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A RAPARIGA DE TIMES SQUARE / Parte II
24
Conhecer os pais
Queridos Mami e Papi,
Tem sido muito difícil para mim apanhar-vos ao telefone, mas há uma coisa que vos queria contar. Há dois dias, diagnosticaram-me um cancro. Tenho uma coisa chamada leucemia mieloide aguda. Vou começar a fazer quimioterapia na segunda-feira. Ainda está tudo no ar, dependendo de como responder ao tratamento. O médico diz que estou muito doente.
Preciso de vocês. Preciso da vossa ajuda.
Com amor,
Lily.
George Quinn ficou sentado na varanda com a carta de Lily nas mãos. Ficou sentado durante uma hora. Depois acendeu um cigarro e depois chorou. Eram onze da manhã e desejou poder contar à mulher sobre a filha mais nova, mas a sua mulher estava lá dentro, descontrolada na cozinha, a deixar cair copos no chão. Estava furiosa por causa da falta de abundância de qualquer coisa em casa.
George quis ligar a Lily, mas soube instintivamente que não era dele que ela precisava. E também, o que ela precisava, talvez mesmo dele — força e apoio —, ele não podia dar-lhe. Sem saber nenhum dos factos, sem saber nada sobre leucemia mieloide ou a seriedade da condição de Lily, instintivamente percebeu que Lily não estava a superar uma pneumonia ou uma bronquite. E de repente, naquela hora, na sua brilhante e soalheira varanda, George Quinn, aos sessenta e cinco anos, aprendeu uma coisa sobre si próprio. O que George queria da vida, tudo o que ele queria da sua nova vida de reformado, era paz. Tinha sido repórter, depois editor, teve stresse durante toda a sua vida: stresse, ansiedade, prazos todos os dias durante quase meio século. Agora queria fazer as suas caminhadas, tomar o seu café e ler o jornal, fazer calmamente as suas compras, cozinhar um bom jantar e ver os seus jogos à noite. Era tão pouco o que queria da vida e era-lhe constantemente negado: primeiro pela mulher delirante na sua cozinha, segundo pela sua última filha. A vergonha ardia-lhe na cara. Não podia estar realmente sentado ali a culpar Lily por chocar contra a sua realidade! Quis pôr os óculos de sol para se escudar da carta dela — e dele próprio. Quis a sua mulher de há quarenta e dois anos naquela hora. Ela não veio.
A noite chegou. E então ele contou-lhe. Na varanda deles, onde todos os assuntos importantes e banais eram discutidos, descobertos e decididos, George não disse nada quando Allison se sentou pesadamente, com nódoas negras novas no antebraço e pescoço, com cortes na linha do maxilar. Com a mão a tremer, agarrou no seu copo de água. Comeu um pouco de massa e atum que ele fez.
Deixou-a em paz. Voltou a encher-lhe o copo de água, mas sentou-se sem se mexer o resto do tempo, à exceção do movimento do cigarro da mão até à boca. Ouvia o oceano. Ainda não tinha ligado a Lily. Apeteceu-lhe perguntar a Allison se ela se lembrava daquele dia em setembro, há quase vinte e cinco anos, quando foi para o Booth Memorial Hospital para a dar à luz. Allie comeu demasiadas panquecas ao pequeno-almoço e as águas rebentaram — como se as duas coisas estivessem relacionadas. Esteve no hospital durante seis horas e depois Lily nasceu. Pesava apenas dois quilos e setecentos gramas e a enfermeira perguntou a Allie como é que ela tinha ganho vinte e sete quilos quando a bebé só tinha dois e setecentos. Os outros três filhos foram vê-la ao berçário. Andrew era finalista na secundária, mas da forma como pegou em Lily, faria pensar que era filha dele. No entanto, George não podia abrir a boca para dizer nenhuma dessas palavras à mãe dos seus filhos.
A voz dele não era suficientemente forte.
