Biblio "SEBO"
Capítulo Um
ONEIDA, ESTADO DE NOVA YORK, NOVEMBRO DE 2007
Sam Tynnan não fazia idéia do quão perto estava da morte; afinal, ele se habituara a escrever tais situações para seus personagens, não para si. Mas naquele momento ele estava tenso, a respiração presa por uma razão inteiramente diferente; tudo à sua volta parecia subitamente suspenso: o sussurro distante do vento nas copas das árvores à beira da floresta, a 100 metros da casa; um cão latindo em algum lugar ao longe; os acordes abafados do "Concerto de Aranjuez", na gravação de Paco de Lucia, na sala ao lado.
Em suspenso, em expectativa — as ávidas esperanças e ambições dos últimos 18 meses agora concentradas em apenas alguns momentos —, enquanto Sam Tynnan vasculhava em sua mente o parágrafo perfeito com o qual concluir o livro que poderia torná-lo um milionário.
Mais que muitos, Sam sabia que se tratava de uma loteria. Após nove anos escrevendo sem parar, ele sabia que um manuscrito podia trazer qualquer coisa, desde um telegrama de rejeição de 20 centavos, passando por adiantamentos que sequer dariam para alimentar uma secretária por um mês, até chegar a valores de cinco, seis dígitos, do mais baixo ao mais alto, até o topo: adiantamentos de sete dígitos.
Seu agente, Elliot "Elli" Roschler, leu os resumos iniciais de Sam e pareceu realmente empolgado. "Pelo visto, esse aqui pode ser o grande trunfo." Mas o próprio termo mudara de significado nos últimos anos. Desde a publicação de O Código Madalena, de Adam Dayne, o mercado foi virado de ponta-cabeça. Subitamente, suspenses religiosos e mitológicos se tornaram a febre do mês e do futuro próximo. O próprio Dayne ganhara mais de 40 milhões de dólares com o livro, mas também houve uma série de adiantamentos estratosféricos e royalties.
Sam observava as palavras na tela de seu computador com a devida reverência. Nunca mais preocupações com hipoteca e faturas do cartão de crédito, nunca mais se estressar com o dinheiro e o tempo perdido com folgas, nunca mais ter que perguntar a Kate se ela podia esperar pelo pagamento da pensão até o próximo adiantamento ser depositado.
Parecia tão próximo agora, tão tangível e real. Ele imaginava a exultação de Elli quando estivesse concluído e ele lesse. Alguns dias depois, os telefonemas começariam: a primeira proposta, coberta por uma ou duas outras, e depois algum malabarismo e Elli confrontando editores, colocando lenha na fogueira para o leilão final.
Contudo, embora as cifras alucinantes que Elli projetara parecessem irreais — especialmente após um período tão longo de bloqueio criativo —, uma parte de Sam sentia que não apenas eram reais, como se metade já estivesse depositada no banco, mas que também eram totalmente merecidas.
Isso porque aquele livro em particular tinha sido uma batalha. Uma batalha mais dura que qualquer outro livro que ele já havia escrito.
E seu escritório doméstico estava coberto de escombros daquela batalha: capítulos e segmentos escritos e reescritos, desconstruídos e reconstruídos, rabiscos como teias de aranha pelas margens, muitas vezes prolongando-se para o verso das páginas; incontáveis blocos de anotações, que o acompanhavam até em compras e jantares e ficavam junto à sua cabeceira toda noite, pelo medo de que uma corrente de idéias o atingisse e ele não conseguisse recuperá-la depois da mesma maneira.
Em seguida, havia a montanha de livros e papéis: 14 volumes só de Nostradamus, a Bíblia e o Corão, o Talmude, de Steinsaltz, os Hadith, de Bukhari, o Aqeedatut, de Tahawi, a Vulgata Clementina e incontáveis relatórios, comentários e citações da internet.
Mas a outra razão pela qual Sam sentia merecer isso agora era porque, após todos aqueles anos escrevendo, ele sabia que idéias tão boas como aquela raramente surgiam. Na verdade, em geral elas não surgiam de jeito nenhum. Se por acaso ele não tivesse topado com uma passagem de Nostradamus enquanto pesquisava outra coisa, e depois associado aquilo a uma cadeia de eventos atual, talvez jamais teria concebido tal idéia. Surgindo apenas quatro meses após a morte de sua mãe, era como se ela estivesse dando uma força do céu. "Aqui está. Aqui está a peça do quebra-cabeça de sua vida, que estava perdida há tanto tempo."
Tão tangível, tão real agora. Tão perto. Sam estendeu a mão e tocou a tela, como se aquele contato físico pudesse ajudar no fluxo das últimas palavras. Somente mais algumas linhas e ele finalmente acabaria.
— Por que a demora?
Não sei. — O técnico em computação, com cerca de 20 anos, ergueu os olhos apenas brevemente de sua tela. Ele deu de ombros e sorriu, constrangido. — Leva tempo para terminar um livro, acho.
Você acha, não, Cali? — Havia 12 anos entre eles, mas, acima de tudo, havia três níveis hierárquicos. O sorriso do homem mais jovem se dissipou quando seu chefe de seção se inclinou sobre sua mesa. — Por que não faz um favor para mim e para todo o resto e nos lembra do que dizia o último comunicado?
Havia outros seis homens na sala — um armazém sujo de paredes nuas, com uma mesa, um computador, três cadeiras e dois bancos como única mobília. Ninguém disse nada, mas houve alguns sorrisos amarelos.
Os outros estavam com Washington havia mais tempo; tempo suficiente para não cometer certos erros. Ou talvez porque eles eram a vanguarda de qualquer operação. Um deslize na opinião de Washington e ele faria questão de que você fosse o primeiro a entrar por qualquer porta, o primeiro na linha de tiro.
E também porque agora eles estavam em meio à última cena de uma operação; longos meses de planejamento finalizado em algumas horas, e depois os frenéticos últimos minutos, em que um passo em falso ou um tropeço de uma fração de segundo invariavelmente significava a morte. Não havia segundas chances.
Washington, Cali, Ohio, Illy, Montana, Utah, Nevada, Texas... Quando sua seção foi montada 15 meses antes, foi oferecida a escolha de um nome de estado a cada um deles para ocultar suas identidades.
Escolham qualquer um que queiram; mas não o estado em que moram. E não Washington; este já está tomado. Sou eu. — Logo de entrada, um claro lembrete das posições hierárquicas. E estados de três ou quatro sílabas podiam ser encurtados para apelidos fáceis, mas Washington não.
Cali apontou um dedo para sua tela.
Aqui diz em seu último e-mail... "Estou na página 434, agora só falta mais uma ou duas para fechar. Espero terminar nesta tarde ainda e lhe mandar tudo antes que você saia."
E a que horas foi isso?
Foi às 14h18.
Washington olhou seu relógio.
Três horas e meia para escrever só uma ou duas páginas?
Os finais talvez sejam como os começos, imagino: a parte mais difícil. E preciso ter certeza de que tudo está amarrado direito, sem pontas soltas. E depois dá-se uma polida final e... — Cali se deteve quando percebeu o olhar congelante de Washington. Ele assentiu. — Mas, sim, é um longo tempo.
Os outros seis continuavam sem dizer nada, fora um vago arrastar de pés, um rangido num banco. O peso de um corpo trocando de perna, a inquietação se instalando profundamente. Já fazia mais de três horas que estavam esperando no fio da navalha, e agora talvez tivessem mais uma ou duas pela frente.
Quadrados, com ombros largos, seus coletes Kevlar faziam com que eles parecessem ainda maiores. A única luz na sala vinha de uma luminária de mesa junto ao computador e, com suas fardas negras de combate, eles eram sombras agourentas.
Algum indício de que Roschler já tenha saído de seu escritório? — perguntou Washington.
Na verdade, não. Tudo que seu link diz é que ele está on-line, mas talvez esteja longe do computador. O que poderia significar qualquer coisa: que está apenas fazendo outra coisa em sua mesa, que está em outro lugar do escritório ou que saiu mesmo, mas deixou o computador ligado à noite para se conectar com ele de um computador em casa.
Nevada, o líder da tropa de assalto e segundo em comando abaixo de Washington, falou pela primeira vez.
Se ele se conectar de um computador em casa, isto significará uma virada de último minuto da qual Wyo não vai gostar nem um pouco.
Pois é, eu sei. — Washington fez uma careta.
Wyo, chefe do segundo time, estava esperando com a mesma tensão a 600 quilômetros de distância. E, embora eles tivessem previsto aquela e uma série de outras eventualidades, era um sutil lembrete de que algo ainda podia dar errado.
Entretanto, graças a seus vários anos dirigindo operações como esta, Washington conhecia o peso por trás daquele comentário: consolar a todos naqueles últimos momentos tensos, sabendo que alguém, em algum lugar, estava sob um perigo maior e com muito mais em jogo se tudo saísse errado.
Washington sabia que, mais que em qualquer outra operação, isso estava longe de ser verdade neste caso.
— Onde você está agora?
Estou atravessando a 38. — Olhando através da janela de seu táxi, Elli Roschler percebeu a insinuação de Sam. — Mas, se eu voltar agora para buscar, chegarei atrasado neste jantar. — Elli checou seu relógio. — Pelo visto, já estou alguns minutos atrasado, até. Eu busco logo depois... Não deve durar mais que algumas horas. Você disse que mandou há três minutos apenas?
Foi. Eu liguei para o seu escritório primeiro, para ver se tinha chegado bem.
Por pouco não me pegou lá. E hoje à noite Maggie saiu dez minutos antes de mim. — Elli soltou um suspiro lento e satisfeito. — Ora, ora, Sam. Terminado... Terminado! Você deve estar no sétimo céu. — Elli riu. — Isto é, depois que você se belisca e desperta daquela névoa de irrealidade de realmente terminar.
Algumas doses de Carlos Terceros devem fazer isso por mim.
Vou fazer um brinde a isso também no jantar.
Algo empolgante?
Não, na verdade não. Só farpas, tudo biográfico. Estrela de novela decadente. A mãe batia e abusava dela, depois vieram as drogas e a bebida, que ela atribui à mãe. Alcoólicos Anônimos e reabilitação, se casa e depois descobre que é lésbica, mais drogas e reabilitação. Ah, e o cachorro dela, por causa do trauma disso tudo, também está em terapia agora. Sabe como é, a típica história de sucesso americana.
Ambos riram. Nos últimos nove anos de sua sociedade, eles se tornaram mais que apenas agente e cliente, tornaram-se amigos íntimos. Elli e Mike Kiernan — um escritor conhecido de Sam e também morador de Oneida, Nova York — foram os primeiros a oferecer suas condolências e ombros onde chorar quando, três anos antes, Kate abandonou Sam e partiu para a Costa Oeste com o filho deles, Ashley, na época com apenas 6 anos, para lutar por sua carreira. Após um período digno de luto pelo relacionamento, os amigos de Sam fizeram o máximo para bancar os cupidos para ele. Contudo, os encontros invariavelmente faziam com que ele se sentisse ainda mais solitário e fora de rumo, pensando em como os casamentos de Elli e Mike haviam resistido ao teste do tempo, com seus lares repletos de provas fotográficas disso: aniversários de casamento, férias em família, natais e festas de aniversário com os filhos e filhas. Mas Sam sabia que eles tinham boas intenções. Eram bons amigos. E, graças a Deus, tudo aquilo acabou quando Lorrena entrou na vida dele, havia um ano.
Ouso dizer que você erguerá uma ou duas taças de champanhe com Lorrena esta noite, não? — indagou Elli.
Sim, sem dúvida.
Sam olhou para o relógio. Ainda faltava cerca de uma hora para a chegada dela. Recentemente, ela começara a ter aulas noturnas de italiano; um súbito desejo de aprender a língua original de seus pais.
Eu vou buscar o livro na volta do jantar e começo a ler hoje mesmo. E me parece um desses de virar a noite. — Elli riu, depois ficou mais sério. — E... Sam?
- Sim?
Parabéns. Porque eu sei que, em certos momentos, isso não foi fácil para você.
Obrigado. — Sam suspirou, como se finalmente se livrasse do restante daquele fardo. — Eu só espero que você ainda diga "parabéns" depois de ler.
Tenho certeza de que direi... Certeza.
Depois que eles se despediram, a casa ficou ainda mais parada, mais silenciosa. Não havia outra pessoa com quem falar até que Lorrena chegasse e nenhum outro manuscrito no qual mergulhar. Ele havia terminado! De repente, Sam se sentia num descampado, ligeiramente vazio, como se alguém muito próximo com quem ele falava todos os dias tivesse acabado de partir; na verdade, era exatamente como ele se sentira depois que Kate foi embora com Ashley.
A televisão estava num canal de notícias, no mudo. Sam muitas vezes fazia isso para aliviar a solidão; lhe dava a sensação de estar ligado e de ser parte do mundo lá fora, mas sem suas perturbações. O CD de música clássica que estava ouvindo chegou ao fim.
Ele foi à sala de estar para colocar outro disco. Agora queria algo com energia para arrancá-lo de seu desânimo, para começar a comemorar o fato de que ele realmente, finalmente, havia terminado. Encontrou The Police — Greatest Hits, o quinto disco na estante. Perfeito. Este o levava de volta à adolescência. Sam escolheu a quarta faixa, "Message in a Bottle", e foi dançando até a cozinha, cantando com o refrão enquanto pegava uma Budweiser na geladeira. Ele bebeu um gole enquanto rodopiava de volta à sala.
Com o baixo e a forte percussão da música, ele não percebeu imediatamente o som de vidro quebrando; e, quando se deu conta, Sam virou a cabeça bruscamente na direção da cozinha — talvez a porta da geladeira tenha se aberto e derrubado uma das garrafas? Mas um óbvio feixe de luz cruzou a sala aleatoriamente e o desorientou, e ele mal começou a reagir à silhueta assomando em sua direção quando um braço se fechou em torno de seu pescoço, puxando-o novamente para trás.
O aperto era forte, rígido. De repente, Sam sentiu suas pernas como geleia derretida, prontas para ceder, mas o braço o manteve firme enquanto ele era arrastado para trás, agitando-se desesperadamente para continuar de pé, até seu escritório.
Khoob, computeresh hanooz mutassil ast. Mokham giriftee-esh?
Baley, man daaramesh!
Agora Sam podia ver mais dois homens: um deles tomando o lugar diante do computador, outro no extremo da sala junto à porta da frente, sem dúvida para o caso de ele julgar que fugir por ali era uma opção. Sam não entedia o que eles estavam dizendo, mas ouvira o bastante durante os últimos 18 meses de pesquisa para reconhecer a língua: árabe ou farsi. Mas o homem no computador agora se dirigia a ele em inglês.
O livro que você acabou de terminar. Para quem o mandou até agora?
Eu... não sei — gaguejou Sam. — Não consigo lembrar agora.
Ele estava em choque, mas outro pânico se ergueu subitamente: se eles tirassem os arquivos de A profecia do computador e conseguissem a cópia de Elli, seria o fim. Não havia nenhuma outra cópia lá fora.
Vamos tentar de novo, pode ser?
Um sotaque carregado, mas ainda assim era inglês americano — como se eles fossem imigrantes árabes de Nova York ou Buffalo, que chegaram ao país entre cinco e dez anos antes. Não eram as cadências claras, mas assoviadas, dos sauditas e egípcios com quem ele falou durante as pesquisas.
Sam sentiu o ar escapar de seu peito quando suas costas atingiram o chão e um dos homens se sentou sobre ele, imobilizando-o. Uma das mãos se fechou com força em sua garganta e uma arma se colou em seu rosto, com o cano a apenas alguns centímetros longe de seu nariz.
Onde, senhor? Onde? — gritou o homem que o imobilizava, falando pela primeira vez. O homem no computador ficou repentinamente concentrado, os olhos fixos na tela enquanto filtrava os arquivos de Sam. A arma foi engatilhada.
Ele achou a última cópia! E Sam não podia mandar um bando como aquele no encalço de Elli. E se fossem para a casa dele quando Miriam e as crianças estivessem lá, e...?
O fôlego de Sam o abandonou num soluço trêmulo quando o gatilho foi acionado com um só clique. A risada do homem no computador dominou o vazio ecoante.
Onde você comprou essa arma, Hadi? Num mercado de Gaza?
Nunca deu defeito antes.
A arma foi empurrada para mais perto, e o sorriso do homem desapareceu quando seus olhos assumiram uma nova e fulminante intensidade.
Pela última vez, onde... onde?
O homem no computador já tinha aberto o histórico de e-mails, e Sam percebeu a futilidade de resistir; de qualquer maneira, eles encontrariam em alguns segundos.
Elliot Roschler, meu agente. Eu mandei uma cópia para ele há pouco tempo.
Algumas teclas digitadas e depois um lento suspiro do homem do computador.
Ok, está aqui. Elli Roschler. Enviado há nove minutos. — Um discreto meneio de cabeça para o homem da porta da frente, fora do campo de visão de Sam, e depois ele se voltou levemente para Sam outra vez. — Mais alguém?
Sam pensou por um momento.
Não... não. Isso é tudo.
E nenhuma outra cópia enviada a Roschler antes?
Ah, espere; sim. — Sam recordou subitamente. — Um esboço c os três primeiros capítulos quando comecei; e depois este, há alguns minutos.
A mão apertou sua garganta com mais força, como se o punisse pelo esquecimento momentâneo, e o sorriso feroz do atirador se abriu novamente enquanto o cano frio da pistola se enterrava sob seu olho esquerdo. Sam tremia, e a trepidação de seu corpo agora beirava a convulsão.
E ninguém mais?
Não, ele foi o único. Ninguém mais.
E, além da cópia impressa que vemos aqui — o homem do computador gesticulou na direção dos papéis espalhados pela mesa e numa estante lateral —, alguma outra cópia em disco ou CD?
Não, não... é só isso. — Sam engoliu em seco, sentindo seu pomo de adão pulsando contra a mão fechada sobre sua garganta. — Está tudo aqui.
Soa como uma história furada para mim — disse o homem armado. — Nenhuma outra cópia enviada durante todo esse tempo. E nenhuma cópia em disco.
O homem do computador ergueu uma sobrancelha intrigado, e após um segundo fez que sim enquanto se voltava mais uma vez para a tela.
Onde mais, filho da puta? Onde mais? — berrou o atirador, e Sam sentiu parte da saliva aterrissando em seu rosto. — Tem que haver outras cópias em algum lugar.
Não, não tem mais nenhuma, eu juro!
No extremo da sala, o terceiro homem falava em farsi com alguém ao celular. Sting cantava sobre mandar um S.O.S para o mundo, mas ninguém estava escutando.
O gatilho foi puxado. Outro estalido vazio.
Sam engoliu de volta a bile amarga.
O homem do computador riu.
Essa é uma arma realmente vagabunda, Hadi.
Ou talvez eu simplesmente não tenha carregado balas suficientes. — Um sorriso torcido e condescendente do atirador.
Ah, a velha tática da roleta-russa. Nunca falha.
Só que não estou lembrando quantas balas coloquei nela, se duas ou três. — O sorriso se ampliou, mas os olhos continuavam gelidamente fixos em Sam.
Logo vai chegar numa delas, imagino.
Sim.
Terminando sua ligação, o terceiro homem se aproximou com um triturador de papéis, ligou na tomada e começou a passar as páginas soltas do manuscrito na mesa e na estante lateral de Sam.
A arma foi engatilhada novamente.
Pela última vez: quem mais? — O atirador o encarava malevolamente, e todos os traços de humor, provocação ou qualquer outra coisa desapareceram de súbito. — E pense com muito cuidado antes de responder dessa vez.
Eu juro, mais ninguém. Ninguém! — Sam voltou o olhar suplicante para o homem ao computador, sentindo que, no final das contas, era ele quem dava as cartas. — Nós tivemos que manter tudo em sigilo com este livro... como vocês podem imaginar.
Os olhos do homem no computador o fitaram longa e intensamente. Depois, após um momento congelado que pareceu durar uma vida inteira, outro suave meneio de cabeça.
Sim, eu posso imaginar, Sr. Tynnan. — Ele piscou lentamente e suspirou. — Acho que ele está dizendo a verdade, Hadi. Então acabe logo com isso. — Ele se voltou para o computador, como se Sam já não tivesse qualquer relevância, e inseriu um disco de inicialização para apagar o HD por completo.
O coração de Sam se apertou. Ele deveria ter imaginado que eles o matariam de qualquer jeito assim que tivessem o que queriam. Um segundo antes, ele se agarrava desesperadamente a 18 meses de trabalho, mas agora a própria vida escapava de suas mãos. Lágrimas transbordaram de seus olhos, a arma e o homem atrás dela subitamente nublados por elas.
Por favor! — suplicou ele, mas sua voz soou distante, desencarnada.
Claro, se agora vier uma bala — disse o atirador, ignorando-o.
Oh, Hadi, você não tem coração... Já basta de tortura por hoje.
Capítulo Dois
LONDRES, INGLATERRA
— Houve outro aumento de atividade, Adel.
Quanto?
Quatorze por cento desde ontem.
Adel concordou, pensativo.
E quanto às outras seções da TAME?
A seção um está apenas despertando. Mas para as TAMEs três até sete, praticamente a mesma coisa. Algumas até chegaram mais alto.
Adel passou um olhar breve pela sala: outros 79 computadores, cada um com seus próprios operadores e a maior parte do texto nas telas em árabe, farsi ou urdu.
Antes do 11 de Setembro, havia menos de quarenta agentes tradutores de árabe entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. A rede Echelon podia filtrar milhões de mensagens de telefones e e-mails pelo mundo afora e passar adiante para a NSA e o GCHQ e, por sua vez, para a CIA e o MI5; mas, quando palavras-chave do árabe, do farsi e do urdu foram acrescentadas ao caldeirão, o fluxo extra de mensagens teve que ser lido e analisado. E isso virou metade do problema. Atolados pelo repentino dilúvio de "atividade" em língua árabe na seqüência do 11 de Setembro, aqueles agentes se viram incapazes de selecionar e encontrar as poucas mensagens vitais — ao menos a tempo.
Eles não pretendiam cometer aquele erro novamente.
Adel Al-Shaffir chefiava o TAME2 — ele era natural de Dumyat, Egito, mas, desde seus dias de LSE nos últimos vinte anos, considerava-se praticamente londrino. Sua contraparte, Jalil El-Abinah, natural de Nova Jersey e filho de pais libaneses, chefiava o TAME1 em Nova York. O TAME3 ficava em Paris, o 4 em Berlim, o 5 em Madri, o 6 em Roma, e os outros 12 TAMEs — Centros de Monitoramento e Avaliação de Atividade Terrorista — estavam espalhados entre Tel Aviv e Jacarta.
O recrutamento fora fundamental. Nações árabes como Egito, Jordânia e Arábia Saudita tinham um forte interesse particular em combater o terrorismo. Mas, por outro lado, Arafat era meio egípcio, Al-Zaqawi era jordaniano e Bin Laden era saudita. E se eles recrutassem um agente infiltrado, alguém trabalhando para que as mensagens vitais fossem ignoradas? Assim, além de um estrito processo de seleção, as áreas de responsabilidade eram trocadas regularmente, para que fosse quase impossível que uma célula terrorista tivesse a garantia de que suas mensagens alcançariam um computador "simpatizante".
Poucos sentiam a pressão mais que Adel Al-Shaffir, responsável por esta sala repleta em sua maioria de muçulmanos equilibrados sobre uma ética dúbia: por um lado, eles estavam rastreando bandidos; por outro, estavam traindo seus iguais.
Assim, Adel tinha que agir não apenas como chefe, mas como um conselheiro, amigo e confidente, tendo que ser próximo o bastante para perceber quando aquela ética moral se tornava pesada demais para eles. Consequentemente, o sigilo era mais vital em seu departamento que em qualquer outro: eles nunca podiam falar do lado de fora sobre o que faziam. Pois, embora estivessem de acordo com aquela ética, talvez outros adotassem um ponto de vista diferente — e falar sobre o trabalho poderia ser sua sentença de morte.
Em certos momentos, a pressão era demais para Adel — equilibrando não apenas sua própria vida e ética nebulosa, mas as de todos os seus homens —, e trazia um tremor às suas mãos e o fazia acordar coberto de suor frio no meio da noite. Ele tinha deixado escapar alguma coisa?
Adel considerou as estatísticas. Quatorze por cento? Isoladamente, não era um número tão preocupante. Mas, todos os dias durante uma semana, houve aumentos de dez ou 11 por cento, com aumentos de cinco e seis por cento ao longo de alguns dias antes daquilo. Um considerável aumento total de 120 por cento. Algo estava acontecendo lá fora.
Sam ouviu o disparo desta vez, sentiu o calor pegajoso do próprio sangue em seu rosto e pescoço. Mas a dor parecia ser no peito e não na cabeça, e o homem que o imobilizava estava caído sobre seu corpo.
E, através de uma névoa borrada, aquosa — parte do sangue correra sobre seus olhos —, ele ouviu novos tiros e uma atividade frenética: uma correria de passos e vozes incisivas e urgentes, o homem do computador erguendo a arma apenas um segundo antes de dois tiros atravessarem seu peito e o atirarem 1 metro para trás; três outros tiros de algum lugar mais interno da sala, fora de vista — um dos disparos retumbando no corpo caído sobre ele, pois Sam sentiu que ele se movera 1 centímetro; talvez um último espasmo de morte, e não uma tentativa de reerguer-se.
E logo uma figura fardada para o combate se inclinou acima dele.
Você está bem? — Uma das mãos agarrou o ombro do corpo sobre ele e o puxou bruscamente para o lado.
Sim, eu... eu acho que sim. Por... por um minuto eu pensei... — Ele engoliu de volta o gosto azedo causado por um pouco de sangue que havia penetrado em sua boca. Com urgência e desespero, Sam tentava ajustar-se ao que havia acontecido, enquanto seu coração ainda disparado tatuava a mensagem em sua mente: ainda vivo, ainda vivo... vivo! — Aquele... aquele...
O homem segurou o ombro de Sam, afagando-o em consolo.
Não se preocupe, você está bem! Fique tranqüilo. — Ele examinou rapidamente o corpo de Sam para garantir que não havia deixado passar nada em sua primeira avaliação. — Chegamos aqui na hora H.
É o que parece mesmo, Sr. Tynnan — acrescentou outra voz.
O homem que falou era um quarentão robusto e tinha um toque grisalho nas têmporas e um saudável bronzeado, como se ele o mantivesse com viagens regulares à Flórida ou à câmera de bronzeamento da academia local. Ele usava a mesma farda de combate que os outros, mas sem o rifle automático ou o capacete, e seu colete estava aberto no alto para revelar uma imaculada camisa branca e a gravata abaixo. Como se aquilo fosse apenas um desvio cansativo de seus deveres no escritório.
Nevada se pôs de lado e começou a dirigir seus homens na limpeza enquanto Washington se agachava, assumindo seu lugar.
Na verdade, planejávamos chegar aqui mais cedo. — O sorriso fácil de Washington se torceu numa careta tensa. — Já estávamos de olho neles há algum tempo, mas ainda assim nos pegaram de surpresa. Nosso plano era abatê-los quando ainda estivessem em sua porta dos fundos, e não aqui dentro com uma arma em sua cabeça.
Sam se sentou, enxugando o sangue dos olhos. Washington ofereceu um lenço, que Sam usou para limpar o restante com um agradecido meneio de cabeça.
Eles? — Sam passou os olhos pelos corpos próximos, um deles sendo fechado num saco plástico funerário.
Uma célula extremista do jihad. Como eu disse, há algum tempo que os rastreamos. — Washington suspirou discretamente. — E há algum tempo que eles estão rastreando você, também. Verificando seus e-mails enviados e recebidos, qualquer coisa que eles pudessem descobrir a ver com A profecia. Foi por isso que eles vieram agora: você mandou a cópia final para Roschler.
Sam balançou a cabeça enquanto tentava dar algum sentido àquilo tudo. Uma célula extremista do jihad? E agora um esquadrão antiterrorismo? Era demais.
Mas, se eles já sabiam para quem eu mandei o livro... por que fizeram todas aquelas perguntas?
Washington encarou Sam com sobriedade.
Ah, eles sabiam sim. Só queriam ver se você diria a verdade. E também queriam descobrir se havia qualquer disco solto ou cópias em papel que talvez não conhecessem. Se você mentisse sobre as cópias eletrônicas das quais eles sabiam, então haveria uma boa chance de que mentisse sobre o resto.
Sam fechou os olhos enquanto um arrepio percorria seu corpo. Tudo aquilo acarretaria mais chantagens, mais roletas-russas e mais tiros de câmera vazia até que ele finalmente cedesse.
Elli! — Sam arregalou os olhos novamente, depois que a menção de Washington sobre Roschler avivou a lembrança. — Provavelmente eles mandaram gente para lá também. Vocês têm que alcançá-lo!
Washington ergueu uma das mãos tranquilizando-o.
Não se preocupe. Isso já foi providenciado. Outra de minhas equipes deve chegar lá em breve. — Washington afagou o celular no bolso da lapela. — Eles vão me ligar assim que tiverem notícias.
Washington perguntou se era possível que Roschler ainda estivesse em seu escritório, e Sam relatou a conversa de dez minutos antes.
Washington franziu o cenho.
Ao menos um consolo. Ele não estava lá quando o visitaram. Se visitaram.
Sam concordou vagamente. O problema era que, se eles de fato o tivessem visitado, a última cópia de A profecia estaria perdida. Dezoito meses de trabalho descendo pelo ralo. Entretanto, naquele momento, Sam recordou que tinha sorte por estar vivo; aceitar a perda de A profecia e o provável naufrágio subsequente seria um segundo estágio. Um passo de cada vez.
Existe alguma outra cópia de A profecia lá fora, Sr. Tynnan? — perguntou Washington, provocando uma ruga na testa de Sam: reprise do interrogatório do pesadelo anterior? Washington ergueu a mão. — Eu preciso saber, Sr. Tynnan. Realmente preciso. Pois, se há cópias lá fora, essas pessoas vão descobrir e vão atrás de você novamente. E, da próxima vez, talvez não cheguemos a tempo.
Sam encarou Washington diretamente. Ele gostaria que houvesse mais cópias lá fora, mas ter uma arma apontada para seu rosto e agora o pânico de que a última cópia talvez já estivesse perdida dominavam sua mente, de certa forma. Com um suspiro exausto, Sam repetiu o que dissera sob a mira de um revólver: nenhum disco de backup, as únicas cópias eletrônicas estavam com ele e Roschler e não havia nenhuma cópia completa em papel, apenas páginas soltas e fragmentos de capítulos.
O pouco que talvez não tenham destruído. — Pelo visto, ele teria sorte se restassem trinta páginas intactas.
Washington se uniu a Sam brevemente para revisar a mesa e a estante lateral.
E nada mais em qualquer outro lugar?
Mais uma vez, aquele inquietante déjà-vu quando os olhos de Washington se fixaram nos dele. Sam começou a balançar a cabeça, depois lembrou subitamente daqueles três primeiros capítulos enviados a Roschler.
... Há quase um ano, e da mesma maneira: anexo de e-mail. Mas fora isso, nada mais. É só isso! — Sam suspirou, absorvendo a dura realidade: se eles pegaram aquela última cópia completa do computador de Elli, ele estava liquidado. Mesmo que Elli tenha guardado aqueles três capítulos separados em algum lugar, ainda haveria uma gigantesca lacuna de quatrocentas páginas no manuscrito. Ele jamais conseguiria reescrever e costurar tudo novamente.
Washington passou um olhar rápido pela sala, em parte examinando a atividade de seus homens, e, depois, apoiando as mãos nas coxas com um tapa audível, ele se pôs de pé.
Muito bem. Temos que tirar você daqui.
O último dos três sacos funerários foi retirado, e Sam observou a saída brevemente com Washington, como se os corpos talvez pudessem explicar por que eles tinham que partir. Depois ele se lembrou de Lorrena.
Minha... minha namorada deve vir para cá em breve. — Sam checou as horas. — Daqui a cerca de quarenta minutos.
Não se preocupe. Quando ela chegar, minha gente ainda estará aqui limpando. Eles a levarão ao hotel para onde eu o levarei agora. — Novamente aquele olhar tranquilizador enquanto Sam buscava algum resquício da realidade brutalmente arrancada dele apenas alguns momentos antes. — Você não pode ficar aqui, Sr. Tynnan. Não é seguro. Um homem de reforço ou mesmo toda uma equipe poderia aparecer para checar o que houve com seus colegas; e nós não podemos correr este risco com você. Ou com sua namorada.
Certo. Certo. — Mas Sam olhava ao redor, entorpecido, como se inseguro sobre o que fazer.
Washington o despertou de seu torpor dizendo que ele precisava recolher algumas coisas para passar a noite, e alguns minutos depois eles já saíam rapidamente da garagem de Sam. Estavam em meados de novembro, mas o ar noturno já parecia gelado quando Sam seguiu Washington e outro membro da equipe em direção a um Chevrolet Tahoe cinza. Uma longa caminhonete negra da SWAT estava parada atrás dele. Sam viu um motorista ao volante do Tahoe, mas as janelas da caminhonete eram fumês demais para que ele conseguisse ver o interior.
O terceiro homem se sentou na frente junto ao motorista, com Sam e Washington atrás. Eles fizeram a curva no fim da rua, saindo de Oneida rumo a Syracuse, e nenhum deles falou durante os primeiros minutos da viagem.
As luzes de cada lado da pista diminuíam à medida que os limites da zona residencial de Oneida eram substituídos por plantações; a mente e a boca do estômago de Sam estavam tão negras e vazias quanto a paisagem noturna que se descortinava ao redor. Quer fosse pelo movimento do carro ou pelos nervos em frangalhos ainda lhe agitando o estômago, Sam começou a sentir náuseas. Ele mordeu o lábio, engolindo o enjoo e fitando Washington.
Quem são eles? Você disse que faz tempo que os rastreava. Sabe o que exatamente havia em A profecia para atraí-los até mim?
Washington ponderou por um momento, um vago sorriso tocando seus lábios.
Nós achávamos que você seria a pessoa mais indicada para dar esta resposta, Sr. Tynnan. Afinal, você escreveu o livro. — Ele retribuiu firmemente o olhar de Sam, mas seu sorriso não tinha qualquer traço de provocação; ele estava apenas abrandando uma verdade óbvia. Washington parecia prestes a acrescentar algo mais quando seu celular tocou. Ele verificou o visor antes de responder, e suspirou profundamente. — É minha equipe encarregada de Roschler.
Ele fitou Washington ansiosamente quando este começou a falar. Sam acabara de escapar com vida; agora ele descobriria exatamente se valeria a pena viver o que restava dela.
CapítuloTrês
CINCO MESES DEPOIS
Está tudo bem?
Sim, eu estou ótimo... ótimo. — Sam retribuiu o olhar inquisitivo de Mike Kiernan por alguns segundos, para transmitir confiança.
Nos primeiros meses após aquele dia, essa pergunta quase nunca era feita, porque era forçosamente óbvio que ele estava longe de se sentir bem. Noite após noite, ele bebia até o estupor para tentar esquecer que havia perdido A profecia; passava metade de seus dias dormindo e se escondendo do mundo para não ter que decidir o que exatamente faria a seguir.
Ora, vamos, Sam, não deixe que aquele incidente esmague você - encorajava Lorrena. — Você é mais forte que isso. Eu preciso de você, e, se você não se tocou, Ashley também. Só falou com ele duas vezes pelo telefone desde que aquilo aconteceu. — Antes, Sam falava com o filho todo fim de semana.
E ele recebia e-mails de Elli que inconscientemente reforçavam as tentativas de encorajamento de Lorrena — ou talvez eles realmente tivessem combinado: "Trabalhar e se concentrar num novo projeto pode ser justamente o que vai tirá-lo desse buraco." O golpe final viera de Mike:
Se você não sair dessa logo, Sam, juro que vai perder outra coisa boa de sua vida que não vai substituir com facilidade: Lorrena.
O rugido e os aplausos da multidão distraíram Sam por um momento. O jogo do Patriots naquela noite passava numa TV de tela grande num dos cantos do bar. Um grupo na mesa de sinuca também ergueu os olhos brevemente para a ação televisiva.
Semana que vem, nós estaremos lá — comentou Mike.
— Sim, estou ansioso por isso. — Sam esboçou um sorriso forçado, tentando demonstrar entusiasmo pela reunião futura com os velhos colegas de Mike em Boston, no Gillette Stadium.
Eles estavam no Vaccarelli, seu boteco local favorito durante os últimos anos, um bar de estrada logo na saída de Canastota, na rota 365 para Syracuse. Onde Sam e Mike estavam sentados, havia lustres da Tiffany por todo lado, paredes de carvalho e cabines reclusas: os fundos do salão, para conversas mais privadas e calmas.
Mike forçou a atenção para longe da tela e tornou a olhar para Sam.
Soube de mais alguma coisa de seu salvador da SWAT?
Não, não muito. Só falei com ele algumas vezes desde que me devolveu o computador e aquelas últimas páginas. — Washington levara os objetos para exame e os enviou de volta dez dias depois. Nenhum rastro foi deixado no computador, tudo havia sido completamente apagado, como Sam temera.
Sam lutou para evitar que a preocupação aparecesse em seu rosto.
Como todo mundo, eu acho que ele andou checando se eu estava bem, principalmente. Uma vez que ele se convenceu de que eu não faria nada precipitado e não pularia de um arranha-céu, os telefonemas pararam.
Na verdade, a maior parte dos telefonemas, no começo, haviam partido de Sam, para um número seguro que Washington lhe dera.
Você não poderá falar comigo diretamente por ele, mas deixe uma mensagem e eu sempre lhe retornarei dentro de 48 horas. — E, fiel à sua palavra, Washington sempre retornava. Após algumas ligações, em vez de "Sr. Tynnan", Washington passou a chamá-lo apenas de Sam. Mas Sam não conseguia deixar de pensar no que acontecia naquele ínterim, imaginando uma equipe de agentes da CIA passando sua voz por todo tipo de programas de análise de estresse, com Washington indagando antes de ligar de volta: "Em que estado ele se encontra? Qual a melhor maneira de administrar isso?"
Mike assentiu pensativamente enquanto virava a garrafa de cerveja para encher seus copos.
Talvez seja melhor que ele não ligue mais. Ao menos é um sinal de que tudo aquilo está finalmente terminado.
Sim, acredito que sim — concordou Sam enquanto tomava um gole de sua cerveja. Provavelmente ele partilhara seu dilema com Mike Kiernan mais que com qualquer outro; em parte porque, sendo também escritor, Mike compreenderia melhor a perda de um manuscrito que consumira sua vida por 18 meses. Não que eles estivessem no mesmo patamar no que dizia respeito às carreiras. Os suspenses policiais de Mike Kiernan alcançavam regularmente os dez mais vendidos do NYT, ao passo que Sam era apenas um candidato à posição.
Mike também construíra uma reputação como um dos romancistas policiais mais "realistas" da América; alguém que de fato conhecia em primeira mão as ruas difíceis do sul de Boston e os personagens sobre os quais escrevia.
Eles se conheceram 12 anos antes, na convenção de escritores Bouchercon em Monterey. Na época, Sam ainda vivia em sua Grã-Bretanha natal, mas, cinco anos depois, quando Kate deslanchou em sua carreira de atriz com uma oportunidade na Broadway, precipitando sua mudança de Londres, Mike foi a principal razão pela qual eles se estabeleceram em Oneida: lá, eles tinham um amigo. Mike destacava os prós da área: boas escolas, ótimo espírito de comunidade e, mais importante, uma das taxas de criminalidade mais baixas dos Estados Unidos. O próprio Mike se mudara de Boston para lá três anos antes quando o filho adolescente de um amigo foi baleado num assalto trágico. "Eu me mudei pensando primeiramente em meus filhos. E creio que talvez você venha a sentir o mesmo quanto a Ashley."
Ao longo dos anos, eles se tornaram bons amigos, mais próximos ainda por conseqüência da separação de Kate — mais bebida e mais tempo passado afogando mágoas a dois. E eles partilhavam o mesmo senso de humor indireto e cáustico,"Isso quando consigo que você largue aquela timidez britânica", caçoava Mike.
"Ah, vá se foder."
"Viu? Já foi embora."
Mike tomou um gole mais longo de sua cerveja, suspirando debilmente enquanto voltava a pousar o copo.
E então, como vai o novo livro? Já pegou mais o ritmo?
Já. — Sam deu de ombros. — Você sabe como são os começos, sempre a pior parte, e esse é duplamente difícil porque... — Sam se deteve. Ele sempre se via pisando em ovos em torno daquele assunto, daquilo que havia acontecido. — Bem, embora talvez não tenha a mesma perspectiva de lucro a curto prazo como A profecia, as perspectivas de longo prazo podem ser excelentes. Se eu aplicar a fórmula direito.
Mike balançou a cabeça com um sorriso compreensivo.
Acho que Elli deu bons conselhos. — Na última vez que haviam se reunido, Sam entrara em mais detalhes quanto aos planos de reviver um popular protagonista, Toby Wesley, de um livro anterior, e desenvolver uma série. — E o passo correto a tomar.
Espero que sim.
Mike olhou vagamente para o jogo na tela antes de voltar a atenção para Sam.
E mais nenhum pensamento sobre A profecia. Não está tentando reconstruí-lo?
Sam bufou.
Pelo visto, isso é o que mais interessa a todo mundo atualmente. — Washington perguntara o mesmo a ele em suas últimas conversas.
Sim, mas quem está perguntando sou eu, Sam. — Mike enfrentou o olhar de Sam. Eles já haviam ensaiado entrar naquele assunto antes, mas nunca discutiram se aquela porta estava fechada de uma vez por todas: era doloroso demais. — Mais que todo mundo, eu compreendo o que foi para você perder aquele manuscrito. Especialmente por ter visto o que você colocou nele.
Sam concordou, ausente, recordando as palavras de Mike na época: "Deve ser como perder sua perna esquerda, seu melhor amigo, e ter sua alma arrancada e pregada na porta da geladeira — tudo ao mesmo tempo!" Mike disse ter lido que H. G. Wells perdera um manuscrito num trem, e não podia imaginar como ele conseguiu lidar com aquilo.
Sam suspirou, lentamente.
A princípio, eu simplesmente não sabia se seria capaz de sair daquele túnel escuro, ou como. Todos aqueles dias bebendo, me escondendo do mundo, tentando apagar o que aconteceu e sentindo pena de mim mesmo. Mas eu só estava pensando no que perdi, e não no que quase perdi. E quando eu finalmente me concentrei nisso, em quão perto cheguei de morrer, de jamais ver Ashley de novo... nada vale mais que isso. — Sam tomou um gole apressado de cerveja, sentindo os olhos úmidos com a lembrança. — E, uma vez que aquela inclinação se foi, o resto foi fácil. Porque, mesmo que eu quisesse, sempre seria uma montanha infernal para escalar... talvez uma montanha impossível, reunir tudo de novo e escrever A profecia novamente.
Mike concordou.
E bom ouvir isso, embora de certa forma meio triste. — Ele apertou suavemente o braço do amigo do outro lado da mesa, e Sam jurou também ver um ligeiro brilho nos olhos de Mike; ou talvez fosse apenas a luz rosada daquela parte do salão. — Porque é bom ter você completamente de volta, meu amigo.
Eles saíram do bar uma hora depois, jogando conversa fora — talvez por terem deixado para trás os fantasmas de Sam que pairaram entre eles nos meses anteriores. E, porque pela primeira vez se abriu sobre como foi perder A profecia, Sam também se sentia mais livre internamente, como se um peso tivesse sido suspenso. Ele se viu cantando com o rádio na viagem de 3 quilômetros de volta, e ainda cantarolava quando fechou a porta do carro e ouviu o toque do telefone de casa.
