o último homem com uma adaga coberta de sangue lançou-se contra o líder, trespassando o corpo dele com a espada. A colisão foi tão violenta que os dois despencaram do alto do penhasco. O último homem caiu gritando de raiva o tempo todo da queda e só parou quando chegou às pedras, lá embaixo.
Richard, perplexo, olhou para baixo. Relutante, virou-se para a mulher, temendo o que ia ver, apavorado, imaginando que ela devia estar ferida e morta. Ela, porém, estava sentada no chão, encostada no muro de pedra, parecendo exausta, mas ilesa. Seu olhar era distante. Tudo acabou tão depressa que ele não podia compreender o que tinha acontecido nem como. Richard e a mulher estavam sozinhos no súbito silêncio.
Ele se deixou cair ao lado dela, numa rocha aquecida pelo sol. Sua cabeça doía muito por causa da pancada na rocha. Richard podia ver que a mulher estava bem, por isso não perguntou. Estava arrasado demais para falar e percebeu que ela também estava. A mulher viu que tinha sangue na mão e a limpou na parede de pedra, adicionando mais uma mancha vermelha. Richard teve vontade de vomitar.
Não acreditava que estavam vivos. Não parecia possível. O que foi aquele trovão sem som? E a dor que ele sentiu? Nunca sentira nada igual. Estremeceu, lembrando. Fosse o que fosse, tinha algo a ver com ela e salvou sua vida. Alguma coisa sobrenatural tinha acontecido e ele não tinha certeza que de queria saber o que era.
Ela encostou a cabeça na rocha e virou-se para ele.
— Eu nem sei seu nome. Quis perguntar antes, mas estava com medo de falar. — Com um gesto vago indicou a ribanceira. — Eu estava com tanto medo deles... Não queria que nos encontrassem.
Richard pensou que ela ia chorar. Olhou pra ela. Não, não is, mas ele estava quase chorando. Fez um gesto afirmativo, mostrando que compreendia.
— Meu nome é Richard Cypher.
Os olhos verdes o examinaram atentamente e a brisa levou alguns fios de cabelo para seu rosto.
Ela sorriu.
— Poucos teriam ficado para me defender. — Richard achou a voz dela tão atraente quanto sua dona. Combinava com a fagulha de inteligência dos olhos. Ele quase ficou sem poder respirar. — Você é uma pessoa rara, Richard Cypher.
Intensamente embaraçado, Richard sentiu o rosto em fogo. Ela desviou a vista, afastando os fios de cabelo do rosto, fingindo não ter notado.
— Eu sou... — Deu a impressão de que ia dizer alguma coisa e depois desistiu. Olhou pra ele. — Eu sou Kahlan. Meu sobrenome é Amnell.
Richard olhou nos olhos dela por um momento.
— Você é uma pessoa muito rara, Kahlan Amnell. Poucas teriam resistido como você resistiu.
Ela não corou, mas sorriu outra vez. Um sorriso estranho, especial, sem mostrar os dentes, com os lábios fechados, como quem vai contar um segredo. Os olhos cintilavam. Era um sorriso de confraternização.
Richard levou a mão ao galo dolorido na parte de trás da cabeça e olhou para os dedos para ver se estavam sangrando. Não estavam, embora, na sua opinião, o certo era que estivessem. Olhou outra vez para ela, ainda imaginando o que tinha acontecido, o que ela havia feito e como. Tinha havido um trovão sem som e ele havia jogado um dos homens do alto do penhasco; um dos dois que estavam atrás dele matou o companheiro em lugar de matar Kahlan, depois o líder e então se matou.
— Muito bem, amiga Kahlan, pode me dizer como estamos vivos e aqueles homens estão mortos?
Ela olhou pra ele, surpresa.
— Está falando sério?
— Sobre o quê?
Ela hesitou.
— Amiga.
Richard deu de ombros.
— Claro. Você acabou de dizer que eu a defendi. É o tipo de coisa que um amigo faz, não é? — ele sorriu.
Kahlan virou o rosto.
— Eu não sei. — Olhou para baixo e segurou a manga do vestido. — Nunca tive um amigo. Exceto talvez minha irmã...
Richard sentiu dor na voz dela.
— Muito bem, pois tem um agora. — disse ele, com a maior animação possível. — Afinal, passamos por uma coisa assustadora juntos. Nós nos ajudamos e sobrevivemos.
Ela simplesmente assentiu, balançando a cabeça. Richard olhou para o Ven, a floresta onde ele se sentia tão à vontade. O verde das árvores era vibrante e opulento à luz do sol. Olhou para a esquerda, para os grupos de árvores escuras, agonizantes entre o viço das outras. Até aquela manhã, quando ele encontrou a trepadeira que o mordeu, não tinha idéia de que ela estava perto da fronteira, espalhando-se nos bosques. Richard raramente subia ao Ven, próximo a fronteira. Os velhos nem chegavam perto. Outros se aproximavam quando seguiam pela Trilha Howkers ou quando estavam caçando, mas ninguém ia até muito perto. A fronteira era morte. Diziam que ir à fronteira significava não apenas morte, mas também perda da alma. Os guardas da fronteira se encarregavam de fazer com que ninguém se aproximasse.
Richard olhou pra ela.
— E sobre a outra parte? A parte sobre estarmos vivos. Como aconteceu?
Kahlan não o olhou.
— Acho que os bons espíritos nos protegeram.
Richard não acreditou. Porém, por mais que quisesse saber as respostas, era contra sua natureza obrigar uma pessoa a dizer o que não queria. Seu pai lhe ensinara a respeitar o direito das pessoas de guardar segredo. Quando chegasse a hora, ela contaria seus segredos, se quisesse; ele não ia forçá-la.
Todos têm segredos. Richard certamente tinha os seus. Na verdade, com o assassinato do pai e tudo que tinha acontecido nesse dia, esses segredos despertavam no fundo de sua mente.
— Kahlan — disse ele, tentando adotar um tom tranqüilizador –, ser amigo significa que você não precisa me contar o que não quer e que continuarei sendo seu amigo.
Sem olhar para ele, ela assentiu com um gesto.
Richard se levantou. A cabeça doía, a mão latejava e agora sentia dor no peito onde o homem o tinha empurrado. Ainda por cima estava com fome. Michael! Tinha esquecido a festa do irmão. Olhou para o sol e viu que ia se atrasar. Não queria perder o discurso de Michael. Levaria Kahlan, contaria a Michael o ataque dos homens e conseguiria alguma proteção para ela.
Estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Kahlan o olhou, surpresa. Ele continuou com a mão estendida. Kahlan olhou nos olhos dele e aceitou a ajuda,
Richard sorriu.
— Nunca um amigo estendeu a mão para ajudar você a se levantar?
Ela desviou os olhos.
— Não.
Richard viu que ela estava embaraçada e mudou de assunto.
— Quando foi a última vez que você comeu?
— Há dois dias. — disse ela, sem emoção.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Então deve estar mais faminta do que eu. Vou levá-la ao meu irmão. — Olhou para a borda do penhasco. — Temos de contar a ele sobre os corpos. Michael saberá o que fazer. — Voltou-se outra vez para ela. — Kahlan, você sabe quem eram aqueles homens?
Os olhos verdes ficaram frios.
— São chamados de quad, os quatro. São... bem... são assassinos. São mandados para matar... — procurando se controlar, continuou. — Eles matam pessoas. — Sei rosto recuperou a expressão calma. — Acho que talvez quanto menos pessoas souberem quem eu sou, mais seguros estaremos todos.
Richard ficou surpreso. Nunca ouvira nada igual. Passou a mão no cabelo, tentando pensar. Pensamentos escuros e sinistros começaram a perturbá-lo outra vez. Por alguma razão, Richard temia o que ela podia dizer, mas tinha de perguntar.
Olhou nos olhos dela, dessa vez esperando a verdade.
— Kahlan, de onde vem o quad?
Ela o olhou por um momento.
— Devem ter me localizado quando saí dos Midlands e atravessei a fronteira.
Richard ficou gelado e um arrepio subiu por seu braço até a nuca, eriçando o cabelo curto. A raiva despertou no seu íntimo e seus segredos se agitaram.
Ela devia estar mentindo. Ninguém atravessava a fronteira.
Ninguém.
Ninguém podia sair dos Midlands ou entrar. A fronteira havia selado o acesso muito antes de ele nascer.
Midlands era uma terra de magia.
A casa de Michael era uma estrutura maciça de pedra branca, bem distante da rua. Telhados de ardósia em ângulos variados se juntavam em desenhos complicados, encimados por um vitral que levava claridade ao salão central. A passagem da rua até a casa era protegida do sol brilhante da tarde por enormes carvalhos brancos, passando por trechos de gramas antes de chegar ao jardim formal, com desenhos simétricos dos dois lados. O jardim estava florido. Como estavam no inverno, quase no fim do ano, Richard sabia que as flores tinham sido cultivadas em estufas especialmente para a ocasião.
Pessoas bem vestidas passeavam nos jardins, fazendo com que Richard de repente se sentisse deslocado. Certamente ele estava horrível com sua roupa de floresta suja e manchada de suor, mas não quis perder tempo indo até sua casa para se trocar. Além disso, ele estava preocupado e pouco se importava com a própria aparência. Tinha coisas mais importantes na cabeça.
Por outro lado, Kahlan não parecia tão deslocada. O vestido estranho e belo não denunciava o fato de que ela também acabava de sair da floresta. Considerando todo o sangue que tinham visto no Penhasco Blunt, era surpreendente que ela não tivesse vestígio algum no vestido. Kahlan de algum modo conseguiu ficar afastada enquanto os homens se mataram.
Percebendo a preocupação de Richard quando ela disse que vinha de Midlands, do outro lado da fronteira, Kahlan não tocou mais no assunto. Richard precisava de tempo pra pensar e não insistiu. Então Kahlan perguntou sobre Westland, como era o povo na sua cidade. Ele falou da sua casa no bosque, do quanto gostava de morar longe da cidade e que servia de guia dos viajantes que atravessaram os Bosques de Hartland a caminho da cidade.
— Sua casa tem lareira? — perguntou ela.
— Tem.
— Você usa?
— Sim, uso sempre pra cozinhar — disse ele. — Por quê?
Ela deu de ombros e olhou para a paisagem.
— É que sinto falta de me sentar á frente do fogo, só isso.
Por mais estranho que tivesse sido aquele dia, além da dor de perder o pai, Richard gostou de ter com quem falar, embora ela procurasse esconder habilmente seus segredos.
— Convite, senhor? — alguém disse com voz profunda, saindo da sombra da entrada.
Convite? Richard virou para trás para ver quem tinha falado e viu o sorriso malicioso. Richard sorriu também. Era seu amigo Chase. Apertou as mãos do guarda da fronteira, num cumprimento caloroso.
Chase era um homem grande, rosto escanhoado, cabelo castanho-claro, sem nenhum sinal de começo de calvície, cabelo grisalho nos lados. Sobrancelhas espessas sombreavam os olhos castanhos intensos que olhavam para tudo à sua volta, mesmo quando estava falando. Esse hábito geralmente dava a impressão — errônea — de que ele não prestava atenção. Apesar do tamanho, Richard sabia que Chase podia ser espontaneamente rápido quando era preciso. Ele usava um suporte para facas no lado do cinto e no outro lado uma maça de batalha com seis lâminas. O punho de uma adaga aparecia acima do ombro esquerdo e uma besta completamente equipada com dardos com pontas de aço pendia de uma correia de couro do lado esquerdo.
Richard ergueu uma sobrancelha e disse:
— Parece que você está disposto a defender a sua parte do banquete...
O sorriso desapareceu dos lábios de Chase.
— Não estou aqui como convidado. — Olhou para Kahlan.
Richard percebeu o embaraço do amigo. Segurou o braço de Kahlan e a puxou para frente. Kahlan não pareceu surpresa nem com medo.
— Chase, essa é minha amiga Kahlan. — Sorriu pra ela. — Esse é Dell Brandstone. Todos o chamam de Chase. É um velho amigo meu. Estamos seguros com ele. — Voltou-se para Chase. — Você pode confiar nela também.
Kahlan olhou para o homem grande, sorriu e inclinou levemente a cabeça.
Chase inclinou também a cabeça e o assunto estava resolvido. A palavra de Richard era tudo de que ele precisava. Examinou a multidão, demorando o olhar em algumas pessoas, verificando o interesse que demonstravam nos três. Ele os puxou para o lado, para a sombra, fugindo da luz chata do sol.
— Seu irmão chamou todos os guardas da fronteira. — Fez uma pausa, olhando em volta. — Para sua guarda pessoal.
— O quê? Isso não faz sentido! — disse Richard, incrédulo. — Ele tem a Guarda Doméstica e o exército. Para que precisa dos guardas da fronteira?
Chase apoiou a mão no cabo de uma das facas.
— Na verdade, pra quê não sei. — Não demonstrou a menor emoção. Raramente demonstrava. — Talvez ele só nos queira para causar impacto. As pessoas têm medo dos guardas. Você tem estado no bosque desde a morte do seu pai, não estou dizendo que não faria o mesmo nessa situação. Só estou dizendo que há algum tempo você não vem por aqui. Coisas estranhas têm acontecido, Richard. Pessoas chegam e saem no meio da noite. Michael as chama de “cidadãos preocupados”. Ele andou falando algumas tolices sobre conspirações contra o governo. Os guardas estão por toda a parte.
Richard olhou em volta mas não viu guarda algum. Sabia que isso não queria dizer nada. Se um guarda da fronteira não quisesse ser visto, podia estar pisando no pé da pessoa, que ela nem perceberia.
Chase tamborilou os dedos no cabo de uma faca, vendo Richard procurar os guardas.
— Dou minha palavra. Meus rapazes estão todos aí, pode estar certo.
— Como você sabe que Michael não tem razão, depois do assassinato do pai do Primeiro Conselheiro e tudo o mais?
Com seu melhor olhar de desprezo, Chase disse: — Eu conheço todo o lixo de Westland, não há conspiração alguma. Podia até ser divertido se houvesse, mas acho que sou apenas parte da decoração. Michael disse que devo “ficar visível”. — Seu rosto ficou tenso. — E sobre o assassinato do seu pai... bem, George Cypher e eu nos conhecíamos há muito tempo, desde antes de você nascer, antes da fronteira. Ele era um bom homem. Eu me orgulhava de poder chamá-lo de amigo. — A raiva apareceu nos seus olhos. — Andei fazendo alguma pressão. — Mudou o peso do corpo de um lado para outro e olhou em volta, antes de se virar outra vez para Richard: — Intensamente. O bastante para que eles denunciassem a própria mãe, se fosse o caso. Ninguém sabe de nada e acredite, se alguém soubesse, teria enorme prazer em encerrar a conversa. Pela primeira vez, meu método de pressionar não deu resultado. — Cruzou os braços e voltou a sorrir, olhando para Richard de cima a baixo. — Por falar em lixo, o que você tem feito? Parece um dos meus fregueses.
Richard olhou para Kahlan, depois outra vez para Chase.
— Estivemos no alto Ven. — Richard abaixou a voz. — Fomos atacados por quatro homens.
Chase ergueu uma sobrancelha.
— Alguém que eu conheço?
Richard balançou negativamente a cabeça. Chase ficou intrigado.
— Então para onde esses quatro homens foram depois de atacar vocês?
— Você conhece a trilha que atravessa o Penhasco Blunt?
— É claro.
— Eles estão no fundo do penhasco. Precisamos ter uma conversa.
Chase descruzou os braços e olhou para os dois.
— Vou dar uma olhada. — Franziu as sobrancelhas. — Como vocês conseguiram?
Richard trocou um rápido olhar com Kahlan, depois olhou para o guarda.
— Acho que os bons espíritos nos protegeram.
Chase olhou desconfiado para os dois.
— Foi mesmo? Bom, acho melhor não contar isso para Michael agora. Não acho que ele acredite em bons espíritos. — Olhou outra vez atentamente para os dois. E, se achar necessário, vocês dois podem ficar na minha casa. Estão seguros lá.
Richard pensou nos filhos de Chase e concluiu que não queria arriscar a vida deles, mas também não queria discutir o assunto, por isso simplesmente assentiu com a cabeça.
— Acho melhor entrarmos. Michael deve estar sentindo minha falta.
— Mais uma coisa — disse Chase —, Zedd quer ver você. Está muito nervoso com alguma coisa. Diz que é importante.
Richard olhou para cima e viu a mesma nuvem com forma de serpente.
— Acho que também preciso falar com ele. — Deu alguns passos para entrar na casa.
— Richard — disse Chase, com um olhar que teria intimidado qualquer pessoa —, diga o que estava fazendo no Ven.
Richard não se esquivou da pergunta.
— O mesmo que você. Tentando descobrir alguma coisa.
O rosto de Chase se abrandou, com a sugestão de um sorriso.
— Conseguiu?
Richard fez que sim com a cabeça e ergueu a mão esquerda vermelha e dolorida.
— E a coisa morde.
Os dois homens entraram na casa no meio de outros convidados, atravessando o chão de mármore branco, até chegar ao salão central da reunião. Colunas e paredes de mármore cintilavam estranhamente, onde a claridade da clarabóia as iluminava. Richard preferia o calor da madeira, mas Michael dizia que qualquer pessoa pode fazer o que quiser com a madeira, mas se você quer mármore tem de contratar uma porção de gente que more em casas de madeira, para fazer o trabalho.
Richard se lembrava do tempo antes da morte de sua mãe, quando ele e Michael brincavam de terra, fazendo casas e fortes com gravetos. Michael o tinha ajudado então. Richard queria fazer todo o possível para ajudar Michael agora.
Conhecidos o cumprimentavam e ele respondia com um sorriso frio ou um rápido aperto de mãos. Como Kahlan era de uma terra estranha, com surpresa Richard notou o quanto ela parecia à vontade entre toda aquela gente importante. Richard já tinha imaginado antes que ela devia ser importante. Gangues de assassinos não perseguem gente sem importância.
Richard achava difícil sorrir para todos. Se os rumores sobre as coisas que vinham do outro lado da fronteira fossem reais, então Westland corria perigo. As pessoas que moravam no campo nas regiões remotas de Hartland tinham pavor de sair à noite e contavam histórias de gente que fora encontrada parcialmente devorada. Richard dizia que sem dúvida tinham morrido de alguma causa natural e animais selvagens haviam encontrado os corpos. Isso acontecia com freqüência. Eles diziam que era animais que vinham do céu. Para Richard, isso apenas superstição tola.
Até agora.
Mesmo no meio de toda aquela gente, Richard se sentia extremamente sozinho. Estava confuso e não sabia o que fazer. Não sabia a quem pedir ajuda. A presença de Kahlan era a única coisa que o fazia se sentir melhor, mas ao mesmo tempo ela o assustava. A luta no penhasco o assustou. Richard queria ir embora com ela.
Zedd devia saber. Ele tinha morado em Midlands antes de ser instalada a fronteira, mas nunca falava nisso. E havia também a sensação estranha de que tudo aquilo tinha alguma coisa a ver com a morte do seu pai e a morte do seu pai tinha algo a ver com seus segredos, os segredos que o pai contara só a ele.
Kahlan pôs a mão no braço dele.
— Richard, sinto muito. Eu não sabia... o que aconteceu com seu pai. Sinto muito.
Com tudo que tinha ocorrido naquele dia, Richard tinha quase esquecido, até o momento em que Chase falou na morte do seu pai. Quase. Ele deu de ombros.
— Obrigado. — Esperou que uma mulher de vestido azul com franzidos de renda branca no pescoço, nos punhos e na frente, passasse por eles. Olhou para o chão para não ter de retribuir o sorriso dela, se ela sorrisse. — Foi há três semanas. — Ele contou a Kahlan parte do que tinha acontecido. Ela ouviu com simpatia.
— Eu sinto muito, Richard. Talvez você prefira ficar sozinho.
Richard sorriu com dificuldade.
— Não, tudo bem. Já estive muito tempo sozinho. Ajuda ter com quem falar.
Com um leve sorriso, ela concordou e continuaram a andar. Richard imaginou onde Michael estaria. Era estranho ele ainda não ter aparecido.
Embora ele tivesse perdido o apetite, Kahlan não comia havia dois dias. Com toda aquela comida apetitosa à sua volta, Richard pensou que ela devia ter um controle notável. O cheiro delicioso começava a fazer com que ele mudasse de idéia sobre seu apetite.
Inclinou-se para ela.
— Com fome?
— Muita.
Ele a levou a uma mesa longa com comida artisticamente arrumada. Havia travessas de lingüiças e carnes fumegantes, batatas cozidas, peixe seco de vários tipos, galinha, peru, vegetais cortados em tiras, grandes terrinas de sopa de repolho com lingüiça, sopa de cebola e sopa condimentada, travessas com pães, queijos, frutas e bolos e barris de vinho e de cerveja. Criadas estavam sempre atentas, para manter as travessas cheias.
Kahlan olhou atentamente para elas.
— Algumas das criadas têm cabelo comprido. Isso é permitido?
Richard olhou também, um pouco confuso.
— Sim. Qualquer pessoa pode ter o cabelo do modo que quiser. Veja — ergueu o braço junto ao peito e apontou, inclinando-se para ela. — Essas mulheres lá adiante são conselheiras, algumas têm cabelo curto, outras comprido. Como quiserem. — Olhou de soslaio para ela. — Alguém manda você cortar o cabelo?
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Não. Ninguém nunca me mandou cortar o cabelo. E que, de onde eu venho, o comprimento do cabelo de uma mulher tem certo significado social.
— Isso quer dizer que você é uma pessoa importante — dourou a pílula com um sorriso — porque seu cabelo é longo e bonito.
Ela sorriu sem alegria.
— Alguns acham. Só posso esperar que, depois desta manhã, você tenha compreendido. Nós todos só podemos ser o que somos, nada mais, nada menos.
— Muito bem, se eu perguntar alguma coisa que um amigo não deve perguntar, pode me dar um pontapé.
O sorriso dela, com os lábios fechados, se iluminou. O sorriso de quem compartilha alguma coisa o fez sorrir também.
Richard voltou a atenção para a comida e encontrou um dos seus pratos favoritos: pequenas costeletas com molho picante; pôs algumas em um prato pequeno e branco e deu a ela.
— Experimente isto primeiro, é do que eu mais gosto.
Kahlan segurou o prato com o braço estendido, olhando desconfiada para as costeletas.
— Isto é carne de que criatura?
— Porco — disse ele, um pouco surpreso. — Você sabe, de porco. Experimente, posso garantir que é a melhor coisa que tem aqui.
Convencida, ela aproximou o prato e comeu a carne. Richard comeu seis costeletas, saboreando cada pedaço.
Ele serviu os dois de salsichas.
— Experimente algumas destas também.
Outra vez desconfiada, ela perguntou: — Do que são feitas?
— De carne de porco e de boi, alguns temperos, não sei quais. Por quê? Há alguma coisa que você não come?
— Algumas — disse ela evasivamente, antes de comer as salsichas. — Por favor, quer me dar um pouco de sopa apimentada?
Ele serviu sopa em uma bonita tigela com borda dourada e a entregou a ela. Kahlan trocou o prato pela tigela, segurou-a com as duas mãos e experimentou. Ela sorriu.
— É boa, igual à que eu faço. Acho que minha terra natal não é tão diferente da sua.
Acabando de tomar a sopa, sentindo-se bem por ter dito aquilo, ela pegou uma fatia de pão, onde pôs algumas tiras de carne de galinha, e trocou a tigela pelo pão Foi para um lado do salão, para comer. Ele a seguiu, uma vez ou outra trocando apertos de mão. As pessoas ocasionalmente prestavam atenção ao vestido dela. Quando chegou a um canto vazio perto de uma coluna, Kahlan se voltou para ele.
— Quer, por favor, me trazer um pedaço de queijo?
— Claro. Qual queijo?
Ela examinou a multidão.
— Qualquer um.
Richard voltou para a mesa, abrindo caminho entre os convidados, e apanhou dois pedaços de queijo, comendo um deles enquanto voltava para ela. Kahlan pegou o queijo, mas em vez de comer, abaixou o braço e o deixou no chão, como se tivesse esquecido que o segurava.
— Tipo errado de queijo?
Ela disse com voz distante: — Detesto queijo. — Olhava para além dele, para um ponto do salão.
Richard perguntou, intrigado, com uma vaga irritação na voz: — Então, por que pediu?
— Fique olhando para mim — disse ela, voltando-se para ele. — Lá adiante estão dois homens, no outro lado da sala. Estão nos vigiando. Eu queria saber se estavam interessados em mim ou em você. Quando pedi o queijo, eles o observaram quando foi até a mesa e voltou. Não prestaram atenção a mim. Estão vigiando você.
Richard pôs as mãos nos ombros dela e a virou para ele. Olhou para o outro lado da sala.
— São dois ajudantes de Michael. Eles me conhecem. Provavelmente estão imaginando por onde eu andei e por que estou tão mal vestido. — Olhou nos olhos dela e disse em voz baixa e suave: — Está tudo bem, Kahlan. Relaxe. Aqueles homens desta manhã estão mortos. Você está a salvo agora.
Ela balançou a cabeça.
— Outros virão. Eu não devia estar com você. Não quero arriscar sua vida mais do que já arrisquei.
— É impossível que outro quad localize você aqui em Hartland. — Ele sabia o bastante sobre localizar pessoas para ter certeza de que dizia a verdade.
Kahlan pôs um dedo sob o colarinho de Richard e puxou o rosto dele para ela. Ele viu a intolerância furiosa nos olhos verdes.
Ela falou devagar, num murmúrio ríspido: — Quando deixei minha terra, cinco magos lançaram encantamentos nas minhas pegadas para que eles não soubessem para onde eu ia, ou me seguissem, e depois se matarem para não poder contar a ninguém! — Seus dentes rilhavam de fúria e havia lágrimas nos seus olhos. Ela começou a tremer.
Magos! Richard ficou petrificado. Afinal, conseguiu respirar, gentilmente tirou a mão dela do seu colarinho e a segurou entre as suas. Com voz quase inaudível, disse: — Peço desculpas.
— Richard, estou morrendo de medo. — Ela tremia mais agora. — Se você não estivesse lá esta manhã, não sei o que seria de mim. Morrer teria sido a melhor coisa. Você não conhece aqueles homens. — Ela tremia incontrolavelmente, cedendo afinal ao medo.
Richard sentiu um arrepio. Levou Kahlan para trás da coluna, onde não podiam ser observados.
— Eu sinto muito, Kahlan. Não sei do que se trata. Você pelo menos sabe alguma coisa, mas eu estou completamente no escuro. Também estou assustado. Esta manhã, no penhasco... nunca senti tanto medo. E, na verdade, não fiz muita coisa para nos salvar.
— O que você fez — ela procurava as palavras — foi o bastante para fazer diferença. O bastante para nos salvar. Por mais que pense que foi pouco, bastou. Se não tivesse me ajudado... Não quero ficar aqui e prejudicar você.
Ele apertou a mão dela.
— Não estarei em perigo. Tenho um amigo, Zedd. Ele sabe o que fazer para que você fique segura. Zedd é um pouco estranho, mas é o homem mais inteligente que conheço. Se alguém sabe o que é preciso para isso, esse alguém é Zedd. Se você pode ser seguida em qualquer lugar, não adianta fugir, eles a encontrarão. Vou levá-la a Zedd. Assim que Michael fizer seu discurso, você vai para a minha casa. Pode se sentar na frente do fogo e de manhã eu a levo a Zedd. — Sorrindo, ele apontou com o queixo para uma janela próxima. — Veja isso.
Ela se virou e viu Chase no lado de fora de uma janela alta, arredondada. O guarda da fronteira olhou para trás e piscou para ela e deu-lhe um sorriso caloroso, antes de continuar a vigiar a área.
— Para Chase, um quad seria divertido. Enquanto ele se encarregava deles, contava para você a história de um problema de verdade. Ele a está vigiando desde que falei sobre os homens.
Ela sorriu breve e fracamente.
— Há mais. Pensei que estaria a salvo em Westland. Devia estar. Richard, atravessei a fronteira só com ajuda de magia. — Ela tremia ainda, mas começava a se controlar, ajudada pela força dele. — Não sei como aqueles homens atravessaram a fronteira. Não deviam poder. Não deviam saber que eu tinha deixado Midlands. De algum modo, as regras mudaram.
— Trataremos disso amanhã. Por enquanto, você está a salvo. Além disso, outro quad levaria dias para chegar até aqui. Isso nos dará tempo para fazer nossos planos.
— Obrigada, Richard Cypher. Meu amigo. Mas saiba que se tiver certeza de que trago perigo para você, irei embora antes que seja prejudicado. — Enxugou com a mão os olhos cheios de lágrimas. — Continuo com fome. Podemos comer mais um pouco?
— Claro. O que você quer?
— Um pouco mais dos seus pequenos tesouros.
Voltaram para a mesa e comeram, enquanto esperavam a chegada de Michael. Richard se sentia melhor, não por causa do que ela havia contado, mas porque pelo menos sabia um pouco mais e porque a tinha feito sentir-se segura. De algum modo, ele encontraria as respostas para o problema de Kahlan e ficaria sabendo o que acontecia com a fronteira. Por mais que temesse as respostas, precisava saber.
Um murmúrio se ergueu entre os convidados e todos se viraram para a entrada da sala. Era Michael. Richard segurou a mão de Kahlan e a levou para perto de onde estava o irmão.
Quando Michael subiu na plataforma, Richard ficou sabendo o porquê da demora do irmão Ele estava esperando que a luz do sol incidisse naquele lugar para que pudesse ser iluminado em sua glória e visto por todos.
Michael, além de ser mais baixo do que Richard, era mais pesado e menos musculoso. O sol iluminava seu cabelo castanho farto e rebelde. Usava orgulhosamente um bigode. Vestia calça branca folgada e, sobre a túnica de mangas largas, um cinto de ouro. Ali de pé, iluminado pelo sol, Michael positivamente cintilava com o mesmo brilho sobrenatural do mármore das colunas e das paredes. Destacava-se em alto relevo sobre o fundo escuro.
Richard ergueu a mão para chamar sua atenção. Michael sorriu para o irmão, olhando nos olhos dele por um momento, quando começou a falar, antes de se voltar para o publico.
— Senhoras e senhores, hoje aceitei o posto de Primeiro Conselheiro de Westland. — Um rugido de aprovação soou na sala. Michael ouviu sem se mover, depois ergueu os braços de repente, pedindo silêncio. Esperou até haver silêncio total. — Todos os conselheiros de Westland me escolheram para nos conduzir nestes tempos difíceis porque eu tenho a coragem e a visão para nos levar a uma nova era. Há muito tempo, olhamos para o passado e não para o futuro! Por muito tempo, perseguimos velhos fantasmas, cegos para novas soluções. Por muito tempo, ouvimos os que procuram nos arrastar para a guerra e ignoramos os que nos guiarão para a paz!
A multidão delirou. Richard estava atônito. Do que Michael estava falando? Que guerra? Não havia ninguém contra quem guerrear!
Michael levantou as mãos outra vez, mas não esperou pelo silêncio completo.
— Não vou ficar parado enquanto Westland é ameaçada por esses traidores! — Ele estava corado e furioso. A multidão rugiu outra vez, agora levantando os punhos fechados. Cantaram o nome de Michael. Richard e Kahlan se entreolharam. — Cidadãos preocupados identificaram esses covardes, esses traidores. Neste exato momento, enquanto juntamos nossos corações para um objetivo comum, os guardas da fronteira nos protegem enquanto o exército localiza esses homens que conspiram contra o governo. Não são criminosos comuns, como podem pensar, mas homens respeitados, de grande autoridade!
Murmúrios percorreram a multidão. Richard estava perplexo. Seria verdade? Uma conspiração? Seu irmão não chegara aonde estava sem saber o que acontecia. Homens de autoridade. Isso certamente explicava por que Chase não sabia de nada.
Michael, na faixa de luz do sol, esperou que os murmúrios cessassem. Quando falou outra vez, foi com voz baixa e calorosa.
— Mas isso é história. Hoje olhamos para nosso novo caminho. Um dos motivos pelos quais fui escolhido para Primeiro Conselheiro foi porque, como cidadão de Hartland, passei a vida toda à sombra da fronteira. Uma sombra que escureceu todas as nossas vidas. Mas isso é olhar para o passado. A luz de um novo dia sempre expulsou as sombras da noite, mostrando que nossos temores são apenas os fantasmas de nossas mentes.
“Devemos olhar para a frente, para o dia em que a fronteira não mais existirá, pois nada dura para sempre, certo? E quando esse dia chegar, devemos estar prontos para estender a mão amiga e não uma espada, como alguns querem. Isso só conduz à futilidade da guerra e de mortes desnecessárias.
“Devemos gastar nossos recursos para lutar contra um povo do qual há tanto tempo fomos separados, um povo de ancestrais de grande parte de nós? Devemos estar prontos para usar a violência contra nossos irmãos e irmãs simplesmente porque não os conhecemos? Que desperdício! Nossos recursos devem ser usados para eliminar o sofrimento entre nós. Quando chegar o momento, talvez não nesta nossa vida, mas ele chegará, devemos estar preparados para dar as boas-vindas aos nossos irmãos há tanto tempo separados de nós. Não devemos juntar as duas nações apenas, mas as três! Pois algum dia, assim como a fronteira entre Westland e Midlands desaparecerá, desaparecerá também a fronteira entre Midlands e D’Hara e os três serão um só país! Podemos esperar o dia em que comemoraremos a alegria da reunião, se tivermos coragem! E essa alegria começara aqui, hoje, em Hartland!
“Por isso resolvi remover os que nos querem lançar na guerra contra nossos irmãos, simplesmente porque algum dia as fronteiras desaparecerão. Isso não significa que não precisemos do exército, pois nunca se pode saber onde estão as verdadeiras ameaças no nosso caminho para a paz, mas sabemos que não precisamos inventá-las.”
Michael estendeu a mão para a platéia.
— Nós, nesta sala, somos o futuro. É nossa responsabilidade como conselheiros de Westland levar a palavra por todo o país! Levem nossa mensagem de paz às boas pessoas. Elas verão a verdade nos seus corações. Por favor, ajudem-me. Quero que nossos filhos e nossos netos sejam os beneficiários do que edificamos hoje aqui. Quero traçar um caminho para a paz, que nos leve ao futuro. Desse modo, quando chegar o momento, as gerações futuras serão beneficiadas graças a nós.
Michael parou, de cabeça baixa e os dois punhos fechados contra o peito. A luz do sol fulgurava sobre ele. Os ouvintes estavam tão comovidos que ficaram em completo silêncio. Richard viu homens com lágrimas nos olhos e mulheres chorando abertamente. Todos os olhos estavam em Michael, que estava imóvel como uma pedra.
Richard estava atônito. Nunca ouvira o irmão falar com tanta convicção e eloqüência. Tudo parecia fazer sentido. Afinal, ali estava ele com uma mulher do outro lado da fronteira, vinda de Midlands, e ela já era sua amiga.
Mas quatro homens tinham tentado matá-lo. Não exatamente, ele pensou; eles queriam matar Kahlan e ele estava no caminho. Eles o mandaram ir embora e foi ele quem decidiu ficar e lutar. Richard sempre teve medo das pessoas do outro lado da fronteira, mas agora era amigo de uma delas, como Michael havia dito.
Começava a ver o irmão sob uma nova luz. As pessoas se comoveram com suas palavras de um modo com que Richard jamais tinha visto. Michael pedia pela paz e pela amizade com outros povos. Que podia haver de errado nisso?
Por que ele se sentia tão inquieto?
— E agora, à outra parte — continuou Michael —, os que sofrem realmente à nossa volta. Enquanto nos preocupávamos com as fronteiras que nunca nos fizeram mal, muitas das nossas famílias, nossos amigos e vizinhos sofriam e morriam. Foram mortes trágicas e desnecessárias, em acidentes com fogo. Sim, foi isso que eu disse. Fogo.
Todos murmuraram, confusos. Michael começava a perder seu elo com o povo. Aparentemente ele esperava isso. Olhou de rosto em rosto, deixando crescer a confusão e então dramaticamente estendeu a mão e apontou. Para Richard.
— Ali está! — gritou ele. Todos olharam. Centenas de olhos se fixaram em Richard. — Ali está meu amado irmão! — Richard tentou se encolher. — Meu adorado irmão, que partilhou comigo — bateu com o punho fechado no peito — a tragédia de perder nossa mãe num incêndio! O fogo tirou nossa mãe de nós quando éramos muito jovens e nos fez crescer sozinhos, sem seus cuidados e seu amor, sem sua orientação. Não foi um inimigo imaginário do outro lado da fronteira quem a levou de nós, mas um inimigo de fogo! Ela não nos podia consolar, quando nos machucávamos, quando chorávamos no meio da noite. E o mais doloroso é que isso não precisava ter acontecido.
As lágrimas brilhavam à luz do sol e desciam pelo rosto de Michael.
— Desculpem — me, amigos, perdoem-me, por favor — enxugou as lágrimas com um lenço, — E que esta manhã ouvi falar de outro fogo que levou outra boa e jovem mãe e o pai, deixando a filha órfã. Minha dor voltou e não consegui ficar calado. —Todos agora estavam outra vez solidamente com ele. As lágrimas corriam livremente. Uma mulher passou o braço pelos ombros de Richard, que estava atordoado, e murmurou que sentia muito. — Imagino quantos de vocês partilharam minha dor e a do meu irmão; eu convivo com ela todos os dias. Por favor, aqueles que tiveram um ente querido ou um amigo ferido, ou mesmo morto pelo fogo, por favor, levantem a mão.
Muitas mãos se levantaram e alguns choraram alto.
— Aí está, meus amigos — disse ele com voz rouca, abrindo os braços —, aí está o sofrimento entre nós. Não precisamos procurar fora desta sala.
Richard tentou engolir o nó que sentia na garganta, quando a lembrança daquele horror lhe voltou vívida. Um homem que imaginou que seu pai o tinha enganado, enraivecido, derrubou um lampião de cima da mesa, enquanto Richard e o irmão dormiam no quarto dos fundos. Enquanto o homem espancava seu pai e o arrastava para fora de casa, sua mãe tirou Richard e Michael da casa em chamas, depois correu para dentro outra vez para salvar alguma coisa, nunca souberam o quê, e morreu queimada. Seus gritos fizeram o homem voltar à realidade e ele e seu pai tentaram salvá-la, mas não conseguiram. Repleto de culpa e arrependimento, ele saiu correndo, chorando e gritando que sentia muito.
Isso, seu pai dissera uma centena de vezes, era o resultado de um homem perder a cabeça. Michael não dava importância, mas Richard levava a sério as palavras do pai. Elas criaram nele o medo da própria raiva e, sempre que se via ameaçado por ela, Richard a abafava.
Michael estava errado. O fogo não matara sua mãe, foi a raiva que a matou. Com os braços caídos aos lados do corpo, cabeça baixa, Michael falou com voz suave outra vez.
— O que podemos fazer sobre o perigo do fogo? — Balançou a cabeça tristemente. — Eu não sei, meus amigos.
“Mas estou criando uma comissão para estudar o problema e peço a todos os cidadãos interessados que nos ajudem com sugestões. Minha porta está sempre aberta, juntos podemos fazer alguma coisa. Juntos faremos alguma coisa.
“Agora, meus amigos, por favor, permitam-me confortar meu irmão, pois creio que lembrar essa tragédia pessoal foi uma surpresa para ele e devo pedir que me perdoe.”
Desceu da plataforma e o povo abriu caminho para ele. Algumas mãos se estenderam para tocá-lo. Michael as ignorou.
Richard se levantou e olhou severamente para o irmão. Todos se afastaram. Só Kahlan ficou ao lado dele, tocando-lhe levemente o braço. Os convidados voltaram para a comida, conversando animadamente sobre os próprios problemas e o esqueceram, Richard ficou firme e sufocou sua fúria.
Sorrindo, Michael bateu-lhe no ombro.
— Grande discurso — ele se congratulou. — O que você achou?
Richard olhou para os desenhos do chão de mármore.
— Por que você tinha de falar na morte dela? Por que contar para todo mundo? Por que a usou desse modo?
Michael passou o braço pelos ombros dele.
— Sei que foi doloroso e peço desculpas, mas é tudo para um bem maior. Você viu as lágrimas nos olhos deles? As coisas que comecei vão nos levar a todos para uma vida melhor e ajudarão Westland a ganhar preeminência. Acredito em tudo que eu disse, temos de olhar para o desafio do futuro com animação, não com medo.
— E o que quis dizer com o caso das fronteiras?
— As coisas estão mudando, Richard. Tenho de ficar na frente delas. — O sorriso desapareceu. — Foi tudo que eu quis dizer. As fronteiras não durarão para sempre. Não acredito mesmo que alguma vez precisaram existir. Nós todos devemos estar preparados para enfrentar isso.
Richard mudou de assunto.
— O que descobriu sobre o assassinato de nosso pai? Encontraram alguma coisa? Michael tirou o braço do ombro dele.
— Ora, Richard, cresça. George foi um grande tolo. Estava sempre tomando coisas que não lhe pertenciam. Provavelmente foi apanhado com alguma coisa que pertencia a pessoa errada. Uma pessoa esquentada que tinha um facão.
— Você sabe que isso não é verdade! — Richard detestava quando Michael chamava o pai de George. — Ele nunca roubou coisa alguma em toda a vida!
— Só porque a pessoa de quem se tira alguma coisa está morta há muito tempo não quer dizer que você esteja no seu direito. Evidentemente, alguém queria essa coisa de volta.
— Como sabe de tudo isso? — perguntou Richard. — O que você descobriu?
— Nada! Basta o bom senso. A casa foi completamente revistada! Alguém procurava alguma coisa. Não encontraram. Como George não quis dizer onde estava, eles o mataram. Nada mais do que isso. Os investigadores disseram que não havia qualquer sinal da presença dos assassinos. Provavelmente jamais saberemos quem foi. — Michael olhou irado para ele: — Acho melhor você aprender a se conformar.
Richard suspirou. Tinha sentido, estavam procurando alguma coisa. Não devia zangar-se com Michael por não descobrir os culpados. Michael tentou. Richard imaginou como era possível não haver qualquer sinal dos assassinos.
— Desculpe. Talvez você tenha razão, Michael. —Teve um súbito pensamento. — Quer dizer que não teve nada a ver com a conspiração? Não foram os homens que estão atrás de você?
Michael sacudiu a mão negativamente. — Não, não, não. Não teve nada a ver com isso. Esse problema já foi resolvido. Não se preocupe comigo. Estou a salvo, tudo está bem.
Richard balançou a cabeça afirmativamente. Michael agora parecia aborrecido.
— Então, irmãozinho, por que você está tão malvestido? Não podia pelo menos ter se lavado um pouco? Você foi avisado com bastante antecedência. Há semanas sabia desta festa.
Antes que Richard pudesse responder, Kahlan falou. Richard tinha se esquecido dela ali ao seu lado.
— Por favor, perdoe seu irmão. Não foi culpa dele. Ele foi me servir de guia em Hartland e eu me atrasei. Peço que ele não seja desonrado aos seus olhos por minha causa.
Michael olhou para ela de cima a baixo.
— E você é...
Kahlan empertigou o corpo.
— Eu sou Kahlan Amnell.
Michael inclinou a cabeça com um pequeno sorriso.
— Então você não é a acompanhante do meu irmão, como pensei. De onde você veio?
— De um lugar pequeno, muito distante. Tenho certeza de que você não conhece. Michael não contestou a afirmação e se voltou para Richard.
— Você vai passar a noite aqui?
— Não. Preciso ver Zedd. Ele quer falar comigo.
O sorriso de Michael desapareceu.
— Você devia procurar amigos melhores. Não ganha nada passando o tempo com aquele velho estranho. — Olhou para Kahlan. — Você, minha cara, será minha convidada esta noite.
— Tenho outros planos — disse ela, cautelosamente.
Michael a abraçou, pôs a mão no traseiro dela, puxou-a para ele e pôs a perna entre as pernas dela.
— Mude seus planos. — Seu sorriso era frio como uma noite de inverno.
— Tire. Suas. Mãos. — A voz dela era dura e perigosa. Eles se entreolharam.
Richard ficou atônito. Não podia acreditar que o irmão estivesse fazendo aquilo.
— Michael, pare com isso!
Os dois o ignoraram e continuaram desafiadores, com os rostos muito próximos, olhos nos olhos. Richard, perto deles, não sabia o que fazer. Percebia que ambos não queriam que ele interferisse. Ficou tenso, pronto para ignorar essa impressão.
— Você é deliciosa — murmurou Michael. — Acho que posso me apaixonar por você.
A respiração de Kahlan era lenta e controlada.
— Você não sabe nem da metade. — A voz também estava controlada. — Agora, tire as mãos.
Michael não tirou e ela vagarosamente encostou a unha do dedo indicador na cavidade abaixo do pescoço dele. Lentamente, muito lentamente, sempre olhando nos olhos dele, Kahlan começou a levar o dedo para baixo, cortando a carne. O sangue escorreu em filetes. Por um breve momento, Michael não se moveu, mas então seus olhos não mais puderam disfarçar a dor. Ele abriu os braços e cambaleou para trás.
Sem olhar para os dois, Kahlan saiu da casa.
Richard não pôde evitar um olhar furioso para o irmão e saiu atrás dela.
Richard correu para alcançá-la. O vestido de Kahlan e o cabelo longo flutuavam atrás dela, iluminados pelo sol do fim da tarde. Ela chegou a uma árvore, parou e esperou. Pela segunda vez naquele dia, ela limpou o sangue da mão. Richard lhe pôs a mão no ombro e Kahlan voltou para ele o rosto calmo, sem emoção.
— Kahlan, peço desculpas...
Ela o interrompeu.
— Não se desculpe. O que seu irmão fez, não foi a mim, ele fez a você.
— A mim? Como assim?
— Seu irmão tem inveja de você. — O rosto dela se suavizou. — Ele não é idiota, Richard. Ele sabe que estou com você e ficou com inveja.
Richard segurou o braço dela e começou a andar para longe da casa de Michael. Estava furioso com o irmão e ao mesmo tempo envergonhado da sua fúria. Era como se estivesse desapontando seu pai.
— Isso não é desculpa. Ele é o Primeiro Conselheiro, tudo que o povo pode desejar. Desculpe se não consegui evitar isso.
— Eu não queria que você evitasse. Competia a mim. O que ele quer é o que você tem. Se você o tivesse detido, possuir-me se tornaria uma competição que ele teria de vencer. Agora ele não está mais interessado em mim. Além disso, o que ele fez a você, falando sobre sua mãe, foi pior. Você gostaria de que eu o tivesse impedido de continuar?
Richard olhou para a frente. Dominou a raiva.
— Não, isso não competia a você.
A medida que andavam, as casas eram menores, mais juntas umas das outras, mas todas limpas e bem cuidadas. Alguns dos moradores aproveitavam o bom tempo para fazer reparos antes do inverno. O ar estava limpo, fresco e seco e por isso Richard tinha certeza de que a noite seria fria, o tipo de noite para um fogo de toras de bétula, cheiroso e não muito quente. Os jardins com as cercas brancas davam lugar a canteiros maiores na frente de pequenos chalés afastados da rua. Richard arrancou uma folha de carvalho de um ramo baixo.
— Você parece saber coisas sobre as pessoas. É muito perceptiva, quero dizer, sobre o que as pessoas fazem.
Ela deu de ombros.
— Sim, acho que sou.
Arrancando pequenos pedaços da folha, ele perguntou: — Por isso eles a perseguem?
Ela olhou para ele e, quando seus olhos se encontraram, respondeu: — Eles me perseguem porque têm medo da verdade. Uma das razões pelas quais confio em você é que você não teme a verdade,
Ele sorriu com o elogio. Gostou da resposta, mesmo sem saber ao certo o que significava.
— Você não pretende me dar um pontapé, pretende?
Com um sorriso malicioso, ela disse: — Você está chegando muito perto. — Pensou por um momento, o sorriso desapareceu e ela continuou: — Desculpe, Richard, mas por enquanto você tem de confiar em mim. Quanto mais eu contar, maior é o perigo para nós dois. Continuamos amigos?
— Continuamos amigos. — Richard jogou fora o que restava da folha. — Mas algum dia você vai me contar tudo.
— Se eu puder, prometo que conto.
— Ótimo — disse ele, alegremente —, afinal, sou um dos que “procuram a verdade”.
Kahlan parou de repente, segurou a manga dele e o fez virar para ela.
— Por que disse isso?
— O quê? “Os que procuram a verdade?” É como Zedd me chama. Desde que eu era pequeno. Ele diz que sempre insisto em saber a verdade das coisas, por isso me chama de “Seeker, aquele que procura a verdade”. — Surpreso com a agitação dela, Richard apertou os olhos: — Por quê?
Ela recomeçou a andar.
— Esqueça.
Richard sentiu que havia tocado em um assunto sensível. Sentiu outra vez a necessidade de saber as respostas. Eles a perseguiam porque tinham medo da verdade, ele pensou, e ela ficou agitada quando ele disse que era “o que procura a verdade”. Talvez a agitação fosse porque Kahlan temia por ele também.
— Pode pelo menos me dizer quem são “eles”? Os que a perseguem?
Olhando para a frente, ela continuou a caminhar ao lado dele. Richard não sabia se
Kahlan ia responder, mas finalmente ela respondeu.
— São seguidores de um homem muito cruel. O nome dele é Darken Rahl. Por favor, não me pergunte mais por enquanto. Não quero pensar nele.
Darken Rahl. Muito bem, agora ele sabia o nome.
O sol da tarde estava atrás das colinas dos Bosques Hartland, deixando o ar esfriar enquanto passavam pelas colinas ondulantes da floresta. Andavam em silêncio. Richard não tinha vontade de falar, sua mão latejava e ele estava um pouco tonto. Um banho e uma cama quente era tudo de que precisava. Era melhor dar a cama para ela, ele pensou. Podia dormir na sua cadeira favorita, a que rangia. Era bom também. O dia fora longo e todo o seu corpo doía.
Atravessando um grupo de bétulas, seguiram por uma pequena trilha que passava pela casa de Richard. Ele a viu andar à sua frente, na trilha estreita, afastando teias de aranha do rosto e dos braços, partindo os fios tênues.
Richard estava ansioso para chegar a casa. Além da faca e de outras coisas que esquecera de levar, precisava de uma coisa muito importante dada por seu pai.
Seu pai o fizera guardião de um segredo, o guardião de um livro secreto e dera a ele algo que devia guardar para sempre, como prova de que era o verdadeiro dono do livro, prova de que não o tinha roubado, mas que o guardava para protegê-lo. Era um dente triangular, com três dedos de largura. Richard o pendurou em uma tira de couro para usar no pescoço, mas, como a faca e a mochila, tinha saído de casa estupidamente sem ele. Estava impaciente para pendurá-lo no pescoço. Sem ele, seu pai seria um ladrão, exatamente como Michael dizia.
No alto, depois de uma área aberta de rochas nuas, as árvores de bordo, os carvalhos e as bétulas davam lugar aos abetos. O solo da floresta perdia seu verde para um tapete marrom de agulhas de pinheiros. Enquanto andavam, uma estranha sensação começou a se apossar dele. Segurou gentilmente a manga de Kahlan entre dois dedos e a puxou para trás.
— Deixe que eu vá na frente — disse ele, em voz baixa. Ela obedeceu sem fazer perguntas. Na meia hora seguinte, ele seguiu mais devagar, examinando o solo e todos os galhos próximos da trilha. Parou na base da última escarpa à frente da sua casa e os dois se agacharam atrás de uma moita de samambaias.
— Qual o problema? — perguntou ela.
Richard balançou a cabeça.
— Talvez nenhum — murmurou ele —, mas alguém passou pela trilha esta tarde. — Pegou uma pinha amassada e a examinou brevemente antes de jogar fora.
— Como você sabe?
— Teias de aranha. — Olhou para cima. — Não há teias de aranha atravessando a trilha. Alguém as afastou. As aranhas não tiveram tempo de tecer outras, por isso não há teia alguma.
— Mais alguém mora ao lado desta trilha?
— Não. Mas pode ter sido um viajante de passagem. Mas a trilha não é muito usada.
Kahlan ficou perplexa.
— Quando eu estava andando na frente, havia teias de aranha por toda a trilha. Eu as tirava do rosto a cada dez passos.
— E disso que estou falando — murmurou ele. — Ninguém passou por aquela parte da trilha o dia todo, mas depois daquela área aberta não vi mais teia alguma.
— Como é possível?
Ele balançou a cabeça.
— Eu não sei. Alguém saiu do bosque para a clareira e seguiu pela trilha, um caminho muito difícil — olhou nos olhos dela — ou caiu do céu. Minha casa fica logo depois dessa colina. Vamos ficar atentos.
Começaram a subir cautelosamente, Richard à frente, os dois examinando o bosque. Ele queria correr na outra direção, para longe dali, mas não podia. Não ia fugir sem o dente que o pai tinha confiado à sua guarda.
No topo da subida se agacharam atrás de um grande pinheiro e olharam para baixo, para a casa dele. As janelas estavam quebradas e a porta que ele sempre trancava estava, aberta. Suas coisas estavam espalhadas no chão.
Richard se levantou.
— Foi saqueada como a casa do meu pai.
Ela segurou na camisa dele e o fez abaixar outra vez.
— Richard — murmurou ela zangada —, seu pai deve ter chegado a casa como nós agora. Talvez tenha entrado como você ia entrar e eles o esperavam.
Ela estava certa, é claro. Richard passou a mão no cabelo. Pensando. Olhou para a casa. A parte detrás dava para o bosque e a porta, para a clareira. Como era a única porta, era por onde quem estivesse lá dentro esperaria que ele entrasse. Era à frente da porta que esperariam.
— Muito bem — murmurou ele —, mas preciso apanhar uma coisa lá dentro. Não vou embora sem isso. Podemos ir pelos fundos, eu pego o que preciso e vamos embora.
Richard preferia não a levar, mas não queria deixar Kahlan esperando sozinha na trilha. Passando pelo bosque, pelo mato alto, deram uma volta, bem longe da casa. Quando ele chegou ao lugar em que teria de se aproximar dos fundos da casa, fez sinal a ela para parar. Kahlan não gostou da idéia, mas ele não estava disposto a discutir. Se houvesse alguém lá dentro, Richard não queria que a pegassem também.
Deixando Kahlan debaixo de um abeto, Richard seguiu cautelosamente para a casa, fazendo um caminho sinuoso, procurando as áreas cobertas de agulhas de pinheiros para não passar pelas folhas secas. Quando finalmente viu a janela do quarto, parou, imóvel, escutando. Não ouviu som algum. Cuidadosamente, com o coração disparado, ele continuou devagar, abaixado. Sentiu movimento no solo. Uma cobra passou por cima do seu pé. Richard esperou que ela passasse.
Nos fundos da casa, ele pôs a mão no parapeito da janela e ergueu a cabeça, olhando para dentro. A maior parte do vidro estava quebrada e o quarto, em completa desordem As cobertas da cama espalhadas. Livros rasgados, as páginas no chão. No outro lado, a porta da sala da frente estava entreaberta, não o bastante para ver a sala. Sem nada que a segurasse, era naquele ponto que a porta sempre parava.
Devagar, ele pôs a cabeça para dentro e olhou para a cama. Debaixo da janela ficavam os pés da cama e, dependuradas neles, a mochila e a tira de couro com o dente, exatamente onde as tinha deixado. Ergueu o braço, pronto para pular a janela.
Ouviu um rangido na sala da frente, um rangido que ele conhecia bem. Ficou gelado de medo. Era o rangido da cadeira. Nunca a tinha consertado porque parecia parte da personalidade da cadeira e não tinha coragem de alterar isso. Silenciosamente, ele se abaixou outra vez no lado de fora da janela. Não havia dúvida de que alguém estava na sala da frente, sentado na sua cadeira, esperando por ele.
Um movimento o fez olhar para a direita. Um esquilo, num toco de árvore apodrecido. Por favor, ele pediu em silêncio, não comece a tagarelar, me mandando sair do seu território. O esquilo olhou para ele por longo tempo, depois saltou para uma árvore, subiu rapidamente e desapareceu.
Richard soltou a respiração, ergueu o corpo e olhou pela janela outra vez. A porta continuava entreaberta. Rapidamente, ele estendeu o braço e tirou a mochila e a tira de couro do pé da cama, com os olhos arregalados e atento a qualquer barulho da sala. A faca estava em uma mesinha no outro lado da cama. Não dava para apanhá-la. Passou a mochila para fora da janela, com cuidado para não deixar bater nos pedaços de vidro quebrado.
Com seus troféus na mão, Richard voltou rápida e silenciosamente pelo caminho, por que tinha vindo, resistindo ao forte desejo de sair correndo. Olhava para trás a todo momento, para se certificar de que não estava sendo seguido. Pendurou a tira de couro no pescoço e a pôs debaixo da camisa. Nunca deixava que vissem o dente. Era só para os olhos do guardião do livro secreto.
Kahlan o esperava no mesmo lugar. Quando o viu, levantou-se rapidamente. Richard levou um dedo aos lábios, recomendando silêncio. Com a mochila pendurada no ombro esquerdo, pôs a mão gentilmente nas costas dela. Não querendo voltar pelo mesmo caminho, ele a gruiu através do bosque até onde a trilha continuava acima da sua casa. Teias de aranha cruzavam a trilha, brilhando aos últimos raios do sol poente e os dois respiravam aliviados. Essa trilha era mais longa e muito mais difícil, mas levava aonde ele queria ir. À casa de Zedd.
A casa de Zedd ficava muito longe para ser alcançada antes do anoitecer e à noite s trilha era muito traiçoeira, mas ele queria pôr a maior distância possível entre eles e fosse quem fosse que o esperava. Enquanto havia luz, eles caminhariam.
Friamente, ele imaginou se a pessoa que estava em sua casa era a mesma que tinha assassinado seu pai. Sua casa foi revistada com a de seu pai. O homem podia estar esperando por ele, como tinha esperado seu pai? Seria a mesma pessoa? Richard queria ter podido enfrentá-lo, ou pelo menos ver quem era, mas algo no seu íntimo dizia que devia ir embora.
Tratou de controlar os pensamentos. Estava deixando a imaginação vagar à solta. É claro que algo o avisou do perigo, aconselhando-o a ir embora. Naquele dia, já conseguira sair vivo uma vez. Seria tolice confiar na sorte novamente. Duas vezes seria arrogância da pior espécie. O melhor era mesmo ir embora.
Mas gostaria de ter visto quem era, ter certeza de que não havia qualquer conexão. Por que alguém revistaria sua casa, como a do seu pai? E se fosse a mesma pessoa? Ele queria saber quem era o assassino do seu pai. Queria muito.
Embora não tivessem permitido que ele visse o corpo do pai, Richard queria saber como ele fora morto. Chase contou, muito gentilmente, mas contou. A barriga estava aberta e os intestinos espalhados pelo chão. Como alguém podia ter feito isso? E por quê? Richard ficava nauseado só de pensar. Engoliu o nó na sua garganta.
— E então? — a voz dela o arrancou dos seus pensamentos.
— O quê? Então o quê?
— Então, conseguiu pegar o que queria?
— Consegui,
— E o que era?
— O que era? Minha mochila. Eu precisava da minha mochila.
Ela se virou para ele com as mãos na cintura e as sobrancelhas franzidas.
— Richard Cypher, quer me fazer acreditar que arriscou a vida para apanhar uma mochila?
— Kahlan, você está muito perto de levar um pontapé. — Ele não conseguiu sorrir.
Com a cabeça inclinada para o lado, ela continuou a olhar interrogativamente para ele, mas aquela observação a desanimou.
— É justo, meu amigo — disse ela —, bastante justo.
Richard percebeu que Kahlan estava acostumada a ter resposta quando fazia uma pergunta.
Quando a luz se foi e as cores ficaram cinzentas, Richard começou a pensar em lugares para passar a noite. Já tinha usado para isso muitos pinheiros caprichosos. Havia uma entrada de uma clareira logo ao lado do caminho em que estavam. Dava para ver árvore alta destacando-se contra o céu cor-de-rosa, acima de todas as outras. Richard levou Kahlan até ela.
O dente pendurado no pescoço o fazia pensar. Seus segredos o faziam pensar. Ele desejou que seu pai jamais o tivesse feito guardião do livro secreto. Um pensamento ignorado quando estava na casa voltou à sua mente. Os livros tinham sido rasgados num assomo de raiva. Talvez porque nenhum era o livro certo. E se eles estivessem procurando o livro secreto? Mas era impossível; ninguém, a não ser o dono, sabia de sua existência.
E seu pai... e ele... e a coisa a que o dente pertencia. Era uma idéia absurda e ele resolveu não pensar mais nisso. Tentou não pensar.
O medo do que tinha acontecido no Penhasco Blunt e do que o esperava em sua casa parecia ter minado suas forças. Andando no solo coberto de musgo, seus pés pareciam quase pesados demais para se levantar do chão. Logo depois de atravessar o mato para a clareira, ele parou para espantar uma mosca que lhe picava o pescoço.
Kahlan segurou seu pulso, antes que pudesse terminar o gesto.
Com a outra mão, tapou a boca de Richard.
Ele ficou imóvel.
Olhando nos olhos dele, Kahlan balançou a cabeça, levou a mão que segurava o pulso para sua nuca, enquanto a outra continuava sobre sua boca. Richard percebeu que ela estava apavorada, com medo de que ele fizesse algum barulho. Lentamente ela o fez se abaixar e Richard fez sinal de que compreendia.
Os olhos dela o prendiam tanto quanto suas mãos. Kahlan aproximou o rosto e Richard sentiu o calor do seu hálito.
— Escute — sua voz era tão baixa que Richard teve de se concentrar para ouvir. — Faça exatamente o que vou dizer. — A expressão dos olhos dela o fez ter medo até de piscar. — Não importa o que aconteça, não se mexa. Do contrário, estamos mortos. — Ela esperou. Richard fez que sim com a cabeça. — Deixe a mosca picar. Ou estamos mortos. — Esperou outra vez. Ele assentiu outra vez.
Com leve movimento dos olhos, ela indicou um ponto no outro lado da clareira. Richard virou a cabeça devagar. Não viu nada. Ela continuava com a mão sobre a boca de Richard, que ouviu alguns rosnados, como de um javali.
Então ele viu.
Instintivamente, Richard se encolheu. Kahlan apertou a mão sobre sua boca. No outro lado da clareira, a luz do sol poente refletia os olhos verdes fixos nele. O vulto estava de pé, como um homem, e era mais alto do que ele. Richard calculou que devia pesar três vezes mais. Moscas picavam seu pescoço, mas ele tentou ignorá-las.
Richard olhou outra vez para ela. Kahlan não olhou para o animal, ela sabia o que os esperava no outro lado da clareira. Continuou a olhar para Richard para ver se ele reagia de modo a trair sua presença. Ele inclinou a cabeça outra vez assentindo, para tranqüilizá-la. Só então ela tirou a mão que tampava sua boca e segurou seu pulso, prendendo-o contra o solo. Filetes de sangue escorriam no pescoço de Kahlan, que continuava imóvel no musgo macio, ignorando as picadas das moscas. Richard sentia cada picada no pescoço. Os rosnados eram curtos e baixos e eles viraram a cabeça para olhar.
Com velocidade espantosa, o animal se lançou para o centro da clareira, movendo-se meio de lado. Rosnava sem parar. Olhos verdes brilhantes procuravam a presa, sacudindo a cauda no ar. O animal inclinou a cabeça para o lado e empinou as orelhas curtas e redondas, escutando. O corpo todo era coberto de pêlo, exceto o peito e o estômago, revestidos de pele rosada macia e brilhante, sobre músculos fortes. Moscas adejavam sobre alguma coisa espalhada na pele esticada. Levando a cabeça para trás, o animal abriu a boca e sibilou no ar frio da noite. Richard viu o hálito quente se transformar em vapor entre dentes do tamanho dos seus dedos.
Para não gritar de terror, Richard se concentrou nas picadas das moscas. Não podiam fugir, a coisa estava muito perto e ele sabia que era muito rápida.
Um grito subiu do solo, bem à frente deles. Richard estremeceu. O animal imediatamente investiu para eles, correndo de lado. Os dedos de Kahlan apertaram o pulso dele, mas foi o único movimento que ela fez. Richard, paralisado, viu o animal saltar.
Um coelho com as orelhas cobertas de moscas, pulou à frente deles, gritando outra vez e foi imediatamente derrubado com um único golpe. Bem acima deles, o animal eviscerou o coelho, passando as entranhas da pequena presa na pele rosada do peito e da barriga. As moscas, até as que picavam Richard e Kahlan, voaram para o animal, para o banquete. O resto do coelho foi levantado pelas pernas traseiras, partido ao meio e devorado.