Quando Allison acabou de comer, George disse:
— A Lily mandou-nos uma carta. Está aqui, lê. — E empurrou o pedaço de papel na direção dela.
Ela não lhe pegou. Acendeu um cigarro e disse:
— Não tenho os meus óculos. O que é que ela quer? Mais dinheiro?
— Ela tem cancro.
— O que é que estás para aí a dizer? — disse, levantando a voz. — Cancro o quê?
— Lê a carta, Allie. Ela está doente. Precisa da nossa ajuda.
— Oh, Deus! Estou tão cansada de ouvir-te falar e falar! Blá, blá, blá. O que é que estás para aí a dizer, que cancro?
Ele levantou-se abruptamente e foi para dentro de casa.
Ela acabou o cigarro, pegou na carta, voltou para dentro e foi lentamente até ao quarto onde tinha deixado os óculos. Ele sentou-se em frente ao televisor desligado e esperou. Em cinco minutos reapareceu. Ficou em pé ao lado dele, perto do sofá.
— Não percebo esta leucemia.
— Allie, o que é que queres que faça? Telefona à tua filha. Descobre o que se está a passar.
— O que é esta mieloide aguda? Nunca ouvi falar.
— Nem eu. Não somos médicos.
— Achas que é muito grave?
— Não sei nada. Se precisa de quimioterapia, é provável que seja grave.
— Não, não necessariamente. Fazem-te quimio como medida preventiva. Já nem querem saber se precisas ou não.
— Não acredito que isso seja verdade.
— O quê? Estás a chamar-me mentirosa, agora?
Ela de pé. Ele sentado.
— Liga à tua filha. Ela precisa de ti. — George não conseguia olhar para ela.
Ficou de pé ao lado dele por mais uns minutos e depois perguntou: — Porque é que não lhe ligas tu?
— Ela não precisa de mim. Precisa da mãe. — As palavras ficaram-lhe presas na garganta. Parou de falar.
Allison virou-se lentamente e subiu os dois degraus de volta ao quarto.
Ali, sentou-se à beira da cama, perto do telefone, com a carta nas mãos, óculos no nariz e releu-a. A primeira coisa a que reagiu primeiro, ou quase, foi o Estou doente e preciso da vossa ajuda. Foi ao preciso da vossa ajuda que as entranhas de Allie estavam a reagir. O que ela queria fazer era telefonar a Lily e gritar com ela, a fúria interior era tão forte. Precisas da minha ajuda? Da minha ajuda?! O que é que queres que faça? Estou a sete mil milhas de distância. O que é que posso fazer por ti? Nunca me ligas, nunca ligas à tua mãe, nem para perguntar como estão as coisas. E sinto-me horrível, estou tão deprimida, estou a tomar medicamentos, os meus dentes estão a cair, não consigo comer como deve ser, estou eu própria tão doente e farta da vida e estás a pedir-me para te ajudar! Porque é que não me ajudas a mim? Também preciso de ajuda. Eu ligo-te, escrevo-te cartas a pedir a tua ajuda?
Agarrou-se ao estômago.
Tentou controlar-se. Cancro. Toda a gente tem cancro. Lily está a exagerar, como sempre. Provavelmente tem o sangue envenenado de todas as drogas que anda a tomar. Sei que é isso que estou a sustentar, o seu vício da droga. Sei que quer que lhe dê dinheiro. Não tem seguro, como é que vai pagar a quimioterapia? Primeiro diz-me que está doente, depois diz-me que precisa de dinheiro para pagar o tratamento. Sei onde isto vai parar. Mãe, o meu telefone vai ser desligado. Mãe, não consigo pagar a renda. Não consigo pagar os meus livros, o meu material artístico, os meus lápis. Preciso de um casaco de inverno, uma colcha nova, almofadas novas. Não tem fim. Agora, esgotou as desculpas, por isso desta vez tem cancro. É um estratagema para conseguir o meu dinheiro. Eu sei. Cancro. Uma amiga minha do banco teve uma vez cancro de pele. Ficámos todos histéricos de preocupação, enviámos flores, levámo-la a jantar fora, juntámos dinheiro para um presente, eu entrei com cem dólares. Foi ao médico, e com uma leve anestesia local, ele cortou aquilo da cara dela e estava de volta ao trabalho com uma ligadura na segunda-feira. Entrei com cem dólares!