Ele percorreu rápido a curta distância: chave na porta da frente, depois cinco passos esticados e uma disparada para agarrar o bocal. Sem dúvida, Lorrena já estava dormindo. Ele estava sem fôlego ao atender, o coração palpitando pela pressa. Mas os batimentos aceleraram mais um passo quando ele ouviu a voz do outro lado: Washington!
Conseguimos achar algo que não encontramos em seu computador, porque, como você sabe, ele foi completamente apagado. Levou um tempo para que seu provedor nos enviasse uma lista, mas nela havia um último e-mail com anexo, enviado apenas dez minutos depois que você mandou o e-mail a Roschler, dessa vez para um IP no Bahrein. Assim, ainda há uma cópia de A profecia em algum lugar no exterior, Sam... Se conseguirmos rastreá-la.
ANTALYA, TURQUIA
A Mesquita Ashna em Antalya, Turquia, não era considerada uma das mesquitas mais belas e procuradas do islã. E a pouca beleza que ela de fato possuía não se admirava facilmente porque a cidade crescera apertada a seu redor, deixando apenas estreitas alamedas de ciprestes de cada lado para separá-la dos prédios vizinhos de pedras cinzentas e três andares.
Mesmo assim, ela era uma das mais antigas mesquitas do islã, construída no reino do sultão Keykubat no século XIII, precedendo a Mesquita Azul de Istambul em trezentos anos, e seu minarete pontiagudo erguido muito acima dos telhados de Antalya — considerado sua característica mais impressionante — era o primeiro a captar a luz da aurora quando o sol despontava no horizonte.
Era aquele momento suspenso entre a noite e o amanhecer. Os quatro homens que observavam a mesquita do outro lado da estrada, enfiados nas sombras recolhidas de uma viela, também suspendiam a respiração naquele instante, marcando o tempo.
Havia apenas um guarda para todo o prédio e apenas dois holofotes fracos em cada flanco, mas o que apresentava o principal problema eram as lâmpadas de segurança de 2.000 watts, mais claras. Providas de sensores, quando o guarda circundava o perímetro da mesquita elas acendiam como luzes de um palco anunciando um espetáculo. Três minutos na frente, depois uma marcha constante em torno do prédio — a volta levava entre 36 e 38 segundos, eles contaram — antes que o homem reaparecesse do outro lado.
Precisavam avançar e instalar os explosivos quando ele ainda estava chegando aos fundos; caso contrário, ele os veria em fuga quando reaparecesse do outro lado. O problema era que suas sombras passando sobre as fortes luzes de segurança talvez o levassem a olhar para trás; isto é, a menos que a luz se dissipasse e se mesclasse com o sol nascente.
O líder ergueu uma das mãos em expectativa enquanto media o aumento da luz: o guarda acabava de chegar ao fim de seus três minutos na frente; eles teriam que esperar até seu próximo circuito ou podiam avançar agora?
Ele viu o guarda começando a marchar, 14 passos medidos antes de se voltar e baixar os olhos para a lateral do prédio — mas ainda assim o líder conservou a mão imóvel, inseguro, com a luz ainda fraca demais.
Ergueu os olhos para o céu e viu as primeiras pinceladas de laranja tingindo alguns filetes de nuvens — o guarda já estava a meio caminho pela lateral, ele tinha que decidir rápido. Mas um segundo depois, o sol tocou o minarete, derramando luz dourada sobre a frente da mesquita. Ele esperou mais um momento, contando os passos do guarda, e depois deu o sinal.
Dois de seus homens atravessaram correndo, semi-agachados, discretos e silenciosos.
Enquanto isso, o terceiro homem tinha seu rifle mirado nas costas do guarda, observando por sua vista telescópica caso ele percebesse algum movimento às suas costas e virasse a cabeça. Se o guarda se virasse, então ligaria o tracejador vermelho e três balas 9mm seguiriam aquela linha numa fração de segundo. Mas ele torcia para não ter que fazê-lo; em parte, isso derrotaria seu objetivo.
As luzes de segurança da frente acenderam. Ele retesou o dedo no gatilho, alerta para qualquer milímetro que fosse de movimento ou reação, mas o guarda continuou marchando firmemente, a apenas quatro passos de contornar a lateral.
Os dois homens já estavam junto às principais colunas laterais da entrada da mesquita, começando a instalar o C4.
Eles então desapareceram novamente da visão periférica do atirador quando ele voltou a se concentrar pela mira. Segundos tensos, de coração na boca, durante a virada do guarda — o atirador temia que ele talvez avistasse a luz mais clara em sua visão periférica —, mas o guarda finalmente sumiu de vista. Com um fraco suspiro, o dedo do atirador relaxou no gatilho.
O líder do grupo e o atirador observaram fixamente enquanto os outros dois instalavam o C4 e ligavam seus detonadores, ansiosos para que terminassem e desaparecessem antes que o guarda emergisse do outro lado. O líder checou seu relógio quando eles finalmente recuaram: 32 segundos desde que o guarda sumiu das vistas.
Os quatro correram em disparada ao longo da viela em direção a seu carro estacionado na primeira rua transversal, e mal haviam batido a última porta do carro quando a explosão retumbou a um quarteirão de distância, obrigando um bando de pássaros a alçar vôo dos telhados vizinhos. Com o barulho do motor de seu carro perdido entre as reverberações da explosão, eles partiram.
Sam observava a luz da aurora brincando nas costas de Lorrena.
Seus cabelos castanho-escuros trançados enroscados a meio caminho das costas; a suave penugem de pelos dourados como trigo numa linha perfeita desde a nuca até a curva da cintura — contrastando com sua bela pele olivácea; algumas sardas suaves sobre os ombros; a passagem da respiração suave através de lábios relaxados enquanto ela dormia.
Ele já havia notado aquelas características antes, mas jamais com tantos detalhes como agora, naqueles momentos de um amanhecer congelado. Talvez porque havia nevado um pouco ao longo da noite e a luz refletida estava mais alva que de hábito. Ou talvez porque agora, recordando a advertência de Mike de que ele a perderia se não despertasse de sua depressão, Sam percebia o quanto Lorrena significava para ele; como não teria sido capaz de tocar a vida sem ela, mesmo que não houvesse os dramas de Kate e Ashley ou de A profecia; o quanto ela era boa para ele; como a amava verdadeiramente, desesperadamente.
Eles se conheceram em uma das visitas regulares de Sam à Biblioteca de Albany. Ele estava examinando livros sobre o Egito e a Síria, e ela estava bem a seu lado, com dois livros já enfiados embaixo do braço e um espresso na mão, esticando a outra até a prateleira do alto. Quando o livro que ela tentava puxar escorregou de sua mão, ela tentou agarrá-lo, derramando metade de seu café em Sam.
Enrubescida, ela pediu desculpas e insistiu em pagar um café para ele.
— Eu vou ter que pegar outro para mim de qualquer jeito.
Ele teria recusado, mas quando a encarou pela primeira vez e viu como era linda, ele se pegou concordando.
- Ok.
Um café se tornou dois e mais de uma hora se passou, durante a qual eles trocaram histórias e contaram metade de suas vidas. Ela era recepcionista num centro médico de Utica e ficou entusiasmada ao descobrir que ele era escritor, contudo sem a bajulação boquiaberta ou o desdém repugnante — "Você consegue mesmo ganhar dinheiro com isso?" — que ele às vezes escutava. Ela dominava bem o meio-termo e parecia genuinamente interessada no processo.
Lorrena estava na Biblioteca de Albany para pegar alguns livros sobre o sul da Itália porque dentro de alguns dias voaria para encontrar o pai lá e passar duas semanas. Ambos os pais eram naturais de Taranto, instalando-se primeiro no Brooklyn quando imigraram, depois em Syracuse, onde ela nasceu. Mas, quando sua mãe morreu, o pai retornou a Taranto, onde ainda tinha alguns familiares. Sam disse que ia à Biblioteca de Albany praticamente a cada duas semanas.
Pesquisa. A não ser quando não consigo achar algum livro lá e tenho que procurar em Boston ou Nova York.
Enquanto bebiam o restante de seus cafés, ele ainda estava reunindo coragem para pedir para vê-la de novo quando ela se adiantou.
Temos que fazer isso novamente. Foi divertido. — Ela pôs a mão suave sobre a dele ao longo da mesa, um toque que prometia muito mais, e que provocou um arrepio em seu corpo. Ele disse que adoraria, e ela escreveu seu telefone num guardanapo. — Estarei de volta da Itália no começo do mês que vem. Me ligue.
Lorrena estava bronzeada e sorridente quando voltou e parecia ainda mais bonita. Eles se viram três vezes naquela primeira semana e, no meio da segunda semana, tornaram-se amantes. As coisas andaram rápido depois disso e em menos de um mês ela já se mudava para morar com Sam.
Foi assim que tudo começou.
E, praticamente todos os dias desde então, ele temeu perdê-la. Talvez pela beleza dela, talvez porque, aos 26, ela era 11 anos mais nova que ele, ou talvez uma combinação dessas coisas e de seu persistente sentimento de inadequação desde que Kate o abandonara; a sensação de que ele simplesmente não era bom o bastante.
Mas o que fez com que a relação crescesse tão fortemente nos 15 meses desde aquele dia na biblioteca foi a intuição e a compreensão amorosa de Lorrena, como se eles já se conhecessem há muito tempo.
Ela foi o mais notável apoio emocional para levantá-lo de seu fosso de depressão após a perda do A profecia, embalando, acalmando e consolando Sam por mais vezes do que ele ousava contar; até o dia em que Mike avisou que ele corria o risco de perdê-la se não saísse daquela.
Você já esgotou a reserva emocional dela, secou a garota. Ninguém consegue viver com isso, dia após dia. Você tem sorte por tê-la, Sam, mas agora está abusando dessa sorte.
E assim aquele medo caiu como chumbo em seu colo novamente: a sensação de que Lorrena era boa demais para ele — jovem demais, bonita demais, amorosa e compreensiva demais — ou de que ele simplesmente não era bom o bastante para ela.
Eu quase a perdi.
Sam sentiu um ligeiro tremor com aquela admissão, enquanto esticava o braço e a tocava, passando um dedo preguiçosamente por sua coluna. Ele a beijou na curva da cintura e ela se moveu.
Apoiando-se num cotovelo, ela piscou devagar algumas vezes ao focalizar a visão nele.
Você está bem?
Sim, tudo bem. Acordei cedo, então resolvi admirar a vista.
Ela sorriu lentamente.
Você também estava inquieto ontem à noite.
Eu sei.
Ela ergueu o braço e pegou-lhe a mão com delicadeza.
Não se preocupe, eu tenho certeza de que ele vai ligar em breve. Provavelmente leva tempo para rastrear algo assim, e só se passaram alguns dias.
Sam fechou os olhos por um segundo e fez que sim vagarosamente. Tão amorosa, tão compreensiva. Apenas dois dias, mas parecia uma vida inteira. Quando ele finalmente tinha conseguido livrar-se de tudo e colocar a vida de volta nos trilhos, a história voltava para assombrá-lo mais uma vez. Agora ele gostaria que Washington não tivesse ligado, alimentando novamente suas esperanças, apenas para deixá-lo na expectativa. E, embora Lorrena estivesse ali como antes, oferecendo o ombro como consolo, ele estava ciente de que recomeçava a ser um peso para ela.
Acho que você tem razão. Eu não deveria me preocupar tanto, me torturar. — Sam deu de ombros. — Já fiz isso uma vez, já vi esse filme.
Lorrena apertou sua mão mais uma vez para encorajá-lo, mas ele percebeu que ela não estava convencida.
Outra coisa em que Lorrena era boa: saber quando ele estava mentindo.
— Sete-dois-quatro.
Cairo?
Oito-seis-um.
Jidá?
Cinco-quatro-oito.
Adel digitava os dados em seu computador enquanto sua equipe repassava as "atividades de comunicação" dos últimos quatro dias em cada uma de suas áreas designadas.
A notícia da explosão da Mesquita Ashna três horas antes lançou o gabinete de Adel num frenesi. Telefonemas frenéticos para a Turquia e o Oriente Médio, a equipe digitando ferozmente enquanto filtrava informações com as palavras-chave Ashna ou Antalya. Cada mensagem, aparentando inocência ou não, era submetida ao microscópio, pois quem quer que estivesse por trás do atentado certamente não usaria palavras evidentes como "bomba". Até frases como "planos para" seriam óbvias demais. Geralmente a informação se escondia em conversas inócuas, casuais: "Seu pai ainda vai à mesquita de Antalya? Ouvi dizer que os melhores sermões são os do Imame Sadettin." Verificando as datas dos sermões de Sadettin, o último coincidia com a explosão.
Com um turbilhão final de teclas digitadas, Adel examinou os resultados, depois arrancou o paletó da cadeira e ligou pelo celular enquanto anunciava ao frenesi de atividade em seu rastro:
Vou me ausentar por uma ou duas horas.
Para a voz que atendeu quando ele entrou no elevador, Adel apenas disse:
Local quatro.
Como assim, agora?
Sim. Estou indo para lá agora mesmo enquanto falo.
Ok. — Um suspiro de resignação. — Nos vemos lá.
Adel fechou os olhos e tentou relaxar enquanto seu táxi disparava pelas ruas de Londres, com a furiosa digitação da sala de operações ainda ressoando em sua cabeça.
O ponto de encontro combinado era um bar à margem do rio em Southwark, o Anchor. Era um de seis locais pré-determinados — neste caso um agitado bar turístico —, longe das principais comunidades árabes londrinas de Queensway, West Kensington ou Knightsbridge. Eles podiam se misturar entre a massa de turistas e, com sorte, não ser notados; ou pelo menos não por alguém que lhes daria alguma importância. Isso não era uma questão importante para Adel, mas seu contato, Fahim Omari, era bem conhecido na comunidade árabe de Londres.
Adel pediu uma Perrier para si, um Campari com soda para Omari e pegou uma mesa no terraço com vista para o rio e para a Catedral de São Paulo. Ele mal havia tomado os primeiros goles de sua água quando Omari apareceu.
Com l,84m de altura, Adel parecia uns 10 centímetros mais alto que Omari quando se abraçaram.
Presumo que essa pressa seja por causa das notícias de Antalya, não? — perguntou Omari, uma vez que eles se sentaram.
Adel fez que sim com uma careta de lábios contraídos.
Algum ruído por acaso alcançou você?
Não. Ao menos nada que possamos associar àquilo. — Omari tomou um gole de seu drinque. — Com um alvo daqueles, talvez sejam apenas separatistas curdos.
Certamente é uma das opções mais fortes. Porém, eu também queria checar fontes; caso venha a ser uma ameaça maior.
Se houver outro nas próximas semanas ou meses, também na Turquia, então você saberá com certeza. — Omari deu de ombros. — Isto é, se houver outro.
Adel voltou a olhar para a vista. Um sol suave despontava atrás da camada de nuvens, refletindo-se no rio e no domo da catedral mais além. Mas tanto ele quanto Omari estavam cientes da outra opção: se houvesse mais uma mesquita bombardeada e se não fosse na Turquia, ou nem mesmo no Iraque — onde o caso também poderia ser classificado como sectarismo interno —, então eles estariam lidando com algo completamente diferente e mais preocupante.
Omari respirou fundo.
Alguém já assumiu a responsabilidade?
Não. Você sabe como funciona. Primeiro eles pulam na jugular da publicidade; jogam na internet ou divulgam pela Al Jazeera. Geralmente somos os últimos a saber.
Omari concordou, pensativo.
Os dois então retrocederam no tempo — na verdade, 12 anos antes do nascimento de Adel. Omari e seu pai eram clientes antigos do pai de Adel, um comerciante de mármore e granito de Dumyat, Egito. Em 1958, quando seu pai morreu, Omari assumiu aos 19 anos a florescente construtora da família no Cairo, que incluía um considerável catálogo de terrenos. O pai de Omari sobreviveu à reforma agrária de 1952, mas a lei de 1961 foi outra história e, pior ainda, houve acusações de que o pai burlava as reformas de 1952 através de fraudes e subornos; Omari foi informado em sigilo que, se o processo fosse julgado contra ele — o que parecia mais provável — os bens e as terras da empresa seriam confiscados. "Em sigilo", porque aqueles que o informavam também tinham alguns contatos convenientes: advogados e ministros aliados do regime de Nasser, dispostos a comprar tudo dele antes que aquela calamidade ocorresse. Por metade do preço. Metade era melhor que nada; Omari pegou sua meia fortuna e, com uma cadeia de propriedades entre Lancaster Gate e Queensway cujo valor havia disparado desde que ele as comprara nos anos 1960, compensou em muitas vezes o que perdera no Egito.
Omari era um dos homens mais estilosos que Adel conhecia, embora grande parte de seu estilo pertencesse a uma era passada: o Mahawat que ele agora retirava de uma longa cigarreira de prata parecia saído diretamente de Casablanca; suas jaquetas de tons discretos de cinza ou bege contrastavam com camisas polo azul-marinho ou marrons, como se ele tivesse afanado o guarda-roupa de Steve McQueen em Thomas Crown — A arte do crime e desde então não se dera ao trabalho de atualizá-lo. Não havia necessidade: em Omari, ele funcionava. Agora, com quase 70 anos, Omari ainda era uma figura impactante nos clubes e cassinos de Londres.
Ocidentalizado por fora — mas, segundo a reputação, muçulmano ferrenho por dentro —, Omari fora um grande amigo de Arafat, escutava regularmente os imames mais enfáticos e era um forte patrocinador de duas das mais suspeitas "instituições de caridade" da Palestina. Adel já tinha visto o nome de Omari surgir mais que algumas vezes em arquivos do MI5 como suspeito de financiar terroristas. Mas havia uma boa razão, conhecida por apenas um punhado de pessoas, pela qual Adel sabia que podia apostar todas as fichas em Omari como uma fonte confiável de informações.
Adel se concentrou num comentário anterior.
Você disse "nada que possamos associar àquilo". Por quê? Há algo mais?
Omari acendeu o Mahawat e soprou a primeira nuvem de fumaça. Como sempre, ele aparentava segurança e autocontrole. Mas Adel percebeu uma centelha de inquietação em seus olhos.
Eu não queria dizer nada... não até ter certeza. — Omari coçou o queixo. — Porque, embora pareça improvável que Abu Khalish esteja envolvido na explosão da Turquia, ouvi dizer que ele talvez esteja planejando outro "espetáculo". Desta vez, no norte da Itália.
Qual cidade?
— Esse é o problema. Não consegui averiguar nada além disso... Poderia ser Turim, Milão, Gênova... Bolonha. Na verdade, eu não sei ao certo nem se ele irá mesmo adiante. — Omari deu de ombros. — E é por isso que eu não disse nada ainda; estava esperando até saber.
Abu Khalish. Com poucas novidades de Bin Laden por cinco anos, nos últimos quatro Khalish assumira com firmeza o manto de "rei do terrorismo". O primeiro "espetáculo" foi a explosão de três trens em Amsterdã: 81 mortos; depois dois bondes no centro de Viena: 38 mortos, incluindo transeuntes e consumidores em passeio; um ataque semelhante em Copenhague: a inteligência dinamarquesa, a PET, interveio no último minuto — seis mortos. E o último ataque, três metrôs em Paris, também foi parcialmente detido pela inteligência francesa e a GIGN. Um terrorista foi morto a tiros quando tentava acionar seu dispositivo, o outro escapou e nunca foi encontrado. Dali em diante, tudo ficou misericordiosamente calmo por oito meses. Mas Adel deveria ter previsto que Khalish tentaria novamente, em especial depois de ter sido frustrado em Paris.
Através de suas células normais da Itália? — interrogou Adel.
Omari fez que sim e puxou uma longa tragada de seu Mahawat.
Quando?
Mais uma vez, não averiguei o bastante para ter certeza. Poderia ser daqui a apenas alguns dias ou uma semana, poderia ser daqui a um mês. Porém, não mais que isso.
Adel fechou os olhos e suspirou lentamente, como se o peso da informação empurrasse o ar para fora de seu peito. Quando eles se encontraram pela primeira vez naquele bar, Omari, que se considerava uma espécie de diletante da história, comentou que outrora havia uma cova comum da peste negra atrás do bar, que era também o lugar onde Samuel Pepys fez o primeiro registro conhecido do Incêndio de Londres. Praga e fogo. Quase quatrocentos anos atrás, mas, com homens como Bin Laden e Abu Khalish, obcecados pela destruição, era como se praticamente nada tivesse mudado desde aqueles tempos.
Os dois trocaram amenidades sobre seus respectivos amigos e famílias enquanto terminavam as bebidas, depois se abraçaram e se despediram.
Capítulo Quatro
ALBANY, ESTADO DE NOVA YORK
Decatur Island, Lopez Island, depois Shaw e San Juan, e finalmente Orcas, velejando no sentido anti-horário, leste-oeste.
Sam sabia a seqüência quase de cor por causa do livro anterior, mas o que queria esclarecer era a posição das ilhas mais exteriores como Súcia e Patos.
Ritos de passagem, publicado cinco anos atrás, fora o livro de maior sucesso de Sam até então. Toby Wesley, neto de um japonês — e o restante dos avôs eram anglo-irlandeses —, era um detetive que atuava nas ilhas San Juan, no noroeste do Pacífico. Havia pencas de livros sobre detetives de Nova York, Boston, Filadélfia, Miami e São Francisco, mas as ilhas San Juan raramente eram exploradas. Talvez porque não houvesse muitos crimes sérios por lá, mas, quando havia, o impacto era imenso. Um assassinato não atingia só a família da vítima, ele virava um evento de impacto sísmico na comunidade, ao contrário das grandes cidades, onde muitas vezes se tornava apenas mais uma estatística e uma notinha nos jornais. Sam manipulava essas ondas sísmicas como quem toca um Stradivarius, sugando delas cada grama de pathos e mãos torcidas, e agora o plano era fazer mais do mesmo, transformando aquele sucesso em uma série.
Sam enxergara o bom-senso no conselho de Elli e agora — trilhando parte daquele mesmo caminho com os velhos personagens, pesquisando novamente as ilhas San Juan na biblioteca — ele sentia parte de si voltar cinco anos atrás; como se o tempo passado entre os dois momentos quase não existisse. Ou melhor, como se não tivesse passado tempo algum.
Washington finalmente ligara na noite anterior.
Infelizmente chegamos a um beco sem saída, Sam. Quem pegou o manuscrito pagou em dinheiro num cybercafé no Bahrain e usou um nome falso para abrir uma conta de e-mail gratuita. Gravaram um CD e desapareceram em minutos. As chances de rastrear para onde foi essa cópia agora são próximas de zero. Sinto muito, Sam. Como tem passado?
Era a primeira vez que Washington fazia essa pergunta, e Sam teve que parar para pensar por um segundo.
Começando um livro novo agora. Provavelmente é a melhor coisa a se fazer, deixar para trás, esquecer. — Ele não mencionou que mal tinha escrito duas frases nos cinco dias desde a primeira ligação de Washington sobre o IP do Bahrein. Mais cinco dias da sua vida jogados no lixo.
Entendo. Bem, se você precisar de mim para alguma coisa, Sam, não hesite. Você sabe como me encontrar.
Mas essas palavras soaram como um adeus em psicologia reversa. Na verdade, ele queria dizer: não ligue de novo a não ser que seja muito importante.
Sam fechou os olhos por um segundo enquanto tomava um gole de café. Rotina. Sim, era o melhor jeito de esquecer tudo: ir à Biblioteca de Albany e retirar livros sobre as ilhas San Juan, voltar ao tema de cinco anos atrás que — ele torcia — apagaria os eventos mais recentes. E talvez fosse essa a tática subconsciente de Elli, pensou Sam tristemente. Um passeio despreocupado pelo Lincoln ou Washington Park, em Albany, parando às vezes para descansar um pouco, e finalmente um café ou almoço no Ramonas, onde ele faria anotações sobre as informações obtidas na biblioteca.
Mas o problema era justamente o que ele perdeu. Cinco anos atrás, Kate e Ashley ainda estavam com ele; e, sentado no Lincoln Park meia hora antes, Sam teve um flashback de quando brincava ali com Ashiey ainda bebê, seu coração atravessado pelas risadas agudas do filho ao perseguir uma bola, tão claras agora em sua mente que parecia ontem. E, com exceção dessas últimas visitas à Biblioteca de Albany, todas as vezes que estivera lá nos últimos 18 meses havia sido para pesquisar material para A profecia.
Oh, Deus. Será que era assim que alguém se sentia quando perdia a cabeça de vez? Sam apertou os dedos em torno da caneca de café enquanto bebia, mas agora mantinha os olhos abertos, sem confiar nas imagens que podiam tomá-lo de assalto; torcendo apenas para que a claridade do dia além da vidraça da cafeteria e as pessoas caminhando na Lark Street pudessem...
Sam teve um sobressalto, derramando um pouco do café ao ver um rosto se destacando de repente em meio aos transeuntes da rua. Ele focou o olhar mais intensamente.
O homem do outro lado da rua desviou o rosto, mostrando apenas um perfil parcial ao conversar com outro homem enquanto caminhavam juntos. Era mais difícil ter certeza naquele ângulo.
Por apenas alguns segundos, quando o homem olhou para algo do outro lado da rua, alguns metros à esquerda de Sam, seu rosto quase se encaixou naquela imagem indelevelmente gravada em seu cérebro: aquele sorriso torcido por trás do cano da arma enquanto o gatilho disparava câmeras vazias! Quase. Sam ainda não tinha certeza e, ao perceber em pânico que eles estavam sumindo de vista, rapidamente jogou algumas moedas sobre a mesa e fez um sinal para a garçonete. Ele saiu apressado e começou a segui-los.
Eles estavam a cerca de 40 metros à frente, do outro lado da rua. O segundo homem era mais baixo e gordo, com uma barriga pesada, de aparência também árabe ou mediterrânea, e tinha cabelos escuros, curtos e encaracolados e um bigode de charuto. Ele parecia dominar a conversa, com ocasionais gestos efusivos.
Sam rezava para que o outro, o atirador, se virasse novamente para que ele pudesse ter certeza — mas não muito. Apesar da distância, das outras pessoas na calçada e do trânsito, Sam sabia que, se o atirador olhasse direto para ele, provavelmente o reconheceria. E seria fim de jogo.
Eles pararam naquele momento, os gestos cada vez mais exaltados. O atirador fez uma meia-volta ao contemplar o que o outro dizia, mas ainda não era o suficiente! E, de repente, Sam se deu conta da insanidade de toda a situação. Ele tinha visto aquele homem fuzilado, seu cadáver sendo fechado numa bolsa funerária! Era impossível que fosse ele, só podia ser alguém parecido. Seria este o estágio final do desmoronamento de sua mente? Projetar o rosto de seu agressor em todos que se parecem remotamente com ele?
Mas, quando os dois homens recomeçaram a caminhar, Sam continuou a segui-los, quase mecanicamente. Havia ainda uma pequena chance de que fosse ele. Sam quase teve certeza naquela primeira virada de rosto em sua direção. Mais um movimento como aquele e ele se asseguraria.
O atirador deu meia-volta novamente, dessa vez falando. Então — com um movimento tão rápido que Sam quase não captou — o homem virou a cabeça em sua direção e depois além, observando o tráfego enquanto os dois homens começaram a atravessar a rua.
Por um segundo, o coração de Sam deu um salto. Será que o atirador o avistara em sua visão periférica e vinha naquela direção para confrontá-lo? Mas então ele percebeu as luzes de um Toyota Highlander destrancando as portas logo adiante.
Eles entraram no carro, o atirador ao volante, virando a cabeça para observar o tráfego ao arrancar.
Sam também se virou, olhando na mesma direção; o vidro do carro era ligeiramente escurecido, ele não conseguia ver muita coisa. Ele precisava desesperadamente de um táxi ou os perderia de vista, mas não havia nenhum por perto.
O Highlander deixou dois carros passarem e saiu da vaga.
Ainda nenhum táxi. Sam entrou em pânico. Eles estavam escapando!
Mas, quando o Highlander estava a cerca de 60 metros de distância, um táxi finalmente virou da rua transversal.
Sam parou o táxi e pulou dentro do veículo.
— Siga aquele carro! A caminhonete Toyota azul-escura, uns quatro carros à nossa frente.
O motorista sorriu por cima do ombro ao dar a partida.
Você está brincando, certo? Aqui não é Nova York, estamos no norte do estado.
É muito sério. E não chegue perto demais; não quero que saibam que estão sendo seguidos.
Ok. Mas, se eles começarem a correr feito loucos, eu não vou acompanhar.
Eles não correram. Mantiveram uma velocidade constante de 50 a 65km/h praticamente por todo o caminho para fora da cidade, até que chegaram a uma tranqüila área residencial — gramados bem-cortados, cerejeiras e bordos, embora a maioria das casas fosse de modelos simples, com laterais de alumínio e cerca de 40 anos.
Sam pediu ao motorista que ficasse para trás. Com menos tráfego na rua, eles ficariam mais visíveis. Mas, em determinado momento, Sam temeu que os tivesse perdido: ao virar numa rua a cerca de 80 metros do Highlander, ele não conseguiu mais vê-los. Eles haviam seguido em frente. Também não estavam na primeira transversal, mas, a meio caminho do próximo cruzamento, Sam avistou o carro estacionado numa entrada. O atirador estava enfiando as chaves na fechadura da porta de uma casa e seu amigo estava atrás com uma maleta na mão. Eles não deram atenção ao táxi — o gordinho de bigode apenas os olhou de relance quando a porta da casa se abriu —, mas Sam ainda assim pediu ao taxista que seguisse adiante mais 100 metros antes de parar.
Sam sentiu-se subitamente desprotegido e vulnerável, quando o táxi se foi. Não havia outras pessoas ou carros passando para desviar a atenção ou ocultá-lo um pouco. Era um duro lembrete de que, se de fato fosse o atirador e ele visse Sam, desta vez o tambor da arma certamente não estaria vazio.
Contudo, tendo chegado até ali, Sam não podia ir embora sem ter certeza; uma única visão frontal do atirador através da janela seria suficiente. Ele só tinha de tomar um cuidado redobrado para permanecer escondido, fora de vista, enquanto bancava o espião.
Sam fechou os olhos por um segundo para juntar coragem, então começou a caminhar em direção à casa.
Capítulo Cinco
MILÃO, ITÁLIA
Com 21 anos, bem-vestido da cabeça aos pés num perfeito terno de linho creme e segurando uma pasta de couro nova em folha, ele parecia dirigir-se para seu primeiro dia no emprego.
Só que ele sabia que este era seu último dia sobre a terra.
Ele se misturava bem às pessoas apressadas na hora do rush matinal de Milão ao caminhar pela Via Manzoni. Nem tão rápido, nem tão devagar. Mas decidido. Como se rumasse para algum lugar importante. Uma entrevista de emprego, ou talvez seu primeiro dia no trabalho.
Foi isto que aconselhou seu supervisor, Youssef, quando ele indagou o que fazer caso se sentisse nervoso, preocupado que as outras pessoas pudessem perceber sua ansiedade.
— Você não será a única pessoa estressada indo para o trabalho. Talvez tenha um chefe difícil, uma negociação complicada para travar, ou um trabalho atrasado para entregar. Ou talvez esteja indo para uma entrevista de emprego, ou seja seu primeiro dia de trabalho. Sim, seu primeiro dia de trabalho. Apenas pense nisso se começar a ficar nervoso.
Certamente ele não teria problemas para se misturar. Sua pele não era escura demais; embora sua mãe fosse originalmente palestina, ela se casara com um jordaniano e adotara a nacionalidade dele havia já vários anos. Ninguém encontraria essa conexão, pelo menos não com facilidade. E ele fora trazido à Itália quando tinha apenas 7 anos. Então agora ele era mais italiano que árabe no idioma, nas roupas e nos maneirismos, e a cor de sua pele não era diferente da maioria dos italianos nascidos ao sul de Roma. E havia muitos deles em Milão. Talvez, se as pessoas soubessem que seu nome era Ahmed e não Antonio, elas mudassem de opinião.
Ele vestia uma camisa marrom chocolate, contrastando com seu terno e sua pele — o que fazia com que parecesse ainda mais clara — e uma gravata bege de couro natural. Seu cabelo preto estava penteado para trás com gel e sua gravata combinava com os mocassins Gucci também beges. Não usava meias. Ele poderia facilmente ser confundido com um novo recruta de uma das empresas de moda, revistas ou agências de publicidade de Milão.
Sim, pensou ele, esboçando um primeiro sorriso nos lábios: primeiro dia de trabalho, e vestido para matar.
E havia o consolo de que não estava sozinho; naquele momento, outros dois como ele estavam no centro de Milão indo para o seu primeiro dia no trabalho.
Sam não conseguiu tocar no assunto com Mike até o fim do primeiro quarto do jogo.
Era um encontro habitual com Mike Kiernan — sempre que havia um grande jogo do Patriots, ele convidava sua antiga "galera" do sul de Boston para assisti-lo de seu camarote executivo no Gillette Stadium.
Muitos dos velhos amigos de Mike pareciam saídos direto de uma galeria de vilões de quadrinhos: Lyle Cullen, um veterano arrombador de cofres de Boston, com vinte anos de carreira; Craig Macfarlane, que comandava uma considerável operação de desmonte de carros em três estados; e Barry Chilton, braço direito de Vince Corcoran, chefe da máfia de Boston. E fechando o eclético grupo estava Robby Maschek, policial aposentado e agora detetive particular no sul de Boston.
Kiernan os conheceu em pesquisas passadas e a amizade permaneceu porque ele os considerava "figuraças" — não que precisasse de alguma desculpa. Era o tipo de reunião que colocaria uma pulga atrás da orelha de um policial, exceto pelo fato de que metade deles já estava "oficialmente" aposentado.
Duas pernas, Jackson! Duas pernas! — gritou Barry Chilton. — Use as duas!
Talvez a terceira esteja atrapalhando — debochou alguém.
Bem — Chilton sorriu —, ele tem que aprender a guardar essa para foder as putas e as supermodelos, e não com o jogo.
Algumas risadinhas caíram rapidamente num gemido coletivo e num "Oh, merda!" da platéia quando viram Willie Andrews sendo parado e esmagado por dois pesados zagueiros do Titans.
Lyle Cullen tinha constituição franzina e era alguns centímetros mais baixo que Macfarlane e Mascheck, com l,80m. Mas todos os três ficavam pequenos perto de Barry Chilton.
Quando o Titans fechou o cerco com três downs, o clima na sala se tornou mais contido. O rolo compressor do Titans foi finalmente interrompido a 10 jardas da linha final, provocando alguns suspiros de alívio — e ali soou o apito para encerrar o primeiro quarto.
Mike sorriu de uma piadinha de Macfarlane e voltou sua atenção novamente para Sam. Ele pousou a mão suavemente no ombro do amigo enquanto se afastavam para o canto da sala.
Ok, Sam... O que está acontecendo? Algum cara em Albany?
Sam começara a explicar antes do início do jogo, mas Lyle Cullen chegara no meio. Mesmo assim, as poucas palavras que havia dito obviamente despertaram o interesse de Mike, e houve uma série de sorrisos amarelos e envergonhados durante o jogo, como se ele dissesse "desculpe, amigo, vou falar com você assim que puder".
E assim, não querendo estragar a noite de Mike e ansioso para terminar antes que o jogo recomeçasse, Sam se apressou em resumir a saga do possível reencontro com o atirador árabe em Albany e de como o seguiu até uma casa nos arredores.
Eu esperei do lado de fora por quase duas horas para vê-lo melhor antes de finalmente desistir.
Mike estava cético.
Tem certeza de que era ele?
Esse é o problema. Não cem por cento. Oitenta, talvez noventa por cento até, quando ele se colocava em certo ângulo. Mas não por completo. Foi por isso que o segui, para tentar ter certeza absoluta.
Escondido pela cerca do vizinho ou por carros estacionados do outro lado da rua, Sam teve alguns vislumbres pela janela da frente, que ele presumiu ser a sala de estar ou de jantar, mas nenhum deles foi frontal o suficiente para dar certeza.
Mike ainda não estava convencido, mas Sam percebeu que ele tentava dar apoio.
E você nem pode ligar para o seu amiguinho da SWAT. Porque, se for mesmo o árabe do gatilho, isso quer dizer que eles são comparsas.
Eu sei. — Sam balançou a cabeça, pesaroso, com um sorriso breve. — Essa foi a primeira coisa em que pensei.
Eles ficaram em silêncio por um momento.
E você tem certeza de que não está vendo coisas? Por causa do choque daquele dia... não está vendo o rosto dele onde não devia?
Essa foi a segunda coisa em que pensei. — Sam abriu um sorriso torto. — Ou, na verdade, a primeira. Mas obrigado por lembrar que eu talvez esteja ficando louco.
Sem problema. Pode contar comigo. — E então, mais sério, ele suspirou. — Desculpe. Então qual é o seu plano agora?
Outra visita àquela casa. Outra tocaia para ver se consigo dar uma olhada melhor dessa vez e saber ao certo. — Sam deu de ombros. — É só o que consigo pensar.
Mike esboçou uma careta.
Tem certeza de que é uma boa idéia, Sam? Digamos que seja ele. Você provavelmente abusou da sorte na primeira tocaia; agora mais outra?
Eu sei. — Sam levantou as mãos, indefeso. — E essa foi a terceira coisa em que pensei. Mas não sei que outra opção eu tenho.
Eles ficaram em silêncio novamente, Mike balançando a cabeça, e então os gritos do estádio chegaram até eles.
As meninas pararam de rebolar! — avisou Chilton.
É, eles estão voltando a campo — confirmou Maschek.
Mike ergueu a mão para eles.
Ok, ok — disse ele, provavelmente soando mais impaciente do que pretendia. Mike tornou a olhar para Sam. — Pena que não haja fotos desse cara. Senão você podia usar alguém como Robby. — Mike apontou o polegar para o lado. — Alguém que, se fosse visto pelo cara, não causaria problemas. O sujeito da SWAT deve ter fotos desse cara, se ele realmente está seguindo esse grupo há um tempo, como disse. Mas, claro, vai ser difícil contatá-lo sem causar suspeitas.
É — concordou Sam, conformado. Ele não conseguia pensar numa desculpa coerente para pedir uma foto a Washington. — Provavelmente não é a coisa mais esperta a se fazer.
Meu Deus do céu! — exclamou Macfarlane, gesticulando com sua lata de cerveja Coors. — Como você errou esse passe? Arrume uns óculos escuros e vá tocar jazz, que tal?
Dizem que o Elton John tem um closet só para os óculos escuros — comentou Cullen. Desde que se aposentara como arrombador, ele havia se tornado um mestre de cultura inútil.
Mike abriu um leve sorriso para os amigos e se voltou novamente para Sam.
Estou vendo que você está decidido. E que não vai descansar enquanto não tiver certeza. — Ele fechou a mão no ombro de Sam. — Só tome cuidado, Sam, só isso. Você acabou de achar o caminho para sair do inferno. Não volte para lá.
SALON, PROVENÇA
Ele se sentou nos fundos do café Routiers na Place Crousillat, em Salon. Pálido e esguio, de rabo de cavalo, ele tinha 30 e poucos anos e vestia uma túnica com bordados elaborados — o dono do café e seus freqüentadores habituais o conheciam como Jean-Pierre Bourdin, um dos mais excêntricos especialistas em Nostradamus da cidade.
Quatro anos antes, ele era um dos mais importantes técnicos em engenharia na Aerospatiale de Toulon, onde começou a trabalhar logo após sair da Universidade de Montpellier. Até que um dia ele caiu de uma plataforma de construção de aviões. Um parafuso dos andaimes do avião se soltou, o que levou a plataforma a ceder sob o peso.
Sofreu danos graves na coluna e outros mais leves na cabeça, e por dois meses os médicos temeram que ele nunca mais pudesse andar; contudo, no fim ele teve "muita sorte" — se é que este era o termo apropriado. Daquele dia fatídico, restaram apenas um caminhar pesadamente claudicante, violentas dores de cabeça às vezes e metade dos 1,2 milhões de euros pagos pelo seguro da Aerospatiale.
Ele decidiu não permanecer na empresa — principalmente porque não tinha coragem de subir em outra plataforma de avião e desenvolvera um medo generalizado de altura. Então pegou parte de sua vultosa indenização pelo acidente e comprou um velho casarão em Salon-de-Provence, a cidade que Michel de Nostredame chamara de "lar" durante a maior parte de sua vida.
Jean-Pierre começou a desenvolver seu interesse por Nostradamus ainda na Universidade de Montpellier, quando descobriu que o astrólogo e profeta era o mais famoso ex-aluno do lugar.
Após ler todos os primeiros Almanaques de Nostradamus e todos os sete volumes posteriores de Centúrias, ele formulou uma tese no seu último ano de universidade.
Então, tendo lido todas as interpretações do trabalho de Nostradamus que pôde, ele releu todas as setecentas quadras das Centúrias em busca de interpretações aprofundadas ou alternativas que ainda não haviam sido exploradas.
Após três anos trabalhando na Aerospatiale, ele tinha seu próprio website sobre Nostradamus com postagens regulares e escrevera dois livros sobre o assunto, publicados por uma editora pequena de Paris.
Daí veio a queda da plataforma. Após um longo período de internação hospitalar e outro de auto-comiseração, ele começou a enxergar nisso uma oportunidade. Intervenção divina! Ele podia usar o dinheiro do seguro para seguir sua verdadeira paixão — embora alguns diriam "obsessão" — que cada vez mais relegava seu trabalho na Aerospatiale a um pobre segundo plano.
Ele comprou um antigo casarão a apenas 18 metros da velha casa de Nostradamus. Construída em 1783, foi a casa que ele conseguiu encontrar que mais se aproximava da ambientação da época. Ele converteu o andar de baixo em um pequeno museu e uma livraria dedicados a Nostradamus, cobriu as paredes com manuscritos e páginas envelhecidas e contratou uma senhora igualmente velha num brechó de caridade para cuidar do lugar.
Mas era no andar de cima que o verdadeiro trabalho de Jean-Pierre acontecia: inclinando e alinhando astrolábios, quadrantes e esferas armilares aos planetas e estrelas — exatamente como Nostradamus teria feito no século XVI. Ele vivia da maneira mais próxima de como teria sido a vida de Nostradamus; com isso, levou suas previsões a outro patamar mais importante: renovando, incrementando e atualizando as profecias à luz dos acontecimentos dos últimos quatro séculos e meio.
Jean-Pierre assentiu quando o garçom recolheu a entrada de salada com brie tostado e colocou o prato principal: pot au feu de carne de veado. Atrás do bar, Henri, o proprietário do café, ergueu meia garrafa do vinho tinto da casa, para saber se ele gostaria de mais uma taça. Jean- Pierre balançou a cabeça. "Non, merci." O noticiário da hora do almoço do Canal Plus estava passando na TV na ponta do bar, mas Jean-Pierre não deu atenção enquanto comia.
A cereja do bolo da "nova vida" de Jean-Pierre fora inspirada por um programa sobre uma família medieval que viveu por um ano num castelo do século XVII no Vale do Loire, exatamente como teriam feito na época de Luís XIV. Similarmente, Jean-Pierre imaginou que, vestindo-se como Nostradamus e mantendo grande parte de seus rituais e hábitos diários, talvez conseguisse ainda mais se aproximar do espírito de suas profecias e interpretações.