Terminando o repasto, o animal inclinou a cabeça outra vez, escutando. Os dois estavam bem debaixo dele, prendendo a respiração. Richard tinha vontade de gritar.
Asas grandes surgiram nas costas da criatura. Contra a pouca luz, Richard via as veias pulsando sob as membranas finas das asas. Com um último olhar em volta, o animal atravessou a clareira, correndo de lado. Endireitou o corpo e voou, desaparecendo na direção da fronteira. As moscas foram com ele.
Os dois se deitaram de costas, ofegantes, exaustos por causa da tensão do medo. Richard pensou nos camponeses que falavam de coisas que vinham do céu e que comiam gente. Nunca acreditou. Acreditava agora.
Alguma coisa na mochila espetava suas costas e quando não pôde mais suportar rolou para o lado e levantou o corpo apoiado em um cotovelo. Estava encharcado de suor, que agora parecia gelo no ar frio da noite. Kahlan continuou de costas de olhos fechados, respirando rapidamente. Alguns fios de cabelo estavam grudados no rosto, mas o resto se espalhava no chão. Ela estava coberta de suor também; tinha sangue em volta do pescoço. Richard sentiu uma tristeza imensa por ela, pensando nos terrores de sua vida. Queria que Kahlan não tivesse de enfrentar os monstros que ela parecia conhecer tão bem.
— Kahlan, o que era aquela coisa?
Ela se sentou, respirou profundamente e olhou para ele. Ergueu a mão e pôs o cabelo atrás da orelha, deixando o resto sobre os ombros.
— Um gar de cauda comprida.
Estendeu o braço e pegou pelas asas uma mosca. Devia ter ficado presa nas dobras da camisa dele e foi amassada quando ele deitou de costas.
— Esta é uma mosca de sangue. Os gares as usam para caçar. As moscas atraem a presa, o gar as apanha. Esfregam parte da caça na barriga, para as moscas. Temos muita sorte — Ela pôs a mosca de sangue bem debaixo do nariz dele. — Os gares de cauda longa são burros. Se fosse um gar de cauda curta, estaríamos mortos. Os gares de cauda curta são maiores e muito mais espertos. — Parou por um momento, para ver se tinha toda a atenção dele. — Eles contam suas moscas.
Richard estava assustado e exausto, confuso e sentindo dor. Queria que aquele pesadelo dela acabasse. Com um gemido de frustração, deitou-se de costas outra vez, sem se importar mais com o que espetava suas costas.
— Kahlan, depois que aqueles homens nos atacaram e você não quis me dizer nada mais sobre o que está acontecendo, eu não insisti. — Ele fechou os olhos. Não podia suportar o olhar dela. — Agora alguém está me perseguindo também. Pelo que sei, pode ser a mesma pessoa que matou meu pai. Não se trata mais só de você. Eu também não posso voltar para casa. Acho que tenho o direito de saber o que está acontecendo. Sou seu amigo, não seu inimigo.
“Certa vez, quando eu era pequeno, tive uma febre e quase morri. Zedd encontrou uma raiz que me salvou. Até hoje foi a única vez em que eu estive perto da morte. Hoje isso aconteceu três vezes. O que eu...”
Ela pôs um dedo sobre os lábios dele.
— Você tem razão. Vou responder às suas perguntas. Exceto as que forem a meu respeito. Por enquanto, a essas ainda não posso responder.
Richard se sentou e olhou para ela. Kahlan começava a tremer de frio. Tirou da mochila uma manta e a envolveu com ela.
— Você me prometeu um fogo — disse ela, tremendo —, pretende cumprir a promessa?
Richard não pôde deixar de rir. Levantou-se.
— Claro. Há um pinheiro amigo do outro lado da clareira. Ou, se quiser, há outros na trilha, um pouco adiante.
Ela olhou para ele, preocupada.
— Não tem problema — sorriu ele —, procuraremos outro pinheiro na trilha.
— O que é um pinheiro amigo?
Richard afastou os galhos da árvore.
— Este é um pinheiro amigo — disse ele —, amigo de qualquer viajante.
Estava escuro lá dentro. Kahlan afastou os galhos para que à luz da lua ele pudesse acender a pederneira. Nuvens passavam na frente da lua e os dois podiam ver sua respiração no ar frio. Richard já havia passado a noite ali, quando ia para a casa de Zedd e quando voltava e tinha feito um pequeno poço de pedras. Havia madeira seca e no outro lado uma pilha de relva seca que ele usava como cama. Como não tinha sua faca, ficou satisfeito por ter deixado madeira pronta. O fogo acendeu imediatamente, enchendo o interior da casca da árvore com luz bruxuleante.
Richard não podia ficar de pé sob os galhos que saíam diretamente do tronco. Os galhos eram nus até o tronco, com agulhas nas pontas, formando um interior vazio. Os mais baixos encostavam no chão. A árvore era resistente ao fogo, desde que se tomasse cuidado. A fumaça do pequeno fogo espiralou para o centro, perto do tronco. As agulhas de pinheiro eram tão grossas que até quando chovia forte, ali dentro era seco. Richard tinha esperado muita chuva passar abrigado em um pinheiro amigo. Ele gostava dos pequenos abrigos quando viajava por Hartland.
Agora estava especialmente satisfeito. Antes do encontro com o gar de cauda longa, havia na floresta plantas e animais que ele respeitava, mas nada de que tivesse medo.
Kahlan se sentou à frente do fogo com as pernas cruzadas. Tremia de frio ainda e agasalhou-se com a manta formando um capuz, preso debaixo do queixo.
— Nunca ouvi falar em pinheiros amigos. Não costumo parar nos bosques quando viajo, mas eles parecem um ótimo lugar para dormir. — Parecia mais cansada do que ele.
— Quando foi a última vez em que você dormiu?
— Há dois dias, acho. Tudo está confuso em minha mente.
Richard ficou surpreso por ela conseguir ficar de olhos abertos. Quando fugiam do quad, ele mal podia acompanhá-la. Era o medo que dava forças a ela.
— Por que há tanto tempo?
— Seria muito imprudente — disse ela— dormir na fronteira. — Ela olhava para o fogo, como sob a magia do abraço quente, a luz lhe dançando no rosto. Soltou o manto debaixo do queixo e pôs as mãos perto do fogo.
Imaginando o que havia na fronteira e o que podia acontecer se dormisse, Richard estremeceu.
— Com fome?
Inclinando a cabeça, ela fez que sim.
Richard tirou uma panela da mochila e saiu para enchê-la d’água no pequeno regato pelo qual tinham passado. Sons da noite enchiam o ar, tão frio que parecia prestes a se quebrar se ele não tivesse cuidado. Mais uma vez censurou-se por ter saído de casa sem a capa que usava na floresta. A lembrança do que estava à sua espera na casa o fez tremer mais ainda.
Cada inseto que aparecia o fazia recuar, com medo de que fosse uma mosca de sangue e várias vezes parou de repente, e depois respirava aliviado quando via que era um grilo da neve, uma mariposa ou um planipene. Sombras derretiam e se materializavam quando as nuvens passavam na frente da lua. Contra a vontade, ele olhava para o céu. As estrelas piscavam, aparecendo e desaparecendo, nuvens, como tiras de gaze, moviam-se silenciosamente no alto. Todas, menos uma que não se movia.
Ele voltou gelado até os ossos e pôs a panela com água sobre o fogo, equilibrada em três pedras. Richard começou a se sentar no lado do fogo, mas mudou de idéia e se sentou ao lado de Kahlan, dizendo para si mesmo que era por causa do frio. Quando ouviu os dentes de Richard batendo, Kahlan pôs metade da manta em volta dos ombros dele. Era bom sentir a manta aquecida pelo corpo dela e Richard ficou quieto, deixando-se envolver pelo calor.
— Eu nunca tinha visto nada nem parecido com um gar. Midlands deve ser um lugar horrível.
— Há muitos perigos. — Com um sorriso tristonho, ela continuou: — Há também muitas coisas fantásticas e mágicas. É um lugar maravilhosamente belo. Mas os gares não são de lá. São de D’Hara!
Ele parou, admirado:
— D’Hara! Do outro lado da segunda fronteira?
Até seu irmão citá-lo no discurso, Richard só ouvira aquele nome nos murmúrios cautelosos dos mais velhos. Ou em uma praga. Kahlan continuou a olhar para o fogo.
— Richard — parou, como se tivesse medo de dizer o resto —, não há mais uma segunda fronteira. A fronteira entre Midlands e D’Hara foi derrubada. Desde a primavera.
O choque fez com que ele sentisse que os vagos habitantes de D’Hara tivessem dado um assustador e gigantesco passo para mais perto. Tentava entender o que acabava de ouvir.
— Talvez meu irmão seja melhor profeta do que ele mesmo sabe.
— Talvez — disse ela, sem muita convicção.
— Embora seja difícil ser profeta predizendo coisas que já aconteceram — ele olhou para ela de soslaio.
Kahlan sorriu, enrolando uma mecha de cabelo.
— Quando o vi pela primeira vez, minha impressão foi de que você não era nenhum tolo. — A luz do fogo cintilava nos olhos verdes. — Obrigada por provar que eu estava certa.
— Michael está em uma posição onde pode saber de coisas que os outros não sabem. Talvez esteja tentando preparar o povo, fazer com que se acostume com a idéia, para que, quando vier a descobrir, não entre em pânico.
Michael sempre dizia que a informação é a moeda do poder e não deve ser gasta frivolamente. Depois que foi eleito conselheiro, encorajava as pessoas a levar-lhe as informações. Até mesmo a história de um camponês tinha sua atenção e, se fosse provada verdadeira, recebia um presente.
A água começou a ferver. Richard se inclinou para a frente, passou um dedo na correia da mochila e a puxou para ele. Depois arrumou outra vez a manta. Tirou da mochila o pacote de vegetais desidratados e pôs parte na panela. Do bolso tirou um guardanapo com quatro salsichas, que ele partiu ao meio e acrescentou à mistura.
Kahlan perguntou surpresa: — De onde veio tudo isso? Da festa do seu irmão? — Sua voz sugeria desaprovação.
— Um bom homem da floresta — disse ele, lambendo os dedos e olhando para ela — sempre planeja com bastante antecedência e tenta saber de onde virá sua próxima refeição.
— Ele não vai gostar dos seus modos.
— Eu também não gosto dos dele. — Sabia que ela não ia discutir aquele assunto. — Kahlan, não pretendo justificar o que ele fez. Desde que nossa mãe morreu, Michael se tornou uma pessoa difícil. Mas sei que ele se importa com as pessoas. Um bom conselheiro deve se preocupar. Deve estar sempre sob pressão. Sei que eu jamais ia querer essa responsabilidade. Mas isso sempre foi o que ele quis, ser uma pessoa importante. E agora que é Primeiro Conselheiro, tem tudo que queria. Ele devia estar satisfeito, mas parece ainda menos tolerante. Está sempre muito ocupado, sempre dando ordens, sempre de mau humor. Talvez, quando tenha conseguido o que queria, veja que não era o que esperava.
— Pelo menos, você teve o bom senso de escolher as melhores salsichas.
Isso aliviou a tensão e eles riram.
— Kahlan, eu não compreendo a fronteira. Eu nem sei o que ela é, só sei que serve para separar as terras, para que haja paz. E, é claro, todo mundo sabe que quem entra na fronteira não volta vivo. Chase e os guardas da fronteira patrulham para que as pessoas fiquem longe.
— Os jovens daqui não aprendem a história das três nações?
— Não. Sempre achei estranho porque eu queria saber, mas nunca ninguém me disse muita coisa. As pessoas me acham estranho porque quero saber e faço perguntas. Os mais velhos ficam desconfiados e dizem que não lembram, que foi há muito tempo ou dão outra desculpa qualquer.
“Meu pai e Zedd me disseram que moravam em Midlands. Antes da construção da fronteira, vieram para Westland. Conheceram-se aqui, antes de eu nascer. Disseram que, quando não havia a fronteira, era terrível e havia muitas lutas. Que não havia nada que eu precisava saber, a não ser que foi um tempo horrível e que era melhor esquecer.”
Kahlan quebrou um graveto seco e o jogou no fogo, e uma chama ambarina brilhante subiu no ar.
— Bem, é uma longa história. Se quiser, posso contar uma parte. — Olhou para ele e Richard inclinou a cabeça, assentindo.
— Há muito tempo, muito antes de nossos pais terem nascido, D’Hara era apenas uma confederação de reinos, bem como Midlands. O mais cruel dos reis de D’Hara foi Panis Rahl. Ele era ganancioso. Desde o primeiro dia do seu reinado, começou a tomar toda D’Hara, um reino depois do outro, muitas vezes antes de a tinta secar num tratado de paz. Ele acabou governando toda D’Hara, mas não estava satisfeito. Isso só serviu para abrir mais seu apetite e logo voltou a atenção para as terras que são hoje os Midlands. Midlands era uma confederação de reinos também, livres para governar cada um ao seu modo, desde que vivessem em paz.
“Depois que Rahl conquistou toda D’Hara, o povo de Midlands percebeu o que estava acontecendo e resolveu que não seria uma presa fácil. Sabia que assinar um tratado de paz com Rahl era o mesmo que assinar um convite para a invasão. Então, escolheu continuar livre e se uniu, através do conselho de Midlands, para a defesa comum. Muitos dos reinos livres não se davam bem, mas sabiam que, se não lutassem lado a lado, morreriam separados, um de cada vez.
“Panis Rahl lançou toda a força de D’Hara contra eles. A guerra se prolongou por muitos anos.”
Kahlan quebrou outro graveto e o jogou no fogo.
— Quando suas legiões finalmente esmoreceram e foram contidas, Rahl se voltou para a magia. Em D’Hara também há magia, não só em Midlands. Naquele tempo havia magia em todo o lugar. As terras não eram separadas, não havia fronteiras. Panis Rahl foi cruel no uso da magia contra o povo livre. Foi terrivelmente brutal.
— Que tipo de magia? O que ele fez?
— Trapaças, doenças, febres, mas o pior de tudo foi o povo da sombra.
— Povo da sombra? O que era isso?
— Sombras no ar. O povo da sombra não tinha forma definida, nem tinha vida como a conhecemos, eram seres criados pela magia. — Deslizou a mão no ar, na frente deles. — Flutuavam sobre os campos ou sobre os bosques. Armas não adiantavam contra eles. Espadas e flechas passavam por eles como se fossem fumaça. Não era possível se esconder, o povo da sombra podia ver as pessoas em qualquer lugar. Eles tocavam em uma pessoa e todo o corpo dela ficava coberto de bolhas e inchado e finalmente se abria todo. Ninguém tocado por uma sombra sobrevivia. Batalhões inteiros foram dizimados.
Kahlan pôs a mão outra vez dentro da manta.
— Quando Panis Rahl começou a usar a magia desse modo, um grande e honrado feiticeiro passou a defender a causa de Midlands.
— Como se chamava esse grande e honrado feiticeiro?
— Isso é parte da história. Tenha paciência e espere que eu chegue lá.
Richard pôs alguns temperos na sopa, ouvindo com atenção o que ela dizia.
— Muitos milhares morreram nas batalhas, mas a magia matou muitos mais. Foi um tempo de trevas, depois de todos aqueles anos de luta, ver tantas pessoas levadas pela magia de Rahl. Mas, com a ajuda do grande mago, que refreava a magia de Rahl, suas legiões tiveram de voltar para D’Hara.
Richard pôs um galho de bétula no fogo.
— Como esse grande e honrado mágico deteve o povo da sombra?
— Ele convocou os clarins de batalha do exército. Quando o povo da sombra chegou, nossos homens tocaram as cornetas e as sombras foram varridas por magia, desfazendo-se no ar. O curso da batalha era agora a nosso favor.
— As guerras tinham sido devastadoras, mas concluíram que atacar D’Hara para destruir Rahl e suas forças seria muito dispendioso. Porém, alguma coisa tinha de ser feita para impedir que Rahl tentasse outra vez, como todos sabiam que tentaria e muitos tinham mais medo da magia do que das hordas de D’Hara e não queriam enfrentá-la outra vez. Queriam viver em um lugar sem magia. Westland foi criada para eles. Então, agora eram três nações. As fronteiras foram criadas com a ajuda da magia... mas os que vieram para cá não eram mágicos.
Richard a viu virar a cabeça para o lado.
— Então, o que eles são?
Embora Kahlan não estivesse olhando para ele, Richard a viu fechar os olhos por um momento. Pegou a colher da mão dele e provou a sopa, que ainda não estava pronta, depois o olhou, como que perguntando se queria saber realmente. Richard esperou.
Kahlan olhou para o fogo.
— As fronteiras são parte do mundo subterrâneo, o domínio dos mortos. Foram chamadas ao nosso mundo por meio de magia, para separar as três terras. São como uma cortina que fecha nosso mundo. Uma fenda no mundo dos vivos.
— Está dizendo que ir à fronteira é como cair no outro mundo através de uma abertura? No mundo subterrâneo?
Ela balançou a cabeça.
— Não. Nosso mundo ainda está aqui. O submundo está lá, no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Fica a dois dias de caminhada pela terra onde está a fronteira, o mundo subterrâneo. É uma região deserta. Toda vida que toca o mundo subterrâneo, ou que é tocada por ele, está tocando na morte. Por isso ninguém pode atravessar a fronteira. Quem entra nela está entrando na terra dos mortos. Ninguém volta dos mortos.
— Então, como é que você voltou?
Olhando para o fogo, ela respondeu: — Com magia. A fronteira foi trazida para cá por meio da magia, então os magos concluíram que podiam me fazer passar por ela com segurança, com a ajuda e a proteção da magia. Foi extremamente difícil para eles fazerem o encantamento. Estavam lidando com coisas que não compreendiam completamente, coisas perigosas e não foram eles que evocaram a fronteira para esse mundo, por isso não tinham certeza de que daria certo. Nenhum de nós sabia o que esperar. — Sua voz soou fraca, distante. — Embora eu a tenha atravessado, temo que jamais serei capaz de deixá-la completamente.
Richard estava perplexo, horrorizado com a idéia de que Kahlan havia passado por uma parte do mundo subterrâneo, o mundo dos mortos, mesmo com a ajuda de magia. Não dava para imaginar. Os olhos assustados de Kahlan encontraram os seus, olhos que tinham visto coisas que ninguém jamais vira.
— Conte o que você viu lá — murmurou ele.
Muito pálida, ela voltou a olhar para o fogo. Uma acha de bétula estalou, sobressaltando-a. Seu lábio inferior começou a tremer e seus olhos se encheram de lágrimas que refletiam as chamas; ela, porém, não estava vendo o fogo.
— No começo — disse ela —, era como andar sobre os lençóis de fogo frio que vemos no céu do norte à noite. — Ela começou a arfar. — Dentro era algo além de escuridão. — Abriu muito os olhos cheios de lágrimas. Com um leve gemido, continuou: — Há... alguém... comigo.
Virou-se para ele, confusa, como se não soubesse onde estava. A dor que viu nos olhos dela o fez entrar em pânico — uma dor provocada por suas perguntas. Kahlan cobriu a boca com a mão e as lágrimas desceram por seu rosto. Fechou os olhos e deu um gemido baixo e triste. Ele sentiu um arrepio.
— Minha... mãe — soluçou ela. — Há muitos anos eu não a via... e... minha irmã... Dennee... Estou tão sozinha... com medo... — Chorando, começou a respirar com dificuldade.
De algum modo, ele a estava perdendo para os poderosos espectros do que tinha visto no mundo subterrâneo, como se a estivessem puxando para afogá-la. Nervoso, Richard pôs as mãos nos ombros dela e a virou para ele.
— Kahlan, olhe para mim! Olhe para mim!
— Dennee... — murmurou ela, ofegante, tentando se livrar das mãos dele.
— Kahlan!
— Estou tão sozinha... estou com medo...
— Kahlan! Estou aqui com você! Olhe para mim!
Ela continuou a chorar convulsivamente, respirando com dificuldade. Abriu os olhos, mas eles estavam vendo outro lugar.
— Você não está sozinha, estou aqui! Não vou deixá-la!
— Estou tão sozinha! — disse ela, num lamento.
Richard a sacudiu, tentando fazer com que o ouvisse. A pele de Kahlan estava pálida e fria. Ela lutava para respirar.
— Estou aqui. Você não está sozinha! — Desesperado, ele a sacudiu outra vez, mas em vão. Ele a estava perdendo.
Procurando controlar o pânico crescente, Richard fez a única coisa de que se lembrou. Quando teve de enfrentar o medo no passado, aprendera a usar o controle. Havia força no controle. Foi o que fez. Talvez pudesse dar a ela alguma parte da sua força. Fechando os olhos, afastou o medo, bloqueou o pânico e procurou se acalmar. Focalizou a mente na própria força. Na quietude da sua mente, bloqueou o medo e a confusão e centralizou os pensamentos na força da paz. Não deixaria que o mundo subterrâneo a levasse.
Disse o nome dela com voz calma.
— Deixe-me ajudá-la. Você não está sozinha. Estou aqui com você. Deixe-me ajudá-la. Use a minha força.
Segurou os ombros dela com força. Kahlan tremia e soluçava e lutava para respirar. Ele visualizou passar sua força para ela, por meio das mãos, através do seu contato. Visualizou esse contato estendendo-se para a mente de Kahlan, dando a ela toda sua força e trazendo-a de volta, para longe da escuridão. Ele seria a centelha de luz e de vida que a traria de volta a este mundo, de volta para ele.
— Kahlan, estou aqui. Não vou deixar você. Confie em mim. — Apertou gentilmente os ombros dela. — Volte para mim. Por favor!
Ele imaginou a luz branca e quente em sua mente, esperando para ajudá-la. Por favor, queridos espíritos, ele pediu, façam com que ela veja essa luz. Façam com que a ajude. Façam com que ela use a minha força.
— Richard? — Ela disse seu nome, como se o estivesse procurando. Ele apertou outra vez os ombros dela.
— Estou aqui. Não vou deixar você. Volte para mim.
Kahlan começou a respirar outra vez. Seus olhos focalizaram o rosto dele. Aliviada, ela o reconheceu e começou a chorar de modo mais normal. Encostou nele e se agarrou como se estivesse agarrando uma rocha dentro do rio. Ele a abraçou e deixou que chorasse no seu ombro, dizendo o tempo todo que tudo estava bem. Estava com tanto medo de perdê-la para o mundo subterrâneo que não queria mais largá-la.
Richard apanhou a manta e a pôs outra vez nos ombros dela, agasalhando-a do melhor modo possível. O calor aos poucos voltava ao corpo de Kahlan, outro sinal de que agora estava salva, mas Richard ficou perturbado com a rapidez com que o mundo subterrâneo a tinha apanhado. Achava que isso não devia acontecer. Kahlan não estivera lá por muito tempo e ele não sabia exatamente como a resgatara, mas sabia que quase fora tarde demais.
A luz suave do fogo iluminava brandamente o interior do pinheiro e no silêncio parecia outra vez um refúgio seguro. Uma ilusão, Richard sabia. Ele a abraçou, acariciou seu cabelo, embalou-a por longo tempo. Algo no modo com que ela se agarrava a ele dizia que havia muito tempo ninguém a abraçava ou a confortava.
Ele não sabia coisa alguma sobre magos nem magia, mas ninguém ia mandar Kahlan atravessar a fronteira, atravessar o mundo subterrâneo, sem uma razão poderosa. Richard perguntou-se o que poderia ser tão importante.
Kahlan se afastou dele, embaraçada.
— Desculpe. Eu não devia ter tocado você desse modo. Eu estava...
— Está tudo bem, Kahlan. A primeira responsabilidade de um amigo é ter à disposição um ombro para chorar.
Ela concordou com um gesto, mas não levantou a cabeça. Richard sentiu os olhos dela quando tirou a sopa do fogo para esfriar um pouco. Pôs outra acha de madeira no fogo e as fagulhas subiram, rodopiando com a fumaça.
— Como você faz isso? — perguntou ela com voz suave.
— Faço o que?
— Como faz perguntas que enchem minha mente com imagens e me fazem responder, mesmo quando não quero?
Ele deu de ombros, um pouco constrangido.
— Zedd também me pergunta isso. Acho que é uma coisa inata em mim. Às vezes penso que é uma maldição. — Olhou para ela. — Desculpe, Kahlan, por perguntar o que você viu lá. Foi uma coisa impensada. Às vezes meu bom senso não consegue dominar a curiosidade. Sinto muito ter provocado essa dor. Você foi arrastada de volta para o mundo subterrâneo, mas isso não devia ter acontecido, devia?
— Não, não devia. Foi quase como se quando pensei no que tinha visto, alguém estivesse esperando para me puxar de volta. Se não fosse você, eu podia ter me perdido lá. No escuro eu vi uma luz. Você fez alguma coisa que me trouxe de volta.
Richard apanhou a colher, pensativo.
— Talvez apenas o fato de você não estar sozinha.
Kahlan ergueu os ombros levemente.
— Talvez.
— Tenho só uma colher. Podemos partilhar. — Tirou uma colherada de sopa da panela, assoprou e provou. — Não é meu melhor trabalho, mas é melhor do que ter o olho espetado por um pedaço de pau. — Isso teve o efeito desejado: Kahlan sorriu. Richard deu a colher a ela.
— Se eu tenho de ajudar você a escapar do próximo quad para continuar viva, preciso de respostas. E acho que não temos muito tempo.
— Eu compreendo. Tudo bem.
Esperou que ela tomasse um pouco de sopa e então continuou: — Então, o que aconteceu depois que as fronteiras foram instaladas? O que o grande mago fez?
Antes de dar a colher a ele, Kahlan tirou da panela um pedaço de salsicha.
— Mais uma coisa aconteceu antes das fronteiras. Enquanto o grande mago controlava a magia, Panis executou sua vingança final. Mandou um quad a D’Hara... Eles mataram a mulher e a filha do mago.
Richard olhou para ela.
— O que o mago fez a Rahl?
— Ele conteve a magia de Rahl e o prendeu em D’Hara até a fronteira estar pronta. Naquele mesmo momento, ele mandou uma bola de fogo mágico através dela, para tocar na morte, dando a ela o poder dos dois mundos. Então as fronteiras ficaram prontas.
Richard nunca tinha ouvido falar em fogo mágico, mas achou que não precisava de explicação.
— O que aconteceu com Panis Rahl?
— Bem, as fronteiras estavam ali, por isso ninguém pode dizer ao certo, mas não acredito que alguém quisesse trocar seu destino pelo de Panis Rahl.
Richard deu a colher a ela e, enquanto ela tomava mais um pouco de sopa, ele tentou imaginar a fúria justa de um mago. Kahlan devolveu a colher e continuou:
— No começo tudo foi bem, mas então o conselho de Midlands começou a fazer coisas que o grande mago considerava corruptas. Algo a ver com magia. Ele descobriu que o conselho havia renegado acordos sobre o controle do poder da magia. Ele disse que a cobiça e as coisas que eles estavam fazendo provocariam horrores maiores do que os da guerra. Eles achavam que sabiam melhor do que ele como a magia devia ser controlada. Fizeram um cargo político de uma posição que só devia ser ocupada por alguém indicado por um mago, por mais ninguém. Ele ficou furioso e disse que era um cargo para o qual só um mago podia encontrar a pessoa certa e só um mago podia indicá-lo. O grande mago havia preparado outros magos, mas, por cobiça, eles ficaram do lado do conselho. O grande mago ficou possesso e disse que sua mulher e sua filha tinham morrido em vão. Como castigo, ele disse que faria a pior coisa possível para eles: deixaria que sofressem as conseqüências dos seus atos.
Richard sorriu. Aquilo parecia uma coisa que Zedd diria.
— Ele disse que se eles sabiam tão bem como as coisas deviam ser feitas, não precisavam dele. Recusou-se a continuar ajudando-os e desapareceu. Mas antes de partir lançou uma teia de mago...
— O que é uma teia de mago?
— E um encantamento. Quando ele partiu, lançou o encantamento sobre todos, fazendo com que esquecessem seu nome e suas feições. Por isso ninguém sabe seu nome nem quem ele é.
Imersa em pensamentos, Kahlan jogou um graveto no fogo. Richard voltou a tomar a sopa enquanto esperava a continuação da história. Ela continuou depois de alguns minutos.
— No começo do último inverno, começou o movimento.
Ele tirou a colher da boca e ergueu os olhos.
— Que movimento?
— O movimento Darken Rahl. Pareceu brotar do nada, de repente multidões nas maiores cidades estavam cantando seu nome, chamando-o de “Pai Rahl”, dizendo que ele era o maior homem de paz do mundo. O mais estranho é que ele é filho de Panis Rahl, de D’Hara, do outro lado da fronteira. Como podiam saber alguma coisa a seu respeito? — Ela fez uma pausa para que ele ponderasse o significado daquilo.
— Então, os gares começaram a atravessar a fronteira. Mataram muita gente antes que todos aprendessem a não sair mais à noite.
— Mas como eles atravessaram a fronteira?
— A fronteira estava enfraquecendo, mas ninguém sabia. Começou a se desfazer de cima para baixo, por isso os gares conseguiram passar. Na primavera, ela desapareceu por completo. Então, o Exército Popular da Paz, o exército de Darken Rahl, marchou sobre as cidades maiores. Em vez de lutar contra ele, o povo de Midlands jogava flores nos soldados. Quem não jogasse flores era enforcado.
Richard arregalou os olhos.
— O exército os matava?
Kahlan olhou para ele.
— Não. Os que jogavam flores os matavam. Diziam que eram uma ameaça para a paz, por isso os matavam. O Exército Popular da Paz não precisou levantar um só dedo. O movimento dizia que era uma prova de que Darken Rahl só queria a paz, uma vez que seu exército não matava os dissidentes. Depois de um tempo, o exército interferiu e acabou com as mortes. Os dissidentes eram mandados para escolas de esclarecimento, para aprender tudo sobre a grandeza do Pai Rahl, sobre o quanto ele é um homem de paz.
— E eles aprenderam nessas escolas de esclarecimento o quanto Darken Rahl é grande?
— Ninguém é tão fanático quanto um convertido. A maior parte deles passa o dia sem fazer nada, cantando o nome dele.
— Então, Midlands não reagiu?
— Darken Rahl se apresentou perante o conselho e pediu que se juntassem a ele em uma aliança para a paz. Os que concordaram foram considerados campeões da harmonia. Os que não concordaram foram detidos como traidores e executados sumariamente pelo próprio Darken Rahl.
— Como foi...
Ela levantou a mão e fechou os olhos.
— Darken Rahl usa uma faca curva no cinto. Tem grande prazer em fazer uso dela. Por favor, Richard, não me peça para dizer o que ele fez com aqueles homens. Meu estômago não agüenta lembrar.
— Eu ia perguntar qual foi a reação dos magos.
— Ah! Bem, isso começou a abrir os olhos deles.
“Rahl então proibiu o uso da magia e declarou fora da lei quem fizesse uso dela. Você deve entender que em Midlands a magia é parte da vida de muitas criaturas. É como dizer que você é criminoso por ter dois braços e duas pernas e que esses membros devem ser cortados. Então ele declarou o fogo fora da lei.”
Richard ergueu os olhos.
— O fogo? Por quê?
— Darken Rahl não explica suas ordens. Mas os magos usam o fogo. Mesmo assim, Rahl não teme os magos. Ele tem mais poder do que o pai tinha, mais do que qualquer mago. Seus seguidores inventam uma porção de razões. A principal é a de que o fogo foi usado contra o pai de Darken Rahl, portanto, é sinal de desrespeito à casa de Rahl.
— Por isso você queria sentar na frente do fogo.
— Acender o fogo no lugar errado em Midlands, sem aprovação de Darken Rahl ou de seus seguidores, é pedir para ser morto. — Ela passou um graveto na terra. — Talvez em Westland também. Seu irmão parece prestes a declarar o fogo fora da lei. Mas...
Richard a interrompeu.
— Nossa mãe morreu em um incêndio. — Seu tom de voz era um aviso: — Por isso Michael se preocupa com o fogo. Só por isso. E ele não disse nada sobre o fogo ser declarado fora da lei, só que quer fazer alguma coisa para que não aconteça com outras pessoas o que aconteceu com nossa mãe. Não há nada de errado em não querer que as pessoas se machuquem.
Kahlan ergueu os olhos para ele.
— Ele não pareceu se incomodar em machucar você.
Richard respirou profundamente, dominando a irritação.
— Sei que foi o que pareceu. Mas você não o compreende. É o jeito dele. Sei que ele não teve intenção de me magoar. — Richard dobrou os joelhos e passou os braços em volta deles. — Depois da morte de nossa mãe, Michael começou a passar mais tempo com os amigos. Ele fazia amizade com qualquer pessoa que julgasse importante. Alguns eram pomposos e arrogantes. Meu pai não gostava de alguns dos amigos dele e dizia isso a Michael. Eles discutiam por causa disso.
“Uma vez meu pai chegou a casa com um vaso que tinha pequenas figuras esculpidas na parte de cima, como se estivessem dançando na beirada. Estava orgulhoso com sua descoberta. Disse que o vaso era antigo e achava que podia conseguir uma moeda de ouro por ele. Michael disse que podia conseguir mais. Eles discutiram e finalmente meu pai deixou Michael levar o vaso para vender. Michael voltou e jogou quatro moedas de ouro na mesa. Meu pai olhou para as moedas por longo tempo. Então disse, em voz muito baixa, que o vaso não valia quatro moedas de ouro e quis saber o que Michael tinha dito às pessoas. Michael disse: ‘O que elas queriam ouvir.’ Meu pai estendeu o braço para apanhar as quatro moedas, mas Michael as cobriu com a mão. Pegou três e disse que só uma era para meu pai, porque era o que ele esperava ganhar. Então meu irmão disse: ‘Esse é o valor dos meus amigos, George.’
“Foi a primeira vez que Michael o chamou de George. Meu pai nunca mais deixou que ele vendesse nada para ele.
“Mas quer saber o que Michael fez com o dinheiro? Assim que meu pai saiu para outra viagem, ele pagou grande parte das dívidas da família. Não comprou nada para ele.
“Às vezes Michael faz as coisas de modo rude, como hoje, quando falou de nossa mãe e apontou para mim, mas eu sei... sei que ele está sempre pensando no que é melhor para todos. Ele não quer que alguém sofra danos com o fogo. Nada mais do que isso. Não quer que alguém passe pelo que passamos. Só está tentando fazer o melhor para todos.”
Kahlan não ergueu os olhos. Passou o graveto na terra por mais algum tempo e depois o jogou no fogo.
— Desculpe, Richard, eu não devia ser tão desconfiada. Sei quanto é doloroso perder a mãe. Tenho certeza de que você está com a razão. — Olhou para ele e perguntou: — Você me perdoa?
Richard sorriu e inclinou a cabeça, assentindo.
— É claro. Acho que se eu tivesse passado por tudo que você passou, pensaria sempre o pior também. Desculpe se me irritei. Se me perdoar, deixo você acabar com a sopa.
Kahlan sorriu e Richard deu a ela o resto da sopa.
Ele queria ouvir o final da história, mas esperou algum tempo, vendo-a comei e perguntou: — Então, as forças de D’Hara conquistaram toda Midlands?
— Midlands é muito grande. O Exército Popular da Paz ocupou somente as cidades maiores. Em muitas regiões o povo ignora a aliança. Rahl, na verdade, não se importa. Para ele é um problema secundário. Ele voltou a atenção para outra coisa. Os magos descobriram que seu verdadeiro objetivo era a magia contra a qual o grande mago havia aconselhado, a magia que eles tinham usado mal por ganância. Com a magia que Darken Rahl pretende usar, ele será senhor de tudo, sem precisar lutar contra ninguém.
“Cinco dos magos compreenderam que estavam errados, que o grande mago, afinal, estava certo. Procuraram o perdão dele, tentando salvar Midlands e Wesdand do que aconteceria, se Darken Rahl conseguisse a magia que procurava. Então começaram a procurar o grande mago, mas Rahl também o está procurando.”
— Você disse cinco magos. Quantos são ao todo?
— Eram sete: o grande mago e seis alunos. O mais velho desapareceu, um dos outros vendeu seus serviços a uma rainha, coisa muito desonrosa para um mago. — Ela parou de falar, pensando por um momento. — Como eu já contei, os outros cinco estão mortos. Antes de morrer procuraram por toda a Midlands, mas não encontraram o grande mago. Ele não está em Midlands.
— Então eles acreditam que ele esteja em Westland?
Kahlan pôs a colher na panela vazia.
— Sim, ele está aqui.
— E eles acham que esse grande mago pode deter Darken Rahl, embora eles não pudessem? — Alguma coisa estava errada com a história e Richard não tinha certeza de que queria saber o que vinha em seguida.
— Não — disse ela, depois de uma pausa —, ele não tem poder suficiente para enfrentar Darken Rahl. O que eles queriam, o que precisamos para nos salvar e nos proteger do que vai acontecer é que o grande mago faça uma indicação que só ele pode fazer.
Pelo cuidado com que ela escolheu as palavras, Richard percebeu que Kahlan estava tentando passar ao largo de segredos sobre os quais ele não queria perguntar, por isso não perguntou. Fez outra pergunta:
— Por que eles mesmos não vieram procurá-lo e pedir a ele para indicar a pessoa certa?
— Porque temiam que ele se negasse e eles não tinham o poder de obrigá-lo.
— Cinco magos não tinham poder sobre ele?
Ela balançou a cabeça e sorriu tristemente.
— Eram alunos dele, candidatos a magos. Não nasceram magos, não nasceram com o dom. O grande mago nasceu de um pai que era mago e de mãe feiticeira. Está no seu sangue, não apenas na sua cabeça. Eles jamais poderão ser o mago que ele é. Simplesmente não têm o poder de obrigá-lo a fazer qualquer coisa. — Ela se calou.
— E... — Richard não disse nada mais. Com seu silêncio, fez Kahlan saber qual era sua próxima pergunta e que ele queria a resposta.
Finalmente ela respondeu, num murmúrio:
— Então eles me mandaram porque eu tenho esse poder.
O fogo estalou e sibilou. Richard sentiu a tensão e sabia que aquilo era tudo que Kahlan diria a respeito, por isso ficou calado para que ela se sentisse segura. Ele pôs a mão no braço dela e Kahlan pôs a mão sobre a dele.
— Como você vai reconhecer o mago?
— Tudo que sei é que preciso encontrá-lo logo, do contrário nós todos estamos perdidos.
Richard pensou por um momento.
— Zedd nos ajudará — disse ele finalmente. — Ele pode ler as nuvens. Encontrar as pessoas perdidas é o que faz quem lê as nuvens.
Kahlan olhou para ele, desconfiada.
— Isso parece magia. Não devia haver qualquer magia em Westland.
— Ele diz que não é. Que qualquer pessoa pode aprender. Está sempre tentando me ensinar. Caçoa de mim sempre que eu digo que parece que vai chover. Arregala os olhos e diz: “Magia! Você deve ser mágico, meu rapaz, para ler as nuvens e predizer o futuro desse modo.”
Kahlan riu. Era um som bom de se ouvir. Richard não queria insistir com ela, embora houvesse muitas pontas soltas na história, muita coisa que ela não estava contando. Pelo menos ele sabia mais do que antes. O importante era encontrar o mago e ir embora; outro quad viria atrás dela. Eles teriam de ir para oeste enquanto o mago fazia fosse o que fosse que precisava fazer.
Ela tirou alguma coisa da pequena bolsa que tinha na cintura. Desamarrando num cordão, abriu um saquinho de um tecido encerado que continha uma substância bege. Enfiou um dedo na substância cremosa e virou-se para ele.
— Isto vai ajudar na cicatrização das picadas. Vire a cabeça.
A pomada aliviou o ardor. Richard reconheceu o perfume de algumas das plantas e ervas de que era feita. Tinha aprendido com Zedd a fazer uma pomada parecida, só que com aum, que tirava a dor de ferimentos superficiais. Depois de passar a pomada nele, Kahlan a passou no próprio pescoço. Richard estendeu a mão dolorida.
— Ponha um pouco aqui também.
— Richard! O que foi isso?
— Fui picado por um espinho grande esta manhã.
Ela passou cuidadosamente a pomada no ferimento.
— Nunca vi um espinho fazer isso.
— Era um espinho muito grande. Tenho certeza de que amanhã estará melhor.
A pomada não amenizou a dor tanto quanto ele esperava, mas Richard disse que tinha aliviado, para não preocupá-la. Sua mão não era nada, comparada com as coisas que Kahlan precisava fazer. Ele a viu amarrar o cordão do pequeno saco e guardai na bolsa. Sua testa estava franzida.
— Richard, você tem medo de magia?
Ele pensou cuidadosamente antes de responder:
— A magia sempre me fascinou, sempre me pareceu interessante. Mas agora sei que certa magia deve ser temida. Porém, acho que é como as pessoas: procuramos ficar longe de algumas e outras temos sorte em conhecer.
Kahlan sorriu, aparentemente satisfeita com a resposta.
— Richard, antes de dormir, preciso cuidar de uma coisa. É uma criatura de magia. Se não tiver medo, deixo que você a veja. É uma oportunidade rara. Poucos a viram e poucos a verão. Mas tem de prometer que vai se afastar por algum tempo quando eu disser, sem perguntar quando voltar. Estou muito cansada e preciso dormir.
Richard sorriu, sentindo-se honrado.
— Prometo.
Abrindo outra vez a bolsinha da cintura, Kahlan tirou dela um vidro redondo com rolha. Linhas azuis e prateadas espiralavam em volta da parte inferior do vidro. Havia luz dentro dele.
Os olhos verdes de Kahlan procuraram os dele.
— A criatura é um fogo-fátuo. Seu nome é Shar. O fogo-fátuo não pode ser visto durante o dia, só à noite. Shar é parte da magia que me ajudou a cruzar a fronteira, ele foi meu guia. Sem ele eu teria me perdido.
Os olhos de Kahlan se encheram de lágrimas, mas sua voz continuou firme e calma.
— Esta noite, ele morre. Não pode viver mais tempo longe da sua terra e dos seus iguais e não tem forças para atravessar a fronteira outra vez. Shar sacrificou a vida para me ajudar porque, se Darken Rahl conseguir o que ele quer, todos iguais a ele morrerão.
Tirou a rolha e pôs o pequeno vidro na palma da mão.
Uma pequena centelha de luz saiu do vidro, flutuou no ar fino e frio do interior do pinheiro amigo, iluminando tudo com sua luz prateada. A luz diminuiu de intensidade quando parou no ar, entre os dois. Richard estava atônito. Olhava boquiaberto, encantado.
— Boa noite, Richard Cypher — disse a criatura, com voz fraca.
— Boa noite para você, Shar. —A voz era também pouco mais de um murmúrio.
— Obrigado por ajudar Kahlan hoje. Fazendo isso está ajudando também os da minha espécie. Se você alguma vez precisar da ajuda dos fogos-fátuos, diga meu nome que eles o ajudarão, pois nenhum inimigo pode saber como me chamo.
— Obrigado, Shar, mas Midlands é o último lugar aonde pretendo ir. Ajudarei Kahlan a encontrar o mago, mas depois iremos para oeste, bem longe dos que nos querem matar.
O fogo-fátuo pareceu girar no ar por algum tempo, pensando. A luz prateada parecia quente e segura.
— Se é o que você quer, deve fazer — disse Shar.
Richard ficou aliviado. O pequeno ponto de luz girou outra vez no ar, entre eles. Shar parou.
— Mas lembre-se disto: Darken Rahl está atrás de vocês dois. Ele não descansará. Não vai desistir. Se fugirem, ele os encontrará. Não há dúvida. Vocês não têm defesa contra ele. Darken Rahl matará os dois. Muito em breve.
Richard sentiu a boca seca. Mal conseguia engolir. Pelo menos o gar seria rápido, ele pensou, e então tudo estaria acabado.
— Shar, não podemos escapar de modo algum?
A luz girou outra vez, iluminando rapidamente seu rosto e os galhos do pinheiro. Shar parou outra vez.
— Se você está de costas para ele, seus olhos não estão. Ele pegará você. Ele gosta disso.
Richard olhou para a pequena luz.
— Mas não podemos fazer nada?
O pontinho de luz girou outra vez e parou muito perto dele.
— Melhor perguntar, Richard Cypher. A resposta que quer está dentro de você. I Deve procurá-la, do contrário ele matará os dois. Em breve.
— Quando? — Sua voz estava mais dura, não podia evitar. A luz recuou um pouco, girando. Richard não ia perder essa oportunidade de saber pelo menos alguma coisa na qual pudesse se basear. Shar parou outra vez.
— No primeiro dia do inverno, Richard Cypher. Quando o sol estiver no céu. Se Darken Rahl não os matar antes e se ele não for detido, então, no primeiro dia do inverno, todos da minha espécie morrerão. Vocês dois morrerão. Ele terá prazer com isso.
Richard tentava decidir qual o melhor meio de interrogar um ponto de luz.
— Shar, Kahlan está tentando salvar os da sua espécie. Eu estou tentando ajudá-la. Você está dando sua vida para ajudar Kahlan. Se falharmos, todos morrem, você acaba de dizer. Por favor, pode me dizer se há alguma coisa que nos ajude contra Darken Rahl?
A luz girou, fazendo um pequeno círculo dentro dos galhos do pinheiro, iluminando por onde passava. Parou outra vez na frente de Richard.
— Já dei a resposta. Está em você. Procure ou morrerá. Desculpe, Richard Cypher, eu quero ajudar. Não sei a resposta. Sei apenas que está em você. Sinto muitíssimo.
Richard concordou com a cabeça e passou a mão no cabelo. Não sabia quem estava mais frustrado, se Shar ou se ele mesmo. Viu Kahlan sentada calmamente, olhando para o fogo-fátuo. Shar girou e esperou.
— Muito bem, pode dizer por que ele quer me matar? É porque ajudo Kahlan ou há outros motivos?
Shar chegou mais perto.
— Outros motivos? Segredos?
— O quê? — Richard se levantou bruscamente. O fogo-fátuo subiu também no ar para ficar na sua altura.
— Não sei por quê. Sinto muito. Só sei que ele vai matá-lo.
— Qual é o nome do mago?
— Boa pergunta, Richard Cypher. Sinto muito. Não sei.
Richard se sentou e cobriu o rosto com as mãos. Shar girou no ar, lançando raios de luz, e voou em círculos lentos em volta da cabeça dele. Richard sabia que, mesmo no fim da vida, Shar tentava confortá-lo. Shar estava morrendo e procurando confortá-lo. Richard tentou engolir o nó na garganta para poder falar.
— Shar, obrigado por ajudar Kahlan. Minha vida, curta como parece que será, já foi prolongada porque ela evitou que eu fizesse uma tolice. Obrigado por ajudar minha amiga a atravessar a fronteira. — Seus olhos se encheram de lágrimas.
O fogo-fátuo voou até ele e lhe tocou a testa. A voz dele parecia muito mais em sua mente do que nos ouvidos.
— Lamento, Richard Cypher. Não sei as respostas para salvar sua vida. Acredite que, se eu soubesse, eu as daria. Mas conheço o bem que há em você e acredito em você. Sei que está em você o que é preciso para ter sucesso. Haverá momentos em que vai duvidar de si mesmo. Não desista, Richard. Lembre-se de que acredito em você, sei que pode realizar o que é preciso. Você é uma pessoa rara, Richard Cypher. Acredite em si mesmo. E proteja Kahlan.
Richard instintivamente fechou os olhos. As lágrimas lhe desceram pelo rosto e o nó na garganta lhe prendeu a respiração.
— Não há gares por perto. Agora, deixe-me só com Kahlan. Minha hora chegou.
— Adeus, Shar. Foi uma grande honra conhecer você.
Richard saiu sem olhar para nenhum dos dois.
Depois que ele saiu, o fogo-fátuo flutuou para Kahlan e dirigiu-se a ela como devia.
— Madre Confessora, meu tempo está passando depressa. Por que não disse a ele quem você é?
Kahlan olhava para o fogo, com os ombros curvados para a frente e as mãos no colo.
— Shar, eu não posso. Não ainda.
— Confessora Kahlan, isso não é justo. Richard Cypher é seu amigo.
As lágrimas desceram dos olhos de Kahlan.
— Não compreende? É por isso que não posso dizer. Se eu disser, ele não será mais meu amigo, não vai mais se importar comigo. Você não sabe o que é ser uma Confessora, ser temida por todos. Ele olha nos meus olhos, Shar. Poucos ousaram fazer isso. Ninguém jamais olhou para mim como ele. Seus olhos me fazem sentir-me a salvo. Ele faz meu coração sorrir.
— Outros podem contar a ele antes que você conte, Confessora Kahlan. Isso será pior.
Kahlan olhou para o fogo-fátuo.
— Vou contar antes que isso aconteça.
— Você está fazendo um jogo perigoso, Confessora Kahlan — avisou Shar. — Ele pode se apaixonar por você antes. Então, quando contar, vai magoá-lo imperdoavelmente.
— Não deixarei que isso aconteça.
— Ele vai ser o escolhido?
— Não!
O fogo-fátuo se virou ao ouvir a exclamação de Kahlan e se aproximou dela.
— Confessora Kahlan, você é a última da sua espécie. Darken Rahl matou todas as outras. Até sua irmã Dennee. Você é a Madre Confessora. Deve escolher um companheiro.
— Não posso fazer isso com uma pessoa querida. Nenhuma Confessora faria. — soluçou ela.
— Desculpe, Madre Confessora. Mas é você quem tem de escolher.
Kahlan dobrou as pernas, passou os braços em volta e encostou a testa nos joelhos, Seus ombros subiam e desciam com os soluços, o cabelo espesso a envolvia. Shar voou lentamente em volta da cabeça dela, emitindo raios de luz prateada, confortando sua companheira. Continuou a voar em círculos até Kahlan parar de chorar. Então voltou para a frente dela.
— É difícil ser Madre Confessora. Eu sinto muito.
— Difícil — concordou Kahlan.
— É muita coisa sobre seus ombros.
— Muita — concordou Kahlan outra vez.
Shar pousou de leve no ombro de Kahlan e ficou quieto, enquanto a jovem olhava para as pequenas e lentas chamas. Depois de algum tempo, Shar saiu do ombro e flutuou para a frente dela.
— Queria ficar mais com você. Foram bons dias. Queria ficar com Richard Cypher. Faz boas perguntas, mas não posso demorar mais. Desculpe. Estou morrendo.
— Tem minha palavra, Shar, de que eu daria a vida, se necessário, para deter Darken Rahl. Para salvar os iguais a você e os outros.
— Acredito em você, Confessora Kahlan. Ajude Richard. — Aproximou-se mais dela. — Por favor. Antes que eu morra. Pode tocar em mim?
Kahlan se afastou de Shar até encostar no tronco da árvore.
— Não... por favor... não — implorou ela, balançando a cabeça..— Não me peça isso. — Seus olhos se encheram de lágrimas outra vez. Levou os dedos trêmulos aos lábios, tentando não chorar.
Shar se adiantou.
— Por favor, Madre Confessora. Sinto muita dor da solidão, longe dos outros. Nunca mais estarei com eles. É uma dor enorme. Estou morrendo. Por favor. Use seu poder. Toque em mim e deixe-me beber a doce agonia. Deixe que eu morra com o gosto do amor. Sacrifiquei minha vida para ajudá-la. Nunca lhe pedi nada. Por favor?
A luz de Shar diminuía. Kahlan, chorando, continuou com a mão esquerda sobre os lábios. Finalmente ergueu a mão direita e tocou em Shar com dedos trêmulos.
O ar se encheu com o estrondo silencioso do trovão. O impacto violento estremeceu o pinheiro, provocando uma chuva de agulhas, algumas caindo no fogo. A cor de Shar se tornou rosa brilhante, crescendo em intensidade.
Disse, com voz muito fraca: — Obrigado, Kahlan. Adeus, meu amor.
A centelha de luz e de vida se extinguiu.
Depois do trovão sem som, Richard esperou algum tempo para voltar. Kahlan estava com os braços em volta das pernas, com o queixo encostado nos joelhos, olhando para o fogo.
— Shar? — perguntou.
— Ele se foi — disse Kahlan, com voz distante.
Richard segurou o braço dela e a levou para a esteira de relva seca. Ela foi sem resistência, em silêncio. Richard a cobriu com a manda e empilhou em cima dela um pouco de relva, para aquece-la durante a noite, e se deitou ao lado dela. Kahlan se virou de lado, dando as costas para ele e encostando o ombro nele como uma criança se encosta nos pais quando em perigo. Richard também sentia a ameaça. Alguma coisa se aproximava deles. Uma coisa mortal.
Kahlan adormeceu imediatamente. Richard sabia que devia estar sentindo frio, mas não sentia. Sua mão latejava. Sentia calor.Pensou no trovão sem som. Imaginou como Kahlan ia convencer o mago a fazer o que ela queria. A idéia o assustava. Antes de ter tempo para pensar mais, ele também adormeceu.
No dia seguinte, Richard percebeu que a mordida da trepadeira estava provocando febre. Ele não tinha apetite. Às vezes sentia um calor insuportável e o suor lhe grudava a camisa ao corpo, então tinha arrepios de frio. Sua cabeça latejava, provocando náuseas. Não podia fazer nada, a não ser procurar a ajuda de Zedd, mas como estavam quase chegando à casa dele, resolveu não dizer nada a Kahlan. Sonhos haviam perturbado seu sono, provocados pela febre ou pelas coisas que sabia agora. O que Shar tinha dito era o que mais o preocupava: procure a resposta ou morrerá.
O céu estava levemente nublado; a luz cinzenta e fria anunciava a chegada do inverno. As árvores grandes e muito juntas eram um obstáculo à brisa fria, fazendo da trilha um santuário repleto de perfume das árvores de bálsamo, um refúgio contra o sopro do inverno acima delas.
Atravessaram um pequeno regato perto de um bebedouro de castores e chegaram a um trecho cheio de flores silvestres amarelas e azul-claras que cobriam o solo de um vale com poucas árvores. Kahlan parou para colher algumas flores. Encontrou um pedaço de madeira em forma de concha e arranjou as flores nele. Richard imaginou que ela devia estar com fome. De uma das macieiras, sua velha conhecida, apanhou algumas frutas e encheu a mochila, enquanto Kahlan cuidava das flores. Era sempre uma boa idéia levar comida quando visitava Zedd.
Richard terminou antes de Kahlan e esperou, encostado em um tronco, imaginando o que ela estava fazendo. Quando ficou satisfeita com o arranjo, ela ergueu a beirada do vestido, ajoelhou-se ao lado do pequeno lago e pôs na água a madeira com as flores. Sentou-se nos calcanhares com as mãos cruzadas no colo olhando por um tempo a pequena jangada de flores deslizar na água calma. Quando se virou e o viu encostado no tronco, levantou-se e foi ficar ao lado dele.
— Uma oferta aos espíritos de nossas mães — explicou ela — para pedir proteção e ajuda na procura do mago. — Olhou para ele, preocupada. — Richard, qual o problema?
Ele deu uma das maçãs a ela.
— Não é nada. Tome, coma isto.
Kahlan afastou a mão dele e o segurou pelo pescoço, com os olhos verdes furiosos.
— Por que você fez isso? — perguntou ela.
Richard ficou chocado; alguma coisa lhe dizia para ficar parado.
— Você não gosta de maça? Desculpe. Vou procurar outra coisa para comer.
A fúria deu lugar à dúvida.
— Como você chamou isto?
— Maçã — disse ele, imóvel. — Você não sabe o que é maçã? São boas para comer, eu garanto. O que pensou que fosse?
Ela afrouxou a mão no pescoço dele.
— Vocês comem essas... maçãs?
Richard continuou imóvel.
— Sim. O tempo todo.
Embaraçada, ela soltou o pescoço dele e encostou os dedos nos lábios. Arregalando os olhos, disse: — Richard, desculpe, eu não sabia que se podem comer essas coisas. Em Midlands, qualquer fruto vermelho é um veneno mortal. Pensei que você queria me envenenar.
Desaparecida a tensão, Richard riu. Kahlan riu também, enquanto dizia que não tinha graça. Ele deu uma mordida na maça e ofereceu outra a ela. Kahlan aceitou, mas olhou para a fruta por longo tempo, antes de mordê-la.
— Urnmm, estas coisas são gostosas. — Então, parecendo intrigada, levou a mão à testa dele.
— Achei que havia alguma coisa errada. Você está ardendo de febre.
— Eu sei. Mas não podemos fazer nada até chegarmos à casa de Zedd. Estamos quase lá.
A casa atarracada de Zedd apareceu na trilha. Uma tábua que saía do telhado coberto de relva servia de rampa para seu velho gato, que subia melhor do que descia. As janelas tinham cortinas de renda e floreiras no lado de fora. As flores estavam murchas e secas, com a mudança da estação. As paredes de troncos de árvores eram velhas e cinzentas, mas uma porta azul-vivo dava as boas vindas aos visitantes. A não ser pela porta, toda a casa parecia parte do mato que a rodeava, de querer passar despercebida. Não era grande, mas tinha uma varanda na frente.
A cadeira da “razão” de Zedd estava vazia. Era a cadeira em que ele se sentava para pensar até descobrir a razão de alguma coisa que aguçava sua curiosidade. Certa vez, ele permaneceu na cadeira durante três dias inteiros, tentando descobrir por que as pessoas estavam sempre discutindo sobre quantas estrelas havia no céu. Pessoalmente, ele não se importava com isso. Achava uma questão trivial e só imaginava por que as pessoas passavam tanto tempo discutindo o assunto. Finalmente, ele se levantou e disse que era porque qualquer pessoa podia dar sua opinião, sem medo de poder comprovar que estava errada. Tendo resolvido o assunto, Zedd entrou em casa e comeu avidamente durante três horas inteiras.
Richard chamou Zedd mas não teve resposta. Sorriu para Kahlan.
— Aposto que sei onde ele está. Lá atrás, na sua rocha das nuvens, estudando o mais recente conjunto de nuvens.
— Rocha das nuvens? — perguntou Kahlan.
— É o lugar favorito dele para observar as nuvens. Não me pergunte por quê. Desde que o conheço, sempre que ele vê uma nuvem interessante, corre para a rocha para observá-la. — Richard tinha crescido com a rocha e não estranhava esse comportamento, era apenas parte do velho homem.
Eles seguiram pelo mato alto que cercava a casa e subiram até o topo de uma colina sem vegetação, onde ficava a rocha das nuvens. Zedd estava de pé na rocha plana de costas para eles, os braços magros estendidos e o cabelo branco e ondulado como um manto, a cabeça inclinada para trás.
Zedd estava completamente nu.
Richard revirou os olhos, Kahlan desviou os seus. Pele pálida e ressecada lhe cobria os ossos, fazendo-o parecer frágil como um graveto. Mas Richard sabia que Zedd não tinha nada de frágil. Porém, suas nádegas eram caídas e flácidas.
Um dedo muito magro apontou para o céu.
— Eu sabia que você vinha, Richard. — A voz era tão fina quanto o resto.
A roupa simples sem adornos, a única que tinha, estava amontoada atrás dele. Richard a apanhou e Kahlan, sorrindo, virou de costas para evitar maior embaraço.
— Zedd, temos companhia. Vista-se.
— Quer saber como eu sabia que você estava vindo? — perguntou ele, sem se mover.
— Eu diria que tem algo a ver com uma nuvem que vem me seguindo nos últimos dias. Espere, deixe-me ajudá-lo.
Zedd se voltou rapidamente, agitando os braços.
— Dias! Danação! Essa nuvem vem seguindo você há três semanas! Desde que seu pai foi morto! Eu não vejo você desde a morte de George. Por onde andou? Ando à sua procura por toda a parte. Posso achar um inseto no celeiro com mais facilidade do que você, quando não quer ser encontrado!
— Estive ocupado. Levante os braços para vestir isto. — Richard enfiou a roupa nos braços de Zedd e o ajudou a ajeitá-la no corpo magro.
— Ocupado! Ocupado demais para olhar para cima uma vez ou outra? Danação, Richard, você sabe de onde é essa nuvem? — Os olhos de Zedd estavam preocupados, sob as sobrancelhas erguidas.
— Não pragueje — disse Richard. — Eu diria que ela é de D’Hara.
Zedd sacudiu os braços.
— D’Hara! Sim! Muito bem, meu rapaz! Diga, como você descobriu? Foi pela textura? Pela densidade? — Zedd ficava cada vez mais excitado enquanto acabava de se vestir, com dificuldade para ajeitar a roupa.
— Nenhuma das duas. É uma suposição baseada em informação independente. Zedd, como eu já disse, temos companhia.
— Sim, sim, eu ouvi na primeira vez. — Descartou o fato, balançando a mão no ar. — Informação independente, você diz. — Passou o indicador e o polegar no queixo. Seus olhos castanhos se iluminaram. — Isso também é muito bom. Muito bom, sem dúvida! Essa informação também disse que não é uma coisa boa? É claro que disse. — ele mesmo respondeu. — Por que você está suando? — Encostou a mão na testa de Richard — Está com febre. Trouxe alguma coisa para comer?
Richard já tinha uma das maçãs na mão. Sabia que Zedd estaria com fome. Zedd estava sempre com fome. O velho homem mordeu a maçã avidamente.
— Zedd, por favor, ouça. Estou com problemas e preciso de sua ajuda.
Zedd apoiou a mão magra na cabeça de Richard enquanto mastigava e com o polegar levantou uma pálpebra. Inclinou-se para a frente e com o rosto muito perto do de Richard examinou seu olho, depois fez o mesmo no outro.
— Eu sempre ouço o que você diz, Richard. — Sentiu o pulso de Richard. — E concordo, você está com problemas. Dentro de três horas, talvez quatro, não mais do que isso, você estará inconsciente.
Richard ficou chocado, Kahlan preocupada. Zedd sabia tudo sobre febres, entre outras coisas, e nunca afirmava nada com tanta precisão se não tivesse certeza. Richard sentia fraqueza nas pernas desde que tinha acordado com arrepios e sabia que estava piorando.
— Você pode fazer alguma coisa para ajudar?
— Provavelmente, mas depende da causa. Agora deixe de ser mal-educado e me apresente à sua namorada.
— Zedd, esta é minha amiga, Kahlan Amnell.
O velho homem olhou atentamente para os olhos dele.
— Ah, então eu me enganei? Ela não é sua namorada? — riu Zedd. Caminhou até Kahlan, fez uma curvatura exagerada, ergueu um pouco a mão dela, que beijou de leve, e disse: — Zeddicus Zu’l Zorander, humildemente ao seu dispor, minha cara jovem. — Endireitou o corpo e olhou para ela. Quando seus olhos se encontraram, o sorriso de Zedd desapareceu e ele arregalou os olhos. Sua expressão amável se transformou em fúria. Soltou a mão de Kahlan como se fosse uma serpente venenosa. Voltou-se para Richard.
— O que você está fazendo com esta criatura?
Kahlan estava calma e impassível. Richard ficou consternado.
— Zedd...
— Ela tocou em você?
— Bem, eu... — Richard tentava lembrar as vezes em que ela o tinha tocado, quando Zedd o interrompeu outra vez.
— Não, é claro que não. Posso ver que não tocou. Richard, você sabe o que ela é? — Voltou-se para Kahlan: — Ela é...
O olhar de Kahlan era um aviso frio de perigo e Zedd ficou calado.
Richard disse com voz calma, mas firme: — Sei exatamente o que ela é: ela é uma amiga. Uma amiga que ontem me salvou de ser morto como meu pai e depois me salvou de ser morto por um animal chamado gar. — Kahlan relaxou. O velho homem olhou para ela por mais algum tempo e depois para Richard: — Zedd, Kahlan é minha amiga. Nós dois estamos com muitos problemas e precisamos nos ajudar um ao outro.
Zedd ficou calado, procurando olhar nos olhos de Richard. Então balançou a cabeça afirmativamente.
— Problemas, sem dúvida.
— Zedd, precisamos de sua ajuda. Por favor? — Kahlan ficou ao lado dele. — Não temos muito tempo. — Zedd não parecia disposto a fazer parte daquilo, mas Richard continuou, olhando nos olhos dele. — Ontem, depois que a encontrei, ela foi atacada por um quad. Outro virá logo. — Viu o que estava procurando, uma rápida centelha de ódio dissolvendo-se em empatia.
Zedd olhou para Kahlan como se a estivesse vendo pela primeira vez. Os dois se entreolharam por longo tempo. À menção do quad, ele viu a expressão atormentada de Kahlan. Zedd se adiantou e a abraçou protetoramente, encostando a cabeça dela no seu ombro. Kahlan o abraçou também agradecida, escondendo as lágrimas entre as pregas do manto dele.