Allison olhou para o telefone. Não ouvia a televisão lá fora. É provável que ele esteja a ler o jornal, totalmente despreocupado, a não ser com o facto de eu poder fazer uma tempestade num copo de água por causa das suas lágrimas nos olhos. Como ele adora melodrama!
O telefone esteva mesmo à mão de semear, a dois passos. Quase não tinha de se esticar. Vou ligar, pensou, levantando-se em direção à casa de banho. Vou. Mas primeiro tenho sede. Vou beber um copo de sumo de mirtilo. Deitou um pouco, uma gota de sumo no copo alto e levou-o aos lábios. Esta é a coisa certa a fazer, pensou, indo até ao armário, procurando na pilha de roupas até encontrar a sua terceira garrafa cheia de Gordon’s. Isto vai ajudar-me a libertar a fúria. Não posso falar com ela quando estou zangada. Ia acabar por gritar e ela ia desligar, como sempre, porque não tem respeito nenhum pela mãe. Deitou o gin no copo de sumo de mirtilo, mais e mais até o copo estar cheio e depois agarrou-o e abriu a boca, bebendo até o copo ficar vazio. Esperou um momento e cambaleou. Acho que preciso de mais um bocadinho, pensou. Ainda estou zangada. Vou beber mais um e depois ligo-lhe. Deitou o gin no agora copo alto vazio até estar cheio, e depois abriu a boca e deitou-o garganta abaixo até ficar vazio de novo. Esperou. Cambaleou e desta vez teve de se agarrar à bancada. Melhor, melhor. Allison sentiu o calor na garganta, na barriga, na cabeça. O calor estava no corpo todo e era tão agradável e tão reconfortante. Já não estava zangada. Está tudo bem agora. Agora posso ligar. Mas só mais um bocadinho de conforto. Despejou a garrafa garganta abaixo pela terceira vez. E depois dessa, ainda se conseguiu lembrar de ir até ao armário esconder a garrafa vazia e de passar o copo por água. Rastejou de volta para o quarto de gatas, tentou empurrar-se para cima da cama, mas falhou e caiu no chão para o abismo negro, ainda a dois passos do telefone, agora dois acima da sua cabeça.
25
Quimio 202
Spencer veio às oito, depois do trabalho. A avó de Lily estava sentada ao lado dela. Mal acenaram a cabeça um para o outro quando ele entrou. Ele perguntou como estava Lily. Claudia respondeu que ela estava a dormir e não disse mais nada. Perguntou como tinha ela passado o dia. Claudia espetou o dedo, apontando:
— Dá para ver. Assim. — Olhou fixamente para ele, de olhos semicerrados. Ele sentou-se e ela replicou: — Essa é a cadeira da enfermeira.
Spencer olhou em volta.
— A enfermeira está aqui?
Claudia tamborilou os dedos e não disse nada. A postura dela era rígida, os dedos a tamborilar no próprio colo.
Spencer perguntou-se se Lily ia acordar. Não parecia ir acordar tão cedo, como se não quisesse saber que as horas de visita eram das seis às oito e que ele tinha trabalhado o dia todo e que não podia ter vindo mais cedo. Passados alguns minutos, levantou-se e disse que tinha de ir andando.
— Trouxe-lhe alguns Krispy Kremes. Pode dar-lhos e dizer que eu passei por cá?
— Sim, claro — respondeu Claudia. Não disse a Lily e ela própria comeu os donuts.
Na terça, depois de um segundo dia de quimio, Lily estava a dormir de novo às seis, quando Spencer chegou. Desta vez, estava lá Amanda com Claudia.