Ele encontrou algumas peças numa loja de fantasias medievais e mandou fazer o restante. Seu modo de se vestir causou estranhamento entre os moradores da cidade e os freqüentadores do café do Henri, mas, após algum tempo, os olhos ébrios voltaram aos jogos de dominó e ao Figaro: "Lá vai o louco do Jean-Pierre de novo, não preste atenção."
Ele manteve a fantasia completa por quase dois anos, mas agora a reduzira para apenas um símbolo da época: as túnicas — bem parecidas com as que se encontram em muitas feiras hippies —, que passaram a ser vestidas com jeans ou outras calças.
Uma matéria no jornal da TV paralisou Jean-Pierre em meio a uma garfada: um atentado à bomba numa mesquita em Antalya, Turquia.
Ele se lembrou de uma ligação que recebera, quase um ano antes, de um escritor inglês que estava trabalhando em um romance centrado em Nostradamus e que envolvia explosões em mesquitas.
Jean-Pierre dera conselhos sobre quais quadras ele achava mais relevantes para aquele tipo de evento — mas a primeira das supostas explosões seria justamente na Turquia, não?
Provavelmente, a explosão era apenas coincidência, nada com que se preocupar, mas Jean-Pierre se viu devorando o restante da refeição, ansioso por voltar para casa e checar suas anotações.
Dois possíveis alvos ao mesmo tempo.
Esse pensamento perturbava Adel cada vez mais após o encontro com Omari. Especialmente como isso poderia afetar suas estatísticas de "atividade", possivelmente levando a falsos resultados.
Certamente poderia ajudar a explicar por que um pico mais proeminente de atividade na Turquia ou no Oriente Médio não saltou de imediato a seus olhos. Um alvo planejado na Europa teria dispersado o campo de atuação; o aumento de atividade nas últimas duas semanas pareceria espalhar-se de forma mais distribuída.
Ao entrar de volta no escritório, Karam, cuja principal responsabilidade era o leste do Bósforo e o Oriente Médio, enfiou o último relatório impresso nas mãos de Adel.
Cinqüenta e seis por cento de aumento de atividade em Antalya na última semana. — Karam fez uma pausa enfática para que a informação fosse absorvida. — Temos um aumento de 48 por cento para Istambul também, mas isso pode ser apenas uma base de operações conectada. O restante da Turquia foi mais baixo.
Adel deslizou rápido um dedo pelas estatísticas impressas.
Ok. Vinte e nove por cento. Então são 19 por cento acima da média para Istambul, mas quase o dobro disso para Antalya?
Karam deu de ombros.
Na média. Mas locais como Izmir e Amasya na outra ponta do espectro tiveram apenas 12 e nove por cento de aumento, respectivamente.
Adel fechou a cara. Ele sabia o que Karam estava dizendo. Eles deveriam ter notado isso antes. Mas era sempre mais fácil encontrar os sinais em retrospectiva, quando sabiam o que estavam procurando. Até então, a informação era classificada por região geral, depois por país e em seguida pelas cidades principais. Uma cidade como Antalya simplesmente não apareceria no esquema porque não era o tipo de lugar onde se espera um atentado terrorista. Ficaria sempre perdida no emaranhado da média geral de dados do país.
Mas dessa vez, recordou Adel, eles podiam muito bem ter sabido o que estavam procurando com antecedência.
Obrigado. — Adel foi até Malik, responsável pelas operações na Europa. — Alguma coisa possivelmente fervilhando no norte da Itália. Milão, Turim, Gênova ou Bolonha. Veja se algo se destaca, usando Roma, Veneza e Nápoles como padrão de comparação.
Ok, chefe. Deixe comigo.
Ah, e peça ajuda ao T6 em Roma. Veja se o Rani consegue ver alguma nuance extra além das estatísticas de base.
Sim, chefe.
No início, Adel achava que Malik usava o termo como forma de mostrar respeito, até perceber que ele chamava todo mundo de "chefe". Um druso libanês, 30 quilos acima do peso, Malik sempre usava camisas de cores berrantes com suspensórios contrastantes — hoje eram suspensórios amarelos com estrelas azuis sobre uma camisa cor de vinho — e, naquele mesmo espírito, ele tinha o hábito de gritar estatísticas e informações pela sala, como se estivesse num pregão agitado em Wall Street.
Mais que o entusiasmo incontrolável, foi a habilidade lingüística o que assegurou a rápida ascensão de Malik pelas fileiras. Além do seu inglês de vendedor de kebab do norte de Londres, ele também era fluente em árabe, farsi, hebraico e francês.
Malik pôs as estatísticas nas mãos de Adel em 18 minutos.
Enquanto lia, Adel sentiu uma contração na nuca, aumentando rapidamente até que toda sua cabeça parecia subitamente febril e comprimida.
Malik se inclinou para a frente, apontando.
Note o aumento de 39 por cento só nos últimos dois dias em Milão.
Adel fez que sim, entorpecido. Seus olhos quase não se fixavam em mais nada.
Parece que é esse o grande.
Quatorze por cento disso foi observado pelo T6 só nas últimas cinco horas. Mesmo sem isso, são uns bons 18 pontos acima do segundo mais alto, Roma, e 26 acima de Turim; os outros são ainda mais baixos. Então, o que quer que aconteça por lá, parece que será mais cedo do que pensamos.
Adel fez que sim novamente. Ali estava o fio da navalha de sua especialidade, o motivo que resumia tudo: dar o alerta no momento certo. Quando acontecia cedo demais, depois de alguns dias os serviços de segurança ficavam descuidados — todo o foco e motivação se perdiam. Após alguns alarmes falsos, a coisa decrescia ainda mais rápido. Mas, se dessem o alerta tarde demais, mesmo que apenas um minuto, o preço a pagar era simplesmente muito alto. Adel colocou as estatísticas sobre a mesa e levantou o olhar pensativo para Malik, como se ainda inseguro de que estava tomando a decisão certa.
Ligue para Rani e diga a ele para dar o alerta vermelho, máximo, para todos os GIS e carabinieri em Milão... com foco especial na rede de transportes.
Ahmed ainda ouvia as sirenes dos carabinieri ecoando em sua mente enquanto atravessava os túneis azulejados da estação de metrô de Duomo.
Ele não estaria preocupado se, ao descer os últimos degraus do metrô, não tivesse ouvido sirenes vindo também da outra direção, e mais ainda ao longe. Parecia que metade da cidade estava subitamente tomada pelas sirenes dos carabinieri.
Logo após passar pela roleta e se aproximar das escadas rolantes, ele viu um grupo de três policiais surgindo no pé da escada por onde ele passara havia um minuto. Alertas e com os sentidos aguçados, com pontos eletrônicos nos ouvidos e semi-automáticas MP-5 em prontidão, seus olhos vasculhavam a multidão rapidamente, como se procurassem por uma pessoa específica.
O coração de Ahmed veio parar na garganta. Mas os olhos passaram por ele, e um dos carabinieri se fixou num jovem de 20 e poucos anos com um pequeno black power e um mochilão que se aproximava da roleta. O policial sinalizou para que os outros seguissem sua direção e todos sumiram de vista enquanto as escadas levavam Ahmed para baixo.
Ahmed suspirou de alívio. Youssef estava certo quanto à escolha do vestuário. Mesmo assim, as sirenes ecoavam em sua cabeça enquanto ele caminhava pelos túneis azulejados. Todos os outros sons também pareciam estranhamente amplificados: o eco da multidão confusa quicando pelas paredes; o rosnado do trem finalmente chegando, soando como um trovão ensurdecedor seguido pela rajada de um furacão; o sussurro das portas se fechando atrás dele; o doloroso gemido elétrico do trem partindo, seu rugido e os estampidos metálicos ressoando nas paredes do túnel à medida que ganhava velocidade.
Um filete de suor desceu por sua testa. Ele o enxugou com a mão livre, consciente de que algumas pessoas o observavam. Ahmed fechou os olhos, deixando que o balanço suave do trem o acalmasse.
Primeiro dia de trabalho, primeiro dia de trabalho. As pessoas só estavam olhando porque ele estava bem-vestido, não porque viam o pânico estampado em seu rosto, o suor em sua testa, os nervos dançando furiosamente e fazendo seu estômago embrulhar.
Oh, Alá misericordioso. Alá.
Na metade do caminho após a primeira parada, foram as instruções de Youssef.
Parecia que o tempo nem tinha passado e o trem já diminuía a velocidade novamente — seus poucos momentos de introspecção foram bruscamente interrompidos pelas luzes mais fortes da estação atingindo suas pálpebras como luzes estroboscópicas. Ele abriu os olhos outra vez.
O sussurro das portas se abrindo, mais pessoas entrando.
Um homem gordo de terno marrom o empurrou para trás com a enxurrada de gente. Na sua frente, duas mulheres de meia-idade, uma coberta de bijuteria barata, tagarelavam em alto e bom som.
O crucifixo dourado da mulher, pendurado numa corrente entre as pérolas e miçangas coloridas, chamou a atenção de Ahmed quando o trem tornou a andar. Ele brilhava e cintilava, refletindo as luzes da estação, como se quisesse provocá-lo, confundi-lo. Ahmed já não ficava nervoso ou ofendido por crucifixos. Ele sabia que, para muitas pessoas, eram apenas acessórios de moda casuais; aqueles que os portavam como símbolo daquilo que lhes era mais querido e sagrado diminuíam em número a cada ano. Bem diferente de sua própria religião; e certamente não em número suficiente para morrer pela fé.
Mais querido, mais sagrado. Sua mãe usara a chave ao redor do pescoço durante os primeiros quatro anos na Itália. Até dois anos depois da morte de seu pai e nove meses depois de conhecer seu novo marido.
Não devemos carregar nosso passado, nossa vergonha no pescoço, onde todos podem ver — disse ele uma vez.
Daquele dia em diante, ela guardou a chave em seu porta-jóias.
O padrasto, assim como sua mãe, era de origem palestina — exceto por ser da margem oeste, tendo assim a opção de ser jordaniano, o que ele aceitou em 1974. Já ela era de Bersebá e, com isso, sua única escapatória dos campos de refugiados fora casar-se com um jordaniano, seu primeiro marido. O pai de Ahmed.
Seu novo pai se via como um palestino "progressista". Virara as costas para os problemas de seu país, acreditando que esse era seu sacrifício para seguir em frente no mundo ocidental.
Não importa quão doloroso, temos que esquecer tudo aquilo; caso contrário, somos simplesmente arrastados para baixo, tornando-nos escravos de uma causa que não tem cabimento em nossas novas vidas aqui, na Itália.
Mas não era isso que o imame na mesquita dizia, nem Youssef, seu diretor. Eles diziam que jamais podemos esquecer. Senão, nossa história e nossos direitos de nascimento também se perderiam.
Ahmed fora muito cuidadoso e sigiloso em suas visitas à mesquita. Ele não queria que seu pai descobrisse que ele não era um palestino "progressista". Era tão cuidadoso quanto sua mãe tinha sido em não tirar a chave da caixinha de jóias quando ele estava por perto.
Mas, quando ela achava que ninguém estava olhando, Ahmed a via tirar a chave e a afagar com carinho, e vagarosas lágrimas rolavam por suas faces quando recordava sua terra perdida.
As mesmas lágrimas que ela indubitavelmente verteria quando ouvisse as notícias sobre seu filho.
Contudo, ela saberia por que ele fez o que fez. Ela entenderia.
Porque, embora seu novo marido diariamente esmagasse o espírito e a vontade de lembrar que havia dentro dela — tanto que hoje a mãe tinha medo até de mencionar qualquer coisa sobre sua antiga vida na Palestina na frente dele —, ela sabia que seu filho não havia esquecido.
Ele mantivera o espírito vivo, por ambos.
Capítulo Seis
Sam parou em meio ao gole do segundo café naquela manhã ao ouvir o giro repetitivo do motor de arranque gemendo na entrada da casa.
Ele balançou a cabeça. Era a terceira vez no mês que isso acontecia. Provavelmente culpa das manhãs frias.
Ignição... gemido, gemido, gemido... silêncio. Ignição... gemido, gemido, gemido... silêncio.
Era melhor que ele fosse até lá antes que ela queimasse o motor. Sam bebeu mais um gole rápido do café e se levantou para ajudar Lorrena.
Quando você vai finalmente desistir dessa...
Ela levantou uma das mãos pela janela do carro num sinal de "pare".
Não diga isso! Nós concordamos, lembra? — Ela abriu um sorriso seco.
Porco. Traste. Monte de lixo. Ele já havia esgotado os apelidos para o carro de Lorrena, mas nada adiantava. Havia sete anos que a mãe comprara para ela o Volkswagen Jetta azul-bebê de segunda mão, seu primeiro carro. Quatro anos depois, Lorrena e o pai perderam a mãe dela. Parada cardíaca ligada à angina. Então o carro agora tinha um valor sentimental; o caso era indiscutível.
Sam nem se incomodava mais e só resmungou:
Já sei, é o seu traste e você o adora. — Ele pousou as mãos no capô, retesando os ombros quando ela soltou o freio de mão, pronto para empurrá-lo da entrada.
Pelo menos agora os dois já sabiam qual era a rotina. Uma virada rápida do volante para alcançar a rua após ganhar impulso na descida da garagem. Ele então ia para trás e empurrava por uns 30 metros, até que ela engatasse a marcha e o porco, o traste finalmente despertasse para a vida às cusparadas.
A diferença é que hoje o carro não ligou na primeira tentativa e foi preciso correr mais 20 metros antes que ele finalmente arrancasse, quando Sam já estava sem fôlego.
Obrigada, otário! — gritou Lorrena pela janela aberta, acenando rapidamente. — Só lembre que, se você tivesse um carro assim, poderia me obrigar a fazer o mesmo por você!
E depois de mais algumas tossidas e um estouro do cano de descarga que deixou uma nuvem de fumaça negra em seu rastro azul-bebê, ela se foi.
Sam sorriu. Ela era impossível. Mas provavelmente era parte do que o atraía. Ele voltou para casa, o sorriso sumindo do rosto enquanto se lembrava da conversa que tiveram mais cedo.
Vou sair depois do trabalho com Ruby e Lisa. Noite das garotas. Pode ser que eu chegue tarde.
Provavelmente vou me encontrar com Mike mais tarde para um drinque rápido.
Vaccarellis?
É.
— Sem chance de nos esbarrarmos, então. Estamos pensando em ir a algum lugar com música alta e uns gatos rebolando em sunguinhas de seda.
Ele abriu um sorriso fraco, o melhor que conseguiu, uma vez que não tinha a menor intenção de encontrar Mike naquela noite.
Não contara a Lorrena sobre a possibilidade de ter visto o atirador. Após todos os meses em que ela o acalmou do pesadelo e após o fardo que colocou sobre ela — e sobre o relacionamento —, Sam não queria preocupá-la com um possível retorno do inferno. Não ainda. Não até que ele tivesse certeza.
E talvez nem mesmo depois. "Você já esgotou a reserva emocional dela, secou a garota. Ninguém consegue viver com isso, dia após dia. Você tem sorte por tê-la, Sam, mas agora está abusando dessa sorte." Ele só tomaria aquela atitude quando e se chegasse a hora certa.
Desistindo de convencer Sam a não voltar para aquela casa, Mike o aconselhou a ir à noite pelo menos, para observar mais. "Luzes acesas nas janelas vão aumentar sua chance de reconhecê-lo, além de lhe oferecer uma camuflagem melhor."
Foi constrangedor espionar em plena luz do dia. Ele encontrou uma posição meio escondida por um arbusto e não muito visível para os outros vizinhos graças a uma van estacionada. Mas no fim da tarde, quando a van foi embora, ele se sentiu muito exposto e não ficou mais que meia hora.
Sam já havia voltado duas vezes desde então, apanhando um carro alugado em Little Falls no caminho — modelos diferentes, ambos com vidros fumê — e se sentou em frente à casa por quase quatro horas de cada vez, com a última hora sendo depois do pôr do sol. Nada de seus amigos árabes em nenhuma das ocasiões. Ele não tentou ficar mais que isso, com medo de chegar tarde a Oneida e ter que responder perguntas de Lorrena.
Mas hoje ela esperava que ele chegasse tarde, então Sam poderia estender sua vigília.
Sam não quis sair antes do meio-dia, mas era difícil escrever com a viagem planejada invadindo seus pensamentos. Ele se viu vagamente encarando a tela em branco por longos momentos e, nesse meio-tempo, Elli Roschler telefonou.
Como vão as coisas?
Sam mentiu.
Bem. Ótimas. — Fazia meia hora que ele estava encarando o mesmo parágrafo e já havia mudado a última frase quatro vezes. E esse vinha sendo o padrão desde que Washington ligara duas semanas antes, coisa que ele não contara a Elli. Sam tampouco pretendia contar sobre o novo pânico ligado ao atirador. Não queria que Elli se preocupasse com o retorno do pesadelo e com a concentração de seu escritor mais uma vez indo para o buraco.
Ainda está no prazo para entregar as primeiras cem páginas no meio do mês que vem?
Acho que sim. Bem, talvez mais no fim do mês que vem. — Ganhando um pouco de tempo. Do jeito que as coisas estavam indo, nem isso ele achava que conseguiria cumprir. — Você sabe como são os começos. Sempre um pouco mais lentos.
Sim. Eu sei. — Porém Sam sentiu que havia algo mais no tom de Elli; como se ele tivesse preocupações subjacentes, mas não quisesse dizer nada. Ou como se houvesse outra coisa que quisesse dizer, mas decidiu que podia esperar. — Não deixe de me avisar quando completar as cem, Sam. Deveríamos sair para almoçar.
Sim, ótimo. Aguardo ansiosamente.
E logo ele estava novamente sozinho com aquela mesma frase na tela. Sam fez mais dois ajustes antes de decidir que estava satisfeito com ela. Mas, quando seus pensamentos se voltaram para a próxima frase, ele se viu igualmente paralisado nela; e depois de dez minutos encarando a tela sem qualquer inspiração, ele se cansou.
Sam pegou a chave do carro e partiu para Albany, batucando os dedos ansiosamente no volante depois de apenas alguns minutos. Mentindo para Lorrena, mentindo para Elli. A única pessoa com quem tinha desabafado era Mike. E se o atirador não aparecesse de novo dessa vez? Quantas visitas frustradas até que ele finalmente desistisse?
Sam trocou o carro por um Chevrolet vermelho-escuro alugado em Little Falls. Começou a garoar quando ele se aproximou da Amsterdam.
Eram 15h46 quando ele adentrou a rua. Sam estacionou do lado oposto, a 20 metros de distância da casa; uma posição em um ângulo que o escondia, mas ainda assim com visão desimpedida. Não havia carros na entrada nem sinal de vida na casa, e assim permaneceu pela hora seguinte. E por outra mais. Sam ligou o rádio depois de meia hora, mas ainda assim os minutos se arrastavam. Ele começou a abafar bocejos.
A luz diminuiu cedo com o céu nublado, e a chuva se tornou mais constante e pesada com a chegada do crepúsculo. Houve um aumento no tráfego da rua logo após a chegada de Sam — crianças voltando da escola — e agora havia outro: gente chegando do trabalho. Sam tinha um sobressalto a cada novo brilho de farol — contudo, ou paravam antes em outras garagens ou passavam direto.
Depois de uma hora e meia de mais do mesmo, os nervos de Sam estavam em frangalhos. Desde a primeira vez que vira o atirador, seu sono se tornara inquieto, e ele percebeu que estava prestes a cochilar.
Sam acordou bruscamente com a passagem de outro carro. A música no rádio tinha mudado, então ele percebeu que caíra no sono. De repente, ele se aprumou no banco. O Toyota Highlander azul-escuro — o mesmo carro da outra vez — estava estacionado em frente à casa.
Quanto tempo tinha dormido? Sam checou no relógio: oito ou nove minutos no máximo. Ainda assim, se eles tivessem suspeitado de seu carro, poderiam ter se aproximado o suficiente para que o atirador o reconhecesse através do vidro fumê. Um tiro rápido na cabeça e ele teria sido desovado no matagal mais próximo.
Sam estremeceu. Havia duas luzes acesas na casa: a sala de jantar, onde as cortinas estavam fechadas, e a cozinha, que tinha apenas cortinas de renda emoldurando a janela. Sam tinha uma visão clara de setenta por cento da cozinha, mas não havia ninguém lá no momento.
Ele esperou. Dez, vinte minutos. Contendo outro bocejo, ele trocou para uma rádio mais animada. Não queria correr o risco de cochilar novamente. Por fim, houve uma movimentação na janela da cozinha.
O amigo barrigudo do atirador apareceu, gesticulando enquanto falava. O atirador estava cerca de 1 metro atrás dele, mas não próximo o bastante, e seu rosto não parecia voltado diretamente para Sam, então ele ainda não conseguia ter certeza.
Uma ligeira inclinação de cabeça quando o atirador começou a falar, mas ainda não era o suficiente. Só mais um pouco, torcia Sam. Venha mais para perto da janela. Mais perto.
Sam estreitou o olhar através da chuva que riscava o para-brisa. Embora ajudasse a ocultá-lo melhor dentro do carro, ela também o impedia de ter uma visão clara de seu alvo.
Com um gesto de desdém para o amigo, o atirador virou de costas e Sam soltou a respiração.
Ele ouviu outro carro se aproximando. Sam esperava que ele parasse antes ou seguisse em frente, mas o veículo reduziu a velocidade 30 metros logo à frente, quando se aproximou da casa do atirador. E, quando Sam reconheceu o formato e a cor do carro além do clarão dos faróis, assim como o barulho inconfundível do motor, seu coração congelou.
Sua boca e garganta de repente secaram, incapazes de engolir, suas têmporas latejando com o pulso acelerado quando ele viu o carro de Lorrena, o porco, o traste, entrando na garagem do atirador.
Agarrando-se à possibilidade de existir outro carro exatamente como aquele, Sam checou a placa, desesperado. Então sentiu o peso do chumbo em seu peito, aprisionando sua respiração, descendo rapidamente pelo estômago.
Enquanto Lorrena desligava o motor e os faróis, o atirador finalmente se aproximou da janela para olhar para fora, e Sam teve certeza; no exato momento em que não tinha certeza de mais nada em sua vida.
A mulher lembrava sua mãe.
Ahmed não a notou até que ela levantou o menino, que não devia ter mais de 4 ou 5 anos, e o pôs nos braços como se para protegê-lo da enxurrada de passageiros que entravam e se espremiam mais e mais à sua volta.
Não era como sua mãe estava hoje, mas como Ahmed se lembrava dela na juventude, quando ele era apenas uma criança: cabelos negros, levemente ondulados, dois palmos abaixo dos ombros, grandes olhos castanhos com um toque de tristeza que sumia sempre que ela o via — o mesmo olhar que a mulher agora dirigia ao filho em seus braços enquanto o beijava na testa, sorria e o apertava contra o peito.
Ahmed se perguntou se foi por isso que ele só notou a mulher depois que ela pegou o filho no colo. Naquele momento, o menino passou a simbolizar aquilo que ele e a mãe tinham sido no passado; um súbito e doloroso lembrete de dias mais felizes.
Um dia quente na periferia de Adh Dhahiriya, sua mãe o levava nos ombros e apontava ao longe.
— Está vendo ali, aquela vila bem longe? Era lá que ficava a casa da sua mãe.
Ele não via nada, pelo menos não com clareza. Eles estavam numa pequena elevação que permitia uma visão à distância, mas a viagem de ônibus do leste de Jerusalém, onde o irmão dela morava agora, levara mais de duas horas, o calor aumentando sem parar por todo o caminho. Agora, uma onda densa de calor se erguia de Beersheba, ocultando-a parcialmente.
Mesmo assim, ele sentiu o entusiasmo e a emoção na voz da mãe e não quis desanimá-la, então respondeu com igual animação.
Sim, sim. Estou vendo.
Ela o beijou e o abraçou com força naquele momento. Contudo, o que ficou guardado mais fundo em sua lembrança daquele dia foi uma luz e um espírito que ele nunca tinha visto antes nos olhos dela.
Um dia nós vamos voltar. Você vai ver. Você vai ver.
Uma luz e um espírito que foram sumindo ano após ano, e hoje o sonho de voltar estava distante, fora do alcance. Relegado a um cordão em torno do pescoço por trinta anos, e agora a um porta-jóias que ela sequer ousava abrir quando havia alguém olhando.
Mas, como uma câimbra dolorosa no peito, outra idéia subitamente tomou Ahmed: mãe e filho estavam a apenas quatro passos de distância. Eles seriam pegos na explosão! Naquele momento, os dois representavam para ele uma segunda chance de felicidade e espírito na vida, uma esperança que para ele e sua mãe estava desaparecida havia muito. Matando os dois, ele também mataria aquilo.
Ahmed começou a se afastar deles, forçando passagem entre a multidão espremida no vagão. E dessa vez as pessoas o encararam abertamente: as pesadas gotas de suor na testa, o pânico escancarado nos olhos, como quem acabou de ver um fantasma.
Ative o dispositivo no meio do caminho entre as estações de Cordusio e Cairoli, foram as instruções de Youssef; mas àquela altura o ponto já devia ter passado. Ahmed olhou para trás: sete ou oito passos; a explosão ainda os atingiria. O fim do vagão estava a apenas quatro passos de distância. Se ele ao menos conseguisse chegar lá, os dois teriam alguma chance.
O trem sacudia e balançava enquanto ele tentava avançar; um executivo de meia-idade xingou entre os dentes quando Ahmed chutou seu tornozelo.
O trem diminuiu a velocidade, algumas luzes mais fortes surgindo na lateral. Ahmed se virou para elas como um animal alarmado sob faróis, temendo ter perdido o ponto e de já estar chegando à estação de Cairoli. Mas foram apenas clarões de descargas elétricas.
Ele continuou avançando pelo vagão apertado — agora só faltavam mais dois passos para o final —, quando de repente houve uma freada mais brusca. Ahmed foi lançado à frente quando o trem parou por completo.
Ouviu a própria respiração ressoando pesadamente no silêncio repentino e outro medo o assaltou: uma das outras bombas já havia explodido e eles interromperam todas as linhas! O trem ficaria parado ali, esperando que os carabinieri chegassem pelos trilhos, abrissem as portas e o agarrassem. Ele encararia anos numa prisão italiana — ou talvez até Guantánamo.
O que fazer? Ativar o dispositivo agora? Completar metade da operação seria melhor que nada? Ou esperar até a chegada dos carabinieri e torcer para conseguir acioná-lo antes de levar um tiro ou ser imobilizado? Ganhar um pouco mais de glória levando ao menos alguns deles consigo?
Ele fechou os olhos, fazendo uma prece silenciosa a Alá por conselhos e outra à sua mãe, pedindo perdão.
Mas ao imaginá-la mais tarde ouvindo as notícias sobre o filho, Ahmed não sabia se aquela luz e aquele espírito voltariam aos seus olhos por trás das lágrimas.
Um tranco repentino o acordou de seu devaneio. Ele abriu os olhos. O trem começava a se mover novamente.
Capítulo Sete
Mike era o único para quem ele contou. Mike era o único a quem ele podia contar.
Sam relatou a infeliz seqüência de eventos com o máximo de calma e realismo que conseguiu, assistindo à reação boquiaberta e assustada do amigo.
Mike fez algumas perguntas para que tudo estivesse claro em sua mente e, uma vez que ele repetia "você tem certeza?" à exaustão, como se a sanidade mental de Sam estivesse novamente em questão, Sam finalmente explodiu, erguendo a voz:
— Você acha que eu já não me perguntei isso mil vezes nessas últimas 24 horas? Que estou errado sobre o homem? Que talvez fosse outro carro e não o da Lorrena? Ou que li a placa errado? Ou que ela emprestou o carro para outra pessoa? Qualquer coisa... qualquer coisa para não ter que aceitar o que vi!
Mike olhou em volta, apreensivo. Eles estavam numa lanchonete genérica na beira da Highway 90 perto de Whitesboro, onde ninguém os reconheceria. Mas já era quase meia-noite, então havia poucas pessoas na lanchonete — como antes, prestando atenção em suas próprias conversas ou pedidos. As luzes fluorescentes pareciam sugar a vida do lugar e das pessoas ali. Pelo visto seria preciso mais que algumas palavras ríspidas ou estridentes para chamar a atenção delas.
Mike fez mais algumas perguntas para esclarecer tudo em sua cabeça.
Ok, ok. Vamos aceitar que era ela, e ele. Vamos ver onde mais podemos chegar com isso.
Sam concordou e o primeiro comentário de Mike foi que eles obviamente estavam trabalhando juntos.
E, se o atirador de repente aparece vivo e todo o ataque foi uma encenação, isso quer dizer que o homem da SWAT e sua equipe estão envolvidos também. O círculo se fecha. Estavam todos trabalhando juntos desde o princípio.
Sim. — Sam concordou outra vez, na esperança de que Mike chegasse logo a alguma conclusão que ele não havia tirado sozinho.
Então o que temos que fazer agora é retroceder e descobrir quando e por que eles colaram em você. Quando você conheceu Lorrena?
Hum, pouco mais de um ano atrás.
E, nessa época, há quanto tempo você estava trabalhando em A profecia?
Sam pensou por um segundo.
Dois, talvez três meses. — Sam viu uma sombra de consternação passar pelo rosto de Mike e acrescentou: — Mas eu já estava pesquisando quatro ou cinco meses antes disso.
A sombra se ergueu por um segundo.
Ok, certo. Esse foi o tempo de fazer a linha geral. Agora passemos para quem. Você contatou muita gente nesse período por causa da pesquisa?
Sam deu de ombros.
Trinta e cinco a quarenta pessoas, acho. Talvez mais.
Muitas nos Estados Unidos?
Não mais que oito ou dez. E um pouco mais que isso pela Europa: Inglaterra, França, Alemanha... um cara na Holanda. Só que mais de quarenta por cento eram acadêmicos muçulmanos no Oriente Médio. As melhores fontes estavam no Egito e na Arábia Saudita, mas também encontrei algumas boas na Síria e em Omã. E uma até na Universidade de Haifa.
Mike fez que sim lentamente, pensativo.
E essa é a lista das pessoas. Um desses contatos ficou preocupado com alguma coisa que você estava escrevendo em A profecia. Ele fez uma ligação, a preocupação virou um alerta e aí mandaram Lorrena. Onde mesmo você disse que se conheceram?
Biblioteca de Albany.
Faz sentido. — Mike assentiu novamente. — Um lugar que eles sabiam que você visitava com freqüência. — Ele estava no caminho certo agora, juntando todas as peças. — E a origem dela? Sei que ela é filha de italianos e lembro que você me contou alguma coisa sobre a morte da mãe dela há alguns anos. Mas e o pai e o restante da família?
O pai dela voltou para Taranto um ano após a morte da mãe. E ela tem uma irmã mais velha que mora em San Diego há oito anos.
Então não tem ninguém que você possa procurar por perto? — Mike ergueu uma sobrancelha.
Sam piscou lentamente, em admissão. Colocado dessa forma, tudo parecia óbvio demais. Ele levantou a cabeça após um segundo: um elemento não se encaixava.
Mas, se a função dela era monitorar o que eu pretendia com A profecia, por que ela simplesmente não levou o manuscrito pessoalmente e apagou a cópia do meu computador?
Dois motivos. — Mike levantou dois dedos. — Primeiro, Lorrena não podia saber ao certo se você tinha gravado uma cópia em disco quando ela estava fora e escondido em algum lugar que ela não conhecia. Para ter certeza, seria preciso um interrogatório pesado demais. Segundo, se ela pegasse o livro, teria que desaparecer ao mesmo tempo. No entanto, ela precisava ficar para ter certeza de que você não estava pensando em tentar reescrever tudo de novo e se assegurar que você não estava mentindo sobre a existência de outras cópias em disco. Que não sacaria uma cópia de repente de uma gaveta. "Ei, olha só o que eu tenho! Consegui tapear aqueles pistoleiros árabes idiotas e Washington!"
Um ligeiro arrepio percorreu a espinha de Sam, atingido em cheio pela revolta ao pensar nos profundos níveis de dissimulação e no fato de que passara o último ano dormindo com o inimigo.
Então você acha que, assim que ela tiver certeza absoluta de que não vou reescrever A profecia, coisa que agora já está quase certa, ela vai sumir.
Sim. Ela vai dizer que o pai está doente em Taranto, ou alguma outra desculpa, e você nunca mais voltará a vê-la.
Sam passou um olhar de esguelha pela lanchonete sem vida e seus clientes igualmente mortiços, mas ninguém poderia estar mais vazio que ele naquele momento.
Mal posso esperar — disse ele num tom cáustico, amargurado por ter sido enganado por tanto tempo.
Mike abriu um sorriso cauteloso.
Aí é que está, Sam. Não lhe interessa que ela vá embora, não agora, Porque ela é a chave para tudo que você quer saber: as pessoas para quem ela está trabalhando, porque você foi escolhido e, acima de tudo, onde pode haver uma cópia de A profecia agora. — Mike fez uma pausa para assistir à dura realidade se enraizando em Sam. — As pistas para isso estão todas lá, em algum lugar. Ela deve ter anotações, nomes e números de contato, talvez num diário ou laptop.
Sam sustentou o olhar de Mike. Tudo o que ele estava dizendo fazia sentido, e na verdade era o que ele esperava do amigo, a habilidade de destrinchar e chegar ao âmago de um problema ou trama. Mas fazer algo a respeito era outra história.
Ele balançou a cabeça.
Acho que não conseguiria fazer isso. Além do mais, você não disse que era perigoso?
Mike deu de ombros.
Bem, se você não se incomoda de deixar passar o que pode ser a sua última chance de encontrar A profecia, tudo bem. — Ele se inclinou à frente. — Mas você está correndo perigo de qualquer jeito, Sam. Se Lorrena achar por um segundo que você desconfia dela, vai dar no pé e ligar para o homem da SWAT antes mesmo de chegar ao fim da sua rua. E dessa vez não haverá câmeras vazias na arma.
Sam fechou os olhos enquanto o arrepio se intensificava dessa vez. Ele queria os conselhos, mas agora desejava que Mike não os marretasse com a parte mais dura.
Não sei — disse Sam ao reabrir os olhos. Ele balançou a cabeça. — Simplesmente não sei.
Mas Sam sabia.
Na noite anterior, ele vagara de bar em bar para passar o tempo e garantir que Lorrena já estaria em casa e dormindo quando voltasse. Não só para não ter que tolerar perguntas ou conversas, mas também seu toque. Ele se viu tremendo só de pensar nisso, e não sabia como reagiria; se simplesmente congelaria, rígido, ou se a empurraria para longe — e ela saberia imediatamente que alguma coisa estava errada. Ou talvez ele só se deitaria lá, tremendo sob o toque dela, e mesmo assim ela saberia.
Sam tomou uma série de uísques puros nos primeiros bares, e depois passou para refrigerantes. Se estivesse fora de si ao chegar em casa, ele não saberia como reagir. Precisava estar lúcido.
Era 0h34 quando colocou a chave na porta. O Jetta de Lorrena estava estacionado em frente à casa, mas as luzes da cozinha e da sala se encontravam apagadas. Aparentemente, ela já estava na cama.
Ainda assim, ele subiu as escadas em silêncio, sorrateiramente, e usou o segundo banheiro em vez da suíte para não a perturbar.
Entrando debaixo das cobertas a seu lado, ela murmurou de leve e se virou, e Sam temeu por um momento que Lorrena acordasse e tentasse puxá-lo para si.
Mas ela não acordou, e depois de um momento ele suspirou silenciosamente, aliviado.
Contudo, saindo do restaurante esta noite, ele se deu conta de que teria o mesmo problema outra vez, o pé frouxo no acelerador, adiando mais uma vez, esperando que ela já estivesse na cama quando chegasse.
Chave na porta à 0h46, 12 minutos mais tarde que na véspera. Ele subiu a escada com passos leves, embora suas pernas parecessem de certa forma mais pesadas esta noite, como se fossem os últimos passos rumo à sua execução.
Respiração suspensa quando ele finalmente entrou debaixo das cobertas. Lorrena gemeu e depois fez silêncio, e por um momento ele achou que tivesse escapado. Mas o gemido retornou mais alto e rouco, e ela rolou na cama para ele, passando um braço por sua barriga.
— Hummm, chegou tarde de novo.
É, eu me encontrei com Mike. Estou com problemas em algumas cenas e queria pensar com ele.
E ele ajudou?
Bem... resolvemos a maior parte.
Silêncio, exceto pela respiração constante dela, e Sam se perguntou o que ela estava pensando. Será que havia engolido a história ou estava desconfiada?
Em seguida:
Você está tremendo.
Sam engoliu em seco, discretamente.
Está... está frio lá fora, e acabei conversando com Mike no estacionamento por mais tempo do que imaginei.
No Vaccarellis?
Sim.
Ele mordeu o lábio assim que disse isso: era uma mentira que ela podia descobrir facilmente.
Eu esquento você — disse Lorrena, e ele sentiu sua mão sob as cobertas indo para a parte de baixo de seu corpo. Flácido, morto.
Eu... eu bebi algumas cervejas além da conta com Mike.
Outro silêncio desconfortável. Ela havia acreditado na história? Ou já estava fazendo planos de sair no romper da aurora e ligar para uma equipe da SWAT?
Tente não beber tanto com Mike da próxima vez — disse ela, dando-lhe um tapinha afetuoso abaixo da cintura e rolando para longe. — E venha para a cama mais cedo amanhã, gato.
- Ok.
Ele virou de lado após um segundo, mas a pressão levou pelo menos oito ou nove minutos para diminuir em seu peito, quando percebeu pelo ritmo da respiração que ela havia caído no sono novamente.
Ok. Pelo visto, ele tinha conseguido sobreviver àquela noite com uma mentira. Mas e a próxima noite e todas as outras subsequentes? E se ele tinha problemas até em se deitar com Lorrena toda noite, como diabos arrumaria coragem para fazer jogos de espionagem com ela?
Sam ficou encarando a escuridão por mais duas horas, pensando nisso, ouvindo o som da respiração dela, até finalmente adormecer.
Capítulo Oito
MILÃO, ITÁLIA
O Lancia Thesis preto que levava o coronel Giuseppe Muzzio, chefe do GIS de Milão, abriu caminho pela loucura do tráfego matinal da cidade; confuso no melhor dos horários, o fechamento da rede de trens e metrô dobrou o número de carros nas ruas.
Um maresciallo do GIS, oficial de justiça, estava ao volante e a sirene do Lancia uivava sem parar, mas às vezes se perdia entre a frenética batalha de buzinas do trânsito, então era necessário piscar os faróis com freqüência também.
Eles levaram 38 minutos para chegar à estação de Cairoli, quando normalmente seria necessário metade desse tempo.
Ao chegar, mais balbúrdia. Carros de polícia. Camburões. Caminhões de bombeiro, ambulâncias e médicos. E, atrás de um cordão de isolamento, câmeras da imprensa clicavam e microfones disputavam espaço com dois carros de transmissão que já haviam chegado. Uma massa espremida de pessoas observava a entrada da estação atentamente, alguns chorando e gritando escancaradamente.
Muzzio já sabia que um tal capitão Bruno Castaldi da polizia di stato era o chefe da operação. O maresciallo rapidamente procurou Castaldi em meio à multidão.
Muzzio cumprimentou os bombeiros ao caminhar em direção aos degraus da estação com Castaldi.
Houve incêndio?
Não, eles estão aqui somente pelas máquinas de corte.
Castaldi forneceu as atualizações enquanto caminhavam pelo terminal de passagens e começavam a descer a escada rolante. Oito mortos, inclusive um dos homens de Muzzio, e uma dúzia ou mais em estado grave.
Qualquer um deles pode entrar para a lista de vítimas fatais nas próximas 48 horas. Inclusive outro de seus homens, sinto dizer.
Muzzio balançou a cabeça pesarosamente. A explosão próxima à estação de Rovereto fora mais séria: o trem estava em alta velocidade, o que resultou em mais de vinte vítimas mortas. Mas ali o incidente envolvera alguns de seus homens diretamente, então ele viera para cá e mandara seu segundo em comando, capitão Endrizzi, para Rovereto.
Por que o trem voltou a andar depois que a rede foi fechada?
Castaldi deu de ombros, fechando a cara, como se para dizer que a decisão não fora dele ou que teria feito diferente.
O maquinista percebeu que estava a apenas 300 metros da estação de Cairoli. Ele pediu permissão ao operador da rede para continuar naquele trecho curto e liberar os passageiros. O operador permitiu, desde que ficasse em baixa velocidade. Foi o que ele fez, avançando a não mais que 20km/h.
Ambos sabiam o resto: quatro dos homens de Muzzio já haviam retirado todos da plataforma e aguardavam instruções pelo rádio sobre o que fazer a seguir quando o trem entrou lentamente na estação. Então o terceiro vagão — onde estava o homem-bomba — emparelhou com eles, e a bomba foi ativada.
Muzzio reprimiu a tosse quando a fumaça cáustica e a poeira penetraram fundo em sua garganta. E pareciam ficar mais densas à medida que a escada rolante baixava.
Pensei que tinha dito que não houve incêndio.
Não, não houve. Só poeira. — Castaldi fez um gesto teatral. — É incrível o quanto tem. Quarenta anos de poeira acumulada desde quando a estação foi construída. Uma explosão e puf de repente está tudo voando.
Muzzio reprimiu outra tosse. As partículas de poeira adensavam o ar, obscurecendo as luzes fluorescentes no teto.
A um terço do final da escada, a iluminação acabou abruptamente e a única luz vinha das lâmpadas penduradas em cabos presos nas paredes e dos fachos das lanternas das pessoas lá embaixo. O murmúrio de um gerador ficou evidente quando se aproximaram dos fundos, com a visibilidade agora reduzida a nada além de alguns metros. A explosão obviamente danificara toda a parte elétrica dali para a frente.
Um bombeiro avançou na penumbra, jogando a luz da lanterna sobre eles.
Vocês vão precisar disto para seguir adiante. — Ele entregou duas máscaras respiratórias.
Muzzio colocou a máscara e seguiu Castaldi e o bombeiro para dentro do inferno.
Rani Hemakah, da unidade T6 de rastreamento de Roma, recebeu a ligação de Milão às 11h14, quase duas horas depois das explosões, e então ligou para Adel em Londres.
Adel deixou a cabeça pender entre as mãos ao ouvir a notícia: 23 mortos em uma locação, oito na outra, e o número podia facilmente subir dez ou vinte por cento nos próximos dias.
Há muitos feridos em estado grave — comentou Rani.
Ok. Obrigado, Rani. — Ele suspirou, cansado. — Ambos fizemos o nosso melhor. Demos a informação a você assim que soubemos, e você agiu o mais rápido e o melhor que pôde. Não há nada mais que possamos fazer.
Suponho que não. — Rani parecia igualmente derrotado.
Não há nada mais que possamos fazer. Mas ao desligar o telefone, Adel sentiu as palavras pesando em seu peito. E se tivesse obtido a informação de Omari antes? Então Rani talvez tivesse tempo para iniciar os alertas de rastrear suspeitos e interromper seus planos na última hora. E, com tantas operações preventivas semelhantes, qual seria o risco? Uma centena de seus irmãos muçulmanos contratando advogados caros, bradando sobre o abuso contra seus direitos civis. Para salvar a vida daquelas 31 pessoas? Valia a pena, mesmo que tivessem salvado apenas uma daquelas vidas.
Houve um hiato na sala de operações durante as horas seguintes, como era de se esperar. Nenhum novo pico de atividade, nem se esperava um — grandes incidentes com bombas como esse raramente acontecem próximos um do outro —, e, além das atualizações sobre mortos e feridos, não se esperava mais nada até que a perícia identificasse os dois homens-bomba e, com sorte, encontrasse as gravações das câmeras de segurança dos dois entrando nos trens.