— Está tudo bem, minha cara, você está segura aqui — disse ele suavemente. — Vamos para casa e você pode me falar desse problema; precisamos tratar da febre de Richard. — Ela assentiu, sem tirar a cabeça do ombro dele.
Então Kahlan se afastou de Zedd.
— Zeddicus Zu’l Zorander, nunca ouvi esse nome.
Ele sorriu orgulhoso, o movimento dos lábios desenhando uma porção de rugas profundas no rosto.
— Tenho certeza de que não, minha cara, tenho certeza de que não. A propósito, você sabe cozinhar? — Passou o braço pelos ombros dela e começaram a descer a colina. — Estou com fome e há anos não faço uma refeição decente. — Olhou para trás. — Venha, Richard, enquanto você ainda pode.
— Se você tratar a febre de Richard, faço uma sopa bem temperada — disse ela.
— Sopa bem temperada! — disse Zedd encantado. — Há anos não tomo uma sopa bem temperada. Richard não é muito bom na cozinha.
Richard os acompanhou, sentindo que perdera grande parte de suas forças por causa da tensão emocional. O modo casual com que Zedd estava tratando a febre o assustava. Sabia que era o que o velho amigo fazia para não o assustar com a gravidade da doença. Sentia latejar a mão ferida.
Como Zedd era de Midlands, Richard tinha esperado conseguir a compaixão dele mencionando o quad. Ficou aliviado e um pouco surpreso com a súbita atitude amistosa dos dois. Para se tranqüilizar, ele tocou no dente pendurado no seu pescoço.
Mas estava bastante perturbado com o que sabia agora. Perto de um canto atrás da casa ficava a mesa onde Zedd gostava de fazer suas refeições ao ar livre quando o tempo estava bom. Podia olhar as nuvens enquanto comia. Zedd os fez sentar juntos em um banco, entrou em casa e voltou com cenouras, cerejas, queijo e suco de maçã, que pôs na mesa lisa gasta pelo uso; sentou-se no banco de frente para eles. Deu a Richard uma caneca com um líquido marrom grosso com cheiro de amêndoas e mandou que ele tomasse devagar.
Olhou para Richard e disse:
— Fale do problema.
Richard contou como fora picado pela trepadeira e contou da coisa que tinha visto no céu, contou o encontro com Kahlan no Lago Trunt e como Foram seguidos pelos quatro homens. Contou toda a história, com todos os detalhes que podia lembrar. Zedd gostava de saber todos os detalhes, por menos importantes que fossem. Ocasionalmente, Richard parava para tomar um gole da bebida marrom. Kahlan comeu algumas cenouras e cerejas e tomou suco de maçã, mas não comeu queijo. Ela balançava a cabeça afirmativamente ou ajudava quando ele não conseguia se lembrar de alguma coisa. A única coisa que ele omitiu foi a história das três terras contada por Kahlan e a conquista de Midlands por Darken Rahl. Achou que seria melhor ela mesma contar. Quando terminou, Zedd o fez voltar ao começo, querendo saber o que Richard fazia no alto Ven.
— Quando fui a casa do meu pai depois do assassinato, olhei no vidro de mensagens, praticamente a única coisa que estava inteira. Encontrei um pedaço de trepadeira. Por três semanas procurei a trepadeira para descobrir o que significava a mensagem do meu pai. Quando a encontrei, bem, foi o que picou minha mão. — Ficou satisfeito por terminar a história. Sentia a língua grossa.
Zedd mordeu uma cenoura, pensando.
— Como era a trepadeira?
— Era... Espere, está ainda no meu bolso. — Tirou o broto e o pôs na mesa.
— Danação! — murmurou Zedd. — É uma trepadeira serpente!
Richard sentiu o sangue gelar. O nome estava no livro secreto. Esperava, sem muita esperança, que não significasse o que ele temia. Zedd recostou no banco.
— Bem, a parte boa é que agora eu sei qual a raiz que devo usar para curar a febre. A parte ruim é que precisamos procurá-la. — Pediu para Kahlan contar brevemente sua parte da história, pois precisava fazer algumas coisas e não tinha muito tempo. Richard pensou na história que ela havia contado no pinheiro amigo na noite anterior e imaginou como ela podia contar brevemente.
— Darken Rahl, filho de Panis Rahl, pôs as três caixas de Orden em uso — disse ela simplesmente. — Eu vim procurar o grande mago.
Richard ficou apavorado.
Do livro secreto, o Livro de sombras contadas, o livro que seu pai o fizera decorar antes de destruir, a frase surgiu em sua mente: E quando as três caixas de Orden forem postas em uso, a serpente crescerá. O pior pesadelo de Richard — o pior pesadelo de todo o mundo — estava para acontecer.
Com a dor e o atordoamento provocados pela febre, Richard mal percebeu quando sua cabeça encostou na mesa. Ele gemeu e sua mente rodopiou com as implicações do que Kahlan acabava de contar para Zedd, a realização da profecia do Livro secreto das sombras contadas. Logo, Zedd estava ao seu lado, fazendo-o se levantar do banco, pedindo a Kahlan para ajudar a levá-lo para dentro. Andando ajudado por eles, a todo momento o chão parecia fugir debaixo dos seus pés. Eles o deitaram na cama e o cobriram. Ele os ouvia falar mas não entendia o que diziam. As palavras se confundiam em sua mente.
A escuridão o envolveu, então surgiu a luz. Ele parecia flutuar para cima e despencar espiralando. Imaginava quem era e o que tinha acontecido. O tempo passou enquanto o quarto girava e rolava e se inclinava. Ele se agarrou na cama, temendo ser lançado para fora. Às vezes sabia onde estava e tentava desesperadamente se agarrar às coisas que conhecia, mas deslizava novamente para a escuridão.
Voltou a si outra vez e compreendeu que o tempo havia passado, mas não sabia quanto. Estava escuro? Talvez fosse porque as cortinas estavam fechadas. Alguém lhe aplicava uma toalha molhada e fria na testa. Sua mãe lhe acariciava o cabelo. O toque das mãos dela era reconfortante. Ele quase podia ver seu rosto. Ela era muito boa, sempre tomava conta dele.
Até morrer. Ele queria chorar. Ela estava morta. Mas acariciava seu cabelo. Era impossível, tinha de ser outra pessoa. Mas quem? Então se lembrou. Era Kahlan. Disse o nome dela em voz alta.
Kahlan acariciava seu cabelo.
— Estou aqui.
A lembrança chegou como uma torrente: o assassinato do seu pai, a trepadeira que o picou. Kahlan, os quatro homens no penhasco, o discurso do seu irmão, alguém esperando por ele em sua casa, o gar, o fogo-fátuo dizendo para ele procurar a resposta ou morrer, o que Kahlan disse sobre as três caixas de Orden em uso e seu segredo, o Livro das sombras contadas.
Lembrou quando seu pai o levou ao lugar secreto no bosque e disse que tinha salvado o Livro das sombras contadas da ameaça do animal que o guardava, até a vinda do mestre. Ele o levara para Westland para livrá-lo das mãos cobiçosas, mãos que o guardião do livro não sabia que o ameaçavam. Seu pai disse que o perigo existia enquanto existisse o livro, mas não podia destruir o conhecimento que havia nele, não tinha esse direito.
Pertencia ao guardião do livro e devia ser mantido a salvo até podei ser devolvido. O único meio de fazer isso era memorizar o livro e depois queimá-lo. Só assim o conhecimento seria preservado, mas não roubado, como, do contrário, certamente seria.
Seu pai escolheu Richard. Escolheu Richard, e não Michael, por motivos pessoais. Ninguém podia saber do livro, nem mesmo Michael. Disse que Richard podia nunca encontrar o guardião e nesse caso o livro passaria para seu filho e depois para o filho do seu filho e assim por diante, pelo tempo que fosse necessário. Seu pai não podia dizer quem era o guardião porque não sabia. Richard perguntou como ia reconhecer o guardião, mas seu pai disse que ele devia encontrar a resposta sozinho e jamais contar a ninguém, nem mesmo a seu irmão, nem a seu melhor amigo, Zedd.
Richard jurou por sua vida.
Seu pai jamais leu o livro, só Richard. Dia após dia, semana após semana, com intervalos apenas quando viajava, seu pai o levou ao lugar secreto no interior do bosque, onde se sentava e via Richard ler e reler o livro.
Quase sempre, Michael estava fora com os amigos e não se interessava pelos bosques, nem quando estava em casa, e não era incomum Richard visitar Zedd, portanto, ninguém tinha motivo para saber das freqüentes visitas ao bosque.
Richard escrevia o que memorizava e comparava com o livro. Seu pai queimava os papéis e o fazia escrever outra vez. O pai sempre pedia desculpas pela carga que estava pondo nos ombros de Richard. Pedia perdão ao filho no fim de cada dia no bosque.
Richard nunca se ressentiu de ter de ler o livro. Para ele, a confiança do pai era uma honra. Escreveu o livro do começo ao fim centenas de vezes sem erro, antes de ter certeza de que jamais esqueceria uma só palavra. Sabia, pelo conteúdo do livro, que qualquer palavra omitida significava desastre.
Quando garantiu ao pai que estava tudo memorizado, os dois devolveram o livro ao lugar secreto nas rochas e o deixaram lá durante três anos. Depois disso, quando Richard passara a fase da adolescência, voltaram em um dia de outono e seu pai disse que se Richard fosse capaz de escrever o livro todo, sem nenhum erro, podiam ter certeza de que estava memorizado e podiam queimá-lo. Richard escreveu do começo ao fim, sem hesitação. Estava perfeito.
Fizeram uma fogueira com bastante lenha, até o calor os obrigar a se afastar do fogo. Richard segurou nos braços o Livro das sombras contadas e passou a mão na capa de couro. Segurou nos braços a incumbência do pai, a confiança de todos e sentiu o peso. Entregou o livro ao fogo. Naquele momento, ele deixou de ser criança.
As chamas envolveram o livro, abraçando, acariciando, consumindo. Cores e formas subiram em espiral com um longo rugido. Estranhos raios de luz subiram para o céu. O vento agitou os mantos de ambos, enquanto o fogo absorvia folhas e gravetos, aumentando as chamas e o calor.
Fantasmas apareceram, com os braços abertos, como que alimentados pelas labaredas; suas vozes corriam para longe com o vento. Os dois pareciam feitos de pedra, incapazes de um movimento, sem poder sequer desviar a vista do espetáculo. O calor abrasador se transformou em vento, frio como o de uma noite do mais rigoroso inverno, provocando arrepios nos dois, prendendo sua respiração. Logo, o frio se foi e o fogo se transformou numa luz branca que consumia tudo com sua claridade, como se os dois estivessem expostos ao sol. De repente, desapareceu. No seu lugar, silêncio. O fogo se apagou. Filetes de fumaça saíram lentamente da madeira enegrecida subindo no ar do outono. O livro desapareceu.
Richard sabia o que tinha visto: tinha visto magia.
Richard sentiu a mão no ombro e abriu os olhos. Era Kahlan. Na luz que entrava pela porta entreaberta, ele a viu sentada em uma cadeira ao lado da sua cama. O gato grande de Zedd dormia enrodilhado no colo dela.
— Onde está Zedd? — perguntou Richard, com olhos sonolentos.
— Foi procurar a raiz de que você precisa — respondeu Kahlan, com voz suave e confortadora. — Há horas anoiteceu, mas ele disse para não nos preocuparmos se ele demorar para achar a raiz. Disse que você ia dormir e acordar, mas estará bem até sua volta. Disse que a bebida que ele lhe deu o manterá a salvo.
Pela primeira vez, Richard viu que ela era a mulher mais bela que já tinha visto. Seu cabelo lhe emoldurava o rosto e os ombros e ele quis tocá-lo, mas não tocou. Bastava sentir a mão dela no seu ombro para saber que não estava sozinho.
— Como você está? — Sua voz era suave e tão gentil, que Richard não compreendia por que Zedd ficara com medo dela.
— Eu preferia lutar contra outro quad do que contra a trepadeira serpente.
Com seu sorriso especial, o sorriso de estar partilhando alguma coisa com ele ela enxugou a testa de Richard com a toalha. Ele segurou o pulso dela. Kahlan parou e olhou nos olhos dele.
— Kahlan, Zedd é meu amigo há muitos anos. É como um segundo pai para mim Prometa não fazer nada para magoá-lo. Eu não poderia suportar.
Ela o tranqüilizou com um olhar.
— Eu também gosto dele. Muito. Ele é um bom homem, como você disse. Não tenho intenção de magoá-lo. Só quero que me ajude a encontrar o grande mago.
Ele segurou o pulso dela com mais força e disse:
— Prometa.
— Richard, tudo vai dar certo. Ele nos ajudará.
Lembrou-se dos dedos no seu pescoço e do olhar dela quando pensou que ele queria envenená-la com a maçã.
— Prometa.
Ela pôs a outra mão no rosto dele.
— Desculpe, Richard, mas não posso.
Richard soltou o pulso dela, virou a cabeça e fechou os olhos quando ela tirou a mão do seu rosto. Pensou no livro, em tudo que ele significava e compreendeu que seu pedido era egoísta. Ele a enganaria para salvar Zedd, só para fazer com que ele morresse com eles? Condenaria todos os outros à morte ou à escravidão só para que seus amigos vivessem mais alguns meses? Podia condená-la à morte também, por nada? Sentiu vergonha da própria ignorância. Não tinha o direito de pedir aquela promessa. Ela estaria errada se prometesse. Ficou satisfeito por Kahlan não ter mentido. Mas sabia que só porque Zedd quisera saber o problema dos dois não significava que ele os ajudaria com qualquer coisa do outro lado da fronteira.
— Kahlan, esta febre está me fazendo dizer tolices. Por favor, perdoe-me. Jamais conheci alguém com sua coragem. Sei que está tentando nos salvar. Zedd nos ajudará, eu trato disso. Prometa apenas que vai esperar até eu estar melhor. Dê-me um tempo para convencê-lo.
Ela apertou o ombro dele.
— Isso eu posso prometer. Sei que você se importa com seu amigo. Eu ficaria desapontada se não se importasse. Isso não faz de você um tolo. Descanse agora.
Ele tentou não fechar os olhos, porque quando fechava tudo começava a girar loucamente outra vez. Mas falar esgotara suas forças e logo a escuridão o reclamou. Seus pensamentos foram outra vez sugados pelo vazio. Às vezes ele voltava até a metade do caminho e vagava em sonhos perturbadores, outras vezes andava em lugares vazios até de ilusões.
O gato acordou e empinou as orelhas. Richard dormia. Sons que só o gato podia ouvir o fizeram saltar do colo de Kahlan, ir até a porta e se sentar, esperando. Kahlan esperou também e, como o gato não eriçou o pêlo, ela continuou ao lado de Richard. Uma voz fraca disse do lado de fora da casa:
— Gato? Gato! Onde você se meteu? Muito bem, pode ficar aqui fora então. — A porta se abriu com um rangido. — Ah, você está aí — o gato saiu correndo para fora. — Faça como quiser — disse Zedd. — Como está Richard? — perguntou.
Quando ele entrou, Kahlan respondeu: — Ele acordou várias vezes, mas agora está dormindo. Encontrou a raiz?
— Do contrário não estaria aqui. Ele disse alguma coisa quando acordou?
Kahlan sorriu para o velho homem.
— Só que estava preocupado com você.
Ele foi para a sala da frente, resmungando.
— Não sem razão.
Sentado à mesa, ele descascou as raízes, cortou-as em pedacinhos redondos, que pôs em uma panela com água e a dependurou no suporte sobre o fogo. Jogou as cascas e duas achas de lenha no fogo e depois foi até o armário e retirou uma porção de vidros de tamanhos diferentes. Sem hesitar, escolheu um vidro depois do outro, derramando pós de várias cores em um almofariz de pedra preta.
Com um pilão branco, ele moeu os pós vermelhos, azuis, amarelos, marrons e verdes juntos, até tudo ficar da cor de lama seca. Enfiou a ponta do dedo na mistura e a levou à boca para experimentar. Ergueu uma sobrancelha, estalou os lábios e pensou por um momento. Finalmente sorriu e balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Pôs o pó na panela e mexeu com uma colher que tirou de um gancho do lado da lareira. Mexeu devagar, vendo a mistura começar a ferver. Durante quase duas horas, ele mexeu e vigiou. Quando finalmente decidiu que o trabalho estava feito, pôs a panela na mesa para esfriar.
Zedd apanhou uma tigela e um pedaço de pano e depois de algum tempo chamou Kahlan. Ela atendeu rapidamente e ele lhe ensinou como segurar o pano enquanto ele derramava a mistura.
Girou o dedo no ar.
— Agora torça o pano. Quando todo o líquido sair, jogue no fogo o pano e o que ficou nele — Kahlan olhou para ele, intrigada. Zedd ergueu uma sobrancelha. — A parte que fica no pano é veneno. Richard deve acordar a qualquer momento. Então daremos a ele o líquido da tigela. Continue a torcer. Vou ver como ele está.
Zedd entrou no quarto, inclinou-se sobre Richard e viu que ele estava inconsciente. Voltou-se e viu Kahlan de costas, fazendo seu trabalho. Pôs o dedo médio na testa de Richard. Os olhos de Richard se abriram.
— Minha cara — disse ele, virando-se para a sala da frente —, estamos com sorte. Ele acaba de acordar. Traga a tigela.
Richard piscou os olhos. —
— Zedd? Você está bem? Tudo está bem?
— Sim, sim, tudo está bem.
Kahlan levou a tigela, segurando-a com cuidado, tentando não derramar nada. Zedd ajudou Richard a se sentar para beber o líquido. Quando terminou, ele o ajudou a se deitar outra vez.
— Isso vai fazer você dormir e baixar a febre. Da próxima vez em que acordar, estará bem, dou minha palavra, portanto, não se preocupe mais e descanse.
— Obrigado, Zedd... — Richard adormeceu antes de ter tempo para falar mais.
Zedd saiu do quarto e voltou com um prato de estanho, insistindo para que Kahlan se sentasse na cadeira.
— O espinho não vai resistir à raiz — explicou ele. — Tem de sair do corpo dele. — Pôs o prato debaixo da mão de Richard e sentou na beirada da cama, para esperar. Ouviam a respiração pesada de Richard e os estalos do fogo na sala; fora isso, a casa estava quieta. Foi Zedd quem primeiro quebrou o silêncio.
— É perigoso para uma Confessora viajar sozinha, minha cara. Onde está seu mago?
Ela voltou para ele os olhos cansados.
— Meu mago vendeu seus serviços a uma rainha.
Zedd franziu a testa, desapontado.
— Ele abandonou as responsabilidades com a Confessora? Qual o nome dele?
— Giller.
— Giller — repetiu o nome com desprezo, depois se inclinou um pouco para ela. — Então por que não veio outro com você?
Kahlan olhou para ele muito séria.
— Porque estão todos mortos, mortos pelas próprias mãos. Antes de morrer, reuniram-se e urdiram uma teia para que eu passasse com segurança pela fronteira, guiada por um fogo-fátuo. — Zedd se levantou. Tristeza e preocupação marcavam seu rosto e ele passou a mão no queixo. — Você conhecia os magos? — perguntou ela.
— Sim, sim. Vivi muito tempo em Midlands.
— E o grande? Você o conhece também?
Zedd sorriu, arrumou o manto e sentou outra vez.
— Você é persistente, minha cara. Sim, eu conheci o velho mago. Mas mesmo que você possa encontrá-lo, acho que ele não vai querer nada com esse negócio. Não estará inclinado a ajudar Midlands.
Kahlan inclinou-se para a frente e segurou as mãos dele entre as suas. Falou com voz suave mas intensa.
— Zedd, muita gente desaprova o Alto Conselho de Midlands e sua ganância. Desejariam que não fosse assim, mas são apenas pessoas comuns, sem direito de dar opinião. Tudo que querem é viver em paz. Darken Rahl deu para o exército a comida reservada para o próximo inverno. Eles a desperdiçaram, deixaram apodrecer ou venderam para as pessoas de quem a roubaram. A fome já chegou. Neste inverno muitos morrerão. O fogo foi declarado fora da lei. O povo tem frio.
“Rahl diz que tudo é culpa do grande mago, por não ter se apresentado para o julgamento como inimigo do povo. Ele diz que o grande mago é o culpado. Não explica como, mas muitos acreditam nele. Muitos acreditam em tudo que Rahl diz, mesmo quando o que podem ver seja suficiente para convencê-los do contrário.
“Os magos estavam sob ameaça constante e proibidos por lei de usar a magia. Sabiam que mais cedo ou mais tarde seriam usados contra o povo. Podem ter cometido erros no passado e desapontado seu professor, mas a coisa mais importante que aprenderam foi que devem proteger o povo e de modo algum fazer mal a ele. Como seu maior ato de amor pelo povo, deram suas vidas para deter Darken Rahl. Acho que seu mestre ficaria orgulhoso.
“Mas isso não é só sobre Midlands. A fronteira entre D’Hara e Midlands foi derrubada e a que separa Midlands de Westland está caindo e logo também desaparecerá. O povo de Westland será conquistado pela coisa que mais teme: magia. Magia terrível e assustadora como jamais imaginaram.”
Zedd não demonstrou emoção, não fez qualquer objeção, não deu qualquer opinião, apenas ouviu e continuou a permitir que ela segurasse suas mãos.
— O grande mago pode argumentar contra tudo que eu disse, mas o fato de Darken Rahl pôr em uso as três caixas de Orden é uma coisa completamente diferente. Se ele tiver sucesso, então logo no primeiro dia do inverno será tarde demais para todos. Isso inclui o mago. Rahl já o procura, o que ele quer é vingança pessoal. Muitos morreram porque não sabiam citar o nome dele. Quando Rahl abrir a caixa certa, terá poder absoluto sobre todas as coisas vivas e então o mago lhe pertencerá. Ele pode se esconder em Westland o tempo que quiser, mas, no primeiro dia do inverno, isso termina. Darken Rahl o terá nas mãos.
Havia amargura nos olhos dela.
— Zedd, Darken Rahl usou quads para matar todas as outras Confessoras. Encontrei minha irmã depois que terminaram com ela. Morreu nos meus braços. Com todas as outras mortas, só eu ainda estou viva. Os magos sabiam que seu mestre não queria ajudar, por isso me mandaram como última esperança. Se ele for tolo a ponto de não compreender que me ajudando estará ajudando a si mesmo, terei de usar meu poder para obrigá-lo a ajudar.
Zedd ergueu uma sobrancelha.
— E o que um velho mago pode fazer contra o poder desse Darken Rahl? — Agora era ele quem segurava as mãos dela.
— Ele deve nomear um Seeker, “o que procura”.
— O quê! — Zedd levantou-se de um salto. — Minha cara, você não sabe do que está falando.
Confusa, Kahlan recuou um pouco.
— Como assim?
— “Os que procuram” nomeiam a si próprios. O mago apenas reconhece o que aconteceu e oficializa a nomeação.
— Não compreendo. Pensei que o mago escolhesse a pessoa certa.
Zedd passou a mão no queixo.
— Bem, isso é verdade de certa forma, mas de trás para diante. Um verdadeiro “que procura” capaz de fazer diferença deve provar que é um “que procura”. O mago não aponta para alguém e diz: “Aqui está a Espada da Verdade, você será o Seeker.” Ele realmente não tem escolha no assunto. Não é uma coisa para a qual alguém possa ser treinado. A pessoa simplesmente é “o que procura” e prova isso por suas ações. Um mago deve observar a pessoa durante anos para ter certeza. “O que procura” não precisa ser a pessoa mais inteligente do mundo, mas tem de ser a pessoa certa e ter as qualidades certas. Um verdadeiro “O que procura” é uma pessoa rara.
“‘O que procura é o ponto de equilíbrio do poder. O conselho transformou a nomeação em um cargo político, como um osso para ser lançado a um dos cães bajuladores aos seus pés. Era uma posição muito requisitada por causa do poder que possui. Mas o conselho não compreendeu. Não era a posição que dava o poder à pessoa. Era a pessoa que dava poder ao cargo.”
Ele chegou mais perto dela.
— Kahlan, você nasceu depois que o conselho usurpou esse poder, por isso pode ter visto um “que procura” quando era muito jovem, mas naquele tempo eles não eram verdadeiros. Você nunca viu um verdadeiro “que procura” — seus olhos pareciam maiores, sua voz baixa e cheia de sentimento. — Eu vi um verdadeiro Seeker fazer um rei estremecer com uma única pergunta. Quando um Seeker empunha a Espada da Verdade... — Ele ergueu as mãos e revirou os olhos, satisfeito. — Fúria justa pode ser uma coisa extraordinária de se ver. — Kahlan sorriu vendo o entusiasmo dele. — Pode fazer o bom estremecer de alegria e o mau tremer de medo. — O sorriso desapareceu dos seus lábios. — Mas as pessoas raramente acreditam na verdade quando a vêem e menos ainda quando não querem acreditar e por isso a posição do “que procura” é muito perigosa. Ele é um obstáculo para os que desejam subverter o poder. Ele provoca relâmpagos de muitos lados. Quase sempre fica sozinho e freqüentemente não dura muito.
— Conheço bem essa sensação — disse ela, com a sugestão de um sorriso.
Zedd se inclinou mais para ela.
— Contra Darken Rahl, duvido que mesmo um deles dure muito tempo. E, então, o que acontece?
Kahlan segurou outra vez as mãos dele.
— Zedd, devemos tentar. É nossa única chance. Se não a aproveitarmos, não temos nada mais.
Ele endireitou o corpo, afastando-se dela.
— Qualquer pessoa que o mago escolha não conhece Midlands. Não terá qualquer chance lá. Será uma sentença de morte rápida.
— Esse é o outro motivo pelo qual eu fui mandada. Para ser seu guia e ficar ao lado dele, oferecer minha vida, se preciso, e protegê-lo. As Confessoras passam a vida viajando. Já estive em quase toda a parte de Midlands. Desde que nasce, a Confessora aprende várias línguas. Precisa, porque nunca sabe para onde será chamada. Eu falo todas as línguas principais e a maioria das menos importantes. E, quanto a provocar relâmpagos, uma Confessora tem uma boa parte. Se fosse fácil nos matar, Rahl não precisaria encarregar os quads desse trabalho. E muitos deles morreram ao tentar nos assassinar. Posso ajudar a proteger “o que procura”, se for preciso com minha vida.
— O que você pretende, minha cara, vai pôr em risco não só a vida do “que procura”, minha cara, como a sua também.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Estou sendo caçada agora. Se você conhece um meio melhor, diga.
Antes que Zedd pudesse responder, Richard gemeu. O velho olhou para ele e se levantou. — Está na hora.
Com Kahlan ao lado, Zedd levantou o braço de Richard e segurou a mão ferida sobre o prato de estanho, onde o sangue pingou com um leve som surdo. O espinho caiu com um som molhado. Kahlan estendeu a mão para apanhá-lo.
Zedd segurou o pulso dela.
— Não faça isso, minha cara. Agora que foi expelido do seu hospedeiro, está ansioso para encontrar outro. Veja.
Ela recolheu a mão e Zedd pôs o dedo magro no prato a alguns milímetros do espinho, que serpenteou para o dedo, deixando um rastro de sangue. Ele retirou o dedo e deu o prato a ela. — Segure por baixo e leve para a lareira. Ponha o prato no fogo virado para baixo e deixe-o lá.
Enquanto ela fazia isso, Zedd limpou o ferimento e aplicou uma pomada. Quando Kahlan voltou, ele segurou a mão de Richard e ela a envolveu em ataduras. Zedd observava as mãos dela, enquanto Kahlan trabalhava.
— Por que não disse a ele que você é uma Confessora? — perguntou Zedd, com severidade.
A resposta foi dada no mesmo tom.
— Por causa da sua reação quando me conheceu. — Parou por um momento e seriedade desapareceu da sua voz. — De algum modo, nos tornamos amigos. Não tenho experiência disso, mas tenho muita de ser Confessora. Tenho visto reações como a sua durante toda a minha vida. Quando eu for embora com o Seeker, contarei para ele. Até lá, eu gostaria muito de ter a amizade dele. É pedir muito desejar o simples prazer humano de ter um amigo? A amizade acabará quando eu contar.
Quando ela parou de falar, Zedd levantou-lhe o queixo com um dedo e disse, com um sorriso carinhoso: — Quando vi você pela primeira vez, reagi tolamente. Basicamente pela surpresa de ver uma Confessora. Eu não esperava ver mais alguma na minha vida. Deixei Midlands para me livrar da magia. Você era uma intrusa na minha solidão. Peço desculpas por minha reação e por fazê-la se sentir indesejável. Espero ter me penitenciado. Tenho grande respeito pelas Confessoras, talvez mais do que você possa imaginar. Você é uma boa mulher e é bem-vinda à minha casa.
Kahlan fitou os olhos dele por longo momento.
— Muito obrigada, Zeddicus Zu’l Zorander.
A expressão de Zedd era agora mais ameaçadora do que a de Kahlan quando se viram pela primeira vez. Ela ficou imóvel com o dedo dele ainda debaixo do seu queixo com medo de mover os olhos.
— Quero que saiba, Madre Confessora — sua voz era pouco mais do que um murmúrio e letal —, que esse rapaz é meu amigo há muito tempo. Se você o tocar com seu poder ou se o escolher, terá de se entender comigo. E não vai gostar disso. Entendeu?
Ela engoliu em seco e conseguiu assentir com um leve movimento da cabeça.
— Entendi.
— Ótimo. — A ameaça desapareceu do rosto dele e a calma voltou. Tirou a mão do queixo dela e começou a se voltar para Richard.
Kahlan respirou e, não querendo ser intimidada, segurou no braço dele, fazendo com que se voltasse outra vez para ela.
— Zedd, não farei isso com ele, não por causa do que você disse, mas porque gosto dele. Quero que compreenda.
Olharam-se por longo tempo, medindo mutuamente as forças. O sorriso malicioso de Zedd voltou, mais encantador do que nunca.
— Se me fosse dado escolher, minha cara, eu ia preferir assim.
Ela relaxou, satisfeita por ter deixado as coisas claras e o abraçou rapidamente. O abraço foi retribuído com a maior boa vontade.
— Há uma coisa que você não disse. Não pediu minha ajuda para encontrar o mago.
— Não. E por enquanto não vou pedir. Richard teme que, se eu pedir agora, você vai negar. Prometi não pedir antes que ele possa falar com você. Dei minha palavra.
Zedd pôs o dedo magro no queixo.
— Muito interessante. — Pôs a mão no ombro dela num gesto conspiratório e mudou de assunto. — Quer saber, minha cara, você poderia ser uma boa Seeker.
— Eu? Mulheres podem ser Seekers?
Ele levantou uma sobrancelha.
— É claro. Alguns dos melhores Seekers foram mulheres.
— Eu já tenho um trabalho impossível — ela franziu a testa. — Não preciso de mais um.
Zedd riu, divertido, os olhos brilhando.
— Talvez tenha razão. Agora é tarde demais, minha cara. Vá para a minha cama no outro quarto e procure dormir, você precisa. Eu tomo conta de Richard.
— Não! — ela balançou a cabeça e se sentou na cadeira. — Não quero deixá-lo por enquanto.
Zedd deu de ombros.
— Faça como quiser. — Passou por trás dela e deu uma pancadinha tranqüilizadora no seu ombro. — Como quiser. — Gentilmente fez pequenos círculos com os dedos médios nas têmporas dela. Com um leve gemido, Kahlan fechou os olhos. — Durma, minha cara — murmurou ele —, durma. — Ela apoiou os braços cruzados na beirada da cama e encostou a cabeça neles. Dormiu profundamente. Depois de cobri-la com um cobertor, Zedd foi para a sala da frente, abriu a porta, e olhou a noite.
— Gato! Venha cá, quero você. — O gato correu para dentro e se esfregou nas pernas de Zedd, balançando a cauda erguida. Zedd se inclinou e coçou atrás das orelhas dele. — Entre e durma no colo da jovem. Para aquecê-la. — O gato foi para o quarto e o velho homem saiu para o ar frio da noite.
O vento açoitava o manto de Zedd na trilha estreita, no meio do mato alto. As nuvens eram finas, iluminadas pela claridade da lua, suficiente para ver o caminho, embora ele não precisasse. Percorrera milhares de vezes aquela trilha.
— Nada é fácil — resmungava ele.
Perto de um grupo de árvores, ele parou, escutando. Lentamente se virou para trás, examinando as sombras e os galhos curvados, ondulando na brisa e farejou o ar. Procurava qualquer movimento estranho.
Certa mosca picou seu pescoço. Ele a matou com um tapa, zangado, e a tirou do pescoço.
— Mosca de sangue. Danação! Foi exatamente o que pensei — queixou-se.
Saindo do mato, alguma coisa se lançou sobre ele intempestivamente, atacando com asas, pêlos e dentes. Com as mãos na cintura, Zedd esperou. Quando a coisa estava quase em cima dele, ergueu a mão e o gar de cauda curta parou de repente. Era um gar com quase uma vez e meia a altura de Zedd e duas vezes mais feroz do que um gar de cauda longa. O animal rosnou e piscou os olhos, os músculos grandes retesaram-se, procurando combater a força que o impedia de continuar o ataque, furioso por não ter ainda conseguido matar o velho homem.
Zedd ergueu um dedo e o chamou para mais perto. O gar, ofegando de raiva, se inclinou para ele. Zedd espetou o queixo dele com o dedo.
— Qual é o seu nome? — sibilou ele. O animal rosnou duas vezes e emitiu um som surdo. Zedd assentiu, inclinando a cabeça. — Vou me lembrar. Diga me, você quer viver ou morrer? — Em vão, o gar tentou se afastar. — Ótimo. Então vai fazer exatamente o que vou dizer. Em algum lugar, entre aqui e D’Hara, quads estão vindo para cá. Vá atrás deles e mate os quatro. Depois, volte para D’Hara, para o lugar de onde veio. Se fizer isso, eu o deixo viver, mas vou me lembrar do seu nome e, se não matar o quad ou se voltar aqui depois de executar minhas ordens, eu o mato e deixo que suas moscas o devorem. Concorda com meus termos? — O gar rosnou, concordando. — Ótimo. Então vá. — Zedd retirou o dedo do queixo do gar.
Desesperado para fugir, o animal tatalou as asas freneticamente sobre o mato alto. Finalmente levantou vôo. Zedd o viu adejar em círculos, à procura dos quads. Á medida que a presa se movia para o leste, os círculos pareciam diminuir de tamanho até o velho homem não o ver mais. Só então ele continuou a subir a colina. De pé ao lado da rocha das nuvens, Zedd apontou para ela e começou a girar o dedo magro como quem mexe um cozido. A rocha maciça estremeceu, tentando acompanhar o movimento do dedo de Zedd, tentando girar.
Com um estalo, rachaduras apareceram na sua superfície. A massa pesada lutava contra a força que a dominava. A estrutura granular da pedra começou a amolecer. Incapaz de manter seu estado natural, a textura da rocha se liquefez o bastante para acompanhar o movimento do dedo de Zedd. Gradualmente Zedd aumentou a velocidade da mão até a rocha líquida, girando, emitir um raio de luz.
A intensidade da luz crescia, acompanhando o aumento da velocidade do movimento. Cores e fagulhas giravam no ar, sombras e formas apareciam no centro da luz e desapareciam, à medida que a claridade aumentava. A luz ameaçava incendiar o ar em volta dele. Um rugido surdo como o uivo do vento saiu de uma fissura. Os odores do outono se transformaram na claridade de inverno, depois no odor do solo recentemente arado da primavera, de flores do verão e voltaram ao outono. Iluminação forte e pura substituiu as cores e as fagulhas.
A rocha se solidificou de repente e Zedd subiu nela, para chegar à luz. A claridade empalideceu e era agora um brilho fraco que rodopiava como fumaça. Na frente dele estavam duas aparições, meras sombras. Onde devia haver contornos nítidos, as formas se dissolviam como uma leve lembrança, mas eram ainda reconhecíveis e, ao vê-las, o coração de Zedd acelerou.
A voz de sua mãe soou oca e distante.
— O que o perturba, filho? Por que nos chama depois de tantos anos? — Estendeu os braços para ele.
Zedd também estendeu os braços mas não conseguiu tocar nela.
— Estou perturbado com o que a Madre Confessora me contou.
— Ela diz a verdade.
Zedd fechou os olhos, inclinou a cabeça e abaixou os braços.
— Então é verdade que todos os meus alunos, exceto Giller, estão mortos?
— Você é o único que resta para proteger a Madre Confessora. — Ela deslizou para mais perto. — Você deve escolher um Seeker.
— O Alto Conselho plantou essas sementes — protestou ele. — Agora você quer que eu ajude? Eles ignoraram meus conselhos. Deixe que vivam e morram por sua ganância.
O pai de Zedd se aproximou.
— Meu filho, por que ficou zangado com seus alunos?
Zedd se irritou.
— Porque eles se puseram na frente dos seus deveres para ajudar o povo.
— Compreendo. E qual a diferença do que você está fazendo agora? — O eco da voz dele pairou no ar.
Zedd fechou os punhos.
— Minha ajuda foi oferecida, mas recusada.
— E quando não foi assim, quando não existiram os cegos, os tolos, os gananciosos? Você permitiria com tanta facilidade que fizessem o que querem? Deixaria simplesmente que eles o impedissem de ajudar os que precisam de ajuda? O fato de você ter abandonado seu povo pode ter um motivo que pareça justo para você, ao contrário das ações dos seus alunos, mas o resultado é o mesmo. No fim, eles reconheceram seu erro e fizeram as coisas certas, as coisas que você ensinou. Aprenda com seus alunos, filho.
— Zeddicus — disse a mãe —, você deixaria Richard morrer também e todos os outros inocentes? Indique o Seeker.
— Ele é muito jovem.
Ela balançou a cabeça e disse, com um sorriso sereno: — Ele não terá oportunidade de envelhecer.
— Ele não passou ainda no teste final.
— Darken Rahl procura Richard. A nuvem que o acompanha foi enviada por Rahl para localizá-lo. A trepadeira serpente foi posta no vidro por Darken Rahl, esperando que Richard a procurasse e fosse picado. A trepadeira serpente não devia matá-lo. Darken Rahl queria apenas que ele adormecesse com a febre até poder capturá-lo. — A aparição se aproximou, sua voz era agora mais amorosa: — No seu coração, você sabe que o tem observado, esperando que ele demonstre ser a pessoa certa.
— Do que adianta? — Zedd fechou os olhos e encostou o queixo no peito. — Darken Rahl tem as três caixas de Orden.
— Não — disse seu pai —, ele só tem duas. Ainda está à procura da terceira.
Zedd abriu os olhos rapidamente e levantou a cabeça.
— O quê? Ele não tem todas?
— Não — disse sua mãe —, mas logo terá.
— E o livro? Certamente ele deve ter o Livro das sombras contadas?
— Não. Ele o procura.
Zedd pôs um dedo no queixo, pensando.
— Então há uma chance — murmurou. — Que tolo ativaria duas caixas de Orden antes de ter as três e o livro?
O olhar de sua mãe ficou gelado.
— Um tolo muito perigoso. Ele viaja pelo mundo subterrâneo. — Zedd ficou tenso e a respiração se prendeu em sua garganta. Os olhos de sua mãe pareciam penetrar nele. — Foi assim que ele conseguiu cruzar a fronteira e recuperar a primeira caixa, viajando pelo mundo subterrâneo. Foi assim que ele começou a destruir a fronteira, de dentro do mundo subterrâneo. Ele comanda uma parte desse mundo, e mais, a cada vez que o visita. Se você resolver ajudar, tome cuidado, não atravesse a fronteira, nem deixe que o Seeker a atravesse. Rahl espera que vocês façam isso. Se entrarem na fronteira, estarão em suas mãos. A Madre Confessora atravessou porque ele não esperava. Darken Rahl não cometerá o mesmo erro outra vez.
— Mas então, como posso ir a Midlands? Não posso ajudar se não for a Midlands. — A voz de Zedd estava tensa de frustração.
— Lamentamos, mas não sabemos. Acreditamos que deve haver um meio, mas não o conhecemos. Por isso você deve indicar um Seeker. Se ele for a pessoa certa, encontrará um meio. — As formas começaram a bruxulear e a desaparecer.
— Esperem! Preciso ter a resposta às minhas perguntas! Por favor, não me deixem!
— Lamentamos, mas não temos escolha. Estamos sendo chamados para trás do véu.
— Por que Rahl está perseguindo Richard? Por favor, ajudem-me.
A voz do seu pai soou fraca e distante.
— Não sabemos. Você deve procurar as respostas sozinho. Nós o treinamos muito bem. Você tem mais talento do que jamais tivemos. Use o que aprendeu e o que você sente. Nós o amamos, filho. Até isso ser resolvido, de um modo ou de outro, não podemos voltar para você. Com Orden ativado, voltar significaria rasgar o véu.
Sua mãe beijou a própria mão e a estendeu para ele, Zedd fez o mesmo para ela e eles se foram.
Zeddicus Zu’l Zorander, o grande e digno mago, ficou sozinho na rocha do mago dada por seu pai e contemplou a noite, com pensamentos de mago.
— Nada é fácil.
Richard acordou de repente. A luz quente do meio-dia encheu o quarto e o aroma maravilhoso e picante da sopa condimentada lhe encheu os pulmões. Estava no seu quarto na casa de Zedd. Olhou para os tão conhecidos nós da madeira nas paredes e os rostos que ele imaginava que formavam voltaram a olhá-lo. A porta do quarto estava fechada. Uma cadeira esperava, vazia, perto da cama. Richard se sentou na cama, empurrou as cobertas para baixo e viu que estava ainda com a roupa da véspera. Procurou o dente debaixo da camisa e suspirou aliviado quando viu que ainda estava lá. Pela janela mantida entreaberta por um pequeno pedaço de madeira, entrava o ar fresco e o som do riso de Kahlan. Zedd devia estar contando histórias, ele pensou. Richard olhou para sua mão esquerda. Estava envolta em ataduras, mas não doía mais quando flexionava os dedos. A cabeça também não doía. Na verdade, ele se sentia maravilhosamente bem. Faminto, mas muito bem.
No centro do quarto havia uma banheira com água quente, sabonete e toalhas limpas ao lado. Roupas limpas de guia florestal estavam dobradas sobre uma cadeira. A água do banho estava deliciosamente convidativa. Mergulhou a mão e sentiu que estava morna. Zedd devia saber quando ele ia acordar. Conhecendo Zedd como conhecia, isso não era surpresa.
Richard se despiu e entrou na banheira. O sabonete cheirava quase tão bem quanto a sopa. Ele gostaria de se demorar na banheira, mas estava desperto demais para isso e ansioso pela companhia de Zedd e Kahlan. Tirou as ataduras da mão e com surpresa viu o quanto já havia cicatrizado em tão pouco tempo.
Quando saiu do quarto, Kahlan e Zedd estavam sentados à mesa à sua espera. Richard notou que o vestido de Kahlan fora lavado e aparentemente ela também tomara banho. O cabelo estava limpo e brilhava à luz do sol. Olhos verdes se ergueram brilhantes para ele. Uma grande tigela com sopa o esperava na mesa, ao lado dela, acompanhada de queijo e pão.
— Eu não esperava dormir até o meio-dia — disse ele, passando a perna por cima do banco. Os dois riram. Richard olhou desconfiado para eles.
Kahlan ficou séria.
— Você está acordando no segundo meio-dia.
— Sim — disse Zedd—, você dormiu durante o primeiro. Como se sente? Como está sua mão?
— Estou bem. Obrigado, Zedd, por me ajudar. Obrigado a vocês dois. — Abriu e fechou os dedos para mostrar a melhora. — A mão está muito melhor, mas coça.
— Minha mãe sempre dizia que, quando coça, é sinal de que está melhorando.
Richard sorriu para ela.
— A minha também. — Com a colher, tirou da sopa um pedaço de batata e um cogumelo e experimentou. — Tão boa quanto a minha — disse ele para Kahlan.
Kahlan estava sentada de lado, virada para ele, com o cotovelo na mesa e o queixo apoiado na palma da mão. Sorriu.
— Zedd diz que é diferente.
Richard olhou para Zedd, ofendido. Zedd olhou para o céu, com atenção exagerada.
— Ele diz mesmo? Eu gostaria de fazer Zedd lembrar disso quando me pedir para fazer a sopa.
— Francamente — disse ela em voz baixa, mas não o bastante para que Zedd não pudesse ouvir —, pelo que eu vi, acho que ele é capaz de comer terra se alguém preparar para ele.
Richard riu.
— Vejo que você já o conhece bem.
— Vou dizer uma coisa, Richard — disse o velho homem, apontando com um dedo magro, resolvido a levar a melhor —, ela pode fazer a terra parecer gostosa. Você faria bem se aprendesse isso.
Richard mergulhou um pedaço de pão na sopa. Ele sabia que aquela brincadeira era para aliviar a tensão, um modo de passar o tempo, enquanto os dois esperavam que ele acabasse de comer. Kahlan dera sua palavra de que esperaria por ele para pedir a ajuda de Zedd. Aparentemente a promessa fora cumprida. E o modo de Zedd era bancar o inocente e esperar você perguntar alguma coisa primeiro, para poder julgar o que ele já sabia. Nesse dia, Richard não podia permitir esse jogo. As coisas eram diferentes agora.
— Mas há uma coisa que não me faz confiar nela — disse Zedd sombria e ameaçadoramente.
Richard parou de mastigar. Engoliu a comida e esperou, sem olhar para nenhum dos dois.
— Ela não come queijo! Creio que nunca poderei confiar em uma pessoa que não gosta de queijo. Não é natural.
Richard relaxou. Zedd estava apenas brincando com sua mente, como ele dizia. Seu velho amigo parecia ter o dom de apanhá-lo desprevenido e sentir prazer com isso. Richard olhou para o sorriso inocente de Zedd e sorriu também. Enquanto ele se deliciava com a sopa, Zedd mordiscava um pedaço de queijo para acentuar o que acabava de dizer. Kahlan comia devagar um pedaço de pão para defender seu argumento. O pão estava delicioso. Kahlan ficou satisfeita quando Richard disse isso.
Quase no fim da refeição, Richard decidiu que era hora de falar de coisas sérias.
— Algum sinal do próximo quad?
— Não. Eu estava preocupada, mas Zedd leu as nuvens para mim e disse que aparentemente eles tiveram algum problema, uma vez que não estavam em lugar algum.
Richard olhou de soslaio para Zedd.
— Isso é verdade?
— Tão verdadeiro quanto sapos assados. — Zedd usava essa expressão desde que Richard era pequeno, para fazer humor e mostrar que ele podia sempre confiar no velho amigo para dizer a verdade acima de tudo. Richard imaginou que tipo de “problema” o quad podia ter tido.
Bem ou mal, ele conseguira mudar o estado de espírito à mesa. Sentia a impaciência de Kahlan para entrar no assunto e sentia impaciência em Zedd também. Kahlan virou de frente para a mesa e, com as duas mãos no colo, esperando Richard, temia que, se ele não tratasse o assunto do modo correto, ela faria o que viera fazer e Richard não poderia evitar.
Richard terminou sua refeição e empurrou a tigela com os polegares, ao mesmo tempo em que olhava nos olhos de Zedd. O bom humor de Zedd tinha desaparecido, mas, fora isso, de modo algum ele demonstrava o que estava pensando. Simplesmente esperava. Era a vez de Richard e depois de começar não podia mais voltar atrás.
— Zedd, meu amigo, precisamos da sua ajuda para deter Darken Rahl.
— Eu sei. Você quer que eu encontre o mago.
— Não, isso não será necessário. Eu já o encontrei. — Richard sentiu o olhar surpreso de Kahlan, mas continuou a olhar para Zedd. — Você é o grande mago.
Kahlan começou a se levantar do banco. Sem tirar os olhos de Zedd, Richard estendeu a mão e segurou o braço dela, obrigando-a a se sentar outra vez. Zedd continuou, sem demonstrar nenhuma emoção. Sua voz soou macia e firme.
— E o que o faz pensar isso, Richard?
Richard respirou longa e profundamente e pôs as mãos na mesa, cruzando os dedos. Olhou para as mãos enquanto falava.
— Quando Kahlan me contou pela primeira vez a história das três terras, ela disse que o conselho providenciou para que a morte da mulher e da filha do grande mago pelas mãos de um quad não tivesse qualquer significado e como castigo o mago fez a pior coisa possível para eles: ele os deixou sofrer as conseqüências dos seus atos.
“Isso parecia exatamente o que você faria, mas eu ainda não tinha certeza. Precisava descobrir um modo de saber. Quando você viu Kahlan pela primeira vez e ficou furioso por ela ter vindo de Midlands, eu disse que ela fora atacada por um quad. Observei seus olhos. Eles me disseram que eu estava certo. Só quem sofreu uma perda como você sofreu teria aquela expressão no olhar. E você mudou sua atitude para com ela depois disso. Completamente. Só quem conheceu pessoalmente o terror teria esse tipo de empatia. Mas mesmo assim não confiei no meu instinto. Eu esperei.”
Olhou para Zedd enquanto falava.
— Seu maior erro foi dizer a Kahlan que ela estava a salvo aqui. Você não mentiria, especialmente sobre uma coisa como essa. E você sabe o que é um quad. Como um homem velho pode tornar algum lugar seguro, sem magia? Não é possível, mas o velho mago pode. O próximo quad desapareceu, você mesmo disse, teve algum problema. Eu acho que ele encontrou um problema de mago. Você foi fiel à sua palavra. Sempre é.
Richard abrandou a voz.
— Eu sempre soube, por milhares de pequenas coisas, que você era mais do que dizia ser, que era uma pessoa especial. Sempre me senti honrado com a sua amizade. E sei que, como meu amigo, você faria qualquer coisa, qualquer coisa que fosse necessária para me ajudar, se minha vida estivesse em perigo, assim como eu faria qualquer coisa por você. Confio minha vida a você: ela agora está em suas mãos. — Richard detestou fechar a armadilha desse modo, mas a vida de todos eles estava em perigo. Tinham de enfrentar diretamente a situação.
Zedd apoiou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
— Nunca senti tanto orgulho de você, Richard. — Seus olhos diziam que estava sendo sincero. — Você tem razão. — Levantou-se e foi para o outro lado da mesa. Richard levantou-se também e eles se abraçaram. — Também nunca me senti tão triste por você. — Zedd o abraçou com força por mais um momento. — Sente-se. Eu volto já. Tenho uma coisa para você. Você dois esperem um momento.
Zedd tirou os pratos da mesa e entrou na casa. Kahlan parecia preocupada. Richard pensou que ela ficaria feliz por terem encontrado o mago; ela, porém, parecia mais assustada do que qualquer outra coisa. As coisas não estavam saindo como esperava.
Zedd voltou com uma coisa comprida nas mãos. Kahlan se levantou. Richard viu que Zedd segurava a bainha de uma espada. Kahlan ficou na frente dele antes que Zedd chegasse à mesa e segurou ansiosa seu manto.
— Não faça isso, Zedd. — Sua voz era desesperada.
— Não é escolha minha.
— Zedd, por favor não, qualquer outra pessoa, mas não Richard...
Zedd a interrompeu.
— Kahlan, eu a preveni. Eu disse que é ele quem faz a escolha. Se eu escolher outra pessoa e não a verdadeira, nós todos morreremos. Se conhece um modo melhor... diga!
Ele a empurrou para o lado, foi para o lado oposto da mesa ao que Richard estava e pôs a espada na frente dele. Richard se sobressaltou. Olhou da espada para os olhos de Zedd.
— Isso pertence a você — disse o mago. Kahlan lhes deu as costas.
Richard olhou para a espada. A bainha de prata, com ornatos de ouro nas curvas e nas saliências do desenho, brilhava. As guardas abaixo do punho destacavam-se agressivamente. Fio trançado de rata cobria o punho, entrelaçados ao lado da trança de prata, fios de ouro formavam a palavra Verdade. É a espada de um rei, Richard pensou. A mais bela arma que já tinha visto.
Lentamente ele se levantou. Zedd segurou a bainha pela ponta e entregou o punho a Richard.
— Desembainhe.
Como num transe, Richard segurou o punho e puxou a espada. A lâmina emitiu um som metálico que encheu o ar. Richard nunca ouvira uma espada produzir aquele som. Segurou o punho com firmeza, sentindo quase dolorosamente na palma e nos dedos da outra mão a pressão das saliências do fio de ouro que escrevia a palavra Verdade em cada lado do punho. Inexplicavelmente, parecia exatamente correto. O peso estava certo. Richard sentiu como se uma parte de si mesmo estivesse agora completa.
Uma fúria despertou dentro dele, procurando uma direção. De repente, ele se deu conta da existência do dente pendurado no seu pescoço.
À medida que a fúria crescia, uma força passava da espada para ele. Seus sentimentos sempre tinham parecido independentes e completos. Aquilo era como ver a imagem no espelho tomar vida. Era um espectro terrível. Sua fúria se alimentava com a força da espada e a fúria da espada se alimentava com a sua. Juntas, as duas tempestades espiralavam através dele. Sentiu-se um espectador indefeso, sendo arrastado. Era uma sensação assustadora e ao mesmo tempo sedutora, quase uma violação. Percepções terríveis da própria fúria se contorciam com uma promessa tantalizadora. As emoções mágicas o envolviam, envolviam sua fúria, pairavam no ar com ela. Richard procurou controlar a raiva. Estava prestes a entrar em pânico. Prestes a se entregar.
Zeddicus Zu’l Zorander inclinou a cabeça para trás e ergueu os braços. Para o céu, ele bradou: — Um aviso aos que estão vivos e aos que estão mortos! O Seeker foi escolhido!
Um trovão no céu claro estremeceu o solo e rolou na direção da fronteira.
Kahlan ajoelhou-se na frente de Richard, com a cabeça abaixada, as mãos nas costas.
— Empenho minha vida na defesa do Seeker.
Zedd se ajoelhou ao lado dela, com a cabeça abaixada.
— Empenho minha vida na defesa do Seeker.
Os olhos de Richard, com a espada da Verdade na mão, estavam arregalados, em estonteante confusão.
— Zedd — murmurou ele —, em nome de tudo que é sagrado, diga-me o que é um Seeker.
Com ajuda de uma das mãos no joelho, Zedd se levantou, ajeitou o manto em volta do corpo magro e estendeu a mão para Kahlan, que olhava pata o chão. Aceitando a mão dele, ela também se levantou. Seus olhos estavam tristes. Zedd olhou para ela por um momento e Kahlan fez sinal de que estava bem.
Zedd se voltou para Richard.
— O que é um Seeker? Uma pergunta sábia na sua nova capacidade, mas difícil de responder.
Richard olhou para a espada cintilante que tinha na mão, não muito certo de desejar ter alguma coisa com aquilo. Embainhou a espada, satisfeito por se livrar dos sentimentos que ela provocava, e a segurou com as duas mãos.
— Zedd, eu nunca vi isto antes. Onde você a guardava.
Zedd sorriu com orgulho.
— No armário, em casa.
Richard olhou para ele, incrédulo.
— Não há nada no armário a não ser pratos, panelas e seus pós.
— Não nesse armário — disse ele, em voz baixa como para evitar que ouvissem —, no meu armário de mago!
Richard disse, intrigado: — Eu nunca vi esse armário
— Danação, Richard! Você não devia ver! E um armário de mago, e invisível.
Richard se sentiu mais do que um pouco idiota.
— E há quanto tempo tem isto?
— Não sei.
A voz de Zedd ficou severa. .
— A indicação do Seeker é tarefa do mago. O Alto Conselho erroneamente resolveu tomar a si essa incumbência. Não tinham o cuidado de encontrar a pessoa certa. Davam o posto a quem queriam no momento ou a quem oferecia mais. A espada pertence ao Seeker enquanto ele viver ou até enquanto quiser continuar como Seeker. Enquanto se procura um novo Seeker, a espada da Verdade pertence aos magos. Ou mais precisamente, pertence a mim, uma vez que indicar Seekers é minha responsabilidade. O último homem que a possuiu se... — Olhou para cima, como que procurando no céu a palavra certa — ...envolveu com uma feiticeira. Assim, enquanto ele estava distraído, fui a Midlands e retomei o que me pertence. Agora ela é sua.
Richard sentiu que estava sendo levado para alguma coisa que não era da sua escolha. Olhou para Kahlan. Ela parecia ter se livrado da angústia e estava outra vez indecifrável.
— Foi para isso que você veio? Era o que você queria que o mago fizesse?
— Richard, eu queria que o mago nomeasse um Seeker. Eu não sabia que era você.
Ele começava a se sentir encurralado e olhou de um para o outro.
— Vocês dois pensam que de algum modo eu posso nos salvar. É isso que estão pensando, que posso deter Darken Rahl. Um mago não pode detê-lo, mas eu devo tentar? — O terror inundou seu coração.
Zedd se aproximou e pôs a mão no ombro dele.
— Richard, olhe para o céu. Diga o que você vê. — Richard olhou e viu a nuvem em forma de serpente. Não precisou responder. Zedd apertou com os dedos magros o ombro dele. — Venha. Sente-se; vou dizer tudo que você precisa saber Então você decide. Venha. — Passou o outro braço em volta dos ombros de Kahlan e levou os dois para o banco. Foi para seu lugar, no outro lado da mesa. Richard pôs a espada na mesa entre eles, para significar que o assunto ainda estava para ser resolvido. Zedd arregaçou um pouco as mangas.
— Existe certa magia — começou ele — antiga e perigosa, de imenso poder. Ela vem da terra, da própria vida. É contida em três recipientes chamados de as três caixas de Orden. A magia permanece latente até as três caixas serem ativadas. Não e fácil fazer isso. Exige uma pessoa que tenha adquirido conhecimento com muito estudo e tenha grande poder pessoal. Quando uma pessoa tem pelo menos uma das caixas, a magia de Orden pode ser ativada. Então, essa pessoa tem um ano a partir daquele momento para abrir a caixa, mas deve ter as três, antes disso. Elas funcionam juntas, não é possível simplesmente abrir uma delas. Se a pessoa que as ativa não conseguir obter as três e não as abrir dentro do tempo designado, ela perde a vida para a magia. Não há como voltar atrás. Darken Rahl deve abrir uma das caixas ou morrer. No primeiro dia do inverno, termina seu ano de prazo.
O rosto de Zedd estava tenso e determinado, com rugas profundas. Ele se inclinou um pouco para a frente.
— Cada caixa tem um poder diferente, que é liberado quando ela é aberta. Se Rahl abrir a caixa certa, ele ganha a magia de Orden, a magia da própria vida, o poder sobre todas as coisas vivas e mortas. Terá poder e autoridade indiscutíveis Será um mestre com domínio imutável sobre todos os povos. Quem não gostar, ele pode matar com um pensamento, do modo que quiser, seja quem for, esteja longe ou perto.
— É uma terrível magia — disse Richard.
Zedd se recostou no banco e tirou as mãos da mesa. Balançou a cabeça.
— Não, não é bem assim. A magia de Orden é o poder da vida. Como todos os poderes, simplesmente existe. Quem a usa é que determina como vai usá-la. A magia de Orden pode ser usada para ajudar o crescimento das plantações, curar doentes, acabar com conflitos. Depende de quem a usa. O poder não é bom nem mau, ele simplesmente existe. Compete à mente do homem determinar como vai ser usado. Acho que nós todos sabemos qual o uso que Darken Rahl escolherá.
Zedd fez uma pausa, como sempre fazia, para que Richard absorvesse o que acabava de dizer. Com expressão determinada, esperou. Kahlan também parecia decidida a fazer com que ele compreendesse completamente a natureza sinistra do que Zedd dizia. Richard, é claro, não precisava pensar muito, uma vez que sabia tudo aquilo do Livro das sombras contadas. O livro era explícito. Richard sabia que Zedd apenas tocava de leve a extensão do cataclisma que assolaria a terra se Darken Rahl abrisse a caixa certa. Sabia também o que aconteceria se uma das outras caixas fosse aberta, mas não podia revelar esse conhecimento, por isso teve de perguntar:
— E se ele abrir as outras?
Zedd se inclinou outra vez para a mesa. Esperava a pergunta.
— Se abrir a caixa errada, a magia o possui. Ele morre. — Zedd estalou os dedos. — Assim. Estamos salvos, a ameaça foi removida. — Chegou mais perto franzindo as sobrancelhas e olhou severamente para Richard. — Abra a caixa errada e todos os insetos, todas as hastes de relva, todas as árvores, todos os homens, mulheres e crianças, todas as coisas vivas serão incineradas. Será o fim de qualquer tipo de vida. A magia de Orden é como a própria magia da vida e a morte é parte de tudo que vive; assim, a magia de Orden está ligada à morte tanto quanto à vida.
Zedd se recostou outra vez no banco, aparentemente arrasado só por falar na catástrofe. Embora já soubesse, Richard ficou abalado ouvindo a descrição. De certo modo, parecia mais real quando ligada a um nome. Quando aprendeu no livro tudo parecia tão abstrato, tão hipotético, que ele nunca havia pensado na possibilidade de vir a acontecer. Sua única preocupação era preservar o conhecimento do livro, para devolvê-lo ao seu guardião. Queria poder dizer a Zedd o que sabia, mas o juramento feito ao seu pai não permitia. Além disso, devia continuar a fazer perguntas sobre coisas que já sabia.
— Como Rahl vai saber qual caixa deve abrir?
Zedd arrumou as mangas do manto e olhou para as mãos sobre a mesa.
— Ativar as caixas confere à pessoa cerras informações privilegiadas. Talvez essas informações digam a ele como descobrir qual a caixa que deve ser aberta.
Isso fazia sentido. Ninguém conhecia o livro, a não ser seu guardião e, ao que parecia, a pessoa que ativava as caixas. O livro não fazia qualquer referência a esse respeito, mas parecia lógico. Uma idéia o fez estremecer. Darken Rahl devia estar atrás dele por causa do livro. Ele quase não ouviu Zedd retomar a explicação.
— Porém, Rahl fez uma coisa fora do comum. Ele pôs as caixas em uso antes de ter as três.
Richard voltou a prestar atenção imediatamente. — Ele deve ser idiota ou muito confiante.
— Confiante — disse o mago. — Eu saí de Midlands por duas razões. A primeira, porque o Alto Conselho resolveu nomear o Seeker. A segunda, porque eles manipularam as caixas de Orden. O povo acreditou que o poder das caixas era apenas uma lenda. Acharam que eu era um velho tolo por dizer que não era uma lenda, e sim verdade. Recusaram-se a ouvir minhas advertências.
Bateu com a mão fechada na mesa, sobressaltando Kahlan.
— Eles riram de mim! — Estava vermelho de raiva, o rubor se destacava contra a brancura dos cabelos. — Eu queria que as caixas fossem separadas e, com magia, escondidas em um lugar onde jamais pudessem ser encontradas. Mas o Conselho queria que fossem dadas a pessoas importantes, como troféus para serem exibidos. Eles as usaram para pagar favores recebidos ou promessas cumpridas. Isso expôs as caixas a mãos gananciosas. Eu não sei o que aconteceu com elas durante todos estes anos. Rahl tem uma, mas não as três. Pelo menos não até agora. — Os olhos de Zedd brilhavam de fervor. — Você compreende, Richard? Não precisamos enfrentar Darken Rahl; tudo que temos a fazer é encontrar pelo menos uma das caixas antes que ele a encontre.
— E mantê-la fora do alcance dele, o que pode ser mais difícil do que encontrá-la — observou Richard, deixando as palavras pairarem no ar por um momento. Teve uma idéia: — Zedd, você acha que uma das caixas pode estar aqui em Westland?
— É pouco provável,
— Por quê?
Zedd hesitou.
— Richard, eu nunca disse a você que sou um mago, mas você nunca perguntou, portanto, eu não menti. Só menti uma vez para você. Eu disse que vim para cá antes de a fronteira ser erguida, porque não podia dizer a verdade. Você compreende, para criar uma Westland livre de magia, não devia haver qualquer uma aqui, quando a fronteira foi criada. A magia podia vir depois da existência da fronteira, mas não antes. Uma vez que eu tenho magia, minha presença teria evitado que isso acontecesse, por isso tive de ficar em Midlands até depois e só então vim para cá.
— Todos têm seus pequenos segredos. Não o censuro por isso. Mas aonde quer chegar?
— Quero dizer que sabemos que nenhuma das caixas podia estar aqui antes da fronteira ser erguida, do contrário a magia teria evitado. Portanto, estavam todas em Midlands antes da existência da fronteira, por causa da magia, e eu não trouxe caixa alguma comigo, logo, devem estar em Midlands.