Amanda estava sentada na cadeira de Marcie. Spencer parou por um momento e depois disse:
— Essa é a cadeira da enfermeira.
Amanda virou-se de costas para ele até ele sair.
Na noite seguinte, Lily ainda estava inconsciente. Claudia estava lá, com Anne e Amanda, e Spencer não ficou nem um minuto debaixo dos seus olhares de ódio.
As vozes continuavam a chegar até ela, vozes que pertenciam à sua família, o som profundo do sotaque eslavo da avó, a voz pragmática de quem não aceita um não como resposta de Anne, e a voz mais calma, mas não menos íntegra, de Amanda.
— Ele deve ser o polícia mais lerdo de Nova Iorque. Porque é que continua a vir? Não faz ideia de como nos faz sentir vê-lo aqui?
— Deixámo-lo bem claro. Deve ser um péssimo investigador.
— Não vou estar mais com falinhas mansas. É óbvio que não percebe as dicas. Vou dizer-lhe para parar de vir.
— Queres que eu lhe diga?
— Eu digo-lhe. Tu vais distorcer as palavras, como sempre.
— Para. A Lily pode dizer-lhe.
— De certeza que lhe diria se estivesse acordada.
— Ela está doente, mal consegue falar, não pode dizer-lhe.
— Acreditas que ela ganhou todo aquele dinheiro? Quer dizer, que sorte inacreditável, não achas?
— Olha para ela. Está tão doente. Qual sorte?
— Eu sei. Que sorte, ainda assim. Deus, o que eu poderia fazer com esse dinheiro!
— Estourava-lo todo, tal como estouras cada tostão que ganhas.
— Mas agora a sério, o que lhe passa pela cabeça? Está ativamente a tentar a destruição da nossa família, do Andrew. Sabes o que a nossa Liliput sente pelo Andrew. Se ela soubesse que o detetive anda a aparecer, passava-se.
Houve um silêncio.
— Porque é que acham que ele tem aquele corte à escovinha? Como o dela? Não acham que ele lhe cortou o cabelo, pois não?
— Não! Não se conhecem dessa forma. Pelo amor de Deus, é a nossa bebé Lil e ele tem cinquenta anos. Estou a dizer-vos, ele está aqui para obter informações sobre o Andrew. Provavelmente questionou-a dúzias de vezes. Sabe que não tem nada contra o Andrew, por isso aparece para tentar esmifrar uma rapariga doente.
— Tens toda a razão. Mas não podemos contar à Lily. Só vai fazer com que fique mais aborrecida.
— ... Já viram aquilo sobre o Andrew e a colega de casa da Lil?
— Posso dizer-te que eu nunca acreditaria, se ele não tivesse sido o próprio a contar. Acho que a Miera ainda está em choque.
— É bem-feita, aquela cabra. Odeia-nos. — Ouviu-se um riso abafado.
— Eu sei, mas olha para o nosso pobre irmão. Teve de abandonar a candidatura ao Senado.
— Está bem, mas ele candidata-se outra vez, quando for tempo disso. Ele resolve, vão ver.
— Não se a Miera o deixar.
— Ah, sim, muito provável. Para onde é que ela ia? Para a pobre Podunk de onde veio?
— Old Hartford, infelizmente.
— Não interessa. O Andrew foi a melhor coisa que lhe aconteceu na vida. Deixa-a voltar para a pequena e arrogante Hartford. Ela não o merece.
— Não, eu sei, eu sei. Mas... achas que ele poderá ter tido alguma coisa a ver com...
— O desaparecimento da Amy? Deus, não. Só cometeu um erro, é um ser humano, não é perfeito. Devo dizer que não faço ideia no que é que ele estava a pensar. Porquê arriscar quando podes perder toda a tua carreira. Mas não foi nada. Teve um caso insignificante. E então? O Andrew disse que tinha acabado há meses antes de a rapariga desaparecer. Essa parte não tem nada a ver com ele. O detetive não tem caso e sabe disso.