Mas o hiato era também uma espécie de descompressão, um processo de aceitação do que acontecera: nós rastreamos um pico de atividade, mas ainda assim não conseguimos impedir nada. Ou, como Adel se pegou fazendo, eles se aferravam a pequenos consolos: pelo menos o segundo trem parou e passou a avançar em baixa velocidade. Senão, poderia haver três vezes mais mortos nele.
Logo após o almoço, Tahiya, esposa de Adel, telefonou.
Você não esqueceu, né?
Não, não. Baklava, karabije e homus tahine. Vou comprar no caminho para casa.
Ah, e um pouco da halva que eles têm. Aquela com pistache.
Adel fez uma anotação rápida.
Não se preocupe, vou comprar. Não vou esquecer.
Porque eu sei que você tem muita coisa na cabeça às vezes.
Adel fechou os olhos por um segundo, mas não disse nada. Você não faz idéia.
Eu compraria aqui perto, se pudesse — continuou ela.
Maulid an-Nabi. Aniversário de Maomé. Eles não eram mais estritamente devotos, mas mantinham as datas comemorativas principalmente pelas crianças. Do mesmo modo que cristãos não praticantes ainda comemoram o Natal e comem chocolate na Páscoa.
Não se preocupe. Escrevi um bilhete bem grande para mim mesmo. Vejo você mais tarde.
Adel tomou água no bebedouro, depois voltou a examinar as estatísticas italianas de atividade para ver se achava algo novo. Vinte ou trinta minutos depois — ele perdera noção do tempo —, Malik estava em pé ao seu lado.
— Você tem que ver isso.
O som o alcançou quando aumentaram o volume. Ele ficou de pé e se aproximou da ampla tela de plasma, com a maior parte da sala já esquecendo os computadores e virando-se naquela direção: Abu Khalish estava falando na Al Jazeera.
Há cinco anos eles exibiam aquela mesma foto, como se ele fosse um correspondente de guerra; nada de vídeo. O que mudava toda vez eram as palavras, embora o conteúdo fosse o mesmo: a voz esganiçada e levemente chiada de Khalish, num árabe rápido, assumindo responsabilidade — embora muitos diriam que se gabando — pela atrocidade mais recente.
Na foto, ele exibia uma espessa barba com bigode e um sorriso provocador; alguém passara um bom tempo escolhendo a foto certa para refletir o tom de suas mensagens. Os olhos negros pareciam atravessar o espectador, até que ele notasse que o olho esquerdo era levemente focado para fora, e que sua íris tinha um leve verniz amarelo — resultado de um ferimento da época de Shatila, diziam.
Mas, no meio do discurso de Khalish, Adel também começou a sorrir. Abu Khalish acabara de cometer um erro em seu discurso ensaiado. Um erro grave.
E Khalish raramente — ou nunca — cometia um erro desses.
O ataque de setembro de 1982 ao campo de refugiados de Shatila pela milícia libanesa fora o primeiro grande evento definidor da vida de Abu Khalish. Com apenas 14 anos na época, ele teve perda parcial da visão com seu ferimento; uma bala atingiu a maçã esquerda de seu rosto, mas o impacto empurrou um fragmento de osso através de sua retina. Ainda assim, foi quem teve mais sorte, de longe: o pai e o irmão mais velho foram mortos no ataque.
O segundo evento definidor foi o ataque das forças de coalizão a Mazar-e-Sharif, Afeganistão, em novembro de 2001, quando ele perdeu seu irmão mais novo. O pai palestino e a mãe egípcia de Abu haviam criado três filhos e duas filhas, mas, menos de um ano depois do 11 de Setembro, Abu era o único filho homem sobrevivente.
Mas a formação da vida de Abu Khalish começara antes até, nos dias do setembro negro de 1971, quando os fedayin da OLP tiveram seu embate final com o exército jordaniano do rei Hussein antes de serem exilados para um campo de refugiados no Líbano.
Tanto o pai de Abu, Fayez, quanto o tio, Majed, eram altos oficiais da recém-formada Organização para a Libertação da Palestina (OLP) de Arafat. Fayez era majoritariamente responsável pelas operações por terra — ataques aos kibutzim israelenses na fronteira ou aos libaneses de extrema direita durante a guerra civil —, enquanto Majed cuidava do "planejamento externo": assegurar o fornecimento constante de dinheiro e armas para aquelas operações.
Anos depois, Majed Khalish era considerado o principal responsável pela imensa fortuna que Arafat tinha acumulado até sua morte, com contas multimilionárias em bancos da Suíça. E como o melhor captador de fundos e armas da OLP ao longo dos anos, Majed Khalish havia separado uma quantia considerável para si.
Quando o pai e o irmão mais velho de Abu foram mortos em Shatila, Majed decidiu que os campos de refugiados já não eram lugar para criar uma família e usou o dinheiro para levá-los a Paris. Não era in- comum no islã ajudar a família de um irmão que perdeu seu principal provedor; mas a fortuna de Majed ajudou a fazê-lo de uma forma que não era tão comum.
Abu se mostrou um bom aluno, então foram providenciados fundos para que ele fosse à Sorbonne, onde estudou economia e política. Seu tio Majed se tornou não apenas seu segundo pai, mas também seu mentor; e logo ficou claro que Majed estava treinando Abu para ser seu sucessor.
Após se formar na Sorbonne, Abu foi trabalhar em uma das principais empresas de importação e exportação do tio, especializada em arte árabe rara. O trabalho envolvia viagens constantes para encontrar compradores endinheirados, mas não era um grande segredo que a empresa era uma fachada mal-disfarçada para erguer fundos para a OLP.
Oito anos depois, quando seu tio morreu, Abu e seu primo mais velho assumiram a administração da vasta rede comercial de Majed Khalish.
Urbano e charmoso, ele preferia mil vezes viver um estilo de vida de playboy a se casar. E com a barba e o bigode sempre bem-aparados, estava muito longe de parecer um islamita radical como o Mulá Omar ou Bin Laden.
Mas tudo mudou com a morte de Raji, seu irmão mais novo, no Afeganistão. Raji sim se tornara um radical, inscrevendo-se numa escola religiosa extremista em Omã antes de ir para o campo de treinamento do Talibã sete meses antes do início da guerra com a coalizão.
Quando Abu soube que o irmão havia morrido, preso numa escola e fuzilado como um cão junto a outros quinhentos, seu coração se partiu.
Abu permaneceu no Afeganistão por quatro meses após o funeral, partilhando chá e orações com os colegas e líderes de Raji nas forças Talibã, e os boatos diziam que ele lhes ofereceu um considerável apoio financeiro e militar.
E, logo após sua partida, já com barba e bigode longos e desgrenhados, a infame foto foi tirada e a guerra de Abu Khalish contra o Ocidente estava declarada.
Sigiloso até as últimas conseqüências, nunca foi revelado se Abu, nascido e criado como muçulmano sunita, havia adotado o código mais radical do wahabismo, se era pura vingança pela morte de seu irmão ou se, pensando mais estrategicamente, pretendia elevar a campanha de Bin Laden a outro patamar.
Era uma guerra particular contra a América, gerada, segundo Bin Laden, pela presença profana, infiel, de suas tropas em solo saudita sagrado. Assim, o grito de guerra de Abu Khalish passou a ser a retirada de todas as tropas estrangeiras em solo islâmico. "... pois enquanto eles continuarem lá, representam não só um insulto a Alá, mas à santidade do próprio islã."
As apostas diziam que, ao contrário de Bin Laden, ele não estaria entocado numa caverna no sul do Afeganistão ou do outro lado da fronteira no Paquistão. Ele provavelmente tinha feito a barba, passava gel nos cabelos e agora, graças a seu espanhol e francês fluentes, seria um José ou Eduardo escondido nas profundezas da Bolívia ou do Equador.
Rápido de raciocínio, convincente e camaleônico, as apostas também diziam que Abu Kalish nunca seria encontrado.
Porque Abu Khalish jamais cometia erros.
Exceto agora, pensou Adel, seu sorriso aumentando à medida que ouvia o discurso de Khalish à Al Jazeera.
"... e então oramos, inshalá, para que as ações de nossos três bravos shahids hoje levem nosso objetivo de reconquistar a santidade do islã um passo mais adiante. Que as bênçãos de Alá estejam nas almas deles, e nas suas."
Três bravos mártires.
Khalish obviamente mandara a fita à Al Jazeera algumas horas antes. Mas, em meio ao caos, o trânsito e o fato de que inicialmente suspeitava- se de outras explosões, as primeiras notícias que surgiram nos jornais diziam apenas que houvera "diversas explosões na rede metroviária de Milão". Adel não sabia ao certo se eles já tinham corrigido para apenas duas explosões. Ele se voltou para Malik.
Passe esse vídeo para Rani se ele já não tiver visto. Parece que uma ovelha se desgarrou do rebanho, e o próprio Khalish foi generoso o bastante para nos contar sobre ele. Vamos ver que mensagens estão circulando por aí enquanto ele tenta encontrar o caminho de volta para casa.
Sam esticou o pescoço para fora da cozinha. A TV estava ligada sem som e Lorrena ainda estava no laptop.
Parece que estamos sem ervas para tempero e extrato de tomate. — Ele abriu de leve um sorriso. — Eu devia ter checado antes de começar a cozinhar.
Lorrena interrompeu sua digitação e ergueu os olhos.
Ah, certo. Quer que eu vá comprar?
Ele deu de ombros.
Se não for muito incômodo. A não ser que você queira olhar a panela para mim enquanto eu vou.
Não, não. Tudo bem.
Um último ataque ao teclado e Lorrena se levantou, pegando as chaves na beirada da mesa. O ardil tinha funcionado. Mas será que ela havia apenas terminado de digitar as anotações ou fechara a sessão e desligara o laptop? Sam não sabia: a tela estava num ângulo fora de sua vista.
Lorrena pegou seu casaco e disse:
Não vou demorar.
Obrigado. — Sam retrocedeu até a cozinha.
Um segundo depois, ele desligou o exaustor e parou de mexer a panela para ouvir a porta da frente batendo, o carro dela ligando e saindo da garagem.
Sam foi até a janela da sala; os faróis traseiros do carro já chegavam ao fim da rua e a seta para virar foi ligada.
Ele caminhou até o laptop; ela o desligara. Mais um indício de que tinha algo a esconder, e temia deixá-lo acessível a qualquer momento.
Sam o ligou, olhando no relógio ao pegar os cabos numa gaveta da mesa e ligar seu computador no laptop dela. Oito ou nove minutos até o mercado mais próximo — Sam havia cronometrado mais cedo. Dois minutos para escolher e pagar.
Três minutos para iniciar o sistema e depois a estimativa para encontrar uma senha compatível era de seis a oito minutos. Outro minuto para desligar e desconectar os cabos — então ele teria apenas entre oito a dez minutos para procurar e, com sorte, achar alguma coisa.
Mas não havia muitas outras opções. Lorrena sempre levava o laptop consigo para todo canto e, até onde Sam sabia, continha todos os seus arquivos e anotações. Ele fizera uma busca nas gavetas do quarto à procura de algum outro papel, notas ou diário, mas não encontrou nada.
Fazer só aquilo já lhe havia tomado dois dias para reunir coragem. No fim, a curiosidade e a vontade desesperada de saber acabaram vencendo. Além do fato de que ele se sentia de qualquer modo vivendo no fio da navalha toda hora, todos os dias.
O software para decodificar senhas apareceu na tela. Sam apertou o botão INICIAR e observou enquanto centenas, depois milhares de possíveis combinações rolavam rapidamente pela tela.
A noite anterior fora a primeira vez que fizeram sexo desde que Sam vira o carro dela na garagem do atirador. Mas, apesar de todos seus esforços para afastar os pensamentos e imagens negativas de sua mente — e enchê-la apenas com a alucinante beleza nua de Lorrena sob seu corpo —, tudo terminou desastrosamente, um fracasso, interrompido no meio do caminho.
Ele rolou para o lado com um suspiro derrotado.
Acho que uma das coisas que não falam quando perdemos 18 meses de trabalho é que isso pode afetar sua libido. Ou talvez seja porque ando tendo problemas com cenas do livro do Toby Wesley agora. Fico com medo de ter um bloqueio criativo, e de repente acabo bloqueado em todas as outras áreas.
Ela levantou a mão e lhe acariciou o rosto suavemente.
Está tudo bem. Vai melhorar. Essas coisas levam tempo.
Só que ele sabia que não ia melhorar, independentemente do tempo. Quantas desculpas patéticas até que ela perceba?
Ou talvez ela já soubesse, e só dizia as coisas certas para mantê-lo calmo: Eu sei que você mexeu nas minhas gavetas. As coisas não estão como deixei. Faz parte de meu treinamento perceber o menor detalhe ou coisa fora do lugar. Você não vai mais me ver depois que eu for embora amanhã de manhã. Agora você está nas mãos de Washington e do atirador novamente.
Pela terceira noite seguida, ele se viu tremendo levemente junto dela, levando horas para finalmente dormir.
E, no dia seguinte, quando ela saiu para o trabalho, ele se pegou tendo sobressaltos a qualquer ruído lá fora: pessoas passando, o vizinho fechando a porta do carro. Quando um portador do FedEx tocou a campainha no fim da manhã, Sam se escondeu na cozinha até ele desistir. O homem deixou um cartão sob a porta: Ligue para nosso depósito para pegar seu pacote. Sua bomba?
Meu Deus. Ele não podia viver assim, dia após dia. Ele precisava saber, mesmo que só para dar um fim em toda aquela situação.
Sam se aprumou na cadeira quando o computador apitou. Uma senha compatível foi encontrada: LOR18461NA6.
As primeiras três letras do nome e seu aniversário ao contrário, mas Sam não tinha idéia do que seria NA6.
Ele digitou a senha no computador dela e começou a vasculhar os arquivos: primeiro os e-mails, depois as principais pastas de documentos.
Até onde ele pôde ver, nada que contivesse Washington ou nomes árabes. Ele colocou Washington num mecanismo de busca por nome de arquivo, depois tentou apenas Wash: nada. Depois ele procurou
Washington numa busca aleatória por palavra: dois documentos surgiram, mas as referências estavam no contexto da cidade. Nada suspeito.
Sam reparou que havia vários arquivos com iniciais seguidas de quatro ou cinco dígitos. Ele clicou em alguns que começavam com W. Nada que aludisse a Washington ou a qualquer coisa suspeita, nem mesmo em código ou abreviações, nesses arquivos.
A ampulheta que surgia na tela a cada busca e abertura de arquivo parecia infinita. Ele olhou o relógio. Quase metade do tempo já havia passado. Só faltavam cinco ou seis minutos.
Sam começou a abrir arquivos aleatórios com outras iniciais: notas ou cartas para colegas de trabalho, em especial para sua melhor amiga, Ruby; uma para seu pai; uma lista de pacientes do Centro Médico de Utica, organizada por CER Mais uma vez, nada.
Ele agarrou os cabelos, entrando em pânico. Pense, pensei
Talvez arquivos com seu próprio nome. Relatórios dela contando a seus mandantes o que Sam estava fazendo.
Ele digitou Sam na busca por palavra. A demora foi maior dessa vez. Finalmente: 11 documentos. Ele começou a abri-los: algumas mensagens casuais para colegas de trabalho... Espero conseguir arrastar Sam para a festa de Natal do escritório. Outra para seu pai: Sam é um cara legal, mas não, não temos planos de casar no momento. Para uma espiã, ela realmente construía muito bem sua história de fachada. Por fim, ele achou algumas anotações pessoais num diário: Nesse fim de semana, Ashley vem nos visitar pela primeira vez desde que vim morar aqui, então Sam está ansioso e irritadiço. É compreensível, acho — está preocupado pois não sabe se Ashley vai gostar de mim ou não.
Os nervos de Sam se alteraram ao ouvir um som de motor. Ele virou a cabeça abruptamente, mas era apenas um carro passando.
Ele voltou sua atenção para a tela, começando a abrir o resto dos arquivos com o nome Sam: mais notas de diário, casuais e cotidianas, ou bilhetes breves para amigos, até que encontrou uma anotação de diário que continha uma referência ao livro A profecia: Sam está bem mais intenso agora que está terminando A profecia. Mal saímos nesses últimos meses e ele parece irritadiço e mal-humorado a maior parte do tempo, mais difícil de conversar. De qualquer forma, em breve estará tudo acabado e espero que volte ao normal!
A profecia! Seu progresso com A profecia seria o que mais interessaria a Washington e os outros. Quatro outros arquivos com Sam para checar, mas ele decidiu mudar de direção. Ele digitou A profecia na busca de palavras-chave: cinco documentos.
Sam começou a abrir os arquivos como se seu indicador estivesse pegando fogo. Primeiro, outra nota pessoal num diário: Embora Sam passe mais tempo no computador e menos comigo agora que ele está mais envolvido com A profecia, é bom vê-lo tão entusiasmado, tão vivo! E pelo menos eu não o perdi para outra mulher! Segundo, um bilhete para uma colega, Ruby: Não sei se vamos conseguir ir ao seu churrasco esse fim de semana. Sam fez um cronograma de trabalho sufocante para terminar A profecia e entregar ao agente dele; agora também tem trabalhado na maioria dos fins de semana. O terceiro era a nota de diário sobre Sam que ele já tinha lido. O quarto...
Sam deu um salto quando o rosnado do motor o alcançou, bem na hora em que o quarto documento estava abrindo. Ele clicou apressadamente em FECHAR. Ampulheta de novo.
Porta do carro fechando, passos se aproximando.
Ele clicou em DESLIGAR O COMPUTADOR. Ampulheta novamente. Finalmente: O WINDOWS ESTÁ SENDO ENCERRADO...
Chave na porta, girando.
Mesmo que o computador terminasse de desligar antes que Lorrena entrasse, Sam ainda teria que desconectar os cabos. Ele não conseguiria fazê-lo a tempo.
Capítulo Nove
KENSINGTON, LONDRES
Azeitonas, homus, karabije, tâmaras recheadas com amêndoas e cobertas de canela ou nozes moidas eram os cheiros que Adel mais recordava ao fazer compras.
Ele se lembrava do mercado local de Dumyat, onde seu pai costumava levá-lo quando criança: o cheiro dos doces, de baklava mergulhada em calda, de tâmaras, nozes e frutas cristalizadas era tão inebriante que às vezes ele ficava tonto e sua boca salivava mesmo antes que o pai colocasse duas baklavas e quatro amêndoas confeitadas em suas mãos como recompensa por ajudá-lo a fazer as compras.
Tudo bem aí, Sr. Adel? — perguntou Sahir, dono do mercado. — Precisa de ajuda?
Não, não. Estou bem. Só me assegurando de que estou comprando a baklava certa para Tahiya.
Sahir se inclinou sobre o balcão, apontando.
Acredito que seja uma dessas duas.
Sahir provavelmente conhecia os gostos de sua mulher melhor que ele mesmo. Sua loja, Sehwanar, era uma das favoritas de Adel e Tahiya quando eram um jovem casal e moravam num apartamento a apenas três quadras de distância, em West Kensington. Principalmente porque sua esposa encontrara um compatriota sírio em Sahir. Eles conversavam, trocavam histórias e memórias e ela ria de suas tiradas às vezes ambíguas. Se Sahir tivesse 20 anos e 20 quilos a menos, Adel poderia jurar que a esposa tinha um caso com ele.
Adel escolheu uma dúzia de cada, por via das dúvidas; e, junto com o homus e o karabije, ele as colocou sobre o balcão. O telefone começou a vibrar em seu bolso, porém a ligação mais importante que estava esperando no momento ele não podia atender agora.
Ah, e um pouco de halva.
A halva era um bloco redondo de 30cm de espessura, incrustado de pistache, que ficava sobre uma bandeja prateada na beirada do balcão.
Assim? — Sahir pousou a faca sobre o bloco.
Adel abriu os dois dedos um pouco.
Mais um pouco.
Ao somar as compras na caixa registradora, Sahir perguntou:
Teve um bom dia no trabalho?
Adel fez uma careta.
Meio confuso. — Era o máximo que ele ousava contar sobre sua vida dupla.
Estão deixando entrar muitos desses malditos estrangeiros — brincou Sahir ao colocar as compras numa sacola e pegar o dinheiro de Adel.
Era uma piada interna entre eles, da época em que Adel contara a Sahir que trabalhava no Ministério das Relações Exteriores — agora era sua história de fachada padrão, mas na época fora seu emprego real. Sahir perguntara se Adel podia ajudar um jovem primo sírio que tentava ganhar imigração, mas Adel explicou que isso era com o Ministério do Interior.
Deixei os problemas para os outros. Tive que sair mais cedo para levar tudo isso para o Maulid da família.
Sahir fez uma pequena e solene mesura.
E que Alá ajude aquele que não chega em casa a tempo com suas baklavas numa ocasião como essa. Dê minhas lembranças à sua bela esposa.
Darei. — Adel sorriu e acenou para ele da porta. Checou seu celular assim que saiu: Malik. Mas Adel não retornou a ligação até tomar 12 passos de distância e que não houvesse ninguém em seu campo de audição. Vida dupla. — Diga.
Trinta e duas mensagens suspeitas na área de Milão. Quase todas ambíguas. "Não consegui chegar a nosso compromisso hoje de manhã. Pode me arrumar outro horárioE outra: "O endereço que você me deu, não encontrei. Pode me dar outras referências? Mas isso é de se esperar.
E qual é a proporção lingüística?
Quarenta e sete por cento em árabe, 18 por cento em farsi. O resto em italiano, mas os IPs ou redes telefônicas são ligados a nomes árabes.
Adel suspirou.
Eu não sei o que Rani acha, mas é uma lista muito longa para se interrogar todos. Eu diria para tentar reduzir e eliminar alguns nomes, mas, no fim das contas, é ele quem sabe. Depois me diga o que ele decidiu.
Claro. Ah, e tem também outro pico de atividade no Oriente Médio. Cairo, Alexandria e Gaza. Quatorze, 17 e oito por cento respectivamente.
Adel ponderou a informação. Outra explosão planejada logo no encalço de Milão? Parecia improvável.
Pode ser a dissipação das fontes operacionais em Milão, e pode ter alguma coisa que valha a pena observar aí. Ou talvez seja só a organização de um carregamento de armas para Gaza. — Uma ocorrência normal, deixada a encargo do serviço de inteligência israelita. — Mas avise se houver mais desenvolvimentos.
Adel chamou um táxi ao desligar o telefone e observou vagamente as lojas que passavam diante da janela lateral. Um trecho de cerca de 1 quilômetro de lojas e cafés de libaneses, jordanianos, sírios e iranianos, alguns clientes sentados do lado de fora para tomar café, fumar shisha e ler o Al-Hayat — o único lugar que Adel se permitia visitar era o Sehwanar.
Sempre temendo que, ao sair de um café, alguém o veria e perguntaria: quem é esse? "É Adel, ele trabalha no Ministério de Relações Exteriores. E, como nós, ele é natural do Egito" "Que estranho. Meu primo trabalha no Ministério e eu achava que ele era o único egipcio empregado por lá" As células cancerosas que poderiam levar ao seu desmascara- mento estariam implantadas.
Assim, Adel chegava no Sehwanar como um ladrão, pegava o que queria e saía na mesma velocidade em outro táxi. Da mesma forma, ele passava direto pelos cafés, shisha e delicatessens árabes de Edgware Road e Queensway, fitando com uma ponta de nostalgia a vida árabe-londrina que ele e Tahiya tiveram que manter à distância nos últimos anos, desde que saíra do Ministério de Relações Exteriores para o MI5. Vida dupla.
Quando ele fez a transferência, o único jeito que encontraram para se desligar com sucesso de sua vida árabe-londrina foi sair de West Kensington — embora o nascimento de Farah, sua segunda filha, e a necessidade de mais espaço também tenham influenciado na mudança.
Eles se mudaram para um subúrbio caro de Surrey — porque o preço alto também significava privacidade — com vizinhos financistas que não se metiam na vida dos outros. Dava para sorrir e acenar de passagem para eles por anos a fio sem que realmente soubessem quem você era ou o que fazia; sem sequer perguntar. E as escolas para Jibril e Farah eram ótimas.
Dezenove minutos depois que ele pegou o trem para casa, Malik ligou novamente.
Você fala — disse Adel ao atender. Uma clara indicação de que ele não podia falar muito com passageiros por perto.
Rani reduziu a lista para 14.
Me parece mais funcional. Mas, como eu disse antes, a decisão é dele. Então o que ele acha?
Rani acha o mesmo, que é mais funcional, e está pronto para dar o sinal verde para o GIS em todos os 14 endereços.
Sendo assim, eu concordo com isso.
Adel fechou os olhos por um instante depois que desligou, apoiando a cabeça na janela do trem e pensando nas pessoas de Milão que estavam no metrô dez horas antes. E na única pessoa agora solta na cidade que podia fornecer a chave para aquilo e uma possível trilha para chegar a Abu Khalish
Essa pessoa era Irfan Shohani. Tinha 22 anos e freqüentava a mesma mesquita que os outros dois homens-bomba, Ahmed e Katib, onde foram recrutados por Youssef, seu supervisor.
Enquanto equipes do GIS, sempre com cinco homens, lançavam holofotes ou derrubavam portas pela cidade, inclusive a de Shohani na área de Via Padova, ele estava a mais de 2 quilômetros de distância ao sul, encontrando-se com Youssef.
Mandara um e-mail discreto para Youssef no meio da manhã, mas a resposta chegara por celular — igualmente discreta — e não antes do fim da tarde. Youssef sugeriu que se encontrassem próximo ao aeroporto de Linate às 18 horas.
Ele sugeriu um trecho onde a estrada A51 tinha um elevado, com um complexo industrial de um lado e as saídas dos táxis do aeroporto do outro; a área embaixo da rodovia era escura e deserta.
Depois dos cumprimentos, Salaam, Youssef fez uma pausa apropriada, observando distraidamente a aterrissagem de um 737 no aeroporto, antes de perguntar:
Então, o que aconteceu hoje de manhã?
O trem parou. Ficou sem se mover por quase meia hora e então fomos escoltados por bombeiros com lanternas e tivemos que andar mais de 500 metros para sair pela estação de Moscova. — Irfan deu de ombros. — Aí não houve oportunidade.
Youssef deu de ombros como o outro.
Então, com o trem parado, não pareceu valer a pena ativar seu equipamento?
O tom de Youssef tinha certa animação, como se estivesse de acordo, mas Irfan se mantinha cauteloso mesmo assim; ele continuou com o resto da história que tinha preparado.
Não. E não foi só isso. Muita gente tinha descido na estação anterior. Tinha só sete pessoas no meu vagão. E uma delas era uma mulher de jilbab e hijab completos, outra era criança. Como o trem ficou parado por tanto tempo, vi nisso um sinal de que não devia disparar. — Irfan juntou as mãos sob o queixo e olhou para o céu. — De que eu deveria servir de outras maneiras. E é para isso que estou aqui agora, para me devotar a isso, inshalá. Outra missão ou dever, qualquer coisa que você vislumbre como desejo de Alá para mim.
Pensativo, Youssef baixou a cabeça por um momento. Finalmente falou:
Você fez a coisa certa, meu amigo. Disparar com um número tão pequeno, e uma das vítimas sendo uma mulher Abid, teria sido um prato cheio para a imprensa. Mas levará um tempo até planejarmos outro espetáculo, e para o próximo você talvez tenha que viajar. Ou, com a engenhosidade que demonstrou, talvez venha a ser chamado para nos ajudar de outras formas.
Entendo. — Irfan assentiu, fechando os olhos brevemente numa humilde aceitação. — De qualquer forma, que eu seja capaz de servir.
Ele sentiu um imenso alívio quando Youssef aceitou sua história com tanta compreensão. Na verdade, havia mais de uma dúzia de pessoas no vagão e a mulher de jilbab estava no vagão ao lado, que ele evitara propositalmente quando entrou. O espírito do que estavam fazendo lhe parecera muito forte quando os quatro estavam juntos, planejando. Mas, quando ele se viu andando pela cidade sozinho com uma bomba na valise, sua determinação pareceu recuar como uma maré baixa. Sua mãe tampouco ajudara. Ele lhe dissera que estava bem-vestido porque tinha uma entrevista de emprego, e ela o abraçara e desejara boa sorte. Então, antes que o trem parasse, já estava procurando uma desculpa para não levar o plano adiante.
Sem problemas, meu amigo. Você fez a coisa certa. — Youssef sorriu de forma reconfortante e deu um tapinha no ombro de Irfan. Mas então ficou preocupado novamente. — E depois que o trem parou e vocês foram escoltados para fora, os carabinieri não detiveram você, não fizeram perguntas? Ou revistaram?
Irfan balançou a cabeça.
Não, não. Claro que não. Eu ainda estou com o equipamento, não estou?
Ele levantou a maleta. Youssef o instruíra a trazê-la, para que pudesse se livrar dela; nada incriminador, muito menos perigoso, deveria ficar com Irfan.
Sim, está. Está mesmo.
Youssef segurou o ombro de Irfan amigavelmente ao falar, mas era apenas para mantê-lo no lugar e apunhalá-lo com o picador de gelo.
O picador penetrou facilmente entre as costelas de Irfan e perfurou seu coração. Youssef pôde ver nos olhos de Irfan que ele morrera de pé, mas mesmo assim torceu o instrumento para ter certeza. A ferida era pequena e limpa, e nenhum sangue manchou as roupas de Youssef.
Ele pegou a maleta e, vinte minutos depois, estava comendo quibe e fatuch no seu café favorito na Via Oropa, acompanhados de um copo de suco de uva.
Quando finalmente chegou a seu apartamento no terceiro andar, a dois quarteirões do café, 82 minutos se haviam passado desde que saíra.
A primeira coisa que ele percebeu foi que seu computador havia sumido. Seus olhos se desviaram para uma estante lateral: seu celular de reserva e o carregador também não estavam lá. A jaqueta que ele deixara pendurada na maçaneta do armário desaparecera. Ele foi até o armário e abriu: vazio.
O que não percebeu ao cruzar a sala foi o sensor de movimento no teto, nem que uma luz vermelha começara a piscar. Estava configurado num timer de três segundos.
Quando ele se aproximou da cômoda adjacente, tudo se transformou num grande clarão; a explosão destroçando e empurrando cada fibra no aposento para as extremidades da zona de impacto, antes de recuar novamente para o centro, um furacão de destroços sugado de volta com a mesma força pelo vácuo gerado.
Por fim, silêncio, exceto a poeira de cimento e gesso ainda caindo do andar de cima.
Por causa de sua altura, Adel Al-Shaffir era ligeiramente curvado, de tanto se inclinar para cumprimentar ou ouvir pessoas.
Por isso ele já estava quase na posição ideal quando entrou pela porta da frente e se agachou para pegar no colo Farah, sua filha de 5 anos, e abraçá-la e beijar suas bochechas.
Jibril, três anos mais velho, já se achava adulto e homem demais para beijos e abraços, então só ganhou um afago carinhoso na cabeça.
Tahiya estava na cozinha, e Adel entrou para dar-lhe os mesmos beijos no rosto.
— Você não esqueceu? — perguntou ela, quando ele se afastou.
Não, — Ele mostrou a sacola. — Está tudo aqui. — Adel passou um braço em volta dela. — Que cheiro bom.
É shrakreeyeh de cordeiro. Vai ficar pronto daqui a uns quarenta minutos.
Ele abriu um sorriso provocador.
Eu quis dizer o seu cheiro.
Ela tentou alcançar o pano de prato para acertá-lo, mas ele escapou e foi trocar de roupa.
Era quase 30cm mais baixa que ele, com os olhos mais doces, suaves e expressivos que Adel já vira. Ou talvez eles só aumentassem sua intensidade negra quando pousavam sobre ele. O mesmo olhar que atravessou uma sala de aula na London School of Economics 14 anos antes, quando se viram pela primeira vez, e até hoje Adel se derretia.
Tahiya acendeu velas para o jantar e elas pareciam tornar seus olhos ainda mais suaves e dançar ainda mais quando ela o fitava.
Adel disse que precisaria atender uma ligação importante mais tarde, apenas uma; e, após uma pausa, ela assentiu e levou um dedo tranqüilamente aos lábios. Adel não sabia se ela queria dizer "Não precisa falar mais nada" ou "Quando receber essa ligação, não fale na frente das crianças".
Eles tinham um pacto de que Adel nunca traria seu trabalho consigo para casa. As ligações de trabalho tinham que ser raras, ou, de preferência, inexistentes. E, quando não se podia evitar, tinham que acontecer longe das crianças.
Era uma espécie de compensação por seu trabalho ter separado a família de tantas coisas de sua antiga vida, exilando Tahiya no subúrbio; ela não queria que aquilo tomasse o controle total de suas vidas nem que seus filhos ficassem sujeitos às conseqüências dos últimos atentados ou atrocidades terroristas.
As crianças mal podiam esperar que os pratos de homus e cordeiro acabassem logo para a hora da baklava e da halva, e era bom vê-los tão animados, tão felizes. Fazia pouco tempo que o irmão mais velho de Adel no Egito — ainda próximo do antigo lar da família e tocando os negócios do pai — perguntara se ele continuava devoto, torcendo para que a vida londrina não tivesse influenciado o caçula a ponto de colocar sua fé em segundo plano. Em resposta, Adel recitou as rotinas de oração, visitas à mesquita e feriados islâmicos que eles ainda mantinham, inclusive o Maulid, aniversário de Maomé. Seu irmão Namir era a última pessoa para quem ele contaria que agora só faziam isso pelas crianças — mas Namir rapidamente retorquiu que, para alguns setores do islã, celebrar o aniversário de Maomé não era nada devoto. Na verdade, para um muçulmano wahabita, era proibido, assim como todas as formas de música e dança. Seu irmão estudara por três anos para se tornar imame antes de assumir os negócios do pai, e então sabia dessas coisas.
A ligação de Malik chegou no meio do prato principal, informando que os 14 endereços de Milão tinham sido investigados sem que surgisse nada suspeito. Ele fez um gesto de desculpas, saiu da mesa para atender a ligação e Tahiya fez que sim com a cabeça, mas o clima quando ele retornou era diferente, talvez porque Tahiya tenha percebido que ele ainda estava preocupado com as notícias que recebera. O encanto da noite havia se quebrado.
Assim, quando Adel recebeu a segunda ligação apenas 25 minutos depois, informando que Irfan Shohani tinha sido encontrado morto — o morador de um dos 14 endereços suspeitos — e que na mesma região houve uma explosão a bomba num apartamento, o olhar de apreensão de Tahiya se transformou numa careta de impaciência.
Com a terceira ligação, Adel previu como Tahiya reagiria e assim se antecipou:
Escute, Malik, estou jantando em casa com a minha família. Por isso eu disse que todo o resto teria que esperar até amanhã.
Eu sei, chefe, mas achei que você gostaria de ouvir isso. Estão passando na Al Jazeera de meia em meia hora.
Adel se levantou da mesa e caminhou até o corredor.
O quê? Outro anúncio de Khalish?
Não. Outra explosão numa mesquita. Dessa vez no Egito. E, ao que parece, Khalish não está por trás disso.
A medida que Malik descrevia alguns detalhes, Adel sentia seu sangue gelar. Ao menos com Abu Khalish eles sabiam com o que lidavam. Agora, estavam entrando em território totalmente desconhecido.
Tahiya fulminou-lhe com um olhar gélido ao passar por ele com as crianças.
Pensei que tínhamos um acordo, Adel. Eu não quero passar nenhuma de minhas noites assim. Vou botar as crianças na cama.
E então ele ficou só. Verdadeiramente só.
BAÍA DAS SALINAS, COSTA RICA
Era começo de tarde e quase hora da siesta quando o homem recebeu a ligação na Costa Rica, um trecho remoto da orla próxima à fronteira com a Nicarágua.
Dígame.
Aquela segunda opção de negócios também está fechada agora. Não há outras no momento. Eu aviso quando e se outras opções surgirem.
Obrigado por ligar. Hasta la próxima.
Uma ligação genérica, totalmente em espanhol, entre dois executivos supostamente sul-americanos: Abu Khalish sabia que até Echelon, a onipresente rede de computadores espiões norte-americanos, teria dificuldade de encontrar algo nisso.
Pelos nativos, ele era conhecido por outro nome, de um negociante mexicano. Estava 20 quilos mais gordo que na sua última foto como Khalish; sem barba, o cabelo tingido de castanho-claro e os olhos agora de um verde límpido. Não lembrava o velho Khalish em quase nada e seus documentos passariam até pela inspeção mais escrupulosa, embora a única pessoa a quem ele os mostrara até agora fora o corretor imobiliário que lhe alugou a propriedade.
Mesmo assim, logo seria hora de seguir em frente; era uma pena, pensou ele, admirando a vista panorâmica da baía e da floresta de palmeiras ao longe. Khalish estava começando a se acostumar, a se sentir em casa. Mas, para ele, uma sensação de comodidade rapidamente incitava a reação oposta: inquietação. Talvez culpa por sentir isso quando pensava em seus dois irmãos e na monumental guerra estratégica que travava em conseqüência. Uma sensação de que ele não tinha o direito de se sentir assim. E, até ali, seus instintos nunca o haviam enganado.
Capítulo Dez
— Falta pouco agora — disse Mike Kiernan, olhando para o carona enquanto dirigia.
Ok — respondeu Sam, acrescentando depois com um leve suspiro: — Vamos torcer para que estejamos fazendo a coisa certa.
Mike reparou que Sam passou a viagem toda apertando a mão sobre a coxa. Talvez pelo nervosismo por quem encontrariam, mas Mike já tinha percebido uma agitação crescente em Sam na última semana. Seu amigo estava desmoronando em sua frente, nervo após nervo, mas não tinha coragem de comentar nada.
Você precisa de ajuda, Sam; já faz algum tempo, mas talvez não queira admitir. E esse tipo de ajuda é bem melhor que o tipo que vai precisar se não fizer nada a respeito. — Aí está, ele tinha falado o máximo que ousava.
Mas veja bem, Vince Corcoran. Não posso evitar a sensação de que estamos usando uma marreta para abrir uma noz.
Caso não tenha percebido, Sam, você está enfrentando uns caras bem perigosos. Agentes da CIA e equipes da SWAT, com uns loucos jihadistas no meio para completar. Eu acho que isso exige gente poderosa do seu lado, você não acha? — Sam concordou, mas Mike percebeu que seus punhos ainda estavam contraídos.
Mike deixou que os campos de Plymouth County passassem sem falar nada por algum tempo. O terreno de Vince Corcoran era ao sul de Boston, mas nos últimos dez anos ele passara a viver entre os campos de golfe e estábulos de Lakeville, a 60 quilômetros de distância.
Robby Maschek poderia passar o trabalho para alguns bandidos menores que conheceu ao longo dos anos, mas ele tem uma licença de detetive a proteger e não tem como ter certeza de que eles vão apagar as evidências. Mas Corcoran pode. Ele simplesmente passa a tarefa adiante como bem entende, e só isso já é o bastante para cortar qualquer associação com Robby.
Quando Lorrena voltou do mercado, Sam ainda estava com os cabos de conexão na mão; felizmente, ele conseguiu desconectá-los do computador dela e desligá-lo a tempo.
Mike tem uns programas novos que acha que me podem ser úteis. Estava só checando para ver se ainda tinha os cabos aqui na gaveta.
Ela apenas concordou com a cabeça e entregou a sacola de compras com as ervas e o extrato de tomate. Nenhuma indicação de que suspeitou ou deixou de suspeitar de algo. Mas Sam passou mais um dia de nervosismo, perguntando a si mesmo se ela ligaria para a SWAT e nunca mais voltaria.
Duas horas depois que ela saiu, Sam não conseguiu agüentar e foi para Syracuse, matando o tempo entre lojas e cafés antes de ir à casa de Mike por algumas horas. O Jetta ainda estava na garagem quando Sam chegou, e ele respirou aliviado. Agora só precisava passar pela vigília noturna caso ela tentasse abraçá-lo novamente naquela noite. Mais desculpas de "bloqueio criativo"para a impotência; mas por quanto tempo a história ainda colaria?
Mike ligara para Robby Maschek quando ainda estava lá.
Você fez o que podia e não parece que terá outra chance de bis- bilhotar no laptop.
Fazia quatro dias que Maschek vinha investigando Lorrena, mas naquele meio-tempo ela não tinha ido a nenhum lugar suspeito, nem mesmo à casa do atirador. E ele também examinou os registros do Highlander azul do atirador.
A boa notícia é que está registrado por uma agência de aluguel de carros. A má notícia: ele não estava na lista de carros alugados naquele dia. Minha aposta é que eles fizeram uma cópia da placa de outro Highlander.
Portanto, estava na hora de envolver Corcoran também.
E o apelido Corky? — perguntou Sam. — É diminutivo de Corcoran?
Essa é uma das teorias. A outra é que a maioria de seus inimigos acaba como uma carcaça boiando no porto de Boston. — Mike arriscou um sorriso e, apesar de seu estado de tensão, Sam conseguiu abrir outro.
A cerca de 80 metros da rua, atrás de grandes portões com câmeras, a casa de Corcoran parecia uma versão reduzida da mansão de Hugh Hefner em Chicago; mas não muito menor. Mike tinha orgulho de seu carro, um Jaguar XK de apenas dois anos, mas sentiu-se seriamente sobrepujado ao parar na garagem de Corcoran: um Bentley Azure, um Porsche Cayman, um antigo Hispano-Suiza J-12 e um Hummer H3.
Mike se deteve a meio caminho de abrir a porta do carro.
Ah, quando entrarmos, você vai perceber que todas as cortinas estão fechadas e não há nenhuma luz acesa. Mas não se preocupe, você vai encontrar o caminho. Vince é só um pouco diferente, até para um mafioso.
Eles saltaram e adentraram o mundo de Vince Corcoran.
Adel não pôde deixar de admirar a engenhosidade do plano: quem quer que estivesse por trás dos dois atentados às mesquitas marcou os ataques na Turquia e no Egito logo antes e logo depois do ataque em Milão, de forma que as estatísticas do Oriente Médio se mesclaram com as da Europa, o que ajudou a mascará-las.
Ou talvez fosse Khalish fazendo um baile de máscaras: ele ficou sabendo dos planos de atentados às mesquitas através de sua rede de contatos e marcou seu espetáculo em Milão ao mesmo tempo para tentar camuflar os picos de atividade.
Especulação. E, a menos que alguém assumisse a responsabilidade, as respostas continuariam vagas.
Adel voltou sua atenção para as fotos que Karam examinava com ele: imagens JPEG da Mesquita El-Qelef em Alexandria, recém-chegadas do TAME do Cairo.
Essa foi tirada apenas seis minutos antes da passagem dos falsos imames. Um guarda na frente, o outro patrulhando a lateral. Repare que os holofotes estão todos ligados e as duas câmeras de vigilância estão operacionais; e continuaram assim o tempo todo. A hora de cada foto está no canto. — Karam usou o lápis para apontar. — Agora, nessa próxima, vemos os dois imames entrando no quadro; neste ponto, os dois guardas estão na frente.
Adel balançou a cabeça, pensativo.
Como os atacantes estão visíveis, os disfarces fazem sentido.
Karam fez uma careta.
Fingir-se de imame dá uma boa cobertura: barbas e bigodes cerrados, túnicas longas e negras. Mas ouso dizer que, por trás de todo aquele látex fantasmagórico e pelos falsos, também há por via das dúvidas algumas próteses. As imagens das câmeras são distantes demais; mesmo com tratamento de imagem, duvido que vamos descobrir muita coisa.