Richard refletiu por algum tempo, sentindo apagar a centelha de esperança. Voltou a pensar no assunto de que estavam tratando.
— Você ainda não me disse o que é um Seeker. Nem qual é minha parte nisto tudo.
Zedd juntou as mãos.
— Um Seeker é uma pessoa que não dá satisfações a ninguém, a não ser a si mesmo. Ele é uma lei à parte. A Espada da Verdade pertence a ele para usar como quiser e, dentro dos limites da própria força, ele pode fazer qualquer pessoa se responsabilizar por qualquer coisa. — Zedd levantou uma das mãos para evitar perguntas e objeções de Richard. — Sei que isso é vago. O problema para explicar isso é que é igual a todo o poder. Como eu já disse, o modo como o poder é usado faz dele o que é. Por isso é importante encontrar a pessoa certa, a pessoa que use sabiamente o poder. Um Seeker faz exatamente o que o nome diz: ele procura. Ele procura as respostas para as coisas. Coisas que ele escolhe. Se for a pessoa certa, procurará as respostas que podem ajudar os outros, não apenas a ele. O objetivo do Seeker é ter liberdade para questionar, ir aonde quiser, perguntar o que quiser, aprender o que quiser, encontrar respostas para o que quer saber e, se for preciso, fazer seja o que for que a resposta exija.
Richard se empertigou e disse em voz alta: — Está dizendo que um Seeker é um assassino?
— — Não vou mentir para você, Richard, houve um tempo em que as coisas eram assim.
Richard ficou rubro.
— Não serei um assassino.
Zedd deu de ombros.
— Como eu disse, um Seeker é o que ele quiser ser. Idealmente é o que faz justiça. Não posso dizer muito mais porque nunca fui um. Não sei o que se passa em suas cabeças, porém sei reconhecer a pessoa certa.
Zedd arregaçou as mangas outra vez, olhando para Richard.
— Mas eu não escolho o Seeker, Richard. O verdadeiro Seeker se escolhe. Eu só o identifico. Há anos você é um Seeker, sem saber. Eu o tenho observado e é isso que você faz. Está sempre procurando a verdade. O que pensa que estava fazendo no alto Ven? Estava procurando a resposta da trepadeira ao assassinato do seu pai. Podia ter deixado isso para outros mais qualificados e, como as coisas acabaram, talvez tivesse sido mais certo. Mas seria contra a sua natureza, a natureza do Seeker. Ele não deixa as coisas para os outros porque quer saber por si mesmo. Quando Kahlan disse a você que estava procurando um mago perdido desde antes de ela ter nascido, você tinha de saber quem ele era e o encontrou.
— Mas isso foi só porque...
Zedd o interrompeu.
— Não importa. É irrelevante. Só uma coisa importa: você procurou e encontrou. Eu salvei você com a raiz que encontrei. Importa se foi fácil para mim encontrá-la? Não. Eu encontrei a raiz, você está bem. Isso é o que importa. O mesmo com o Seeker. Não importa como ele encontre a resposta, mas apenas que encontre. Como eu disse, não há regras. Neste momento, você deve descobrir algumas respostas. Eu não sei como e não me importo, o que importa é que você descubra. Se você diz “Isso é simples”, melhor, porque não temos muito tempo.
A hesitação de Richard desapareceu.
— Quais respostas? — perguntou ele.
Zedd sorriu e seus olhos brilharam.
— Eu tenho um plano, mas você deve descobrir um meio de nos fazer atravessar a fronteira.
Zedd balançou a cabeça.
— Não. Eu disse ir para o outro lado da fronteira, não atravessá-la. Eu sei como atravessar, mas não posso fazer isso. É exatamente o que Rahl espera. Se tentarmos, ele nos matará. Se tivermos sorte. Devemos ir para o outro lado, sem atravessar a fronteira. É muito diferente.
— Zedd, lamento, mas é impossível. Não sei como passar para o outro lado. Não vejo como posso fazer isso. A fronteira é o mundo subterrâneo. Se não a pudermos atravessar, ficaremos presos aqui. O único propósito da fronteira é impedir que alguém faça exatamente o que você está me pedindo. — Richard sentia-se incapaz. Dependiam dele e não tinha nenhuma resposta.
Zedd disse, bondosa e gentilmente: — Richard, você não se deve criticar desse modo. O que você diz quando pergunto como você deve resolver um problema difícil?
Richard sabia do que Zedd estava falando, mas relutava em responder porque dar uma resposta só o levaria para mais fundo no problema. Zedd ergueu uma sobrancelha, esperando. Richard olhou para a mesa, passando a unha do polegar na madeira.
— Pense na solução, não no problema.
— E neste momento você está fazendo a coisa de trás para diante. Está se concentrando em descobrir por que o problema é impossível. Não está pensando na solução.
Richard sabia que Zedd estava certo, mas isso não era tudo.
— Zedd, acho que não sou qualificado para ser um Seeker. Não sei coisa alguma sobre Midlands.
— Às vezes é mais fácil tomar uma decisão quando você não está sobrecarregado com o peso do conhecimento da história — disse o mago.
Richard respirou profundamente.
— Não conheço o lugar. Ficarei perdido lá.
Kahlan pôs a mão no braço dele.
— Não, não ficará. Eu conheço Midlands melhor do que qualquer outra pessoa. Sei onde é seguro e onde não é. Serei sua guia. Você não ficará perdido. Prometo.
Richard desviou os olhos dos olhos verdes. Era insuportável pensar que podia desapontar Kahlan, mas a sua fé e a de Zedd eram injustificáveis. Ele não sabia nada sobre Midlands, sobre magia, como encontrar algumas caixas ou como deter Darken Rahl. Não sabia como fazer nada disso! E a primeira coisa que pediam era que descobrisse um modo de passar para o outro lado da fronteira!
— Richard, sei que pensa que o estou incumbindo dessa responsabilidade insensatamente, mas não fui eu quem o escolheu. Foi você quem demonstrou ser o Seeker. Eu apenas reconheci o fato. Sou mago há muito tempo. Você não sabe o que isso significa, mas tem de confiar em mim quando digo que sou qualificado para reconhecer a pessoa certa. — Zedd pôs a mão no braço de Richard, estendendo o braço sobre a mesa e sobre a espada. Com o olhar sombrio, continuou: — Darken Rahl está atrás de você. Pessoalmente. A única razão que posso imaginar para isso é que, com a percepção que recebeu da magia de Orden, ele também sabe que você é o Seeker e por isso o procura para eliminar a ameaça.
Richard ficou surpreso. Talvez Zedd tivesse razão. Talvez fosse por isso que Rahl o procurava. Ou talvez não. Zedd não sabia do livro. Tinha a impressão de que sua mente ia explodir e, de repente, se levantou da mesa e começou a andar de um lado para outro, pensando. Zedd cruzou os braços. Kahlan apoiou o cotovelo na mesa. Os dois o observaram em silêncio.
O fogo-fátuo tinha dito para ele procurar a resposta ou morrer. Não disse que era necessário ser um Seeker. Ele podia encontrar as respostas ao seu modo, como sempre fazia. Não precisou da espada para descobrir quem era o mago, mas, na verdade, isso não foi difícil.
Mas que havia de errado em empunhar a espada? Que mal podia haver em procurar essa ajuda? Não precisava tornar-se um assassino, nem outra coisa qualquer. Podia usá-la para ajudá-los. Era tudo de que precisavam ou tudo que queriam, nada mais.
Mas Richard sabia por que não queria. Não gostou do que sentiu quando desembainhou a espada. Foi uma sensação boa e isso o assustou. Sua ira foi despertada assustadoramente, fazendo-o sentir o que jamais havia sentido. O que mais o preocupava era ter sido uma boa sensação. Não queria sentir que era bom ter raiva, não queria perder o controle. Raiva era uma coisa errada. Foi o que seu pai ensinou. Raiva matara sua mãe. Richard mantinha sua ira atrás de uma porta fechada que ele não queria abrir. Não, faria do seu modo, sem a espada. Não precisava dela, não precisava daquelas sensações.
Richard se voltou para Zedd, que continuava sentado com os braços cruzados. A luz do sol acentuava as sombras das rugas do seu rosto. As linhas e os ângulos do rosto familiar pareciam de certo modo diferentes, severas, determinadas, mais como as de um verdadeiro mago. Os olhos dos dois se encontraram firmemente por algum tempo. Richard estava decidido. Diria não ao seu amigo. Ele ajudaria e ficaria ao lado deles. Sua vida também dependia disso. Mas não seria o Seeker. Antes que ele tivesse tempo de começar a falar, Zedd disse: — Kahlan, conte a Richard como Darken Rahl interroga as pessoas — falou com voz baixa e calma. Não olhou para Kahlan, mas continuou a olhar para Richard.
Com voz quase inaudível, Kahlan disse: — Zedd, por favor.
— Conte a ele. — Dessa vez seu tom foi mais duro, mais incisivo. — Conte o que ele faz com a faca curva que leva no cinto.
Richard olhou para o rosto pálido dela. Depois de um momento, Kahlan estendeu a mão e com os olhos verdes tristonhos, chamou-o para perto dela. Por um instante, ele ficou parado, desconfiado, mas então se adiantou e segurou a mão da jovem. Kahlan o puxou para ela. Richard se sentou, esperando e temendo o que ia ouvir.
Kahlan afastou o cabelo para trás da orelha e acariciou com a ponta dos dedos a mão direita de Richard, segura entre as suas. Seus dedos eram suaves, macios e quentes. O tamanho da mão de Kahlan fazia com que a dele parecesse enorme. Ela falou em voz baixa, sem erguer os olhos.
— Darken Rahl pratica uma forma antiga de magia chamada antropomancia. Ele adivinha as respostas às suas perguntas, examinando entranhas de seres humanos.
Richard sentiu acender sua ira.
— E de uso limitado, o máximo que ele pode ter é um sim ou um não e às vezes um nome. Mesmo assim, ele continua a usar. Eu lamento, Richard. Perdoe-me por estar contando isso.
Lembranças da bondade do seu pai, do seu riso, do seu amor, da sua amizade, dos momentos que tinham passado juntos com o livro secreto e milhares de pequenas coisas invadiram sua mente numa torrente de angústia. As cenas e os sons convergiram em sombras vagas e ecos vazios e desapareceram. No lugar delas, surgiram lembranças das manchas de sangue no chão, dos rostos pálidos das pessoas, imagens da dor e do terror do seu pai e das coisas que Chase tinha contado. Richard não tentou afastá-las, ao contrário, chamou-as avidamente para sua lembrança. Mergulhou nos detalhes, sentiu o extremo tormento. A dor subiu de um poço profundo de sua alma. Evocada descuidadamente, ela chegou gritando. Em sua mente, ele acrescentou a figura sombria de Darken Rahl, o sangue pingando vermelho das mãos, de pé ao lado do corpo do seu pai, segurando a lâmina vermelha e brilhante. Richard manteve a visão na sua frente, examinando-a, inspecionando-a, absorvendo-a em sua alma.
O quadro estava completo agora. Ele tinha suas respostas. Sabia como tinha sido. Como seu pai morreu. Até aquele momento era tudo que estava sempre procurando — respostas. Em toda a sua vida, nunca fora além da simples procura.
Tudo mudou de repente, num momento incandescente.
A porta que guardava sua ira e a parede da razão que controlava seu temperamento se incendiaram na chama ardente do desejo. Uma vida inteira de pensamento racional evaporou perante sua fúria escaldante. A lucidez se tornou refugo no cadinho da necessidade derretida.
Richard apanhou a Espada da Verdade e a segurou com força até as juntas da sua mão ficarem esbranquiçadas. Tensionou os músculos do rosto. Sua respiração acelerou. Ele não via nada à sua volta. O calor da fúria manou da espada, não da sua vontade, chamando o Seeker.
O peito de Richard arfava com a dor escaldante de saber o que tinha acontecido com seu pai e, com esse conhecimento, havia também uma conclusão. Pensamentos a que ele jamais se havia permitido tornaram-se seu único desejo. Cautela e conseqüência desapareceram num dilúvio de sede de vingança.
Naquele momento, ele só queria, só precisava matar Darken Rahl. Nada mais tinha sentido.
Estendeu a outra mão para o punho da espada, para desembainhá-la. Zedd pôs a mão sobre a dele. Os olhos do Seeker se ergueram, furiosos com a interferência.
— Richard — disse Zedd —, acalme-se.
O Seeker, flexionando os músculos poderosos, olhou furiosamente para os olhos tranqüilos de Zedd. Uma parte dele, nas profundezas de sua mente, tentava detê-lo, procurava recuperar o controle. Ele ignorou o aviso. Inclinou-se para o mago rilhando os dentes.
— Eu aceito a posição de Seeker.
— Richard — disse Zedd calmamente —, está tudo bem. Relaxe. Sente-se.
O mundo voltou apressado à sua mente. Ele diminuiu a intensidade do desejo de matar, mas não da sua fúria. Não apenas a porta como também a parede que continha sua ira tinham desaparecido. O mundo que o rodeava tinha voltado mas era um mundo visto com olhos diferentes — olhos que ele sempre tivera, mas tinha medo de usar: os olhos de um Seeker.
Richard percebeu que estava de pé. Não se lembrava de ter se levantado. Sentou-se outra vez ao lado de Kahlan, tirou as mãos da espada. Algo dentro dele se resignou a conter sua fúria. Entretanto, não mais como antes. Não a trancou atrás de uma porta, mas a puxou para fora, sem medo, preparando-a para quando precisasse dela outra vez.
Uma parte do seu antigo eu voltou à sua mente, reivindicando-o, normalizando sua respiração, raciocinando com ele. Richard se sentiu liberado, pela primeira vez sem medo e sem vergonha do seu temperamento. Sentou-se para se livrar da tensão, para relaxar os músculos.
Olhou para o rosto calmo e imperturbável de Zedd. O velho homem com a cabeleira branca emoldurando o rosto anguloso e inteligente olhou para ele, avaliando-o com a leve sugestão de um sorriso nos cantos da boca.
— Congratulações — disse o mago. — Você passou no teste final para se tornar um Seeker.
Confuso, Richard disse: — Como assim? Você já me designou para o cargo.
Zedd balançou a cabeça lentamente.
— Eu já disse. Você não ouviu? Um Seeker se escolhe sozinho. Antes de ser Seeker, você precisava passar por um último teste. Teria de provar que é capaz de usar toda a sua mente. Durante muitos anos, Richard, você manteve uma parte dela fechada. Sua ira. Eu precisava saber se você podia libertá-la, recorrer a ela. Eu muitas vezes o vi zangado, mas sem nunca admitir isso para você mesmo. Um Seeker que não se pode permitir o uso da própria fúria seria incapaz e fraco. É a força da ira que fornece o impulso para vencer. Sem a ira, você teria recusado a espada e eu deixaria, porque então você teria provado que não tinha o que era preciso. Mas isso é irrelevante agora. Você provou que não é mais prisioneiro dos seus temores. Mas tenha cuidado. Por mais importante que seja poder usar sua ira, é igualmente importante ser capaz de controlá-la. Você sempre teve essa habilidade. Não a perca neste momento. Sua ira deve ser suficientemente sensata para saber qual o caminho que deve tomar. Às vezes liberar a fúria é um erro muito maior do que contê-la.
Richard assentiu solenemente, inclinando a cabeça. Lembrou o que sentiu ao empunhar a espada quando tomado pela ira, como sentiu seu poder, a sensação de se entregar a um impulso primitivo, que vinha dele e da espada.
— Esta espada tem magia — disse ele cautelosamente. — Eu senti.
— Sim, tem. Mas, Richard, a magia é só um instrumento, como qualquer outro. Quando você usa uma pedra de amolar para afiar a faca, está simplesmente fazendo a faca funcionar melhor para determinado fim. O mesmo com a magia. Ela apenas afia a intenção. — Os olhos de Zedd estavam claros e vivos. — Algumas pessoas têm mais medo de ser mortas pela magia do que, digamos, por um golpe de faca, como se de certo modo ficassem menos mortos por uma pancada ou por uma lâmina do que por algo invisível. Mas ouça bem o que vou dizer. Morto é morto. Porém, o medo da magia pode ser uma arma poderosa. Não esqueça isso.
O sol do fim da tarde aquecia o rosto de Richard e com o canto dos olhos ele via a nuvem. Rahl também devia estar vendo. Richard se lembrou do homem quad no Penhasco Blunt, de como ele passou a lâmina da espada no braço, tirando sangue antes de atacar. Naquele dia, ele não compreendeu, mas compreendia agora. Richard estava sedento por uma luta.
As folhas das árvores próximas adejavam com o leve vento do outono, cintilando com as primeiras pinceladas de dourado e vermelho. O inverno estava chegando, o primeiro dia de inverno logo estaria ali. Ele pensou em como podia levá-los para o outro lado da fronteira. Tinham de encontrar uma das caixas de Orden e, quando a encontrassem, encontrariam Rahl.
— Zedd, chega de jogos. Sou o Seeker agora, chega de testes. Certo?
— Tão certo quanto sapos assados.
— Então estamos perdendo tempo. Tenho certeza de que Rahl não está perdendo o dele. — Voltou-se para Kahlan. — Quero que você prometa que servirá de guia quando chegarmos a Midlands.
Ela sorriu vendo a impaciência dele e assentiu, inclinando a cabeça. Richard então disse a Zedd: — Mostre como a magia funciona, mago.
Com um sorriso maroto, Zedd entregou o cinturão a tiracolo para Richard. O couro finamente trabalhado era antigo e flexível. A fivela de ouro e prata combinava com a bainha. Estava ajustada para uma cintura pequena, menor que a de Richard. Zedd ajudou a reajustar o cinturão no ombro direito e prendeu a Espada da Verdade.
Zedd os levou para a borda do mato, entre as longas sombras das árvores próximas, onde havia duas pequenas árvores de bordo, o tronco de uma delas com a espessura do pulso de Richard, a outra fina como o de Kahlan.
— Desembainhe a espada — disse ele a Richard. O som metálico singular encheu o ar do fim de tarde quando a espada saiu da bainha. Zedd se aproximou. — Agora, vou mostrar a coisa importante dessa espada, mas para isso preciso que você abdique por um tempo do posto de Seeker e permita que eu nomeie Kahlan no seu lugar.
Kahlan olhou para Zedd, desconfiada.
— Eu não quero ser Seeker.
— Só para efeito de demonstração, minha cara. — Fez sinal para Richard entregar a espada a ela. Kahlan hesitou antes de segurar a espada com as duas mãos. O peso era desconfortável e ela deixou que a ponta encostasse no chão coberto de relva. Zedd sacudiu as mãos acima da cabeça dela com um gesto imponente.
— Kahlan Amnell, eu a nomeio Seeker. — Ela continuou a olhar desconfiada. Zedd pôs um dedo debaixo do queixo de Kahlan, levantando a cabeça dela. Os olhos dele tinham uma intensidade feroz. Com o rosto muito perto do dela, disse em voz baixa: — Quando saí de Midlands com esta espada, Darken Rahl usou a magia para trazer para cá a maior dessas duas árvores para marcar o lugar e poder me encontrar quando quisesse. Assim poderia me matar. O mesmo Darken Rahl que mandou matar Dennee. — Os olhos dela ficaram sombrios. — O mesmo Darken Rahl que rastreia você para matar, como matou sua irmã. — O ódio flamejou nos olhos dela. Cerrou os dentes, com os músculos do rosto tensos. A Espada da Verdade se ergueu. Zedd ficou atrás dela. — Esta árvore é dele. Você deve detê-lo.
A lâmina cintilou no ar de outono com uma velocidade e uma força que Richard mal podia acreditar. O arco do movimento atingiu a árvore maior com um estalo, como um milhão de gravetos se quebrando de uma vez. Lascas voaram por todo o lado. A árvore pareceu pairar no ar por um momento e então caiu perto do toco cortado, com um ruído surdo. Richard sabia que teria precisado de pelo menos dez golpes com um bom machado para derrubar a árvore.
Zedd tirou a espada das mãos de Kahlan e ela caiu de joelhos balançando o corpo, e com um gemido cobriu o rosto com as mãos. Richard imediatamente se abaixou ao lado dela.
— Kahlan, o que foi?
— Eu estou bem. — Pôs a mão no ombro dele e se levantou. Muito pálida, forçou um leve sorriso. — Mas demito-me do posto de Seeker.
Richard se voltou para o mago.
— Zedd que bobagem foi essa? Darken Rahl não pôs essa árvore aqui. Tenho visto você regar e cuidar das duas. Mesmo que encoste uma faca no meu pescoço, direi que você as plantou em memória de sua mulher e sua filha.
Zedd disse, com leve sorriso: — Muito bem, Richard. Aqui está a sua espada Você é o Seeker outra vez. Agora, meu jovem, corte a árvore pequena. Depois eu explico.
Aborrecido, Richard segurou a espada com as duas mãos, sentindo a ira tomar conta dele. Atacou a árvore com um golpe poderoso. A ponta da lâmina sibilou, cortando o ar. Um pouco antes de atingir a árvore, a espada parou, como se o ar tivesse ficado espesso demais.
Richard recuou, surpreso. Olhou para a espada e tentou outra vez. A mesma coisa ocorreu. A árvore não foi tocada. Ele olhou furioso para Zedd que, com os braços cruzados, sorria como quem sabe das coisas.
Richard embainhou a espada.
— Muito bem, o que está acontecendo?
Zedd ergueu as sobrancelhas, inocentemente.
— Você viu com que facilidade Kahlan cortou a árvore maior? — Richard olhou para ele, intrigado. Zedd sorriu
— Mesmo que fosse de ferro, a lamina teria cortado da mesma forma. Mas você é mais forte do que ela e não conseguiu sequer arranhar a árvore menor.
— Sim, Zedd, notei isso.
Zedd franziu a testa, fingindo surpresa.
— E por que você acha que isso aconteceu?
A irritação de Richard desapareceu. Era assim que Zedd dava suas aulas, fazendo com que ele descobrisse as respostas.
— Eu diria que tem algo a ver com a intenção. Ela pensou que a árvore era má, eu não pensei isso.
Zedd levantou um dedo magro.
— Muito bem, meu jovem!
Kahlan cruzou as mãos.
— Zedd, eu não compreendo. Destruí a árvore; ela, porém, não era má. Era inocente.
— Esse, minha cara, foi o objetivo da demonstração. A realidade não é relevante A percepção é tudo. Se você pensa que é o inimigo, pode destruir, seja verdade ou não. A magia interpreta apenas sua percepção. Não permitirá que você faça mal a quem julga ser inocente, mas destruirá quem você julga ser o inimigo, dentro de cerros limites. Só o que você acredita e não a verdade dos seus pensamentos é o fator determinante. Richard hesitou.
— Isso não deixa margem de erro. Mas e se não se tiver certeza?
Zedd ergueu uma sobrancelha.
— Acho melhor ter certeza, meu jovem, do contrário pode se meter em uma grande encrenca. A magia pode ler coisas em sua mente das quais você nem desconfia. Você tanto pode matar um amigo quanto poupar um inimigo.
Richard tamborilou com os dedos no punho da espada. Olhou para os raios dourados do sol poente através das árvores. Lá em cima, a nuvem em forma de serpente tinha um lado avermelhado e o outro púrpura. Na verdade, não importava, ele decidiu. Sabia o que estava procurando e não tinha dúvida de quem era o inimigo. Não tinha a menor importância. — Há mais uma coisa. Mais uma coisa importante — disse o mago. — Quando você usa a espada contra um inimigo, paga um preço. Não é mesmo, minha cara. — Olhou para Kahlan. Ela fez que sim com a cabeça e olhou para o chão. — Quanto mais poderoso o inimigo, mais alto o preço. Sinto muito ter sido necessário fazer isso com você, Kahlan, mas é a lição mais importante para Richard. — Com um leve sorriso, ela demonstrou que compreendia.
— Nós dois sabemos — disse Zedd a Richard — que às vezes matar é a única opção que deve ser classificada como a coisa certa. Sei que não preciso dizer que é sempre uma coisa terrível cada vez que você mata. Você vive com isso para sempre e uma vez feita, não pode ser desfeita. Você paga um preço no seu íntimo, você se sente inferior por ter matado.
Richard assentiu. A morte do homem no Penhasco Blunt ainda o incomodava. Não se arrependia. No momento, não teve escolha, mas em sua mente via ainda o rosto do homem quando despencou do penhasco.
Zedd disse, com olhar intenso: — É diferente quando você mata com a Espada da Verdade por causa da magia. A magia executou sua escolha e exige um preço. Não existe puro bem ou puro mal, muito menos nas pessoas. Os melhores de nós têm maus pensamentos e praticam más ações e os piores têm pelo menos alguma virtude. Um adversário não é aquele que pratica atos odiosos sem motivo. Ele tem sempre uma razão que os justifica. Meu gato come ratos. Isso faz dele um gato perverso? Acho que não e o gato também não acha, mas aposto que os ratos têm uma opinião diferente. Todos os assassinos acham que a vítima deve morrer.
“Sei que você não quer acreditar nisso, Richard, mas precisa ouvir. Darken Rahl faz essas coisas porque acha que é certo. Vocês dois são mais iguais do que você pensa. Você quer se vingar dele pela morte do seu pai e ele quer se vingar de mim pela morte do pai dele. Para você, ele é o mal, mas para ele o mal é você. Tudo não passa de percepção. Quem vence acha que está com razão. O perdedor sempre pensará que foi injustamente tratado. O mesmo acontece com a magia de Orden: o poder simplesmente esta lá, um o usa para vencer o outro.”
— Iguais? Você ficou louco? Como pode pensar que somos iguais? Ele anseia pelo poder! Arriscará a destruição do mundo para conseguir! Eu não quero poder, só quero ser deixado em paz! Ele assassinou meu pai! Ele o eviscerou! Está tentando matar a nós todos! Como pode dizer que somos iguais? Você fala como se ele sequer fosse perigoso!
— Você não prestou atenção ao que eu acabo de ensinar? Eu disse que vocês são iguais na medida em que ambos acham que estão certos. E isso faz Darken Rahl mais perigoso do que pode imaginar porque em todo o resto vocês são diferentes. Darken Rahl tem prazer em tirar a vida das pessoas. Tem sede da dor alheia. Sua noção, Richard, do que é direito tem limites, a dele não. Ele é consumido por um desejo de submeter toda oposição por meio de tortura e todos que não se curvam a ele são considerados da oposição. Sua consciência estava clara quando ele usou as mãos para extrair as entranhas do seu pai enquanto ele ainda respirava. Sentiu prazer porque sua noção distorcida do que é direito lhe dá permissão. Por isso ele é tão diferente de você. Por isso ele é tão perigoso. — Apontou para Kahlan. — Você não prestou atenção? Não viu o que ela fez com a espada? E que ela fez o que você não conseguiu fazer?
— Percepção — murmurou Richard. — Ela fez aquilo porque pensou que estava certa.
Zedd ergueu um dedo.
— Ah! É a percepção que torna mais perigosa a ameaça. — Zedd abaixou o dedo e espetou com ele o peito de Richard, a cada palavra. — Exatamente... como... a espada.
Richard pôs o polegar debaixo do boldrié a tiracolo e respirou profundamente. Tinha a sensação de andar sobre areia movediça, mas depois de conviver com Zedd durante tanto tempo não podia ignorar o que ele dizia só porque era difícil de compreender. Mas ele queria simplicidade.
— Quer dizer que não é só o que ele faz que o torna perigoso, mas também o que ele acha que pode justificar?
Zedd deu de ombros.
— Deixe-me dizer com outras palavras. De quem teria mais medo: de um homem de cem quilos que quer roubar um pão de você e sabe que está errado ou de uma mulher de cinqüenta quilos que acredita, erroneamente, mas de todo o coração, que você roubou seu filho?
Richard cruzou os braços.
— Eu fugiria da mulher. Ela não desistiria. Não ouviria explicação alguma. Ela seria capaz de qualquer coisa.
Havia ferocidade nos olhos de Zedd.
— Assim é Darken Rahl! Porque pensa que está certo, ele é muito mais perigoso.
Richard disse, com olhar também feroz: — Eu estou certo.
O rosto de Zedd se abrandou.
— Os ratos pensam que estão certos também mas meu gato os devora assim mesmo. Estou tentando ensinar-lhe uma coisa, Richard. Não quero que você caia nas garras dele.
Richard descruzou os braços e suspirou.
— Eu não gosto, mas compreendo. Como você sempre diz, nada é fácil. Embora tudo isso seja interessante, não me vai impedir de fazer o que devo, o que acredito ser a coisa certa. Então, que negócio é esse de pagar um preço pelo uso da Espada da Verdade?
Outra vez Zedd espetou o peito de Richard com o dedo magro.
— O pagamento é a dor de ver todo o mal que existe em nós, todos os defeitos, todas as coisas de que não gostamos de ver em nós mesmos ou de admitir que existem. E você vê o bem em quem você matou, sofre pela culpa do que fez. — Zedd balançou a cabeça tristemente. — Por favor, acredite, Richard, que a dor não vem só de você, porém, o mais importante vem da magia, extremamente poderosa, uma dor extremamente poderosa. Não a subestime. Ela é real e castiga seu corpo e sua alma. Você a viu em Kahlan e foi por matar uma árvore. Se fosse um homem, teria sido profunda. Por isso a ira é tão importante. A raiva é a única armadura que você tem contra a dor. Ela dá uma certa proteção. Quanto mais forte o inimigo, maior a dor. Contudo, quanto mais forte a raiva, mais forte é o escudo. Faz com que você se importe menos com a verdade do que fez. Em alguns casos, é suficiente para não sentir a dor. Por isso, as coisas horríveis que eu disse para Kahlan, coisas que ferem, e a fiz sentir uma raiva imensa. Foi para protegê-la quando ela usou a espada. Você vê porque eu não permitiria que você a usasse se não fosse capaz de usar sua raiva? Estaria indefeso perante a magia e ela o faria em pedaços.
Richard estava um pouco assustado com o que viu nos olhos de Kahlan, depois que ela usou a espada, mas não se deixou dissuadir. Olhou para as montanhas da fronteira. Elas se destacavam com seu tom rosa-pálido à luz do sol poente. Atrás delas, a noite chegava do leste. A noite se aproximava deles. Precisava encontrar um caminho para o outro lado da fronteira, para a escuridão. A espada o ajudaria, era isso que importava. Havia muita coisa em jogo. Tudo na vida tem seu preço, ele pagaria esse preço.
O velho amigo lhe pôs as mãos nos ombros e olhou nos seus olhos. A expressão de Zedd era de alerta soturno.
— Agora preciso dizer uma coisa de que você não vai gostar. — Apertou os ombros de Richard. — Não pode usar a Espada da Verdade em Darken Rahl.
— O quê?
Zedd o sacudiu.
— Ele é muito poderoso. A magia de Orden o protege durante esses anos de procura. Se você tentar usar a espada, estará morto antes que ela o alcance.
— Isso é loucura! Primeiro você quer que eu seja o Seeker e aceite a espada e agora diz que não posso usá-la — Richard estava furioso. Sentia-se enganado.
— Só contra Rahl, ela não funciona! Richard, eu não fiz a magia, só sei como funciona. Darken Rahl também sabe. Ele pode tentar fazer com que você use a espada contra ele. Sabe que, se fizer isso, você morre. Se se deixar dominar pela raiva e usar a espada contra ele, Rahl vencerá. Você estará morto e ele terá as caixas.
Kahlan franziu a testa, frustrada.
— Zedd, concordo com Richard. Isso faz com que seja impossível. Se ele não pode usar sua arma mais poderosa, então...
Zedd a interrompeu: — Não! Isto — bateu de leve na cabeça de Richard com a mão fechada —, esta é a arma mais importante de um Seeker. — Espetou o peito de Richard com o dedo comprido. — E esta.
Os três ficaram em silêncio por algum tempo.
— O Seeker é a arma — disse Zedd enfaticamente. — A espada é apenas um instrumento. Você pode encontrar outro meio. Precisa encontrar.
Richard pensou que devia ficar contrariado, zangado, frustrado, esmagado, mas não ficou. Eliminou suas primeiras opiniões e refletiu além delas. Sentia-se estranhamente calmo e determinado.
— Lamento, meu caro. Eu gostaria de poder mudar a magia, mas eu...
Richard pôs a mão no ombro de Zedd.
— Tudo bem, meu amigo. Você tem razão. Devemos deter Rahl. É isso que importa. Tenho de saber a verdade para conseguir e você me deu a verdade. Agora depende de mim como usá-la. Se conseguirmos uma das caixas, a justiça se encarregará de Rahl. Eu não preciso ver. Só preciso saber que foi feito. Eu disse que não seria um assassino e não serei. A espada será valiosa, tenho certeza, mas, como você disse, é só um instrumento e é assim que eu a usarei. A magia da espada não é um fim. Não posso cometer esse erro, do contrário serei um falso Seeker.
À luz do fim do dia, Zedd bateu de leve e afetuosamente no ombro de Richard.
— Você compreendeu, meu jovem. Tudo. — Um largo sorriso iluminou seu rosto. — Escolhi bem o Seeker. Posso me orgulhar disso. — Richard e Kahlan riram.
O sorriso de Kahlan desapareceu.
— Zedd, eu cortei a árvore que você plantou em memória de sua mulher. Isso me preocupa. Sinto profundamente ter feito isso.
— Não sinta, minha cara. A lembrança dela nos ajudou. Ela ajudou a mostrar a verdade ao Seeker. Nenhum outro tributo é mais apropriado.
Richard não os ouvia. Olhava para o leste, para o muro maciço das montanhas, procurando soluções. Passar para o outro lado, ele pensava, passar para o outro lado sem cruzar a fronteira. Como? E se fosse impossível? Se não houvesse qualquer caminho sem atravessar a fronteira? Ficariam presos ali, enquanto Darken Rahl procurava as caixas? Morreriam sem nenhuma chance? Desejou ter mais tempo e menos limitações. Censurou-se por estar desejando e não pensando.
Se ao menos soubesse que podia ser feito, podia pensar em como fazer. Alguma coisa no fundo de sua mente queria vir à tona, insistindo em afirmar que ele conhecia a verdade. Havia um meio, tinha de haver. Se ao menos soubesse que era possível...
A noite chegou viva, repleta de sons. Sapos coaxavam nos lagos e nos regatos, pássaros noturnos piavam nas árvores e os insetos se moviam na relva. Das montanhas distantes, vinha o uivo dos lobos, ecoando lamentoso e soturno contra a parede escura dos montes. De algum modo, tinham de atravessar aquelas montanhas, atravessar o desconhecido.
As montanhas eram como a fronteira, ele pensou. Não se podiam atravessá-las, mas era possível ir para outro lado. Era só encontrar uma passagem, um desfiladeiro. Seria possível? Existiria uma passagem?
— Para onde você vai, meu jovem?
— Para Midlands — respondeu Richard, virando a cabeça para trás.
Só no meio do segundo prato de cozido, Zedd parou de comer o tempo suficiente para falar.
— Então, qual é o seu plano? Existe mesmo um caminho para o outro lado da fronteira?
— Existe.
— Tem certeza? Como é possível? Como podemos passar para o outro lado sem atravessar a fronteira?
Richard sorriu, mexendo o cozido com a colher.
— Você não precisa se molhar para atravessar um rio.
A luz do lampião tremeluzia nos rostos de Kahlan e Zedd. Kahlan jogou um pedaço de carne para o gato, que esperava ao seu lado. Zedd comeu outra fatia de pão antes de perguntar: — E como você sabe que há um caminho?
— Há um caminho. Isso é tudo que importa.
Zedd disse, com ar inocente: — Richard — comeu mais duas colheradas de cozido —, somos seus amigos. Não há segredos entre nós. Pode nos contar.
Richard olhou dos grandes olhos verdes para os do mago e riu alto.
— Estranhos já me disseram mais sobre eles mesmos.
Zedd e Kahlan recuaram instintivamente e se entreolharam, mas não ousaram repetir a pergunta.
Conversaram, enquanto comiam, sobre o que precisavam levar, o quanto podiam fazer para se preparar em tão curto tempo e quais eram suas prioridades. Fizeram uma lista de tudo que podiam lembrar, cada um contribuindo com o que achava útil. Tinham muito que fazer em pouco tempo. Richard perguntou a Kahlan se ela viajava freqüentemente por Midlands. Ela disse que era quase tudo que fazia.
— E você usa esse vestido quando viaja?
— Uso — ela hesitou. — As pessoas me reconhecem por ele. Não preciso ficar nos bosques. Aonde quer que eu vá, as pessoas sempre providenciam comida e um lugar para eu ficar e qualquer coisa de que eu possa precisar.
Richard imaginou por que. Não perguntou, mas sabia que o vestido era mais do que uma coisa comprada em uma loja.
— Bem, com nós três sendo caçados, acho que não queremos ser reconhecidos. Creio que devemos ficar o mais longe possível das pessoas, procurar os caminhos nos bosques. — Kahlan e Zedd concordaram. — Precisamos arranjar roupas de viagem para você, roupas próprias para andar na floresta, mas não temos nada que sirva. Precisamos encontrar alguma coisa no caminho. Eu tenho uma capa com capuz. Por enquanto servira para aquecê-la.
— Ótimo — disse ela, sorrindo. — Estou cansada de sentir frio e sei bem que um vestido não é a roupa própria para andar na floresta.
Kahlan terminou antes deles e pôs no chão o prato com o que tinha sobrado, para o gato. O gato parecia ter o mesmo apetite que Zedd e começou a comer antes que o prato chegasse ao chão.
Falaram sobre cada item que iam levar e planejaram como iam se arranjar sem outros. Não podiam prever quanto tempo duraria a viagem, mas Westland era um lugar grande e Midlands maior ainda. Richard gostaria de poder ir à sua casa, porque costumava sair para longas viagens e tinha as provisões necessárias, mas era muito arriscado. Preferia procurar as coisas de que precisavam em outro lugar, ou passar sem elas, a enfrentar o que o esperava lá. Não sabia onde iam passar para o outro lado da fronteira, mas isso não o preocupava. Tinha ainda toda a manhã para pensar. Bastava o alivio de saber que havia um caminho.
O gato levantou a cabeça. Atravessou a metade da distância para a porta e parou, com o pêlo das costas eriçado. Todos notaram e ficaram em silêncio. Havia luz de fogo na janela, mas não era da lareira. Vinha de fora.
— Sinto o cheiro de piche queimado — disse Kahlan.
Num instante, os três ficaram de pé. Richard apanhou a espada das costas da cadeira, quase antes de se levantar. Foi até a janela, mas Zedd não perdeu tempo e correu para a porta, com Kahlan atrás. Richard viu vagamente archotes antes de também correr para a porta.
Espalhados na relva alta na frente da casa, havia um grupo de uns cinqüenta homens, alguns com archotes, mas a maioria com armas primitivas, machados, forcados, foices ou cabos de machados. Todos com roupas de trabalho. Richard reconheceu muitos deles, bons homens, honestos, trabalhadores, homens de família. Mas naquela noite não pareciam bons. Pareciam furiosos. Zedd ficou no centro da entrada, com as mãos na cintura, sorrindo para eles, a luz vermelha dos archotes tingindo de rosa seus cabelos brancos.
— O que é isto, rapazes? — perguntou ele.
Os homens confabularam em voz baixa e vários deles deram um passo a frente. Richard conhecia o que falou em nome dos outros.
— Estamos com problemas. Problemas causados por magia! E você é o responsável. Você é um feiticeiro.
— Um feiticeiro? — perguntou Zedd, atônito. — Um feiticeiro?
— Foi o que eu disse, um feiticeiro. — Os olhos escuros de John se voltaram para Richard e Kahlan. — Vocês não têm nada a ver com isso. Nosso negócio é com o velho. Vão embora ou terão a mesma sorte que ele. — Richard não podia acreditar que homens que ele conhecia estivessem dizendo aquilo.
Kahlan se adiantou e se pôs na frente de Zedd; as pregas do seu vestido adejavam em volta das pernas quando ela parou. Com os braços ao lado do corpo e os punhos fechados, ela avisou ameaçadoramente: — Vão embora, antes que venham a se arrepender do que fizeram.
Os homens se entreolharam, alguns com um sorriso de mofa, uns poucos fazendo comentários grosseiros em voz baixa, outros rindo. Kahlan ficou firme, olhando para eles. O riso emudeceu.
— Então — disse John, com desprezo — temos de lidar com dois feiticeiros. — Os homens aplaudiram gritando e brandindo suas armas. John, com seu rosto redondo e gorducho, sorriu desafiadoramente.
Lenta e deliberadamente, Richard se pôs na frente de Kahlan e, levando uma das mãos para trás, fez Zedd e Kahlan recuar. Com voz calma e amistosa, ele disse: — John, como vai Sara? Há algum tempo não vejo vocês. — John não respondeu. Richard olhou para os outros. — Conheço muitos de vocês, sei que são boas pessoas. Sei que não querem fazer isso. — Olhou outra vez para John. — Leve seus homens e voltem para suas famílias. Por favor, John.
John apontou o cabo do machado para Zedd.
— Esse velho é um feiticeiro! Vamos acabar com isso. — Apontou para Kahlan. — E ela! A não ser que você queira a mesma coisa, Richard, vá embora! — Todos gritaram, concordando. Os archotes chiavam e estalavam e o ar cheirava a piche queimado e a suor. Quando viram que Richard não ia embora, começaram a avançar.
Richard desembainhou a espada. Os homens recuaram um pouco quando o zunido metálico encheu o ar. John continuou firme, muito vermelho e furioso. O som cessou e só se ouvia o chiar dos archotes. Começaram os murmúrios, dizendo que Richard estava do lado dos feiticeiros.
John atacou, brandindo o cabo do machado para Richard. A espada cintilou no ar, partindo a arma de John com um estalo. Só sobraram alguns centímetros do cabo na mão de John. O pedaço cortado voou para longe, no escuro da noite, caindo em algum lugar com um baque surdo.
John ficou paralisado, um pé no chão, o outro na varanda, com a ponta da Espada da Verdade encostada debaixo do queixo. A lâmina polida brilhou à luz dos archotes. Richard, retesando os músculos para se controlar, inclinou-se para a frente e ergueu o rosto de John com a ponta da espada. Em voz muito baixa, mas mortalmente gelada, que fez John prender a respiração, ele disse: — Mais um passo, John, e sua cabeça vai se juntar ao cabo do machado. — John não se moveu nem respirou. — Para trás — sibilou Richard.
John obedeceu, mas quando voltou para o meio dos companheiros, recobrou a coragem.
— Não pode nos deter, Richard, estamos aqui para salvar nossas famílias.
— Salvar do quê? — exclamou Richard. Apontou a espada para outro homem. — Frank! Quando sua mulher ficou doente, não foi Zedd quem deu a ela uma poção que a curou? — Apontou a espada para outro. — E você, Bill, não vinha perguntar a Zedd sobre as chuvas, querendo saber quando viriam para que seus homens pudessem colher o que plantaram? — Virou a espada para seu atacante. — E você, John, quando sua filhinha se perdeu na floresta, não foi Zedd quem leu as nuvens a noite inteira, depois saiu, encontrou-a e a trouxe de volta, a salvo, para você e Sara? — John e alguns outros abaixaram a cabeça. Richard, zangado, embainhou a espada. — Zedd tem ajudado a maioria de vocês. Ajudou a curar suas febres, encontrou pessoas perdidas e partilhou com vocês tudo que tem.
Alguém gritou lá de trás: — Só um feiticeiro podia fazer tudo isso.
— Ele nunca fez mal a nenhum de vocês! Ajudou quase todos! Por que vocês iam querer fazer mal a um amigo?
Por alguns minutos, os homens resmungaram confusamente, mas logo voltaram ao ataque.
— A maior parte do que ele fez foi magia — gritou John. — Magia de um feiticeiro! Ninguém das nossas famílias está a salvo com ele por perto.
Antes que Richard pudesse responder, Zedd o puxou pela manga. Richard se voltou para o rosto sorridente do velho homem. Zedd não parecia nem um pouco preocupado. Ao contrário, parecia estar se divertindo a valer.
— Impressionantes — murmurou ele. — Impressionantes vocês dois. Mas, se me der licença, quer deixar que eu trate disso daqui para a frente? — Levantou uma sobrancelha e voltou-se para os homens. — Boa noite, senhores. E um prazer ver vocês todos.
Alguns deles retribuíram o cumprimento. Outros levantaram os chapéus, embaraçados. — Se quiserem ter a bondade, antes de me despachar, deixem-me conversar por um momento com meus dois amigos aqui. — Todos assentiram com a cabeça. Zedd levou Kahlan e Richard um pouco para trás, para longe dos homens e se inclinou para eles.
— Uma lição sobre poder, meus amigos. — Encostou um dedo magro no nariz de Kahlan. — Muito pequena. — Então, encostou o dedo no nariz de Richard. — Demais. — Encostou o dedo no próprio nariz e disse: — A coisa certa. — Pôs as mãos no queixo de Kahlan. — Se eu deixasse você tratar disso, minha cara, sepulturas seriam cavadas esta noite. As nossas três, entre outras. Mas, mesmo assim, foi muito nobre. Obrigado por se interessar por mim. — Pôs a mão no ombro de Richard. — Se eu deixasse que você tratasse disso, muitas sepulturas seriam abertas e só nós sobraríamos para fazer esse trabalho. Sou velho demais para cavar tantos buracos no solo e temos coisas mais importantes para fazer. Mas você também foi muito nobre, comportou-se honrosamente. — Bateu de leve no ombro de Richard e em seguida pôs um dedo debaixo do queixo de cada um.
— Agora quero que me deixem tratar deste assunto. O problema não é o que vocês estão dizendo a esses homens. O problema é que eles não estão escutando. Ê preciso ter toda a atenção deles para ser ouvido. — Ergueu uma sobrancelha e olhou de um para o outro. — Observem e aprendam o que for possível. Ouçam minhas palavras; elas, porém, não terão efeito algum sobre vocês. — Tirou os dedos dos queixos deles e, sorrindo, dirigiu-se aos homens.
— Senhores! John, como vai sua filhinha?
— Ela está bem — murmurou ele —, mas uma das minhas vacas teve um bezerro com duas cabeças.
— Foi mesmo? E como você acha que isso aconteceu?
— Acho que aconteceu porque você é um feiticeiro!
— Pronto Você disse isso outra vez. — Zedd balançou a cabeça confuso. — Eu não compreendo Os senhores querem acabar comigo porque você acha que tenho magia ou sua intenção é simplesmente me humilhar dizendo que sou mulher?
Us homens ficaram confusos.
— Não sabemos do que está falando — alguém disse.
— Bem é simples. Mulheres são feiticeiras. Os homens são chamados de bruxos ou mágicos. Se me chamam de feiticeiro, estão dizendo que sou mulher. Então, o que vai ser? Mulher ou bruxo?
Mais discussão confusa, então John disse, zangado: — Estamos dizendo que você é um bruxo e pretendemos tirar sua pele por isso.
— Minha nossa! — disse Zedd, batendo com a ponta do dedo no lábio inferior. — Ora, eu não tinha idéia de que vocês eram tão corajosos. Na verdade, corajosos demais.
— Por que diz isso? — perguntou John.
Zedd deu de ombros.
— Bem, o que vocês pensam que um bruxo é capaz de fazer?
Mais confabulação. Começaram a gritar sugestões. Ele pode fazer vacas com duas cabeças provocar chuva, encontrar pessoas perdidas, fazer crianças nascerem mortas, tornar fracos homens fortes e fazer com que suas mulheres os abandonem. Mas isso não parecia suficiente, por isso novas idéias eram gritadas. Fazer a água ferver, aleijar as pessoas, transformar um homem em sapo, matar com um olhar, evocar demônios e, em geral, tudo o mais.
Zedd esperou que acabassem e levantou os braços para eles
— Aí está. Exatamente como eu disse, vocês são os homens mais corajosos que já vi. Pensar que armados apenas com forcados e cabos de machados vocês estejam disposto a lutar contra um bruxo que tem todos esses poderes. Minha nossa, quanta coragem! — Zedd calou-se e balançou a cabeça, admirado. Os homens começaram a ficar preocupados.
Zedd continuou então, num tom monótono e arrastado, relacionando as coisas que um bruxo podia fazer, descrevendo com detalhes uma variedade de coisas, desde frivolidades, até coisas terríveis. Os homens, petrificados, ouviam atentamente. Ele continuou a falar por mais de meia hora. Richard e Kahlan escutavam, mudando constantemente de posição, entediados e cansados. Os homens, de olhos arregalados nem piscavam. Pareciam estátuas; a dança das chamas dos archotes era o único movimento no meio deles.
O estado de espírito mudou. Não havia mais raiva. Agora só havia medo A voz do mago mudou também. Não era mais amável e gentil, nem mesmo monótona. Era dura, ameaçadora.
— Assim, homens, o que acham que devemos fazer agora?
— Achamos que você deve nos deixar ir para casa, ilesos — veio a resposta. Todos balançaram a cabeça, concordando.
O mago sacudiu um dedo no ar na frente deles.
— Não, eu não acho. Têm de compreender, vocês vieram até aqui para me matar. Minha vida é a coisa mais preciosa que eu tenho e vocês pretendiam tirá-la. Não posso deixar isso sem castigo. — Murmúrios de lamento e medo subiram da multidão. Zedd se adiantou para a beirada da varanda. Os homens recuaram. — Como castigo por tentarem tirar a minha vida, eu tiro de vocês não suas vidas, mas aquilo que é mais precioso, mais querido, mais valioso! — Com um gesto largo, passou a mão no ar, acima das cabeças deles. Os homens prenderam a respiração. — Pronto, está feito — declarou ele. Richard e Kahlan se desencostaram da parede.
Por um momento, ninguém se mexeu. Então, um dos homens enfiou a mão no bolso e começou a procurar alguma coisa.
— Meu ouro desapareceu.
Zedd revirou os olhos.
— Não, não, não. Eu disse a coisa mais preciosa, mais querida. Aquilo de que você mais se orgulha.
Todos ficaram confusos por um momento. Então, algumas sobrancelhas se ergueram com alarme. Outro homem enfiou a mão no bolso e procurou, com os olhos arregalados de medo. Ele gemeu e desmaiou. Os que estavam perto dele se afastaram. Logo outros estavam pondo a mão no bolso, procurando cautelosamente. Mais gemidos e lamentos e logo todos seguravam as virilhas, em pânico. Zedd sorriu satisfeito. A desordem se instalou entre eles. Homens pulavam para cima e para baixo, chorando, agarrando a virilha, correndo em círculos, pedindo socorro, caindo no chão e soluçando,
— Agora dêem o fora daqui. Fora! — gritou Zedd. Virou-se para Richard e Kahlan com um sorriso maroto. Piscou para eles.
— Por favor, Zedd — pediam alguns homens. — Compreendemos agora que Richard estava certo. Você tem sido nosso amigo. Nunca nos fez mal algum. — Todos gritaram concordando. — Você só nos ajudou e nós fomos uns idiotas. Queremos pedir perdão. Sabemos que, como Richard disse, estávamos errados, que o uso da magia não faz de você um homem mau. Por favor, Zedd, não deixe de ser nosso amigo agora. Por favor, não nos deixe deste jeito. — Todos pediram perdão.
Zedd bateu com o dedo no lábio inferior.
— Bem... — Olhou para cima, pensando — acho que posso fazer com que as coisas voltem a ser como eram. — Os homens se aproximaram. — Mas só se todos aceitarem meus termos. Acho que são bastante justos. — Eles estavam prontos para concordar com qualquer coisa. — Muito bem, então. Se vocês concordarem em dizer para todos que o uso da magia não torna a pessoa má, que o que conta são seus atos e se forem para casa, para suas famílias e disserem que quase cometeram um erro terrível esta noite r explicarem por que estavam errados, então todos ficarão como antes. Não é justo?
Todos concordaram que era. — Mais do que justo — disse John. — Obrigado, Zedd. — Os homens começaram a ir embora, rapidamente. Zedd ficou olhando.
— Ah, senhores, mais uma coisa — eles pararam —, por favor, apanhem suas ferramentas do chão. Sou um homem velho e posso tropeçar e me machucar. — Olhando para ele cautelosamente, começaram a apanhar as armas, depois andaram um pouco e saíram correndo.
Richard ficou em um lado de Zedd, Kahlan no outro. Zedd pôs as mãos na cintura, vendo os homens que se afastavam. — Idiotas — murmurou ele. Estava escuro. A única luz vinha da janela da frente da casa atrás deles e Richard mal podia ver o rosto de Zedd, mas sabia que ele não estava sorrindo. — Meus amigos — disse o velho homem —, foi um cozido preparado com mão invisível.
— Zedd — perguntou Kahlan, desviando os olhos do rosto dele —, você fez mesmo... bem, você sabe, desaparecer a masculinidade deles?
Zedd riu baixinho.
— Isso seria uma mágica e tanto! Muito além das minhas possibilidades. Não, minha cara, foi só um truque, eu só os fiz pensar que tinha feito isso. Simplesmente os convenci da verdade da coisa, deixei tudo por conta de suas mentes.
Richard voltou-se para o mago.
— Um truque? Só um truque? Pensei que você tivesse usado magia de verdade. — Parecia desapontado.
Zedd deu de ombros.
— Às vezes um truque bem feito pode funcionar melhor do que a magia. Na verdade, eu diria que um bom truque é magia verdadeira.
— Assim mesmo, foi apenas um truque.
O mago levantou um dedo.
— Resultados, Richard. É isso que conta. Pelo seu modo, todos eles teriam perdido a cabeça.
Richard sorriu.
— Zedd, acho que alguns deles teriam preferido isso ao que você fez. — Zedd riu. — Então era isso que você queria nos ensinar? Que um truque pode funcionar tão bem quanto a magia?
— Sim, mas também algo mais importante. Como eu disse, foi um cozido preparado com mão invisível, a mão de Darken Rahl. Mas ele cometeu um erro esta noite. É um erro usar força insuficiente para terminar um trabalho. Fazendo isso, você dá ao inimigo uma segunda chance. Essa é a lição que quero que aprendam. Aprendam bem, vocês podem não ter uma segunda chance quando chegar sua hora.
Richard perguntou, intrigado: — Então por que ele fez isso?
Zedd deu de ombros.
— Eu não sei. Talvez porque ainda não tenha poder suficiente em Westland, mas foi também um erro tentar porque só serviu para nos prevenir.
Entraram na casa. Tinham muito que fazer antes de dormir. Richard começou a rever a lista mentalmente, mas foi distraído por uma sensação estranha.
De repente, como um jorro de água fria, compreendeu o que estava sentindo. Richard conteve uma exclamação de alarme. Com os olhos arregalados, agarrou o manto de Zedd.
— Temos de sair daqui! Agora mesmo!
— O quê?
— Zedd! Darken Rahl não é tolo. Ele quer se sentir a salvo, confiante! Ele sabia que somos bastante inteligentes para nos livrar daqueles homens, de um modo ou de outro. Na verdade, ele queria que isso acontecesse, queria que nos congratulássemos com nossa esperteza enquanto ele nos atacava pessoalmente. Ele não tem medo de você. Você disse que ele é mais forte do que um mago, não tem medo da espada e nem de Kahlan. Está vindo para cá neste momento, esta noite! Darken Rahl não cometeu um erro, esse era o seu plano. Você mesmo disse, às vezes um truque é melhor do que a magia. É o que ele está fazendo. Foi tudo um truque para nos distrair!
Kahlan empalideceu.
— Zedd, Richard tem razão. É assim que Rahl pensa, a marca da maneira como ele age. Ele gosta de fazer as coisas de um modo que você não espera. Temos de sair daqui agora mesmo.
— Maldição! Eu fui um velho tolo. Você está certa. Devemos sair agora, mas não posso ir sem a minha rocha. — Foi para o lado da casa.
— Zedd, não temos tempo!
O velho homem já subia a colina, correndo no escuro, o manto ondulando atrás dele. Kahlan entrou na casa com Richard. Tinham se deixado embalar pela preguiça. Richard não podia acreditar que tivesse subestimado Rahl daquele modo. Apanhando a mochila no canto da lareira, correu para seu quarto, certificando-se de que o dente estava pendurado no seu pescoço. Voltou com o manto que usava na floresta. Pôs o manto sobre os ombros de Kahlan e olhou rapidamente em volta, para ver se podia levar mais alguma coisa, mas não tinha tempo para pensar em nada que valesse suas vidas, por isso segurou o braço dela e foram para a porta. Zedd já os esperava ofegante na relva, na frente da casa.
— E a rocha? — perguntou Richard. De modo nenhum Zedd podia erguê-la, muito menos carregá-la.
— No meu bolso — disse o mago, com um sorriso. Richard não tinha tempo para pensar em como isso era possível. O gato apareceu de repente, percebendo a urgência, roçando nas pernas deles. Zedd o pegou no colo. — Não posso deixar você aqui, Gato. Problemas estão chegando. — Abriu a mochila de Richard e pôs o gato dentro.
Com uma sensação estranha, Richard olhou em volta, esquadrinhando a escuridão, à procura de alguma coisa fora do lugar, alguma coisa escondida. Não viu nada, mas sentia olhos vigiando. Kahlan perguntou:
— O que foi?
Mesmo sem ter visto nada, ele sentia os olhos. Devia ser o medo, pensou.
— Nada. Vamos.
Richard os levou para uma área com poucas árvores, sua conhecida, que sabia atravessar até com os olhos vendados, e seguiram para a trilha que os levaria para o sul. Moviam-se rapidamente em silêncio, exceto Zedd, que ocasionalmente resmungava o quanto fora tolo. Depois de algum tempo, Kahlan observou que ele se censurava demais.
Eles todos foram enganados e todos sentiam a culpa, mas conseguiram escapar e era isso que importava.
Era uma trilha fácil, quase uma estrada, e os três caminhavam lado a lado, Richard no meio com Zedd à direita e Kahlan à esquerda. O gato, com a cabeça para fora da mochila, olhava para todo lado. Gostava de viajar assim desde pequeno. O luar era suficiente para iluminar o caminho. Richard viu alguns pinheiros caprichosos destacando-se contra o céu, mas não podiam parar. Tinham de sair dali. A noite estava fria, mas o esforço do passo rápido o aquecia. Kahlan estava envolta na capa com capuz.
Depois de mais ou menos uma hora, Zedd os fez parar. Tirou do bolso um punhado de pó e o jogou para trás, na trilha. Fagulhas prateadas saltaram de sua mão tilintando, até desaparecerem no escuro.
Richard olhou para trás.
— O que é isso?
— Só um pouco de poeira mágica. Cobrirá nossas pegadas e Rahl não vai saber para onde fomos.
— Ele tem ainda a nuvem para nos seguir.
— Sim, mas isso só indica uma área geral. Se continuarmos a andar, não servirá muito para ele. Só quando você pára, como parou na minha casa, ele pode localizá-lo.
Continuaram para o sul, passando por pinheiros perfumados e pela área alta das montanhas. No alto de uma subida, ouviram um rugido e viraram para trás. A distância, além da floresta, viram uma imensa coluna de fogo subindo para o céu, chamas amarelas e vermelhas iluminando o escuro da noite.
— É a minha casa. Darken Rahl está lá. — Zedd sorriu. — Parece que está zangado.
Kahlan tocou no ombro dele.
— Eu sinto muito, Zedd.
— Não se preocupe, minha cara. É só uma velha casa. Poderíamos ter sido nós.
Continuaram a andar.
— Você sabe para onde estamos indo? — perguntou Kahlan a Richard.
Bruscamente, Richard percebeu que sabia.
— Sei — sorriu, feliz por estar dizendo a verdade.
Os três seguiram rapidamente pela trilha, nas sombras escuras da noite.
À frente, dois animais alados enormes vigiavam com olhos verdes famintos e brilhantes e então mergulharam silenciosamente em linha reta. Com as asas junto ao corpo para maior velocidade, lançaram-se nas costas da presa.
Foi o gato que o salvou. Com um berro, ele saltou por cima da cabeça de Richard fazendo-o se abaixar, não o bastante para o gar não o atingir, mas o bastante para diminuir o impacto. As garras arranharam dolorosamente suas costas e o jogaram no chão, tirando-lhe todo o ar dos pulmões. Antes que ele pudesse respirar, o gar subiu nas suas costas, impedindo que Richard pudesse pegar a espada. Quando caiu, ele viu Zedd ser atirado contra as árvores por outro gar, que agora atravessava a relva atrás dele.
Richard se preparou para as garras que ele sabia que viriam. Antes que o gar pudesse rasgar seu corpo, Kahlan, no lado da trilha, começou a atirar pedras no animal. Elas apenas ricocheteavam na cabeça do gar, mas serviram para distraí-lo por um momento. O gar rugiu, com a boca escancarada, parecendo cortar em dois o ar da noite, e manteve Richard preso como um camundongo debaixo das suas garras. Richard lutava com todas as forças para se levantar, com os pulmões queimando, ansiando por ar. Moscas de sangue picavam seu pescoço. Ele levou a mão para trás, puxando os pêlos do animal, tentando se livrar do braço nas suas costas. Pelo tamanho, ele sabia que era um gar de cauda curta, muito maior do que o de cauda longa que tinha visto antes. A espada estava debaixo dele. Espetando dolorosamente sua barriga. Não conseguia alcançá-la. Tinha a impressão de que as veias do seu pescoço iam se romper.
Richard começava a perder a consciência. Os sons dos gritos e dos rugidos do gar ficavam cada vez mais fracos. Kahlan continuava a jogar pedras e chegou perto demais. O gar estendeu um dos braços com incrível rapidez e a agarrou pelos cabelos. Com isso, o animal mudou o peso do corpo o suficiente para que Richard pudesse respirar, mas não se mover. Kahlan gritou.
Surgindo do nada, o gato, todo ele dentes e unhas, pulou para o rosto do gar. O gato uivava, arranhando furiosamente os olhos do animal. Com um dos braços seguindo Kahlan, ele ergueu o outro para afastar o gato.
Richard rolou para o lado e se levantou, desembainhando a espada. Kahlan gritou outra vez. Richard brandiu a espada furiosamente e cortou o braço que a segurava. Ela caiu para trás, livre. Urrando, o gar atingiu Richard com as costas da outra mão antes que ele tivesse tempo de erguer outra vez a espada. Com a força do golpe, Richard voou e caiu de costas.
Sentou-se, sentindo o mundo girar e oscilar. A espada não estava mais na sua mão, atirada no meio da relva. O gar, no centro da trilha, gritava de dor e de raiva, com o sangue jorrando do que restava do seu braço. Olhos verdes cintilantes procuravam freneticamente objeto do seu ódio. Fixaram-se em Richard. Não viu Kahlan em lugar algum.
À sua direita, nas árvores, um flash de luz branca intensa iluminou tudo. O som violento de uma explosão martelou dolorosamente seus ouvidos e o deslocamento de ar o atirou contra uma árvore e derrubou o gar. Chamas se ergueram entre as árvores. Lascas gigantescas de madeira e outras coisas passaram voando, deixando um rastro de fumaça.
Richard começou a procurar freneticamente a espada, quando o gar se levantou com um berro. Richard tateou o solo, desesperado e quase cego com a claridade da explosão. Podia ver o gar se aproximando. Sua fúria se acendeu. Podia senti-la na espada também. A magia da espada chegou a ele, chamada por seu dono. Richard a chamou, ansioso para tocá-la. Sabia exatamente onde ela estava, como se a tivesse nas mãos Ele foi para o outro lado da trilha.
No meio do caminho, o gar o atingiu com um pontapé tão forte que Richard viu as coisas passando mas não compreendeu o que eram. Só tinha certeza de que, cada vez que respirava, sentia uma dor intensa no lado esquerdo. Não sabia onde estava a trilha nem onde ele estava, em relação a ela. Moscas de sangue batiam no seu rosto. Não conseguia orientar-se. Mas sabia onde estava a Espada da Verdade.
Richard mergulhou para ela.
Por um instante, seus dedos tocaram na espada. Por um instante, ele pensou ter visto Zedd. Então o gar o segurou. Levantou Richard do chão com o braço direito e passou as asas repulsivas em volta dele, segurando-o muito junto a ele, com os pés balançando no ar. Richard gritou de dor no lado esquerdo do corpo. Olhos verdes incandescentes fitaram os dele e o animal estalou a boca enorme, mostrando a ele seu destino. A boca se abriu, Richard sentiu o hálito fétido no rosto e viu a goela escura. Presas molhadas brilharam à luz da lua.
Richard golpeou com os pés, com toda a força o toco do braço cortado do gar. O animal lançou a cabeça para trás, urrou de dor e o soltou.