— Da próxima vez que ele vier, vou decididamente dizer-lhe para parar de vir de vez.
De repente, Joshua chegou. Foi uma surpresa. Infelizmente, Lily estava acordada. Foi no início da tarde. O que é que ele estava a fazer ali? Parecia tão chocado com a aparência dela. Nem sequer conseguia escondê-lo e não tinha nada para dizer. Nem queria acreditar que ele estava ali! Quem lhe disse que eu estava aqui? Paul? Rachel? Dennis?
Aparentemente, foi a irmã Amanda.
— Foi simpático teres vindo — disse Lily com um sorriso fingido. E mais tarde, para a irmã disse: — Estás a trabalhar ativamente contra os meus melhores interesses?
— Não sei do que estás a falar.
— Amanda, o que é que não percebes? Ele deixou-me, acabou comigo, deixou-me para ir sair com mamas maiores de Corning, Nova Iorque, e tu trá-lo aqui quando eu estou desta maneira, quando me sinto assim?
— Desculpa. Não estava a pensar em ti desse modo.
— Jura!
Amanda vinha menos depois disso, invocando dores de garganta, o começo das aulas, orientações parentais, materiais escolares, responsabilidades. Anne, no entanto, vivia praticamente no hospital, tal como a avó.
E Joshua, abençoadamente, não voltou mais.
Lily ficou sete dias com as vozes, a entrar e a sair. Durante o primeiro dia de descanso entre os tratamentos de quimioterapia, quando estava nebulosamente consciente e sem vomitar, quando podia falar, perguntava:
— O Spencer esteve cá?
Claudia respondia:
— Não sei de quem estás a falar. — E depois saía abruptamente do quarto.
Portanto, Lily não tinha sonhado aquelas palavras proferidas pela família.
Mas aqui estava, o dia um, e agora o dia dois do período de descanso e não havia Spencer, nem mesmo à noite. E a avó sempre ao lado dela.
De cada vez que Lily pegava no telefone, a avó perguntava:
— A quem estás a ligar?
— Ao Paul, avó.
— Como está esse simpático jovem? Acho que gosta de ti.
— Gosta. Mas gosta mais de rapazes.
— Oh.
Durante a terceira tarde de descanso, a avó saiu por um momento — graças às necessidades físicas! — e Lily pegou rapidamente no telefone para ligar a Spencer e, para horror dela, descobrir que não se conseguia lembrar do número do seu beep. Não se conseguia lembrar do número da esquadra da polícia. Quando ligou às informações e começaram à procura, já a avó estava de volta.
— A quem estás a ligar?
— À Rachel, avó. — Lily pousou o telefone. Como é que se podia ter esquecido do número de beep dele?
Era alimentada pelo cateter intravenoso, o seu intravida, intrarrespira. Quando passaram três dias de descanso e DiAngelo chegou para começar a ATRA e a citarabina outra vez, Lily abanou a cabeça, dizendo acabou-se.
Durante os dias seguintes, continuou a dizer acabou-se, acabou-se, acabou-se. Marcie fazia-a levantar-se e andar, mas Lily levantava-se e caía. Marcie tinha de carregá-la até à casa de banho. Ligaram-na a um cateter para que ela não tivesse de se levantar se não quisesse, mas mesmo assim, todos os dias depois da ATRA da manhã e da quimio da tarde, Marcie sussurrava:
— Anda lá, anda lá, Corajosa. Não fiques deitada aí, levanta-te, anda um bocado.
— Dá-me o Milky Way, Marcie.
— Eu disse-te. Aos sacos cheios quando acabares.
— Dá-me um cigarro, Marcie.
— Esquece. Essas coisas matam-te.
Lily, dentro e fora, para cima e para baixo, fraca e mais fraca, enjoada quase sem parar, apesar dos antieméticos que lhe davam para contrariar a quimio, pensou que talvez a avó tivesse razão, talvez a destruição completa da sanidade se seguisse a estar 24 horas por dia numa cama. O quarto já não ficava púrpura, nem mesmo por diversão, e as sanitas não duplicavam e a avó também não.