Adel fechou a cara e mudou de foto.
— Aqui vemos o imame número um pedindo indicações para o primeiro guarda. Daí, quando ele abaixa o rifle para mostrar, o imame número um segura o rifle e usa um taser para imobilizá-lo. Quando o segundo guarda começa a erguer seu rifle — Karam fez uma pausa para Adel mudar de foto —, o imame dois dá um passo rápido para trás, segura o rifle para garantir que fique abaixado, e dá a volta para usar o taser no pescoço do guarda. — Karam suspirou, exausto, mas seu sorriso revelava uma ponta de admiração. — Tudo acabou em questão de segundos.
Adel folheou o resto das fotos ao ritmo dos detalhes descritos por Karam: os corpos inertes dos guardas arrastados para a lateral, o C4 implantado e finalmente a explosão final. O pórtico de entrada da mesquita foi completamente destruído, assim como metade do domo, mas apenas um terço de um dos dois minaretes desabou.
Pelo menos eles parecem se importar com alguma coisa — comentou Adel. — Fizeram questão de que os dois guardas não fossem pegos na explosão.
Karam concordou.
É, pelo menos isso.
Internamente, Adel se preocupava com as implicações disso. Todos os outros fatores — eram bem organizados, profissionais e não deixaram pista de quem eram ou quais eram suas alianças — faziam deles um osso duro de roer.
Mais uma vez, Adel ficou pasmo com o quanto eles continuavam dando tiros no escuro sem que alguém assumisse a responsabilidade. Sem aquilo, eles não tinham qualquer associação a fazer, nenhuma idéia de suas filiações ou objetivos.
Porém, Adel não teve que esperar muito.
Quando o anúncio surgiu na Al Jazeera cerca de quatro horas depois, ele se lembrou do velho ditado: cuidado com o que você pede, porque Deus, Alá, pode acabar realizando seu desejo.
Não havia foto nem identidade de ninguém, apenas uma voz gravada em árabe com o texto rolando pela tela e a tradução para o inglês abaixo de uma foto da Mesquita El-Qelef.
Todos na sala de operações estavam concentrados na grande tela, assim como estiveram na véspera para o anúncio de Khalish assumindo a responsabilidade pelas explosões em Milão. Só que Khalish obviamente não estava envolvido nessas ações; muito pelo contrário. Então quem era aquele recém-chegado que ousava desafiar Khalish?
E quando aquela voz árabe clara e estridente chegou ao ponto principal do discurso preparado e os objetivos e exigências de seu grupo se tornaram claros, Adel fechou os olhos por um momento e apoiou a testa na mão. Uma coisa era certa: a guerra ao terror jamais seria a mesma novamente.
Sam viu a notícia em uma das últimas TVs na saída da casa de Vince Corcoran.
Os olhos de Corcoran eram sensíveis à luz, então ele estava permanentemente de óculos escuros — não só para "tirar onda", como muitos apostavam —, as cortinas ficavam sempre fechadas e as luzes, apagadas. Os únicos focos de luz que se viam ao andar por salas e corredores da mansão eram telas de TV; centenas delas, de diferentes épocas, praticamente um museu da televisão. A maioria exibia filmes antigos com Cagney, Bogart e Edward G. — Corcoran era um cinéfilo fervoroso; mas a cada seis ou sete telas, uma estava ligada num canal de notícias ou novela.
Não havia som em nenhuma delas, apenas aquela luz fantasmagórica das telas de aparelhos de televisão dos últimos setenta anos para guiar seu caminho.
Quando Sam e Mike estavam saindo — guiados por Barry Chilton, braço direito de Corcoran —, Sam viu a notícia sobre El-Qelef numa tela sintonizada na CNN.
Dirigindo para casa, Mike percebeu que seu amigo estava quieto e a cor sumira de seu rosto.
Bem, não diga que não avisei que Vince era diferente — disse Mike, dando de ombros. — Mas pelo menos conseguimos o que queríamos.
Não, não é isso. Foi uma coisa que vi numa daquelas TVs. Pode ser que esteja ligada ao livro A profecia, mas não dá para ter certeza sem ouvir a notícia completa.
Sam olhava fixo para a frente como se em estado de choque, ainda tentando assimilar e encontrar sentido no que vira. Talvez Mike tivesse razão; ele estava enlouquecendo, começando a ver coisas imaginárias: o atirador do outro lado da rua, depois o carro de Lorrena na garagem dele, e agora outra mesquita do seu manuscrito na CNN. Ele suspirou.
Podemos parar num bar que tenha uma TV passando o jornal?
Claro, claro. — Apesar do tom trêmulo e hesitante, Mike percebeu que não era um pedido sem importância. — Na verdade, posso fazer melhor que isso.
Alguns minutos depois, eles estavam parados num acostamento, com alguns caminhões passando em disparada pelo carro enquanto Sam assistia à tela do celular de Mike, esperando que a notícia passasse de novo na CNN.
"Grupo terrorista rival propõe duelo a Abu Khalish..."
Se algum dia Mike se perguntara que tipo de forças de corpo e mente seu amigo ainda tinha depois do lento desmoronar na última semana, ele viu os últimos vestígios desaparecendo agora com a mão de Sam lutando para segurar a tela com firmeza. O fôlego o abandonou tremulamente quando a notícia chegou ao fim, mas passaram-se dez segundos completos até que ele retornasse ao mundo à sua volta. Com a mão ainda tremendo, ele fechou o celular delicadamente e o devolveu a Mike.
Sam ficou em silêncio por alguns instantes enquanto eles seguiam viagem. Ele então começou a explicar:
Como você sabe, A profecia é centrada nas profecias de Nostradamus, mas a trama central inclui também uma série de atentados a mesquitas. A representação "física" final daquelas profecias, por assim dizer.
Mike apenas fez que sim. Sam só havia partilhado com ele o esqueleto da trama, sem detalhes intricados. A única coisa para a qual Mike dera conselhos foi quanto à estrutura de algumas cenas.
Quando vi a notícia do primeiro atentado na mesquita turca de Antalya há cinco dias, não vi grande significado. Pensei: é só uma coincidência, já houve vários atentados a mesquitas turcas antes, e geralmente terminam atribuídos aos separatistas curdos. — Sam fechou os olhos por um segundo e balançou a cabeça. — E com minha cabeça no atirador e em Lorrena, não tive tempo realmente para pensar mais a respeito.
Então o primeiro atentado a uma mesquita em A profecia foi no mesmo lugar, Antalya, Turquia?
Sim. — Sam deu de ombros após alguns segundos. — Ok, eu mudei o nome de todas as mesquitas no livro para não ofender as sensibilidades religiosas de ninguém, e há várias mesquitas pequenas em Antalya. Mas é bem evidente em A profecia que eu a baseei na maior mesquita, El Ashna, que foi onde aconteceu a explosão de cinco dias atrás.
Eles ficaram em silêncio por um tempo, ouvindo apenas o barulho das rodas no asfalto.
Sam respirou fundo.
E agora com esse segundo atentado em Alexandria, é coincidência demais. Dois atentados exatamente como em A profecia; lugar e seqüência.
Mike ainda tentou buscar uma explicação alternativa.
Mas Alexandria é uma cidade muito maior, com mais mesquitas grandes. Certamente o fator coincidência entra em jogo ainda mais, não?
Sam negou com a cabeça.
Não, acho que não. Minaretes do mesmo tamanho de cada lado de um domo central. É bem claro que baseei o segundo atentado na Mesquita El-Qelef. — Sam suspirou. — Por falar nisso, achei que era eu quem deveria estar em negação aqui.
Que ninguém jamais diga que não apoio você, que não estou jogando no seu time. — Mike estava ansioso para fazer uma piada, ao menos para aliviar a tensão.
Mesmo que houvesse a possibilidade de atribuir tudo isso ao acaso, não dá para ignorar o anúncio agora veiculado e a exigência feita. Quase exatamente como em A profecia.
Quase?
Algumas palavras diferentes aqui e ali, mas a essência é a mesma: exigem que Abu Khalish se entregue e, em troca, os atentados vão parar. — Mike ergueu uma sobrancelha ao fitar o amigo, e Sam entrou nos detalhes. — É tudo como um supremo teste para a proclamação da "santidade do islã" com que foi lançada a campanha de atentados de Khalish. O círculo se fecha e ele é vítima do próprio petardo.
Como em todos os bons thrillers. — Mike fechou a cara. — E como termina tudo isso, se é que posso perguntar? Quem é o cérebro por trás de tudo em A profecia? — Quando Sam contou, Mike fixou o olhar no vazio por alguns instantes, sem falar; de repente, ele tinha uma compreensão melhor do pânico do amigo. — Nossa. E você ainda se admira por ter sido alvo de um complô?
Bem, agora que você falou... — O tom de Sam de repente ficou mais firme, mais seguro de si. — Pois essa foi a única coisa com que tomei verdadeiro cuidado: não ofender o islã. Na verdade, um de meus protagonistas, o principal responsável por rastrear os terroristas, era um personagem muçulmano muito empático.
Talvez. Mas está parecendo que você realmente irritou alguém. — Mike olhou para Sam de soslaio. — E agora me parece que só há duas possibilidades: ou você criou a mais incrível obra de previsão já conhecida na literatura, ou quem quer que tenha levado seu manuscrito o está aplicando agora como um plano para o Apocalipse.
Capítulo Onze
"Vocês testemunharam com seus próprios olhos o contraste entre nossas ações e as de Abu Khalish em Milão. Nosso círculo de irmãos aceita tanto sunitas quanto xiitas, pois somos unidos em nosso amor pelo islã e assim asseguramos que nenhuma vida se perderia através de nossas ações, e assim continuaremos. Pois está escrito no Corão que a vida é sagrada, é criação de Alá, e somente Alá pode decidir quando extingui-la — e não elementos como Abu Khalish.
"Por conseqüência, tão natural e indiscutível quanto o rio que corre para o mar, ao demonstrar tamanho desprezo pela vida humana em sua guerra, Abu Khalish está difamando o bom nome e o espírito do islã. Uma religião de entendimento e compaixão, e, no entanto, ele a associa nas mentes de muitos àquilo que ela não é: à maldade, à destruição.
"Contudo, ouvimos Abu Khalish proclamar que ele é um verdadeiro defensor do islã, que está lutando para proteger sua santidade. Portanto, vejamos agora se isso é verdade ou apenas palavras vazias. Pois se Abu Khalish realmente acreditasse na santidade do islã, como penitência pela difamação supracitada, ele cessaria sua guerra e se entregaria para impedir a destruição de mais monumentos sagrados. Esta seria a atitude de um verdadeiro shahid, meus amigos — aquele que se sacrifica para proteger o islã."
Adel esfregou a nariz ao erguer os olhos. Ele já havia lido a transcrição do pequeno trecho diversas vezes mais cedo, antes de reler frases es pecíficas em busca de sutilezas ou mensagens mais profundas. Agora, dava uma última lida enquanto os líderes de sua seção se reuniam à sua frente.
Ok. Com Abu Khalish, sabemos exatamente com o que estamos lidando, todo o seu histórico. Mas aqui, estamos lutando no escuro. Assim, embora finalmente tenhamos uma declaração de intenções, ainda não há nem pano de fundo nem contexto. E nenhuma foto, somente uma voz. Então essa será a primeira coisa: avaliar cada cadência e inflexão dessa voz para descobrir de onde pode ter vindo ou mesmo onde esteve ao longo dos anos. Isso quer dizer que vamos passá-la por todos os programas de análise de voz e lingüística que existem entre nós, o GCHQ e a NSA. — Adel examinou o grupo de oito pessoas. — Alguém tem alguma idéia inicial?
Isam, o responsável pela África, levantou a mão timidamente.
Minha aposta seria Iêmen ou possivelmente Omã pelo dialeto, embora haja algo mais aí; como se ele tivesse passado tempo no Marrocos ou na Tunísia. Há uma leve inflexão francesa em algumas palavras.
Não tenho certeza quanto à parte iemenita — Malik se pronunciou —, mas também ouvi um sotaque francês. Embora também seja possível adquiri-lo no Líbano ou mesmo na Síria; ele pode igualmente ter passado tempo nesses lugares.
Ok — assentiu Adel. — Iêmen ou Omã, talvez com posterior influência marroquina, tunisiana, libanesa ou síria. Ou quem sabe o contrário: ele é nativo de um desses quatro, mas passou algum tempo no Iêmen ou Omã?
Sim, pode ser — disse Malik.
Isam deu de ombros, conciliatório.
Mas não pode ser a própria França, a parte francesa do Canadá ou alguma outra influência ocidental? — pressionou Adel. Enquanto Isam e Malik pensavam, Adel observava rapidamente o restante do grupo.
Finalmente, Malik disse:
Só se foi uma influência breve. O sotaque é muito leve. Ou, se ele de fato passou algum tempo na França ou num território de língua francesa, esteve entrincheirado numa comunidade árabe onde este era seu idioma principal, e só falava francês raramente.
Isam concordou, e Adel examinou o restante do grupo. Ninguém tinha outra opinião.
Bem, vamos saber em breve. E espero que consigamos melhorar a partir daí e, com alguma sorte, reduzir para uma área de poucos quarteirões onde ele morava. Ou, melhor ainda, onde vive agora. — Adel distribuiu tarefas para a equipe segundo suas áreas de especialidade, e voltou para seu computador.
Influência ocidental? Essa possibilidade preocupava Adel.
Era um golpe audacioso, fantástico: roubar a cena de Abu Khalish em Milão e lançar-lhe um desafio numa tacada só. Colocar um holofote e uma pressão sobre Khalish que metade dos serviços de inteligência do mundo e os bilhões gastos não haviam logrado. Mas isso era metade do problema: o golpe era quase bom demais, e não era preciso pensar muito para perceber que o principal beneficiado seria o Ocidente, muito mais que o islã.
Assim, Adel se perguntou, quanto tempo levaria até que alguém no mundo pan-árabe alegasse uma possível influência ocidental, mesmo sem fundamento? E se algo descoberto por sua equipe ajudasse a fornecer esse fundamento?
Adel fez avançar este cenário em sua mente e não gostou do que viu. Pela primeira vez, ele temia tanto aquilo que sua equipe podia descobrir quanto aquilo que falharia em encontrar.
Estranho. Sam chegara e encontrara o Jetta de Lorrena na garagem, mas a casa estava às escuras. Ele não obteve resposta quando entrou e chamou o nome dela, e começou a se sentir inquieto. Talvez ela esteja fazendo um pouco de espionagem particular, ou tenha algum outro tipo de surpresa para mim nas sombras.
O telefone tocou e Sam se sobressaltou.
Ele atendeu depois do primeiro toque. Era Kate.
Oi, Sam. Estava tentando falar com você. Estou indo para Nova York.
Quando?
Amanhã, com Ashley.
A luz da cozinha se acendeu e Lorrena surgiu das sombras, apenas um perfil visível sob o brilho. Lorrena apontou e sussurrou:
Ela ligou antes.
Ah, certo — disse Sam ao telefone. Ele pensou que já sabia o que vinha pela frente.
Tenho uma reunião muito importante com os novos produtores de Nevada Angel na Broadway; você sabe, a peça que eu estava fazendo quando viemos morar aqui. Bem, eles vão transformá-la num filme. — Ela fez uma pausa, esperando uma reação, depois seguiu adiante bem no meio do parabéns resmungado por Sam. — O projeto existe já há um bom tempo, então eu já sabia, e tive todas as aprovações por parte de Hollywood, mas parece que os produtores da Broadway também têm que dar o aval. Então eu pensei, enquanto eu estiver aí, será que você não quer ver o Ashley? Ficar com ele na sua casa?
Aí estava. Sam gostaria de ter sido poupado do preâmbulo até que ela chegasse à pergunta importante. Era o monólogo habitual de Kate, minha-carreira-acima-de-tudo — Londres, Broadway, e finalmente Hollywood — e, no meio disso, Sam tinha perdido o filho. Nos dois primeiros filmes, ela sempre retornara a Oneida, pegando o vôo de volta a cada fim de semana porque Ashley já estava adaptado numa boa escola. De repente, passou a voltar a cada duas semanas, depois uma vez por mês.
Sam culpou todo o tempo que passaram afastados pelo fracasso do relacionamento, mas a gota dagua foi quando ela começou a se relacionar com outra pessoa, um roteirista. Sempre condenada a se apaixonar por escritores.
Não sei — disse ele. — Quanto tempo você vai ficar?
Só alguns dias.
Sam adoraria ver o filho; ele sempre se agarrava a qualquer oportunidade. Mas agora não era o momento ideal, com os novos dramas com Lorrena, Vince Corcoran e os anúncios dos atentados às mesquitas.
Você sabe que normalmente eu adoraria que Ashley ficasse comigo, mas agora é um momento bem ruim, porque... — Sam parou quando percebeu a expressão intrigada de Lorrena. Ela não sabia quase nada da história verdadeira, só que ele tinha algum bloqueio criativo com o livro novo, e que em parte se refletia no desempenho dele na cama. Rejeitar uma oportunidade de ver o filho indicaria que algo mais sério estava acontecendo, podia levantar suspeitas. Sam mudou de tom. — Mas, pensando bem, do jeito que estão as coisas, eu quase nunca o vejo, então certamente posso dar um jeito de recebê-lo.
Kate disse a hora de chegada do vôo e Sam combinou de encontrá- los no aeroporto.
Lorrena estava sorrindo quando Sam a encarou. O Sam que ela conhecia e amava estava de volta. Ela voltou para a cozinha e ele reprimiu um ligeiro arrepio ao desligar.
Sim, ótimo, ele torcia para ter manejado bem o subterfúgio. Mas agora, envolvendo seu filho como um peão em seu jogo, era algo completamente diferente. Um sinal de que as coisas estavam indo longe demais.
SALON, PROVENÇA
Jean-Pierre trabalhava melhor à noite.
A livraria no térreo já estava fechada havia bastante tempo e Madame Pelletret voltou para casa sobre suas pernas cada vez mais instáveis.
Finalmente, ele agora tinha a solidão. E a escuridão.
Ele acendeu 12 velas — quatro grupos de três para representar o zodíaco e as estações —, espalhou os mapas e ajustou o ângulo de sua esfera armilar. A direita de sua escrivaninha havia uma persiana aberta para que ele pudesse ver parte da cidade pela janela. Via Salon e os campos das fazendas além.
Havia pouca luz elétrica visível ali, os poucos prédios novos eram ocultos pela escuridão, então era mais fácil imaginar aquela parte da cidade como tinha sido no século XVI. Quando Michel de Nostredame observava uma vista semelhante da janela de seu estúdio à luz de velas.
Pregadas às paredes do estúdio de Jean-Pierre viam-se várias das quadras mais importantes de Nostradamus — cópias dos manuscritos originais, à pena sobre velino —, mas no lugar de honra acima da escrivaninha ficava aquela que era considerada a quadra mais notável, de onde todo o resto se desenvolveu:
O leão jovem ao velho vencerá.
No campo bélico, por duelo singular.
Em jaula de ouro os olhos saltar-lhe-ão,
Das forças em combate uma ficará,
A outra morrerá de morte cruel.
Quatro anos antes do fato, Nostradamus previra com precisão a morte do rei francês Henrique II em 1559, durante um torneio no qual uma lança quebrada penetrou seu capacete de ouro e perfurou um dos olhos, causando uma hemorragia cerebral que levou à sua morte dez dias depois.
A partir daquele momento, a notoriedade de Nostradamus como um adivinho preciso se espalhou. E ninguém foi mais útil nesse processo que Catarina de Médici, viúva de Henrique II. Testemunha em primeira mão da previsão correta sobre a morte do marido, ela passou a consultá-lo sobre previsões para seus filhos; e, como conseqüência natural, ele começou a ser procurado pela corte de Catarina e pela aristocracia francesa em geral.
Ao fazê-lo, Catarina tornou-se mais que uma importante patrocinadora apenas; ela também se tornou sua protetora. Pois aquela era a época da Inquisição, quando a previsão do futuro era vista como uma forma de bruxaria e punida com a morte. Contudo, enquanto a realeza da França tivesse tamanha estima por Nostradamus, os inquisidores não ousariam agir contra ele.
Mesmo assim, Nostradamus era mais cauteloso em seus trabalhos publicados — diferente dos sussurros privados em câineras palacianas e aposentos de recepção. Ciente de que profecias óbvias e controversas poderiam alarmar a Igreja e encorajá-la a passar por cima da proteção real, ele polvilhou suas quadras com alegorias e frases em latim e grego para mascarar os detalhes. Assim, se ele um dia fosse confrontado sobre uma profecia polêmica, poderia alegar um sentido alternativo.
Por mais de quatrocentos anos desde então, inúmeros estudiosos e acadêmicos se debruçaram sobre aquelas profecias para tentar definir seu "verdadeiro" sentido.
Assim, profundamente cônscio de que era apenas mais um na longa sucessão de "especialistas" em Nostradamus, Jean-Pierre decidiu esmerar-se para ser diferente, para se destacar. A base desse processo era recriar parcialmente a vida de Nostradamus, na esperança de jogar uma nova luz e encontrar novas interpretações; mas ele rapidamente descobriu que isso o levava a se envolver mais com profecias de eventos atuais e futuros. Afinal de contas, havia pouco valor em atualizar ou reinterpretar o passado.
Este sem dúvida foi o motivo que levou aquele escritor inglês a colocá-lo no topo de sua lista de contatos, acima dos outros incontáveis especialistas em Nostradamus. Ele tinha um interesse particular na pesquisa de Jean-Pierre sobre Mabus, o instigador islâmico da Terceira Guerra Mundial, e como isso poderia se encaixar nos eventos do mundo atual.
Assim, quando ele viu as notícias do primeiro atentado a mesquitas e como se encaixava nas anotações que fizera após sua primeira conversa telefônica — a Turquia também era o cenário do primeiro atentado fictício, embora sem menção a uma cidade específica —, ficou imediatamente alarmado.
Estava prestes a ligar e conferir se a seqüência dos atentados planejados havia mudado, ou qual cidade na Turquia tinha sido a escolhida final, quando veio a notícia da segunda explosão: Alexandria, Egito. Ele checou suas anotações novamente e respirou, profundamente aliviado; Islamabad, Paquistão, foi o segundo atentado planejado.
Quanto à terceira notícia, sobre as exigências dos responsáveis pelos atentados — que poderia levá-lo a rever aquela opinião —, ele ainda não tinha visto. Só havia uma TV na casa toda, e assim que Madame Pelletret saía às 16h30, ele a evitava estoicamente, apartando-se de todas as distrações modernas. Sentia as décadas e depois os séculos recuando cada vez mais com o cair da noite — até que finalmente retornava ao século XVI. Sentindo o que Michel de Nostredame sentia então, vendo o que ele via.
Assim, enquanto Jean-Pierre mergulhava na escuridão do passado em busca de pistas para o futuro, como fazia todas as noites, o verdadeiro futuro se desenrolava logo do lado de fora de sua janela, sem que ele soubesse.
Capítulo Doze
Sam estava esperando no setor de desembarque do aeroporto JFK quando recebeu a ligação de Lorrena. O painel dizia que o vôo de Kate e Ashley vindo de Los Angeles tinha mudado de "aterrissado" para "no portão" havia 12 minutos.
Vou ao salão fazer as unhas depois do trabalho hoje; devo chegar mais tarde. Às 19h30 ou 20 horas.
- Ok.
Manicure, aulas de italiano. Sam agora se perguntava o quanto daquilo era real. Mais uma coisa para Robby Maschek conferir. Ela costumava ir sempre ao mesmo lugar.
Já está no aeroporto? — perguntou ela.
Lorrena obviamente podia ouvir as chamadas de voo e o eco da multidão ao fundo.
Cheguei há 15 minutos. Só estou esperando que eles peguem a bagagem. — Sam suspirou. — Acho que também será tarde quando chegarmos, e creio que estarei cansado demais para cozinhar depois de dirigir, então vou pegar alguma comida para viagem. Pizza ou comida chinesa nunca falham com crianças de 9 anos.
Finalmente você está aprendendo, Sam. Lição número um para ser um bom pai: faça de tudo para jamais cozinhar, sempre peça comida para viagem. — Ela riu. — Nos vemos mais tarde.
O barulho e a confusão ficaram mais nítidos quando Sam desligou, mas a risada dela permaneceu em sua mente por um tempo, lembrando-o de tempos mais felizes, e ele começou a pensar duas vezes quanto aos planos que tinha posto em prática.
Sam tratou de esquecer isso assim que viu Ashley e Kate surgindo na confusão de passageiros desembarcados. Ele sorriu e acenou para chamar a atenção deles.
Adel espalhou as fotos pela sala da "mesa comprida". Originalmente projetada como sala de reuniões, ela só era usada para casos que não podiam ser resolvidos em conversas rápidas nas mesas de trabalho ou recitando instruções na sala de operações — o que era raro. Assim, sua principal função agora era reunir os visitantes do MI5, MI6 ou agentes de operações estrangeiras, ou como refeitório.
Agora, no meio da tarde, com o almoço terminado havia mais de uma hora, Adel tinha o local só para si, e pôde espalhar as fotos.
Havia mais de vinte das duas estações que explodiram, outras quatro com ângulos diferentes do corpo inerte de Irfan Shohani e mais uma meia dúzia do apartamento destruído de Youssef Rehlik.
Seguir as fotos na ordem cronológica dava vida, ou, neste caso, morte à trilha de destruição deixada por Abu Khalish em Milão. Tudo fora comandado a distância, e agora não havia uma única parte na trilha que levasse de volta a Khalish. Exatamente como ele gostava.
Mas, além das frias estatísticas do número de mortos, as fotos também contavam uma história mais profunda: o entusiástico jogador de futebol de 22 anos — não muito mais velho que os homens-bomba — que perdera as pernas; a menina de 14 anos que ficou cega; a mãe que, na tentativa de proteger o filho pequeno da explosão, parecia tê-lo esmagado e sufocado — o menino foi miraculosamente descoberto ainda com vida, com apenas algumas costelas quebradas. "Daí veio a parte difícil", contara Rani ao enviar as fotos. "Contar ao menininho que sua mãe tinha morrido para salvá-lo."
Adel gostaria de poder pegar os homens-bomba pela mão e guiá-los pela carnificina, deixar que eles ouvissem aquelas histórias devastadoras em primeira mão. "Veja, veja o que você fez. E acha que vai para o céu por isso?"
Ainda assim, Adel via os homens-bomba parcialmente como vítimas. Pois suas ações tinham pouco a ver com ser shahids em nome do islã; tinham muito mais a ver com não deixar qualquer rastro que pudesse levar a seus mandantes terroristas. Ninguém que pudesse falar sobre os estratagemas, o dinheiro e as trilhas dos explosivos podia permanecer com vida. Quando eles morriam, a operação e todas as ligações morriam com eles.
E quando as operações davam errado e alguém ficava vivo — como no caso de Irfan Shohani —, ele era rapidamente apagado. Nenhum rastro sobrevivia.
Como em outras religiões, o assassinato e o suicídio eram malvistos no Corão. Tentar justificá-los no contexto do jihad como uma espécie de guerra santa era uma interpretação muito forçada, e assim geralmente era usada apenas por facções extremistas em prol de objetivos próprios. Quando seu irmão estava estudando para ser imame, Adel conversou longamente com Namir sobre a verdadeira natureza do jihad. Foi quando ele entendeu perfeitamente que, longe de ser uma batalha de natureza física e violenta em nome do islã, era mais um conflito interno; aquela mesma batalha moral de tempos imemoriais, o eterno esforço para fazer a coisa certa — muitas vezes frente a obstáculos e tentações impossíveis — que confronta a maioria das pessoas em algum momento da vida, quer sejam religiosas ou não.
Adel parou de ver as fotos e ergueu o olhar quando a porta se abriu. Karam.
GCHQ na linha quatro. Eles terminaram a análise de voz do homem da mesquita.
Adel estava esperando aquela ligação do escritório do Gabinete Central de Comunicações do Governo.
Obrigado. — Ele apertou o botão do viva voz na lateral do telefone. Com sorte, seriam boas notícias.
Começou a chover assim que Lorrena chegou ao salão.
Na hora que ela saiu, uma hora e vinte minutos depois, chovia tanto que ela levantou a gola do casaco e manteve a cabeça baixa enquanto tentava uma corrida rápida até o carro, parado a cerca de 50 metros.
Procurando as chaves em meio aos últimos passos apressados, ela abriu a porta do carro e se jogou dentro dele rápido o suficiente para não se encharcar.
Ela só viu as duas figuras surgindo das sombras quando já era tarde demais.
Um deles abriu a porta do carona uma fração de segundo depois dela, o outro entrou no banco de trás. Ela sentiu o cano da arma contra sua nuca quando o homem de trás falou.
Faça o que mandarmos e você não vai se machucar. Agora ligue o carro e arranque; nós diremos para onde você tem que ir. — O cano da arma se afastou alguns centímetros.
Com outra arma apontada para ela, o homem do banco da frente não disse nada. Ele usava uma máscara de esqui cinza, com buracos apenas nos olhos. Arriscando um olhar no retrovisor quando ligou e começou a manobrar o carro, Lorrena viu que o outro homem usava a mesma coisa. Ele ordenou que ela fizesse algumas curvas após um tempo, depois se recostou e esperou que chegassem à estrada principal para fora de Utica.
A chuva era forte, então ela ligou os limpadores na velocidade máxima. Eles acompanhavam o ritmo de seu coração acelerado como um metrônomo.
Após algum tempo, Lorrena angariou coragem suficiente para perguntar:
O que vocês querem?
Mas o silêncio apenas se prolongou pelo trajeto. Não houve resposta.
Finalmente, quando faltava pouco para completar 5 quilômetros e as luzes distantes de Utica se apagaram por completo, ele disse:
Vire aqui. Aqui!
A curva apareceu de repente e Lorrena teve que estreitar a vista para enxergar através da chuva. Ela freou e fez a curva.
Ok... — disse ele após alguns minutos. — Pare aqui.
Eles avançaram meros 200 metros depois da estrada, mas já parecia um lugar completamente isolado. Escuro como breu, nenhuma iluminação de rua. De um lado, um bosque; do outro, plantações; as últimas casas nos limites de Utica ficavam a mais de 2 quilômetros de distância. A possibilidade de topar com alguém era remota.
O homem no banco da frente começou a vasculhar a bolsa de Lorrena, mas logo ela o viu fazendo algo estranho: após verificar o que havia ali, ele só examinou o celular dela — deixando cartões de crédito e dinheiro —, depois apenas fechou a bolsa outra vez e a conservou na mão firme.
E, naquele instante, ela se deu conta: não se tratava apenas de dois moleques tentando descolar uma grana para drogas. Tudo parecia muito bem-planejado, organizado; e, embora ela não tivesse certeza por causa das máscaras, seus seqüestradores pareciam mais velhos. O homem no banco da frente talvez tivesse quase 30, mas o outro tinha mais, talvez até 40 anos. Ela imediatamente descartou que fosse um roubo de carro: ninguém ia querer um Jetta velho. Ao chegar à próxima conclusão óbvia, seu coração ficou apertado: era uma execução! Talvez fosse armada para parecer um assalto que dera errado, mas na verdade ela não sairia viva dali.
Pelo espelho, ela viu o homem no banco de trás tirando seu laptop da bolsa, o que pareceu atrair mais interesse.
É seu? — Obviamente. Ela não fez que sim nem respondeu. — Parece um bom modelo.
Ainda insistiam na farsa do roubo. Mas quem teria mandado os dois? Washington? Não. Ele ainda precisava dela para ficar de olho em Sam por mais um tempo. Contudo, talvez outro departamento tivesse passado por cima dele e decidido encerrar a operação mais cedo. Apagar todos os rastros ao mesmo tempo.
Escutem, vocês não precisam fazer isso — disse ela, soprando para tentar aliviar a tensão enrodilhada em seu peito.
Fazer o quê, moça? Eu já disse uma vez: se você colaborar, não vamos machucá-la.
Houve uma longa pausa e Lorrena tentou identificar algum sarcasmo ou provocação na voz. Ou se os rostos estavam contraídos em sorrisos sob as máscaras, fazendo-a de palhaça. Só pelos buracos dos olhos, ela não conseguia ver muito: os olhos eram vazios, sem expressão.
Agora saia do carro.
Ela saiu. A chuva forte foi estranhamente bem-vinda, esfriando sua pele, aliviando a faixa de calor que se apertou de repente em torno de seu crânio.
Caminhe para a frente, afaste-se do carro. — Ela deu sete ou oito passos antes de ouvir a voz novamente. — Ok, aí está bom.
Ela se virou e viu as silhuetas fantasmagóricas iluminadas pelos faróis do carro, ambas as armas apontadas para ela. Lorrena sabia que esta era sua última chance.
Há coisas que Sam me contou que ainda não passei adiante — disse ela. — Coisas vitais que vocês precisam saber.
Mais uma longa pausa, somente o som da chuva tamborilando em torno deles.
Isso seria ótimo, não fosse por um detalhe: quem diabos é Sam?
E dessa vez Lorrena teve certeza de que havia sorrisos por baixo das máscaras. Não tinham acreditado. Lançara sua última cartada, e fracassara.
Agora vire de costas.
Mas ao se virar uma última vez com uma súplica silenciosa nos olhos, ela viu um segundo par de faróis virando na direção deles na estrada. O carro se aproximou numa velocidade constante e os dois homens também se voltaram quando os faróis os iluminaram.
O veículo freou e por fim parou a cerca de 40 metros, obviamente se perguntando o que diabos estava acontecendo ali. Lorrena pensou: graças a Deus. Suas preces haviam sido atendidas. Eles não fariam nada contra ela agora, com alguém olhando.
Os faróis estavam altos. Ela não conseguia distinguir qualquer silhueta dentro do carro, não tinha idéia nem de quem nem de quantos eram.
Mas então viu que os faróis piscaram duas vezes e, quando um dos bandidos acenou em resposta, seu coração tornou a falhar. Estavam juntos! Os outros seguiram o carro dela desde a cidade ou combinaram um encontro ali para apanhá-los depois da execução.
Como eu disse, vire de costas e não olhe para trás.
E assim, perdida a última esperança, ela fez o que mandavam, sentindo as gotas de chuva caindo em seus lábios enquanto esperava pelas balas.
Em Londres, a equipe de Adel ainda tentava freneticamente decifrar o sotaque do homem que assumiu a responsabilidade pelas bombas nas mesquitas.
Inflexão e sotaque apontam para o Iêmen, com Omã fora de cogitação — disse o analista de voz Paul Cunningham. — E indicam uma influência libanesa ou síria mais que marroquina ou tunisiana.
Alguma preferência entre Líbano e Síria? — perguntou Adel.
O Líbano está um pouco na frente. Mas a diferença é mínima, só quatro por cento.
Adel coçou a testa. Um cidadão do Iêmen que já havia morado no Líbano ou na Síria. Podiam ser centenas de milhares de pessoas, talvez mais.
E o Iêmen foi a primeira influência, ou pode ter sido depois?
Cunningham era circunspecto.
É aí que as coisas ficam interessantes, meu caro. A principal razão pela qual temos certeza de que a residência iemenita foi a primeira e não a última: influência mehri em algumas palavras.
Mehri? — repetiu Adel.
Uma língua semítica do sul que está desaparecendo rapidamente, mais semelhante à da Eritréia ou da Somália; é improvável que alguém aprenderia ou seria influenciado por ela mais tarde na vida. Ela só aparece na inflexão de algumas palavras, mas nossa aposta é que nosso homem nasceu numa família que falava mehri e a aprendeu quando criança; depois, quando aprendeu árabe, esqueceu a maior parte.
E o mehri é nativo do Iêmen?
Sim, mas só de algumas regiões pequenas, e falado por não mais que 70 mil pessoas. Mesmo voltando vinte ou trinta anos no tempo, esse número não passaria de 90 mil.
Adel se aprumou na cadeira. Agora eles estavam esquentando. Cruzados com o número de residentes mais recentes da Síria ou do Líbano, aqueles 70 ou 90 mil podiam ser reduzidos a um número de poucos mil. Adel passou seu raciocínio adiante e três horas depois Cunningham retornou a ligação com o resultado: 1.462 nomes.
Os censos oficiais de falantes de mehri de vinte ou trinta anos atrás são meio incompletos — observou Cunningham —, então vamos cruzar os dedos para que nosso homem esteja em algum lugar neles.
Sim, cruzando os dedos.
Naquela manhã mesmo eles estavam pescando num oceano de milhões — agora tinham uma lista de menos de 1.500 pessoas.
— Macarrão estilo Hoooong Kong, saaaatay de frango...
Sam abriu um sorriso encorajador para o filho enquanto ele tentava decifrar o cardápio do restaurante. O que faltava a Ashley em pronúncia, ele compensava com confiança e exagero. Obviamente tinha herdado o talento teatral de sua mãe. O chinês atrás do balcão lutava para ser paciente e cordial, mas Sam percebeu que ele estava começando a se cansar. "Por que você acha que a gente distribui números?"
Camarão Xaaangaai... Frango Kuuung Pooo.
Esse último é meio picante — disse o homem.
Ashley olhou de volta para o cardápio, perdido em seus pensamentos.
Tudo bem — disse Sam. — O que ele não puder comer, eu como.
Eu vou gostar — afirmou Ashley, defensivamente. — Eu acho que já comi isso antes.
Sam deu de ombros. Ele era um rapazinho agora. Em breve, estaria pronto para comer o Sichuan.
Terminadas as deliberações, Ashley escolheu um chop suey misto e bolinhos de camarão. Sam acrescentou arroz branco frito para fechar o pedido e pagou.
Eles ficaram em silêncio por um tempo enquanto esperavam a comida. Havia sido um longo caminho, e Sam já estava atualizado quanto a todas as novidades. O namorado de Kate, o babaca, se mudara para uma casa na praia em Capistrano, então agora Kate só o via nos fins de semana. Sam não sabia ao certo se era um sinal de que as coisas estavam esfriando entre eles — a notícia que ele ouvira antes era de que iam morar juntos — ou se era só a questão da distância. Ele também não sabia por que estava interessado, ou mesmo se ainda se importava, mas agora já havia passado tempo suficiente entre aqueles pedaços de fofoca para permitir-se perguntar casualmente.
Tudo bem entre eles?
Acho que sim.
Ashley olhou para o balcão e para a cozinha atrás dele; os estalidos rápidos da fritura no wok de repente se tornaram mais interessantes que conversar sobre os relacionamentos de sua mãe.
Sempre diplomático. Mas provavelmente não é fácil ter 9 anos e viver no meio de relações que parecem gangorras, pensou Sam. Ele não perguntaria mais.
Contanto que Tom não fosse um ogro nem maltratasse Ashley, isso era tudo o que importava para Sam. Ashley já admitira que Tom era "Ok" — ou talvez estivesse bancando o diplomata de novo — e que a casa dele era "legal". Parecia pouco maior que uma cabana, mas cabanas à beira-mar na praia de Capistrano provavelmente não eram baratas, e quando se tem 9 anos, qualquer coisa na praia é "legal".
Ashley já contara da escola e dos amigos novos, então Sam decidiu voltar àquele território mais seguro e perguntou quem eram os melhores amigos e se já tinha aparecido alguma namorada. Ashley escolheu dois melhores amigos "com certeza" e um "talvez", e estava começando a falar do assunto mais difícil, namoradas, quando o telefone de Sam tocou.
Ele se levantou e se afastou alguns passos quando ouviu quem era do outro lado: Tenente Millen, polícia de Utica.
É o Sr. Tynnan falando? Sr. Samuel Tynnan?
Sim, sou eu. Pode falar.
E você conhece uma Srta. Lorrena Presutti?
Sim. Sim, conheço. O que está acontecendo, afinal? — Mas, com um bolo cada vez maior na garganta, Sam temia já saber parte da resposta.
Sinto informar que houve um incidente, senhor.
Capítulo Treze
QUEENSWAY, LONDRES
Fahim Omari tinha seu oponente na mão.
Três de suas peças agora estavam presas na faixa central, as primeiras jogadas das oito que restavam. Omari coçou o queixo pensativamente e fez movimento seguinte; logo ele teria que deslocar seus próprios marcadores, aprisionando-os para auxiliar seu avanço. Caso contrário, como retaguarda, eles poderiam acabar tomados e presos.
Mahbusa — em tradução literal, aprisionado, uma referência ao ato de prender as peças do oponente na barra central — era o jogo favorito de Omari. A seu redor no café do Whiteleys Centre, em Queensway, ouvia-se o som das peças nos tabuleiros e dados rolando em outros jogos: infranjiá, uma espécie de gamão, e Gul bara. As exclamações de alegria ou desilusão nas jogadas importantes eram efusivas, assim como os movimentos dos braços, mãos jogadas para o alto indagando como Alá podia permitir uma coisa daquelas. O café era forte, preto e às vezes doce, e os jornais lidos no lugar eram Al-Hayat, Al-Arabi e Asharq Alawsat.
Era a cena de cafeteria mais típica do Cairo, de Beirute ou de Teerã. Se alguém abrisse um Daily Mail ou The Times ali, algumas sobrancelhas poderiam erguer-se: Acho que você está procurando o Starbucks da esquina, amigo.
As visitas ao café se tornaram um ritual matutino nas terças e sextas para Omari. Uma partida de mahbusa ou infranjiá acompanhada de três ou quatro cafés pretos e uma fatia de basbousa, um bolo de sêmola em calda com cobertura de amêndoas. Quando o tempo estava bom como naquela manhã, havia ainda a vantagem extra de poder caminhar os 800 metros de sua casa em Lancaster Gate até lá.
Seu oponente, um iraniano que havia fugido dias após a deposição do xá e que agora era importador de tapetes e ventiladores de teto, passou um dedo em seu bigode grisalho ao perceber que o jogo estava fugindo de seu controle.
Perto do fim da partida, Omari se distraiu com uma figura que entrou no café e passou por trás de seu oponente: Wajd Masahran. Quando seus olhares se cruzaram, Masahran tocou a testa com um dedo e apontou para uma das mesas do fundo.
Após o jogo, Omari disfarçou batendo papo por um tempo e terminando seu café, dando depois um tapinha no ombro de seu oponente como despedida e partindo para se juntar ao recém-chegado.
Masahran era um consultor de recrutamento especializado em funcionários para plataformas de petróleo, constantemente viajando entre Londres e o Bahrein. Mas também levantava fundos para três instituições de caridade palestinas, duas das quais estiveram sob investigação por ligações com o tráfico de armas.
É claro que o grande problema que temos agora — explicou Masahran, gesticulando acima de seu café — é uma escassez de fundos após esse longo embargo ao Hamas.
Omari concordou. Ele conhecia bem a história e esperou pacientemente que Masahran terminasse seu preâmbulo de pobre coitado para chegar à parte interessante de sua proposta: uma escola em Nablus que teve todos os seus computadores confiscados e uma ala demolida pelo exército israelense por suspeita de ligações terroristas.
Masahran deu de ombros.
Por causa dessas suspeitas, nossas rotas normais de chegada de financiamento foram bloqueadas.
Qual é a quantia que você precisa para resolver as coisas por lá?
O outro deu de ombros mais uma vez, como se para fazer o valor parecer menor.
Cem mil libras.
Omari tomou a decisão rápido.
Ok, pode contar comigo para fornecer trinta mil desse valor. — Ele sabia que Masahran conseguiria o resto em alguns dias. — Os detalhes da transferência são os mesmos?
Sim. — Masahran sorriu e segurou o braço de Omari sobre a mesa. — Agradeço a sua ajuda, meu amigo. Aqueles com quem se pode contar são cada vez mais raros nos dias de hoje.