Zedd apareceu do meio das árvores, a uns doze metros do gar. Richard, de joelhos, pegou a espada. Zedd estendeu a mão para a frente. Fogo, o fogo do mago, emanou dos seus dedos e voou no ar, sibilando estridentemente. O fogo cresceu e rolou, iluminando tudo, transformando-se em uma bola azul e amarela de chama líquida que gemia e se expandia, uma coisa viva. Atingiu as costas do gar com um baque surdo, delineando a silhueta do animal gigantesco contra a luz. No espaço de uma respiração, as chamas azuis e amarelas envolveram o gar. Moscas de sangue voaram como fagulhas e desapareceram. O fogo crepitava, consumindo a criatura. O gar desapareceu no calor azul. O fogo rodopiou por um momento e também se foi. O cheiro de pêlo queimado e de fumaça encheu o ar. De repente, a noite ficou quieta.
Richard deitou no chão, exausto e sentindo dor. Os arranhões nas suas costas estavam cheios de terra e de cascalhos e a dor no lado esquerdo o atormentava a cada respiração. Ele só queria ficar ali deitado, nada mais. A espada estava ainda na sua mão. Deixou que o poder da arma o envolvesse e lhe desse forças. Permitiu que a fúria o fizesse ignorar a dor.
O gato lambeu o rosto de Richard com a língua áspera e esfregou a cabeça nele.
— Obrigado, Gato — conseguiu dizer. Zedd e Kahlan apareceram. Os dois se abaixaram e seguraram seus braços para ajudá-lo a se levantar.
— Não! Vocês vão me machucar. Deixem que eu me levanto sozinho.
— Qual é o problema? — perguntou Zedd.
— O gar deu um pontapé no meu lado esquerdo. Está doendo muito.
— Deixe-me ver. — O velho homem examinou gentilmente as costelas de Richard. Richard se encolheu de dor. — Bem, não vejo qualquer osso espetado para fora. Não pode ser tão grave.
Richard tentou não rir, pois sabia que ia sentir mais dor.
— Zedd, aquilo não foi um truque. Dessa vez foi magia.
— Dessa vez foi magia — confirmou o mago. — Mas Darken Rahl deve ter visto também, se é que estava olhando. Temos de sair daqui. Fique deitado quieto, deixe-me ver se posso ajudar.
Kahlan se ajoelhou no outro lado e pôs a mão sobre a dele, a que segurava a espada, a que segurava a magia. Quando a mão dela tocou a dele, Richard sentiu uma onda de força que o sobressaltou e quase o deixou sem ar. De algum modo, sentiu que a magia o estava alertando e protegendo.
Kahlan sorriu para ele. Ela não havia sentido nada.
Zedd pôs uma das mãos sobre as costelas de Richard e, com um dedo debaixo do queixo dele, começou a falar com voz suave, calma e tranqüilizadora. Ouvindo Zedd, Richard ignorou a reação da espada ao toque de Kahlan. Seu velho amigo disse que tinha três costelas machucadas e que estava envolvendo-as com magia para proteger e reforçar os ossos até que se soldassem. Falou mais, mas as palavras pareciam não ter importância. Quando finalmente Zedd terminou, Richard teve a impressão de acordar de um sono profundo.
Ele se sentou. A dor diminuiu bastante. Ele agradeceu ao mago e ficou de pé. Pôs a espada de lado, pegou o gato e lhe agradeceu outra vez. Deu o gato a Kahlan enquanto procurava a mochila e a encontrou ao lado da trilha. Os arranhões nas costas doíam, mas trataria deles quando chegassem ao lugar para onde estavam indo. Quando os outros dois não estavam olhando, ele tirou o dente do pescoço e guardou no bolso.
Richard perguntou a Zedd e Kahlan se estavam feridos. Zedd pareceu ficar insultado com a pergunta. Insistiu em dizer que não era tão frágil quanto parecia. Kahlan afirmou que estava bem graças a ele. Richard disse que esperava jamais entrar em uma competição de atiradores de pedras com ela. Com um largo sorriso, ela pôs o gato na mochila. Depois apanhou a capa e a pôs nos ombros; Richard pensou na reação da espada quando tocada por ela.
— Acho melhor irmos — lembrou Zedd.
Depois de mais ou menos dois quilômetros, vários caminhos menores cruzavam com a trilha que seguiam. Richard os levou para um deles. O mago espalhou mais pó mágico para esconder suas pegadas. O caminho agora era estreito e eles andavam em fila indiana, com Richard na frente, Kahlan no meio e Zedd atrás. Os três olhavam para o céu uma vez ou outra. Embora fosse desconfortável, Richard caminhava com a mão no punho da espada.
Sombras passavam de um lado para outro à luz da lua, sobre a pesada porta de carvalho e suas dobradiças de ferro quando o vento curvava os galhos próximos da casa. Kahlan e Zedd não quiseram pular a cerca de estacas pontudas de madeira, por isso Richard os deixou no outro lado. Ergueu a mão para bater na porta quando um punho enorme o segurou pelos cabelos e encostou-lhe uma faca no pescoço. Richard ficou imóvel.
— Chase? — murmurou ele, esperançoso.
A mão soltou seu cabelo.
— Richard! O que está fazendo andando por aí sorrateiramente no meio da noite? Você sabe muito bem que não deve espionar a minha casa.
— Não estou andando sorrateiramente. Eu não queria acordar a casa toda.
— Você está cheio de sangue. Quanto desse sangue é seu?
— Quase todo, sinto dizer. Chase, vá abrir o portão. Kahlan e Zedd estão esperando ali adiante. Precisamos de você.
Chase, praguejando, pisando em gravetos e bolotas com os pés descalços, abriu o portão e os fez entrar na casa.
Emma Brandstone, mulher de Chase, era bondosa e agradável, sempre com um sorriso no rosto largo. Era o oposto de Chase. Emma ficaria mortificada se soubesse que havia intimidado alguém, ao passo que o dia de Chase não seria completo se isso não acontecesse. Mas Emma era igual a Chase em uma coisa: nada parecia perturbá-la ou surpreendê-la. Tipicamente, parecia perfeitamente calma àquela hora da noite, vestida com uma camisola, o cabelo grisalho preso atrás da cabeça, fazendo chá enquanto os outros se sentavam à mesa. Ela sorria como se fosse normal ter visitas cheias de sangue no meio da noite. Mas, com Chase, aquilo às vezes era normal.
Richard pendurou a mochila nas costas da cadeira, tirou o gato de dentro dela e o deu a Kahlan. Ela o pôs no colo e o gato começou a ronronar enquanto Kahlan passava a mão nas costas dele. Zedd se sentou no outro lado da mesa. Chase vestiu uma camisa e acendeu vários lampiões pendurados nas vigas de carvalho do teto. Chase tinha abatido as árvores e cortado as vigas. Os nomes dos filhos estavam gravados em uma delas. Atrás da sua cadeira havia uma lareira feita com pedras colecionadas em suas viagens através dos anos. Cada pedra tinha forma, cor e textura diferentes. Chase contava para quem quisesse ouvir de onde vinha cada pedra e qual a dificuldade que tinha encontrado para consegui-la. No centro da sólida mesa de pinho, havia uma travessa simples de madeira, cheia de maçãs.
Emma tirou a travessa com as maçãs, pôs no lugar dela o bule de chá e depois serviu as canecas. Disse para Richard tirar a camisa e virar na cadeira para ela limpar seus ferimentos, uma tarefa com a qual estava acostumada. Com uma escova dura e água com sabão, esfregou as costas dele como se estivesse limpando uma panela suja.
Richard mordeu o lábio, às vezes prendendo a respiração, e fechou os olhos com força para suportar a dor. Emma pediu desculpas por machucá-lo e disse que precisava tirar toda a sujeira para evitar que ficasse pior. Quando terminou a limpeza, bateu de leve nos ferimentos com uma toalha para enxugar e aplicou um ungüento frio enquanto Chase providenciava uma camisa limpa. Richard vestiu a camisa com alívio, pois representava uma proteção contra um novo tratamento daquele tipo.
Emma sorriu para os três visitantes.
— Alguém quer comer?
Zedd levantou a mão.
— Bem, eu gostaria de... — Richard e Kahlan olharam furiosos para ele. Zedd afundou na cadeira. — Não. Nada para nós. Obrigado.
Emma, de pé ao lado de Chase, passou a mão carinhosamente na cabeça dele. Chase, embaraçado, mal conseguia tolerar aquela manifestação pública de afeto. Finalmente, ele se inclinou para a frente, usando a desculpa de servir o chá.
Com ar preocupado, Chase empurrou o vidro de mel na mesa.
— Richard, desde que o conheço você tem um talento especial para evitar encrencas. Mas ultimamente parece que está perdendo o jeito.
Antes que Richard tivesse tempo de responder, Lee, uma das filhas de Chase, apareceu na porta, esfregando os olhos cheios de sono. Chase olhou zangado para ela. A menina fez beicinho, ameaçando chorar.
Chase suspirou.
— Você é a menina mais feia que conheço.
A ameaça de choro se transformou em um largo sorriso. Lee correu para o pai, abraçou com força as pernas dele e encostou a cabeça no seu joelho. Chase passou a mão na cabeça dela.
— Volte para a cama, menina.
— Espere — disse Zedd. — Lee, venha cá. — Ela foi para o outro lado da mesa. — Meu velho gato anda reclamando que não tem criança alguma com quem brincar. — Lee olhou para o colo de Kahlan. — Você conhece alguma criança que ele pode visitar?
A menina arregalou os olhos.
— Zedd, ele pode ficar aqui! Vai se divertir conosco!
— É mesmo? Bem, então ele ficará aqui por algum tempo.
— Muito bem — disse Emma —, agora vá para a cama.
— Emma, será que podia me fazer um favor? — perguntou Richard. — Você tem alguma roupa de viagem que Kahlan possa usar?
Emma olhou para Kahlan.
— Bem, os ombros dela são largos demais para minhas roupas e as pernas muito compridas, mas as meninas mais velhas têm coisas que podem servir muito bem. — Sorriu para Kahlan e estendeu a mão. — Venha, querida, vamos ver o que podemos arranjar.
Kahlan deu o Gato a Lee e aceitou a mão da menina.
— Espero que Gato não os incomode. Ele insiste em dormir na cama.
— Não tem problema — disse Lee, animada —, está tudo bem.
Saíram da sala e Emma sensatamente fechou a porta. Chase tomou um gole de chá.
— E então?
— Bem, você sabe a conspiração de que meu irmão está falando? É pior do que ele imagina.
— É mesmo — disse Chase, evasivamente.
Richard desembainhou a Espada da Verdade e a pôs na mesa, entre os dois. A lâmina cintilou. Chase se inclinou para a frente, com os cotovelos na mesa e levantou a espada com as pontas dos dedos. Rolou a lâmina nas palmas, examinando com atenção, passando os dedos na palavra Verdade gravada no punho e de cada lado da lâmina, verificando o corte. Não demonstrou nada além de curiosidade.
— Não é um nome comum para uma espada, mas geralmente o nome é gravado na lâmina. Eu nunca vi gravado no punho. — Chase esperou que alguém dissesse algo a respeito.
— Chase, você já viu esta espada antes — censurou Richard. — Você sabe o que é.
— Eu vi. Mas nunca tão de perto. — Ergueu os olhos escuros e intensos. — O que quero saber é o que você está fazendo com ela.
Richard olhou para ele com a mesma intensidade.
— A espada me foi dada por um grande e nobre mago.
Chase pareceu intrigado. Olhou para Zedd.
— Qual é a sua parte nisso, Zedd?
Zedd se inclinou para a frente, com um leve sorriso.
— Eu dei a espada a ele.
Chase recostou na cadeira, balançando a cabeça devagar.
— Louvados sejam os espíritos — murmurou ele. — Um verdadeiro Seeker. Finalmente.
— Não temos muito tempo — disse Richard —, preciso saber algumas coisas sobre a fronteira.
Com um suspiro, Chase se levantou e foi até a lareira. Apoiou um braço na moldura e olhou para as chamas. Richard e Zedd esperaram, enquanto o homem grande passava a mão na madeira nua da moldura da lareira, como se estivesse procurando as palavras certas.
— Richard, você sabe qual é o meu trabalho?
Richard deu de ombros.
— Manter as pessoas longe da fronteira, para o bem delas.
Chase balançou a cabeça.
— Você sabe como se livrar de lobos?
— Caçando-os, acho.
O guarda da fronteira balançou a cabeça outra vez.
— Com isso podemos pegar alguns, mas outros nascerão e, no fim, você terá a mesma quantidade deles. Se quiser mesmo ter menos lobos, você caça o alimento deles. Pega coelhos em armadilhas, por assim dizer. Se houver menos alimento, menos filhotes nascerão. Isso resulta em menos lobos. Esse é o meu trabalho. Eu caço coelhos.
Richard sentiu uma onda de frio.
— A maioria das pessoas não entende a fronteira, nem o que fazemos. Pensam que é apenas pôrecm prática uma lei idiota. Muitos têm medo da fronteira, em geral os velhos. Outros pensam que sabem o que estão fazendo e vão até lá para caçar ilegalmente. Não têm medo da fronteira, por isso fazemos com que tenham medo dos guardas. Isso é algo real para eles e nós mantemos essa realidade. Eles não gostam, mas, com medo de nós, ficam longe. Para alguns é apenas um jogo, para ver se conseguem vencer. Não esperamos apanhar todos, na verdade, isso não importa. O que importa é assustar muitos deles, de modo que os lobos da fronteira não tenham coelhos suficientes para sobreviver.
“Nós protegemos as pessoas, mas não ao evitar que cheguem até a fronteira. Quem é idiota a esse ponto está além da nossa ajuda. Nossa tarefa é manter a maior parte longe da fronteira, manter a fronteira o mais frágil possível para que as coisas que vivem lá não saiam e se apossem de todos. Todos os guardas já viram coisas que escaparam. Nós todos compreendemos, outros não. Ultimamente mais e mais coisas têm escapado. O governo do seu irmão pode nos pagar, mas não compreende também, nossa fidelidade não é para ele, nem para qualquer determinação da lei. Nosso único dever é proteger o povo das coisas que saem da escuridão. Nós nos consideramos um poder soberano. Obedecemos às ordens que não prejudiquem nosso trabalho. Assim, as coisas continuam amistosas. Mas se chegar a hora, bem, seguimos a nossa causa, nossas próprias ordens.”
Ele se sentou outra vez à mesa, inclinado para a frente, apoiado nos cotovelos.
— Essencialmente só obedecemos às ordens de uma pessoa porque nossa causa é parte da causa principal dela. Essa pessoa é o verdadeiro Seeker — pegou a espada com as duas mãos e a deu a Richard —, empenho minha vida e minha lealdade ao Seeker.
Richard disse, comovido: — Obrigado, Chase. — Olhou para o mago por um momento, depois outra vez para o guarda da fronteira. — Agora vou dizer o que está acontecendo e depois o que eu quero.
Richard e Zedd contaram toda a história. Richard queria que Chase soubesse de tudo para compreender que não poderia haver meios esforços, que teriam de vencer ou morrer, não por sua escolha, mas pela escolha de Darken Rahl. Chase olhava de um para o outro enquanto falavam, compreendendo a gravidade do que diziam, sombriamente ouvindo a história da magia de Orden. Não precisaram convencê-lo da verdade. Chase tinha visto muito mais do que eles jamais saberiam. Fez poucas perguntas e ouviu com atenção.
Gostou de ouvir o que Zedd tinha feito com os homens que queriam acabar com ele. Sua risada estrondosa encheu a sala até seus olhos se encherem de lágrimas.
A porta se abriu e Kahlan e Emma entraram. Kahlan vestia uma roupa própria para a floresta, calça verde-escura com um cinto largo, camisa bege, capa escura e tinha nos ombros uma mochila resistente. As botas e a bolsa na cintura eram as dela. Parecia pronta para viver nos bosques. Porém, o cabelo, o corpo e sua postura diziam que ela era mais do que isso.
Richard a apresentou a Chase.
— Minha guia.
Chase levantou uma sobrancelha.
Emma viu a espada e, por sua expressão, Richard percebeu que ela sabia. Ela se aproximou do marido, não mais lhe acariciando a cabeça, mas simplesmente lhe pondo a mão no ombro, só para estar ao seu lado. Sabia que problemas a visitavam nessa noite. Richard embainhou a espada e Kahlan se sentou ao seu lado, enquanto ele contava o resto dos eventos da noite. Quando terminou, todos ficaram em silencio por alguns minutos.
— O que posso fazer para ajudar, Richard? — perguntou Chase, finalmente.
Richard falou com voz suave, mas firme: — Diga-me onde fica a passagem.
Chase ergueu os olhos bruscamente.
— Que passagem? — Sua velha atitude defensiva era evidente.
— A passagem para o outro lado da fronteira. Eu sei que existe. Só não sei onde fica e não tenho tempo para procurar. — Richard não tinha tempo para aquele tipo de jogo e sentiu a fúria crescer dentro dele
— Quem disse a você que existe uma passagem?
— Chase, responda à minha pergunta.
Chase disse, com um leve sorriso: — Com uma condição. Eu levo você até lá.
Richard pensou nos filhos dele. Chase estava acostumado com o perigo, mas isso era diferente.
— Não será necessário.
Chase olhou para Richard como se o estivesse avaliando.
— É, para mim. É um lugar perigoso. Vocês três não sabem no que estão se metendo. Não deixarei que vão sozinhos. E a fronteira é minha responsabilidade. Se quiser que eu diga, então eu vou também.
Todos esperaram, enquanto Richard pensou por um momento. Chase não estava blefando e o tempo era precioso.
— Chase, será uma honra para nós contarmos com sua companhia.
— Muito bem. — Chase bateu com a mão na mesa. — O nome do desfiladeiro e Porto do Rei. Fica em um lugar horrível chamado Southaven. Quatro ou cinco dias a cavalo, se formos pela Trilha Hawkers. Como vocês estão com pressa, é por lá que devem ir. Dentro de poucas horas vai amanhecer. Vocês três precisam dormir um pouco. Emma e eu providenciaremos as provisões.
Parecia a Richard que tinha acabado de se deitar quando Emma o chamou e levou todos para baixo, para tomar café. O sol ainda não tinha aparecido e não viram mais ninguém na casa, mas os galos já anunciavam o novo dia. O aroma da comida despertou seu apetite. Emma, sorrindo, porém sem a animação da noite anterior, serviu um reforçado café da manhã e disse que Chase já tinha tomado o seu e estava carregando os cavalos. Richard sempre achou Kahlan encantadora com seu vestido. Notou que os novos trajes em nada diminuíam seu encanto. Enquanto ela conversava com Emma sobre as crianças e Zedd elogiava a comida, Richard se preocupava com o que aconteceria.
A claridade dentro da casa diminuiu um pouco quando Chase surgiu emoldurado pela porta. Kahlan se sobressaltou quando o viu. Chase vestia uma cota de malha sobre a túnica bege de couro, calça preta de couro pesado, botas e uma capa. Luvas negras de punho comprido estavam presas no cinto também negro, com fivelas grandes adornadas com o emblema dos guardas da fronteira. Carregava armas suficientes para um pequeno exército. Em um homem comum, o efeito teria sido cômico, mas em Chase era assustadora a imagem clara da ameaça, letal como cada arma que levava. Chase tinha duas expressões básicas o tempo todo, a primeira um ar de falso e ignorante desinteresse, a segunda fazia com que parecesse preparado para participar de uma carnificina. Naquele dia, ele estava usando a segunda.
Quando saíram, Emma entregou um embrulho a Zedd.
— Galinha frita — disse ela. Com um largo sorriso, Zedd beijou a testa dela. Kahlan a abraçou e prometeu que devolveria a roupa. Richard deu um abraço apertado. — Tenha cuidado — murmurou ela no ouvido dele. Chase aceitou graciosamente o beijo dela no rosto.
Chase entregou a Kahlan uma faca longa com bainha, dizendo que ela devia usar sempre. Richard perguntou se podia tomar uma faca emprestada também, pois deixara a sua em casa. Chase imediatamente achou o que queria no meio de todas as suas armas, soltou-a da tira de couro e deu a faca para Richard.
Kahlan olhou para todo aquele arsenal.
— Você acha que vai precisar de tudo isso?
Com um sorriso de canto de boca, disse ele: — Se eu não levar, sei que vou precisar.
O pequeno grupo, Chase na frente seguido por Zedd, depois Kahlan, com Richard atrás, partiu num passo confortável pelos Bosques Hartland. A manhã de outono estava clara e o ar frio. Um gavião revoou acima deles, sinal de alerta no começo de uma viagem. Um aviso totalmente desnecessário, pensou Richard.
No meio da manhã, tinham deixado o Vale Hartland para trás e passado para a Floresta Ven. Tomaram a trilha Hawkers abaixo do Lago Trunt e seguiram para o sul, com a nuvem em forma de serpente acompanhando-os. Richard estava satisfeito por estar levando a nuvem para longe da casa e dos filhos de Chase. Estava preocupado por ter de viajar tanto para o sul para atravessar a fronteira, pois o tempo era precioso. Mas Chase tinha dito que, se havia outra passagem, ele não conhecia.
As florestas de madeira de lei deram lugar a conjuntos de pinheiros antigos. Passar entre eles era como viajar por um desfiladeiro. Os troncos se erguiam a alturas estonteantes e só então apareciam os galhos e Richard se sentia pequeno na sombra profunda das velhas árvores. Ele sempre se sentia à vontade viajando. Viajava sempre e os lugares conhecidos por que passavam agora pareciam outra das suas viagens, mas essa era diferente. Iam a lugares onde ele nunca havia estado. Lugares perigosos. Chase estava preocupado e os tinha avisado. Só esse fato dava o que pensar, pois Chase não era homem de se preocupar com coisas pequenas. Na verdade, Richard sempre pensou que ele se preocupava muito pouco.
Richard observou os outros três: Chase, uma aparição toda de negro montado no seu cavalo, armado até os dentes, temido pelo povo que ele protegia, bem como por aqueles que ele perseguia, mas, de algum modo, não pelas crianças; Zedd, o mago pequeno e magro que parecia um graveto, modesto, pouco mais do que um sorriso, cabelos brancos, roupas simples, contentando-se em carregar nada mais do que um embrulho com galinha frita, mas dono do fogo dos magos e quem sabe do que mais, e Kahlan, corajosa, determinada, com algum poder secreto, enviada para ameaçar um mago, obrigá-lo a nomear um Seeker. Os três eram seus amigos, mas cada um deles, a seu modo, o inquietava. Ele se perguntava qual seria o mais perigoso. Eles o seguiam sem questionar, porém ao mesmo tempo também o levavam. Os três juraram proteger o Seeker com suas vidas. Porém, ninguém, naquele pequeno grupo, sozinho ou com os outros, era páreo para Darken Rahl. Sua tarefa parecia sem esperança.
Zedd já estava “atacando” a galinha. Periodicamente ele atirava um osso por cima do ombro. Depois de algum tempo, lembrou-se de oferecer um pedaço aos outros. Chase declinou e continuou atento ao caminho, prestando atenção especialmente ao lado esquerdo da trilha, na direção da fronteira. Os outros aceitaram. A galinha tinha durado mais do que Richard pensou. Quando a trilha se alargou, ele emparelhou seu cavalo com o de Kahlan e seguiu ao lado dela. Ela tirou a capa quando o ar ficou mais quente e sorriu para ele com aquele sorriso especial que não dava a ninguém mais. Richard teve uma idéia.
— Zedd, um mago pode fazer alguma coisa com aquela nuvem?
O mago olhou para cima com os olhos entrecerrados, depois olhou para Richard.
— Eu já pensei nisso. Acho que posso, mas quero esperar mais um pouco, até estarmos mais longe da família de Chase. Não quero fazer com que ela a procure.
No fim da tarde, encontraram um casal de velhos, gente dos bosques que Chase conhecia. Pararam enquanto o guarda da fronteira falava com o casal. Ele se sentava relaxado na sela, o couro estalando, escutando o que eles tinham ouvido sobre coisas que saíam da fronteira. Agora Richard sabia que eram mais do que rumores. Chase tratou o casal com respeito, como tratava quase todos. Mesmo assim, estava claro que eles o temiam. Disse a eles que estava tratando do assunto e aconselhou-os a não saírem de casa à noite.
Prosseguiram até muito depois de anoitecer e então acamparam junto aos pinheiros; na manhã seguinte, reiniciaram a viagem quando o sol apareceu atrás das montanhas da fronteira. Richard e Kahlan bocejavam. As árvores agora escasseavam e passavam por trechos de campo aberto, claros e verdes, cheirosos à luz do sol seguindo pela região montanhosa para o sul, o caminho temporariamente levando-os para longe das montanhas da fronteira. Ocasionalmente passavam por pequenas fazendas. Os donos se escondiam quando viam Chase.
Agora a região não era muito familiar para Richard, que raramente ia tão longe para o sul. Ele estava muito atento, notando os pontos de referência por onde passavam. Depois do almoço frio ao sol, a estrada começou a virar para mais perto das montanhas e no fim da tarde estavam tão perto da fronteira que começaram a encontrar esqueletos cinzentos de árvores mortas pela trepadeira serpente. Nem mesmo o sol conseguia clarear o bosque denso. Chase parecia distante, mais sério, observando tudo cuidadosamente. Desmontou várias vezes, puxando o cavalo, examinando o solo, à procura de rastros.
Atravessaram um regato que descia das montanhas, água correndo preguiçosamente, fria e enlameada. Chase parou e se sentou, olhando para as sombras. Os outros esperaram, entreolhando-se e olhando para a fronteira. Richard reconheceu o cheiro de morte da trepadeira. O guarda da fronteira os levou um pouco mais adiante, depois desmontou outra vez e se agachou, examinando o solo. Levantou-se e entregou as rédeas do seu cavalo a Zedd. Disse simplesmente: — Esperem. — Eles o viram desaparecer entre as árvores e esperaram em silêncio. O cavalo grande de Kahlan espantava as moscas enquanto comia a relva.
Chase voltou, calçando as luvas negras e, tirando as rédeas das mãos de Zedd, disse: — Quero que vocês três continuem. Não esperem por mim e não parem. Fiquem na estrada.
— O que há? O que você descobriu? — perguntou Richard.
Chase virou-se para trás, com expressão sombria.
— Os lobos estiveram comendo. Vou enterrar o que restou e depois vou para o outro lado, entre a fronteira e vocês. Preciso verificar uma coisa. Lembrem-se do que eu disse. Não corram, mantenham um bom passo e fiquem atentos. Se acharem que estou demorando, nem pensem em voltar para me procurar. Sei o que estou fazendo e vocês nunca me encontrariam. Voltarei quando puder. Continuem a andar e não saiam da estrada.
Chase montou, virou o cavalo de direção e saiu a galope, os cascos jogando para os lados pedaços de terra com relva.
— Vão em frente! — gritou Chase, virando a cabeça para trás. Mas, antes de ele desaparecer no meio das árvores, Richard o viu pegar uma adaga que levava nas costas.
Sabia que Chase estava mentindo. Ele não ia enterrar coisa alguma. Richard não gostou de deixar o amigo sair assim sozinho, mas Chase tinha passado quase toda a vida sozinho ali ao lado da fronteira e sabia o que estava fazendo: o necessário para protegê-los. Richard tinha de confiar no julgamento dele.
— Vocês ouviram Chase — disse o Seeker. — Vamos.
À medida que cavalgavam na floresta, as rochas cresciam de tamanho, obrigando-os a desviar ora para um lado, ora para outro. O arvoredo era tão fechado que a luz do sol praticamente fora expulsa da floresta; a estrada era um túnel, no meio do mato alto. Richard não gostou da sensação de estar fechado e, enquanto seguiam rapidamente, vigiavam as sombras densas à esquerda. Galhos pendiam no meio da estrada e eles tinham de se abaixar a todo momento. Ele pensava em como Chase podia viajar em um bosque tão cerrado.
Quando o caminho era mais largo, Richard seguia à esquerda de Kahlan, tentando ficar entre ela e a fronteira. Segurava a rédea com a mão esquerda, deixando a direita livre para empunhar a espada. Kahlan estava envolta na capa de Richard, mas ele viu que ela mantinha uma das mãos perto da faca.
Vindo de longe, da esquerda, ouviram uivos, como os de uma alcatéia, mas não eram lobos. Era alguma coisa da fronteira.
Os três se viraram para o som. Os cavalos estavam apavorados e queriam correr. Tiveram de contê-los, puxando as rédeas, mas ao mesmo tempo deixando-os soltos o bastante para trotar. Richard compreendia o que os animais sentiam. Também sentia a urgência de correr, mas Chase foi explícito quando disse para não deixar que corressem. Devia ter motivo para isso e eles continuaram a controlar o passo. Quando os uivos começaram a ser intercalados por gritos de gelar o sangue, que arrepiaram o cabelo na sua nuca, ficou mais difícil conter os cavalos. Eram gritos selvagens, gritos da necessidade de matar, exigentes, desesperados. Os três mantiveram os cavalos no trote durante mais uma hora, mas o som parecia segui-los. Não podiam fazer nada a não ser continuar a ouvir os sons dos animais da fronteira.
Sem poder suportar por mais tempo, Richard fez seu cavalo parar e virou de frente para o bosque. Chase estava lá, sozinho com os animais. Não agüentava mais deixar o amigo enfrentar aquilo sozinho. Precisava ajudar.
Zedd disse: — Temos de continuar em frente, Richard.
— Ele pode estar com problemas. Não podemos deixar que os enfrente sozinho.
— É o trabalho dele, deixe que ele faça o que tem de fazer.
— Neste momento, seu trabalho não é o de um guarda da fronteira, mas sim nos levar à passagem.
O mago voltou para trás até onde Richard estava e disse suavemente: — Esse é o trabalho dele, Richard. Ele jurou proteger sua vida com a dele. É o que está fazendo possibilitando que você chegue à passagem. Tem de pôr isso na cabeça. O que você está fazendo é mais importante do que a vida de um homem. Chase sabe. Por isso nos proibiu de procurá-lo.
Richard disse, incrédulo: — Espera que eu deixe um amigo ser morto se puder evitar? — Os sons dos uivos estavam mais perto.
— Espero que você não o deixe morrer por nada!
Richard olhou atônito para r velho amigo.
— Mas talvez possamos fazer alguma diferença.
— E talvez não. — Os cavalos pateavam, inquietos.
— Zedd tem razão — disse Kahlan. — Ir atrás de Chase não é um ato de coragem; continuar em frente, quando você quer ajudar, é.
Richard sabia que eles estavam certos, mas não queria admitir. Olhou zangado para Kahlan.
— Você pode estar na posição dele algum dia! Então, o que vai querer que eu faça?
Ela olhou para ele.
— Vou querer que você continue seu caminho.
Richard não sabia o que dizer. Os gritos que vinham do bosque estavam mais perto. Kahlan não demonstrou qualquer emoção.
— Richard, Chase faz isso o tempo todo, ele vai ficar bem — disse Zedd para tranqüilizá-lo. — Eu não me surpreenderia se ele estivesse se divertindo. Logo mais ele terá uma boa história para contar. Você conhece Chase. Uma parte da história, pelo menos, será verdade. Richard ficou zangado com os dois e com ele mesmo. Esporeou o cavalo, passando à frente. Não queria mais falar. Eles o deixaram com seus pensamentos, deixaram que seguisse trotando à frente. Irritava-o o fato de Kahlan pensar que ele a abandonaria em perigo. Ela não era guarda da fronteira. Não gostava da idéia de que salvá-los podia significar deixar que fossem mortos. Não tinha sentido. Pelo menos, Richard não queria ver sentido algum nisso.
Tentou ignorar os berros e uivos do bosque. Depois de algum tempo, os sons dos gritos se afastaram. O bosque parecia sem vida, sem pássaros, sem coelhos, até sem camundongos nas árvores retorcidas, nos arbustos e nas sombras. Richard prestava atenção, para se certificar de que os dois o seguiam. Não queria virar para trás, não queria olhar para eles. Depois de algum tempo, os uivos cessaram. Richard imaginou se seria um bom sinal ou não.
Queria pedir desculpas a eles, queria dizer que temia pelo amigo, mas não podia. Chase devia estar bem, ele pensou. Ele era o chefe dos guardas da fronteira, não era tolo e não ia se meter em uma coisa com que não pudesse lidar. Pensou se haveria alguma coisa com que Chase não pudesse lidar. Pensou se poderia contar a Emma se alguma coisa acontecesse ao seu marido.
Estava deixando a imaginação correr solta. Chase estava bem e ficaria furioso com Richard por ter pensado essas coisas, por ter duvidado dele.
Imaginou se Chase voltaria antes da noite. Deviam parar quando a noite chegasse, se ele não tivesse voltado? Não. Chase tinha dito para não fazerem isso. Teriam de continuar viagem a noite inteira, se preciso, até Chase voltar. Tinha a impressão de que as montanhas pairavam ameaçadoramente acima deles, prontas para atacar. Richard nunca estivera tão perto da fronteira.
Preocupado com Chase, sua ira desapareceu. Richard se virou para trás e olhou para Kahlan. Ela sorriu calorosamente e Richard retribuiu o sorriso, sentindo-se melhor.
Tentou imaginar conto seria aquele bosque antes da morte de tantas árvores; devia ter sido um belo lugar, verde, aconchegante, seguro. Talvez seu pai tivesse passado por ali quando atravessou a fronteira, por essa mesma estrada, com o livro.
Imaginou se todas as árvores próximas da outra fronteira morreram antes de a fronteira ruir. Talvez ele pudesse esperar que a fronteira caísse. Talvez não fosse preciso se afastar tanto do caminho, indo para o sul, até Porto do Rei. Mas por que pensava que ir para o sul era se afastar do caminho? Ele não conhecia nada de Midlands, portanto, por que um lugar seria melhor do que outro? A caixa que procuravam podia tanto estar no sul quanto no norte.
O bosque ficava cada vez mais sombrio. Havia algumas horas não viam o sol, mas era certo que estava se pondo. Não gostava da idéia de viajar à noite naquele bosque, mas a idéia de dormir ali parecia pior. Virou-se para trás para se certificar de que os outros o seguiam de perto.
O som distante de água corrente quebrou o silêncio da noite, aumentando à medida que eles avançavam, e logo chegaram a um pequeno rio com uma ponte de madeira. Antes de atravessar, Richard parou. Inexplicavelmente, não gostou da aparência da ponte; alguma coisa estava errada. Não faria mal algum ser cauteloso. Levou o cavalo para a margem do rio e olhou debaixo da ponte. As vigas que a suportavam eram ancoradas em blocos de granito. Faltavam os pinos que a prendiam.
— Alguém danificou a ponte. Pode suportar o peso de um homem, mas não de um cavalo. Parece que temos de nos molhar.
Zedd franziu as sobrancelhas.
— Eu não quero me molhar.
— Muito bem, você tem idéia melhor? — perguntou Richard.
Zedd segurou o queixo com o polegar e o indicador.
— Tenho — anunciou ele. — Vocês dois atravessam, eu seguro a ponte. — Richard olhou para ele como se o mago estivesse louco. — Vão, vai dar tudo certo.
Empertigado no cavalo, Zedd abriu os braços para os lados, palmas para cima e inclinou a cabeça para trás, respirou profundamente e fechou os olhos. Relutante e cautelosamente, os dois atravessaram a ponte. No outro lado, viraram os cavalos para trás. O cavalo do mago começou a atravessar sem que fosse preciso incitá-lo e Zedd continuou com os braços abertos, a cabeça para trás e os olhos fechados. Quando chegou ao outro lado, abaixou os braços e olhou para os dois. Richard e Kahlan o olhavam atônitos.
— Talvez eu estivesse errado — disse Richard. — Talvez a ponte tivesse agüentado o peso.
Zedd sorriu.
— Talvez. — Sem olhar para trás, ele estalou os dedos. A ponte desmoronou e caiu na água com estrondo. As vigas gemeram quando foram separadas pela corrente e levadas no abaixo. — Por outro lado, talvez não. Eu não podia deixar a ponte daquele jeito. Alguém podia se machucar.
Richard balançou a cabeça.
— Algum dia, meu amigo, vamos nos sentar e ter uma longa conversa. — Virou o cavalo e seguiu em frente. Zedd olhou para Kahlan e deu de ombros. Ela sorriu, piscou um olho e foi atrás de Richard.
Continuaram pela trilha sombria, vigiando o bosque. Richard tentava imaginar o que Zedd podia fazer. Deixou que o cavalo escolhesse o caminho na noite que chegava, imaginando até onde iria aquele mundo morto e se a estrada os levaria finalmente para fora dele. A noite começava a trazer vida para o bosque, gritos estranhos e rangidos. Seu cavalo relinchava para coisas invisíveis. Richard bateu com a mão no pescoço do animal para acalmá-lo e olhou para cima, à procura de sinais de gares no céu. Mas não podia ver o céu. Porém, se os gares aparecessem, teriam muita dificuldade para surpreender os três, pois o dossel de galhos retorcidos e mortos evitaria que se aproximassem silenciosamente.
Talvez as coisas nas árvores fossem ameaça maior do que os gares. Richard não sabia nada sobre elas e não tinha certeza de que queria saber. Percebeu que seu coração batia com força.
Depois de mais ou menos uma hora, ouviu o som de alguma coisa se aproximando entre os arbustos, à sua esquerda. Andava quebrando galhos. Pôs o cavalo a meio galope e certificou-se de que Kahlan e Zedd faziam o mesmo. Fosse o que fosse, continuava com eles. Não iam poder passar à frente. Teriam o caminho bloqueado. Talvez fosse Chase, Richard pensou. Mas talvez não fosse.
Richard apanhou a Espada da Verdade, inclinando-se para a frente e apertando os lados do cavalo com as pernas, fazendo-o galopar. Seus músculos ficaram tensos quando o animal começou a correr. Agora não sabia se Kahlan e Zedd o acompanhavam, mas nem pensou nisso. Concentrou-se em tentar enxergar no escuro a frente, procurando ver qualquer coisa que viesse na sua direção. A fúria começava a passar dos limites, tudo que ele sentia era uma escaldante necessidade de atacar. Agressivamente, ele investia com força letal. O som das patas do seu cavalo impedia que ouvisse a coisa no bosque, mas sabia que estava lá, sabia que estava chegando.
Então viu o vulto negro movendo-se contra as formas das árvores. Saiu do bosque para a estrada doze metros à frente. Richard ergueu a espada e investiu, mentalmente resolvendo o que ia fazer. O vulto esperou, imóvel.
No último momento, Richard viu que era Chase, com o braço erguido para detê-lo e a silhueta de uma clava denteada na mão.
— Fico satisfeito por ver que você está alerta — disse o guarda da fronteira.
— Chase! Você quase me matou de medo!
— Você também me assustou por um momento. — Kahlan e Zedd se aproximaram. — Sigam-me de perto. Richard, fique atrás com a espada desembainhada.
Chase virou o cavalo e saiu no galope, com os três atrás. Richard não sabia se estavam sendo perseguidos ou não por alguma coisa. Chase não parecia preparado para uma luta, mas mandou que ficasse com a espada desembainhada. Richard estava atento à retaguarda. Todos seguiam com as cabeças abaixadas, para evitar bater nos galhos. Era perigoso correr a cavalo no escuro, mas Chase sabia disso.
Chegaram a um cruzamento, o primeiro daquele dia, e, sem hesitar, o guarda da fronteira foi para a direita, afastando-se da fronteira. Logo tinham saído do bosque e o luar iluminava um campo aberto com colinas ondulantes e poucas árvores. Chase diminuiu o passo depois de algum tempo e todos o acompanharam.
Richard embainhou a espada e se aproximou dos outros.
— O que foi tudo isso?
Chase prendeu a clava no cinto.
— Coisas na fronteira estão nos seguindo. Quando saíram da fronteira para atacar, eu estava lá para estragar seu apetite. Algumas voltaram para a fronteira. Outras continuaram a seguir de dentro, onde não posso persegui-las. Por isso, eu não queria que vocês andassem muito depressa. Eu não poderia acompanhá-las através do bosque, elas passariam à minha frente e alcançariam vocês. Eu os trouxe para longe da fronteira porque queria afastar seu cheiro delas durante a noite. É muito perigoso viajar tão perto da fronteira à noite Acamparemos em uma daquelas colinas adiante. — Virou para trás e olhou para Richard. — Por falar nisso, por que você parou lá atrás? Eu disse para não parar.
— Eu estava preocupado com você, ouvi os uivos. Eu ia ajudá-lo, mas Kahlan e Zedd me fizeram desistir. — Richard pensou que Chase ia ficar zangado, mas ele não ficou.
— Obrigado, mas não faça isso outra vez. Enquanto você estava lá parado pensando, eles quase o pegaram. Zedd e Kahlan estavam certos. Não discuta com eles na próxima vez.
— Chase — perguntou Kahlan —, você disse que eles tinham pegado alguém, pegaram mesmo?
O rosto de Chase era uma pedra fria à luz da lua.
— Sim, um dos meus homens. Não sei qual. — Voltou para a estrada e seguiu em silêncio.
Acamparam em uma colina alta para poder ver qualquer coisa que se aproximasse. Chase e Zedd cuidaram dos cavalos enquanto Richard e Kahlan acendiam o fogo, tiravam das mochilas pão, queijo e frutas secas e começaram a preparar um ensopado simples. Saíram juntos à procura de lenha entre as poucas árvores. Richard disse que os dois formavam uma boa equipe. Kahlan sorriu e virou a cabeça. Richard segurou o braço dela e a fez se voltar para ele.
— Kahlan, se fosse você, eu iria defendê-la — disse ele, querendo dizer mais.
Ela olhou nos olhos dele.
— Por favor, Richard, nunca mais diga isso. — Puxou o braço da mão dele e voltou para o acampamento. Quando Chase e Zedd terminaram de cuidar dos cavalos e se aproximaram do fogo, Richard viu que a bainha que pendia do ombro de Chase estava vazia, sem a adaga. Um dos seus machados e várias facas tinham também desaparecido. Não que isso o deixasse indefeso, de modo algum.
A maça que pendia da cintura estava coberta de sangue, suas luvas também e ele tinha respingos de sangue em todo o corpo. Sem dizer nada, Chase pegou uma faca e tirou um dente amarelo de sete centímetros que estava preso entre as duas lâminas da maça e o jogou fora. Depois de limpar o sangue das mãos e do rosto, ele se sentou na frente do fogo com os outros.
Richard jogou alguns gravetos no fogo.
— Chase, o que eram aquelas criaturas que nos perseguiam? E como é possível para elas saírem da fronteira e entrarem nela?
Chase serviu-se de um terço de um pão e olhou para Richard.
— São chamadas sabujos do coração. Têm duas vezes o tamanho de um lobo, peito largo, cabeça meio achatada, focinho comprido cheio de dentes. Ferozes. Não sei bem qual é a sua cor. Só caçam à noite, isto é, até hoje. Mas estava muito escuro naquele bosque e de qualquer modo, eu estava um pouco ocupado. Eu nunca tinha visto tantos juntos.
— Por que são chamados sabujos do coração?
Chase mastigou um pedaço do pão e olhou para Richard intensamente.
— Isso é uma questão bastante discutida. Os sabujos do coração têm orelhas grandes e redondas, boa audição. Algumas pessoas dizem que podem encontrar um homem pelas batidas do coração. — Richard arregalou os olhos. Chase deu outra mordida no pão e mastigou por um minuto. — Outros dizem que têm esse nome porque é assim que eles matam: atacam o peito da vítima. A maioria dos predadores ataca a garganta, mas não os sabujos do coração, eles vão direto para o coração e têm dentes bem grandes que fazem um “bom” trabalho. É a primeira coisa que eles comem. Se houver mais de um, eles brigam pelo coração.
Zedd se serviu de ensopado e serviu outro prato para Kahlan.
Richard estava perdendo o apetite, mas tinha de perguntar:
— E você, o que acha?
Chase deu de ombros.
— Bem, eu nunca fiquei quieto, no escuro, bastante perto da fronteira para que eles pudessem ouvir meu coração. — Deu outra mordida no pão, olhando para o próprio peito enquanto mastigava. Afastou do corpo a malha pesada. Richard viu dois rasgões na malha. Pedaços de dentes amarelos estavam presos nos elos de metal. A túnica de couro debaixo dela estava cheia de sangue dos cães do coração. — Os que fizeram isto tiveram a lâmina da minha adaga quebrada no peito e eu estava ainda no meu cavalo. — Olhou para Richard e ergueu uma sobrancelha. — Isso responde à sua pergunta?
Richard sentiu um arrepio.
— E como é que eles podem entrar na fronteira e sair dela?
Chase pegou o prato de ensopado que Kahlan serviu para ele.
— Eles têm algo a ver com magia na fronteira, foram criados com isso. São os cães de guarda da fronteira, por assim dizer. Podem entrar e sair sem que a fronteira os impeça. Mas também estão ligados a ela e não podem ir muito longe. Com o enfraquecimento da fronteira, eles se afastam cada vez mais. Isso faz com que seja perigoso viajar pela Trilha Hawkers, mas ir por outro caminho acrescentaria uma semana à viagem até Porto do Rei. O atalho que tomamos é o único que se afasta da fronteira até chegarmos a Southaven. Eu sabia que precisava alcançá-los antes que vocês passassem por ele, senão teríamos de passar a noite no bosque, com eles. Amanhã, durante o dia, quando for seguro, mostro a fronteira para vocês, mostro como está se enfraquecendo.
Richard inclinou a cabeça assentindo e todos voltaram aos próprios pensamentos.
— Eles são bege — disse Kahlan suavemente. Todos olharam para ela. Olhando para o fogo, ela explicou: — Os sabujos do coração são bege e têm pêlo curto, como o das costas de um gamo. Agora são vistos em Midlands por toda a parte, tendo sido libertados quando a outra fronteira desmoronou. Enlouquecidos com a falta de objetivo, agora eles aparecem até de dia.
Os três homens ficaram imóveis, pensando nas palavras dela. Zedd até parou de comer.
— Que ótimo! — disse Richard, em voz baixa. — E o que mais Midlands tem pior do que isso?
Não era uma pergunta, mas uma imprecação. O fogo crepitava nos rostos deles.
Com o olhar distante, Kahlan murmurou: — Darken Rahl.
Longe do acampamento, encostado em uma rocha fria, agasalhado com a capa, Richard olhava para a fronteira. O vento fraco era um bafejo de gelo. Chase dera a ele o primeiro turno de vigia, Zedd teria o segundo e o guarda, o terceiro. Kahlan protestou quando não foi designada para turno algum, mas acabou obedecendo a Chase.
O luar iluminava o campo aberto entre onde ele estava e a fronteira. Era um trecho de colinas baixas, poucas árvores e pequenos regatos, um lugar de aparência agradável, considerando que estava tão próximo dos bosques sombrios da fronteira. Sem dúvida, os bosques haviam sido agradáveis no passado, antes de Darken Rahl ativar as caixas, começando a destruição da fronteira. Chase achava que os sabujos do coração não podiam chegar tão longe, mas, se ele estivesse enganado, Richard queria vê-los antes que chegassem. Passou os dedos sobre a palavra Verdade, no punho da espada, delineando distraidamente as letras, olhando para o céu, disposto a não deixar que os gares o pegassem de surpresa outra vez. Gostou de ter sido designado para o primeiro turno de vigia, porque não estava com sono. Estava cansado, mas não com sono. Mesmo assim, bocejou.
As montanhas que faziam parte da fronteira erguiam-se no começo da escuridão, além do tapete emaranhado dos bosques, como as costas de um animal escuro grande demais para se esconder. Richard imaginou que coisas olhavam para ele de dentro daquela boca enorme. Chase tinha dito que as montanhas da fronteira diminuíam à medida que se aproximavam do sul e desapareciam por completo no lugar para onde estavam indo.
Inesperadamente, Kahlan, envolta na capa, apareceu do escuro e se sentou muito perto dele, para se aquecer. Ela não falou, simplesmente se sentou-se. Mechas soltas do cabelo sedoso lhe tocavam o lado do rosto. O cabo da sua faca espetava o lado do corpo dele, mas Richard não disse nada, temendo que ela se afastasse. Não queria que ela mudasse de posição.
— Os outros estão dormindo? — perguntou ele em voz baixa, olhando para trás. Ela fez que sim com a cabeça. — Como você sabe? — perguntou Richard sorrindo. — Zedd dorme com os olhos abertos.
Ela sorriu também.
— Como todos os magos.
— É mesmo? Pensei que fosse só Zedd.
Vigiando o vale, procurando ver qualquer movimento, Richard sentiu o olhar de Kahlan. Olhou para ela.
— Não está com sono? — Kahlan estava tão perto, que bastava murmurar.
Ela deu de ombros. A brisa leve levou o cabelo para o rosto dela. Kahlan o pôs para trás e seus olhos encontraram os dele.
— Eu queria pedir desculpas.
Richard queria que ela deitasse a cabeça no seu ombro.
— Por quê?
— Pelo que eu disse, que não queria que você fosse me ajudar. Não quero que pense que não dou valor à nossa amizade. Mas o que estamos fazendo é mais importante do que qualquer pessoa.
Richard percebeu que ela queria dizer muito mais. Olhou nos olhos dela, sentindo o hálito quente no rosto.
— Kahlan, você tem alguém? — Temia uma flecha no coração, mas precisava perguntar: — Alguém que a espera? Um amor?
Richard olhou longamente para os olhos verdes. Kahlan não desviou o olhar, mas seus olhos se encheram de lágrimas.
— Não é tão simples assim, Richard.
— Sim, é. Você tem ou não tem.
— Tenho obrigações.
Por algum tempo, pareceu que ela ia contar alguma coisa, contar seu segredo.
Ela estava muito bonita ao luar, mas não era só isso, era o que havia dentro dela, desde sua inteligência e coragem até sua presença de espírito, e o sorriso especial reservado só para ele.
Richard mataria um dragão, se existissem dragões, só para ver aquele sorriso. Sabia que jamais ia querer tanto outra pessoa. Não poderia haver mais ninguém.
Ele queria desesperadamente abraçá-la. Queria experimentar-lhe os lábios macios. Mas inexplicavelmente tinha a mesma sensação de quando viu a ponte. Uma forte sensação de perigo, mais forte do que seu desejo de beijá-la. Algo dizia que, se fizesse isso, estaria sendo ousado demais. Lembrou como a magia fulgurou quando ela pôs a mão sobre a dele, no punho da espada. Estava certo quanto à ponte, por isso não a abraçou.
Kahlan desviou os olhos dos dele.
— Chase disse que os próximos dois dias serão difíceis. Acho melhor eu dormir um pouco.
Richard sabia que o que quer que fosse que ela estivesse pensando, ele não podia dar qualquer opinião. Não podia obrigá-la. Kahlan tinha de resolver sozinha.
— Você tem uma obrigação para comigo também — disse ele. Kahlan olhou outra vez para ele, intrigada, e Richard sorriu. — Prometeu que seria minha guia. Pretendo cobrar essa promessa.
Ela assentiu, balançando a cabeça, com vontade de chorar. Beijou a ponta do dedo, encostou-a no rosto dele e voltou para o escuro da noite.
Muito tempo depois que ela se foi, ele sentia ainda a ponta do dedo dela no rosto.
A noite estava quieta e Richard tinha a impressão de ser a única pessoa acordada no mundo inteiro. As estrelas tremeluziam como a poeira mágica de Zedd congelada e a lua o olhava silenciosamente. Nem os lobos uivavam. A solidão ameaçava tomar conta dele.
Chegou a desejar que alguma coisa o atacasse, para ter com que se preocupar. Desembainhou a espada e começou a polir a lâmina já polida com aponta da capa. A espada era sua para ser usada como ele achasse melhor, foi o que Zedd disse. Kahlan gostasse ou não, ele a usaria para protegê-la. Ela estava sendo caçada. Com a espada, evitaria que qualquer coisa tocasse nela.
Pensando nos que a perseguiam, os quads e Darken Rahl, sentiu despertar sua ira. Queria que aparecessem agora para acabar com a ameaça. Desejou ardentemente que viessem Seu coração acelerou. Os músculos do seu rosto ficaram tensos.
Percebeu então que era a ira da espada passando para ele. A arma estava desembainhada e a idéia de alguma coisa ameaçando Kahlan provocava sua fúria. Ficou admirado com a rapidez com que essa ira passara para ele silenciosamente, invisível, sedutora. Simples percepção, o mago dissera. O que a espada mágica percebia nele?
Richard embainhou a espada e afastou a raiva, sentindo outra vez a melancolia e voltou a vigiar o campo e o céu. Levantou-se e andou um pouco para ativar a circulação, depois se sentou outra vez, tristemente, encostado na rocha.
Uma hora antes de terminar seu turno, ouviu passos cautelosos. Era Zedd, com um pedaço de queijo em cada mão, sem a capa, vestido apenas com seu manto.
— O que esta fazendo acordado? Não é hora ainda do seu turno.
— Achei que você gostaria da companhia de um amigo. Tome, trouxe um pedaço de queijo para você.
— Não, obrigado. Estou falando do queijo. Mas aceito a parte do amigo.
Zedd se sentou ao lado dele, dobrando os joelhos magros contra o peito, puxando o manto sobre eles, como se estivesse dentro de uma barraca.
— Qual é o problema?
Richard deu de ombros.
— Kahlan, eu acho. — Zedd ficou calado. Richard olhou para longe. — Ela é a primeira coisa em minha mente quando acordo de manhã e a última coisa à noite, antes de dormir. Nunca me senti assim antes, Zedd, nunca me senti tão só.
— Compreendo. — Zedd pôs o queijo em cima de uma pedra.
— Sei que ela gosta de mim, mas tenho a impressão de que está me mantendo afastado. Quando armávamos o acampamento esta noite, eu disse que, se fosse ela quem estivesse em perigo, como Chase estava, eu iria ajudá-la. Ela disse que não queria que eu fizesse isso, mas queria dizer muito mais. Queria dizer que não quer eu vá atrás dela, ponto final.
— Boa menina — murmurou Zedd.
— O quê?
— Eu disse que ela é uma boa menina. Nós todos gostamos dela. Mas, Richard, ela é também outras coisas. Ela tem responsabilidades.
Richard olhou intrigado para o amigo.
— E que outras coisas são essas?
Zedd se inclinou um pouco para trás.
— Não me cabe dizer. Ela é quem tem de responder a essa pergunta. Pensei que já o tivesse feito. — O velho homem pôs o braço sobre os ombros largos de Richard. — Se isto o faz sentir-se melhor, ela só não disse ainda, porque gosta de você mais do que devia gostar. Tem medo de perder sua amizade.
— Você conhece os segredos dela e Chase também, posso ver nos olhos dele. Todos sabem, menos eu. Ela tentou me dizer esta noite, mas não conseguiu. Kahlan não precisa se preocupar em perder minha amizade. Isso nunca vai acontecer.
— Richard, ela é uma pessoa maravilhosa, mas não é para você. Não pode ser.
— Por quê?
Zedd fingiu tirar poeira da manga, para evitar os olhos de Richard.
— Dei minha palavra de que deixaria que ela contasse. Você tem de confiar em mim. Ela não pode ser o que você quer. Procure outra mulher. O mundo está cheio delas. Metade da população é feminina, pode escolher à vontade. Escolha outra.
Richard passou os braços em volta dos joelhos dobrados e olhou para longe.
— Está certo.
Zedd ergueu os olhos, surpreso, depois sorriu e bateu de leve nas costas do amigo.
— Está certo, mas com uma condição. — Richard olhou para os bosques da fronteira. — Você responde a uma pergunta sinceramente. Se puder responder afirmativamente, eu faço o que você me pede.
— Uma? Uma pergunta só? — perguntou Zedd, cautelosamente, encostando o dedo magro no lábio inferior.
— Uma pergunta.
Zedd pensou por um momento.
— Muito bem. Uma pergunta.
Richard olhou para ele ferozmente.
— Antes de se casar com sua mulher, se alguém — vamos fazer uma coisa, vou facilitar para você —, se alguém em quem você confiava, um amigo, alguém que você amava como a um pai, se essa pessoa dissesse para você escolher outra, você teria obedecido?
Zedd desviou os olhos e respirou profundamente.
— Maldição! A esta altura eu devia ter aprendido a não deixar que um Seeker me fizesse alguma pergunta. — Apanhou o queijo e deu uma mordida.
— Foi o que pensei.
Zedd jogou o queijo longe, no escuro.
— Isso não altera os fatos, Richard! Não pode dar certo com vocês dois. Não estou dizendo isso para magoar você. Amo você como a um filho. Se eu pudesse mudar o funcionamento do mundo, eu mudaria. Queria que não fosse assim, por você, mas é assim que funciona. Kahlan sabe e, se você tentar, vai magoá-la. Eu sei que você não quer isso.
Richard disse, com voz calma e baixa: — Você mesmo disse. Eu sou o Seeker. Há um meio e vou encontrar.
Zedd balançou a cabeça tristemente.
— Eu queria que houvesse, meu caro, mas não há.
— Então, o que devo fazer? — perguntou Richard, com um murmúrio entrecortado.
O velho amigo o abraçou com força no escuro. Richard estava desanimado.
— Apenas seja amigo dela, Richard. É disso que ela precisa. Você não pode ser nada mais.
Richard inclinou a cabeça, assentindo.
Depois de algum tempo, o Seeker, com um olhar desconfiado, empurrou o mago.
— Por que você veio até aqui?
— Para me sentar com um amigo.
Richard balançou a cabeça.
— Você veio como mago, longe dos outros, para aconselhar um Seeker. Agora diga por que está aqui.
— Muito bem. Vim na minha capacidade de mago dizer ao Seeker que ele quase cometeu um grave erro hoje.
Richard tirou as mãos dos ombros de Zedd, mas continuou a olhar para ele.
— Eu sei disso. Um Seeker não se pode arriscar quando com isso arrisca a vida de todos os outros.
— Mas você ia fazer isso assim mesmo — insistiu Zedd.
— Quando você me fez Seeker, aceitou o que é ruim e o que é bom. É uma responsabilidade nova para mim. Acho difícil ver um amigo com problemas e não ajudar. Sei que não posso mais me dar a esse luxo. Considere-me advertido.
Zedd sorriu.
— Bem, essa parte foi bem. — Ficou calado por algum tempo e seu sorriso desapareceu. — Mas, Richard, o caso é maior do que isso. Você tem de compreender que, como Seeker, pode causar a morte de pessoas inocentes. Para deter Rahl, precisa ignorar as pessoas que podiam ser salvas com sua ajuda. Um soldado no campo de batalha sabe disso. Se ele parar para ajudar um companheiro, pode ser ferido nas costas por uma espada e, desse modo, se ele quiser vencer, deve continuar lutando, apesar dos pedidos de socorro dos companheiros. Você deve poder fazer isso para vencer, pode ser o único meio. Deve ficar insensível para conseguir. Esta é uma luta pela sobrevivência e nesta batalha os que pedem socorro provavelmente não serão soldados, mas inocentes. Darken Rahl matará qualquer um para vencer. Os que lutam ao lado dele farão o mesmo. Você precisa também fazer isso. Goste ou não, o agressor faz as regras. Você deve agir de acordo com elas, do contrário na certa morrerá.
— Como alguém pode lutar ao lado dele? Darken Rahl quer dominar todos, quer ser o dono de tudo. Como podem lutar ao lado dele?
O mago se recostou na rocha e olhou para as montanhas, como se estivesse vendo mais do que havia nelas. Disse tristemente:
— Porque, Richard, muitas pessoas precisam ser dominadas para progredir. No seu egoísmo e na sua ganância, elas vêem as pessoas livres como opressoras. Querem um líder que corte as plantas mais altas, para que o sol possa chegar até elas. Para essas pessoas, nenhuma planta deve ser mais alta do que a mais baixa e, desse modo, todas podem ter a luz. Preferem seguir uma luz, independentemente do combustível usado, a acender uma vela.
— Alguns deles pensam que, quando Rahl vencer, ele sorrirá para eles e os recompensará, por isso são tão cruéis quanto ele, para conseguir-lhe as graças. Alguns simplesmente são cegos para a verdade e lutam pelas mentiras que ouvem. E alguns, quando a luz orientadora é acesa, descobrem que estão presos com grilhões, mas é tarde demais. — Zedd alisou as mangas do seu manto e suspirou.
— Sempre houve guerras, Richard. Cada guerra é uma luta assassina entre inimigos. Porém, nenhum exército jamais marchou para a batalha pensando que o Criador está do lado do inimigo.
Richard balançou a cabeça: — Não tem sentido.
— Tenho certeza de que os seguidores de Rahl pensam que somos monstros sedentos de sangue, capazes de qualquer coisa. Devem ter ouvido longas histórias da crueldade e da brutalidade do inimigo. Tenho certeza também de que nenhum deles sabe muita coisa sobre Darken Rahl. — O mago franziu a testa, seus olhos inteligentes muito vivos. — Pode ser uma perversão da lógica, mas nem por isso menos ameaçadora ou letal. Os seguidores de Darken Rahl só precisam nos esmagar, não precisam compreender nada mais. Mas, para vencer um inimigo mais forte, é preciso usar a cabeça.
Richard passou a mão no cabelo.
— Isso me deixa encurralado num espaço muito pequeno. Talvez tenha de provocar a morte de inocentes, mas não posso matar Darken Rahl.
Zedd olhou para ele.
— Não. Eu nunca disse que você não pode matar Darken Rahl. Eu disse que não pode usar a espada para matá-lo.
Richard olhou com atenção para o velho amigo, o luar iluminando fracamente o rosto angular de Zedd. Fagulhas de pensamento se acendiam no seu espírito sombrio.
— Zedd — perguntou ele, em voz baixa —, você teve de fazer isso? Já teve de deixar morrer pessoas inocentes?
Zedd respondeu, com expressão dura e pensativa: — Na última guerra, e outra vez, agora, enquanto estamos falando. Kahlan me disse que Rahl mata as pessoas para conseguir saber meu nome. Ninguém sabe, mas ele continua a matar, na esperança de que no fim alguém possa dizer. Eu podia me entregar para ele para parar a matança, mas então não poderia ajudar a derrotá-lo e muitos mais morreriam. É uma escolha dolorosa: deixar que alguns morram horrivelmente ou deixar que muitos mais morram do mesmo modo.
— Eu sinto muito, meu amigo. — Richard apertou mais a capa contra o corpo, gelado de fora para dentro e de dentro para fora. Olhou para a paisagem quieta, depois outra vez para Zedd. — Eu conheci o fogo-fátuo Shar, antes de ele morrer. Ele deu a vida para ajudar Kahlan a chegar aqui, para que outros possam viver. Kahlan também carrega o peso de deixar que outros morram.
— Sim — disse Zedd, suavemente. — Sinto um aperto no coração quando penso nas coisas que os olhos de Kahlan viram. E no que seus olhos talvez verão.
— Faz com que meu problema sobre nós dois pareça muito pequeno.
Zedd disse, gentil e compassivamente: — Mas nem por isso dói menos.
Richard examinou outra vez a paisagem.
— Zedd, mais uma coisa. Antes de chegarmos à sua casa, ofereci certa maçã para Kahlan.
Zedd riu, surpreso.
— Você ofereceu uma fruta vermelha a uma pessoa de Midlands? É o mesmo que uma ameaça, meu jovem. Em Midlands, qualquer fruta vermelha é um veneno mortal.
— Sim, eu sei disso agora, mas não sabia quando a ofereci.
Zedd se inclinou para a frente e ergueu uma sobrancelha.
— O que ela disse?
Richard olhou para ele.
— Não foi o que ela disse, mas sim o que fez. Ela me agarrou pelo pescoço. Por um momento, vi nos seus olhos que Kahlan ia me matar. Não sei como, mas tenho certeza de que era o que ia fazer. Ela hesitou o tempo suficiente para que eu pudesse explicar. O caso é que Kahlan era minha amiga e muitas vezes salvou minha vida, mas naquele momento ela ia me matar. — Richard fez uma pausa. — Isso é parte do que você estava dizendo, não é?
Com um longo suspiro, Zedd assentiu: — Sim. Richard, se você suspeitasse de que eu era um traidor, não tivesse certeza, apenas suspeitasse, sabendo que, se fosse verdade, nossa causa estaria perdida, poderia me matar? Se não tivesse tempo nem meios para descobrir a verdade, somente acreditasse que eu era um traidor, e só você soubesse, podia me matar imediatamente? Poderia me atacar a mim, seu velho amigo, com intenção de matar? Com violência suficiente para fazer o trabalho?
O olhar de Zedd parecia queimá-lo. Richard ficou atônito.
— Eu... eu não sei.
— Pois acho melhor saber que o faria, do contrário não ia poder continuar a perseguir Rahl. Não teria a determinação necessária para viver, para vencer. Você talvez tenha de tomar decisões de vida ou morte imediatamente. Kahlan sabe disso, ela conhece as conseqüências se falhar. Ela tem a determinação.