— Por falar nisso — e isto era a Anne a falar —, quero que saibas que pedi licença do KnightRidder para poder estar aqui a tempo inteiro, para te ajudar, Lil, ajudar a fazer o que quer que precises que eu faça. Buscar coisas, fazer coisas, estar aqui para ti 24 horas por dia.
— Não digas disparates, Annie. Precisas de trabalhar, pagar as tuas contas. Estou aqui o tempo todo — disse a avó —, e eu não preciso de tirar uma licença.
— Sim, mas não tens a melhor das saúdes, avó. Não quero que também fiques doente. Sabes quantos micróbios andam a voar pelo hospital, quantas bactérias das pessoas doentes? É um milagre que não estejas já doente. Não quero ter de me preocupar também contigo. Não, está feito. Quero fazer isto pela Lily.
— Obrigada, Annie — disse Lily —, mas o médico parece achar que preciso de um profissional para cuidar de mim.
— Oh, o que é que ele sabe? — retorquiu Anne. — Não gosto dele. Tem um problema de atitude. Há alguém melhor para ti do que a tua família?
— Sim, Lily — disse Amanda, um pouco entusiasta demais —, deixa a Anne fazê-lo. É maravilhoso que tenhas alguém sempre ao pé de ti a toda a hora. Precisas dela, Lil. — Como se soubesse que se Anne estivesse no hospital ela mesma seria absolvida de ajudar.
— Mas — disse Anne e aqui estava o mas —, a licença não é paga. Preciso de arranjar maneira de pagar a minha renda. Achas que podes tratar disso, Lily? Tens o dinheiro a chegar, será como contratar uma enfermeira em part-time, a renda é só quinhentos dólares por mês. E talvez um pouco mais para serviços, comida, transporte para o hospital, todos aqueles táxis pesam, sabes. Talvez dez mil por mês. Ou onze. Parece-te razoável?
— Parece razoável, Annie. Mas tenho de verificar com o médico.
No sexto dia da sua segunda corrida quimio/ATRA, Lily andava às apalpadelas pelo corredor abaixo, no seu pijama e robe de hospital, seguindo as instruções de Marcie para ser corajosa, arrastando o suporte intravenoso com ela, a contar de cabeça, a respirar para evitar a náusea e quando se voltou para ir de novo para o quarto, Spencer estava à porta.
Lily abriu muito os olhos para ele, sentindo todos os pedacinhos da desgraça em que estava. E ali estava ele, de roupa passada a ferro, barba feita, óculos pretos, num fato, com os olhos a piscar de pena e compaixão por ela, o cabelo rapado por compaixão por ela, e Lily não se conseguia mexer daquele sítio no corredor. Quando ele avançou na sua direção, ela começou a chorar.
A chorar!
— Lily... — disse, perplexo, a abrir os braços. E ela aproximou-se, deitou a cabeça no peito dele e sentiu o braço cuidadosamente nas costas dela, mas as horas dela de solidão foram tão extensas que o braço nas suas costas durou apenas um breve momento. Quando se afastou, a avó estava na porta aberta do quarto, a olhar com cara feia para eles.
— Desculpa. Não sei o que me deu... — Lily limpou a cara.
— Não te preocupes. Estás acordada. Sempre que venho, estás apagada. Como é que te tens sentido?
Estavam a vinte passos da zangada avó.
— Bem, bem. Ótima. Como é que tens estado? As drogas são horríveis. A Amy tinha razão em dizer-me para não as tomar.
— Não me parece que se referisse a estas.
— Tentei ligar-te, mas não tinha o número do beep comigo.
Spencer tirou um cartão-de-visita e enfiou-o na mão dela.
— Esqueceste-te do número do meu beep, Lil? — Parecia... surpreendido.