Não, o prazer é meu. — Omari balançou a cabeça educadamente.
E a ligação da escola com o terrorismo era infundada?
Omari perguntou como se apenas por curiosidade, mas Masahran sabia que o assunto era sério. Os parâmetros das doações de Omari foram bem-definidos logo no começo: embora ele quisesse ajudar o povo palestino, sua condição era nunca ceder fundos para armas ou terrorismo. Assim, sua ajuda se restringia estritamente a orfanatos, escolas e alguns projetos de construções comunitárias.
Masahran pareceu levemente ofendido com a insinuação:
Claro, meu amigo. Mais uma acusação louca... sem qualquer fundamento. Se eu suspeitasse de qualquer ligação desse gênero, eu jamais teria comentado sobre esse projeto com você. — Masahran abriu um sorriso reconfortante e depois diminuiu o tom de voz. — Mas há algo nessa frente que preciso passar a você. Algo importante.
Para qualquer observador, a importância dessas últimas palavras não transpareceu na maneira como Masahran se debruçou sobre a mesa para dizê-las, mas sim na sombra que ainda pairava sobre o rosto de Omari depois que os dois se abraçaram e se despediram.
Omari passeou pelas lojas do centro comercial por dez minutos para dar tempo suficiente de Masahran se afastar. Então, no caminho de casa, parou numa cabine telefônica na Bayswater Road para fazer a ligação.
Precisamos nos encontrar — disse ele ao ouvir a voz de Adel.
Urgentemente.
Ok. Preciso de algumas horas para terminar uma coisa aqui. Locação três está bom para você?
Sim, tudo bem. Locação três. Duas horas.
Lorrena ainda tremia quando eles se deitaram na cama aquela noite.
Foi aterrorizante, Sam... aterrorizante. Eu tinha certeza de que me matariam.
Lorrena não quis mencionar nenhum detalhe na frente de Ashley, então esta era a primeira vez que Sam ouvia o relato completo: como dois homens surgiram do nada quando ela saiu do salão e a obrigaram a dirigir até um lugar deserto sob a mira de pistolas; como ela fechou os olhos no último segundo já esperando os tiros, mas em vez disso ouviu um estranho tilintar cerca de 15 metros à frente, e logo o som de passos recuando às pressas.
Eu não entendi o barulho até que eles entraram no carro de trás e deram o fora... eles jogaram as chaves do meu carro por cima da minha cabeça.
Enquanto ouvia, Sam se viu tremendo também — a primeira vez em que ele e Lorrena estiveram em sintonia em toda aquela semana.
Ele mordeu o lábio. Com a visita de Ashley, não podia ter acontecido em momento pior. Ele nunca deveria ter concordado; ele deveria saber que, uma vez que estivesse de acordo, não teria nenhum controle sobre como aconteceria, e principalmente quando.
O único objetivo era tomar o laptop e o celular de Lorrena. E, como ela sempre levava os dois consigo, Robby Maschek não conseguiu pensar em nenhuma alternativa a não ser um roubo forjado, razão pela qual ele recomendara Corcoran. Arriscado demais, ilegal demais para o gosto de Maschek.
Quando Sam se sentou na sala de visitas de Corcoran sob o brilho fantasmagórico de umas quarenta televisões, o hõmem deve ter sentido seu desconforto, pois inclinou-se para a frente e baixou os óculos escuros por um segundo, como se a visão de seus olhos pudesse trazer algum consolo.
Não se preocupe, meus homens são profissionais. — Ele abriu um sorriso seco. — Ela será mexida, e não batida.
Irlandês por parte de pai, siciliano por parte de mãe, Corcoran se via como uma espécie de ídolo do cinema, segundo Mike; embora já tivesse muito mais de 50 anos.
Em meio à proliferação de filmes de Cagney, Edward G. e Bogart que passavam, Sam também percebeu alguns clássicos mais recentes: 007 contra Goldfinger, O silêncio dos inocentes, Os bons companheiros, O iluminado, Cães de aluguel.
Se você passar por cima das excentricidades e frases cinematográficas cafonas, Vince na verdade é um cara muito legal — opinou Mike após o encontro, dando de ombros e acrescentando com um sorriso seco: — Tirando sua tendência psicopata de matar qualquer um que o contrarie.
No decorrer dos dias seguintes, depois que Robby Maschek revirasse os arquivos do laptop e as ligações do celular de Lorrena, eles saberiam se aquilo tudo valeu a pena.
Contudo, a noite com seu filho estava arruinada. Eles passaram metade dela esperando que Lorrena terminasse seu depoimento na delegacia, e o garoto ainda se inteirou de todo o drama quando ela apareceu, rosto pálido e lavado de lágrimas.
Meu Deus, Sam... foi um pesadelo. — Agora, com Lorrena ainda tremendo a seu lado, o sentimento dominante em Sam era culpa. Que diabos estava pensando quando decidiu seguir este plano com Maschek e Corcoran?
Depois ele se obrigou a lembrar do atirador acionando uma arma vazia a centímetros de seu rosto e de que Lorrena obviamente tomara parte naquilo. E, como em todas as outras noites daquela semana, de repente ele não conseguia mais suportar o toque de Lorrena. Ela lhe causava arrepios.
Pelo menos a lembrança facilitou a interpretação do personagem que ele tinha que incorporar agora. Sam a abraçou e embalou carinhosamente.
Está tudo bem... está tudo bem. Já acabou. Você está segura agora. — E ele continuou a abraçá-la até que finalmente a leve trepidação acabou e ela caiu no sono.
Agora ambos estavam interpretando papéis, refletiu Sam; e com parte de seu manuscrito acontecendo na vida real, outra pessoa pelo visto tinha recebido o roteiro.
Capítulo Quatorze
A locação três era um pub irlandês a cerca de 80 metros de Leicester Square.
Havia alguns cafés e lojas árabes na região, mas nenhum dos donos seria encontrado ali; e setenta por cento do comércio da área era de turistas locais e estrangeiros.
Omari se atrasou oito minutos. Ele pediu desculpas e se sentou.
Tive que fazer as compras da lista para Akram. Ele disse que os melhores peixes acabariam se eu saísse tarde demais. — Ele abriu um sorriso indulgente. — Sempre tão detalhista.
Como ele tem passado esses dias?
Adel jamais conhecera o criado de longa data de Omari, só tinha visto fotos no seu arquivo no MI5. No entanto, a comovente história de como aquela aliança se formou, ainda enquanto Omari estava no Egito, ficou gravada na mente de Adel, e Omari muitas vezes mencionava Akram quando se encontravam.
Além de ter mais manias, exigências e neuroses que uma dúzia de sogras — respondeu Omari com um gesto teatral —, vai bem.
Adel sorriu.
É assim que você gosta.
Você me conhece bem demais — admitiu Omari, dando de ombros. — Infelizmente.
Apesar da ligação de criado e patrão entre eles, os dois homens tinham idades parecidas, então Adel costumava imaginá-los numa relação carrancuda ao estilo Jack Lemmon e Walter Matthau, envelhecendo juntos. Aparentemente, a maioria das desavenças entre eles era causada pela comida, com discussões constantes sobre onde comprar os ingredientes mais frescos e qual a melhor maneira de cozinhá-los, ou qual o melhor tabaco para a shisha e até sobre possíveis pretendentes. "Quando eu der a sorte de ter uma amiga visitando a casa." Mas por trás da atitude casual, dos sorrisos fáceis e das histórias divertidas, Adel conhecia bem as cicatrizes que existiam ali: Omari perdera seu único filho, com apenas 19 anos, numa overdose de drogas; seis anos depois, Layth, filho de seu irmão, que vivera com Omari em Londres por anos e era como um segundo filho, morrera num acidente trágico. E o maior apoio emocional e conforto que teve durante aqueles períodos foi Akram, o sempre fiel, sempre constante Akram. Uma das únicas constantes que restavam na vida de Omari, refletiu Adel. Omari salvara Akram de um incêndio quando ele era um jovem mendigo nas ruas do Cairo, e Akram fortaleceu o laço ajudando Omari a atravessar aquelas devastações emocionais.
Uma estrondosa gargalhada de um trio sentado no bar distraiu Omari por um segundo. O lugar estava cheio e barulhento, a música alta. Eles estavam sentados num canto afastado, visíveis apenas para quem se aventurasse a abrir caminho por dois terços da multidão no bar.
Após a troca de cumprimentos, a expressão de Omari se tornou mais grave. Apesar da música que abafava suas vozes a meio metro de sua mesa, Omari se inclinou para a frente.
Recebi informações sobre outro possível incidente.
Onde?
Omari se inclinou mais ainda ao passar os detalhes, da mesma forma que Masahran tinha feito mais cedo.
Quando lhe caiu a ficha do que acabava de ouvir, Adel bebeu um gole de seu drinque para reduzir a secura repentina em sua garganta.
E você acha que podemos confiar nisso?
É o mesmo contato que me passou as informações das três últimas operações de Khalish, incluindo a última no norte da Itália. — Omari ergueu a mão. — Mas espero que, com uma locação específica e noção de tempo, tenhamos mais sorte dessa vez que em Milão.
Adel assentiu lentamente, mecanicamente, ainda imerso em seus pensamentos.
Dia 10 ou 11 desse mês, você disse?
Sim. Ele foi muito específico sobre isso.
Tinham cinco ou seis dias. Londres. Com aqueles detalhes, sim, eles podiam ter mais sorte que em Milão. Mas isso e o fato de que era seu próprio território também traziam pressão extra. Não haveria desculpa possível se desse errado. Não tínhamos informação suficiente... não foi na minha área, então eu não tive controle sobre a aplicação das forças de segurança. Dessa vez, as cartas estavam todas nas mãos de Adel.
— Passou algo na TV sobre algumas explosões em mesquitas outro dia. Você viu?
Vi, sim — respondeu Sam. Lorrena falou casualmente, como se não fosse nada importante. Nos últimos dias, ele se perguntara se aquela pergunta surgiria; ou melhor, temera. E, apesar de ter criado algumas respostas prontas em sua cabeça, ele ainda sentia os nervos em frangalhos. Talvez porque ainda não havia decidido qual das respostas era a melhor. Ele se virou ao ouvir Ashley arrastando a mala e ficou feliz pela distração. — Está tudo aí? Nenhuma meia nem iPod jogado embaixo da cama? Você conhece sua mãe; ela é capaz de me fazer pegar um avião até a Califórnia só para devolver o que você esqueceu. — Sam sorriu, só para o caso de Ashley não ter percebido o sarcasmo.
Sim, peguei tudo. — Ashley revirou os olhos, talvez pensando "poupe-me dos dramas e desse senso de humor"; ou talvez, "iPods já eram há séculos".
Era o fim do café e todos se preparavam para sair: Lorrena para o trabalho, e Sam logo depois para levar Ashley ao aeroporto JFK. Talvez por isso ela escolheu aquele momento para tocar no assunto: um momento casual, passageiro, em que ele estivesse distraído demais pela correria para pensar numa boa resposta.
Lorrena bebeu um gole de café antes de voltar à carga.
Porque lembro que você disse que aconteciam atentados a mesquitas em A profecia.
Sam suspirou.
É, tinha. O primeiro atentado no livro também era na Turquia, por coincidência, mas nem consigo lembrar a seqüência depois disso. Tudo que lembro é que a Turquia vinha primeiro e o último era em Medina: todo o meio é uma névoa para mim. — Ele tentou mostrar um sorriso convincente. — Finalmente aceitei o conselho de Elli e deixei a A profecia para trás para me concentrar nesse novo livro do Toby Wesley. E agora já faz seis meses.
Ela manteve o olhar sobre ele por um segundo enquanto bebia o último gole de café.
Ai, eu tenho que ir. — Ela apanhou chaves, bolsa, casaco e, no meio de sua saída-relâmpago, abaixou-se para abraçar Ashley. — Não esqueça, se o seu pai começar a encher sua paciência com o papo dele no caminho para Nova York... pode falar para ele! — Ela sorriu e Ashley devolveu o sorriso. — E da próxima vez que você vier, vou fazer de tudo para evitar delegacias. — Lorrena deu um beijo no rosto de Sam ao sair. — Tchau.
Dez minutos depois, levando Ashley para Nova York, Sam ainda ruminava a conversa e questionava aquele olhar fixo de um segundo.
Será que ela engolira aquela resposta? Talvez tivesse sido o teste final: pergunte sobre as notícias das explosões nas mesquitas. Caso ele dê uma das seguintes respostas, saia de lá e chame a SWAT e a equipe de limpeza.
Afinal, aquela era a razão crucial pela qual ela ainda estava por perto: ver como ele reagiria ao desenrolar dos acontecimentos. Mas era um xadrez delicado. Uma das partes da trama ela não tinha como mencionar: o desafio dos responsáveis a Abu Khalish. Ele não se lembrava de ter entrado nesses detalhes de A profecia com ela. Ou seja, no papel de Lorrena, a namorada, ela não saberia daquilo — mas Lorrena, a espiã de Washington, conhecia todos os detalhes; ela não podia cruzar aquela fronteira sem se entregar. Mas será que aquilo era parte do teste? Ela esperava que ele mencionasse alguma coisa como conseqüência natural dos atentados? Ou será que tinha acreditado que, uma vez que ele havia esquecido outros detalhes, também perdera aquele? Ou simplesmente que ele ainda não tinha visto a notícia?
Tudo bem, pai?
Tudo. Tudo bem. — Sam tentou relaxar. Aquela história com Lorrena, Washington, os atentados às mesquitas e Abu Khalish tinha soterrado todo o resto e sufocado os poucos momentos preciosos que ele tivera a sós com seu filho. Patético. Sam suspirou. — Ainda estou abalado pelo assalto de Lorrena. Desculpe.
Sem dúvida, Kate ligaria assim que Ashley voltasse para a Califórnia. Que história é essa de Lorrena sendo assaltada? Pensei que você morasse num lugar seguro, Sam! Pelo que ouvi, está ficando igual ao centro de Detroit!
Ele fez um último esforço para tirar aquilo da cabeça e voltar ao que devia estar fazendo naquelas horas preciosas — conversando com seu filho.
Falaram sobre uma pista de skate que Ashley descobriu perto de casa e sobre a aula de jiu-jitsu em que ele se matriculou — Sam franziu a testa: pelo menos Kate tinha parado de superprotegê-lo totalmente; depois falaram sobre os dois professores preferidos de Ashley, um dos quais parecia extremamente excêntrico.
... metade da turma diz que ele é o irmão mais louco de Kurt Cobain.
Ele deve ser bem diferente, meio figura, suponho.
É, acho que sim — comentou Ashley.
A conversa finalmente começava a fluir com mais naturalidade, até que ele recebeu uma ligação de Lorrena.
Com a correria hoje de manhã, esqueci de avisar que tenho outra aula de italiano hoje à noite. Vou chegar tarde.
Certo. — Ele sentiu o coração apertado no peito, mas pelo menos recebera a resposta para sua pergunta. Após avaliar sua resposta, Lorrena obviamente tinha decidido que ele não passara no teste; ou talvez ela tivesse conversado com Washington e ele tivesse chegado àquela conclusão. Sem Ashley, Sam estaria sozinho: que melhor momento para chamar a equipe da SWAT se não naquela noite? Ele sentiu sua garganta apertada. — Ok, até mais tarde.
A partir de então, a conversa com Ashley voltou a ficar difícil — respostas curtas, frases pela metade, longos silêncios; ele descobriu que era impossível desligar seus pensamentos da equipe da SWAT esperando sua volta para casa.
Quando chegaram à entrada de Nova York, Ashley perguntou mais uma vez:
Tem certeza de que está tudo bem, pai?
Tenho, sim. Estou bem. É só que a ligação de Lorrena me fez lembrar aquilo que ela passou na outra noite. Ela não parecia bem.
Mas, quando eles encontraram Kate no aeroporto e Sam se despediu, ele se viu abraçando seu filho com mais força e por mais tempo que de costume. E depois de se despedir no portão de embarque, seus olhos perduraram no vazio onde o filho estivera, como se aquela fosse a última vez que o veria.
Pois ele sabia que provavelmente era verdade.
Capítulo Quinze
— ... o que elimina mais 248.
Então qual é o total agora? — perguntou Adel.
Teclas digitadas por Cunningham.
Reduzimos para 834 possibilidades.
Adel coçou a testa. Com três critérios — jovem demais, velho demais, ou, segundo os arquivos, se não saiu do Líbano ou da Síria nos últimos dez anos — Cunningham vetara quase seiscentos nomes da lista de análise de voz do terrorista das mesquitas.
Deixe o último grupo aí — disse Adel, tendo uma idéia. — Há uma boa chance de que ele esteja usando um nome falso para isso, se é que ele chegou realmente a viajar para as áreas de operações, então o nome real dele não vai aparecer.
É verdade. — Cunningham respirou fundo. — Só podemos torcer para que alguma outra coisa surja para jogar uma luz no nome dele nessa lista.
Sim, vamos torcer. Me avise se pensar em mais alguma coisa para reduzir a lista.
Adel sabia que sua maior esperança era cruzar os arquivos de viagens das cidades que tiveram mesquitas atacadas com os nomes da lista; mas, com a possibilidade de nomes falsos, nenhuma combinação seria possível.
E, como Adel sabia muito bem, errar em 1 centímetro era tão grave quanto errar em milhares de quilômetros: eles tinham o nome e a aparência do rosto de Abu Khalish — mas, depois de quatro anos, ainda não estavam nem um pouco mais próximos de capturá-lo.
E, se as informações de Omari estavam corretas, Khalish certamente já tinha sua resposta aos terroristas das mesquitas: Não só não vou me entregar, mas estou planejando outra explosão.
Adel não conseguia pensar em nenhum outro motivo além de pura empáfia para que Khalish estivesse planejando outro atentado tão perto do último. O menor intervalo entre explosões até ali havia sido de nove semanas; o maior, de oito meses. Este ataque planejado a Londres aconteceria apenas 12 ou 13 dias após Milão.
Adel checou seu computador. Ainda não havia qualquer pico de atividade para Londres. Provavelmente era cedo demais; mas certamente aconteceria nas próximas 48 horas.
Robby Maschek chegou à sua casa pouco antes do crepúsculo e fazia mais de duas horas que estava sentado do lado de fora. Ele ligara para Sam Tynnan no meio da tarde para mantê-lo a par da situação.
Não tive muita sorte com o laptop dela, infelizmente. Só encontrei coisas corriqueiras, parece que todas as coisas importantes foram colocadas em dois links de arquivos on-line, ambos altamente criptografados. Mas eu finalmente consegui decodificar um e acessar.
Oh, certo. — O tom de Sam se elevou um pouco.
Eles já tinham apagado tudo. Quase como se soubessem que alguém podia aparecer para bisbilhotar, ou pelo menos não quiseram correr o risco. Eu posso continuar tentando acessar o outro, mas acho que terá o mesmo resultado.
Você achou o diário dela aí?
Sim, mas não vi nada inesperado. Muitos espaços em branco; então talvez sejam as horas em que ela estava fazendo coisas que não devia. Mas só podemos supor.
E as aulas de italiano?
Pensei nisso. Se eu entrar em contato com eles, há uma boa chance de que comentem com ela, e daí ela saberia de nós. E mesmo que descobríssemos que ela só tinha uma aula por semana, mesmo dizendo a você que tinha duas, nós já sabemos que ela não estava onde dizia estar de vez em quando. Porque você a viu com o pistoleiro árabe.
E os registros do celular dela?
Ouvindo o breve desespero na voz de Sam, Maschek pegou mais leve e ofereceu um pouco de esperança.
Bem, se você checar os números comigo, talvez encontremos alguma coisa.
Eles combinaram um horário para que Sam fosse ao escritório de Maschek no dia seguinte, mas Sam voltou a ligar apenas dez minutos depois.
Eu me esqueci de dizer: sobre as aulas de italiano, eu recebi uma ligação de Lorrena mais cedo, dizendo que tem uma hoje à noite. E na última vez em que ela disse que chegaria tarde, foi à casa do atirador em Albany. Talvez valha a pena investigar.
Maschek suspirou profundamente.
Escute, Sam, estou tão decepcionado quanto você por não termos encontrado nada até agora. Mas não sei o que... — Ele parou no meio da frase; de repente, ele de fato viu um motivo para ir até lá. Mesmo que ela não aparecesse, com uma lente teleobjetiva, ele poderia tirar uma boa foto do atirador e fazer uma busca nos arquivos da polícia. No entanto, já havia procurado Lorrena: nada. E, se não houvesse ninguém lá, ele se sentia tentado a fazer algo mais. Suspirou novamente. — Ok, talvez nos forneça algo útil. Especialmente se o atirador estiver num carro diferente, ou se um rosto novo aparecer. Onde posso encontrar você se tiver alguma informação que valha a pena passar?
Certamente, não em casa. Mas onde quer que eu esteja, você pode falar comigo pelo celular.
Maschek percebeu a indireta.
Por que não em casa, especificamente?
Sam explicou que talvez esta fosse a outra razão para Lorrena dar a desculpa da aula de italiano.
Eles podem ter decidido que está na hora de encerrar a operação e de Lorrena cair fora. Nesse caso, eu posso dar de cara com uma equipe da SWAT na minha porta.
Ah, nossa. Isso não é nada bom. — Maschek lembrou que para ele era apenas mais um caso, mas para Sam Tynnan era um jogo de vida ou morte. — Você quer que eu ligue para Vince e peça para mandar alguns caras para lá?
Não, tudo bem. Quando eles conseguirem chegar de Boston, já será mais de meia-noite. Eu só vou dar um pulo lá para pegar algumas coisas e depois vou passar a noite na casa do Mike. — Ele ligara para Mike uma hora antes para explicar tudo.
Tratava-se de uma viagem de cerca de três horas para Albany, então Maschek disse que era melhor pegar a estrada.
Eu ligo mais tarde para dar notícias.
Maschek olhou de novo para a casa: ainda nenhum sinal de vida. Ele verificou o relógio: 20h46. Estava começando a parecer que ninguém surgiria.
A rua estava quieta, a maioria dos moradores já tinha chegado do trabalho e se preparava para dormir. Ele esperou mais vinte minutos — ninguém ainda — e então se aproximou da casa. Não havia nada no laptop dela, mas talvez houvesse alguma coisa dentro da própria casa. Papéis, anotações, qualquer coisa. Se ele tivesse que passar dos limites e arrombar uma janela ou porta, ninguém ficaria sabendo.
Maschek deu a volta pela lateral da casa. A porta dos fundos parecia ter um ferrolho quando ele tentou abri-la, mas então percebeu uma janela acima com uma fresta aberta.
Abriu-a mais, tirou o arame do bolso e passou por dentro. Ele o encaixou no trinco da janela maior e puxou. O trinco cedeu. A janela não estava trancada.
Só ouviu o barulho quando já estava bem perto — seu coração de repente lhe saltou à boca. Mas era apenas um gato cinza que viera procurar comida. Lentamente, Maschek soltou a respiração.
Fechou os olhos por um segundo para se recompor, e então entrou pela janela.
Maschek se viu num pequeno quarto. Uma cama, uma mesinha de cabeceira e um armário. Ele abriu a gaveta da mesinha: vazia. O armário também, nenhuma roupa.
A porta do quarto se abria para um corredor vazio: nada de móveis, nem um espelho ou quadro na parede. Havia três portas.
A primeira era de outro quarto; mais uma vez, nada nas gavetas ou armários. A segunda dava para a sala: nenhuma TV nem aparelho de som, e nada na duas estantes. Ele abriu as gavetas das estantes: todas vazias. Maschek se dirigiu à cozinha só para ter certeza: geladeira vazia, todos os armários limpos. Ele também apostava que tinham esfregado cada superfície para apagar digitais.
Sam estava certo. Aparentemente eles estavam fechando a operação, caindo fora. O que queria dizer que ele provavelmente também tinha razão sobre a equipe da SWAT esperando por ele. Maschek pegou o celular e discou o número de Sam.
Adel checou o computador logo após o almoço. Ainda nenhum aumento de atividade em Londres. Ele tornou a examinar as flutuações de cada hora do dia: um aumento de quatro por cento no fim da manhã, mas agora já havia caído dois pontos de volta. Nada digno de nota.
Originalmente, o grosso daquela lista de "atividade" e "colóquios" era composto de não mais que 14 mil nomes ao redor do mundo. Terroristas confirmados, seus contatos e afiliados, negociantes de armas, ativistas e radicais. Cada telefone ou link de internet ligado a eles era monitorado. E a cada ano, a lista aumentava: imames extremistas, aqueles que eram fotografados em suas congregações regulares, mais fotos e nomes coletados nos protestos de "morte ao ocidente", sites islâmicos radicais, blogueiros e membros de fóruns virulentos com ideologia anti-ocidente.
Contudo, de longe a maior expansão tinha sido dos vários contatos daqueles nomes confirmados; duas ou três ligações para a mesma pessoa que não era um parente e o nome era acrescentado à lista. Algumas vezes, seus contatos também. Agora a lista tinha mais de 100 mil nomes. Além disso, palavras-chave aleatórias podiam soar um alerta nas bilhões de conversas monitoradas por Echelon, quer fossem parte da lista ou não. No entanto, em geral eles partiam do princípio de que a maior parte das conversas seria codificada e disfarçada para parecer inocente.
Se havia "colóquios" em um ou mais lugares, uma necessidade maior que o normal de comunicações entre aqueles nomes, isso invariavelmente queria dizer que algo estava acontecendo lá fora.
A linha de Adel tocou, e ele percebeu que um colega estava acenando do outro lado da sala, com o telefone na mão. Ele atendeu.
Ghali, do TAME Cairo, na linha. Outra ligação sobre o atentado em Alexandria.
Ok, obrigado.
Adel tomou nota enquanto Ghali passava os detalhes. Ele conversou com um professor da Universidade do Cairo, Amir Muhaimin, que tinha sido contatado no ano anterior por um escritor inglês, Sam Tynnan. Era uma pesquisa para um romance.
... Muhaimin aparentemente não achou nada de mais naquilo até o atentado em Alexandria no outro dia. Veja bem, entre uma série de atentados a mesquitas planejados no livro desse escritor inglês, ele lembra que um deles era no Egito.
Alexandria?
Infelizmente, ele não lembra com exatidão, pois já faz mais de um ano. Mas ainda tinha as informações de contato do tal escritor... Se você achar que vale a pena investigar.
Ok. — Adel anotou os dados. — Obrigado, Ghali. Vamos dar uma olhada.
Pensativo, Adel tamborilou os dedos no bloco de notas depois de desligar. Já haviam recebido 14 ligações sobre os atentados num dia. Metade não levara a lugar algum, a outra metade era tão insana que nem valia a pena investigar. Esta provavelmente não seria diferente.
Sam teve que encostar o carro no acostamento no meio da ligação de Londres. Ele ficou parado vários minutos depois, tentando em vão colocar sua vida em foco novamente. A ligação continuou a dominar sua mente no resto do caminho de volta a Oneida.
O que estava acontecendo afinal? Uma continuação do interrogatório de Lorrena naquela manhã? Arrumaram alguém vagamente parecido com um dos personagens de A profecia para atacá-lo por outro ângulo, para ver se ele daria uma resposta diferente?
Professor Muhaimin? Sam se lembrava vagamente dele. A teoria de Mike era que Washington e sua equipe tinham descoberto A profecia através de um de seus contatos de pesquisa inicial. Será que havia sido Muhaimin? Provavelmente não. Eles não usariam o nome do contato, teriam usado outro para disfarçar.
Mas como eles sabiam quem mais Sam tinha contatado para a pesquisa? Houve um bom número de encaminhamentos a outras pessoas, segundo ele recordava. E ele também mencionara certos nomes aleatórios ao longo do processo. "Seu colega na Universidade Sultan Qaboos, o professor Asimah, tem uma visão ligeiramente diferente do assunto..." Ou a explicação mais simples de todas: Lorrena tinha visto as anotações no computador dele ou a equipe de ataque árabe as copiara ao mesmo tempo em que apagava A profecia do computador.
Quem sabe escolher alguém parecido com um dos personagens de A profecia fosse apenas uma manobra para desnorteá-lo? Para apagar ainda mais o limite entre realidade e ficção: os atentados a mesquitas na vida real espelhando os do livro, e agora os personagens também?
No fim, ele optou pela precaução e seguiu a mesma linha que usara com Lorrena.
No seu livro, onde era o atentado do Egito?
Não lembro agora. Eu tinha Cairo, Quena e Alexandria em minhas notas; não lembro qual delas usei no fim das contas.
E em que ponto da sua seqüência ocorria o atentado à mesquita do Egito?
Mais uma vez, não tenho certeza; mas acho que foi o terceiro, quarto ou quinto — Se isso fosse uma pergunta real do professor Muhaimin, então nas suas anotações originais Alexandria era a terceira explosão e Islamabad, a segunda; ele só trocara a ordem das duas mais tarde.
Toda hora você diz "não lembro ou não tenho certeza" ou "nas minhas anotações". Não dá para apenas checar o manuscrito?
Infelizmente o projeto foi descartado no final. — Esta era a única coisa que ele tinha certeza de que não podia divulgar: Washington deixara bem claro logo no início que ele não devia contar a ninguém sobre o ataque e o roubo do manuscrito. Isso abriria muitas outras perguntas desconfortáveis. — Já faz mais de um ano, e estou trabalhando em outro projeto agora.
E nesse seu projeto agora "descartado", se me permite perguntar: qual era o objetivo desses atentados a mesquitas?
A pergunta-chave. Mas ele deveria contar a verdade ou enrolar? Washington também dissera que Sam devia tomar cuidado ao decidir com quem partilharia a trama central do livro. "Sem dúvida, antes de mais nada, foi por isso que eles vieram até você." Era disso que esta conversa tratava? Um teste para ver se ele estava andando na linha ou não?
Opção dois: enrolar.
Era simplesmente um agravamento do conflito entre sunitas e xiitas, que o ocidente esperava usar a seu favor. Mas nunca chegou ao ponto de estar claramente definido. O projeto foi descartado em parte por isso.
Foi então pedido que ele desse mais detalhes, inclusive sua lembrança dos outros atentados a mesquitas na seqüência, e então as perguntas pararam.
Obrigado por sua colaboração.
Mas Sam ficou abalado após a breve conversa. Será que ele tinha ido bem ou acabava de assinar a própria sentença de morte?
Suas mãos apertavam o volante com força quando ele chegou à periferia de Oneida, os olhos mirando o retrovisor o tempo todo. Será que era arriscado demais passar em casa para buscar algumas coisas antes de ir à casa de Mike? Não, ele sabia que ainda dava tempo. A quatro quarteirões de casa, Sam diminuiu a velocidade e checou cada lado da rua, procurando por vans estacionadas. A um quarteirão de distância, ele estava quase parando, e então a 80 metros de sua porta, estacionou.
Não havia vans à vista, a entrada da garagem estava vazia e havia só três carros estacionados na rua, o mais próximo a quatro casas de distância. Ele parou um instante para associar mentalmente cada carro com um vizinho ou suas visitas, e então seguiu em frente. Ele examinou em detalhes o carro mais próximo de sua casa, um Pontiac Grand Prix prata, quando passou — estava vazio.
Sam parou por um momento antes de entrar na garagem, observando os 80 metros seguintes: mais dois carros, porém também pareciam vazios.
Dali em diante, foi uma correria desesperada. Chave na porta, quatro passos e ele já estava no topo da escada. Sam pegou alguns itens de higiene, algumas cuecas e roupas e jogou tudo numa sacola esportiva.
No meio da sua descida desenfreada pelas escadas, o celular tocou. Ele verificou a tela e viu que era Robby Maschek.
Onde você está, Sam?
Em casa, por quê?
Porque eu estava prestes a dizer: não vá para casa.
Maschek parecia um pouco ofegante, como se andasse às pressas. Ele prosseguiu sem pausa.
Fui até a casa em Albany e ela foi esvaziada do teto ao chão. Nada de TV, roupas, comida. Nada. Então acho que você está certo. Ele estão encerrando a operação, caindo fora.
Sam sentiu um vazio no estômago.
Não se preocupe. Só vou ficar aqui mais dois minutos para pegar umas coisas, já estou saindo. — Ele seguiu em frente e pegou seu caderno e sua agenda de endereços na escrivaninha.
Sábia decisão.
É. A gente se fala quando eu chegar à casa de Mike.
Mas, a três passos de sua mesa, na metade do caminho para a porta da frente, ele os viu: uma sombra de movimento através da janela da frente — uniformes e capacetes negros —, porém foi o suficiente.
Apesar de suas precauções, eles o viram chegando e entraram. Era tarde demais.
Capítulo Dezesseis
Lorrena recebeu a ligação um pouco antes da hora do almoço no centro médico.
Aqui é o Sr. Willerby. Tenho uma consulta com o Dr. Savanson às 15h30.
Desculpe, mas não tem nenhum Dr. Savanson aqui.
Ah. Estou vendo aqui no meu cartão de agendamento que é no Centro Médico High Cedars. Desculpe pelo incômodo.
Tudo bem. Não tem problema.
A mensagem era igual toda vez, e sempre pouco antes do almoço.
Quando Lorrena saiu para o almoço dez minutos depois, ela ligou de volta para Washington.
Tem notícias?
Ela desconfiava que era sobre os links em seu laptop. Vinte minutos antes da chegada de Sam à delegacia, ela inventara que precisava de um cigarro — ela não fumava — e então ligou para Washington de um telefone público nas redondezas para avisar que seu laptop tinha sido roubado.
Apagamos tudo dos dois links imediatamente; mas alguém acessou um deles hoje de manhã. Nada no outro ainda.
Um acidente ou você acha que alguém está espionando?
Difícil dizer. Poderia ser inocente. Mas isso quer dizer que temos que tomar precauções extras. Nós deveríamos nos encontrar.
Lorrena percebeu que Washington não queria entrar em detalhes pelo telefone. Eles combinaram um encontro numa lanchonete a cerca de 7 quilômetros de Rochester. Washington não quis correr o risco de ir a um lugar onde pudessem ser vistos por alguém que a conhecia.
Ela telefonou imediatamente para Sam dizendo que tinha uma aula de italiano à noite e saiu para Rochester direto do trabalho.
Lorrena observava Washington pegando os cafés no balcão. Ela pedira um café com leite duplo. Depois de uma viagem de duas horas e um longo dia de trabalho, precisava de um estímulo extra.
Lorrena olhou em volta — o lugar começava a se encher de clientes para o jantar. Washington vestia uma jaqueta marrom sobre um suéter cinza. Casual, incolor, mesclado ao ambiente — ninguém no restaurante se lembraria dele, e era como ele gostava.
Mesmo ela, que era parte da equipe, sabia pouco sobre ele. Tudo que sabia era que Washington era veterano da primeira Guerra do Golfo, e que depois passara dois anos no Departamento de Segurança antes de montar esta unidade. Mas ainda assim havia vários anos obscuros entre os dois períodos, e boatos diziam que Washington comandara várias operações secretas para o exército e para a CIA, a maioria no exterior. Mas não passava disso: rumores. Ninguém sabia com certeza; mais uma vez, era como ele gostava.
Eles escolheram uma mesa num canto afastado, sem outras ocupadas ao redor: ou seja, ninguém em seu campo de audição. Mas então um grupo de três pessoas entrou e pegou a mesa bem atrás deles.
Lorrena percebeu que Washington os viu do balcão e se inclinou para dizer alguma coisa à moça que estava preparando seus cafés. Ela colocou os dois em copos de isopor e Washington pagou por eles.
Não tão privado quanto antes — explicou Washington quando trouxe os cafés. Ele indicou a janela frontal com a cabeça e disse: — Seu carro está aí na frente? Talvez seja melhor sentarmos lá.
Estava frio do lado de fora e o para-brisa de Lorrena estava embaçado. Ela ligou o motor e o aquecedor, tomando um gole do café para se aquecer rápido.
A primeira coisa que precisamos descobrir — disse Washington, respirando lentamente — é se ele sabe sobre você ou não. Aquele assalto foi certamente muito suspeito.
Eu sei, — Lorrena deu de ombros. — Talvez eles simplesmente não quisessem me assaltar ali, tão perto do salão e das outras lojas. Mas você também acha isso por causa do acesso ao link?
Não. — Washington meneou a cabeça. — Isso pode ter sido casual. Eles foram formulados para parecerem inofensivos, como faturas de banco on-line ou algo assim. Um ladrão poderia facilmente achar que havia fundos ali para acessar e surrupiar. Quando percebe que um deles não é de banco e que está fechado de qualquer maneira, ele nem se dá ao trabalho de abrir o outro. — Washington bebeu um gole de café e ergueu uma sobrancelha. — E como está o comportamento dele no dia a dia com você? Algum sinal de que sabe de alguma coisa a seu respeito?
Não, nada. Exceto se ele for um excelente ator. — Lorrena ergueu uma das mãos. — Além disso, por que agora? Se fosse para ele suspeitar de meu envolvimento, não deveria ter sido um mês ou dois depois do ataque? Não seis meses depois.
Você se lembra de algo que possa ter causado a mudança?
Não, nada.
Os dois ficaram em silêncio por um momento. Pensando no assunto, bebendo seus cafés e aquecendo as mãos nos copos.
O para-brisa estava quase limpo agora. Na lateral do estacionamento da lanchonete, Lorrena viu o Chevy Tahoe de Washington. Ohio aguardava atrás do volante, mais ninguém no carro.
Washington sempre preferiu encontros de apenas duas pessoas, sem mais ninguém ouvindo. Diminui as chances de que as informações sejam passadas adiante; essa era a teoria dele.
Você o testou sobre os atentados nas mesquitas?
Sim, finalmente. Tive que esperar um espaço de um ou dois dias depois do assalto. Ele podia achar estranho que eu tivesse a presença de espírito de fazer essa pergunta logo depois do que aconteceu comigo.
E como ele reagiu?
Disse que a explosão na Turquia provavelmente foi só coincidência e que, de qualquer maneira, já não se lembrava mais da seqüência; disse que apagou tudo aquilo da memória para se dedicar ao novo livro. Só se lembra do local do primeiro atentado e do último, Medina. O resto virou um borrão.
Washington ergueu outra sobrancelha.
E você acredita nele?
Lorrena pensou no assunto, depois assentiu.
Sim, acredito, na verdade. Como eu disse, já faz seis meses. E todo mundo, inclusive eu, passou esse tempo pressionando para que ele esquecesse tudo.
Washington fixou os olhos nos dela por um momento antes de voltar a olhar para a frente, exalando uma lenta nuvem de vapor. Ele aceitou?
Na verdade, ela não tinha certeza de nada. Será que Sam realmente havia desistido ou ele achava que era mais que apenas coincidência? Ela queria seguir em frente para ter certeza. Principalmente porque, uma vez que Washington tivesse dúvidas demais, ele acabaria com a operação. E, quando o fizesse, uma equipe seria enviada para eliminar Sam Tynnan. Encerrar o último capítulo.
A única coisa que ela jamais poderia admitir é que tinha desenvolvido sentimentos por Sam Tynnan, sentimentos intensos. Assim, queria adiar o inevitável o quanto fosse possível, desesperadamente torcendo para que, uma vez que a operação terminasse, aquela execução não fosse mais necessária.
É o primeiro aviso que eles dão; nunca se apaixone pelo alvo. Mas também não dizem exatamente como fazer isso. Não há qualquer dica nos manuais sobre a questão. E, se ela tivesse admitido seus sentimentos logo quando teve certeza deles, cerca de oito ou nove meses antes, Washington provavelmente teria acabado com a operação naquela época.
E a exigência do homem-bomba de que Abu Khalish se entregue? — perguntou Washington.
Ele nunca tocou no assunto. E, claro, eu não podia perguntar. — Lorrena deu de ombros, e por um segundo tudo pareceu embaçado. Ela piscou os olhos para tentar focar em Washington novamente. — Para ser sincera, o filho dele veio da Califórnia na mesma época, e eles passaram o tempo todo juntos desde então. Por isso, nem sei se ele viu essa notícia.
Washington fez que sim lentamente, apertando os lábios ao voltar os olhos para ela.
Acho que você tem razão. Não creio que haja motivo para preocupações.
Mais uma vez a imagem dele se turvou, e Lorrena se sentia quase nauseada ao vê-lo balançar a cabeça. Agora ela viu que a mão dele se projetava em sua direção, segurando seu ombro — e no entanto ela não conseguia sentir o toque!
Você está certa... você está certa — disse ele. — Está tudo bem.
Um mantra reconfortante. Washington a observava fixamente, tentando deduzir quando ela estaria totalmente sedada.
Uma vaga e pegajosa sensação de calor começou a se espalhar por seus músculos e articulações, tornando cada membro entorpecido, pesado.
E então ela entendeu: Washington pedindo cafés para viagem e sugerindo que se sentassem do lado de fora. Ele misturou algo ao café dela no caminho; a decisão já estava tomada antes da conversa.
Ela ordenou que seu braço alcançasse a maçaneta da porta, mas ele se recusou a se mexer, parecendo pesar uma tonelada.
E quando aquele peso torpe chegou às suas pálpebras, tornando impossível o ato de mantê-las abertas, a última coisa que viu foi Ohio saindo do carro de Washington e vindo em sua direção.
Lorrena teve apenas mais alguns momentos de lucidez.
Em algum ponto, ela se lembrava de ter acordado e visto Washington dirigindo seu carro. Ela estava no banco do passageiro.
No momento seguinte, ela estava de volta ao banco do motorista e Ohio parecia estranhamente espremido a seu lado no mesmo assento; por um segundo, ela teve dificuldade de explicar a si mesma o que estava acontecendo.
Depois ela notou a represa cerca de 100 metros à frente e a vasta expansão de água escura logo abaixo, e sentiu o cheiro de álcool em suas roupas — conhaque ou grapa — e compreendeu o que pretendiam fazer.
E ela pensou: se estão fazendo isso comigo agora, devem estar mandando uma equipe à casa de Sam ao mesmo tempo. Ela fechou os olhos quando uma lágrima lenta rolou por seu rosto.
— Me desculpe, Sam — murmurou ela, afogada pelo rosnado do motor. — Me perdoe.
O barulho foi ficando mais alto a cada rotação e finalmente Ohio soltou o freio de mão, e o carro arrancou.
Ohio segurava o volante com apenas uma das mãos, a outra segurando a porta do carro, mantendo-a aberta alguns centímetros através da janela.
O impacto do vento pela janela aberta fez com que ela sentisse ainda mais a aceleração, uma rajada gelada que ardia em seu rosto. O formigamento chegou à sua nuca pela rapidez do carro, um lembrete de que seus sentidos estavam voltando; embora não soubesse se os queria de volta agora ou não. A escuridão cálida, bem-vinda, seria preferível nesse momento.
Ela notou que podia mexer o braço novamente, mas mover seu corpo era impossível com Ohio sentado sobre ela.
A 4 metros da represa, Ohio deu um salto perfeito, abrindo a porta e rolando para fora.
Quando o carro bateu na barreira, Lorrena sentiu o cinto de segurança cortar sua pele e algo se chocou violentamente contra sua canela esquerda. Um momento suspenso enquanto a água negra do lago se elevava pelo para-brisas do carro antes de arrebentá-lo — cacos minúsculos como flocos de neve atingiram seu rosto numa erupção de água e espuma. E depois, escuridão.
Washington e Ohio esperaram à beira do lago por alguns minutos, examinando a superfície negra sob uma fraca meia-lua, procurando sinais de movimento. Nada. Eles então se viraram e partiram.
Capítulo Dezessete
Uma leve névoa se erguia das águas.