— Contudo, ela hesitou. Pelo que você diz, ela cometeu um erro. Eu podia dominá-la. Ela devia ter me matado antes que eu tivesse oportunidade de fazer isso. — Richard franziu a testa. — E estaria errada.
Zedd balançou a cabeça lentamente.
— Não se lisonjeie, Richard. Ela estava com as mãos no seu pescoço. Qualquer coisa que você fizesse não poderia ser feita a tempo. Tudo de que ela precisava era pensar. Kahlan estava no controle e podia se dar ao luxo de permitir que você se explicasse. Ela não cometeu erro algum.
Um pouco abalado, Richard ainda não estava convencido.
— Mas você não estaria na mesma situação, não poderia ser um traidor, bem como eu jamais faria mal a ela. Não vejo a lógica.
— A lógica é que, embora eu não seja um traidor, se você desconfiar que sou, deve estar preparado para agir. Precisa ter a força de fazer isso, se necessário. A lógica é que, mesmo Kahlan sabendo que você é um amigo e não faria mal a ela, quando pensou que estava tentando matá-la, estava preparada para agir. Se você não a tivesse feito acreditar em você imediatamente, ela o mataria.
Richard ficou em silêncio por alguns momentos, olhando para o amigo.
— Zedd, se fosse o inverso, se você pensasse que eu sou um perigo para a nossa causa, você sabe, poderia...
O mago franziu a testa e, sem o menor sinal de emoção, disse: — Num piscar de olhos.
A resposta chocou Richard, mas ele compreendeu, embora o cenário fosse absurdo. Qualquer coisa que não fosse um compromisso total podia significar fracasso para eles. Se fracassassem, Rahl não seria misericordioso. Eles morreriam. Era simples assim.
— Ainda quer ser Seeker? — perguntou Zedd.
Richard olhou para longe.
— Quero.
— Com medo?
— Morrendo de medo.
Zedd bateu de leve no joelho dele.
— Ótimo. Eu também. Eu me preocuparia se não estivéssemos com medo.
O Seeker olhou friamente para o mago.
— Pretendo deixar Darken Rahl morrendo de medo também.
Zedd sorriu: — Você será um bom Seeker, meu jovem. Tenha fé.
Richard estremeceu mentalmente à idéia de Kahlan matá-lo só por ele lhe ter oferecido uma fruta vermelha.
— Zedd — perguntou ele, intrigado —, por que todas as frutas vermelhas em Midlands são mortalmente venenosas? Isso é natural?
O mago balançou a cabeça tristemente.
— Porque, Richard, as crianças adoram frutas vermelhas.
Richard ficou mais intrigado.
— Isso não tem sentido.
Zedd olhou para baixo, passando o dedo na terra por um momento.
— Foi mais ou menos nesta época do ano, durante a última guerra. A colheita estava feita. Descobri certa magia feita por magos há muito tempo. Uma coisa como as caixas de Orden. Era uma magia venenosa, de cor específica e só podia lançar um encantamento. Eu não sabia ao certo como era usada, mas sabia que era perigosa. — Zedd respirou profundamente e pôs as mãos no colo. — Panis Rahl a encontrou e descobriu um meio de fazer funcionar. Ele sabia que as crianças gostavam de frutas e queria desfechar um golpe no nosso coração. Usou a magia para envenenar todas as frutas vermelhas. É mais ou menos como o veneno da trepadeira serpente. Lento, a princípio. Levamos longo tempo para perceber o que provocava a febre e a morte, Panis Rahl deliberadamente escolheu algo de que podia ter certeza — crianças e não apenas adultos comeriam as frutas. — Com voz quase inaudível, ele continuou, olhando para a escuridão: — Muita gente morreu. Muitas crianças.
Richard estava atônito.
— Se foi você quem encontrou a magia, como foi parar nas mãos de Panis Rahl?
O olhar de Zedd seria capaz de gelar um dia de verão.
— Eu estava treinando um jovem aluno. Certo dia, eu o surpreendi brincando com uma coisa proibida. Eu tinha dúvidas sobre ele. Sabia que alguma coisa estava errada, mas gostava muito dele e não dei ouvidos às minhas suspeitas. Resolvi deixar para pensar à noite. Na manhã seguinte, ele fora embora e também a magia construída que eu havia encontrado. Ele era um espião de Panis Rahl. Se eu tivesse agido quando devia e o tivesse matado, toda aquela gente, todas aquelas crianças não teriam morrido.
Richard engoliu em seco.
— Zedd, você não podia saber.
Pensou que o velho amigo ia gritar, ou chorar, ou ir embora furioso, mas Zedd apenas deu de ombros.
— Aprenda com meu erro, Richard. Se você aprender, então todas aquelas vidas não terão sido sacrificadas em vão. Talvez essa história seja uma lição que ajudará a salvar todos do que Darken Rahl pretende fazer se vencer.
Richard esfregou os braços, tentando se aquecer.
— Por que as frutas vermelhas não são venenosas em Westland?
— Toda magia tem limites. Essa tinha um limite de distância do local em que era usada. Estendia-se até a fronteira entre Westland e Midlands. A fronteira não podia ser erigida onde estava o veneno, do contrário Westland teria magia também.
No silêncio frio e escuro, Richard pensou por algum tempo. Finalmente, perguntou: — Há algum modo de eliminar a magia? Fazer com que as frutas vermelhas deixem de ser venenosas?
Zedd sorriu. Richard estranhou aquele sorriso, mas gostou de ver.
— Está pensando como um mago, meu jovem. Pensando em desfazer a magia. — Pensativo, olhou outra vez para a noite. — Deve haver um meio de retirar o encantamento. Eu teria de estudar e ver o que pode ser feito. Se derrotarmos Darken Rahl, pretendo me dedicar a isso.
— Ótimo. — Richard fechou mais a capa. — Todos deviam poder comer maçã quando têm vontade. Especialmente as crianças. — Olhou para o mago. — Zedd, prometo que não vou esquecer essa lição. Não o desapontarei. Não deixarei que todas aquelas pessoas que morreram sejam esquecidas.
Zedd sorriu e passou a mão afetuosamente no braço de Richard.
Os dois amigos ficaram em silêncio, partilhando a quietude da noite e da compreensão mútua, pensando no que não podiam saber: o que viria em seguida.
Richard pensou no que precisava ser feito sobre Panis Rahl e Darken Rahl. Pensou em como tudo parecia desanimador. Pense na solução — ele se disse —, não no problema. Você é o Seeker.
— Quero que você faça uma coisa, mago. Acho que está na hora de desaparecermos. Rahl nos segue há muito tempo. O que você pode fazer com aquela nuvem?
— Acho que tem razão. Eu só queria saber como está ligada a você para poder desligá-la, mas ainda não descobri. Portanto, tenho de fazer outra coisa. — Pensativamente levou a mão ao lado do queixo. — Choveu ou o céu esteve nublado desde que ela o está seguindo?
Richard tentou se lembrar de todos os dias. A maior parte do tempo passara pensando na morte do pai. Parecia tanto tempo...
— Na noite anterior à que eu encontrei a trepadeira serpente, choveu no Ven, mas quando cheguei lá o céu tinha clareado. Não, não choveu. Não me lembro de ter visto o céu nublado desde a morte do meu pai. Pelo menos, nada mais do que algumas nuvens altas e finas. O que significa isso?
— Bem, significa que acho que há um meio de enganar a nuvem, mesmo que eu não possa desligá-la. Uma vez que o céu esteve claro todo esse tempo, quer dizer que provavelmente é obra de Rahl. Ele moveu as outras nuvens para longe, para melhor localizar essa. Simples, mas eficiente.
— Como ele pôde levar as nuvens para longe?
— Ele lançou um encanto nessa para repelir as outras nuvens e de algum modo a ligou a você.
— Então por que você não lança um encantamento mais forte nela para atrair as outras nuvens? Antes que ele se dê conta, ela estará perdida e Rahl não poderá encontrá-la para tentar superar sua magia. Se ele usar magia mais forte para afastar as outras nuvens dessa, não vai saber o que você fez e o forte encantamento que move as nuvens para longe quebrará o elo que tem comigo.
Zedd olhou para ele incrédulo.
— Maldição, Richard, você pegou a coisa direitinho! Meu jovem, acho que você daria um excelente mago.
— Não, obrigado, já tenho um emprego impossível.
Zedd recuou um pouco, com a testa franzida, mas não disse nada. Tirou do bolso uma pedra e a jogou no chão, na frente deles. Ficou de pé e com os dedos traçou um círculo acima da pequena pedra até que, de repente, ela estalou e se transformou em uma pedra grande.
— Zedd, essa é a sua pedra da nuvem!
— Na verdade, meu jovem, é uma pedra de mago. Foi presente do meu pai há muito tempo.
Os dedos do mago moveram-se cada vez mais depressa até uma luz aparecer, com fagulhas e cores, girando no ar. Ele continuou o movimento, misturando e combinando a luz. Tudo era silêncio, mas sentia-se no ar o cheiro agradável de chuva de primavera. Finalmente, o mago pareceu satisfeito.
— Suba na rocha, meu jovem.
Inseguro no princípio, Richard subiu na luz. Sentiu um formigamento e calor na pele como se estivesse deitado ao sol de verão, sem roupa, depois de nadar. Entregou-se ap calor morno com uma sensação de segurança Suas mãos flutuaram para os lados até ficarem na horizontal. Inclinou a cabeça para trás e respirou profundamente. Era maravilhoso, como boiar na água, só que ele estava flutuando na luz. Sentia uma satisfação completa. Sua mente flutuava conectada com tudo a sua volta. Ele era as árvores, a relva, os insetos, os pássaros, os animais, a água, o próprio ar, não um ser separado, mas parte do todo. Compreendia as conexões de tudo de um novo modo, se via sem importância e poderoso ao mesmo tempo. Era uma sensação maravilhosa. Subiu ao ar num pássaro que revoava no alto, viu o mundo através dos olhos dele, caçou com ele, faminto, procurando camundongos, viu a fogueira do acampamento, as pessoas dormindo.
Richard deixou sua identidade se espalhar ao vento. Era um e era todos, sentia o calor das suas necessidades, o cheiro do medo, aquecia-se na sua alegria, compreendia seus desejos e depois deixava que tudo derretesse no nada, até se formar um vazio onde ele estava sozinho no universo, a única coisa viva, só ele existia. Então deixou a luz inundá-lo, a luz que trazia os outros que tinham usado a pedra: Zedd, o pai de Zedd e os magos antes deles, durante anos sem conta, milhares de anos, todos eles. Sua essência o inundou, compartilhava suas mentes e as lágrimas desceram por seu rosto com toda aquela maravilha.
Zedd estendeu as mãos para a frente, espalhando sua poeira mágica, que rodopiou em volta de Richard brilhante e fluida, até ele ficar no centro do vórtice. As fagulhas apertaram o círculo e se reuniram sobre seu peito. Com um tinido como um candelabro de cristal no vento, a poeira subiu para o céu como uma pipa, até alcançar a nuvem. A nuvem recebeu a poeira mágica e se iluminou de dentro para fora com cores ondulantes. Em todo o horizonte, relâmpagos lampejaram, titãs esgarçadas cortaram o céu em todas as direções, ansiosas, na expectativa.
De repente, os relâmpagos cessaram, a iluminação da nuvem diminuiu e desapareceu e a luz da tocha do mago recolheu-se até apagar. De repente, tudo ficou em silêncio. Richard estava ali outra vez, de pé em uma simples rocha. Olhou arregalado para o rosto sorridente de Zedd.
— Zedd — disse ele —, agora eu sei por que você está sempre subindo nesta rocha. Nunca em toda a minha vida senti nada igual. Eu não tinha idéia.
Zedd sorriu sabiamente.
— Meu jovem, você é dotado naturalmente. Estendeu os braços do modo certo, sua cabeça tinha a inclinação adequada e arqueou as costas como devia. Você se adaptou como um filhote de pato à água. Você tem todos os atributos de um ótimo mago. — Inclinou-se alegremente para Richard. — Agora imagine fazer isso sem roupa.
— Faz diferença? — perguntou Richard, atônito.
— É claro. A roupa interfere com a experiência. — Zedd pôs o braço em volta dos ombros de Richard. — Algum dia deixo você tentar.
— Zedd por que você me fez fazer isso? Não era necessário. Você mesmo podia ter feito.
— Como está se sentindo agora?
— Eu não sei. Diferente. Relaxado. Com a mente mais clara. Acho que não tão desanimado, não tão deprimido.
— Por essa razão eu o fiz fazer isso, meu amigo, porque você precisava. Teve uma noite difícil. Não posso mudar os problemas, mas posso fazer com que se sinta melhor.
— Obrigado, Zedd.
— Vá dormir um pouco. Agora é minha vez de vigiar. — Piscou para Richard. — Se algum dia mudar de idéia sobre ser um mago, terei orgulho em trazê-lo para a irmandade.
Zedd levantou a mão. Do escuro, o pedaço de queijo que ele tinha jogado fora flutuou de volta para ele.
Chase parou o cavalo.
— Aqui. É um bom lugar para acampar.
Levou os três para fora da trilha, atravessando um longo trecho cheio de abetos há muito tempo mortos, os esqueletos cinza-prateados quase completamente nus, apenas com alguns galhos e minúsculos filetes de musgo verde opaco. O solo macio estava repleto de corpos decompostos de mariposas. A vegetação marrom de pântano, com as folhas em desordem por causa de tempestades passadas, parecia um mar de serpentes. Os cavalos andavam cautelosamente, escolhendo o caminho entre o emaranhado. O ar quente, pesado de umidade, cheirava a deterioração. Uma nuvem de mosquitos os acompanhava, as únicas coisas vivas que Richard via. Embora fosse um espaço aberto, era pouca a claridade que vinha do céu repleto de nuvens que pairavam opressivamente perto do solo. A névoa se arrastava entre os galhos secos das árvores ainda de pé, deixando-as molhadas e escorregadias.
Chase foi na frente, seguido por Zedd, depois Kahlan, com Richard na retaguarda, vigiando-os no caminho difícil. A visibilidade era limitada a menos de trinta metros e embora Chase não parecesse preocupado, Richard estava atento. Qualquer coisa podia se aproximar sorrateiramente sem que eles vissem. Os quatro davam palmadas nos mosquitos e, exceto por Zedd, mantinham as capas bem fechadas. Richard tinha ótima noção de direção, mas estava satisfeito por ser levado por Chase. Tudo no pântano era igual e ele sabia, por experiência, que era possível se perder facilmente.
Desde a noite anterior, quando subiu na rocha do mago, sentia menos pesada sua responsabilidade e maior a oportunidade de ser parte de algo que valia a pena. Não sentia menos o perigo, mas tinha a impressão de estar mais forte a necessidade de deter Rahl. Via sua parte no plano das coisas como uma chance de ajudar aqueles que não podiam lutar contra Darken Rahl. Sabia que não podia recuar. Isso seria seu fim e o de muitos outros.
Richard olhou para Kahlan, o corpo movendo-se de um lado para o outro, acompanhando o ritmo do passo do cavalo. Desejou poder levá-la a lugares que conhecia nos Bosques Hartland, lugares secretos de beleza e de paz, longe, nas montanhas, mostrar a ela a cachoeira com a caverna atrás, almoçar às margens de um pequeno lago na floresta, levá-la à cidade, comprar-lhe alguma coisa bonita, levá-la a um lugar onde estaria segura. Queria que ela pudesse sorrir sem ter de se preocupar a cada minuto com a possível aproximação do inimigo. Depois da noite anterior, Richard sentia que a primeira parte, sua fantasia de estar com ela, era apenas um desejo vazio.
Chase ergueu a mão, fazendo-os parar.
— Este é o lugar.
Richard olhou em volta. Estavam ainda no meio de um pântano infindável e seco. Não via qualquer fronteira. Tudo parecia o mesmo em todas as direções. Amarraram os cavalos em um tronco caído e seguiram Chase, a pé, até um pouco mais adiante.
— A fronteira — disse Chase, erguendo um braço e apontando.
— Não vejo nada — disse Richard.
Chase sorriu.
— Veja. — Continuou a andar lentamente com passo firme. À medida que se adiantava era envolto por uma luminosidade verde, no começo quase invisível. Ficou mais forte, mais clara até que, depois de uns vinte passos tornou-se um lençol de luz verde fechando-se cada vez mais em volta dele e ficando menos nítida a uns trinta centímetros dos lados e acima, crescendo a cada passo. Era como vidro verde, ondulado e distorcido, mas Richard podia ver as árvores mortas através dele. Chase parou e voltou. O lençol verde e depois a luminosidade enfraqueceram e desapareceram. Richard sempre pensou que a fronteira fosse uma espécie de muro, uma coisa que podia ser vista.
— É isso? — disse Richard, um pouco desapontado.
— O que mais você quer? Agora, veja isto. — Chase procurou no chão alguns galhos mais fortes. A maioria estava apodrecida e se quebrou com facilidade. Finalmente encontrou um, com cerca de quatro metros de comprimento. Ele o levou para a luz, até chegar ao lençol verde. Segurando o galho pelo lado mais grosso, ele o passou pela parede de luz. A quase dois metros de distância, a ponta do galho desapareceu como se o tivessem empurrado para a frente, até Chase segurar o que parecia um graveto de um metro e não um galho de quatro metros. Richard ficou atônito. Podia ver através do muro, mas não a outra extremidade do graveto. Não parecia possível.
Assim que Chase o empurrou até onde era seguro, o graveto saltou violentamente. Não se ouviu qualquer som. Chase puxou o graveto e voltou para os outros. Mostrou para eles a ponta partida de um graveto de dois metros. A ponta estava coberta de baba.
— Sabujos do coração — disse ele, com um sorriso.
Zedd parecia entediado. Kahlan não achava nada divertido. Richard estava perplexo. Vendo que sua platéia era de uma única pessoa, Chase agarrou a camisa de Richard e o arrastou para um lado.
— Venha, vou mostrar como é. — Chase passou o braço direito pelo braço esquerdo de Richard e prosseguiram. — Vá devagar, ele avisou. Eu aviso quando tivermos chegado até onde é seguro. Não largue meu braço. — Continuaram a andar vagarosamente.
A luz verde apareceu. A cada passo se tornava mais intensa, mas era diferente da que envolvera Chase quando foi sozinho. Naquela vez, a luz apareceu nos lados e acima de Chase, mas agora estava em toda a parte. Ouvia-se um zumbido, como de um enxame de abelhas. A cada passo que davam o som ficava mais profundo, porém não mais alto. A luz ver também era mais escura, bem como o bosque em volta, como se a noite estivesse chegando. Então o lençol verde surgiu à frente deles, materializando-se do nada, com o brilho verde em toda a parte. Richard mal podia ver o bosque. Olhou para trás e não viu Zedd e Kahlan.
— Calma agora — avisou Chase. Prosseguiram devagar, dentro da luz verde. Richard sentia a pressão no corpo todo.
Então todo o resto desapareceu, como se estivessem em uma caverna, à noite, com uma luminosidade verde em volta dos dois. Richard segurou com força o braço de Chase. O zumbido parecia vibrar dentro do seu peito.
Com o passo seguinte, o lençol verde mudou de repente.
— Chegamos ao limite — a voz de Chase ecoou. O muro era agora escuro e transparente, como se Richard estivesse olhando para um lago escuro no bosque. Chase ficou imóvel, olhando para ele.
Richard distinguia vultos no outro lado do muro, espectros flutuando no fundo.
Os mortos no seu covil.
Alguma coisa se moveu rapidamente mais perto deles.
— Os sabujos — disse Chase.
Richard teve uma estranha sensação de ansiedade. Desejo da escuridão. Então o zumbido não era apenas um som, mas sim vozes.
Vozes que murmuravam seu nome.
Milhares de vozes distantes o chamavam. Os vultos negros se juntavam, chamando seu nome, estendendo os braços para ele.
Richard de repente teve uma sensação de profunda solidão, sentiu a solidão da sua vida, de todas as vidas. Por que precisava sofrer quando eles o esperavam, de braços abertos? Nunca mais ficaria sozinho. Os vultos negros se aproximaram no escuro, chamando-o e ele começou a ver seus rostos. Era como se estivesse olhando para água turva. Eles chegaram mais perto. Ele queria atravessar aquela parede. Queria estar com eles.
Então viu seu pai.
O coração de Richard disparou. O pai o chamou com voz lamentosa. Estendeu os braços, tentando desesperadamente alcançar o filho. Ele estava muito perto, no outro lado da parede. O coração de Richard parecia prestes a se partir. Havia tanto tempo que não via o pai! Chama por ele, queria desesperadamente tocá-lo. Nunca mais sentiria medo. Bastava alcançar seu pai. Então estaria seguro.
Seguro. Para sempre.
Richard tentou ir até o pai, tentou atravessar a parede. Alguma coisa segurou-lhe o braço. Irritado, ele tentou se livrar. Alguém o impedia de alcançar seu pai. Ele gritou para quem quer que fosse que o deixasse ir. Sua voz soou oca e vazia.
Então, sentiu-se sendo puxado para longe do pai.
A fúria cresceu dentro dele. Alguém tentava puxar seu braço. Richard estendeu a mão para a espada. Sua mão foi segura por um punho de ferro. Gritando, furioso, descontrolado, ele lutou para pegar a espada, mas as mãos grandes o seguraram com firmeza e o arrastaram para longe do pai. Richard continuou a lutar em vão.
A parede verde se ergueu de repente, substituindo a escuridão quando ele foi puxado para trás, por Chase, através da luz verde. O mundo voltou de repente. Estava outra vez no pântano seco e morto.
Richard voltou à realidade, chocado com o que quase tinha feito. Chase soltou sua mão que segurava a espada. Tremendo, Richard se apoiou no ombro dele, tentando recuperar o fôlego e os dois saíram da luz verde. Uma sensação de alívio o envolveu.
Chase se inclinou para ele, procurando ver seus olhos.
— Tudo bem?
Richard fez que sim com a cabeça, chocado demais para falar. Ver o pai trouxera de volta a dor devastadora da perda. Tinha de se concentrar somente em fazer voltar ao normal sua respiração, em ficar de pé. Sua garganta doía. Só então se deu conta de que estivera o tempo todo sufocado, sem perceber.
O terror se apossou de sua mente quando se lembrou do quanto estivera perto de atravessar a parede para a morte. Estava completamente despreparado para aquilo. Se Chase não estivesse ali, estaria morto. Tinha tentado se entregar ao mundo subterrâneo. Sentia como se não se conhecesse. Como podia ter desejado se entregar? Era assim tão fraco? Tão frágil?
Sua cabeça girava dolorosamente. Não podia livrar-se da visão do rosto do pai, do modo como ele o chamou, desesperado. Queria estar com ele. Seria tão fácil! A imagem o obcecava, se recusando a deixá-lo.
Ele não queria que ela se fosse, queria voltar para lá. Sentia como se estivesse sendo puxado, por mais que resistisse.
Kahlan esperava por eles quando saíram da luz verde. Passou o braço protetoramente pela cintura dele, fazendo-o soltar o braço de Chase. Com a outra mão, virou a cabeça de Richard para ela.
— Richard. Escute, pense em outra coisa qualquer. Concentre-se. Tem de pensar em outra coisa. Quero que se lembre de cada cruzamento em todas as trilhas de Hartland. Pode fazer isso para mim? Por favor? Faça isso agora. Lembre-se de todos eles.
Ele assentiu e começou a se lembrar das trilhas.
Kahlan se virou para Chase furiosa e o esbofeteou com toda a força.
— Seu miserável! — gritou ela. — Por que fez isso? — Esbofeteou outra vez o rosto dele, com mais força, com o cabelo quase cobrindo o rosto. Chase não tentou detê-la. — Você fez de propósito! Como pôde fazer isso! — Ergueu a mão pela terceira vez, mas Chase segurou o pulso dela.
— Quer que eu diga ou prefere continuar batendo em mim?
Ela livrou a mão, olhando furiosa para ele. O cabelo estava preso de um lado, atravessando o rosto.
— Passar por Porto do Rei é perigoso. Não é um caminho reto, mas sinuoso. Em alguns trechos, é muito estreito, os dois muros da fronteira quase se tocam. Um passo a mais para qualquer lado e você está perdida. Você atravessou a fronteira, Zedd também. Vocês compreendem. Não se pode ver até começar a entrar, antes disso não sabemos que está ali. Eu sei, porque passei minha vida ali. É mais perigoso agora porque a fronteira está desmoronando e fica mais fácil entrar. Quando chegarmos à paisagem, se alguma coisa começar a persegui-la, Richard pode passar para o outro lado sem perceber.
— Não é desculpa! Você podia ter avisado Richard!
— Nunca vi uma criança que tivesse respeito pelo fogo até ser queimada pelo menos uma vez. Não adianta falar. Se Richard não soubesse como é antes de chegarmos a Porto do Rei, ele não chegaria ao fim da passagem. Eu o levei de propósito. Para mostrar. Para mantê-lo vivo.
— Podia ter contado a ele!
Chase balançou a cabeça.
— Não. Ele precisava ver.
— Chega! — disse Richard, finalmente com a cabeça clara. Todos se viraram para ele. — Ainda está para chegar o dia em que um de vocês três não me faça morrei de medo. Mas sei que todos fazem isso para o meu bem. Neste momento, tenho de me preocupar com coisas mais importantes. Chase, como sabe que a fronteira está se desfazendo? O que está diferente?
— A parede está se partindo. Antes, não se podia ver o escuro através do verde. Não se podia ver nada do outro lado.
— Chase tem razão — disse Zedd. — Eu podia ver daqui.
— Em quanto tempo ela estará desmoronada? — perguntou Richard ao mago.
Zedd deu de ombros.
— É difícil dizer.
— Então adivinhe! — disse Richard. — Dê uma idéia. Seu melhor palpite.
— Pelo menos duas semanas. Mas não mais de seis ou sete.
Richard pensou por um minuto.
— Pode usar sua magia para reforçá-la?
— Não tenho esse poder.
— Chase, acha que Rahl está a par da existência de Porto do Rei?
— Como posso saber?
— Muito bem, alguém já atravessou a passagem?
Chase pensou na pergunta.
— Não que eu saiba.
— Eu duvido — acrescentou Zedd. — Rahl pode viajar pelo mundo subterrâneo, não precisa da passagem. Ele está demolindo a fronteira, não acredito que se importe com um pequeno desfiladeiro.
— Importar-se é diferente de conhecer — disse Richard. — Acho que não devíamos estar parados aqui e me preocupa a idéia de que ele saiba para onde estamos indo.
Kahlan afastou o cabelo do rosto.
— Como assim?
Richard olhou para ela.
— Você pensa que viu sua mãe e sua irmã quando estava dentro da fronteira?
— Eu pensei que fosse. Você acha que não?
— Não acho que aquele fosse meu pai. — Olhou para o mago. — O que você acha?
— É impossível dizer. Ninguém sabe realmente muita coisa sobre o mundo subterrâneo.
— Darken Rahl sabe — disse Richard, amargamente. — Não acredito que meu pai me quisesse daquele modo. Mas sei que Rahl quer, portanto, a despeito do que meus olhos viram, o mais provável é que fossem os discípulos de Darken Rahl tentando me atrair. Você disse que não podemos atravessar a fronteira porque eles estão à nossa espera para nos pegar. Acho que foi o que eu vi, seus seguidores do mundo subterrâneo. E eles sabem onde eu toquei na parede. Se estou certo, isso significa que Rahl logo saberá onde estamos. Não quero ficar aqui para verificar se estou certo.
— Richard tem razão — disse Chase. — E temos de chegar ao Pântano Skow antes do cair da noite, antes de os sabujos do coração saírem da fronteira. É o único lugar seguro daqui até Southaven. Chegaremos a Southaven amanhã antes da noite e lá estaremos livres dos sabujos. No dia seguinte, visitaremos uma amiga minha, Adie, a mulher do osso. Ela mora perto da passagem. Precisaremos da sua ajuda para atravessar o desfiladeiro. Mas, esta noite, nossa única chance é o pântano.
Richard ia perguntar o que era uma mulher do osso e por que precisavam dela para atravessar, quando um vulto escuro mergulhou do ar atacando Chase com tanta violência que o atirou contra várias árvores caídas. Com velocidade espantosa, o vulto negro se enrolou nas pernas de Kahlan, como um chicote, erguendo-a do chão. Ela gritou chamando Richard e ele se lançou para ela. Segurando um no pulso do outro, foram carregados na direção da fronteira.
Os dedos de Zedd lançaram fogo sobre as cabeças deles. O fogo chiou e desapareceu. Outro tentáculo negro enlaçou o mago velozmente, atirando-o para longe. Richard enganchou o pé em um tronco. Apodrecido, o tronco se partiu. Ele girou o corpo, tentando firmar os calcanhares no chão. Suas botas escorregaram no mato molhado do pântano. Ele enfiou os calcanhares no solo mas não teve força para evitar que os dois fossem arrastados. Ele precisava libertar as mãos.
— Passe os braços em volta da minha cintura — gritou ele.
Kahlan obedeceu e segurou com força. A coisa negra sinuosa enrolada em suas pernas ondulou, segurando com mais força. Kahlan gritou. Richard desembainhou a espada, enchendo o ar com o tilintar sonoro.
A luz verde começou a brilhar em volta deles, que começaram a ser arrastados para dentro dela.
A fúria o dominou. O que Richard mais temia estava acontecendo, alguma coisa tentava levar Kahlan. A luz verde ficou mais clara. Arrastado no chão, ele não podia alcançar a coisa que os puxava. Kahlan segurava firme na sua cintura, as pernas dela estavam muito longe e a coisa que as segurava mais longe ainda.
— Kahlan, solte-me!
Apavorada demais, Kahlan apertou mais a cintura dele, ofegando desesperadamente de dor. O lençol verde se ergueu enquanto eles eram arrastados para dentro dele. O zumbido soava alto nos seus ouvidos.
— Solte-me! — gritou ele outra vez.
Tentou tirar as mãos dela da sua cintura. As árvores do pântano começaram a desaparecer na escuridão. Richard sentia a pressão da parede verde. Não podia acreditar na força com que Kahlan o segurava. De costas, arrastado pelo chão, tentou alcançar as mãos dela, mas não conseguiu. Sua única chance era se levantar.
— Kahlan, você tem de me soltar ou estamos mortos! Não deixarei que eles a levem! Confie em mim. Largue! — Richard não sabia se estava dizendo a verdade, mas tinha certeza de que era sua chance.
Kahlan, com a cabeça apertada contra o estômago de Richard, olhou para ele, com o rosto contorcido de dor enquanto a coisa negra a apertava. Com um grito, ela soltou as mãos.
Imediatamente Richard ficou de pé. Quando se levantou de um salto, a parede escura se materializou na sua frente. Seu pai estendeu os braços. Richard liberou toda a raiva, brandindo a espada com toda a força que tinha. A lâmina atravessou a barreira, atravessou a coisa que ele sabia que não era seu pai. O vulto escuro gritou e explodiu numa nuvem de nada.
Os pés de Kahlan estavam na parede, a coisa negra enrolada firmemente nas suas pernas, apertando e puxando. Richard ergueu a espada. A necessidade de matar o dominou.
— Richard, não! É minha irmã!
Ele sabia que não era, assim como o outro vulto não era seu pai. Entregou-se por completo à necessidade ardente e desferiu o golpe. Outra vez a espada atravessou a parede, atingindo a coisa repulsiva que segurava Kahlan. Numa confusão de flashes, gritos sobrenaturais e gemidos agudos, as pernas de Kahlan foram soltas e ela caiu de bruços no chão.
Sem olhar para ver o que mais estava acontecendo, Richard pôs o braço debaixo da cintura dela e a ergueu num único movimento. Segurou Kahlan junto a ele e recuou com a espada erguida contra a parede, atento a qualquer movimento, a qualquer agressão. Eles saíram da luz verde.
Richard continuou a andar até ter certeza de estar livre e chegou além de onde estavam os cavalos. Quando finalmente parou e a soltou, Kahlan se voltou e o abraçou, tremendo. Com esforço, Richard tentou dominar a raiva que o mandava voltar e atacar. Sabia que precisava embainhar a espada para amenizar aquela raiva, aquela necessidade, mas não ousava ainda.
— Os outros onde estão? — perguntou ela em pânico. — Temos de encontrá-los.
Kahlan se afastou dele e começou a correr para a fronteira. Richard a segurou pelo pulso, quase a erguendo do chão.
— Fique aqui! — gritou ele muito mais zangado do que precisava, empurrando-a para baixo.
Richard encontrou Zedd inconsciente. Quando se inclinou para o velho homem, alguma coisa lhe passou rapidamente por cima da cabeça. A sua fúria explodiu. Richard virou-se com a espada em riste e cortou ao meio o vulto negro. Um dos pedaços rolou, gritando estridentemente para dentro da fronteira e a outra parte se evaporou no ar. Richard ergueu Zedd só com um braço, pôs o mago no ombro como um saco de cereais e o levou para Kahlan, deitando-o cuidadosamente no chão. Ela pôs a cabeça do mago no colo e examinou os ferimentos. Richard voltou correndo, meio agachado, mas o ataque esperado não aconteceu. Ele queria que tivesse acontecido, estava ansioso por uma luta, sedento para atacar. Encontrou Chase com parte do corpo preso debaixo de um tronco caído. Richard segurou a cota de malha e o tirou dali. O sangue escorria de um ferimento no lado da cabeça de Chase. O ferimento estava cheio de folhas e terra.
A mente de Richard disparou, tentando imaginar o que devia fazer. Não podia levantar Chase só com um braço e não queria largar a espada. Sabia que não queria pedir a ajuda de Kahlan, queria que ela ficasse longe de tudo aquilo. Segurou com força a túnica de couro do guarda e começou a arrastá-lo. O mato escorregadio do pântano facilitava de certo modo, mas mesmo assim era difícil, porque ele tinha de desviar de várias árvores caídas. Surpreendentemente, nada o atacou. Talvez ele tivesse ferido gravemente ou até mesmo matado a coisa. Imaginou se era possível matar algo que já estava morto. A espada tinha magia. Richard não sabia do que ela era capaz. Não tinha certeza de que as coisas na fronteira estavam mortas. Finalmente chegou onde Kahlan estava com Zedd e arrastou Chase para perto dela. O mago continuava inconsciente. Kahlan estava pálida e preocupada.
— O que vamos fazer?
Richard olhou em volta.
— Não podemos ficar aqui e não podemos deixá-los. Vamos pôr os dois nos cavalos e sair daqui. Trataremos dos ferimentos quando estivermos a uma distância segura.
Olhando para todos os lados, Richard embainhou a espada e ergueu Zedd para a sela. Chase foi mais difícil. Ele era grande e todas as suas armas, pesadas. O sangue continuava a sair do lado da cabeça dele, empapando-lhe o cabelo e o movimento de erguê-lo para a sela aumentou a hemorragia. Richard resolveu que o ferimento tinha de ser tratado imediatamente. Tirou da mochila um líquido feito com folha de aum e uma tira de pano. Fez uma compressa sobre o ferimento e Kahlan passou a atadura em volta da cabeça de Chase. O pano ficou cheio de sangue quase imediatamente, mas Richard sabia que em pouco tempo o aum deteria a hemorragia.
Richard ajudou Kahlan a montar. Sabia que a dor nas pernas era mais forte do que ela queria admitir. Deu a ela as rédeas do cavalo de Zedd, montou e segurou as do cavalo de Chase. Então procurou se orientar cuidadosamente. Sabia que não seria fácil encontrar a trilha, a neblina se adensava, a visibilidade era cada vez menor. Parecia que fantasmas os vigiavam nas sombras. Richard não sabia se devia ir na frente ou atrás de Kahlan, nem qual o melhor modo de protegê-la, por isso seguiu ao lado dela. Zedd e Chase não estavam amarrados e podiam facilmente escorregar das selas, por isso tinham de ir devagar. Os abetos mortos pareciam todos iguais e eles não podiam seguir em linha reta porque tinham de fazer a volta nas árvores mortas. Richard dava palmadas nos mosquitos que tentavam entrar na sua boca.
O céu era igual em toda parte, cinza escuro. Não era possível saber onde estava o sol para se orientar. Depois de algum tempo, Richard não tinha certeza de estar no caminho certo, tinha a impressão de que já deviam ter chegado à trilha. Procurou se orientar por algumas árvores tomando-as como pontos de referência e, quando chegavam a uma delas, procurava outra mais adiante, esperando que estivessem seguindo uma linha reta. Para fazer isso, tinha de alinhar pelo menos três árvores a fim de garantir a direção, mas não era possível, por causa da névoa.
Não tinha certeza de não estar caminhando em círculos. Mesmo que estivesse seguindo em linha reta, não sabia se estava indo para a trilha.
— Tem certeza de que estamos no caminho certo? — perguntou Kahlan. — Tudo parece igual.
— Não. Mas pelo menos não encontramos a fronteira.
— Você acha que devemos parar e cuidar deles?
— Não é seguro. Ao que eu sei, podemos estar a três metros da fronteira.
Kahlan olhou em volta, preocupada. Richard pensou em fazer Kahlan esperar com os outros dois e seguir em frente à procura da trilha, mas descartou a idéia. Temia não conseguir encontrá-la outra vez. Tinham de ficar juntos. Ele começou a imaginar o que fariam se não encontrassem o caminho para fora dali antes do anoitecer. Como podiam se proteger dos sabujos do coração? Se fossem muitos, nem a espada poderia detê-los. Chase tinha dito que precisavam chegar ao pântano antes da noite. Não disse por quê, nem como o pântano podia protegê-los. A vegetação marrom do pântano era como um vasto oceano, com grupos de árvores grandes.
Um carvalho apareceu à esquerda, depois outros, alguns com folhas verde-escuras, brilhantes, molhadas pela névoa. Não tinham entrado por ali. Richard os levou um pouco para a direita, seguindo a margem do pântano morto, esperando estar indo de volta para a trilha.
Sombras os vigiavam atrás dos arbustos, entre os carvalhos. Richard disse a si mesmo que sua imaginação fazia com que as sombras parecessem ter olhos. Não havia vento, qualquer movimento, qualquer som. Ficou irritado por estar perdido. Ele era um guia, perder-se era indesculpável.
Richard suspirou aliviado quando finalmente viu a trilha. Desmontaram rapidamente e examinaram os dois feridos. Zedd continuava na mesma, mas o ferimento de Chase não sangrava mais. Richard não tinha idéia do que fazer com eles. Não sabia se a inconsciência era devida a um golpe recebido ou obra de magia da fronteira. Kahlan também não sabia.
— O que acha que devemos fazer? — perguntou ela.
Richard tentou não demonstrar sua preocupação.
— Chase disse que devemos ir para o pântano, do contrário seremos atacados pelos sabujos. Não vai adiantar nada pararmos aqui para atendê-los e eles acordarem; os sabujos podem vir. Temos duas opções, deixá-los aqui ou levá-los conosco. De modo algum os deixarei. Vamos amarrar os dois nas selas e partir para o pântano.
Kahlan concordou. Rapidamente amarraram os amigos nas selas. Richard mudou o curativo de Chase e limpou um pouco o ferimento. A névoa se transformou em garoa. Ele procurou os cobertores nas mochilas, tirou-os dos envelopes encerados, cobriu com eles os amigos e pôs o encerado por cima, passando uma corda em cada um.
Quando terminaram, Kahlan inesperadamente o abraçou com força por um momento, afastando-se antes que Richard tivesse tempo de retribuir o gesto.
— Obrigada por me salvar — disse ela suavemente. — A fronteira me apavora. — Olhou timidamente para ele. — E se ousar lembrar que eu disse para não procurar me salvar, eu mato você. — Ela sorriu.
— Nem uma palavra. Prometo.
Richard sorriu também e puxou o capuz da capa para a cabeça dela, protegendo o cabelo da chuva. Puxou seu próprio capuz também e seguiram pela estrada.
O bosque estava deserto. A chuva pingava do emaranhado de galhos acima deles. Galhos chegavam até o meio da trilha como garras procurando prender cavalos e cavaleiros. Apesar de conduzidos por eles, os cavalos trotavam cautelosamente no centro da trilha, virando a cabeça para um lado e para o outro, com as orelhas empinadas, como para ouvir as sombras. A mata era tão densa dos dois lados que de modo nenhum poderiam fugir para o meio das árvores se fosse preciso. Kahlan aconchegou mais a capa. Era continuar ou voltar. E não havia como voltar. Cavalgaram até o cair da noite.
Quando a morte do dia começou a roubar a luz cinzenta do céu, ainda não tinham chegado ao pântano e não tinham idéia de quanto faltava para chegar. Ao longe, do meio da mata cerrada, ouviram uivos. Prenderam a respiração.
Os sabujos do coração estavam chegando.
Os cavalos não precisaram de encorajamento para correr. Voaram pela estrada a toda a velocidade, sem que os cavaleiros tentassem detê-los, energizados pelos uivos dos sabujos. Água e lama espirravam das suas patas, a chuva lhes escorria das costas e lama lhes cobria as barrigas e as pernas. Quando os sabujos gritavam, os cavalos relinchavam de medo.
Richard fez Kahlan seguir na frente, para ficar entre ela e os perseguidores. Os sons dos sabujos eram ainda distantes, vindos do lado da fronteira, mas ele sabia que era uma questão de tempo até serem alcançados. Se pudessem virar para a direita, afastando-se da fronteira, havia uma chance de fuga, mas a mata era espessa e impenetrável. Mesmo que achassem uma abertura, teriam de seguir devagar, seria morte certa se tentassem. A única chance era continuar na estrada e chegar ao pântano antes de serem alcançados. Richard não sabia quanto faltava, só sabia que tinham de chegar.
As cores do dia transformavam-se num cinza sombrio à medida que a noite avançava. A chuva batia no seu rosto com gotas pequenas e frias aquecidas pelo suor e descia pelo pescoço. Richard via os dois amigos saltarem e sacudirem nas selas, esperando que estivessem bem amarrados, esperando que não estivessem gravemente feridos, esperando que logo recobrassem a consciência. A corrida não podia fazer bem a eles. Kahlan não olhava para trás. Atenta ao que fazia, seguia no galope com a cabeça abaixada.
A estrada cheia de curvas serpenteava entre os carvalhos impossivelmente deformados e as formações rochosas. As árvores mortas eram agora mais raras. Folhas de carvalho de freixos e de bordo escondiam dos cavaleiros os últimos vestígios do dia, escurecendo mais ainda a estrada. Os sabujos se aproximavam quando a estrada começou a descer para um bosque de cedros. Um bom sinal, Richard pensou. O cedro geralmente crescia em solo úmido.
O cavalo de Kahlan desapareceu no começo de uma descida. Richard chegou à beirada da encosta íngreme e a viu outra vez, descendo para uma bacia seca. O topo emaranhado das árvores estendia-se a distância, pelo menos até onde ele podia ver com a chuva fraca e a pouca luz. Era o Pântano Skow, finalmente.
Era intenso o cheiro de madeira molhada e apodrecida quando ele a seguiu na disparada entre as espirais de névoa que se moviam e giravam à sua passagem. Gritos agudos e pios roucos soavam atrás deles, cada vez mais perto. Trepadeiras lenhosas pendiam dos galhos escorregadios e contorcidos das árvores, cujas raízes apareciam na água como garras, e trepadeiras menores espiralavam em volta de tudo que tivesse força para sustentá-las. Tudo parecia crescer em cima de alguma coisa, procurando tirar vantagem Água escura e estagnada surgiu sob conjuntos de arbustos, envolvendo grupos de árvores de troncos grossos e espessos e tapetes de lentilha d’água boiavam na água, parecendo gramados bem cuidados. A vegetação luxuriante parecia engolir o som das patas dos cavalos, permitindo apenas a passagem dos ecos nativos através da água.
A estrada se estreitou, transformando-se numa trilha que lutava para se manter acima da água escura e foi preciso diminuir o passo dos cavalos para evitar que quebrassem uma perna nas raízes. Richard viu que, quando o cavalo de Kahlan passava, a superfície da água formava preguiçosos círculos concêntricos quando coisas se moviam debaixo dela. Ouviu os sabujos no topo da bacia. Kahlan se virou para ouvir os uivos. Se ficassem na trilha, os sabujos os alcançariam numa questão de minutos. Richard olhou em volta e desembainhou a espada. O tilintar da lâmina ecoou na água turva. Kahlan parou e olhou para ele.
— Ali — Richard apontou com a espada para o outro lado da água — naquela ilha. Parece ter altura suficiente para estar seca. Talvez os sabujos do coração não saibam nadar.
Era uma tênue esperança, mas Richard não tinha outra idéia. Chase tinha dito que estariam seguros no pântano, mas não disse como. Era a única coisa que podia pensar. Kahlan não hesitou. Levou o cavalo na direção da ilha, puxando Zedd. Richard a seguiu de perto com Chase atrás, vigiando a trilha, vendo movimentos entre as árvores. A água parecia não ter mais de metro e vinte de profundidade, com o fundo lamacento. O mato arrancado da lama flutuava na superfície quando o cavalo de Kahlan entrou na água, seguindo para a ilha.
Então ele viu as cobras.
Corpos escuros coleavam na água, logo abaixo da superfície, nadando rumo a eles, vindo de todas as direções. Algumas erguiam a cabeça, esticando a língua vermelha para fora da boca. Eram marrons com manchas cor de cobre, quase invisíveis na água escura e mal perturbavam a superfície quando se moviam. Richard nunca vira cobras tão grandes. Kahlan olhava para a ilha e ainda não as tinha visto. A terra seca estava muito longe. Ele sabia que não a alcançariam antes que as cobras os atacassem.
Richard olhou para trás, para ver se podiam voltar para terreno mais alto. No lugar onde tinham deixado a trilha, viu os vultos escuros dos sabujos rosnando. As cabeças abaixadas, os corpos grandes e negros andavam de um lado para o outro, querendo entrar na água para alcançar a presa, mas apenas uivando.
Richard abaixou a ponta da espada até tocar na água, arrastando-a na superfície, formando uma pequena esteira, preparando-se para o golpe na primeira serpente que se aproximasse. Então aconteceu uma coisa surpreendente. Quando a espada entrou na água, as cobras viraram de repente e fugiram o mais depressa possível. De algum modo, a magia da espada as assustou. Richard não sabia ao certo por que a magia funcionava assim, mas ficou feliz
Seguiam entre os grandes troncos das árvores que se erguiam como colunas no lodaçal. Afastavam as trepadeiras e as faixas de musgo. Quando passavam por trechos mais rasos, a ponta da espada não alcançava a água. As serpentes voltavam imediatamente. Richard se inclinou para baixo, a ponta da espada entrou na água e as cobram fugiram outra vez. Richard tentou imaginar o que aconteceria quando chegassem à terra seca. As serpentes os seguiriam. A magia da espada as manteria longe deles como na água? As cobras podiam ser um problema tão sério quanto os sabujos.
A água escorria do cavalo de Kahlan quando subiu na ilha. Havia alguns choupos no lugar mais alto, no centro e nos cedros na beirada da água na outra extremidade da pequena ilha, porém a maior parte era coberta de junco e íris. Para ver o que acontecia, Richard tirou a espada da água. As cobras começaram a nadar para ele. Quando saiu da água, algumas viraram e foram embora, outras ficaram na beira d’água, mas nenhuma o seguiu na terra seca.
Quase no escuro, Richard deitou Zedd e Chase no chão, debaixo dos choupos. Tirou lonas das mochilas e as estendeu entre as árvores, fazendo um pequeno abrigo. Tudo estava molhado, mas como não havia vento, o abrigo improvisado evitava que a chuva os atingisse. Não havia possibilidade de fazer uma fogueira por enquanto, pois toda a madeira estava molhada. Pelo menos a noite não estava fria. Sapos coaxavam na escuridão molhada. Richard pôs duas velas grossas num pedaço de madeira, para iluminar o abrigo.
Juntos, examinaram Zedd. Não parecia haver qualquer ferimento, mas ele continuava inconsciente. Chase também estava na mesma.
Kahlan passou a mão na testa de Zedd.
— Não é bom sinal os olhos de um mago estarem fechados assim. Não sei o que se pode fazer.
Richard balançou a cabeça.
— Eu também não. Ainda bem que eles não têm febre. Talvez haja um curandeiro em Southaven. Farei macas que os cavalos podem puxar. Acho que será melhor do que continuar a viagem como vieram até aqui.
Kahlan apanhou mais dois cobertores para manter os amigos aquecidos, depois ela e Richard se sentaram ao lado das velas, com a água pingando em volta deles. Olhos amarelos brilhantes esperavam na trilha, no escuro, entre as árvores. Os olhos acompanhavam o movimento dos sabujos do coração, de um lado para o outro. Ocasionalmente Richard e Kahlan ouviam rosnados de frustração. Eles vigiavam seus caçadores no outro lado da água.
Kahlan olhou para os olhos cintilantes dos sabujos.
— Por que será que não nos seguiram?
— Acho que têm medo das cobras.
Kahlan deu um pulo, olhando em volta rapidamente, empurrando com a cabeça a lona que os cobria.
— Cobras? Que cobras? Não gosto de cobras — disse ela.
Richard ergueu os olhos.
— Cobras d’água grandes. Elas fugiram quando eu mergulhei a ponta da espada na água. Acho que não nos precisamos preocupar, elas não subiram para terra seca atrás de nós. Acho que não há perigo.
Ela olhou em volta cautelosamente, aconchegou-se mais na capa e se sentou mais perto dele dessa vez.
— Você podia ter me avisado — disse ela, franzindo a testa.
— Eu não sabia, até que as vi, e os sabujos estavam bem atrás de nós. Acho que não tive muita escolha e não quis assustar você.
Kahlan ficou calada. Richard tirou da mochila uma salsicha e um pão duro, as últimas coisas que tinham para comer. Cortou o pão ao meio e cortou a salsicha, dando alguns pedaços a ela. Apararam água da chuva em xícaras de lata. Comeram em silêncio, vigiando para detectar qualquer tipo de ameaça, ouvindo o ritmo da chuva.
— Richard — perguntou ela, finalmente —, você viu minha irmã na fronteira?
— Não. Fosse o que fosse que pegou você, não parecia uma pessoa e aposto que a coisa que eu abati antes não pareceria com meu pai para você. — Ela balançou a cabeça: — não, não parecia. — Penso — disse ele — que eles só aparecem sob a forma de uma pessoa que você quer ver, para enganar.
— Acho que tem razão — suspirou ela, dando uma mordida no pedaço de salsicha. Quando acabou de mastigar, acrescentou: — Fico contente. Detestaria pensar que tivemos de machucá-los.
Richard concordou. O cabelo dela estava molhado e uma parte grudada nos lados do rosto. — Porém, há mais uma coisa que achei estranha. Quando aquela coisa da fronteira, fosse o que fosse, atacou Chase, o golpe foi rápido e certeiro e antes que pudéssemos fazer alguma coisa ela agarrou você com toda facilidade. O mesmo se deu com Zedd; ela o pegou na primeira investida. Mas quando voltei para atacá-la, ela tentou, mas não me acertou e não tentou outra vez.
— Eu notei — disse ela. — Quando atacou você, ela errou o alvo. Era como se não soubesse que você estava ali. Sabia onde nós três estávamos, mas parecia não conseguir encontrar você.
Richard pensou por um momento.
— Talvez fosse a espada.
Kahlan deu de ombros.
— Fosse o que fosse, fico feliz por ter acontecido.
Richard não tinha certeza de que foi por causa da espada. As cobras tinham medo da espada e fugiam dela. A coisa da fronteira não demonstrou medo, era como se simplesmente não conseguisse encontrá-lo. Outra coisa o intrigava. Quando ele atacou a coisa que parecia seu pai, não sentiu dor. Zedd disse que teria de pagar um preço por matar alguém com a espada e que ele sentiria a dor do que tinha feito. Talvez fosse porque a coisa já estava morta. Talvez tudo estivesse na sua cabeça, nada daquilo era real. Não podia ser. Era bastante real para atacar seus amigos. A certeza de que não era seu pai que tinha abatido começou a vacilar.
Acabaram de comer em silêncio, enquanto ele pensava no que podia fazer por Zedd e por Chase e concluiu que era nada. Zedd tinha medicamentos com ele, mas só Zedd sabia como usá-los. Talvez fosse magia da fronteira que os tivesse deixado daquele jeito. Zedd tinha magia, mas era também o único que sabia como usar.
Richard tirou uma maçã da mochila e a cortou em fatias, retirou as sementes e deu metade a Kahlan. Ela chegou mais perto e apoiou a cabeça no braço dele.
— Cansada? — perguntou Richard.
Ela inclinou a cabeça assentindo, depois disse: — E estou dolorida em lugares que não posso mencionar. — Comeu outra fatia da maçã. — Você sabe alguma coisa sobre Southaven?
— Ouvi outros guias mencionarem, quando passaram por Hartland. Pelo que dizem, é um lugar de ladrões e desajustados.
— Não parece um lugar que tenha um curandeiro. — Richard não respondeu. — Então, o que vamos fazer?
— Eu não sei, mas eles vão melhorar, vão ficar bons.
— E se não ficarem? — insistiu ela.
Richard tirou o pedaço de maçã da boca e olhou para ela.
— Kahlan, o que você está tentando dizer?
— Estou dizendo que devemos nos preparar para deixá-los. Para continuar.
— Não podemos — respondeu ele com firmeza. — Precisamos dos dois. Lembra quando Zedd me deu a espada? Ele disse que queria que eu levasse todos para o outro lado da fronteira. Ele disse que tinha um plano. Não me contou o que era. — Olhou para os sabujos no outro lado da água. — Precisamos deles — repetiu.
Kahlan tirou a casca do pedaço de maçã.
— E se eles morrerem esta noite? Então, o que faremos? Temos de continuar.
Richard sabia que Kahlan olhava para ele, mas não olhou para ela. Compreendia a necessidade de Kahlan de deter Rahl. Ele sentia o mesmo e não permitiria que coisa alguma os impedisse, mesmo se significasse deixar os amigos, mas não tinham chegado a esse ponto ainda. Sabia que ela estava apenas tentando se certificar de que Richard tinha a convicção necessária, a determinação exigida. Kahlan desistira de muito por causa da missão e perdera muito para Rahl, assim como ele. Ela queria saber que ele era capaz de continuar na liderança, a qualquer custo.
A luz das velas iluminava suavemente seu rosto, um pequeno brilho no escuro. Reflexos das chamas dançavam nos seus olhos. Richard sabia que não era agradável para ele dizer aquilo.
— Kahlan, eu sou o Seeker, compreendo o peso da responsabilidade. Farei tudo que for necessário para deter Rahl. Qualquer coisa. Acredite. Porém, não desperdiçarei as vidas dos meus amigos facilmente. Por enquanto temos muito com que nos preocupar. Não vamos inventar mais problemas.
A chuva pingava das árvores, ecoando na escuridão vazia. Kahlan pôs a mão no braço dele, como que para se desculpar. Sabia que não tinha do que se desculpar, estava apenas tentando enfrentar a verdade, uma possível verdade. Ele quis tranqüilizá-la.
— Se eles não melhorarem — disse ele, olhando nos olhos dela— e se houver um lugar seguro onde eu possa deixá-los com uma pessoa de confiança, então faremos isso e seguiremos nossa viagem.
— Era tudo que eu queria saber.
— Eu sei. — Richard terminou de comer a maçã. — Por que você não dorme um pouco? Eu fico de vigia.
— Não vou poder dormir — disse ela, indicando os sabujos —, não com eles nos vigiando desse modo. Nem rodeada por cobras.
Richard sorriu.
— Muito bem então, que tal me ajudar a fazer as padiolas para serem puxadas pelos cavalos? Assim poderemos sair daqui de manhã, logo que os sabujos se forem.
Retribuindo o sorriso, Kahlan se levantou. Richard tirou uma espécie de machado de guerra do arsenal de Chase e descobriu que funcionava tão bem na madeira quanto em carne e em osso. Richard não tinha certeza de que Chase aprovaria usar uma das suas armas preciosas daquele modo, na verdade, achava que não. Richard sorriu; mal podia esperar para contar a ele. Podia imaginar a desaprovação do amigo. É claro. Chase teria de acrescentar algo à história cada vez que a contasse. Para Chase, uma história sem acréscimos era como carne sem molho, completamente seca.
Seus amigos tinham de melhorar, ele pensou. Simplesmente tinham. Ele não suportaria se não ficassem bons.
Terminaram depois de várias horas. Kahlan ficou muito perto dele com medo das cobras e dos sabujos do coração que os vigiaram o tempo todo. Richard tinha pensado em usar a besta de Chase para tentar matar alguns deles, mas finalmente decidiu não fazer isso. Os sabujos não podiam alcançá-los e iriam embora com o nascer do dia.
Quando acabaram, examinaram os dois amigos e depois se sentaram outra vez ao lado das velas. Richard sabia que Kahlan estava cansada — ele mal podia manter os olhos abertos —, ela, porém, não queria deitar-se para dormir, por isso ele a fez se encostar nele. Logo a respiração de Kahlan ficou mais lenta e ela adormeceu. Foi um sono agitado. Richard percebeu que ela estava tendo pesadelos. Quando Kahlan começou a choramingar e se agitar, ele a acordou. Com a respiração acelerada, Kahlan estava quase chorando.
— Pesadelos? — perguntou ele, passando as costas dos dedos na cabeça dela.
Kahlan fez que sim com a cabeça encostada nele.
— Eu estava sonhando com a coisa da fronteira que segurou minhas pernas. Sonhei que era uma cobra enorme.
Richard passou o braço em volta dos ombros dela e a apertou contra ele. Kahlan não reclamou, mas dobrou os joelhos e os abraçou, sempre encostada em Richard. Richard se preocupou, pensando que ela podia ouvir seu coração disparado. Se ouviu, não disse nada e logo adormeceu outra vez. Ele ouvia a respiração de Kahlan, ouvia os sapos e a chuva. Ela dormiu calmamente. Ele fechou os dedos em volta do dente pendurado no seu pescoço debaixo da camisa. Vigiava os sabujos do coração. Eles o vigiavam.
Kahlan acordou quase ao raiar do dia, quando ainda estava escuro. Richard estava com dor de cabeça de tão cansado. Kahlan insistiu para que ele deitasse para dormir um pouco enquanto ela vigiava. Richard não queria, queria continuar abraçado a ela, mas estava com muito sono para discutir.
Quando ela o sacudiu gentilmente, já era dia. Luz fraca e cinzenta filtrava-se entre o verde escuro do pântano e através da névoa espessa que fazia com que o mundo parecesse pequeno e fechado. A água em volta deles parecia temperada com vegetação apodrecida, uma sopa onde ocasionalmente apareciam círculos concêntricos provocados pela vida invisível sob a superfície. Olhos negros afastavam os pés de lentilha-d’água, vigiando-os.
— Os sabujos foram embora — disse ela. A roupa de Kahlan parecia mais seca do que na noite anterior.
— Há quanto tempo? — perguntou ele, esfregando os braços para ativar a circulação.
— Vinte, talvez trinta minutos. Quando o dia chegou, eles se foram.
Kahlan deu a ele uma xícara de chá quente. Richard olhou interrogativamente pra ela.
— Eu segurei em cima da vela até ficar quente.
Richard ficou surpreso com a inventividade dela. Kahlan deu a ele um pedaço de fruta seca e comeu outro pedaço. Richard viu o machado de guerra encostado na perna dele e concluiu que Kahlan sabia como ficar de vigia.
Caía ainda uma chuva fina. Pássaros estranhos soltavam gritos rápidos e raivosos no outro lado do pântano e outros respondiam a distância. Insetos pairavam acima da água e ocasionalmente ouvia-se um ruído de mergulho.
— Alguma mudança em Zedd ou Chase? — perguntou ele.
Ela respondeu com relutância.
— A respiração de Zedd está mais lenta.
Richard foi imediatamente examinar o mago. Zedd mal parecia vivo, acinzentado e emaciado. Richard encostou o ouvido no peito do velho homem e sentiu o coração batendo normalmente, mas ele respirava mais devagar e sua pele estava fria e pegajosa.
— Acho que agora estamos livres dos sabujos. É melhor ver se conseguimos ajuda — disse ele.
Richard sabia que Kahlan estava com medo das cobras — ele também estava e disse isso a ela — mas Kahlan não deixou que o medo interferisse no que tinham de fazer. Confiou no que ele disse, que as cobras não chegavam perto da espada e atravessou a água sem hesitação, quando Richard disse que podiam ir.
Tiveram de atravessar a água duas vezes, uma com Zedd e Chase e outra para levar as partes das padiolas que só podiam ser usadas em terra seca.
Atrelaram os cabos das padiolas aos cavalos, mas ainda não podiam usá-las porque as raízes expostas da trilha provocavam solavancos. Teriam de esperar até sair do pântano.
A manhã ia em meio quando chegaram a uma estrada melhor. Pararam para acomodar os dois amigos nas padiolas e cobri-los com cobertores e lona. Com satisfação, Richard viu que o arranjo funcionava bem, não os atrasava de modo algum e a lama ajudava as padiolas a escorregar no chão. Almoçaram sem desmontar, passando a comida de um para o outro, enquanto seguiam caminho. Pararam só para verificar se Zedd e Chase estavam bem e continuaram sob a chuva.
Chegaram a Southaven antes da noite. A cidade era pouco mais que um conjunto de casas e prédios decrépitos entre os carvalhos e as faias, quase como se quisessem dar as costas à estrada, a perguntas, a olhos honestos. Nenhum parecia jamais ter sido pintado. Algumas casas tinham remendos de lata onde a chuva tilintava. No centro, havia uma loja e ao lado dela um prédio de dois andares. Uma tabuleta amassada indicava que era uma estalagem sem nome. Luz amarela de lampião nas janelas do primeiro andar era a única cor no cinzento do dia e do prédio. O lixo se amontoava em desordem ao lado do prédio e a casa ao lado parecia se inclinar, solidária à pilha de lixo.
— Fique perto de mim — disse Richard, quando desmontaram. — Os homens são perigosos.
Kahlan sorriu estranhamente com o canto da boca.
— Estou acostumada com essa espécie de gente.
Richard se perguntou o que isso queria dizer, mas ficou calado.
Quando entraram, todos os olhos se voltaram para eles. O lugar era mais ou menos o que Richard esperava. Lampiões a óleo iluminavam uma sala cheia da fumaça ardida de cachimbo. As mesas dispostas desordenadamente eram rústicas, algumas não mais do que tábuas sobre barris. Não havia cadeiras, só bancos.
Uma porta fechada à esquerda provavelmente dava para a cozinha. À direita, na sombra, uma escada sem corrimão levava aos quartos. O assoalho, com uma série de caminhos abertos entre a sujeira, tinha manchas escuras de líquido derramado.
Os homens eram uma coleção de caçadores de peles, viajantes e problemas. Muitos tinham barbas maltratadas. Quase todos eram grandes. O lugar cheirava a cerveja, fumaça e suor.
Kahlan ficou ao lado dele, orgulhosa e calma. Não era facilmente intimidada. Richard pensou que talvez o certo seria ela se intimidar. Ela se destacava no meio da ralé como um anel de ouro na mão de um pedinte. Sua postura aumentava o embaraço do ambiente. Quando ela retirou o capuz, sorrisos apareceram por toda a parte, revelando uma coleção de dentes tortos e ausentes. O olhar faminto dos homens não combinava com os sorrisos. Richard desejou que Chase estivesse acordado.
Alarmado, ele percebeu que teriam problemas.
Um homem forte deu alguns passos à frente e parou. Vestia uma camisa sem mangas e um avental que parecia jamais ter sido branco. O alto da cabeça calva e brilhante refletia a luz dos lampiões e os pêlos crespos dos braços competiam com a barba. Enxugou as mãos num trapo imundo e o pôs num ombro.
— Posso fazer alguma coisa por vocês? — perguntou o homem secamente. Esperou, girando um palito na boca.
Com o tom de voz e com os olhos, Richard procurou dar a entender que não queria encrenca.
— Há um curandeiro nesta cidade?
O proprietário olhou para Kahlan e outra vez para Richard.
— Não.
Richard notou que, ao contrário dos outros homens, ele mantinha os olhos no lugar devido, quando olhava para Kahlan. Isso era importante.
— Então queremos um quarto — abaixou a voz. — Temos dois amigos feridos li fora.
Tirando o palito da boca, o homem cruzou os braços.
— Não quero encrenca.
— Eu também não — disse Richard em tom deliberadamente ameaçador.
O homem examinou Richard de alto a baixo, os olhos demorando um pouco na espada. Com os braços ainda cruzados, olhou para os olhos de Richard.
— Quantos quartos vai querer? A casa está cheia.
— Um basta.
Um homem grande se levantou no centro da sala. Tinha cabelos ruivos compridos e emaranhados e os olhos muito juntos um do outro. A barba estava molhada de cerveja. Uma pele de lobo lhe pendia do ombro. Sua mão descansava no cabo de uma longa faca.
— Você tem aí uma prostituta cara, rapaz — disse o homem ruivo. — Acredito que não vai se importar se passarmos algum tempo no seu quarto?
Richard olhou para o homem. Sabia que aquele desafio só podia acabar em sangue. Não mexeu os olhos, mas sua mão se moveu lentamente para a espada. Sua fúria explodiu antes mesmo dos seus dedos chegarem ao punho.
Aquele era o dia em que teria de matar outros homens.
Muitos deles.
Os dedos de Richard se apertaram em volta do filete trançado do punho e as juntas ficaram brancas. Kahlan puxou a manga do braço que segurava a espada. Disse o nome dele em voz baixa, acentuando as últimas palavras, como a mãe de Richard fazia quando o avisava para ficar fora de alguma coisa. Richard olhou para ela. Com um sorriso encantador para o homem ruivo, ela disse com voz rouca: — Vocês não entenderam. Hoje é meu dia de folga. Fui eu que o contratei para passar a noite. — Deu uma palmada na nádega de Richard. Com força. Ele ficou tão surpreso que não se mexeu. Kahlan passou a língua no lábio superior, olhando para o homem ruivo. — Mas se ele não mostrar que vale o que estou pagando, você será o primeiro que chamarei. — Sorriu outra vez sedutoramente.
Houve um momento de silêncio pesado. Richard resistiu com todas as forças ao impulso de empunhar a espada. Prendeu a respiração enquanto esperava para ver onde aquilo ia parar. Kahlan continuou a sorrir para o homem de um modo que só aumentava sua fúria.
Vida e morte se enfrentaram nos olhos do homem. Ninguém se moveu. Então ele caiu na gargalhada. Todos riram alto e com vontade. O homem se sentou e os outros recomeçaram a conversar, ignorando Richard e Kahlan. Richard respirou. O proprietário os fez recuar um pouco, sorrindo respeitosamente para Kahlan.
— Muito obrigado, senhora. Estou feliz por sua cabeça ser mais rápida do que a mão do seu amigo. Este lugar pode não parecer grande coisa para vocês, mas é meu e a senhora acaba de evitar que fosse destruído.
— De nada — disse Kahlan. — Tem um quarto para nós?
O homem tornou a pôr o palito no canto da boca.
— Tenho um lá em cima, no fim do corredor, à direita, com tranca na porta.
— Temos dois amigos lá fora — disse Richard. — Gostaria que me ajudassem a levá-los para o quarto.
O homem indicou a sala com a cabeça.
— Não vale a pena deixar que vejam que têm dois companheiros feridos. Vocês dois subam para o quarto, como eles esperam que façam. Meu filho está na cozinha. Levaremos seus amigos pela escada dos fundos, para que ninguém veja. — Richard não gostou da idéia. — Tenha um pouco de fé, meu amigo — disse o homem em voz baixa —, ou pode prejudicar seus amigos. A propósito, meu nome é Bill.
Richard olhou para Kahlan. A expressão dela era inescrutável. Olhou outra vez para o proprietário. Era um homem decidido, duro, mas não parecia desonesto. Mesmo assim, o que estava em jogo era a vida dos seus amigos. Procurou fazer com que sua voz não soasse tão ameaçadora quanto se sentia.
— Muito bem, Bill, faremos como você diz.
Com um breve sorriso, Bill assentiu e rolou o palito na boca.
Richard e Kahlan subiram para o quarto e esperaram. O teto era baixo demais. A parede ao lado da cama estava coberta de manchas de cuspo. No canto oposto, havia uma mesa com três pés e um pequeno banco. Um lampião a óleo em cima da mesa iluminava fracamente o quarto sem janelas. Era só o que havia. O ar cheirava a ranço. Richard andou de um lado para o outro, parecendo pouco à vontade. Finalmente, aproximou-se dela.
— Não acredito que você fez aquilo.
Kahlan olhou nos olhos dele.
— O que importa é o resultado, Richard. Se eu tivesse deixado você fazer o que queria, estaria arriscando sua vida. Por nada que valesse a pena.
— Mas aqueles homens pensam...
— E você se importa com o que eles pensam?
— Não, mas... — Richard corou.
— Jurei proteger a vida do Seeker com minha vida. Farei o que for necessário para proteger você. — Ergueu uma sobrancelha. — Qualquer coisa.
Frustrado, ele procurou as palavras para dizer o quanto estava zangado, mas não com ela. Estivera à beira de um cometimento letal. Muito perto. Recuar era extremamente difícil. Sentia ainda o sangue pulsando com o desejo da violência. Era difícil compreender o modo com que a raiva alterava seu raciocínio com aquele desejo, quanto mais explicar para ela. Mas olhar nos olhos verdes de Kahlan o acalmava, esfriando sua fúria.
— Richard, você tem de manter a mente no lugar certo.
— Como assim?
— Darken Rahl. É onde ela deve estar. Aqueles homens lá embaixo não nos interessam. Devemos apenas passar por eles. Nada mais. Não desperdice seu pensamento com eles. Concentre sua energia no trabalho que tem de fazer.
Richard respirou fundo e assentiu.
— Você tem razão. Desculpe-me. Você fez uma coisa corajosa esta noite. Por menos que eu tenha gostado.
Ela o abraçou suavemente, encostando a cabeça no peito dele. Bateram de leve na porta. Depois de se certificar de que era Bill, Richard abriu. O proprietário e o filho carregaram Chase para dentro e o puseram cuidadosamente no chão. Quando o filho, um jovem magro, viu Kahlan, apaixonou-se imediata e perdidamente. Richard compreendia aquele sentimento, mas não gostou,
Bill apontou com o polegar.
— Este é meu filho Randy. — Randy estava em transe, olhando para Kahlan. Bill se voltou para Richard, enxugando a chuva da cabeça calva com o pano que tinha no ombro. O palito continuava na sua boca.
— Você não me disse que seu amigo era Dell Brandstone.
Richard ficou imediatamente alerta.
— Isso é problema?
Bill sorriu.
— Não para mim. O guarda e eu tivemos nossas diferenças, mas ele é um homem justo. Nunca me causou problemas. Às vezes ele dorme aqui, quando está em missão oficial. Mas os homens lá embaixo fariam ele em pedaços se soubessem que ele está aqui.
— Eles poderiam tentar — corrigiu Richard.
Um leve sorriso ergueu os cantos dos lábios de Bill.
— Vamos apanhar o outro.
Quando saíram, Richard deu duas moedas de prata a Kahlan.
— Quando voltarem, dê ao garoto uma dessas para levar os cavalos para o estábulo e cuidar deles. Diga que se ele passar a noite vigiando os cavalos e os tiver prontos para seguir viagem ao nascer do dia, você dará a outra moeda.
— Por que você acha que ele vai fazer isso?
Richard riu.
— Não se preocupe, ele fará, se você pedir. Apenas sorria.
Bill voltou, carregando Zedd nos braços fortes. Randy vinha atrás, carregando as mochilas. Bill deitou cuidadosamente o mago no chão, ao lado de Chase. Olhou para Richard, depois para o filho.
— Randy, vá buscar uma bacia para a jovem senhora e uma jarra com água. E uma toalha. Limpa. Ela pode querer se lavar.
Randy saiu do quarto, sorrindo e tropeçando nos pés. Então Bill olhou intensamente para Richard e tirou o palito da boca.
— Esses dois estão mal. Não vou perguntar o que aconteceu porque um homem esperto não me diria e eu acho que você é um homem esperto. Não temos um curandeiro aqui, mas tem uma pessoa que talvez possa ajudar eles, uma mulher chamada Adie. Eles chamam ela de mulher do osso. Muita gente tem medo dela. Aqueles homens lá embaixo nem chegam perto da casa dela.
Richard se lembrou de Chase ter dito que Adie era sua amiga.
— Por quê? — perguntou ele.
Bill olhou para Kahlan e outra vez para Richard, entrecerrando os olhos.
— Porque são supersticiosos. Acham que ela traz azar e também porque mora perto da fronteira. Dizem que as pessoas de quem ela não gosta têm o mau hábito de morrer de repente. Não estou dizendo que é verdade. Não acredito nessas coisas. Acho que é tudo invenção deles. Ela não é curandeira, mas sei de pessoas a quem ela ajudou. Talvez possa ajudar seus amigos. Pelo menos espero que possa, porque eles não vão durar muito tempo sem ajuda.
Richard passou a mão no cabelo.
— Como encontramos essa mulher do osso?
— Vire à esquerda na trilha, na frente do estábulo. Mais ou menos uma hora a cavalo.
— E por que você está nos ajudando?
Bill sorriu e cruzou os braços musculosos.
— Digamos que estou ajudando o guarda. Ele mantém alguns dos meus outros fregueses longe daqui e os guardas me dão um bom lucro nos negócios aqui e no meu armazém ao lado. Se ele sair desta, não esqueça de dizer que fui eu quem ajudou a salvar sua vida. — Ele riu divertido. — Ele vai ficar danado.
Richard sorriu. Ele compreendia. Chase detestava que o ajudassem. Bill conhecia bem Chase.
— Farei questão de dizer que você salvou a vida dele. — Bill ficou satisfeito. — Agora, como essa mulher do osso mora sozinha, perto da fronteira e vou pedir sua ajuda, acho que seria uma boa idéia levar alguma coisa para ela. Pode preparar alguns suprimentos?
— Claro. Sou um fornecedor aprovado, sou reembolsado por Hartland. É claro que o conselho ladrão leva quase tudo de volta, com os impostos. Posso registrar nos meus livros para o governo pagar, se esta é uma missão oficial.
— Sim, é.
Randy voltou com a bacia, água e toalhas. Kahlan pôs uma moeda de prata na mão dele e pediu para cuidar dos cavalos. Ele olhou para o pai. Bill aprovou.
— Diga qual é o seu cavalo, que eu tomo cuidado extra — disse Randy, com um largo sorriso.
Kahlan sorriu também.
— Todos são meus. Cuide bem de cada um deles. Minha vida depende disso.
Randy ficou sério.
— Pode contar comigo. — Sem saber o que fazer com as mãos, finalmente as enfiou nos bolsos. — Não vou deixar ninguém chegar perto deles. — Recuou para a porta e quando só sua cabeça estava dentro do quarto acrescentou: — Quero que saiba que não acredito em uma só palavra do que aqueles homens lá em baixo estão dizendo de você. E eu disse isso para eles.
Kahlan não pôde deixar de sorrir.
— Obrigada, mas não quero que corra riscos por minha causa. Por favor, fique longe daqueles homens. E não diga que falou comigo. Isso só vai servir para que fiquem mais atrevidos.
Randy sorriu e foi embora. Bill revirou os olhos para o alto e balançou a cabeça. Voltou-se para Kahlan com um sorriso.
— Você não consideraria a possibilidade de ficar aqui e casar com o garoto? Seria bom para ele ter uma companheira.
Dor e pânico surgiram como um flash nos olhos de Kahlan. Ela se sentou na cama, olhando para o chão.
— Eu estava só brincando, moça — Bill se desculpou. Virou para Richard — Vou trazer um prato de comida para cada um. Batatas cozidas e carne.
— Carne? — perguntou Richard desconfiado.
Bill riu.
— Não se preocupe, eu não ia ousar servir carne estragada para aqueles homens. Podia ficar sem cabeça.
Voltou logo e pôs dois pratos com comida na mesa.
— Obrigado pela ajuda.
Bill ergueu uma sobrancelha.
— Não se preocupe, tudo vai para o livro. De manhã, eu o trago para você assinar. Há alguém em Hartland que pode reconhecer sua assinatura?
Richard sorriu.
— Acho que sim. Meu nome é Richard Cypher. Meu irmão é Primeiro Conselheiro.
Bill se encolheu de repente, chocado.
— Desculpe-me. Não por seu irmão ser Primeiro Conselheiro, mas por não saber. Quero dizer, se soubesse, teria dado acomodações melhores. Podem ficar na minha casa. Não é grande coisa, mas é melhor do que isto. Vou levar suas coisas agora mesmo.
— Bill, está tudo certo — Richard pôs a mão nas costas dele, tranqüilizando-o. O homem, de repente, pareceu menos feroz — Meu irmão é Primeiro Conselheiro, eu não sou. O quarto está ótimo. Está tudo ótimo.
— Tem certeza? Tudo? Não vai mandar o exército para cá, vai?
— Você foi uma grande ajuda, de verdade. Eu não tenho nada a ver com o exército.
Bill não estava convencido.
— Você está com o chefe dos guardas da fronteira.
Richard disse, com um sorriso: — Ele é meu amigo. Há muitos anos. O velho também. Eles são meus amigos, isso é tudo.
Os olhos de Bill brilharam.
— Bem, se isso é verdade, que tal eu acrescentar alguns quartos extras no livro? Uma vez que eles não vão saber que vocês todos ficaram juntos.
Ainda sorrindo, Richard deu uma pancadinha nas costas do homem.
— Isso seria errado, Bill. Eu não assinaria.
Bill suspirou e depois disse com um largo sorriso:
— Então, você é amigo de Chase. — Sacudiu a cabeça. — Agora eu acredito. Nunca consegui que aquele homem aumentasse alguma coisa no meu livro em todo esse tempo.
Richard pôs algumas moedas de prata na mão do homem.
— Mas isto não é errado. Aprecio o que está fazendo por nós. Apreciaria também se misturasse um pouco de água na cerveja esta noite. Homens bêbados morrem facilmente. — Bill sorriu, entendendo. Então Richard acrescentou: — Você tem fregueses perigosos.
O homem olhou demoradamente para Richard, olhou para Kahlan e para Richard outra vez.
— Esta noite tenho — concordou.
Richard olhou severamente para ele.
— Se alguém passar por aquela porta esta noite, é um homem morto, sem eu fazer perguntas.
— Vou ver o que posso fazer para evitar isso. Nem que eu tenha de socar algumas cabeças. — Foi ate a porta. — Comam seu jantar antes que esfrie. E tome conta dessa senhora, ela tem uma boa cabeça. — Piscou um olho para Kahlan. — E é uma bela cabeça.
— Mais uma coisa, Bill. A fronteira está enfraquecendo. Dentro de algumas semanas terá caído. Trate de se cuidar.
Bill respirou profundamente. Segurando a maçaneta, olhou nos olhos de Richard por um momento.
— Acho que o conselho nomeou o irmão errado. Mas afinal, eles não chegam a conselheiros por fazer a coisa certa. Venho chamar vocês quando o sol aparecer e tudo estiver calmo.
Quando ele saiu, Richard e Kahlan se sentaram muito juntos no banco, para comer. O quarto ficava nos fundos da casa e os homens estavam no andar térreo, na frente, portanto era mais quieto do que Richard tinha imaginado. Tudo que ouviam era um murmúrio abafado. A comida também era melhor do que ele esperava, ou talvez fosse por estar faminto. A cama parecia maravilhosa também porque ele estava exausto. Kahlan notou.
— Você dormiu só uma ou duas horas a noite passada. Eu fico com o primeiro turno de vigia. Se aqueles homens resolverem vir até aqui, só bem mais tarde juntarão coragem suficiente. Se vierem, é melhor que você esteja descansado.
— É mais fácil matar gente quando se está descansado? — Ele se arrependeu imediatamente de ter dito aquilo, não teve intenção de parecer amargo. Percebeu que segurava o garfo como se fosse uma espada.
— Desculpe, Richard, não foi o que eu quis dizer. Estou dizendo que não quero que você seja ferido. Se estiver cansado não poderá se proteger tão bem Eu temo por você.
Ela empurrou a batata no prato com o garfo. Sua voz era pouco mais do que um murmúrio.
— Lamento que você tenha entrado nesta confusão. Não quero que precise matar pessoas. Eu não quis que tivesse de matar aqueles homens lá embaixo. Essa foi uma das razões pelas quais fiz aquilo, para que você não precisasse matá-los.
Richard olhou para ela. Kahlan olhou para o prato. Seu coração doeu, vendo a expressão de mágoa no rosto dela. Bateu de leve no ombro dela.
— Eu não perderia esta viagem por nada do mundo. Assim, tenho tempo para estar com meus amigos. — Ela olhou para ele e Richard sorriu.
Sorrindo também, Kahlan encostou a cabeça no ombro dele por um segundo, antes de comer a batata. O sorriso dela o aqueceu.
— Por que você quis que eu pedisse ao garoto para cuidar dos cavalos?
— Resultados. O que você disse foi muito importante. O pobre rapaz está perdidamente apaixonado. Como foi você quem pediu, ele cuidará dos cavalos melhor do que nós cuidaríamos. — Ela olhou para ele como se não acreditasse. — Você tem esse efeito sobre os homens — garantiu Richard.
O sorriso de Kahlan foi substituído por uma expressão tristonha. Richard sabia que estava se aproximando demais dos segredos dela, por isso não disse nada mais. Quando terminaram de comer, ela foi até a bacia, molhou a ponta da toalha e foi até Zedd. Passou a toalha no tosto dele ternamente, depois olhou para Richard.
— Ele está na mesma, não piorou. Por favor, Richard, deixe que eu faça a primeira vigia e procure dormir um pouco.
Ele concordou, deitou na cama e adormeceu em poucos segundos. No começo da manhã, ela o acordou para o segundo turno de vigia. Richard lavou o rosto com água fria, tentando acordar melhor, depois se sentou no banco encostado na parede, esperando qualquer sinal de alarme. Comeu um pedaço de fruta seca para tirar o gosto ruim da boca.
Uma hora antes do nascer do sol, bateram urgentemente na porta.
— Richard — disse uma voz abafada —, é Bill. Abra a porta. A gente está com problemas.
Kahlan saltou da cama esfregando os olhos quando Richard tirou a tranca da porta. Ela empunhou a faca. Bill, ofegante, entrou rapidamente e fechou a porta. Gotas de suor lhe brotavam da testa.
— O que foi? O que aconteceu? — perguntou Richard.
— Tudo estava tranqüilo. — Bill engoliu em seco, tomando fôlego. — Então apareceram dois homens. Saíram do nada. Homens grandes, pescoços grossos, cabelos louros. Bonitos. Armados até os dentes. O tipo de homens que você evita olhar nos olhos. — Respirou fundo algumas vezes.
Richard olhou rapidamente para Kahlan. Não havia dúvida sobre quem eram os homens. Aparentemente o problema criado pelo mago não fora bastante para os quad.
— Dois? — perguntou Richard. — Tem certeza de que não havia mais?
— Eu só vi dois e foi o bastante para mim. — Os olhos de Bill estavam apavorados sob as sobrancelhas crespas. — Um estava bem ferido, com o braço numa tipóia, cortes de garras no outro braço. Isso não parecia incomodar ele. Começaram a perguntar sobre uma mulher que parecia muito com a senhora aqui. Só que ela não está usando o vestido branco que eles descreveram. Começaram a subir a escada discutindo quem ia fazer o quê com ela. Seu amigo ruivo atacou um deles e cortou o pescoço do homem de orelha a orelha. O outro matou uma porção dos meus fregueses imediatamente. Nunca vi nada assim. Então, de repente ele não estava mais ali. Desapareceu no nada. Há sangue por toda parte.
— Os que sobraram estão lá embaixo, discutindo para resolver quem vai ser o primeiro a... — Olhou para Kahlan. Enxugou a testa com as costas do braço. — Randy está levando os cavalos para os fundos da casa, vocês têm de sair agora. Vão para a casa de Adie. O sol vai nascer daqui a uma hora, os sabujos vão embora dentro de duas horas, portanto, vocês estarão seguros. Mas não se demorem.
Richard segurou as pernas de Chase, Bill os ombros. Disse para Kahlan trancar a porta e apanhar suas coisas. Com Chase nos braços desceram a escada dos fundos e saíram para o escuro e para a chuva. A luz dos lampiões que vinha das janelas se refletia nas poças d’água, delineando com luz amarela os vultos negros dos cavalos. Randy esperava, preocupado, segurando os cavalos. Puseram Chase numa padiola e subiram correndo, o mais silenciosamente possível. Bill pegou Zedd nos braços, enquanto Richard e Kahlan vestiam as capas e apanhavam as mochilas. Os três, Bill, Richard e depois Kahlan, desceram a escada.
Quando saíram correndo, quase tropeçaram em Randy, caído no chão. Richard ergueu os olhos a tempo de ver o homem ruivo investir par a ele. Saltou para trás, por pouco escapando da longa faca. O homem caiu de bruços na lama. Com rapidez surpreendente, ele se ajoelhou, furioso e então ficou imóvel, com a ponta da espada a dois centímetros do nariz. O ar vibrou com o som do aço. O homem olhou para cima, enraivecido. Água e lama escorriam do seu cabelo longo. Richard girou a espada e o golpeou com força na cabeça, com o lado da lâmina. Ele caiu desacordado.
Bill pôs Zedd na padiola enquanto Kahlan virava Randy com o rosto para cima. Um olho estava fechado e inchado. A chuva batia no rosto dele. Randy gemeu. Quando seu olho bom viu Kahlan, ele abriu um largo sorriso. Aliviada, ela o abraçou rapidamente e o ajudou a se levantar.
— Ele me atacou de surpresa. — Randy se desculpou: — Desculpe.
— Você é um jovem corajoso. Não tem por que se desculpar. Obrigada por nos ajudar. — Virou-se para Bill: — Você também.
Bill sorriu e inclinou a cabeça. Zedd e Chase foram rapidamente cobertos com cobertores, lonas e as mochilas. Bill disse que os suprimentos para Adie já estavam no cavalo Chase. Richard e Kahlan montaram. Ela atirou a moeda de prata para Randy.
— Pagamento no ato da entrega, conforme prometido — disse ela. Randy apanhou a moeda.
Richard se inclinou na sela, segurou as mãos de Randy, agradeceu profusamente, depois apontou zangado para Bill.
— Você! Quero que acrescente tudo nos livros. Inclua os danos, todo seu tempo e trabalho, até as lápides dos túmulos. Quero que acrescente um preço justo por salvar nossas vidas. Se o conselho não quiser aprovar o pagamento, diga que salvou a vida do irmão do Primeiro Conselheiro e que Richard Cypher disse que, se não pagarem, exigirei pessoalmente a cabeça do responsável e a espetarei num poste, na frente do jardim da casa do meu irmão!
A risada de Bill ecoou acima do barulho da chuva. Richard segurou as rédeas para impedir que o cavalo continuasse a dançar inquieto de um lado para o outro. Apontou para o homem de bruços na lama. Estava furioso.
— Eu só não matei esse homem porque ele matou um homem pior do que ele, com isso, sem saber, salvou a vida de Kahlan. Mas ele é culpado de assassinato, de intenção de matar e intenção de estuprar. Sugiro que o enforquem antes que ele acorde.
Bill olhou para ele.
— Feito.
— Não esqueça o que eu disse sobre a fronteira. Problemas virão. Cuide-se bem.
Bill passou os braços cabeludos em volta dos ombros do filho.
— Não vou esquecer. — Com um leve sorriso, acrescentou: — Vida longa para o Seeker.
Richard olhou para ele surpreso e então sorriu. O sorriso amainou um pouco o calor da sua raiva.
— Assim que vi você — disse Richard — achei que não era um homem perspicaz Vejo que me enganei.
Richard e Kahlan puxaram os capuzes para a frente e partiram, sob a chuva, para a casa da mulher do osso.
A chuva rapidamente afogou as luzes de Southaven, deixando os cavaleiros no escuro. Os cavalos de Chase escolhiam cuidadosamente o caminho na trilha. Treinados pelo guarda da fronteira para isso, sentiam-se à vontade em condições adversas. A madrugada lutava interminavelmente para trazer luz ao novo dia. Mesmo depois de Richard saber que o sol tinha nascido, o mundo continuava na meia-luz entre noite e dia, na manhã fantasma. A chuva ajudou a esfriar sua raiva ardente.
Eles sabiam que o último membro quad devia estar em algum lugar e ficaram atentos a qualquer sinal de ameaça. Sabiam que, mais cedo ou mais tarde, ele os atacaria. A incerteza de quando perturbava sua concentração. A preocupação com o que Bill tinha dito, que Zedd e Chase não durariam muito tempo, atormentava-o. Se aquela mulher, Adie, não pudesse ajudar, ele não sabia o que fariam. Se ela ajudasse, seus dois amigos não morreriam. Richard não imaginava o mundo sem Zedd. O mundo sem seus truques e sua ajuda e seu conforto seria um mundo morto. Sentia um nó na garganta pensando nisso. Zedd teria dito para não se preocupar com o que ia acontecer, mas sim com o que tinha acontecido e o que estava acontecendo.
Mas o que acontecera e o que estava acontecendo era quase tão ruim. Seu pai assassinado. Darken Rahl prestes a obter as três caixas. Seus dois melhores amigos perto da morte. Ele estava sozinho com uma mulher de quem gostava, mas não devia gostar. Ela ainda escondia bem guardados muitos segredos.
Richard percebia que Kahlan lutava mentalmente contra isso. Às vezes, quando ele sentia que estava se aproximando dela, via sofrimento e medo nos olhos de Kahlan. Logo estariam em Midlands, onde as pessoas sabiam quem ela era. Richard queria que ela contasse, não saber por outra pessoa. Se ela não contasse logo, teria de perguntar. Contra sua natureza ou não, teria de perguntar.
Absorto em pensamentos, ele nem notou que estavam na trilha havia mais de quatro horas. A floresta bebia a chuva. As árvores eram vultos ameaçadores no meio da névoa, o musgo nos seus troncos era vibrante e viçoso. Destacava-se nos troncos das árvores e no chão verde e esponjoso. O líquen nas rochas brilhava amarelo vivo e cor de ferrugem na umidade. Em alguns lugares, a água escorria no meio da trilha, transformando-a num regato. Os cabos da padiola de Zedd mergulhavam na água, passando sobre pedras e raízes, sacudindo a cabeça dele de um lado para o outro nos trechos mais acidentados. Os pés do velho homem ficavam a poucos centímetros da água quando cruzavam os regatos no meio da trilha.
Richard sentiu o cheiro doce da fumaça de madeira no ar parado. Bétula. Percebeu que o trecho em que entravam era um pouco diferente. A chuva caía em quieta reverência na floresta. Todo o lugar parecia, de certo modo, sagrado. Sentiu-se um intruso, perturbando a paz de eras sem conta. Queria dizer alguma coisa a Kahlan, mas falar parecia um sacrilégio. Compreendeu por que os homens da estalagem não chegavam perto: sua presença seria uma violação.
Chegaram a uma casa que se fundia tanto com a paisagem que era quase invisível ao lado da trilha. Um filete de fumaça espiralava da chaminé, subindo na névoa. As toras das paredes eram antigas e marcadas pelo tempo, combinando com a cor das árvores, perturbando nada além do solo em que se erguiam. A casa parecia nascer do solo da floresta, com as árvores altas protegendo-a. O telhado era coberto por certa massa de folhas largas. Um telhado menor e pontudo cobria uma varanda com espaço para no máximo três pessoas. Richard viu uma janela quadrada na frente e outra no lado da casa, nenhuma com cortinas.
Na frente da casa, samambaias no meio do caminho se inclinavam e balançavam quando a chuva caía nelas. A névoa dava brilho ao verde-claro. Um caminho estreito se abria no meio delas.
No centro das samambaias, bem no meio do caminho, estava uma mulher alta, mais alta do que Kahlan, não tão alta quanto Richard. Vestia um manto simples, bege, de tecido rústico, com símbolos e decorações vermelhos e amarelos na gola. O cabelo era fino e liso, um misto de preto e cinza, repartido no meio, dividido pelo queixo forte e quadrado. A idade não lhe tinha roubado a beleza dos traços. Apoiava-se numa muleta. Tinha só um pé. Richard parou os cavalos na frente dela.
Os olhos da mulher eram completamente brancos.
— Eu ser Adie. Quem ser vocês? — Richard sentiu um arrepio ouvindo a voz áspera, rouca, raspante.
— Quatro amigos — disse Richard, respeitosamente. A chuva leve tamborilava quase em silêncio.
Rugas finas cobriam o rosto dela. Tirou a muleta debaixo do braço e cruzou as mãos sobre ela. Os lábios finos de Adie se ergueram num sorriso.
— Um amigo — disse ela. — Três pessoas perigosas. Eu decido se serão amigos. — Balançou a cabeça de leve, pára cima e para baixo.
Richard e Kahlan se entreolharam. Ele ficou alerta. Sentia desconforto ali sentado na sela como se falar com ela lá de cima sugerisse desrespeito. Ele desmontou. Kahlan fez o mesmo. Segurando as rédeas, ficou na frente do cavalo, com Kahlan ao lado.
— Eu sou Richard Cypher. Esta é minha amiga Kahlan Amnell.
A mulher estudou o rosto dele com os olhos brancos. Richard não tinha idéia se ela podia ver, mas não sabia como isso era possível. Ela se voltou para Kahlan e disse algumas palavras com sua voz áspera, numa língua que Richard não conhecia. Kahlan olhou para a mulher e inclinou de leve a cabeça.
Foi uma saudação. Um cumprimento de deferência. Richard não reconheceu as palavras Kahlan ou Amnell. Os cabelos da sua nuca arrepiaram.
A mulher se dirigira a Kahlan com seu título.
Estava com Kahlan o tempo suficiente para saber, pela postura dela, as costas retas e a cabeça erguida, que estava alerta. Seriamente alerta. Se fosse um gato, estaria com as costas arqueadas, o pêlo eriçado. As duas mulheres se defrontaram, a idade descartada por um momento. Avaliaram qualidade que ele não podia ver. Aquela mulher podia fazer mal a eles e Richard sabia que a espada não os poderia proteger.
Adie olhou outra vez para Richard.
— Ponha em palavras o que você precisa, Richard Cypher.
— Precisamos da sua ajuda.
Adie sacudiu a cabeça.
— Verdade.
— Nossos dois amigos estão feridos. Um deles, Dell Brandstone, me disse que é seu amigo.
— Verdade — repetiu Adie.
— Outro homem em Southaven nos disse que você poderia ajudar. Em troca da sua ajuda, trouxemos suprimentos. Achamos que seria justo oferecer alguma coisa a você.
Adie se inclinou para ele.
— Mentira! — Bateu com a mão na muleta. Richard e Kahlan recuaram um pouco. Richard não sabia o que dizer. Adie esperou.
— É verdade. Os suprimentos estão aqui. — Virou-se um pouco, indicando o cavalo de Chase. — Achamos que seria justo...
— Mentira! — Bateu outra vez na muleta.
Richard cruzou os braços, começando a se irritar. Seus amigos estavam morrendo enquanto ele discutia com aquela mulher.
— O que é mentira?
— Isso ser mentira. — Bateu com a muleta no chão. — Foi você quem pensou em trazer suprimentos. Você foi o único que resolveu trazer. Não você e Kahlan. Você. “Nós” ser mentira. “Eu” ser verdade.
Richard descruzou os braços.
— Que diferença faz? Eu, nós, o que importa?
Adie olhou para ele.
— Um ser verdade, o outro ser mentira. Que outra diferença podia haver?
Richard cruzou os braços outra vez, franzindo a testa.
— Chase deve ter muita dificuldade para contar a você as histórias das suas aventuras.
O leve sorriso voltou.
— Verdade. — Balançou a cabeça, inclinou-se um pouco para ele, e ergueu a mão. — Traga seus amigos para dentro.
Ela virou, pôs a muleta debaixo do braço e caminhou para casa. Richard e Kahlan trocaram um olhar e foram buscar Chase, guardando os cobertores. Ele fez Kahlan segurar os pés do guarda da fronteira e ficou com a parte mais pesada. Assim que passaram pela porta com Chase, Richard descobriu por que ela era chamada de mulher do osso.
Ossos de toda espécie estavam empilhados contra as paredes escuras. Todas as paredes estavam cobertas. Em uma delas, estantes abrigavam crânios. Crânios de animais que Richard não conhecia. A maioria deles era ameaçadora, com dentes longos e curvos. Pelo menos, nenhum era humano, ele pensou. Alguns formavam colares. Outros eram decorados com penas e contas coloridas, com círculos de giz em volta. Havia ilhas de ossos no canto, que pareciam sem importância. Os que estavam nas paredes eram exibidos cuidadosamente, com espaço em volta para demonstrar sua importância. Na moldura da lareira, estava uma costela da grossura do braço de Richard, da sua altura, com símbolos que ele não conhecia gravados em linhas escuras em todo o comprimento. Eram tantos os ossos em volta dele, que Richard tinha a impressão de estar na barriga de um animal morto.
Deitaram Chase e Richard olhou em volta. Água da chuva escorria de Kahlan, de Chase e de Richard. Adie estava ao lado dele, com toda a sua altura. Tão seca quanto os ossos que os rodeavam. Estivera na chuva, mas estava seca. Richard reconsiderou a sensatez de ter ido à casa dela. Se Chase não tivesse dito que Adie era sua amiga, ele não estaria ali.
Olhou para Kahlan.
— Vou buscar Zedd. — Era mais uma pergunta do que uma afirmação.
— Ajudo a carregar os suprimentos — ofereceu Kahlan, olhando rapidamente para Adie.
Richard deitou Zedd aos pés da mulher do osso. Juntos, ele e Kahlan puseram os suprimentos na mesa. Depois ficaram ao lado dos amigos, na frente de Adie, olhando para os ossos. Adie os observava.
— Quem é este? — perguntou ela, apontando para Zedd.
— Zeddicus Zu’l Zorander. Meu amigo — disse Richard.
— Mago! — disse Adie, indignada.
— Meu amigo! — exclamou Richard, furioso.
Adie calmamente voltou para ele seus olhos brancos e Richard enfrentou o olhar. Zedd ia morrer se não recebesse ajuda e Richard não ia permitir que isso acontecesse. Adie se inclinou para a frente e pôs a mão enrugada sobre o estômago de Richard.
Surpreso, ele ficou imóvel enquanto ela passava a mão lentamente em círculo, como quem procura alguma coisa. Adie retirou a mão e a cruzou sobre a outra na muleta. Com um leve sorriso, ergueu os olhos.
— A raiva justa de um verdadeiro Seeker. Bom. — Olhou para Kahlan. — Você não tem nada a temer da parte dele, minha filha. Ser a raiva da verdade. Ser a raiva dos dentes. Os bons não precisam temer ela. — Com a ajuda da muleta, deu alguns passos para Kahlan. Pôs a mão sobre o estômago dela e repetiu o processo. Quando terminou, apoiou a mão na muleta e balançou a cabeça afirmativamente. Olhou para Richard.
— Ela tem o fogo. A ira queima dentro dela também. Mas ser a ira da língua. Deve ser temida. Todos devem temer. Será perigoso se ela libertar essa ira.
Richard olhou desconfiado para Adie.
— Não gosto de enigmas, dão margem a uma interpretação errada. Se quer me dizer alguma coisa, diga claramente.
— Diga claramente — ela o imitou. Entrecerrou os olhos. — O que ser mais forte, os dentes ou a língua?
Richard respirou profundamente.
— A resposta é óbvia, os dentes. Portanto, escolho a língua.
Adie olhou para ele com ar de censura.
— Às vezes sua língua se move quando não deve. Faça com que fique parada. — comandou com sua voz raspante.
Um pouco embaraçado, Richard ficou quieto.
Adie sorriu.
— Está vendo?
Richard franziu a testa.
— Não.
— A ira dos dentes ser força por contato. Violência pelo toque. A magia da Espada da Verdade ser a magia da raiva dos dentes. Cortando. Rasgando. A ira da língua não precisa tocar, mas ser força do mesmo modo. Corta com mesma rapidez.
— Não tenho certeza do que isso significa — disse Richard.
Adie estendeu o braço e encostou o dedo comprido no ombro dele. Uma visão tomou conta da mente de Richard, uma visão que era lembrança da noite anterior. Viu os homens na estalagem. Estava na frente deles com Kahlan, e os homens se preparavam para o ataque.
Ele empunhava a espada da Verdade, pronto para a violência, se fosse necessário, para detê-los, sabendo que nada menos do que derramamento de sangue seria suficiente. Então viu Kahlan ao seu lado, falando com os homens, detendo-os com suas palavras, passando a língua nos lábios. Dando sentido sem falar. Estava apagando o fogo deles, desarmando os depravados sem tocá-los, fazendo o que a espada não podia fazer. Ele começou a compreender o que Adie dizia.
Kahlan ergueu a mão rapidamente e segurou o pulso de Adie, tirando a mão dela do ombro de Richard. Havia perigo no seu olhar e Adie percebeu.
— Empenhei minha vida em defesa do Seekcr. Não sei o que você está fazendo. Perdoe-me se estiver reagindo exageradamente. Não há intenção de desrespeito, mas nunca me perdoarei se falhar na minha missão. Há muita coisa em jogo.
Adie olhou para a mão que segurava seu pulso.
— Eu compreendo, minha filha. Me perdoe se sem pensar eu alarmei você.
Kahlan segurou o pulso dela por mais um momento, para acentuar sua intenção. Adie apoiou a mão em cima da muleta. Olhou para Richard.
— Os dentes e a língua trabalham juntos. O mesmo se dá com a magia. Você comanda a magia da espada, a magia dos dentes. Mas isso dá a você a magia da língua também. A magia da língua funciona porque tem o respaldo da espada. — Virou a cabeça lentamente para Kahlan. — Você tem ambos, minha filha. Dentes e língua. Você usa eles juntos, um apoiando a outra.
— E o que é a magia de um mago? — perguntou Richard.
Adie olhou para ele, considerando a pergunta.
— Tem muitos tipos de magia, dente e língua são apenas dois deles. Os magos conhecem todas, menos as do mundo subterrâneo. Os magos usam quase todas que eles conhecem. — Olhou para Zedd. — Ele ser homem muito perigoso
— Ele nunca me mostrou nada além de bondade e compreensão. É um homem bondoso.
— Verdade. Mas ser também perigoso — repetiu Adie.
Richard deixou passar.
— E Darken Rahl? Sabe qual tipo de magia ele usa?
Adie entrecerrou os olhos.
— Oh sim — sibilou ela. — Eu sei quem ele é. Ele pode usar todas as magia que os magos usa e as que os magos não pode usar. Darken Rahl pode usar o mundo subterrâneo.
Richard sentiu um arrepio. Queria perguntar qual era o tipo de magia de Adie, mas não perguntou. Ela olhou para Kahlan.
— Esteja avisada, minha filha, você tem o verdadeiro poder da língua. Será terrível se algum dia você liberar ele.
— Não sei do que está falando — disse Kahlan, intrigada.
— Verdade — assentiu Adie. — Verdade. — Estendeu o braço e gentilmente pôs a mão no ombro de Kahlan, puxando-a para ela. — Sua mãe morreu antes que você virasse mulher, antes que chegasse à idade em que ela podia ensinar.
Kahlan conteve a emoção.
— O que você pode me ensinar?
— Nada. Sinto muito, mas não entendo como funciona. Ser uma coisa que só sua mãe ia poder ensinar, quando você tivesse idade. Como sua mãe não ensinou, o ensinamento está perdido. Mas o poder continua lá. Fique avisada. Só porque não te ensinaram, não quer dizer que não pode se manifestar.
— Você conheceu minha mãe? — perguntou Kahlan, num murmúrio doloroso.
Adie olhou compassivamente para Kahlan e balançou a cabeça afirmativamente — Lembro-me do nome da sua família. E me lembro dos olhos verdes dela, não é fácil esquecer eles. Você tem mesmos olhos. Quando ela estava grávida de você, eu conheci ela.
Uma lágrima desceu pelo rosto de Kahlan e ela disse, com o mesmo murmúrio doloroso: — Minha mãe usava um colar com um pequeno osso. Ela me deu quando eu era pequena. Eu o usei até... até Dennee, a jovem que eu chamava de irmã... quando Dennee morreu, eu o enterrei com ela. Ela sempre gostou dele. Você deu aquele colar para minha mãe, não deu?
Adie fechou os olhos.
— Sim, minha filha. Dei a ela por proteger filha que ia nascer, pra que ela estivesse segura, pra que crescesse forte como a mãe. Tô vendo que deu certo.
Kahlan abraçou a velha mulher.
— Obrigada, Adie! — disse ela, chorando — Por ajudar minha mãe. — Adie segurou a muleta com uma das mãos e passou a outra nas costas dela com genuína simpatia. Depois de alguns momentos, Kahlan se afastou e enxugou as lágrimas.
Richard viu a brecha e a aproveitou com determinação.
— Adie — disse ele com suavidade —, você ajudou Kahlan antes de ela nascer. Ajude-a agora. A vida dela e as vidas de muitos outros estão em jogo. Darken Rahl está atrás dela, atrás de mim. Preciso que ajude esses dois homens. Por favor, ajude-os. Ajude Kahlan.
Adie sorriu de leve. Balançou a cabeça afirmativamente.
— O mago escolhe bem seus Seekers. Felizmente para você, paciência não é um requisito para o posto. Fique tranqüilo, eu não deixaria você trazer os dois se não tivesse intenção de ajudá-los.
— Bem, talvez você não possa ver — insistiu ele —, mas Zedd especialmente está muito mal. Mal respira.
Adie olhou para ele com tensa tolerância.
— Diga-me — perguntou com sua voz áspera —, você conhece o segredo de Kahlan, o que ela esconde de você?
Richard ficou calado, tentando não demonstrar emoção. Adie se voltou para Kahlan.
— Diz pra mim, minha filha, conhece o segredo que ele esconde de você? — Kahlan não disse nada. Adie olhou outra vez para Richard. — O mago conhece o segredo que você esconde dele? Não. Você conhece o segredo que o mago esconde de você? Não. Três pessoas cega. É, parece que posso ver melhor do que vocês...
Richard tentou imaginar qual o segredo que o mago escondia dele. Ergueu uma sobrancelha. — E qual desses segredos você conhece, Adie?
Ela apontou um dedo para Kahlan.
— Só o dela.
Richard ficou aliviado, mas não demonstrou. Ficara quase em pânico.
— Todos têm segredos e o direito de guardá-los quando é preciso. — disse ele.
Com um largo sorriso, Adie disse: — Isso ser verdade, Richard Cypher.
— Agora, vamos tratar desses dois? — perguntou Richard.
— Você sabe como curar ele? — perguntou ela.
— Não. Se soubesse, evidentemente já os teria curado.
— Sua impaciência é perdoada, tem o direito de temer pela vida dos seus amigo. Não tenho nada contra isso. Mas pode ficar descansado, eles tão recebendo ajuda desde que entraram aqui.
Richard ficou confuso.
— É mesmo?
— Foram derrubados por animais do mundo subterrâneo. Vão demorar algum tempo para acordar, dias. Quantos, não sei. Mas estão secos. Falta d’ água será a morte deles, por isso eles devem acordar o tempo suficiente para tomar água ou eles vão morrer. O mago respira lentamente não por estar pior, mas porque é assim que os magos guardam sua força nos momentos de crise — caem em sono profundo. Eu devo acordar os dois para beber. Vocês não vão poder falar com eles, nenhum dos dois vai reconhecer vocês, por isso não se assustem. Vá até aquele canto, traga balde com água.
Richard levou a água e ajudou Adie a se sentar com as pernas cruzadas, ao lado de Zeed e Chase. Adie puxou Kahlan para perto dela. Pediu a Richard para apanhar um osso da estante.
Um parte do asso parecia muito com o osso da coxa humana Era recoberto por uma pátina marrom e parecia muito antigo. Na abertura do osso, havia símbolos que Richard não reconheceu. Em uma das extremidades, duas calotas cranianas, uma de cada lado. Tinham sido cortadas em duas meias esferas e cobertas com uma pele seca. No centro de cada pele, havia um nó que parecia um umbigo. Dispostos regularmente em volta de cada pele, onde elas se esticavam por cima da beirada do crânio, tufos de cabelo negro estavam atados com uma fieira de contas que combinavam com as da gola do manto de Adie. As calotas pareciam humanas. Alguma coisa dentro delas chocoalhava.
Richard entregou respeitosamente o objeto pata Adie e indagou:
— O que faz esse barulho?
Sem erguer os olhos, ela disse: — Olhos secos.
Adie sacudiu o osso gentilmente de um lado para o outro acima das cabeças de Zedd e de Chase, murmurando um canto na língua estranha com que tinha falado com Kahlan. Os olhos secos fizeram um ruído oco, como de madeira.
Kahlan, sentada com as pernas cruzadas ao lado dela, baixou a cabeça. Richard, um pouco afastado, observava as duas.
Depois de dez ou quinze minutos, Adie fez sinal para ele chegar mais perto. Zedd, de repente se sentou e abriu os olhos. Richard compreendeu que Adie queria que desse água a ele. Ela continuou a cantar, enquanto ele encheu a concha com água e a levou à boca de Zedd. Ele bebeu com sofreguidão. Richard ficou entusiasmado vendo o velho homem se sentar e abrir os olhos, mesmo que não pudesse falar nem soubesse onde estava. Zedd bebeu meio balde d’água. Quando terminou, deitou e fechou os olhos. Então foi a vez de Chase e ele bebeu a outra metade da água.
Adie entregou a Richard o chocalho de osso e pediu que o levasse de volta a prateleira. Depois pediu para apanhar a pilha de ossos do canto e dispor metade sobre Zedd e a metade sobre Chase, orientando sobre a posição correta de cada osso, alinhando-os um modo que só ela compreendia. Finalmente mandou arrumar costelas formando círculos no centro no peito de cada um. Quando Richard terminou, ela elogiou seu bom trabalho, mas Richard não sentiu orgulho algum, porque ela orientara cada movimento. Adie ergueu para ele os olhos brancos.
— você sabe cozinhar?
Richard lembrou quando Kahlan disse que sua sopa variada era muito parecida com a que ela fazia. Adie era de Midlands. Talvez gostasse de alguma coisa da sua terra natal. Sorriu para ela.
— Será uma honra preparar uma sopa variada para você.
Ela bateu palmas, encantada.
— Que maravilha! Faz tempo não tomo uma boa sopa variada.
Richard foi para o outro lado da sala, se sentou à mesa e começou a cortar legumes e misturar temperos. Durante mais de uma hora enquanto trabalhava, observou as duas mulheres sentadas no chão conversando naquela língua estranha. Duas mulheres pondo em dia notícias de casa, ele pensou, feliz. Richard estava de bom humor. Finalmente alguém estava ajudando Zedd e Chase. Alguém que conhecia o problema. Quando terminou, levou a sopa ao fogo; não quis perturbá-las — aparentemente elas estavam se divertindo —, por isso perguntou a Adie se podia cortar lenha para ela. Adie gostou da idéia. Richard saiu e tirou do pescoço o cordão de couro com o dente, guardou-o no bolso, tirou a camisa e a deixou na varanda. Levou a espada e foi para os fundos da casa, onde Adie tinha dito que encontraria a pilha de madeira para cortar. Pondo as toras no trono cortado, ele cortou uma porção de achas de lenha. A maior parte da madeira era bétula, mais fácil de ser cortada por uma mulher velha. Richard escolheu as toras de bordo da rocha, excelente para fazer fogo, mas duro para cortar. O bosque perto da casa era denso e escuro, mas não ameaçador. Era convidativo, aconchegante, seguro. Mas o último homem quad estava em algum lugar, caçando Kahlan.
Richard pensou em Michael, desejando que ele estivesse bem. Michael não sabia o que o irmão estava fazendo e provavelmente se perguntava onde ele estaria. Devia estar preocupado. Richard tinha planejado ir à casa de Michael quando saísse da casa de Zedd, mas não teve tempo. Quase foram apanhados por Rahl. Gostaria de ter falado com o irmão. Michael correria grande perigo quando a fronteira desaparecesse.
Quando cansou de cortar os toros, cortou em achas menores. Era bom para os músculos, transpirar com trabalho braçal, fazer alguma coisa que não o obrigava a pensar. A chuva fria era agradável a seu corpo quente, facilitando o trabalho. Para se divertir, imaginava que a madeira era a cabeça de Darken Rahl cada vez que a cortava com o machado.
Para variar, às vezes imaginava que era um gar. Quando o pedaço de madeira era muito duro, imaginava que era a cabeça do homem ruivo.
Kahlan saiu da casa e perguntou se ele estava pronto para comer. Richard nem percebera que começava a escurecer. Quando ela voltou para dentro, ele foi até o poço e derramou um balde de água fria na cabeça, para lavar o suor. Kahlan e Adie estavam sentadas à mesa e como só havia duas cadeiras, Richard levou uma tora de madeira para se sentar. Kahlan pôs um prato de sopa na frente dele, com uma colher.
— Você me deu um presente maravilhoso, Richard — disse Adie.
— E qual foi esse presente? — Ele assoprou a colher para esfriar a sopa.
Ela voltou para ele os olhos brancos.
— Sem ofensa, você me deu tempo para falar com Kahlan na minha língua nativa. Não imagina que alegria foi para mim. Você é homem muito perceptivo. Um verdadeiro Seeker.
Com um largo sorriso, Richard disse: — Você também me deu uma coisa muito preciosa. A vida dos meus amigos. Obrigado, Adie.
— E sua sopa é maravilhosa — acrescentou ela, com tom surpreso.
— Sim. — Kahlan piscou um olho para ele. —Tão boa quanto a que eu faço.
— Kahlan me falou de Darken Rahl e da queda da fronteira — disse Adie. — Isso explica muita coisa. Ela disse que você sabe da existência de uma passagem e você quer entrar em Midlands. Agora deve resolver o que quer fazer. — Tomou uma colherada de sopa.
— Como assim?
— Eles precisam ser acordado todos os dias para tomar água e comer um mingau. Seus amigos pode dormir por vários dias, cinco, talvez dez. Você decide, como Seeker, se quer esperar por eles ou seguir viagem. A gente não pode ajudar nisso, você resolve.
— Será muito trabalho para você sozinha.
Adie concordou.
— Sim. Mas não tanto quanto procurar caixas e deter Darken Rahl. — Tornou mais sopa, olhando para ele.
Richard mexeu distraidamente a sopa no prato, com a colher. Fez-se um longo silêncio. Ele olhou para Kahlan, mas a moça não demonstrou nada. Richard sabia que Kahlan não queria interferir com sua decisão.
Olhou outra vez para a sopa.
— Cada dia que passa — disse ele, finalmente, em voz baixa — traz Rahl para mais perto da terceira caixa. Zedd me disse que tinha um plano. Não quer dizer que seja um bom plano. E pode não haver tempo para executá-lo quando ele acordar. Podemos perder antes de começar. — Olhou nos olhos verdes de Kahlan. — Não podemos esperar. Não podemos correr esse risco, há muita coisa em jogo. Devemos partir sem eles. — Kahlan sorriu tranqüilizadoramente. — Eu não estava pensando em deixar que Chase fosse conosco. Tenho um trabalho mais importante para ele.
Adie pôs a mão macia e quente sobre a dele.
— Não é escolha fácil. Não é fácil ser Seeker. A dificuldade do que espera vocês tá além dos seus piores temores.
Richard forçou um sorriso.
— Pelo menos ainda tenho a minha guia.
Os três ficaram em silêncio, pensando no que ainda precisava ser feito.
— Vocês dois devem ter uma boa noite de sono — disse Adie. — Vão precisar. Depois do jantar, eu digo a você o que você precisa saber sobre passagem. — Olhou de um para o outro e disse com voz mais áspera: — E eu conto como perdi meu pé.
Richard pôs o lampião ao lado da mesa perto da parede e o acendeu com um graveto tirado da lareira. Os sons da chuva leve e das criaturas da noite entravam pela janela. Os pios e chamados dos pequenos animais noturnos eram familiares para ele, reconfortantes sons de casa. Sua casa. Aquela era a última noite em sua terra natal, pois no dia seguinte estaria em Midlands. Como seu pai tinha feito. Sorriu pensando na ironia. Seu pai trouxera de Midlands o Livro de Sombras Contadas e agora ele o levava de volta.
Sentou-se na tora redonda de madeira, de frente para Kahlan e Adie.
— Então diga, como encontraremos a passagem?
Adie recostou na cadeira e passou a mão no cabelo.
— Você já encontrou. Você tá na passagem. Pelo menos na estrada dela.
— E que precisamos saber para atravessar?
— A passagem ser um vazio no mundo subterrâneo, mas ainda a terra dos mortos. Vocês tão vivos. Os animais caçam vivos quando eles têm tamanho suficiente para interessar eles.
Richard olhou para o rosto impassível de Kahlan, depois outra vez para Adie.
— Que animais?
O dedo longo de Adie apontou para as paredes da sala.
— São os ossos dos animais. Seus amigos foram tocados por coisas do mundo subterrâneo. Os ossos confunde seus poderes. Por isso eu disse que seus amigos estavam sendo ajudados desde o momento em que eles chegaram aqui. Os ossos mantêm mal longe daqui. Os animais não podem me encontrar porque sentem o mal nos ossos e isso cega eles, fazendo eles pensar que sou um deles.
Richard se inclinou para a frente.
— Se levarmos alguns ossos conosco, estaremos protegidos?
Com seu sorriso que enrugava os olhos, Adie disse: — Muito bem. É exatamente o que devem fazer. Esses ossos dos mortos têm magia suficiente para proteger vocês. Mas tem mais. Ouça com atenção.
Richard cruzou as mãos.
— Vocês não podem levar seus cavalos, a trilha é pequena demais para eles. Não cabem em vários trechos. Vocês não devem sair da trilha. E não devem parar para dormir.
Vão levar um dia, uma noite e a maior parte do dia seguinte para atravessar.
— Por que não podemos parar para dormir? — perguntou Richard.
Adie olhou de um para o outro, com seus olhos brancos.
— Tem outras coisas na passagem, além dos animais. Elas vão pegar vocês se vocês pararem.
— Coisas? — perguntou Kahlan.
Adie fez que sim com a cabeça.
— Eu vou sempre à passagem. Se vocês tiverem cuidado, é seguro. Se não, as coisas vão pegar vocês. — A voz raspante ficou mais baixa. — Eu fiquei confiante demais. Um dia, eu andei por muito tempo e eu me cansei. Eu estava muito segura de mim mesma, claro que sabia dos perigo, por isso sentei encostada em uma árvore e cochilei. Só por uns minuto. — Passou a mão na perna. — Enquanto eu dormia, um sugador grudou no meu tornozelo.
Kahlan perguntou: — O que é um sugador?
Adie olhou para eles em silêncio por um momento.
— Um sugador ser um animal com armadura nas costas e espetos na parte de baixo. Muitas perna, cada uma com uma garra afiada, boca como de sanguessuga, cheia de dentes. Ele se enrola de um modo que só aparece a carapaça. Enfia as garras na carne para que a pessoa não possa arrancar ele e aí põe a boca na vítima e suga sangue, segurando com as garras o tempo todo.
Kahlan pôs a mão no braço de Adie. A luz do lampião tingia de rosa os olhos brancos. Richard não se moveu, os músculos estavam tensos.
— Eu tava com meu machado. — Kahlan fechou os olhos e abaixou a cabeça. — Eu tentei matar o sugador ou pelo menos arrancar ele de mim. O sugador é uma das criaturas mais lentas da passagem, porém é mais rápido do que um tolo adormecido. — Olhou nos olhos de Richard. — Eu só podia fazer uma coisa para salvar minha vida. Eu não agüentava mais a dor, os dente dele raspava meu osso. Amarrei uma tira de pano com força na coxa e apoiei a perna em uma tora de madeira. Eu usei o machado para cortar meu pé na altura do tornozelo.
O silêncio na pequena casa era tenso. Só os olhos de Richard se moveram para encontrar os de Kahlan. Viu refletida neles a compaixão que ele próprio sentia pela velha mulher. Não podia imaginar a coragem necessária para cortar o próprio pé com um machado. Richard chegou a sentir náusea. Os lábios finos de Adie se recurvaram num sorriso tristonho. Estendeu os braços sobre a mesa e segurou com força as mãos de Richard e de Kahlan.
— Conto esta história não para que vocês sintam pena de mim. Conto para que vocês não sejam vítimas de algumas coisas que existe na passagem. O medo às vezes pode significar segurança.
— Então acho que estaremos muito seguros.
Ainda sorrindo, Adie continuou: — Ótimo. Há mais uma coisa. Há um lugar onde duas paredes da fronteira são muito juntas uma da outra, elas quase se tocam. Este lugar se chama Estreito. Quando chegarem a uma rocha do tamanho desta casa, partida ao meio, esse é o lugar. E adiante, vocês devem passar entre as paredes da fronteira. É o lugar mais perigoso do desfiladeiro. — Pôs a mão no ombro de Kahlan e apertou a mão de Richard, olhando de um para o outro. — Eles vão chamar vocês da fronteira. Eles querem que vocês vão para eles.
— Quem? — perguntou Kahlan.
Adie se inclinou para ela.
— Os mortos. Pode ser uma pessoa que você conheça, que esteja morta.
Kahlan mordeu o lábio.
— É mesmo essa pessoa?
Adie balançou a cabeça.
— Não sei, minha filha. Mas não acredito que seja.
— Eu também não — Disse Richard, quase mais para se convencer.
— Ótimo — disse Adie. — Continue pensando assim. Ajudará você a resistir. Vocês vão ficar tentado a atender o chamado. Se vocês fizerem isso, estão perdido. E lembrem-se, no Estreito é mais importante ficar na trilha. Um ou dois passos para qualquer lado será demais porque as paredes da fronteira são muito junta. Vocês não vão poder recuar. Nunca mais.
Richard respirou profundamente.
— Adie, a fronteira está ruindo. Antes de ser derrubada, Zedd me disse que dá para ver a mudança. Chase disse que antigamente não se podia ver dentro dela e que agora os seres do mundo subterrâneo estão saindo. Você acha que ainda é seguro passar pelo Estreito?
— Seguro? Eu nunca disse que é seguro. Muitos cheios de cobiça, mas sem força de vontade, tentaram passar, mas nunca chegaram ao outro lado. — Inclinou-se para ele. — Enquanto a fronteira estiver lá, a passagem também vai estar. Vocês fique na trilha. Pensem no seu objetivo. Ajudem um ao outro, se for preciso, que vocês vão passar.
Adie olhou para ele com atenção. Richard se voltou para os olhos verdes de Kahlan, imaginando se poderiam resistir à fronteira. Lembrou-se da vontade que sentiu de entrar. No Estreito, teriam a fronteira dos dois lados. Sabia o medo que Kahlan tinha do mundo subterrâneo, com razão. Ela estivera lá. Ele também não estava ansioso para chegar perto.
Richard pensou por um momento.
— Você disse que o Estreito fica no centro da passagem. E se for noite? Como vamos enxergar para não sair da trilha?
Adie apoiou a mão no ombro de Kahlan para se levantar.
— Venham — disse ela, pondo as muletas debaixo dos braços. Eles a seguiram vagarosamente até as prateleiras. Os dedos finos apanharam uma bolsa de couro. Desatou o cordão que a fechava e, virando a bolsa, pôs uma coisa na palma da mão.
Voltou-se para Richard.
— Estenda a mão.
Ele obedeceu. Adie pôs a mão sobre a dele e Richard sentiu um peso macio. Na sua língua nativa, ela disse algumas palavras em voz baixa.
Richard viu na palma da sua mão uma pedra do tamanho de um ovo de galinha silvestre. Macia e polida, era tão escura que parecia capaz de sugar a luz da sala. Não dava nem para discernir a superfície, só se via uma camada brilhante. Debaixo dela, tudo era vazio e escuridão.
— Isto ser uma pedra da noite. — disse Adie com voz pausada.
— E o que faço com ela?
Adie hesitou, olhando para a janela por um breve momento.
— Quando você achar que está escuro demais, você pega pedra da noite que ela vai dar luz suficiente para ver o caminho. Ela só funciona nas mãos do dono e só se ela é dada de boa vontade pelo dono anterior. Vou dizer pro mago que pedra tá com você. Ele tem magia necessária para encontrar ela e vai poder encontrar você.
Richard hesitou.
— Adie, esta pedra deve ser valiosa. Não tenho o direito de aceitar.
— Tudo é valioso na condição certa. Pra um homem que ta morrendo de sede, a água é mais preciosa do que ouro. Pra um homem que ta se afogando, a água não vale nada, só problema. Neste momento, você ser um homem com muita sede. Sede para deter Darken Rahl. Leva a pedra da noite. Se você sentir peso da obrigação, pode devolver ela um dia.
Richard assentiu, pôs a pedra na bolsa de couro e a guardou no bolso. Adie virou outra vez para a prateleira e apanhou um colar delicado, erguendo-o para que Kahlan pudesse ver. Algumas contas vermelhas e amarelas estavam dispostas em volta de um pequeno osso redondo. Os olhos de Kahlan se iluminaram e ela abriu a boca, surpresa.
— Igual ao de minha mãe — disse ela, maravilhada.
Adie passou o colar pela cabeça dela e Kahlan levantou o cabelo. Kahlan olhou para o colar, tocando-o e sorrindo.
— Por enquanto, ele vai te esconder dos animais do desfiladeiro e um dia, quando você tiver esperando um, o filho vai te proteger e o colar o ajudará a crescer forte como você.
Kahlan abraçou com força a velha mulher, por longo tempo. Quando se separaram, Kahlan parecia preocupada e falou na língua que Richard não entendia. Adie simplesmente sorriu e bateu de leve no ombro dela.
— Vocês dois precisam dormir agora.
— E eu? Também não preciso de um osso para me esconder dos animais?
Adie olhou para o peito dele. Lentamente estendeu o braço, encostou a mão na camisa dele e tocou no dente. Retirou a mão e olhou nos olhos de Richard. De algum modo, ela sabia da existência do dente. Richard prendeu a respiração.
— Tu não precisa de osso, hartlandês. Os animais não pode te ver.
Seu pai dissera que a coisa que guardava o livro era um animal malvado. Compreendeu que, por causa do dente, as coisas da fronteira não puderam encontrá-lo, como encontraram os outros. Se não fosse pelo dente, ele teria sido derrubado como Zedd e Chase, e Kahlan estaria no mundo subterrâneo. Richard tentou evitar qualquer sinal de emoção. Adie percebeu e não disse nada. Kahlan pareceu confusa, mas também ficou calada.
— Durmam agora — disse Adie.
Kahlan recusou a cama oferecida por Adie. Ela e Richard estenderam seus cobertores perto do fogo e Adie foi para seu quarto. Richard pôs mais lenha na fogueira, lembrando que Kahlan gostava de ficar perto do fogo. Sentou-se ao lado de Zedd e Chase por um momento, passando a mão nos cabelos brancos do mago, ouvindo sua respiração. Detestava ter de deixar os amigos. Temia o que os esperava. Imaginou se Zedd saberia onde procurar as caixas. Richard gostaria de saber o plano de Zedd. Talvez fosse uma espécie de truque do mago contra Darken Rahl.
Kahlan se sentou no chão, na frente do fogo, com as pernas cruzadas, observando Richard. Quando ele voltou para o cobertor, ela deitou de costas, puxando o cobertor até a cintura. A casa estava quieta e dava a sensação de segurança. A chuva continuava. Era bom estar perto do fogo. Richard estava cansado. Voltou-se para Kahlan, apoiado num cotovelo e com a cabeça na mão. Ela olhou para o teto, girando o colar de ossos entre os dedos. Richard viu o movimento da respiração no peito dela.
— Richard — murmurou ela, sempre olhando para o teto. — Eu sinto muito ter de deixar os dois.
— Eu sei — disse em voz baixa. — Eu também sinto.
— Espero que não sinta que eu o forcei a fazer isso por causa do que eu disse quando estávamos no pântano.
— Não. Foi a decisão certa. A cada dia o inverno está mais próximo. Não adiantaria esperarmos com eles, enquanto Rahl encontra a caixa. Aí estaremos todos mortos. A verdade é a verdade. Não posso ficar zangado com você por ter dito aquilo.
Ouvindo o fogo estalar e sibilar, olhou para ela, para o cabelo no chão em volta do seu rosto. Podia ver uma veia pulsando no pescoço dela. Pensou que Kahlan tinha o pescoço mais delicioso que já vira. Às vezes ela parecia tão bonita que ele quase não suportava olhar e ao mesmo tempo não podia afastar os olhos. Ela continuava a girar entre os dedos as contas do colar.
— Kahlan. — Ela olhou para ele. — Quando Adie disse que o colar protegeria você e algum dia protegeria seu filho, o que você respondeu?
Kahlan olhou para ele por longo tempo.
— Eu agradeci, mas disse que não acho que viverei bastante para ter um filho.