Mas, de onde estava, Fahim Omari não podia ver a área da piscina, sentado em sua pequena sauna a vapor; copiosas nuvens de vapor quente obscureciam tudo após poucos metros.
Quando o calor ficou excessivo, ele se mudou para a piscina, fechando os olhos ao afundar totalmente na água. Parecia fria em contraste, embora a água fosse constantemente mantida entre 26° e 27°C.
Inspirado por um hammam do Cairo em que costumava ir com seu pai, aquele era o cômodo preferido de Omari na casa. Três arcos percorriam os 6 metros da extensão da piscina, com pilares e paredes cobertos por mosaicos coloridos até meio metro acima da linha dagua e continuando pela piscina adentro.
A única coisa que faltava do original era a luz e o aspecto, já que ficava num porão. Assim, quando Omari ouviu falar de um artista andaluz que pintava murais incrivelmente realistas, pagou para que ele pegasse um vôo e pintasse uma das paredes: um pátio do Palácio de Alhambra com a Sierra Nevada ao fundo. Bem iluminado, o mural irradiava luz do sol e tinha camadas em três dimensões, de forma que a piscina parecia se incorporar ao pátio e à vista além dele.
Omari abriu os olhos ao ouvir movimento.
Trouxe toalhas e um roupão — disse Akram, depositando as toalhas ao lado da piscina e o roupão num gancho dourado numa das pilastras. — O chá estará pronto em vinte minutos.
Omari assentiu e sorriu. Se Akram não marcasse a hora do chá, ele tinha certeza de que ficaria lá metade do dia.
E qual será o sabor da shisha hoje?
Ameixa e canela. — Era um dos preferidos de Omari.
Ele assentiu novamente quando Akram saiu. Eles se conheciam perfeitamente bem, como um pé e um sapato velho.
Omari achava que a vida era feita de eventos cruciais de transição — eventos após os quais a vida nunca mais seria a mesma — e um de seus primeiros eventos fora com Akram.
Akram era um mendigo de 12 anos nas ruas do Cairo quando conheceu a família Omari. Ele costumava recolher papelão das obras da família para vender, e eventualmente eles permitiam que ele levasse também a madeira dos tapumes.
Nas noites de janeiro e fevereiro, a temperatura costumava cair abruptamente, então deixavam Akram passar a noite no galpão anexo à sua casa no Cairo. Eles lhe ensinaram que, se dormisse próximo aos sacos de cimento, ele se beneficiaria do calor emitido por eles.
Após algum tempo, Omari sugeriu ao pai que deixassem Akram dormir dentro da casa, que não era seguro deixá-lo no galpão. Mas tudo que conseguiu do pai foi um sermão sobre manter os respectivos níveis. "Ele é um mendigo da rua, Fahim. Quem sabe o que ele roubaria da casa se lhe déssemos entrada?"
Certa noite, ladrões invadiram o galpão. Os gritos foram a primeira coisa a acordar Omari e, quando olhou para o pátio, viu as chamas e o corpo inerte de Akram no chão, seu thobe ainda em chamas. Omari correu o mais rápido como jamais fizera na vida, disparando até o pátio e abafando as chamas com sacos vazios de cimento que estavam por perto. Os ladrões tinham acendido uma pequena lamparina a óleo para enxergar dentro do galpão escuro; quando Akram acordou, eles se assustaram e atiraram a lamparina contra ele.
Com 16 anos na época, Omari passou as semanas e os meses seguintes trocando os curativos de Akram e cuidando de suas queimaduras, e assim a pedra fundamental de sua longa amizade foi cimentada.
Quando Akram se recuperou, ele permaneceu na casa e se tornou criado do pai de Omari; três anos depois, quando o pai de Omari morreu — o segundo evento-chave de transição em sua vida —, eles foram juntos para Londres.
Os outros eventos-chave foram o nascimento do filho de Omari, Nasib; sua morte 19 anos depois, de uma overdose de drogas; e a morte do sobrinho de Omari, Layth.
Omari prometera ao irmão no leito de morte que cuidaria do menino; contudo, menos de uma década após a promessa, Layth também estava morto.
Estranho que ele tenha vertido mais lágrimas pela morte do sobrinho do que pelo próprio filho. Talvez por causa da promessa; talvez porque ele assistira à constante derrocada de Nasib com as drogas e assim via aquela última overdose como tristemente inevitável, como um lento acidente de trem. Já com Layth, um dia ele estava lá, feliz, cheio de vida e de espírito — a única luz que restava em sua vida após a morte de Nasib —, e no dia seguinte ele estava morto num trágico acidente.
Omari nunca imaginara que um homem podia chorar tanto; e Akram chorara também ao oferecer consolo e conforto. Akram também se tornara próximo de Layth graças aos anos passados em sua casa de Londres.
O divórcio entre Omari e sua esposa Jannah, 12 anos antes, não foi um evento de transição; apenas outro desastre de trem lento e inevitável, e quase uma libertação bem-vinda quando o decreto se oficializou. Akram disse que também ficou feliz em vê-la pelas costas; mas, diplomático como sempre, ou talvez temeroso de que Omari ainda tivesse sentimentos por ela, demorou quatro anos para admitir.
Mas Omari sentia que algo estava perturbando Akram ultimamente. Ele sabia que Akram não aprovava uma de suas companhias femininas mais recentes; talvez fosse só isso. Ou talvez Akram tivesse encontrado uma companhia feminina para si mesmo — e já não era sem tempo. Neste caso, ele não desejaria falar sobre o assunto, nem valia a pena bisbilhotar.
Omari nadou até a borda e saiu, enxugando-se com a toalha. Não, deixe as coisas como estão, concluiu, e sem dúvida o velho Akram, sempre sorridente e confiável, voltaria. Era só uma questão de tempo.
— Eu acho que você devia ligar. Mesmo que seja só para tirar isso da cabeça.
Jean-Pierre concordou, pensativo, com a atraente morena sentada à sua frente. Ele viu Corinne pela primeira vez nos fundos da sala numa de suas palestras noturnas sobre Nostradamus. Depois ela o abordara com algumas perguntas.
Eles mantiveram contato regular desde então e trocavam anotações sobre aquele interesse em comum. Em algum momento, Corinne se tornara um contato firme e amiga suficiente para que Jean-Pierre se sentisse à vontade para lhe fazer confidências. Então percebeu que talvez fosse porque não tinha mais ninguém em quem pudesse confiar, e o quanto era solitário. Então lhe veio o pensamento de que ela talvez fosse solitária também, e que continuava a encontrá-lo não apenas pelo interesse em comum, mas porque pudesse estar buscando algo além da mera amizade.
Mas ele nunca teve a ousadia de testar essa hipótese, desesperadamente temeroso de estar errado e de que isso significasse o fim da amizade, deixando-o mais uma vez sem ninguém com quem dividir seus pensamentos íntimos, suas confidências.
De duas mesquitas, uma é igual; poderia facilmente ser uma coincidência. — Corinne deu de ombros. — Claro, pode esperar pela terceira explosão; se houver uma terceira. Mas, se enquanto isso você ficar assim tão perturbado, é melhor ligar.
Sim, acho que você tem razão. — Como sempre, aquela inestimável voz da razão, do equilíbrio, qualidades que muitas vezes faltavam a ele. Quando Jean-Pierre estava só, os problemas giravam em sua cabeça eternamente; ele jamais conseguia dar aquele passo final numa direção ou na oposta. Era a isso que se resumia sua relação com Corinne, na verdade. — Mas meu receio vem também do fato de que agora mencionaram Abu Khalish.
O que o escritor lhe falou sobre isso?
Esse é o problema: não muito. Só que os atentados nas mesquitas eram relacionados a Khalish, mas ele não deu detalhes de como.
Um terrorista notório aparecendo num livro sobre terrorismo: não é tão incomum. — Corinne deu de ombros. — Mas você nunca vai ter certeza se não perguntar, não é?
Suponho que não. Mas e se tudo não passar de um trote elaborado, e, ao me envolver, eu terminar manchando meu nome?
Como assim? Como as quadras do 11 de Setembro?
Exatamente.
Alguns dias após o 11 de Setembro, quadras falsas atribuídas a Michel de Nostredame apareceram na internet e milhões foram enganados por elas.
Corinne se distraiu por um segundo quando as entradas chegaram à mesa, e então se concentrou novamente.
Você sabia imediatamente que as quadras eram falsas e na verdade foi um dos primeiros a vir a público para desmenti-las.
Eu sei. Mas até hoje milhões de pessoas ainda acreditam que são reais; então de que adiantou desmentir, no fim das contas?
Corinne fez um gesto de desprezo.
Certas pessoas acreditam no que querem, Jean-Pierre, não importando o resto. Mas você fez a sua parte, distanciando-se disso tudo. E, se essa história começar a ficar suspeita, tenho certeza de que fará o mesmo. Ou, como você disse, pode ser tudo uma coincidência. — Ela esticou o braço sobre a mesa e tocou o braço dele de leve. — Mas estou vendo que vai continuar remoendo isso. Então ligue.
Eu... eu vou ligar.
Mas tudo que ele conseguia pensar naquele exato momento era no toque em seu braço e no que podia significar, sua cabeça subitamente indiferente a todo o resto.
E o toque ainda estava em sua mente quando ele voltou ao escritório e Madame Pelletret disse que anotara três mensagens de telefone para ele.
Duas eram ligações esperadas, nada de importante, mas a terceira era de um Claude Vrellait, um vendedor de livros antigos de Montpellier, que o intrigou. Ele não conhecia o homem.
Ele deixou algum recado ou um número de contato? — perguntou Jean-Pierre.
Infelizmente não. Simplesmente perguntou a que horas você estaria de volta e disse que ligaria mais tarde. — Madame Pelletret passou as outras mensagens para ele.
Jean-Pierre levou um segundo para desligar seus pensamentos de Corinne e aquele toque.
Entendo... obrigado.
Faça a ligação.
Contudo, quando chegou ao topo das escadas, ele ouviu o telefone tocando e, segundos depois, Madame Pelletret o chamou na linha do escritório.
É Monsieur Vrellait novamente.
Jean-Pierre atendeu e Vrellait disse que conseguira seu nome com um colega, Bernard Lafin.
É a respeito de uma possível verificação de escritos de Nostradamus.
Sim, eu me lembro de ter falado com Monsieur Lafin. — Mas Jean-Pierre teve que pensar por um segundo; provavelmente já fazia quase dois anos.
Em particular, qualquer nota adicional às quadras que possa surgir no mercado?
Bem, sim. Qualquer documento novo que surja é, claro, de grande interesse para especialistas como eu.
Quando Vrellait explicou o que achava que tinha em mãos e do que precisava, Jean-Pierre ficou em silêncio. Vrellait terminou.
Se não for exatamente do seu interesse, eu entendo perfeitamente. — Ele fez uma pausa. — Posso procurar um dos outros nomes da minha lista.
Não, não. Eu estou interessado. Muito interessado. Fui pego de surpresa, só isso.
Surpresa era um eufemismo; se os documentos de Vrellait fossem autênticos, seria uma descoberta de importância inigualável. Mas ele não queria criar expectativas tão cedo, nem para Vrellait nem para si.
Vrellait deu mais detalhes e eles finalizaram um acordo. Ele iria até a loja em Montpellier na tarde do dia seguinte.
Sem dúvida, você entende a minha cautela em deixar os escritos nas mãos de outra pessoa — comentou Vrellait. —- Até mesmo cópias.
Claro, eu compreendo. Estou ansioso para vê-los.
Após desligar o telefone, Jean-Pierre não sabia se continuava sentado ali em seu silêncio chocado ou se pulava de alegria com a ligação e seu conteúdo quase surreal. Ele não conseguiu se concentrar totalmente nos outros trabalhos e só se lembrou de ligar para Sam Tynnan quarenta minutos depois; ninguém atendeu.
Jean-Pierre tamborilou um dedo sobre a mesa distraidamente ao desligar. De qualquer modo, ele não estava mais tão preocupado com as mesquitas. De repente, tinha peixes maiores em sua rede.
Capítulo Dezoito
— Onde você disse que o carro dela caiu? — perguntou Mike.
Lago Ontario. Treze quilômetros a nordeste de Rochester.
Mas não encontraram o corpo?
Não, ainda não. Ela sumiu, Mike... sumiu! Eu repassei isso com a polícia uma dúzia de vezes mais cedo. A porta do carro aparentemente abriu no impacto e a correnteza é forte por lá. Pode ser que achem o corpo dela 15 ou 20 quilômetros rio abaixo em alguns dias, ou pode ser que não.
Mike assentiu lentamente.
E você disse que eles têm certeza de que ela, ou outra pessoa, estava no carro quando ele caiu?
Sim. Cem por cento de certeza. Eles acharam sangue em alguns fragmentos do para-brisa, e cabelos presos numa junta do cinto de segurança.
Mais cedo, quando as duas figuras se aproximaram da casa, Sam recuara até os fundos da sala, mas teve a sensação de que já tinha sido visto pela janela da frente. Eles então fizeram uma coisa estranha: tocaram a campainha. Uma equipe da SWAT não faria isso, considerou Sam. Eles apenas invadiriam pela frente e pelos fundos ao mesmo tempo, como da outra vez. Foi aí que se aproximou da janela da frente, olhou para fora e viu o carro de polícia. Uma patrulha. Ele abriu a porta.
Quarenta minutos e dois cafés depois, ele soube a história toda.
Mais que perturbado ou emocionado, Sam se sentia entorpecido; talvez isso mudasse mais tarde. Contudo, não conseguiu dizer a eles: Ela era uma espiã plantada aqui, por isso não sei bem como me sentir ainda.
Um acidente era a principal teoria, suicídio uma possibilidade mais remota.
A Srta. Presutti deixou um bilhete ou algo do tipo?
Não. Não deixou. — Mais remota ainda, considerando a reação dos policiais.
E vimos nos arquivos que ela foi vítima de um assalto há apenas alguns dias. Você acha que pode haver alguma conexão entre as duas coisas? Ela ficou abalada com o evento?
Claro, ela ficou nervosa — admitiu Sam. — Mas não a ponto de tirar a própria vida.
As perguntas foram acabando e eles saíram logo depois.
Mas agora, convencido de que Washington estava envolvido, Sam voltava a pensar na conexão com o assalto.
Se não tivéssemos inventado aquela fachada de pegar o laptop e o celular, isso nunca teria acontecido! — Sam balançou o copo de uísque escocês, fitando a bebida com o olhar perdido. — Washington ficou com medo de que Lorrena tivesse sido descoberta, então ela precisou ser eliminada. Seria a mesma coisa que ter mandado logo a sentença de morte dela assinada para ele!
Não se martirize, Sam. Você não tem certeza disso.
Sam encarou os olhos de Mike.
Você consegue pensar em alguma outra explicação provável, considerando o momento?
Mike fechou os olhos por um segundo, resignado.
Ok. Talvez essa seja a explicação mais provável. Mas de que adianta você enlouquecer se não sabe ao certo? Além do mais, qual era a opção? Ficar sentado esperando enquanto Lorrena passava relatórios a seu respeito? Esperando o momento em que ela decidiria que Washington deveria eliminar você? Era uma questão de sobrevivência, Sam, e sabe disso. Ainda é. — Mike colocou o copo de uísque de lado. — E é por isso que estamos aqui e não na sua casa.
Sam passou os olhos pela sala: alguns salmões premiados empalhados, uma truta arco-íris, varas de pesca cruzadas e redes e, além da janela da cabana, uma pequena varanda com vista para o lago onde os peixes foram pescados. Não era seguro ficar em sua própria casa, e já passava da meia-noite quando Sam chegou à casa de Mike; a mulher e os filhos já estavam na cama. Mike sentiu que seria uma longa noite, e então pegou a garrafa de uísque do armário antes de sair. "Você vai precisar de um lugar para ficar por um tempo — então melhor agora que depois."
Eles foram para o "retiro de escritor" de Mike — uma cabana à beira do lago cerca de 20 quilômetros ao norte. Poucas pessoas sabiam de sua existência e nessa época do ano — um mês antes da temporada de pesca de verão — ela estava tranqüila.
Você está certo — disse Sam, com um suspiro derrotado. — É só que tudo pareceu desmoronar sobre mim ao mesmo tempo. — Ele contou a Mike sobre as ligações que recebeu de Salon e Londres. — A primeira veio da França, eu reconheci o número então não atendi. Mas do outro eu nunca tinha ouvido falar, então eu o enrolei, inventei umas mentiras.
Deixe-me ver se entendi. O cara da França é um contato real de pesquisa do passado. Mas o cara de Londres é simplesmente alguém que parece baseado num personagem de A profecia?
Sim, é isso. — Percebendo como soava frívolo, Sam acrescentou: — É como se alguém já soubesse que Lorrena não estaria mais por perto para me vigiar; então inventaram mais alguém para me fazer perguntas.
Mike deu de ombros.
De novo, Sam, você não tem certeza disso. E se esse cara for real, então, mentindo para ele, você fez exatamente o oposto do que devia ter feito.
Sim. — Sam abriu um sorriso amarelo. — Estamos finalmente chegando ao ponto: a equipe de extermínio árabe não era o que parecia, e depois minha namorada. Em seguida, eventos reais no mundo espelhando os do meu manuscrito; e agora um personagem também. E eu não sei mais onde fica o limite entre realidade e ficção. Então, quando alguém de fato aparece, não surpreende que eu não saiba o que dizer para ele, se devo dizer a verdade ou simplesmente servir-lhe mais mentiras.
Mike não sabia mais se o uísque tinha sido uma boa idéia — naquele momento, mais que em qualquer outro, eles precisavam de clareza. Porém, de uma maneira estranha, com o calor dos acontecimentos do dia e as cabeças igualmente quentes — talvez em parte aquecidas pelo uísque —, eles finalmente pareciam avançar um pouco.
Mike se inclinou à frente.
Mas você não vê, Sam? É justamente isso. A moeda tem dois lados. E, claro, se esse personagem também for falso, você fez a coisa certa ao mentir para ele. Mas se ele for real e você lhe der a informação certa, você tem uma chance de guiar e influenciar alguns eventos cruciais na vida real. Coisa que escritores como nós quase nunca têm a chance de fazer. — Mike notou o olhar questionador de Sam, como quem diz "Pensei que era eu quem estava ficando louco", e percebeu que tinha posto o carro na frente dos bois. Ele ergueu uma das mãos. — Mas para fazer isso com sucesso, você terá que fazer um belo jogo de espelhos. E para que eu ajude com isso, precisarei saber mais. Muito mais.
— No total, havia oito atentados a mesquitas em A profecia, e as mesquitas apareciam em ordem crescente de importância para o islã, sendo as duas últimas Damasco e Medina, dois dos templos mais importantes do mundo islâmico. — Sam fez uma pausa enquanto Mike começava a tomar nota num bloco. — As explosões também eram ligadas a alguns escritos islâmicos antigos, mas especialmente às profecias de Nostra- damus, ou quadras, como são conhecidas. São mais de novecentas no total, falando de tudo desde a Revolução Francesa até Hitler, Hiroshima e a queda do Muro de Berlim. E há muita controvérsia sobre as interpretações das quadras, o que é dificultado mais ainda pelo fato de que ele usava alegorias e expressões em latim e grego. Uma corrente diz que era simplesmente o estilo da época, a outra diz que ele mascarava as interpretações de propósito para se proteger das acusações de feitiçaria e heresia; que, na verdade, aquelas partes foram escritas em código.
Sam tomou fôlego.
Mas as profecias de Nostradamus mais cruciais em relação à história atual, e que são o núcleo de A profecia, falam de "Mabus" e de uma iminente Terceira Guerra Mundial. Naquelas previsões, Mabus é descrito como uma criança nascida na península árabe ou no Irã, que mais tarde unifica o mundo islâmico numa guerra contra a Europa e o Ocidente. No livro, especula-se que as primeiras explosões são instigadas pelos xiitas, pois os alvos foram mesquitas pertencentes a seus rivais sunitas. Então vem um anúncio dos terroristas dizendo que, embora sejam islâmicos, eles não têm nenhuma aliança específica, nem xiita nem sunita. "Nossa aliança é apenas com o próprio Alá, e para contra-atacar a difamação de Alá por feitos e atos perpetrados em seu nome e em nome do islã por parte de Abu Khalish." Eles mandam uma fita para a Al Jazeera e o Al-Hayat pedindo que Abu Khalish se entregue para impedir que os atentados continuem.
Até aqui, tudo bem — disse Mike. — Ou tudo mal, dependendo do seu ponto de vista. Tudo está seguindo o seu manuscrito em larga escala. — Alguns dos livros anteriores de Mike envolviam pesada interação com agentes federais, então Sam pensava que talvez isso desse a ele alguma vantagem nesse tipo de jogo de espionagem.
Daí, a terceira mesquita que explode é xiita — continuou Sam —, o que afasta qualquer idéia de aliança xiita e também sustenta as alegações dos terroristas. Mas nesse ponto, Bahsem-Yahl, o principal clérigo do Irã e grande vilão do livro, vem à frente. Ele é o sucessor linha-dura de Khomeini e há muito é visto como o principal poder por trás do trono de todos os líderes iranianos desde então. Bahsem-Yahl anuncia que ele não acredita nas alegações dos terroristas. Ele afirma que nenhum verdadeiro filho do islã profanaria uma mesquita, e que acredita firmemente que os terroristas são, na verdade, agentes do Ocidente. Ele começa a ganhar amplo apoio no mundo árabe; assim como vários malucos acreditam que o 11 de Setembro foi uma conspiração "interna" do governo... Mas com muito mais fundamento em seus argumentos: bilhões já foram gastos nas guerras no Afeganistão e no Iraque, e tudo que você faz é criar o seu próprio grupinho terrorista e Abu Khalish aparece com as mãos ao alto. E se você criar o seu grupo apenas com ligações árabes, ao menos aparentemente, com sorte não haverá retaliações ao Ocidente.
Sam tomou um gole de uísque.
Entretanto, como resultado, o mundo islâmico acredita cada vez mais nas afirmações de Bahsem-Yahl de que os terroristas são "agentes ocidentais" e à medida que ele se torna mais veemente, o apoio cresce.
Sam respirou, cansado. — Então a corrida é para encontrar os terroristas, na esperança de provar que eles são muçulmanos, sem ligações com o Ocidente, antes que cheguem às últimas duas mesquitas, as mais importantes.
Mike apoiou a testa nas mãos para absorver tudo, sentindo o peso do pesadelo que era o dilema de seu amigo.
— E em A profecia, o principal sujeito rastreando os terroristas é aquele agente muçulmano que é uma cópia perfeita do cara que ligou para você?
É. Como eu disse, a única diferença é que o meu homem vinha de Fairfax, Virgínia, e esse cara é de Londres.
Mike contraiu os lábios.
Um detalhe a favor de ele ser real, acho. Se Washington quisesse abalar você, teria usado alguém exatamente do mesmo lugar. E Fairfax, com o sotaque, seria mais fácil para Washington arrumar.
Suponho que sim.
Mas Sam não parecia convencido, e Mike percebeu que seu amigo ainda estava traumatizado, incapaz de compreender os detalhes mais minuciosos do que estava acontecendo com ele.
Então A profecia termina com os responsáveis pelas explosões nas mesquitas sendo islâmicos sem conexões com o Ocidente. E isso é bom?
Sam assentiu enfaticamente. Estava em terreno firme novamente — a ficção do seu livro. A realidade do que estava acontecendo, na própria vida era o que se mostrava difícil de compreender.
Sim. Porque isso então acabava com as alegações de envolvimento ocidental e detinha o fervor religioso que crescia perigosamente no islã antes que ele chegasse ao ponto de ebulição.
E no seu livro o agente muçulmano e sua equipe conseguiam deter os terroristas antes que eles chegassem às duas mesquitas cruciais?
Sim, conseguiam. — Sam abriu um leve sorriso e deu de ombros.
Tem que ter um final feliz.
Mike assentia pensativamente enquanto as últimas peças se encaixavam. Mas então ele se deu conta de algo que tinha dito antes: dois lados da mesma moeda. E ao considerar esse cenário, sentiu um arrepio gelado subindo pela espinha. Ele torcia para estar errado.
E me diga uma coisa — disse Mike, lentamente. — O que aconteceria se eles não salvassem as últimas duas mesquitas, e se os terroristas de fato tivessem ligações com o Ocidente?
Sam fechou os olhos por um segundo e assentiu solenemente.
Então isso seria a gota dagua que transbordaria o copo do islã: o Ocidente envolvido na destruição de suas mesquitas mais proeminentes. Bahsem-Yahl provaria que tinha razão e ganharia ainda mais apoio para unir o islã contra o Ocidente, e todas as profecias de Nostradamus sobre Mabus se realizariam. Seria a Terceira Guerra Mundial.
Silêncio. Silêncio sepulcral. Uma única luz brilhava numa cabana do outro lado do lago. Exceto por isso, a escuridão era total do lado de fora.
Mike demorou um pouco para organizar seus pensamentos.
Ok, ok. Já discutimos o homem de Londres, mas e quanto àquele contato de pesquisa francês? Por que você não quis falar com ele?
Em parte por causa do que você falou: que alguém que contatei durante a pesquisa provavelmente foi o primeiro informante de Washington. Então, quando um desses contatos ligou, eu pensei: Será que é ele? — Sam deu de ombros. — Mesmo que o contato seja inocente, como devo responder se ele disser: "Ei, eu reparei que alguns daqueles atentados a mesquitas que você mencionou estão acontecendo de verdade"? Eu não posso dizer a verdade, contar que meu manuscrito foi roubado e que me encontro no meio de um estranho jogo de espionagem. Então no fim é melhor evitá-lo, não ter que dizer nada.
Mike assentiu, compreendendo.
E que papel o contato francês teve nisso tudo?
Jean-Pierre é um dos dois grandes especialistas em Nostradamus que eu contatei. Fiz a mesma pergunta a ambos: dos cinco nomes que mencionei, quem eles achavam que se encaixava melhor como Mabus? Ambos escolheram nomes diferentes, e no fim acabei concordando com a escolha de Jean-Pierre: Bahsem-Yahl.
Ok. Provavelmente podemos testar esse contato para ver se ele está limpo. Deixe-me pensar no assunto. Mas, por ora, voltemos a seu homem de Londres. Que mentira você contou sobre os próximos atentados?
Eu disse que não tinha certeza; não lembrava nem se o atentado no Egito era mesmo em Alexandria ou onde ele entrava na seqüência. Mas que eu achava que Bizerte, Tunísia e Sharjah, nos Emirados Árabes, faziam parte em algum ponto.
E os verdadeiros locais das duas próximas?
Islamabad e Muscat, Omã.
Mike anotou no bloco. Ele ergueu os olhos, pensativo.
Esse é outro problema, além da possível conexão com Washington. Se você passar essa informação adiante, e esse cara for de verdade e os atentados acontecerem exatamente onde você disse que aconteceriam, ele pode achar que está associado aos terroristas. — Mike fez uma careta dura. — Afinal, existe outra explicação racional? Se disser que escreveu um romance que está sendo usado como roteiro para esses atentados, é pouco provável que ele acredite. Por isso eu disse antes que você terá que fazer um jogo de espelhos por conta própria.
Sam fez que sim, entorpecido. Mais uma coisa em que ele não tinha pensado. Mas a menção a jogos de espelhos o inquietava: ele acabara de passar por um deles com Lorrena, e veja só como acabou.
Mike batucou com a caneta no bloco.
Só porque seu amigo muçulmano termina salvando o mundo no livro não quer dizer que ele conseguirá na vida real. Talvez você tenha que lhe dar uma mãozinha. — Mike abriu um sorriso torto. — Mas essa é a grande vantagem que você tem em tudo isso, Sam. Na verdade, é sua única vantagem. Você sabe o que vai acontecer a seguir; se conseguir descobrir a quem pode confiar essa informação. — Mike virou o resto do uísque no copo e se inclinou para a frente. — Ok, o plano é o seguinte.
Capítulo Dezenove
Adel sentia as horas e os minutos latejando como um metrônomo em seu crânio.
Três dias até o atentado em Londres e ainda nenhum sinal de um pico de atividade.
Era a única coisa que Adel não precisava de anotações para lembrar. Sobre outros assuntos com que lidava, ele fazia breves notas com questões para si mesmo.
Porta-voz dos terroristas das mesquitas. Maneiras de reduzir mais a lista? A equipe de Cunningham tinha cortado outros 142 nomes através de registros de emprego: agências governamentais, serviços públicos e registros hospitalares dos presentes nos dias em questão.
Influência ocidental? Até ali, só o jornal árabe radical Al-Watan e uma correspondente menor de uma das pan-árabes, a Asharq-Alawsat, sugeriram que talvez houvesse "algo" por trás dos atentados a mesquitas. Não muito com o que se preocupar. O grosso da imprensa árabe, assim como a imprensa ocidental, até ali aceitara as afirmações dos terroristas das mesquitas como verdade.
Será que picos de atividade no Oriente Médio estariam ligados ao atentado planejado em Londres? Foi detectado um aumento em algumas cidades no fim do dia anterior, especialmente no Bahrein, em Islamabad e em Kandahar. Mas eles já tinham cometido esse erro com Milão. E se fosse outro atentado a uma mesquita, qual dessas três cidades seria o alvo e quais seriam meros centros operacionais? E qual mesquita? Cada cidade deve ter pelo menos uma dúzia de mesquitas eminentes e outras trinta ou mais de importância menor.
Eles precisavam de mais alguma coisa para guiá-los, porém todas as ligações até agora tinham sido infrutíferas. Assim, quando apareceu uma pista no final da tarde, Adel não prestou muita atenção, presumindo que seria igual às outras 18 ligações dizendo "eu acho que a mesquita tal-e-tal pode ser a próxima" que tinham recebido até ali. Mas Malik, que recebera a ligação pela central de encaminhamento do MI5, insistiu que Adel examinasse melhor.
A ligação foi feita de uma cabine telefônica em Charing Cross Road, então temos o vídeo das câmeras de segurança, além da voz.
Adel olhou para a imagem congelada do vídeo na tela de Malik. O reflexo da luz do sol no vidro da cabine obscurecia parcialmente a pessoa no interior.
Adel concordou.
Ok, vamos ver o que temos.
Malik apertou o play do vídeo e logo depois a gravação de voz.
"Tenho informações sobre o próximo atentado a mesquitas."
"Quem eu devo dizer que está ligando e de onde você está ligando?"
"Isso não importa. Só passe adiante a mensagem de que eu acredito que a próxima bomba será na mesquita Kalatahn em Islamabad."
"Só um momento, senhor — deixe-me transferir a sua ligação."
"Não! Eu não vou esperar na linha. Só passe essa mensagem adiante — mesquita Kalatahn em Islamabad."
O mesmo operador do MI5 continuou na linha. Houve um breve silêncio e então: "E o que o leva a acreditar nisso, senhor? Onde conseguiu essa informação, se me permite perguntar?"
"Sinto muito. Isso é tudo que você vai receber. Não deixe de fazer alguma coisa a respeito. Adeus."
O som do telefone desligando, mas a porta da cabine já aparecia aberta; o áudio e o vídeo estavam dessincronizados. Adel conseguiu dar uma boa olhada no informante pela primeira vez: na casa dos 30, cabelo louro ondulado, casaco de sarja verde, cachecol vinho. Um segundo depois ele já estava fora do quadro.
E... — Malik clicou na barra de baixo e a imagem de outra câmera de segurança surgiu. — Aqui o temos novamente.
Era uma câmera posicionada mais adiante na Charing Cross Road — com o casaco e o cachecol chamativos, era fácil de detectá-lo em meio à multidão apressada.
Ele vira bem aqui — disse Malik. — Ao que parece, é em Litchfield Street. — Malik esperou a figura desaparecer de vista, então clicou novamente na barra de baixo. — Depois o encontramos novamente aqui; no meio da Monmouth Street.
Um ângulo mais estreito, percebeu Adel, e uma visão mais fugaz: dez passos e ele já tinha saído do quadro novamente.
Malik se recostou com um leve suspiro.
E aí nós o perdemos.
Há quanto tempo foram feitas essas imagens? — perguntou Adel.
Malik conferiu.
Ele ligou há 11 minutos; sete minutos da última imagem na Monmouth Street.
Adel coçou a testa. Se não tivesse havido um pico de atividade em Islamabad, provavelmente nem valeria prestar atenção. Mas o informante também era diferente dos outros: metade das pessoas alegava que conseguira a informação num sonho ou numa "visão", e também não tinham problemas em dar o nome e outros detalhes; se estivessem certos, seriam seus 15 minutos de fama. Esse novo informante também evitara ficar na linha por muito tempo, esquivando-se das táticas normais de prolongar uma ligação. Muitas vezes, quando eles aplicavam bem a técnica, conseguiam que uma patrulha da polícia chegasse até a cabine telefônica quando a pessoa ainda estava na linha.
Adel respirou fundo.
Arrume um link ao vivo com todas as câmeras da rede pública num raio de 500 metros, e também confira os últimos dez minutos de filmagens. Avise se ele aparecer em qualquer uma delas.
Malik ergueu uma sobrancelha; era uma operação para 12 homens, no mínimo. Mas Adel já estava atravessando a sala em direção a Tariq — responsável por índia, Paquistão e Afeganistão — para que ele alertasse os serviços de segurança em Islamabad.
ISLAMABAD, PAQUISTÃO
Para os três guardas na frente da mesquita de Kalatahn, até ali tinha sido uma noite tranqüila.
E, quase a 1 hora da manhã, quando uma caminhonete suja e enferrujada — com a placa ilegível de tanta lama — deixou cair alguma coisa ao passar em disparada, foi mais fonte de divertimento do que de preocupação.
Era um Bedford velho e parecia fazer trinta anos que rodava à custa de peças de segunda mão e gambiarras. Um dos guardas gritou para o carro, mas ele já estava 60 metros à frente, e sua voz se perdeu entre o ronco do motor velho e uma grossa nuvem de fumaça preta de óleo diesel.
Outro guarda se aproximou do objeto e o chutou timidamente com a ponta da bota: era um cano de descarga enferrujado. Ele olhou em volta, como se decidindo onde jogá-lo, mas, ao se agachar para pegá-lo, seus colegas perceberam que havia um problema.
As pernas do guarda se dobraram na altura dos joelhos e seu rifle caiu ao chão quando ele esticou a mão para deter sua queda.
Incolor e inodoro, o gás metilfentanil dentro do cano começara a se dispersar no instante que caiu da caminhonete. O guarda mais distante, vendo o efeito nos outros dois, era o único que tinha alguma chance de escapar.
Ele conseguiu dar quatro passos largos antes que suas pernas virassem gelatina e, para sua sorte, seu corpo já estava todo dormente quando a calçada se ergueu e o acertou em cheio no rosto.
Mas ele estava longe o bastante da cápsula para ser o único dos três a permanecer consciente; e assim pôde ver, com os olhos piscando lentamente, quando as duas figuras com máscaras de gás chegaram. Tudo que ele pôde fazer foi olhar, com a boca entreaberta como um peixe fora dagua.
Posicionar o C4 levou apenas dois minutos, carregar os três guardas para uma distância segura da explosão levou mais quarenta segundos. Tudo estava indo bem, de acordo com o plano.
Isso até a aproximação de um jipe com quatro oficiais da delegacia de polícia próxima em Kohsar. Eles haviam recebido o alerta apenas alguns minutos antes, e portanto estavam despreparados — mas tinham o elemento surpresa como vantagem.
O líder dos terroristas na mesquita, Faraj, pensou que, se eles tivessem chegado apenas alguns minutos mais cedo, poderia ter ajustado seus planos; agora, tudo que podia fazer era tomar decisões imediatas à medida que o drama se desenrolava. Seu atirador de elite, Dhakir, agachado a meio metro e no aguardo de um sinal, tinha uma visão mais clara pela mira de seu rifle.
Ambos estavam escondidos a 12 metros num beco estreito e escuro em frente à mesquita e sua alameda ampla e fortemente iluminada, e assim estavam cobertos pelas sombras.
Os dois assistiram quando um dos policiais, pego pelos resquícios da emanação do gás, tropeçou na corrida e caiu de joelhos. Os outros três mantiveram o ritmo da perseguição aos dois mascarados que corriam de volta ao beco.
Uma van e um carro passaram entre eles na alameda principal; quando tiveram novamente a vista livre, um policial começou a disparar sua pistola enquanto outro se ajoelhava e apontava seu rifle.
Dhakir acertou o ombro direito do homem do rifle com um único tiro, depois se voltou para o outro policial. Mas, ao apertar o gatilho, um dos tiros de pistola derrubou seu colega mais distante a cerca de 6 metros do beco. Ele caiu com um ferimento na perna ao mesmo tempo que o ombro do policial dava um solavanco para trás, a pistola arrancada de sua mão.
O outro colega de equipe chegou sem fôlego ao beco, tirando a máscara de gás após apenas alguns metros.
Foi quando veio a explosão, cuspindo uma nuvem de destroços e poeira.
O único policial que não estava ferido se virou para ver a explosão, e depois se voltou para o beco, sem saber o que fazer. Ele tinha sacado o revólver, mas não o erguia por completo.
Um tiro de alerta de Dhakir assoviando a apenas 5 centímetros de sua cabeça cimentou sua decisão: ele não podia fazer mais nada até receber reforços.
Faraj e Dhakir ouviram sirenes se aproximando. Elas pareciam estar a apenas alguns minutos de distância. Dhakir viu os dois policiais levantando seu colega ferido e começando a correr com ele para o outro lado da alameda, e se virou para Faraj em expectativa.
Faraj fechou os olhos por um segundo antes de assentir.
Ok. Faça a troca.
Dhakir encaixou uma nova bala em seu rifle e acendeu o feixe da mira vermelha sobre um dos policiais. Ele então deslocou a mira 40 centímetros lateralmente, mirando a nuca de seu próprio amigo, e apertou o gatilho.
— Encontramos o Lourinho de novo, chefe!
Malik exclamou para Adel, gesticulando para que ele se aproximasse. Malik tinha escalado uma equipe de 14 homens: oito rastreando as imagens ao vivo, seis checando os últimos dez minutos. No meio do trabalho, alguém se referiu ao suspeito na câmera como "Lourinho", e o apelido pegou.
Bahir, um dos membros da equipe de monitoramento, foi o primeiro a encontrar o alvo, 48 minutos depois da última imagem em Monmouth Street.
Adel se juntou a Malik, olhando por cima do ombro de Bahir enquanto o Lourinho atravessava uma ampla área de pedestres, onde se via mesas de uma cafeteria no canto alto da tela.
Lado norte de Covent Garden, saindo da James Street — disse Bahir, apontando. — Ou ele está indo para a Opera House ou para South Plaza.
Mais uma dúzia de passos e ele saiu do quadro.
... e daí nós o pegamos de novo com uma dessas. — Bahir moveu o mouse e abriu mais duas imagens de vídeo.
Houve uma espera tensa, suspensa, até que finalmente viram o Lourinho reparecendo na imagem da direita.
Ok — disse Bahir, debruçando-se à frente e passando um dedo na tela para determinar a direção que o Lourinho estava seguindo. — Parece que está indo para a Tavistock Court.
Bahir fechou a janela da esquerda e abriu uma câmera ao vivo de Tavistock Court em seu lugar.
Que ruas saem de Tavistock Court? — perguntou Adel.
Bahir aumentou um mapa que estava no canto superior.
A Tavistock Street e a Burleigh Street.
Adel se virou para Malik.
Vamos ver se conseguimos pegá-lo. O carro de polícia mais perto serve. Passe a descrição para eles e a direção que está seguindo, depois transmita para eles o melhor close das câmeras de segurança.
Malik assentiu e foi até sua mesa para fazer a ligação.
Bahir comentou:
Eu só tenho as imagens rumo oeste da Tavistock Street, em direção a Southampton Street. — Ele olhou em volta, exclamando: — Quem está com a câmera da Tavistock Street leste e Wellington Street?
A cinco mesas de distância, Siraj, que tinha o cabelo cortado em camadas como os platôs de arroz de Java, assinalou com a cabeça.
Sou eu.
Ok, Lourinho... — Bahir ergueu o dedo no ar enquanto esperava para ver em que direção ele estava indo. Leste. Ele apontou o dedo na direção de Siraj. — ... em breve, numa tela perto de você.
Achei! — disse Siraj finalmente.
Mais uma vez, houve uma espera ansiosa de 16 segundos em que todos temeram que ele não tomasse a direção esperada, ou que entrasse inesperadamente numa loja ou restaurante com uma saída lateral ou de fundos e o perdessem.
Adel caminhou até a tela de Siraj. Vinte metros adiante, o Lourinho parou diante da janela de um restaurante — olhando o cardápio ou procurando alguém? — antes de seguir em frente.
Final de Tavistock Street — avisou Adel para informar Malik, que estava com o telefone na mão, falando com a polícia. — Aproximando- se de Wellington Street.
Aaah, é aí que talvez tenhamos um problema — disse Siraj. — Só temos imagens das extremidades de Wellington Street. Nada no meio e nada em Exeter Street.
Quais são as opções? — pressionou Adel.
Siraj digitou algumas teclas.
Se ele for para o norte, vamos pegá-io em Russell Street. Para o sul, vamos pegá-lo no final de Wellington Street ou quando ele chegar na Strand.
Os dois assistiram ao Lourinho saindo do quadro, e Adel começou uma contagem em sua cabeça: trinta segundos, cinqüenta, um minuto.
Em quanto tempo ele deveria reaparecer? — perguntou Adel.
Na Russell Street ele já deveria ter aparecido. Na outra ponta e na Strand, mais uns trinta segundos. Mas, se ele entrou em Exeter Street, um minuto ou mais até aparecer na outra ponta.
Noventa segundos, dois minutos. Três. Nada ainda.
A sala de operações estava em suspenso, equilibrada no fio da navalha. Malik tinha o telefone na mão, com a polícia aguardando a nova posição.
Quatro minutos. Adel tomou uma decisão.
Ok. Duas opções; ou ele pegou um táxi nesse quarteirão ou ainda está lá em algum lugar. Vamos seguir a opção número dois por enquanto antes de começar a temer a primeira. — Ele se dirigiu a Malik. — Mas será preciso mais que uma patrulha local. Vamos precisar de pelo menos quatro SO19s armados em cada rota de fuga possível, e o dobro disso de policiais à paisana para bater de porta em porta.
Começava a chuviscar quando o esquadrão invadiu Covent Garden.
Eram cinco oficiais do Comando Especialista em Armas de Fogo, o SO19, num camburão preto e dez membros à paisana do Comando Contra Terrorismo, o SO15, em três carros do esquadrão.
Os carros pararam ao longo do fim das ruas que formavam o cruzamento que tinham de esquadrinhar, e o camburão bloqueou a última saída. Quatro homens do SO19 — uniformes negros sobre coletes Kevlar à prova de balas, capacetes negros PASGT e rifles Heckler e Koch — postaram-se junto aos veículos, e um quinto se posicionou no meio do cruzamento.
As ruas foram bloqueadas porque a última coisa que queriam era que o Lourinho entrasse num táxi bem debaixo de seus narizes e sumisse enquanto eles vasculhavam a área.
Toda a equipe SO15, capitaneada por Bob Losey — um veterano com 12 anos no gabinete especial da Scotland Yard antes de tomar a via alternativa —, usava roupas casuais: jeans, calças cáqui, casacos de nylon, sobretudos, jaquetas de couro. Qualquer coisa que pudesse ocultar as Glocks 9mm em seus coldres de ombro.