Richard sentiu um arrepio nos braços.
— Por que disse isso?
Movendo os olhos rapidamente, estudando o rosto dele, ela disse: — Richard, na minha terra a loucura impera, uma loucura que você não pode imaginar. Eu sou uma só. Eles são muitos. Vi gente melhor do que eu se revoltar e ser trucidada. Não estou dizendo que acho que fracassaremos, mas não acho que viverei para saber.
Mesmo sem que ela dissesse, Richard sabia que ela achava que ele também não viveria. Kahlan tentava não o alarmar, mas ele acreditava que morreria também. Por isso ela não queria que Zedd lhe desse a Espada da Verdade, que o fizesse Seeker. Era como se seu coração subisse para a garganta. Kahlan acreditava que os estava levando para a morte.
Talvez estivesse certa, ele pensou. Afinal, ela sabia mais do que ele o que estariam enfrentando. Ela devia estar apavorada por voltar a Midlands. Mas, uma vez lá, não tinham para onde fugir. O fogo-fátuo tinha dito que fugir seria a morte.
Richard beijou as pontas dos dedos e tocou com eles o osso do colar. Olhou para os suaves olhos dela.
— Acrescento meu juramento de proteção à do osso. — disse ele num murmúrio. — Para você agora e para o filho que você terá no futuro. Não trocaria um dia que passo com você por uma vida de escravidão. Aceitei o posto de Seeker voluntariamente. E, se Darken Rahl levar o mundo todo à loucura, então morreremos com uma espada em nossas mãos, não com grilhões em nossas asas. Não permitiremos que seja fácil para eles nos matar, pagarão um alto preço. Lutaremos até o ultimo suspiro se for preciso e na nossa morte infligiremos um ferimento nele que o levará à morte.
Com um sorriso que lhe iluminou os olhos, ela disse: — Se Darken Rahl conhecesse você como eu conheço, teria razão para perder o sono. Agradeço aos bons espíritos o Seeker não ter motivo para ter raiva de mim. — Encostou a cabeça no braço. — Você tem um talento especial para me fazer sentir melhor, Richard Cypher, mesmo quando fala da minha morte.
— Para isso são os amigos — sorriu ele.
Kahlan fechou os olhos e Richard a olhou por algum tempo, até o sono chegar suavemente. Seu ultimo pensamento antes de adormecer foi pra ela.
O primeiro sinal da manhã foi úmido e escuro, mas sem chuva. Kahlan despediu-se de Adie com um abraço. Richard olhou nos olhos brancos da velha mulher.
— Devo pedir a você uma tarefa importante. Quero que dê a Chase uma mensagem do Seeker. Diga a ele que deve voltar para Hartland e avisar ao Primeiro Conselheiro que a fronteira desaparecerá muito em breve. Ele deve dizer a Michael que precisa mobilizar o exército para defender Westland das forças de Rahl. Devem estar preparados para lutar contra uma invasão. Não devem deixar que Westland caia como Midlands. Qualquer força que aparecer deve ser considerada invasora. Chase deve dizer a Michael que foi Rahl quem matou nosso pai e os que vierem não virão em paz. Estamos em guerra e eu já entrei na batalha. Se meu irmão ou o exército ignorarem meu aviso, Chase deve abandonar o serviço do governo e fazer com que os guardas da fronteira se unam para lutar contra as legiões de Rahl. Seu exército praticamente não encontrou oposição quando tomou Midlands. Se tiverem de derramar sangue para tomar Westland, talvez percam o entusiasmo. Chase deve dizer a ele para não ter misericórdia com o inimigo, para não fazer prisioneiros. Não tenho qualquer prazer em dar essas ordens, mas é assim que Rahl luta e ou o enfrentamos nos seus termos ou morremos. Se Westland for tomada, espero que os guardas cobrem um preço muito alto antes de serem vencidos. Quando Chase tiver os guardas e o exército reunidos, ele pode vir me ajudar, se quiser, pois acima de tudo precisamos evitar que Rahl consiga as três caixas. — Richard olhou para baixo. — Peça-lhe para dizer ao meu irmão que eu o amo e sinto falta dele. — Ergueu os olhos para Adie. — Pode lembrar de tudo isso?
— Acho que não poderia esquecer nem se quisesse. Vou dizer ao guarda suas palavras. O que quer que eu diga ao mago?
Richard sorriu.
— Que lamento não poder esperar por ele, mas sei que ele compreende. Quando puder, ele me encontrará por meio da pedra da noite. A essa altura, espera já ter encontrado uma das caixas.
— Força para o Seeker. — disse Adie com sua voz áspera — e para você também, minha filha. Tempos difíceis esperam vocês.
A trilha tinha largura suficiente para Richard e Kahlan andarem lado a lado. As nuvens eram baixas e ameaçadoras, mas não chovia. Os dois estavam bem agasalhados com suas capas. Agulhas de pinheiro marrons e úmidas forravam o caminho dentro da floresta. Eram poucos os arbustos entre as árvores grandes, proporcionando visão por uma boa distância.
Samambaias cobriam o solo em renques de folhagem e troncos mortos aqui e ali pareciam dormir na cama de agulhas. Esquilos censuravam a intrusão e pássaros cantavam com monótona insistência.
Richard arrancou algumas agulhas do galho de uma pequena árvore de abeto balsâmico e as esfregou entre os dedos.
— Adie é mais do que ela parece — disse ele
Kahlan olhou para ele.
— Ela é uma feiticeira.
Richard disse surpreso: — É mesmo? Eu não sei o que é exatamente uma feiticeira.
— Bem, ela é mais do que nós e menos do que um mago.
Richard cheirou a fragrância de agulhas do abeto balsâmico que tinha entre os dedos e depois jogou fora. Talvez ela fosse mais do que ele, pensou, mas certamente não era mais do que Kahlan. Lembrou o olhar de Adie quando Kahlan segurou o pulso dela. Um olhar de medo. Lembrou a expressão de Zedd quando a viu pela primeira vez. Qual era o seu poder, capaz de assustar uma feiticeira e um mago? O que ela fazia para provocar aquele trovão silencioso? Kahlan fizera duas vezes, uma contra o Quad e outra com Shar, o fogo-fátuo.
Richard lembrava a dor provocada depois. Uma feiticeira maior do que Kahlan? Ele duvidava.
— Por que Adie mora aqui na passagem?
Kahlan empurrou o cabelo para trás do ombro.
— Ela se cansou de as pessoas a procurarem constantemente, querendo encantamento e poções. Queria ficar sozinha para estudar seja o que for que uma feiticeira estuda, uma espécie de invocação como ela diz.
— Você acha que ela estará segura quando a fronteira desaparecer?
— Espero que sim. Eu gosto dela.
— Eu também — sorriu ele.
A trilha em alguns trechos tinha subidas íngremes, obrigando-os a andar um atrás do outro nas encostas e nas arestas rochosas. Richard deixava Kahlan seguir em frente para poder vigiá-la, evitando que ela se desviasse da trilha. Ás vezes ele tinha de apontar o caminho, visível para seus olhos experientes de guia, mas não para os dela. Árvores cresciam nas rachaduras das rochas que se erguiam acima deles. A névoa esvoaçava entre as árvores. Raízes entre as aberturas das rochas serviam de apoio da subida. As pernas de Richard doíam por causa do esforço para descer barrancos escuros na trilha.
Richard pensava na que fariam quando chegassem a Midlands. Dependia antes do plano de Zedd para quando estivessem atravessando a passagem e agora estavam sem Zedd, sem um plano. Sentia-se como um tolo entrando daquele modo em Midlands. O que ia fazer quando chegassem lá? Ficar parado e olhar em volta, adivinhar onde estava a caixa e ir buscá-la? Não era um bom plano. Não tinham tempo para andar a esmo, esperando encontrar alguma coisa por acaso. Ninguém estaria à sua espera para dizer o que devia fazer.
Chegaram a uma formação rochosa íngreme. A trilha subia em linha reta. Richard examinou o terreno. Era mais fácil dar a volta, melhor do que escalar a rocha, mas finalmente, pensando que a fronteira podia estar em qualquer lugar, desistiu da idéia. A trilha seguia por ali por algum motivo. Richard foi à frente, segurando a mão de Kahlan, ajudando-a a subir.
Os pensamentos o atormentavam alguém havia escondido uma das caixas, do contrario Rahl já estaria com ela. Se Rahl não conseguia encontrá-la, como Richard a encontraria? Não conhecia ninguém em Midlands, não sabia onde procurar. Não podiam procurar a caixa. Tinham de encontrar alguém que soubesse onde estava.
Magia, ele pensou de repente. Midlands era uma terra de magia. Talvez alguém com magia pudesse dizer onde estava a caixa. Tinham de encontrar alguém com a magia certa. Adie pôde dizer coisas sobre ele, sem nunca ter visto Richard antes. Devia haver alguém com esse tipo de magia, capaz de dizer onde estava à caixa e nunca a ter visto.
Então, é claro, precisavam convencer essa pessoa a contar a eles. Mas talvez se alguém escondesse esse conhecimento de Darken Rahl, ficaria satisfeito por ajudá-los. Parecia que havia muitos desejos e esperanças nesses pensamentos.
Mas Richard sabia de uma coisa. Mesmo que Rahl conseguisse todas as caixas, sem o livro não podia distinguir uma da outra. Enquanto andava, Richard recitava mentalmente o Livro das Sombras Contadas, tentando encontrar um meio de deter Rahl. Como era um livro de instruções para o uso das caixas, devia indicar um meio para evitar que fossem usadas, mas Richard não encontrou essa indicação. A explicação do que cada caixa faria, diretrizes para determinar a identidade das caixas e como abrir uma delas ocupava uma pequena parte no fim do livro. Richard compreendia bem essa parte, que era clara e precisa. Porém a maior parte do livro tratava de orientações para se defender de coisas inesperadas, resolvendo problemas que podiam evitar que o dono das caixas tivesse sucesso. O livro começava dizendo como verificar a verdade nas instruções.
Se ele pudesse criar um daqueles problemas, poderia deter Rahl, pois ele não tinha o livro. Mas era impossível criar a maioria dos problemas, pois tratavam de ângulos do sol e das nuvens no dia da abertura da caixa. E grande parte ele não entendia. Era sobre coisas de que nunca ouvira falar. Richard disse a si mesmo para parar de pensar no problema e pensar na solução. Ia reler o livro novamente. Esvaziou a mente e recomeçou a recitar o livro.
A verificação da verdade das palavras do Livro das Sombras Contadas, quando ditas por outra pessoa e não lida por aquele que comanda a caixa, só pode ser feita com o uso de um Confessor...
No fim da tarde, Richard e Kahlan transpiravam, com o esforço da caminhada. Quando cruzaram um pequeno regato, Kahlan molhou um pano e lavou o rosto com ele. Richard achou uma boa idéia. Quando chegaram ao próximo regato, ele parou para fazer o mesmo e se abaixou para molhar o pano.
Quando se levantou, Richard viu a sombra. Ficou imóvel imediatamente.
No bosque, havia alguma coisa meio escondida atrás da árvore. Não era uma pessoa, mas tinha quase o mesmo tamanho, com forma definida. Parecia a sombra de alguém pairando no ar. A coisa não se movia. Richard piscou os olhos, para verificar se estava mesmo vendo aquilo. Talvez fosse só um truque da luz da tarde, a sombra de uma árvore.
Kahlan continuou a andar. Richard a alcançou rapidamente e pôs as mãos nas costas dela, para evitar que parasse. Inclinou-se sobre o ombro de Kahlan e murmurou no ouvido dela.
— Olhe para a esquerda, lá no meio das arvores. Diga o que você vê.
Sempre com a mão nas costas dela, Richard a fez continuar a andar enquanto olhava. Kahlan afastou o cabelo de um lado e olhou. Então ela viu a coisa.
— O que é? — murmurou ela, olhando para ele.
Richard ficou um pouco surpreso.
— Eu não sei. Pensei que você talvez pudesse me dizer.
Kahlan balançou a cabeça. A sombra continuava imóvel. Talvez não fosse nada, um artifício da luz. Richard tentou se convencer disso, mas sabia que não era verdade.
— Talvez seja um dos animais de que a Adie falou e ele não nos pode ver — sugeriu ele.
Kahlan olhou para ele.
— Animais têm ossos.
Kahlan tinha razão, mas Richard esperava que ela concordasse com a idéia. Continuavam a andar rapidamente. A sombra não se moveu e logo a perderam de vista. Richard respirou aliviado. Parecia que o colar de ossos de Kahlan e o dente que ele trazia no pescoço os escondiam. Comeram pão, cenoura e carne defumada sem parar de andar. Nenhum dos dois sentiu prazer naquela refeição. Seus olhos não cessavam de vigiar o bosque. Embora não tivesse chovido o dia inteiro, tudo estava ainda molhado e ocasionalmente a água pingava das árvores. Os dois vigiavam a floresta, a procura de algum sinal de perigo. Não virão nada.
O fato de não verem nada começou a preocupar Richard. Não havia esquilos, nem pássaros, nenhum animal. Tudo estava quieto demais. A luz do dia começou a desaparecer.
Logo chegariam ao Estreito. Ele se preocupava com isso também. A idéia de ver outra vez as coisas da fronteira era assustadora. A idéia de ver seu pai outra vez o apavorava. Sentia um nó no estômago, lembrando — se do que Adie tinha dito, que os da fronteira os chamariam. Lembrou o quanto seus chamados eram sedutores. Devia estar preparado para resistir. Tinha de ser forte. Kahlan quase fora levada para o subterrâneo quando estavam dentro dos galhos do pinheiro, na noite do dia em que ele a conheceu. Quando estavam com Zedd e Chase, alguma coisa tentava leva — lá outra vez. Richard temia que o osso não a protegesse quando chegassem tão perto.
A trilha ficou plana e mais larga e eles puderam andar lado a lado outra vez. Richard estava cansado e ainda tinha uma noite e um dia antes de poder descansar. Atravessar o Estreito no escuro e exausto não parecia uma boa idéia, mas Adie insistira para que não parassem. Richard não podia contrariar uma pessoa que conhecia tão bem a passagem. Sabia que a história do sugador ia mantê-lo acordado.
Kahlan olhou para o bosque e se virou para trás. Parou de repente, segurando o braço dele. Na trilha, a menos de dez metros atrás deles estava uma sombra.
Como a outra, ela estava imóvel. Richard podia ver o bosque através dela, como se fosse de fumaça, Kahlan segurou o braço dele com força e eles continuaram a andar meio de lado, olhando a coisa. Depois de uma curva do caminho, perderam-na de vista. Apressaram o passo.
— Kahlan, se lembra de ter falado do povo-sombra que Panis Rahl mandou? Essa coisa pode ser um deles?
Kahlan disse, preocupada: — Eu não sei. Nunca vi um, isso foi na ultima guerra, eu ainda não tinha nascido. Mas as historias eram sempre as mesmas: elas flutuavam. Nunca ouvi dizer que ficassem imóveis como essa.
— Talvez seja por causa dos ossos. Talvez saibam que estamos aqui, mas não nos podem ver e continuam procurando.
Ela apertou mais a capa contra o corpo, evidentemente com medo da idéia, mas não disse nada. Na noite que chegava, continuaram a caminhar muito perto um do outro, partilhando os mesmos pensamentos alarmantes. Outra sombra apareceu ao lado da trilha, Kahlan apertou o braço dele. Passaram devagar, quietos, olhando para ela. A sombra não se moveu.
Richard teve a impressão de que ia entrar em pânico, mas sabia que não podia. Tinham de ficar na trilha e usar a cabeça. Talvez as sombras estivessem tentando fazer com que fugissem, saindo da trilha e acidentalmente entrando no mundo subterrâneo. Olhavam em volta e para trás. Quando Kahlan virou a cabeça, um galho roçou-lhe o rosto. Ela saltou para cima de Richard. Quando viu o que era, pediu desculpas. Richard sorriu tranquilizadoramente.
As agulhas dos pinheiros tinham gotas de chuva e de névoa e de quando em quando à brisa leve movia os galhos e a água pingava. No escuro quase completo da noite era difícil saber se havia sombras em volta deles ou se eram somente vultos escuros das árvores. Duas vezes tiveram certeza de que eram sombras perto da trilha. Mas não se moviam. Pareciam vigiar. Embora não tivessem olhos.
— O que vamos fazer se nos atacarem? — perguntou Kahlan, com voz tensa.
A mão de Kahlan começava a machucar seu braço. Richard soltou os dedos dela e os segurou entre os seus.
— Desculpe — disse ela com um sorriso embaraçado.
— Se nos atacarem, a espada os deterá — respondeu ele confiante.
— Porque tem tanta certeza?
— A espada deteve as coisas na fronteira.
Kahlan pareceu satisfeita com a resposta. Richard queria também estar satisfeito. Um silêncio de morte envolvia a floresta, exceto por um suave som raspante que Richard não sabia o que era. Não se ouvia qualquer dos costumeiros sons da noite. Galhos escuros balançavam com a brisa, acelerando seu coração.
— Richard — disse Kahlan em voz baixa—, não deixe que eles toquem em você, o toque deles é mortal. Mesmo que não sejam o povo-sombra, não sabemos o que pode acontecer. Não podemos deixar que nos toquem.
Richard apertou a mão dela.
Ele resistia à tentação de empunhar a espada. Talvez fossem muitas para a espada, se é que a magia da espada funcionava contra as sombras. Se não houvesse outra escolha, usaria a espada, mas, por enquanto, seu instinto dizia para não usar.
O bosque ficava cada vez mais escuro. Os troncos das árvores eram pilares negros na quase noite. Richard sentia olhos por toda parte. A trilha começava a atravessar a encosta da montanha e rochas escuras erguiam-se à esquerda. Restos da chuva pingavam e escorriam na rocha. Ele ouvia as gotas caindo no chão. A trilha descia para a direita. Quando olhavam para trás outra vez, havia três sombras, quase invisíveis. Continuaram a andar. Richard ouviu novamente o leve som raspante dos dois lados do bosque. Não era um som conhecido. Ele sentia, mas do que via, as sombras nos dois lados e atrás deles. Algumas muito perto da trilha. Só na frente o caminho estava livre.
— Richard — murmurou Kahlan—, não acha que deve usar a pedra da noite? Mal posso ver o caminho. — Ela apertou com força a mão dele.
Richard hesitou.
— Não quero usar enquanto não precisar realmente. Tenho medo do que pode acontecer.
— Como assim?
— Bem, essas sombras ainda não nos atacaram. Talvez não possam ver por causa dos ossos. — fez uma pausa. — Mas se puderem ver a luz da pedra?
Kahlan mordeu o lábio, preocupada. Com dificuldade, seguiam a trilha que desviava de árvores, rochas e raízes, cortando caminho na encosta. O som raspante estava mais perto, em volta deles. Pareciam... pareciam garras andando nas rochas, ele pensou.
Duas sombras estavam na frente, muito próximas, com a trilha entre eles. Kahlan chegou muito perto de Richard, prendendo a respiração. Escondeu o rosto no ombro dele quando passaram por elas. Richard e abraçou com força. Sabia como Kahlan estava se sentindo. Ele estava aterrorizado também. Seu coração batia forte. Pareciam que estavam indo longe demais a cada passo, penetrando muito profundamente. Ele olhou para trás, mas no escuro não dava para ver se as sombras estavam na trilha.
Bruscamente, um vulto negro surgiu na frente deles. Era uma rocha enorme, partida ao meio.
O Estreito.
Encostaram-se na rocha, na frente da fenda. Estava escuro demais para ver a trilha ou se havia algumas sombras muito perto. Não podiam seguir a trilha no estreito sem a luz da pedra da noite. Era perigoso demais. Um passo em falso e estariam mortos. No silêncio, o leve ruído raspante estava mais perto em volta deles. Richard tirou do bolso a bolsa de couro. Desatou o cordão e pôs a pedra da noite na palma da mão.
Luz quente brilhou na noite, iluminando o bosque, desenhando sombras fantasmagóricas. Richard levantou a pedra para ver melhor.
Ouviu a exclamação abafada de Kahlan.
Na luz amarelada, viram uma parede de sombras, centenas delas, umas muito junto das outras. Formavam um semicírculo a menos de seis metros dos dois. O chão estava repleto de criaturas com as costas curvas, que pareciam pedras. Mas não eram pedras. Faixas de armadura cinzenta cruzavam-se em suas costas, espetos agudos apareciam debaixo delas.
Sugadores.
Eram eles que faziam aquele som, as garras nas rochas. Moviam-se com um passo estranho, ondulando de um lado para o outro os corpos abaulados. Não era um passo rápido, mas regular. Alguns estavam muito perto.
Pela primeira vez, as sombras começaram a se mover, flutuando, pairando no ar, fechando o círculo.
Kahlan, petrificada, encostou-se na rocha com os olhos arregalados. Richard estendeu a mão, segurou o camisolão dela e a levou para a abertura da rocha. As paredes eram molhadas e escorregadias. O espaço era tão pequeno que Richard tinha impressão de que seu coração ia subir até a garganta. Ele não gostava de lugares apertados. Começaram a andar de costas, virando uma vez ou outra para ver o caminho. Richard estendeu a mão com a pedra da noite, iluminando as sombras que se aproximavam. Sugadores arrastaram-se para abertura da rocha.
Richard ouvia a respiração rápida de Kahlan ecoando no espaço confinado. Continuaram a andar de costas, os ombros roçando na rocha. Água fria cheia de limo lhes encharcava as camisas. Em um trecho, tiveram de se abaixar e virar de lado porque a fenda era mais estreita, as duas partes quase se juntando, dando apenas para uma pessoa passar abaixada.
Folhas e galhos da floresta caídos da fenda decompunham-se na umidade, com um cheiro forte de coisa podre. Continuaram andando de lado e finalmente chegaram ao fim do Estreito. As sombras pararam quando chegaram à abertura da rocha. Os sugadores, não.
Richard chutou um que chegou muito perto, atirando-o para longe, no meio das folhas e gravetos. Caindo de costas, ele esperneou com as patas no ar, rosnando e sibilando. Contorcendo-se e balançando, até conseguir virar. Então o sugador se ergueu nas patas cheias de garras e, com um rosnado rouco, aproximou outra vez.
Os dois se viraram rapidamente para seguir a trilha. Richard iluminou a trilha do Estreito com a pedra da noite.
Richard ouviu a exclamação surpresa de Kahlan.
A luz quente iluminou a encosta onde devia estar a trilha do Estreito. Até onde a vista alcançava tudo era um monte de entulho. Rochas, galhos de árvores, lascas de madeira e lama. Um deslizamento acabava de atingir a encosta.
A trilha do Estreito tinha desaparecido.
Deram um passo para frente, para ver melhor. A luz verde da fronteira apareceu, surpreendendo-os. Recuaram imediatamente.
— Richard...
Kahlan agarrou o braço dele.
Os sugadores estavam de pé. As sombras flutuavam na abertura da rocha.
Archotes em suportes ornamentados iluminavam as paredes da cripta com luz bruxuleante, refletindo no granito rosado do salão abobadado, emprestando o cheiro do breu à fragrância das rosas no ar morto e parado. Rosas brancas trocadas todas as manhãs durante as últimas três décadas enchiam os cinqüenta e sete vasos de ouro presos nas paredes debaixo dos cinqüenta e sete archotes que representavam os anos da vida do falecido. O assoalho era de mármore branco, para que qualquer pétala de rosa que caísse não ficasse muito tempo no chão. Os criados eram atenciosos e devotados ao trabalho. Se não fossem, eram imediatamente decapitados. Guardas vigiavam a tumba dia e noite para garantir que os archotes estivessem sempre acesos, que nenhuma pétala de rosa ficaria no chão. E naturalmente se encarregavam das execuções.
A criadagem era recrutada do campo de D’Hara. Ser membro da criadagem da cripta era uma honra, por lei. A honra prometia morte rápida no caso de execução. A morte lenta em D’Hara era muito temida e comum. Os novos recrutas, Para que não falassem mal do rei morto na cripta, tinham as línguas cortadas.
O mestre, nas noites em que ficava em casa no Palácio do Povo, visitava a tumba. Nenhum criado ou guarda podia estar presente nessas visitas. Tinham estado muito ocupados durante a tarde substituindo os archotes e verificando cada uma das centenas de rosas brancas, sacudindo-as de leve para se certificar de que nenhuma tinha pétalas soltas, pois se um archote apagasse durante a visita real ou se uma pétala de rosa caísse, o resultado era a morte.
O caixão estava sobre uma única coluna pequena no centro do imenso salão, parecendo flutuar. O caixão recoberto de ouro cintilava á luz dos archotes. Símbolos gravados cobriam os lados e continuavam num círculo em volta do salão, cinzelados no granito debaixo dos archotes e nos vasos de ouro, instruções numa língua muito antiga compreendida só por poucas pessoas além do filho; nenhuma dessas pessoas, a não ser o filho, morava em D’Hara. Todos os outros de D’Hara que entendiam havia muito tempo tinham sido mortos. Algum dia, os que sobraram teriam também o mesmo destino.
A criadagem e os guardas da cripta tinham saído. O mestre visitava a tumba do pai. Dois dos seus guardas pessoais vigiavam cada um de um lado da porta maciça elaboradamente cinzelada. Os uniformes de couro, sem mangas, e com cota de malha, acentuavam o tamanho deles, os contornos dos músculos; as braçadeiras que usavam logo acima do cotovelo, com pontas afiadas, serviam na luta corpo a corpo, para despedaçar o adversário.
Darken Rahl passou os dedos delicados nos símbolos gravados na tumba do pai. Um manto imaculadamente branco, tendo como único enfeite uma faixa estreita bordada, com fio de ouro em volta do pescoço e na frente, cobria o corpo magro até poucos centímetros do chão. Darken Rahl não usava jóias, a não ser a faca em forma curva na bainha de ouro gravada em relevo, com símbolos que avisavam aos espíritos que deviam abrir caminho. O cinto que prendia a faca era tecido com fios de ouro. Seu cabelo louro, fino e liso, chegava quase até os ombros. Os olhos tinham um tom azul dolorosamente belo. Seus traços destacavam os olhos.
Muitas mulheres tinham sido levadas à sua cama. Por causa da sua beleza e do seu poder, grande parte delas ia entusiasmada. Outras, apesar da beleza, por causa do poder. Não interessava a ele se iam de boa vontade ou não. Se fossem pouco sensatas e demonstrassem repulsa quando viam as cicatrizes, elas o entretinham de um modo que jamais teriam imaginado.
Darken Rahl, como seu pai antes dele, considerava as mulheres apenas um recipiente da semente do homem; a terra em que essa semente nascia não merecia atenção. Darken Rahl, como seu pai antes dele, não tinha esposa. Sua mãe nada mais foi do que a primeira a cultivar sua semente maravilhosa e depois foi descartada, como era de praxe. Se tinha irmãos, não sabia, nem importava; ele era o primogênito, toda a glória era sua. Nasceu com o dom e foi para ele que o pai passou o conhecimento. Se tinha irmãos ou irmãs, não passavam de simples ervas daninhas, que deviam ser arrancadas se descobertas.
Darken Rahl disse mentalmente as palavras, passando os dedos sobre os símbolos. Embora fosse da maior importância seguir exatamente as diretrizes, ele não temia cometer algum erro; as instruções estavam gravadas a fogo em sua memória. Mas gostava de reviver a sensação da passagem, a sensação de pairar entre a vida e a morte. Saboreava a ida ao mundo subterrâneo para comandar os mortos. Esperava com impaciência a próxima jornada.
Passos ecoaram na cripta. Darken Rahl não se preocupou nem demonstrou interesse, mas os guardas desembainharam as espadas. Ninguém tinha permissão para entrar na cripta com o mestre. Quando viram quem era, ficaram onde estavam e embainharam as espadas. Isto é, ninguém a não ser Demmin Nass.
Demmin Nass, O braço direito de Rahl, que iluminava os pensamentos escuros do mestre, era tão grande quanto seus comandados. Entrou, ignorando os guardas, os músculos finamente cinzelados destacando-se em relevo á luz dos archotes. A pele do seu peito era macia como a do peito dos jovens pelos quais tinha uma fraqueza. Em vívido contraste, seu rosto era marcado por marcas de varíola. O cabelo louro cortado muito curto espetava-se numa coleção de pontas aguçadas. Do meio da sua sobrancelha direita, uma faixa de cabelos negros subia até a cabeça, pelo lado direito. Isso tornava fácil reconhecê-lo à distância, o que era apreciado por aqueles que tinham motivo para reconhecer Demmin Nass.
Darken Rahl, absorto na leitura dos símbolos, não ergueu os olhos quando os guardas desembainharam suas espadas, nem quando as guardaram nas bainhas outra vez. Embora seus guardas fossem formidáveis, eram desnecessários, meros ornamentos da sua posição. Ele tinha poder para anular qualquer ameaça. Demmin Nass ficou tranqüilo, esperando que o mestre terminasse a leitura. Quando Darken Rahl se voltou, o cabelo louro e o manto branco ondularam com o movimento. Demmin inclinou a cabeça respeitosamente.
— Meu senhor Rahl — sua voz era profunda, áspera. Continuou com a cabeça abaixada.
— Demmin, meu velho amigo, é bom ver você outra vez. — A voz de Rahl era clara, quase líquida.
Demmin empertigou o corpo e disse, com ar descontente: — Meu senhor Rahl, a Rainha Milena me entregou uma lista de exigências.
Darken Rahl olhou para além do comandante, como se ele não tivesse ali, lentamente molhando com a língua as pontas dos três primeiros dedos da mão direita e os passando cuidadosamente nos lábios e nas sobrancelhas.
— Você trouxe o menino?— perguntou Rahl, ansioso.
— Sim, meu senhor Rahl. Ele o espera no Jardim da Vida.
— Ótimo. — Um leve sorriso apareceu no rosto bonito de Rahl. — Ótimo. E ele não tem muita idade? É ainda um menino?
— Sim, meu senhor Rahl, ele é um menino. — Demmin desviou a vista dos olhos azuis de Rahl.
Rahl examinou o rosto do homem.
— Você não o tocou, certo?— O sorriso desapareceu. — Ele deve ser imaculado.
— Não, meu senhor Rahl!— garantiu Demmin, olhando para o mestre. — Eu nunca tocaria no seu guia do espírito. O senhor proibiu!
Darken Rahl molhou outra vez os dedos e alisou as sobrancelhas, dando um passo para Demmin.
— Eu sei que você queria Demmin. Foi difícil para você olhar sem tocar? — O sorriso voltou, provocante, e desapareceu. — Sua fraqueza já me causou problemas.
— Eu resolvi o problema!— protestou Demmin, abrandando a voz profunda. — Prendi o mercador Brophy pelo assassinato daquele menino.
— Sim — disse Rahl secamente — e então ele levou o caso a uma Confessora, para provar sua inocência.
Demmin contraiu o rosto, frustrado.
— Como eu podia saber que ele ia fazer isso? Como ia esperar que um homem fizesse isso voluntariamente?
Rahl levantou a mão. Demmin ficou calado.
— Você devia ter sido mais cuidadoso. Devia ter levado em conta as Confessoras. E esse trabalho já foi feito?
— Todos menos uma — admitiu Demmin. — O quad que foi trás de Kahlan, a Madre Confessora, fracassou. Tive de mandar outro.
Darken Rahl franziu a testa.
— A Confessora Kahlan foi quem ouviu a confissão do mercador Brophy e o declarou inocente, não foi?
Demmin assentiu, balançando a cabeça devagar, o rosto contorcido de raiva.
— Ela deve ter conseguido ajuda, do contrário o quad não teria falhado.
Rahl ficou calado, olhando para Demmin, que finalmente quebrou o silêncio.
— É uma coisa sem importância, meu senhor Rahl, que não merece seus pensamentos.
Darken Rahl ergueu uma sobrancelha.
— Eu decido o que é importante e o que merece minha atenção. — Sua voz era suave, quase bondosa.
— É claro, meu senhor Rahl. Por favor, perdoe-me. — Demmin não precisava ouvir zanga na voz de Rahl para saber que pisava em terreno perigoso.
Rahl molhou os dedos outra vez e os passou nos lábios. Olhou nos olhos de Demmin.
— Demmin, se você tocou no menino, eu vou saber.
Uma gota de suor pingou no olho de Demmin.
— Meu senhor Rahl — Disse ele num murmúrio rouco —, eu daria minha vida alegremente pelo senhor. Jamais tocaria no seu guia do espírito. Eu juro.
Darken Rahl olhou atentamente para ele por um momento, depois balançou a cabeça afirmativamente.
— Como eu disse, de qualquer modo eu saberia. E sabe o que faria com você se mentisse para mim. Não tolero que mintam para mim. É errado.
— Meu senhor Rahl — Disse Demmin, ansioso para mudar de assunto —, e sobre as exigências da Rainha Milena?
Rahl deu de ombros.
— Diga a ela que concordo com todas as suas exigências em troca da caixa.
Demmin olhou para ele, incrédulo.
— Mas, meu senhor Rahl, o senhor não viu a lista.
Rahl deus de ombros inocentemente.
— Isso sim, é uma coisa que não merece meu tempo ou meu pensamento.
Demmin passou outra vez o peso do corpo de um lado para o outro, fazendo estalar a túnica de couro.
— Meu senhor Rahl, não compreendo por que o senhor faz esse jogo com a rainha. É humilhante receber uma lista de exigências. Facilmente podemos amassá-la como a sapa gorda que ela é. Basta me dar a ordem e a permissão para fazer minhas exigências, em seu nome.
Com leve sorriso, Rahl olhou atentamente para o rosto marcado do seu leal comandante.
— Ela tem um mago, Demmin — Murmurou ele, os olhos azuis intensos.
— Eu sei. — Demmin cerrou os punhos com força. — Giller. Basta me pedir, senhor Rahl, que trago a cabeça dele.
— Demmin, por que pensa que a rainha Milena contratou um mago para seu serviço? — Demmin deu de ombros e Rahl mesmo respondeu: — Para proteger a caixa. Ela acredita que é também sua proteção. Se matarmos a rainha ou o mago, podemos descobrir que ele escondeu a caixa com magia e teremos de perder tempo procurando. Portanto, por que tanta pressa? Por enquanto, o caminho mais fácil é atender aos pedidos dela. Se a rainha me der trabalho, eu me encarrego dela e do mago. — Andou vagarosamente em volta do caixão do pai, passando os dedos nos símbolos gravados, com os olhos em Demmin. — E, de qualquer modo, quando tivermos a última caixa, suas exigências não terão sentido.— Voltou para perto do homem grande e parou na frente dele.— Mas há outro motivo, meu amigo.
Demmin Inclinou a cabeça para um lado.
— Outro motivo?
Darken Rahl se aproximou dele e abaixou a voz: — Demmin, você mata seus amiguinhos antes... Ou depois?
Demmin recuou um pouco, enfiando um polegar no cinto. Pigarreou e finalmente respondeu:
— Depois.
— E por que depois? Por que não antes? — perguntou Rahl, franzindo a testa, fingindo-se intrigado.
Demmin evitou os olhos do mestre, olhou para o chão e passou o peso do corpo para o outro pé. Darken Rahl continuou com o rosto muito perto do dele, observando, esperando. Em voz baixa para que os guardas não ouvissem, ele disse:— Eu gosto quando eles se contorcem.
Um sorriso moveu lentamente os lábios de Rahl.
— Esse é o outro motivo, meu amigo. Eu também gosto quando eles se contorcem, por assim dizer. Quero ter o prazer de ver a rainha se contorcer antes de matá-la. — Molhou com a língua as pontas dos dedos outra vez e passou nos lábios.
Um sorriso de compreensão apareceu no rosto marcado.
— Direi a Rainha Milena que o pai Rahl graciosamente concorda com seus termos.
Darken Rahl pôs a mão no ombro musculoso de Demmin.
— Muito bem, meu amigo. Agora mostre o menino que trouxe para mim.
Sorrindo, os dois foram até a porta. Antes de chegar a ela. Rahl parou de repente virou-se para trás, o manto ondulando em volta dele.
— O que foi esse barulho? — Perguntou.
A não ser pelo silvo dos archotes, a cripta estava tão silenciosa quanto o rei morto. Demmin e os guardas olharam cuidadosamente em volta.
— Ali! — Rahl estendeu o braço.
Todos olharam. Uma única pétala de rosa branca estava no chão. Darken Rahl ficou rubro, os olhos ferozes. Sacudindo os punhos fechados com força, seus olhos se encheram de lágrimas de raiva. Estava furioso demais para falar. Recobrando a calma, estendeu a mão para a pétala branca no chão de mármore frio. Como tocada por uma brisa, a pétala se ergueu no ar e flutuou pelo salão, pousando na mão estendida de Rahl. Ele passou a língua na pétala e, voltando-se para um dos guardas, grudou-a na testa dele.
O guarda musculoso olhou para Darken Rahl impassível. Sabia o que o Mestre desejava e, com leve inclinação da cabeça, fez meia-volta e saiu do salão com um movimento ágil, desembainhando a espada.
Darken Rahl empertigou o corpo, alisou o cabelo e o manto com a palma da mão. Respirou profundamente, deixando a raiva sair com o ar dos pulmões. Olhou para Demmin, que esperava calmamente ao seu lado.
— Não peço nada mais a eles. Só que tomem conta da tumba do meu pai. Têm tudo de que precisam, são alimentados, vestidos e cuidados. É um pedido simples. — Continuou com ar de mágoa: — Por que zombam de mim com seu descuido?— Olhou para o caixão do pai, depois outra vez para Demmin. — Você acha que sou muito rigoroso com eles?
O comandante disse, com olhar duro: — Não rigoroso o bastante. Se não fosse tão compassivo, se não permitisse a eles uma punição rápida, talvez os outros aprendessem a tratar seus pedidos com mais zelo. Eu não seria tão leniente.
Darken Rahl assentiu distraído. Depois de algum tempo, respirou outra vez profundamente e saiu da sala com Demmin ao seu lado e o guarda seguindo-os a uma distância respeitosa. Passaram por longos corredores de granito polido iluminados por archotes, por escadas em espiral de pedra branca, por mais corredores com janelas que traziam luz para escuridão. A pedra cheirava a umidade e bolor. Vários níveis acima, o ar ficou fresco outra vez. Sobre pequenas mesas de madeira lustrosa, dispostas em intervalos regulares, vasos com flores frescas perfumavam os aposentos.
Quando chegaram a um par de portas com uma cena de encostas e florestas gravada em relevo, o segundo guarda juntou-se a eles, após cumprir a missão. Demmin puxou as argolas de ferro e as duas portas se abriram suave e silenciosamente para uma sala com painéis de carvalho, que brilhavam á luz das velas e dos lampiões sobre mesas pesadas.
Estantes com livros alinhavam-se em duas paredes e uma imensa lareira aquecia a sala de dois andares. Rahl parou rapidamente para consultar um velho livro encadernado de couro sobre um pedestal. Então ele e seu comandante atravessaram um labirinto de salas, quase todas cobertas com os mesmos painéis de carvalho. Alguns eram pintados com cenas rurais de D’Hara, florestas e campos, animais e crianças. Os guardas os seguiam a distância, atentos, mas em silêncio: as sombras do mestre.
Toras de lenha estalavam e as chamas dançavam na lareira de tijolos, a única luz em um dos menores cômodos pelos quais tinham passado. Nas paredes, havia troféus de caça, cabeças de todo o tipo de animais. Galhadas se projetavam iluminadas palas chamas. Darken Rahl parou de repente, a luz do fogo tingindo de rosa seu manto.
— Outra vez — murmurou ele.
Demmin parou também e olhou interrogativamente para ele.
— Outra vez ela vem á fronteira. Ao mundo subterrâneo. — Molhou as pontas dos dedos com a língua e os passou cuidadosamente nos lábios e nas sobrancelhas, com um olhar fixo.
— Quem? — perguntou Demmin.
— A Madre Confessora. Kahlan. Ela tem a ajuda de um mago, você sabe.
— Giller está com a rainha — disse Demmin —, não com a Madre Confessora.
Um leve sorriso curvou os lábios de Darken Rahl.
— Não Giller — murmurou ele. — O velho. O que eu procuro. O que matou meu pai. Ela o encontrou.
Demmin ficou surpreso. Rahl foi até a janela da sala. Feita de pequenos quadrados de vidro e redonda em cima, eram duas vezes mais altas do que ele. A luz do fogo cintilava na faca de forma curva que ele tinha no cinto. Cruzando as mãos nas costas, olhou para o campo escuro, para a noite, para coisas que outros não podiam ver.
Voltou-se então para Demmin, o cabelo louro roçando seus ombros.
— Por isso ela foi a Westland. Não para fugir do quad, mas para encontrar o grande mago. — Seus olhos azuis cintilavam. — Ela me prestou um grande favor, meu amigo, descobriu o mago. Foi sorte ela ter passado pelo povo do mundo subterrâneo. A sorte está realmente do nosso lado. Está vendo, Demmin, por que eu digo para não se preocupar tanto? É meu destino ter sucesso, todas as coisas colaboram para meus objetivos.
Demmin franziu a testa.
— Só porque em quad fracassou não quer dizer que ela encontrou o mago. Quads fracassaram antes.
Rahl molhou as pontas dos dedos devagar. Chegou perto do homem grande.
— O velho nomeou um Seeker — murmurou ele.
Demmin descruzou as mãos, surpreso.
— Tem certeza?
Rahl assentiu com a cabeça.
— O velho mago jurou nunca mais ajudá-los. Há muitos anos que ninguém o via. Ninguém sabia dizer seu nome, nem mesmo para salvar a própria vida. Agora a Confessora atravessa a fronteira para Westland, o quad desaparece e um Seeker é nomeado. — Sorriu para si mesmo. — Ela deve ter tocado nele, para fazer com que ele a ajudasse. Imagine a surpresa do mago quando viu Kahlan. — O sorriso desapareceu, ele fechou os punhos. — Eles estavam quase em minhas mãos. Os três, mas me distraí com outras coisas e eles escaparam. Por enquanto. — Pensou por um momento e então disse: — O segundo quad vai falhar também, você sabe. Não esperam encontrar um mago.
— Então mandarei um terceiro e explico a eles a existência do mago — prometeu Demmin.
— Não. — Rahl molhou as pontas dos dedos pensativamente. — Ainda não. Por enquanto, vamos esperar e ver o que acontece. Talvez ela esteja destinada a me ajudar outra vez. — Pensou por um momento. — Ela é atraente? A Madre Confessora?
Demmin disse carrancudo: — Eu nunca a vi, mas alguns dos meus homens viram. Brigaram para decidir quem iria no quad, quem ficaria com ela.
— Não mande outro quad por enquanto. — Darken Rahl sorriu. — Está na hora de eu ter um herdeiro. — Balançou a cabeça. — Ela será minha — declarou ele.
— Se ela tentar atravessar a fronteira, está perdida — avisou Demmin.
Rahl deu de ombros.
— Talvez ela seja mais esperta do que isso. Já demonstrou que é inteligente. Seja como for, ela será minha. — Olhou para Demmin. — Seja como for, vai se contorcer para mim.
“Os dois são perigosos, o mago e a Madre Confessora. Podem criar problemas. Confessoras subvertem a palavra de Rahl, são um aborrecimento, nada mais. Eu mesmo a matarei, se ela criar problemas, mas depois que me der um filho. O filho de uma Confessora. O mago não pode fazer mal como fez ao meu pai. Vou vê-lo se contorcer e depois o matarei. Lentamente.”
— E o Seeker? — Demmin estava apreensivo.
Rahl deu de ombros.
— Ele representa menos ainda do que um inconveniente.
— Meu senhor Rahl, não preciso lembrar que o inverno se aproxima.
O mestre ergueu uma sobrancelha, a luz do fogo dançou nos seus olhos.
— A rainha tem a última caixa. Logo será minha. Não precisamos nos preocupar.
Demmin aproximou o rosto carrancudo do dele.
— E o livro?
Rahl respirou rapidamente.
— Depois de viajar pelo mundo subterrâneo, revistarei outra vez o rapaz Cypher. Não se preocupe mais, meu amigo. A sorte está do nosso lado.
Rahl saiu da sala, acompanhado por Demmin, os guardas como das sombras atrás deles.
O jardim da vida era uma sala cavernosa no centro do Palácio do Povo. Janelas altas com vitrais forneciam luz ás plantas. Nessa noite o luar passava por elas. Do lado de fora da sala havia canteiros de flores com caminhos entre eles. Atrás das flores erguiam-se pequenas árvores, muros baixos de pedra cobertos de trepadeiras e plantas bem cuidadas completavam a paisagem. A não ser pelas janelas lá no alto, imitava um jardim externo. Um lugar de beleza. Um lugar de paz.
No centro da sala um gramado quase formava um círculo, interrompido por uma coluna de pedra branca com uma laje de granito em cima, lisa, a não ser pelas ranhuras gravadas perto da borda na parte de cima, que levava a uma pequena abertura no chão, num canto. Era sustentada por dois pequenos pedestais afunilados. Atrás da laje havia um bloco de pedra polida ao lado de uma escavação para fazer fogo. No bloco estava uma velha tigela de ferro coberta com figuras de animais, que serviam de pernas para a parte de baixo, redonda. A tampa de ferro, também com a forma de meia esfera, tinha só um animal em cima; um Shinga, uma criatura do mundo subterrâneo, de pé nas pernas traseiras, formava a asa da tigela. No centro do gramado havia uma área de areia de feiticeiro, circundada por archotes que queimavam com chamas fluídas. Símbolos geométricos se entrecruzavam na areia branca.
No centro da areia estava o menino, enterrado de pé até o pescoço.
Darken Rahl se aproximou devagar, com as mãos cruzadas nas costas. Demmin esperava ao lado das árvores. O mestre parou na beirada da grama e da areia branca, olhando para o menino. Darken Rahl sorriu.
— Qual é o seu nome, meu filho?
O lábio inferior do menino tremeu e ele olhou para Rahl. Depois olhou com medo para o homem grande perto das árvores. Rahl se voltou para o comandante.
— Deixe-nos e, por favor, leve meus guardas com você. Não quero ser perturbado.
Demmin inclinou a cabeça e saiu, seguido pelos guardas. Darken Rahl se voltou para o menino e se sentou na grama. Arrumou o manto e sorriu outra vez.
— Melhor?
O menino fez que sim com a cabeça. Seu lábio tremia ainda.
— Você tem medo do homem grande?— O menino fez que sim. — Ele machucou você. Tocou em você onde não devia tocar?
O menino balançou a cabeça. Seus olhos, com um misto de medo e fúria, estavam fixos em Rahl. Uma formiga passou da areia branca para o pescoço dele.
— Qual seu nome? — perguntou Rahl outra vez. O menino não respondeu.
O mestre olhou atentamente para os olhos castanhos dele.— Você sabe quem eu sou?
— Darken Rahl — respondeu o menino com voz fraca.
— Pai Rahl — corrigiu ele.
O menino olhou para ele.
— Eu quero ir para casa. — A formiga inspecionava seu queixo.
— É claro que quer — Disse Rahl com carinhosa simpatia—, por favor, acredite em mim. Não vou falar mal a você. Você está aqui simplesmente para me ajudar com uma cerimônia importante. Você é meu convidado de honra, representando a inocência e a força da juventude. Foi escolhido porque me disseram que você é um ótimo menino. Todos falaram bem de você. Disseram que é inteligente e forte. Isso é verdade?
O menino hesitou e desviou timidamente os olhos.
— Bem, acho que é. — Olhou para Rahl. — Mas sinto falta de minha mãe e quero ir para casa. — A formiga andava em círculos no rosto dele.
Darken Rahl olhou para longe tristemente e disse: — Eu compreendo. Também sinto falta da minha mãe. Ela era uma mulher maravilhosa e eu a amava muito. Ela cuidava de mim. Quando eu fazia alguma coisa que lhe agradava, ela me fazia um jantar especial, o que eu quisesse.
O menino arregalou os olhos.
— Minha mãe também faz isso.
— Meu pai, minha mãe e eu tivemos momentos maravilhosos juntos. Nós nos amávamos muito e nos divertíamos. Minha mãe tinha um riso alegre. Quando meu pai contava vantagem de alguma coisa, ela zombava dele e nós três ríamos, ás vezes até ficar com os olhos cheios de lágrimas.
Os olhos do menino se iluminavam e ele disse com um sorriso tímido: — Por que sente falta dela? Ela foi embora?
— Não — suspirou Rahl. — Ela e meu pai morreram há alguns anos. Eles eram velhos. Tiveram uma boa vida juntos, mas mesmo assim tenho saudade. Por isso compreendo o quanto você sente falta dos seus pais.
O menino assentiu balançando a cabeça. Seu lábio não tremia mais. A formiga foi para cima do nariz e ele franziu o nariz.
— Vamos nos divertir por enquanto e você estará com eles quando menos esperar.
Rahl sorriu.
— É uma honra conhecê-lo, Carl. — Estendeu a mão e tirou a formiga do rosto dele.
— Obrigado — disse Carl, com alívio.
— Para isso estou aqui, Carl, para ser seu amigo e ajudar você como puder.
— Se você é meu amigo, então me desenterre e me mande para casa. — As lágrimas brilhavam nos seus olhos.
— Logo, meu filho, logo. Eu gostaria de fazer isso agora, mas o povo espera que eu o proteja das pessoas malvadas que querem matar todos, por isso devo fazer o que puder para ajudar. Você vai ser uma parte importante da cerimônia que salvará sua mãe, não quer?
Enquanto Carl pensava, os archotes bruxuleavam e sibilavam.
— Bem, quero. Mas quero ir para casa. — Seu lábio começou a tremer outra vez.
Darken Rahl passou a mão no cabelo dele, penteando com os dedos e ajeitando.
— Eu sei, mas tente ser corajoso. Não deixarei que ninguém faça mal a você, prometo. Protegerei você e o manterei a salvo. — Sorriu. — Está com fome? Gostaria de comer alguma coisa?
Carl balançou a cabeça.
— Muito bem, então. Já é tarde. Vou deixar você descansar. — Levantou-se e ajeitou o manto, tirando a grama grudada na fazenda.
— Pai Rahl?
Rahl parou e olhou para baixo.
— Sim, Carl?
Uma lágrima desceu pelo rosto de Carl.
— Tenho medo de ficar aqui sozinho. Pode ficar comigo?
O mestre olhou para o menino com expressão confortadora.
— É claro, meu filho. — Pai Rahl voltou a se sentar na grama. — O tempo que você quiser, até a noite toda.
Luz verde iluminava tudo quando eles começaram a andar cautelosamente no meio dos escombros da encosta, passando por cima ou por baixo de troncos caídos, chutando galhos quando necessário. O verde lençol iridescente da fronteira os pressionava dos dois lados. Tudo estava escuro, a não ser a fantasmagórica luz que os fazia sentirem-se como se estivessem em uma caverna.
Richard e Kahlan tinham chegado à mesma decisão quase ao mesmo tempo. Não tinham escolha. Não podiam voltar e não podiam ficar no meio da rocha partida, não com os sugadores e as sombras atrás deles, portanto foram obrigados a seguir em frente, no Estreito.
Richard guardou a pedra da noite. Não adiantava seguir na trilha, uma vez que não havia uma trilha e tornava mais difícil dizer onde a luz da fronteira mudava para a parede verde. Ele não a guardou na bolsa de couro, para o caso de vir a precisar outra vez, com urgência, mas simplesmente a pôs no bolso.
— Deixemos que as paredes da fronteira nos mostrem o caminho — disse ele, sua voz baixa ecoando no escuro. — Vá devagar. Se uma parede ficar escura, não dê nem mais um passo, vá um pouco para o outro lado. Assim podemos ficar entre elas e atravessar a passagem.
Kahlan não hesitou. Os sugadores e as sombras eram morte certa. Segurou na mão de Richard e voltaram para a luz verde. Ombro a ombro entraram na passagem invisível. O coração de Richard batia forte. Ele tentava não pensar no que estavam fazendo — andando às cegas entre as paredes da fronteira.
Ele sabia como era a fronteira desde que estivera muito perto dela com Chase e outra vez quando a coisa escura tentou levar Kahlan para dentro. Sabia que se pusessem os pés na parede escura, não haveria volta, mas se ficassem no brilho verde, na frente da parede, pelo menos teriam uma chance.
Kahlan parou. Empurrou Richard para a direita. Ela estava perto da parede. Então a parede apareceu à direita dele. Voltaram para o centro e continuaram a andar, percebendo que, se fossem devagar, com cuidado, podiam ficar entre as paredes, caminhando em uma fina linha de vida, com a morte de cada lado. Anos servindo de guia não o ajudavam. Richard finalmente parou, tentando encontrar algum sinal da trilha e sentindo a força das paredes pressionando dos dois lados, deixando que a pressão fosse sua guia.
Era uma marcha lenta, sem nenhum sinal da trilha à vista, nenhum sinal da encosta, só o mundo opressivo da luz verde, como uma bolha de vida flutuando impotente num infinito mar de escuridão e morte.
A lama prendia suas botas, o medo inundava suas mentes. Qualquer obstáculo que encontravam tinha de ser vencido, não podiam desviar-se dele. As paredes da fronteira determinavam seu caminho. Às vezes eram árvores caídas, às vezes rochas, às vezes deslizamentos onde tinham de usar raízes aéreas para passar. Ajudavam-se em silêncio, com um aperto de mão como encorajamento. Nunca mais de um ou dois passos qualquer lado deixava de levá-los para perto das paredes escuras. Sempre depois de uma curva na trilha, a parede negra aparecia, muitas vezes seguidamente, até que pudessem decifrar para que lado ela ia. Cada vez que a parede surgia ameaçadora, eles recuavam o mais depressa possível, o que sempre provocava nele um medo gelado.
Richard começou a sentir dor no ombro. A tensão do que estavam fazendo retesava seus músculos, acelerava sua respiração. Procurou relaxar, respirou profundamente, deixou os braços caírem ao longo do corpo, sacudiu os pulsos para aliviar a tensão e segurou outra vez a mão de Kahlan. Sorriu para o rosto iluminado pela fantasmagórica luz verde. Kahlan sorriu, mas ele percebeu nos olhos dela o terror controlado. Pelo menos, ele pensou, os ossos mantinham longe as sombras e os animais e nada aparecia atrás das paredes quando acidentalmente as encontravam.
Richard quase podia sentir sua vontade de viver se esvair com cada passo cauteloso. O tempo adquiria uma dimensão abstrata, sem significado real. Podia estar por horas no Estreito, ou dias, era difícil calcular. Começou a desejar apenas paz, que aquilo acabasse, estar seguro outra vez. O medo começava a ser entorpecido pelo nível de tensão a que era obrigado.
Um movimento chamou sua atenção. Olhou para trás. Sombras envoltas em luz verde flutuavam entre as paredes muito perto deles, seguindo-os na trilha, pairando acima do chão, subindo para passar sobre um tronco caído no meio do caminho. Richard e Kahlan pararam imóveis, vigilantes. As sombras não pararam.
— Vá na frente — murmurou ele — e não largue minha mão. Eu as vigiarei.
O camisão de Kahlan estava encharcado de suor como o dele, embora a noite não estivesse quente. Sem hesitar, ela recomeçou a andar. Richard andou de costas para ela, de frente para as sombras, a mente em pânico. Kahlan seguiu o mais depressa possível, parando e mudando de direção varias vezes, puxando Richard com ela.
Kahlan parou outra vez e finalmente descobriu o caminho quando a trilha invisível fazia uma curva fechada para a direita na descida da encosta. Andar de costas na descida era difícil. Richard seguia com cuidado para não cair. As sombras seguiam em fila indiana, fazendo as curvas da trilha. Richard resistiu ao impulso de dizer para Kahlan ir mais depressa, pois não queria que ela cometesse um erro, mas as sombras estavam se aproximando. Era só uma questão de minutos e elas fechariam à distância e estariam em cima dele.
Com os músculos tensos, segurou o punho da espada. Debateu mentalmente a conveniência de desembainhá-la, sem saber se ela os ajudaria ou se aumentaria o perigo. Mesmo que a espada funcionasse contra as sombras, uma luta no espaço confinado do Estreito seria um grande risco, na melhor das hipóteses. Mas se não tivesse escolha, se elas se aproximassem demais, teria de usar a espada.
As sombras pareciam ter adquirido rostos. Em vão Richard tentou lembrar se tinham rostos antes. Segurou o punho da espada com força, continuando a andar de costas para Kahlan, com a mão dela na sua. Os rostos pareciam tristonhos e bondosos no brilho verde. Olhavam para ele como quem suplica. As letras em relevo da palavra Verdade na espada pareciam queimar seus dedos. Fúria emanava da espada, procurando sua mente, procurando sua fúria, mas encontrando só medo e confusão, a fúria dominada. As sombras não estavam mais se aproximando. Mas continuavam a andar, fazendo companhia a ele na escuridão. De certo modo, elas o faziam sentir menos medo, menos tensão.
Os murmúrios delas o acalmavam. Richard relaxou os dedos na espada, esforçando-se para ouvir o que diziam. Os sorrisos lentos e calmos o tranqüilizavam, diminuíam sua cautela, seu alarme, fazendo com que ele quisesse ouvir melhor, compreender os murmúrios. A luz verde em volta delas tremulava, aconchegante. Seu coração batia forte, precisando descansar, ter paz, precisando da companhia delas. Como as sombras, sua mente adejava suave e silenciosamente. Richard pensou em seu pai, desejou estar com ele. Lembrou os momentos alegres com ele, momentos de amor, momentos compartilhados de carinho, momentos de segurança, quando nada o ameaçava, nada o assustava, nada o preocupava. Desejou ter momentos como aqueles outra vez. Percebeu que era isso que as sombras diziam, que tudo podia ser outra vez como antes. Queriam ajudá-lo a voltar àquele lugar, isso era tudo.
Pequenos sinais de alarme surgiram em sua mente, mas logo desapareceram. Tirou a mão do punho da espada.
Estava enganado, cego, incapaz de ver isso antes. Elas não queriam fazer mal algum, mas ajudá-lo a alcançar a paz que desejava. Não era o que elas queriam, mas o que ele queria, era isso que as sombras ofereciam. Só queriam libertá-lo da solidão. Um sorriso tristonho curvou seus lábios. Como não vira isso antes? Como pudera ser tão cego? Murmúrios como musica suave o envolviam em ondas, aliviando seus temores, iluminando os cantos escuros de sua mente. Richard parou de andar para não sair do alcance do calor envolvente, dos murmúrios encantadores, do suspiro da música.
Sentiu a mão fria puxando a sua, querendo tirá-lo dali, e Richard a soltou. A mão se desprendeu sem objeção, sem insistir.
As sombras flutuaram para mais perto. Richard esperou por elas, olhando para os rostos bondosos, ouvindo os murmúrios suaves. Estremeceu de prazer quando elas murmuraram seu nome. Ele as recebeu quando o envolveram em um circulo reconfortante, flutuando para mais perto, estendendo as mãos para ele. Ergueram as mãos para seu rosto, quase tocando-o, procurando acariciá-lo. Richard olhou de uma para outra, encontrando o olhar de seus salvadores, todos olhando nos olhos dele, murmurando promessas maravilhosas.
Uma das mãos quase roçou seu rosto e Richard teve a impressão de sentir uma dor lancinante, mas não tinha certeza. A sombra que estendeu a mão prometia que ele nunca mais sentiria dor depois que se juntasse a elas. Richard queria falar, fazer muitas perguntas, mas então isso pareceu sem importância, trivial demais. Bastava se entregar aos cuidados delas e tudo ficaria bem. Ofereceu-se para cada uma delas, esperando ser aceito.
Quando virou para trás, procurou Kahlan para levá-la com ele, para partilhar com ela aquela paz. Lembranças de Kahlan povoaram sua mente, distraindo sua atenção, embora as sombras murmurassem que as ignorasse. Richard procurou na encosta, entre os destroços escuros. Uma luz fraca tingia o céu, a manhã se materializava. Espaços escuros e vazios entre as árvores sobressaiam contra o céu rosa-claro, estava quase no fim da encosta. Não viu Kahlan em lugar algum. As sombras murmuravam insistentemente para ele, chamando seu nome. Lembranças de Kahlan surgiram claras em sua mente. Um medo repentino e agonizante o assaltou, reduzindo a cinzas os murmúrios em sua mente.
— Kahlan! — gritou ele.
Nenhuma resposta.
Mãos escuras, mãos mortas estenderam-se para ele. Os rostos das sombras ondulavam como vapores de veneno fervente. Vozes entrecortadas chamaram seu nome. Richard recuou um passo, afastando-se delas, confuso.
— Kahlan! — gritou outra vez.
Mãos se estenderam para ele, provocando dor lancinante, embora não o tocassem. Richard deu outro passo para trás, mas dessa vez lá estava a parede atrás dele. As mãos se estenderam para empurrá-lo. Ele olhou em volta, procurando Kahlan, perplexo. Dessa vez a dor o despertou completamente. Aterrorizado, viu onde estava e o que estava acontecendo.
Então sua fúria explodiu.
Ondas de raiva provocadas pela magia o inundaram quando a espada saiu da bainha, descrevendo um arco na direção das sombras. As que foram atingidas pela lâmina desapareceram em fumaça, que espiralou como apanhada no vórtice do vento, antes de se desfazer com um uivo. Outras se lançaram contra ele. A espada as atacou, e outras vieram, como se nunca fossem acabar. Quando ele as dizimava de um lado, do outro estendiam as mãos para ele, a dor do quase contato o queimava antes de ele virar para elas a espada. Richard imaginou o que aconteceria se finalmente elas o alcançassem se sentiria dor ou simplesmente morreria. Afastou-se da parede, brandindo a espada sem parar. Deu outro passo à frente, desferindo golpes à medida que se movia, a lâmina rugindo no ar.
Richard ficou parado, os pés fincados no chão, destruindo as sombras rapidamente. Seu braço doía, sua cabeça latejava. O suor lhe escorria no rosto. Estava exausto. Sem ter para onde fugir, era obrigado a manter a posição, mas sabia que não era possível fazer isso para sempre. Gritos e gemidos enchiam a noite, à medida que as sombras caiam sobre os golpes da espada. Um grupo delas se adiantou, obrigando-o a recuar outra vez antes de ter tempo de manejar a espada. Outra vez a parede escura surgiu atrás dele. Vultos escuros no outro lado procuravam alcançá-lo, soltando gritos agonizantes. Muitas sombras atacaram de uma vez, não permitindo que ele se afastasse da parede. Tudo que podia fazer era ficar onde estava. A dor causada pela proximidade das mãos que se estendiam começava a esgotá-lo. Sabia que se elas o atacassem rapidamente e em grande número, seria empurrado para dentro da parede, para o mundo subterrâneo. Richard lutou quase insensivelmente, infinitamente.
A fúria cedia lugar ao pânico. Os músculos dos seus braços queimavam com o esforço de brandir a espada. Parecia que a intenção das sombras era simplesmente esgotar suas forças, vencendo-o com seu número. Reconheceu que estava certo quando achou que não devia usar a espada, que ela só ia piorar as coisas. Mas não tinha escolha. Precisava usá-la para salvar os dois.
Mas então compreendeu que não era mais os dois. Kahlan não estava em lugar algum. Era só ele. Brandindo a espada, imaginou se tinha sido assim pra ela, se as sombras a tinham seduzido com seus murmúrios e tocado nela, obrigando-a a atravessar a parede. Kahlan não tinha a proteção da espada. Foi o que ele disse que faria. A fúria explodiu nele outra vez. A idéia de Kahlan ter sido levada pelas sombras, pelo mundo subterrâneo, trouxe a raiva com toda a força, a magia da Espada da Verdade atendendo ao seu chamado. Richard atacou as sombras com renovado vigor. O ódio, provocado pela necessidade ardente, o fez avançar para os vultos, brandindo a espada com maior rapidez do que elas se podiam mover. Ele continuou a atacar. Gritos angustiosos das sombras que desapareciam erguiam-se como um único brado de angustia. A fúria de Richard com o que elas tinham feito a Kahlan o impeliu para um frenesi de violência.
Sem que ele percebesse as sombras pararam de se mover e pairaram no ar, enquanto Richard continuava pela trilha entre as paredes, atacando-as. Durante um tempo, não fizeram nada para evitar os golpes da espada, mas simplesmente flutuaram no mesmo lugar. Então começaram a deslizar como fileiras de fumaça no ar quase parado. Penetraram nas paredes da fronteira, perdendo o brilho verde, transformando-se em coisas escuras no outro lado. Finalmente exausto, Richard parou, com os braços latejando de cansaço.
Elas eram aquilo, não o povo-sombra, mas as coisas do outro lado da fronteira, as coisas que escapavam e tentavam pegar as pessoas...
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