Losey odiava esse tipo de operação. A maior parte dos carros sumia da rua em minutos e os guardas armados nas extremidades se tornavam figuras fantasmagóricas à luz do crepúsculo. As pessoas começaram a se aglomerar atrás das barreiras, achando que era uma ameaça de bomba.
E, naquele fim de tarde, os bares e restaurantes da área estavam lotados. Divididos em duplas, os policiais se viram abrindo caminho entre espessas aglomerações em quase todas as portas.
Era sempre mais fácil que quem estivesse dentro os visse primeiro, pensou Losey; afinal, eles irrompiam porta adentro, com toda a dureza.
Losey sentia os nervos se retesando a cada porta que adentravam. Os olhos se moviam freneticamente, tentando esquadrinhar cem ou mais pessoas em quatro ou cinco segundos. Os movimentos bruscos, as risadas repentinas, os braços gesticulando subitamente, canecas de cerveja chocando-se em balcões; cada movimento provocava um espasmo em seus nervos.
Os olhos de Losey se fixaram num homem louro de 30 e poucos anos por um momento mais longo, cogitando se aquele poderia ser o alvo. O homem, que estava sentado com dois amigos vestindo camisas de rúgbi, levantou-se com um tom ameaçador: "E aí, o que você quer?"
Losey puxou a jaqueta de lado para mostrar a arma e o distintivo.
Fica na sua — murmurou ele, abafado pelo barulho do bar, e o homem se sentou novamente com a cara vermelha. Por sorte, seu parceiro Mick não o avistou primeiro, pensou Losey; ele teria atirado assim que visse o homem levantar.
Quando estavam prestes a empurrar a próxima porta, ele ouviu um grito em seu ponto de ouvido: "Acho que o encontramos!" Ken, da equipe três.
Onde?
No PJ's. — Um suspiro profundo. — O único problema é que ele esta com uma garota.
Ela não está na nossa diretriz. Deixem-na lá.
Houve uma comoção quando uma porta se abriu a cerca de 40 metros de distância. Losey correu até lá.
O problema não é esse. Ela...
Não se preocupe, estou chegando — interrompeu Losey.
De onde estava, ele já ouvia o problema. A mulher, uma morena de 20 e tantos anos, ainda berrava sob brutalidade policial e, como seu "papai" advogado, iria "processar até seus rabos!" quando ele se aproximou.
Losey ergueu a mão na direção dela, mas parou antes de tocá-la.
Ele não fez nada — protestou ela. — Você não tem o direito de fazer isso.
Losey olhou para o Lourinho, algemado e seguro por dois de seus homens. Subjugado, submisso, ele obviamente já tinha deduzido o que estava acontecendo. Losey acenou para seus homens e eles se dirigiram para o camburão com o Lourinho.
Ah, fez sim — disse Losey para a moça. — E acho que você vai descobrir que eu tenho razão. — Ele sorriu secamente e deu meia-volta.
Para onde vocês vão levá-lo? — gritou ela.
Delegacia de Marylebone, Seymour Street — disse Losey por cima do ombro. Ele não olhou para trás. Que ela passe metade da noite tentando descobrir para onde realmente o tinham levado. Isso vai ensiná-la a não ser uma esquerdista pentelha.
Quando entraram no carro, Losey pegou o celular e discou.
Estamos com ele. Nós o apanhamos há um minuto. Vamos levá- lo para Paddington Green.
Estou saindo agora — disse Adel. — Nada de interrogatórios antes de eu chegar.
Capítulo Vinte
MONTPELLIER, FRANÇA
Jean-Pierre se sentia como uma criança numa loja de doces.
Vrellait tentava encerrar uma ligação e uma jovem vendedora lidava com um cliente da loja — então Jean-Pierre sinalizou que examinaria as estantes por um tempo. Havia 12 corredores com menos de 1 metro de largura, repletos do chão ao teto com livros antigos, e Jean-Pierre reparou que do chão até a altura dos olhos havia majoritariamente reimpressões de Balzac, Daudet Stendhal, Dumas e Baudelaire de 1880 até a década de 1930, porém, nos níveis mais altos, os livros ficavam mais velhos e mais raros. Ele viu algo numa prateleira alta que chamou sua atenção e perguntou a Vrellait sobre o livro assim que ele desligou o telefone.
Aquilo por acaso é uma das reimpressões de Les Prophéties de 1672?
Não. É uma edição de 1724.
Jean-Pierre assentiu. Ele já tinha uma edição de 1756. Provavelmente não valia a pena só para ganhar trinta anos.
Se você receber alguma de 1672 ou antes, avise. Eu estou interessado.
Sim, sim. Avisarei. — Vrellait sorriu ao mostrar o caminho até o escritório dos fundos. Ele ergueu uma sobrancelha quando se sentaram. — Mas creio que tenho algo muito mais interessante para você.
Vrellait não precisava aumentar a expectativa de Jean-Pierre. Ele não pensava em outra coisa desde que tinha recebido a ligação de Vrellait na véspera. Não dormira bem com aquilo na cabeça, acordara cedo e atacara o bule de café, e provavelmente tinha engolido sete xícaras até a hora de sair para Montpellier. Quando percebeu que suas mãos tremiam ao volante, ele não sabia se era a overdose de cafeína ou a expectativa pelo que poderia ter em suas mãos dentro de uma hora.
Atravessar Camargue era uma de suas viagens preferidas: campos de alfazema e vinhedos de um lado, tundra selvagem e — se você tivesse a sorte de vê-los — manadas de cavalos igualmente selvagens do outro. Jean-Pierre tentou deixar a paisagem acalmar seus nervos.
Ele tentou conter o tremor na mão e seu entusiasmo quando estendeu o braço para pegar o envelope de Vrellait.
Todas as 11 páginas estão aí dentro. Tudo o que temos. — Vrellait abriu um sorriso de desculpas. — E, como eu disse, são apenas cópias. Os originais estão em Paris no momento.
Entendo.
Jean-Pierre não perguntou com quem. Vrellait havido ditado as regras básicas desde o princípio: um especialista para examinar os papéis originais e verificar a autenticidade da data e do pergaminho; dois especialistas independentes de caligrafia; dois especialistas, inclusive ele, para autenticar "formato, estilo e substância" do conteúdo. Nenhum deles seria revelado aos outros para "evitar conluios ou que um interessado exerça influência indevida sobre os outros".
Qual é o prazo? — perguntou Jean-Pierre.
Dois meses. Todos os pareceres serão então combinados e um anúncio será feito, seja o resultado positivo ou negativo. Ou são reais, uma parte do código há muito perdido de Michel de Nostredame, ou são falsificações.
Jean-Pierre examinou as páginas e, ao chegar na quarta, o tremor já estava de volta à sua mão. Teria sido muito mais simples desprezá-las como falsificações à primeira vista, não ter que embarcar nesse carrossel de emoções e ambições flutuantes: sua carreira alçada a novos níveis se aquilo se provasse real, uma decepção abjeta se não fosse; e igualmente uma queda em desgraça se ele desse a opinião errada.
Sim, à primeira vista, parecia real: a caligrafia que ele hoje conhecia tão bem, quase tão bem quanto a sua própria; as viradas de frases e o ritmo e a cadência das sentenças também lhe tocaram um nervo instantaneamente. Ele sentiu um aperto no peito e um formigamento nas veias que dizia: "Oh, Deus, sim, é isso!"
Vrellait apontou para as páginas.
A idade do cassone em que as encontramos aponta mais para César Nostredame que ao próprio Michel. É do início do barroco, mais para o fim do século XVI que para o meio. — Vrellait deu de ombros. — E os dois outros fundos falsos no baú estavam vazios, infelizmente. Então só nos resta especular se originalmente as páginas restantes estavam lá ou não, e se foram removidas e perdidas desde então.
E estas aqui foram descobertas perto de Florença, você disse? — confirmou Jean-Pierre.
Sim, em Empoli; cerca de 50 quilômetros a oeste. Mas a proveniência do cassone remonta diretamente à própria Florença.
Jean-Pierre assentiu e voltou a estudar as páginas. Um dos filhos de Michel de Nostredame, César, tornara-se um artista de renome e morou em Florença por vários anos. Esta parte certamente encaixava; uma coisa dessa importância só seria confiada por Michel a alguém muito próximo ou da família. Quando Jean-Pierre chegou às últimas páginas, ele viu as novas quadras mencionadas por Vrellait.
Se ficar provado que isto é real, você tem alguma idéia de quanto do livro-código de Nostradamus está aqui? — perguntou Vrellait.
Jean-Pierre comprimiu os lábios.
A maior parte dos especialistas sempre considerou que um guia desse tipo teria entre 15 a vinte e poucas páginas. — Ele folheou as páginas por um segundo. — Sete páginas de guia; então talvez entre um terço e a metade.
Se fosse real, seria a descoberta do século em se tratando de Nostradamus; quinhentos anos de especulações — com duas facções dividas entre a existência ou não de um livro-código — finalmente esclarecidos. Sem dúvida, logo surgiriam incontáveis reavaliações e reinterpretações.
Mas Vrellait tinha razão em estabelecer um prazo de dois meses para uma avaliação cuidadosa e completa. No passado, houve um sem-número de falsificações e interpretações errôneas; uma delas, lembrou Jean-Pierre, na verdade envolvera algumas ilustrações atribuídas a César Nostredame.
Jean-Pierre fez algumas perguntas para entender o pano de fundo, e finalmente deu sua aprovação.
Sim, eu ficarei mais que feliz em participar da avaliação.
E você será muito bem-vindo à equipe, meu amigo. — Vrellait examinou alguns papéis ao lado. Finalmente ele encontrou o que estava procurando e passou adiante. — Como mencionado, isto é apenas uma pequena formalidade antes que você possa sair daqui com eles. Tenho certeza de que compreende.
Jean-Pierre examinou o documento: parecia um acordo padrão de sigilo pelo qual ele concordava em não mostrar os papéis a outras pessoas; nem copiar, disseminar ou divulgá-los de qualquer forma. Ele leu num instante e assinou com igual rapidez.
Como uma amante há muito desejada, ele mal podia esperar para ficar a sós com os papéis; de volta ao estúdio onde poderia mergulhar neles por toda a noite, tocá-los e deliciar seus olhos com cada linha e detalhe mágico, até estar saciado.
O Lourinho se recusou a falar durante a primeira hora, então tudo que conseguiram foi seu nome, graças a alguns cartões de crédito que ele trazia: Benjamin G. Corliss.
Adel decidiu fazer um intervalo e Corliss esperar enquanto eles pesquisavam seu nome no sistema; talvez ele seria mais cooperativo após esfriar a cabeça por um tempo. E, no intervalo, logo depois de ligar para casa e avisar Tahiya de que ele se atrasaria mais ainda do que pensara a princípio, Adel recebeu a ligação de Tariq sobre a explosão da terceira mesquita em Islamabad.
Ele respirou fundo quando ouviu quão perto a polícia de Islamabad chegou de pegar os responsáveis.
Bem, temos um consolo pelo menos. Pegaram um deles.
Temo que não seja um consolo tão grande.
Por quê?
Adel sentiu o sangue gelar em suas veias quando Tariq narrou o que aconteceu. Mas, perversamente, parte do relato lhe dava munição para a segunda rodada de seu interrogatório com Corliss.
Pelo visto, você estava certo — anunciou Adel quando voltou à sala. — Seus amigos executaram a explosão exatamente onde você disse que fariam: mesquita de Kalatahn, Islamabad.
Não são meus amigos. — Suas primeiras palavras.
É mesmo? Do meu ponto de vista, não é o que parece. Na verdade, acho que só assim você conheceria os planos deles. — Adel se debruçou à frente, ameaçador. — Se fizesse parte do esquema.
Silêncio novamente.
E você sabia que seus "amigos" executaram um de seus próprios homens durante o atentado?
Eu já disse. Não são meus amigos.
Usaram uma bala de calibre grande ou de ponta rombuda, aparentemente. Não sobrou nada do rosto nem da cabeça; então não restou nenhuma chance de uma reconstrução facial para investigarmos. — Adel abriu um meio-sorriso. — Provavelmente devem ter uma coisa parecida planejada para você em breve.
Corliss puxou os cabelos.
Quantas vezes tenho que dizer?
Mas, pela primeira vez, Corliss parecia abalado. Ali Adel soube que era uma questão de tempo.
A primeira brecha aconteceu após 15 minutos.
Adel disse que, se ele saísse novamente, recomendaria que Corliss fosse preso por 28 dias sob a Lei de Antiterrorismo — talvez até os americanos mostrariam um interesse por ele. Adel deu de ombros e sorriu.
Estranho como as coisas acontecem entre os serviços de inteligência. Assim, depois que você for mandado para a Baía de Guantána- mo, terá pela frente uma batalha de três anos com advogados e recursos só para...
Corliss suspirou intensamente, interrompendo:
Eu só fiz isso por um amigo. Não tenho qualquer relação com os próprios terroristas.
Adel ergueu a mão.
Lá vem aquela palavra de novo: amigo. Eu acho que seus amigos são os terroristas em Islamabad. Você diz que é outra pessoa. Já que insiste em se aferrar a essa história, então quem é esse amigo misterioso? — Adel bateu com a caneta num bloco, impaciente para escrever o nome. — Quem?
Silêncio novamente.
Adel saiu e conversou com um oficial SOI5. Depois ele voltou ao interrogatório com Corliss. Seis minutos mais tarde, como combinado, o oficial os interrompeu.
Recebemos uma informação de Islamabad. Um dos terroristas presos confirmou que a operação deles tem um braço em Londres.
Obrigado. — Adel olhou de volta para Corliss. — O círculo se fechou, pelo visto. E, enquanto tenta negar sua "amizade" com os terroristas de Islamabad, eles parecem terrivelmente ansiosos para incluir você.
Corliss balançou a cabeça.
Eu já lhe disse; não são eles.
E eu disse a você: se quer insistir com essa história, eu preciso saber quem. Quem?
O olhar de Corliss se deslocava, desconfortável.
Só um velho amigo que morava em Londres. — Ele balançou a cabeça novamente. — E tenho certeza de que ele também não teve nada a ver com as explosões.
Quem?
Eu... eu prometi que não contaria... mas esse não é o único motivo pelo qual eu não contei. — Ele fitou Adel com súplica nos olhos. — Ele disse que correria perigo se passasse a informação pessoalmente.
E nisso ele coloca você em cena para correr o risco. — Adel estreitou os olhos. — Quem?
Eu não deveria ter sido pego, entende? — disse ele, hesitante.
Adel não reagiu, apenas manteve os olhos fixos em Corliss e assistiu ao último resquício de resolução desmoronando. E, quando Corliss finalmente pronunciou um nome, Adel se recostou bruscamente. Era a segunda vez em dois dias que o ouvia.
Adel chamou um oficial SO15 para a sala e saiu para fazer uma ligação: ninguém atendeu. Ele não deixou recado, mas continuou tentando a cada dez minutos. Na terceira tentativa, quando já estava num táxi a caminho de Victoria Station, Sam Tynnan atendeu.
Depois de dizer a Tynnan que tinha acabado de interrogar seu amigo, Ben Corliss — "que, devo dizer, continuou falando notavelmente bem de você, mesmo após duas horas sob custódia da polícia" —, Adel acrescentou simplesmente:
Precisamos conversar.
Sam suspirou.
Sim, creio que precisamos.
Capítulo Vinte e Um
SPRINGFIELD, MASSACHUSETTS
Sam e Mike ficaram em silêncio durante quase toda a viagem para Springfield, como se fossem a um velório. Mike dirigia.
Duas horas depois que Ben Corliss foi liberado, Sam conseguiu falar com ele para saber sua opinião sobre o que tinha dado errado e o que foi dito no interrogatório. Mike chegou à cabana logo depois.
Somos uma dupla dos melhores contadores de história na indústria. Se há alguém capaz de ludibriar meio serviço secreto, somos nós. E logo de saída somos pegos.
Bem, seu "amigo atorrr" está longe de ser o mais brilhante dos homens. Fazer a ligação de uma das principais ruas de Londres, usando um casaco e um cachecol chamativos? Eu avisei, "discretamente"...
Sam explicou que não tinha exatamente um manancial de amigos a quem podia pedir esse tipo de coisa.
Talvez você não tenha notado, mas minha agenda é meio deficiente em matéria de espiões.
Eles estavam frustrados, mas também se divertindo um pouco pelo circo armado. Era rir para não chorar. E, depois de alguns copos de uísque, eles estavam mais calmos e começaram a voltar seus pensamentos para a melhor maneira de administrar a situação que agora enfrentavam.
Para proteger identidades, todos no departamento de Adel eram conhecidos como "Emile" para os de fora. Nenhum sobrenome, apenas um número de três dígitos na seqüência, o que a maioria das pessoas que ligava pensava ser o número de um ramal. Para Sam, Adel era simplesmente "Emile 238".
Sam retornou a ligação de Emile em menos de uma hora, 23h30 no horário de Londres, com um "terreno neutro" para o encontro. Mike sugeriu Springfield, uma cidade de porte médio logo após a fronteira com o estado de Massachusetts, que também facilitaria para que Vince mandasse uma equipe de reforços.
Emile por sua vez informou que teria que ir acompanhado de um agente de seu escritório de Nova York:
São as regras para qualquer visita aos Estados Unidos, infelizmente. Mas seu nome e todos os outros detalhes não serão transmitidos a eles. Até onde eles sabem, apenas encontrarei um tal Sr. X em Springfield para algo ligado a uma operação de Londres.
Ok. — Sam ficou satisfeito porque precauções suficientes foram tomadas; o máximo de precaução que ele conseguiria, em todo caso. — Mas ele obviamente não ouvirá nossa conversa.
Obviamente.
Emile perguntou se ele também levaria um "colega", e eles fizeram os últimos arranjos. Café Glenwood, Springfield, 15 horas. Eles se sentariam numa mesa e conversariam em particular, com seus respectivos "colegas" em outra mesa, "à vista, mas fora do campo de audição".
Começou o jogo — disse Mike, quando o Café Glenwood surgiu a 80 metros de distância.
Ele se aproximou lentamente e, cerca de 30 metros antes de chegar ao café, passou por Barry Chilton e seu companheiro, Phil Doughan, num Buick Lucerne cinza-escuro.
Chilton estava abaixado no banco, de forma que seus 2 metros de altura ficassem menos aparentes, e Mike tomou cuidado para não lhes dar nenhum sinal de reconhecimento que pudesse revelar que havia observadores. Em vez disso, ele fitou Sam com um sorriso sombrio.
Como eu disse antes, se ele for de verdade, talvez isso estivesse fadado a acontecer. — Mike embicou o carro e estacionou. — A principal força positiva em seu livro; você precisava ajudá-lo. De certa forma, estava escrito; karma, se quiser chamar assim.
Mas Sam sabia que Mike só dizia isso para que ele se sentisse melhor. Sim, essa era uma maneira de ver as coisas pelo lado positivo. Mas também ocorreu a Sam que isso significava uma opção a menos, uma escolha a menos a fazer. Cada vez mais, ele se tornava somente um passageiro a bordo de seu próprio roteiro, em vez de ter algum controle sobre os eventos.
Quando eles se falaram por telefone, Ben mencionou a ameaça de Emile de despachá-lo para Guantánamo. Sam não conseguia evitar a preocupação de que, apesar de todos os planos e precauções, eles se dirigiam a uma armadilha.
Mike examinou a frente do café e o resto da rua por um momento, depois olhou para o relógio e disse:
Ok, vamos lá.
A primeira coisa que Adel teve dificuldade de entender foi a natureza extrema e fantástica do relato de Tynnan; ele avisara logo de início, era ficção e não fato. Por vezes, Tynnan falava devagar, entrecortado, talvez para assegurar que estava transmitindo os fatos de maneira clara e na seqüência correta.
Mas em determinado momento, como um carro velho sendo empurrado ladeira acima e que finalmente chega ao topo, Tynnan pegou no tranco e começou a correr mais rápido pelo outro lado. Adel se viu tentando agarrar-se a cada palavra — Washington, atentados a mesquitas, namorada, Nostradamus, Mabus, Bahsem-Yahl...
Adel interrompeu Sam neste ponto.
E, no seu livro, Bahsem-Yahl se torna o seu "Mabus"?
Sim.
E como ele entrou na história, se é que posso perguntar? Por que ele especificamente?
Um de meus contatos de Nostradamus, Jean-Pierre Bourdin, sugeriu que era quem mais se encaixava como Mabus. Embora eu já tivesse reduzido a lista a cinco possíveis suspeitos. — Adel assentiu, mas Sam percebeu que uma sombra passou por seus olhos na menção de Bahsem-Yahl. — Por quê? Há algo acontecendo nos bastidores com Bahsem-Yahl que eu não estou sabendo?
Não, não. Não é nada disso. — Adel balançou a cabeça rapidamente, talvez rápido demais. Ele se lembrou do primeiro temor que sentiu sobre os atentados às mesquitas, de alegações no mundo árabe de ligações com o Ocidente. Até então, felizmente, nenhuma voz mais forte havia levantado a hipótese. Mas Bahsem-Yahl era uma voz forte que conseguiria um amplo apoio. Se ele alegasse que os atentados eram orquestrados pelo Ocidente, isso poderia virar a mesa dramaticamente. — Mas, se essa gente está usando seu manuscrito para influenciar eventos reais, certamente isso é algo que eles não podem controlar. Eles não podem exatamente martelar no ouvido de Bahsem-Yahl que siga o plano deles.
Sam concordou. Pelo menos uma coisa a cargo do acaso. Olhando por cima do ombro de Emile, ele ficou tenso ao ver Mike — cinco mesas adiante — falando no celular. O acordo era que, se Barry ou Phil vissem alguma coisa estranha do lado de fora, ligariam para Mike. Mas Mike não olhou para Sam. Obviamente era apenas uma ligação particular, não relacionada. Mike desligou rapidamente para manter a linha desocupada.
Sam ficara nervoso no início. Cada olhada lateral de Emile, cada sombra de dúvida que via passar em seu rosto o levava a temer que aquele agente só o enrolava — ganhando tempo e tamborilando na mesa até que o camburão cheio de agentes armados da SWAT chegasse para levá-lo.
Contudo, ao se aprofundar na história e ver Emile demonstrar mais interesse, Sam começou a relaxar. Emile era bem diferente do personagem de seu livro: mais quieto, menos expressivo, guardava seus pensamentos para si. Mas Sam se viu gostando, simpatizando com algo naquele comportamento calmo e reservado, sentindo que podia confiar no homem. Não que ele tivesse muita escolha.
E ele então se lembrou de Lorrena: gostar e confiar não eram sinônimos.
Emile fez breves anotações em árabe enquanto falavam — seis linhas separadas com apenas duas ou três palavras em cada —, e agora Sam viu que ele preenchia uma linha inteira pela primeira vez. Emile ergueu os olhos.
Agora vamos falar dos próximos atentados a mesquitas no seu manuscrito. As coisas mais vitais que precisamos saber ao certo são os lugares e a seqüência.
Sam contou para ele e Emile acrescentou mais cinco linhas com poucas palavras em cada.
Então o primeiro relato que você me deu com as locações das mesquitas era totalmente falso?
Sim. Desculpe por isso. — Sam abriu um sorriso torcido. — Mas depois da história toda com Washington, e depois minha namorada... eu simplesmente não sabia mais em quem confiar. Quando você ligou, tive medo que você fosse parte disso tudo.
Entendo.
Mesmo sem aquela história de pesadelo, Adel teria compreendido: os olhos vermelhos de Tynnan, movendo-se constantemente para se livrar dos fantasmas enquanto falava, e os ombros curvados sob o peso de tudo falavam em alto e bom som. Ele parecia um homem que atravessara o inferno, mesmo que não dissesse como ou por quê.
Sam olhou de soslaio quando um casal de idosos se sentou na mesa ao lado. Ele se debruçou à frente e diminuiu o tom de voz.
Mas ainda assim, eu queria que você soubesse os lugares certos, para que fizesse a coisa certa; só que sem qualquer conexão comigo. Por isso pedi um favor ao Ben.
Emile assentiu como se também entendesse isso, mas não disse nada.
Sam bebeu um gole de café.
E adiantou passar a informação?
Sim, adiantou. Não tanto quanto gostaríamos, porque veio um pouco tarde. Mas pelo menos os terroristas foram incomodados dessa vez, mesmo que não tenhamos conseguido prender nenhum deles com vida. — Adel se interrompeu, uma clara indicação de que esse era o máximo de detalhes que daria. — E me diga, no seu manuscrito, como termina o cenário de guerra final?
Felizmente, os eventos não chegam a esse ponto. — Sam deu de ombros, como para enfatizar: na vida real não há tais garantias. — Com o envolvimento de Bahsem-Yahl, o cenário mais óbvio seria a partir do Irã. Mas com esta dúvida fundamental presente: se eles têm material fissionável suficiente para uma bomba pequena de maleta ou uma bomba nuclear estática, ou se de fato chegaram ao estágio de desenvolver mísseis nucleares.
Sam fitou Emile por um segundo, como se ele pudesse aprofundar o pensamento ou dar algum tipo de opinião a respeito. Mas não, ele apenas assentiu e piscou lentamente.
Outro cenário — continuou Sam — seria o Paquistão: o processo eleitoral entraria em colapso por conta de rebeliões populares e o grupo radical wahhabita pertencente aos militares ascenderia ao poder. — Sam ergueu a mão. — Daí em diante, as opções estão abertas: "bombas sujas" com material radioativo em maletas espalhadas por grandes cidades nos Estados Unidos e na Europa ou ataques com mísseis a Israel. Ou ambos.
Adel reparou que a garçonete o encarava, e então se deu conta de que estava olhando fixamente na direção dela. Desviou o olhar. Eles passavam tanto tempo se preocupando com nações já radicais atingindo um potencial nuclear que muitas vezes esqueciam a hipótese de que uma nação já nuclearmente capacitada se tornasse preocupantemente radical. Mas, de qualquer forma, o cenário apocalíptico de uma ampla aliança islâmica contra o Ocidente era o mesmo.
Sam respirou fundo, quebrando o silêncio desconfortável que se instalara.
Estranhamente, havia um personagem no livro que estava numa unidade de rastreamento de comunicações em árabe. Não muito diferente de você.
Entendo. — Adel não sabia por que Tynnan estava contando isso, a não ser talvez para cimentar algum terreno em comum entre eles. — Mais um caso em que a vida imita a arte — respondeu ele.
Exceto que trabalhava a partir de Fairfax, Virgínia.
E de onde ele era originalmente?
Jordânia.
Ah, eu sou do Egito. — Ele sorriu. — Então, vê? Totalmente diferentes.
Sim. — Mike havia sugerido que essa seria a única conexão revelada. Contar a Emile que o personagem principal do livro se assemelhava tanto a ele pareceria estranho e, considerando que seu papel agora poderia espelhar o do personagem, colocaria muita pressão sobre ele. — O que você vai fazer? É possível fazer alguma coisa com o que lhe contei?
Vou precisar de alguns dias para considerar tudo. Mas nesse meio-tempo alertarei as autoridades no Omã sobre o próximo atentado na lista, por via das dúvidas. — Adel deu de ombros. — E, embora eu talvez possa fazer alguma coisa quanto aos atentados planejados às mesquitas, Washington já é outro assunto. Particularmente se você está preocupado com contatos aqui nos Estados Unidos.
Esse não era o único motivo de Adel: a coisa toda parecia uma operação fortemente ilegal que, de qualquer forma, ele tinha poucas chances de rastrear; e, se começasse a procurar, Washington veria sua cabeça bisbilhotando acima do parapeito 1 quilômetro antes que Adel o avistasse.
Sam assentiu.
Entendo.
Os pensamentos de Adel estavam divididos. Ou isso se revelaria uma grande perda de tempo correndo atrás de fantasias, ou era a mais incrível e arriscada operação que ele já tinha visto: tentar se antecipar a um jogo de xadrez entre os terroristas das mesquitas e Abu Khalish, usando um manuscrito fictício como guia. E ao pensar onde tudo aquilo poderia chegar — o presságio apocalíptico de ter Bahsem-Yahl envolvido na trama —, ele rezava para que não fosse verdade.
E, se Khalish levasse adiante o atentado planejado em Londres, apesar das ameaças dos terroristas das mesquitas, o que aconteceria? Adel precisava desesperadamente manter seu foco nisso nos dias que viriam.
Adel ligara para Karam assim que chegara aos Estados Unidos: ainda nenhum pico de atividade. Ele telefonou novamente logo antes de entrar no café: nada ainda.
Ele olhou o relógio; passou mais sete ou oito minutos esclarecendo alguns detalhes finais, e então encerrou a conversa.
Quando se levantaram e apertaram as mãos, Sam disse:
E, por favor, como eu disse, não compartilhe isso com mais ninguém.
Não, não. Não vou contar. Fique tranqüilo. — Antes, ele não tinha apreendido a total dimensão da paranóia de Sam Tynnan. Agora sim. — Embora eu não tenha escolha a não ser passar essa informação às cidades das mesquitas envolvidas, a fonte deve permanecer anônima.
Quando Tynnan e seu amigo foram embora em seu carro, Adel ligou novamente para Londres: nenhum pico.
Ele ligou mais uma vez quando estava esperando para embarcar no JFK.
Só três por cento de aumento — disse Karam.
Insignificante. Mas, com o eco dos anúncios de embarque e o burburinho das pessoas, de repente ele teve uma visão das estações de Londres na noite seguinte e dos passageiros embarcando em trens rumo à morte porque ele não tinha feito nada. E no momento em que pousasse, talvez já fosse tarde demais.
Adel suspirou profundamente.
Pela primeira vez, acho que teremos que nos guiar pela informação que temos à mão, e não pelos picos de atividade. Entre direto em alerta vermelho, crítico, para todas as redes de transporte de Londres.
Sam estava nervoso quando eles saíram do café.
Quando o encontro estava acabando, Emile ficou distraído novamente, olhando para o relógio. E depois ele falou ao telefone exatamente quando eles estavam saindo. O que aquilo significava?
Só para o caso de serem seguidos ou de haver uma surpresa esperando por eles mais adiante, Barry e Phil os seguiram a cinco carros de distância, de olho em qualquer veículo entre eles que os acompanhasse por um tempo mais demorado.
Sessenta e cinco quilômetros depois de Springfield, Barry ligou para o celular de Mike confirmando estar tudo limpo.
Mesmo que tenham trocado de carro três ou quatro vezes, ainda não há ninguém atrás de vocês.
Obrigado. — Mike viu pelo retrovisor quando Barry piscou os faróis duas vezes e virou na saída de volta para Boston. Ele então se voltou para Sam. — Estamos livres como pássaros.
Capítulo Vinte e Dois
Akram preferia a mesquita de Westbourne Grove para suas orações regulares.
Se o tempo estivesse bom, ele costumava andar o quilômetro e meio de Lancaster Gate até lá; caso contrário, pegava o metrô. Por vezes ia a outras mesquitas em Londres, mas geralmente só quando havia um imame específico de cujos sermões ele gostava.
Contudo, a mesquita de Westbourne Grove recentemente trazia um imame, Raif Muhyi, cujos sermões Akram achava cada vez mais inspiradores. Suas palavras eram incendiárias, tocando assuntos que outros evitavam estoicamente: Palestina, Iraque. Westbourne Grove não tinha a mesma reputação linha-dura que a mesquita de Finsbury Park, e Muhyi evitava a retórica escancarada de fogo e enxofre dos imames mais radicais e arcaicos. Ele era bem mais sutil: "Se você é convidado à casa do seu irmão, então sabe que é bem-vindo. Mas se você não é, tem que examinar sua alma e fazer a si mesmo algumas perguntas difíceis..."
Mas isso já era o suficiente — sem que Akram soubesse — para que o MI5 e o SO15 ficassem de olho em Raif Muhyi, tirando fotos da saída da mesquita para ver com quem ele parava para conversar.
Allahu akbar... Allahu akbar... Todo louvor e agradecimento pertencem a Alá, o Senhor da humanidade, dos jinn e de tudo que existe... O Mais Bondoso, o Mais Benevolente...
Como sempre, Akram já se sentia soporífero, com seus sentidos entorpecidos ao fim das canções e orações; depois, se fosse forte como o de hoje, o sermão elevaria aquele sentimento, camada por camada — cada palavra e expressão deslizando como um afago —, fazendo seu coração alçar voo. Akram estava em seu elemento. Mas então ele viu Wajd Masahran nos fundos do salão de orações, e seu espírito afundou novamente.
Quando Masahran lhe contou pela primeira vez, ele ficou incrédulo.
Não, ele não pode estar envolvido nisso de jeito nenhum. Omari e eu nos conhecemos há meio século: não somos só patrão e criado, somos amigos íntimos. E, como você sabe, ele faz doações regulares para instituições de caridades na Palestina. Ele nunca venderia sua alma dessa forma.
Masahran moveu a cabeça solenemente.
Eu compreendo que você está abalado por ter que ouvir isso. E, por ora, é apenas uma suspeita. Mas em breve saberemos ao certo. — Neste ponto, Masahran ergueu os braços e tomou uma das mãos de Akram entre as suas. — Tudo que eu preciso saber, meu irmão, é se você está conosco e não contra nós naquilo que talvez tenhamos que fazer.
Akram olhou para sua mão presa entre as mãos de Masahran, e não sabia se tinha escolha: se dissesse não, talvez fosse tachado como um traidor.
Akram ocasionalmente fazia uma reverência e agradecia ao imame Muhyi pelo "exaltado" sermão ao sair; mas nesse dia ele ficou orando um pouco mais. Possivelmente porque o sermão tinha sido particularmente vibrante e emocionado — embora, no fundo, ele soubesse por quê: estava apenas retardando o inevitável. Postergando o que Masahran, cujos olhos ele podia sentir em suas costas mesmo a cinco passos de distância, esperando pelo momento em que conversariam a sós, tinha a lhe dizer.
Livres como pássaros. Logo depois de Barry "Freezer" Chilton piscar os faróis do carro e fazer a curva, ele virou tópico da conversa de Sam e Mike.
"Freezer?"
Era a primeira vez que Mike usava o apelido, mas depois de "Corky", Sam sabia que era melhor não perguntar se era apenas de uma derivação de seu nome.
Sim. Vem de uma gracinha que ele fez num frigorífico.
Mike explicou que originalmente havia três famílias mafiosas controlando Boston: Giuseppe Mazzone, napolitano; Frank Doherty, irlandês; e Vince Corcoran, meio siciliano, meio irlandês. As mais sangrentas rivalidades e disputas de território eram sempre entre os Mazzone e os Doherty, com Corcoran no meio — talvez porque ele tivesse sangue de ambos os lados — tentando acalmar a situação.
E por isso o outro apelido do Vince era originalmente "o pacificador". Mas, a cada disputa de território entres os dois, Vince sempre se beneficiava. Giuseppe Mazzone encasquetou que Vince estava jogando um contra o outro de propósito, e decidiu então usar o jogo contra o próprio Corcoran. Mazzone eliminou um dos capos de Vince e tentou colocar a culpa em Doherty. Só que Vince descobriu que não foi Doherty.
O "Freezer" foi enviado para pegar os dois capos de Mazzone responsáveis. Ele executou o primeiro com uma bala direto na cabeça; do outro, ele queria extrair informações — e assim levou-o para um frigorífico local.
O cara se recusou a falar, então o Freezer pôs a mão dele numa tábua e cortou um dedo com um cutelo. Depois pegou o dedo cuidadosamente e colocou no freezer. Ele voltou com uma tigela de gelo e enfiou nela a mão mutilada do sujeito, dizendo que, se a mão e o dedo fossem mantidos gelados, eles ainda poderiam costurá-lo de volta no hospital. O Freezer então o pressionou novamente pela informação.
Mais dois dedos e ele conseguiu toda a informação que queria.
O Freezer matou o cara de qualquer jeito, porque se ele admitisse para Mazzone que tinha falado, eles perderiam todas as cartas na manga. Então usaram a informação para desbaratar a organização de Mazzone. Outros dois capos foram eliminados, mas o resto foi mais sutil: batidas policiais nos bares dele, a receita federal e a agência reguladora comercial descobrindo uma das operações de lavagem de dinheiro. Claro, porque Vince sabia exatamente para onde mandá-los. Em quatro anos, as operações de Mazzone se reduziram à metade do que eram, e ele vendeu o que sobrou para Vince. Foi morar na Flórida com a família. — Mike olhou de esguelha para Sam. — Então, se algum dia você se sentir tentando a perguntar: não, eu não tenho qualquer ilusão a respeito de Vince ou Barry. Mas certamente são bons sujeitos para ter do seu lado.
Sam concordou, entorpecido. O outro lado da moeda — não é nada bom ficar contra eles — estava bem claro. Mas ele reconhecia que jamais teria conseguido passar por isso sem eles; melhor o diabo que você já conhece.
Mike comprou algumas verduras e levou para a cabana. Robby Maschek apareceu e instalou um criptógrafo tanto no celular dele quanto no telefone da cabana — para que nenhum dos dois pudesse ser rastreado ou alvo de escuta.
Eram quase 23 horas quando eles chegaram à cabana. Mike levou uma pizza e algumas cervejas e ficou com Sam por quase uma hora enquanto comiam.
Mike indicou o canto com a cabeça.
Fique à vontade para usar meu computador quando quiser. Só não use seu endereço de e-mail antigo, e tome cuidado com o que mandar e para quem. — Mike balançou a cerveja. — Fora isso, como eu disse, fique à vontade.
Sam passou a maior parte da manhã seguinte olhando cautelosamente para o computador. Ele dormiu bem naquela noite — a primeira boa noite de sono em uma semana. E, combinado ao fato de que não tinha nada para fazer enquanto esperava um contato de Emile, finalmente decidiu ligá-lo e continuar com seu livro sobre Toby Wesley. As palavras vieram devagar no começo, mas depois de algum tempo, o ritmo melhorou.
Como se por telepatia, Elli ligou naquela tarde.
Como está indo?
Ok. Estou entrando no ritmo agora. — Pela primeira vez, era verdade.
Não estou falando do livro, Sam. Ficarei feliz em receber o material quando você estiver pronto. Algo assim exige tempo para ultrapassar. Eu perguntei como você está, Sam.
Ele ligara para Elli e comunicara sobre Lorrena no dia seguinte à sua morte. Mas, claro, tinha omitido todos os detalhes de bastidores. E, egoisticamente, ele percebeu que a tragédia de Lorrena lhe fornecia uma desculpa para dar a Elli por não estar escrevendo, por causa de tudo que acontecera.
Desculpe. Tão bem quanto se pode esperar, suponho. Talvez seja por isso que eu tenha mergulhado tão rápido de volta na escrita; estou tentando não pensar. Esquecer. — Mentindo de novo. Terreno mais seguro.
Eu sei, eu sei. — Elli suspirou. — Como eu disse, Sam, quando estiver pronto. Precisa de um tempo para si mesmo depois disso. — Outro suspiro. — E me avise quando for o funeral, Sam. Miriam e eu gostaríamos de comparecer e prestar nossa homenagem.
Sam sentiu uma pedra no peito. Ele engoliu em seco.
Sim, eu aviso. Pode deixar.
Ele não tinha pensado nisso. Talvez pudesse disfarçar dizendo que o pai dela decidiu fazer o funeral em Taranto. Ele pensaria nisso mais tarde.
O fluxo da escrita diminuiu após a ligação de Elli — ele se sentia culpado por mentir para seu agente, mas agora que tinha começado, não via mais como retroceder e explicar tudo. Com o cair da noite, a inspiração secou totalmente, e ele decidiu encerrar o dia.
Sam assistiu TV por algumas horas, depois foi à geladeira para vasculhar a maravilhosa gama de refeições de micro-ondas que Mike havia comprado no mercadinho. Risoto-de-frango-para-um-miserável-solitário parecia a opção ideal.
Não sabia quanto tempo havia passado quando ouviu os barulhos lá fora. Duas horas, talvez três? A princípio ele não sabia sequer se tinha ouvido alguma coisa. Ele diminuiu o volume da TV.
Agora Sam ouvia mais claramente: o trote constante de botas no chão, um graveto se partindo de vez em quando. Uma das vantagens da cabana era que o exterior era tão desolado e sepulcral que até o mais discreto dos sons se propagava.
Sam prendeu a respiração. Pela janela da frente, viu a luz de uma lanterna num dos lados da varanda e nas árvores em frente, espalhando- se pelo lago mais adiante.
Jesus. Ele recuou rumo à porta da cozinha, começando a buscar rotas de fuga.
Livres como pássaros? Eles estavam se enganando o tempo todo. Dedos decepados e driblar carros pela rua? Os espiões do governo eram outra categoria. Eram necessários apenas dois segundos para que um transeunte colasse um localizador sob o carro de Mike.
Eles então rastrearam o carro até lá e esperaram o melhor momento para avançar. Na noite anterior, Mike estava com ele; agora Sam estava sozinho. Ou então, numa das poucas ocasiões em que Mike fora à sua casa para buscar coisas que ele tinha esquecido, Washington o seguira de lá.
A lanterna, uma dessas lâmpadas fortes de halogênio, passou pela frente da cabana, o facho de luz fazendo um arco pela sala. Antes que a luz o alcançasse, Sam atravessou a cozinha e disparou para a porta dos fundos.
Capítulo Vinte e Três
Era fim de tarde quando Khalish recebeu a ligação na Costa Rica. Como antes, a conversa aconteceu inteiramente em espanhol.
Está tudo certo com as opções das ações de Londres. Todo.
Houve uma pausa para deliberação.
Bueno. Vá em frente. Mas assegure-se de que a compra aconteça de forma limpa e sem percalços. Nada de deixar opções soltas no mercado, como da última vez.
Entendido. Vou supervisionar o assunto pessoalmente. — A mensagem era clara: o que aconteceu em Milão não podia se repetir. Uma pausa carregada. O outro assunto em questão, os terroristas das mesquitas e suas exigências, era mais delicado. — E quanto àquele outro grupo que está fazendo alarde sobre uma proposta de aquisição?
Outros fatores podem muito bem surgir e mudar a direção disso. Assim, minha intenção agora é simplesmente esperar para ver. — Mais uma longa pausa do outro lado, como se o interlocutor estivesse esperando que Khalish explicasse o que os "outros fatores" poderiam ser. Khalish não explicou. — Mantenha-me informado sobre o resultado daquela compra — disse ele, e desligou.
LONDRES
Meio dia tinha passado e ainda nenhum pico de atividade significativo.
A pressão aumentava a cada hora na sala de operações. Ela aumentava quando os níveis subiam um pouco — o pico até então tinha sido de seis por cento — e aumentava quando não subiam. O fato de que Adel marchava de um lado a outro e a cada vinte minutos gritava por atualizações de cada setor também não ajudava.
No meio da tarde, a sala de operações era um barril de pólvora.
A atividade em Londres tinha escalado mais três por cento. Nove por cento no total.
Adel repassava regularmente as fotos dos "possíveis suspeitos e associados" tiradas nas mesquitas e madrassas, nas comunidades muçulmanas locais e em reuniões de estudantes. Mas nesse dia ele tinha dificuldade de se concentrar nelas.
Um rosto pareceu acender uma luz por um momento, mas Adel não conseguiu se lembrar de onde. Ele o contrastou rapidamente com os cerca de cinqüenta alvos primários impressos indelevelmente em sua cabeça. Nenhuma combinação. Nada relevante. Ele colocou as fotos de lado.
Só uma coisa ocupava sua mente no momento.
No fim da tarde, a atividade aumentara mais dois por cento. Onze por cento. Não era o tipo de pico que eles associavam com grandes operações — estes normalmente ficavam entre trinta e sessenta por cento. Mas era alguma coisa...
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