— São estes medicamentos, queimaram-me o cérebro. Tem-se passado alguma coisa? — perguntou, agarrando o cartão. Lily quis levantar os olhos para ele, mas de repente sentiu-se a afundar naquele lodo Joshua. Naquele lodo nem-posso-acreditar-que-alguém-sem-ser-família-me-vê-neste-estado. Fixou o olhar no chão.
— Passa-se um pouco. Não te preocupes agora com isso. Tens de tratar de ti.
— Lilianne! Vamos, a Marcie está à espera! — chamou a avó bem alto.
Lily suspirou.
— Tenho de ir. Tenho outro saco de Vepesid para superar. Podes ficar?
— Acho que a tua avó me matava se ficasse. — Spencer fez uma pausa. — À noite estás mesmo mal. Nunca estás acordada.
— Eu sei. De manhã cedo, ou ao meio-dia, é melhor.
Spencer inclinou-se para ela.
— Só que ela está sempre aqui e eu estou sempre a trabalhar.
— Claro. Eu sei. Olha, eu estou bem. Tenho visitas aqui a toda a hora.
— Lily, vens?
— Só um minuto, avó. — Lily continuou virada para Spencer que estava a bloquear o campo de visão de Claudia com o seu corpo.
— Visitas a toda a hora, hã? — disse. — O teu irmão veio ver-te?
Lily sentiu aquilo a mexer com ela, o pequeno sorriso a desaparecer.
— Não — respondeu. — Mas agora tenho mesmo de ir.
— Porque é que ele não te consegue encarar?
— Não sei, Detetive O’Malley. Eu também não me consigo encarar.
— Está a esconder-se de ti agora, da mesma forma que se tem escondido desde que a Amy desapareceu.
— ... Isso não é verdade. — Lily estava fraca e as pernas tremiam. — A minha família, infelizmente, é capaz de ter razão em relação a ti.
Ele murmurou:
— Lamento, Lily — enquanto ela passava por ele, atirando o cartão-de-visita para o chão, aos seus pés.
— Eu também, Spencer. — Lágrimas corriam agora do seu coração diretamente para o cateter de Hickman, ela baralhada com ele, sem levantar os olhos outra vez.
E quando Marcie estava a ligar o Vepesid, Lily estava de olhos fechados, com a cabeça de um lado para o outro na almofada ensopada, desejando o esquecimento das náuseas dos medicamentos. Mas a seguir ao Vepesid, Lily arrastou-se de volta lá para fora, procurando desesperadamente o cartão-de-visita de Spencer pelo linóleo do hospital. Não estava lá.
26
A igreja na 51ST Street
Claudia apanhou Spencer no elevador.
— Jovem, quero falar consigo.
Ele deu-lhe um cartão.
— É Detetive O’Malley, da polícia de Nova Iorque, Sra. Vail.
Ela franziu a testa.
— Como é que sabe quem eu sou?
— A Lily fala frequentemente de si.
— Sabe uma coisa, eu não quero que ande a falar com a Lily frequentemente. Você é um detetive, não consegue detetar que não é bem-vindo aqui? Não é da família, não é um amigo. É um cão de caça e vem aqui incomodar uma jovem rapariga muito doente.
O elevador não chegava. Spencer tinha, de momento, uma dúzia de casos abertos na secretária. Qualquer um dos outros daria mais frutos. Dez deles eram de crianças pequenas — fugidos, casos de custódia. Um deles era de uma mãe viciada em crack, desaparecida pela quarta vez este ano. Havia muito que podia estar a fazer em vez daquilo.
Spencer afastou-se. Claudia agarrou-lhe no braço. Era destemida. Bem, tinha de ser para vir assim sozinha para aqui da Europa. Ela não tinha medo dele. Mas Spencer, mesmo sem a devastação em torno da guerra, também não tinha medo dela.
Os olhos dela estavam afiados como picadores de gelo.
— Ela não quer que eu venha? — disse, apertando o casaco do fato. — Ela mesma pode dizer-me isso.
— Acha que ela se vai lembrar de alguma coisa sobre o irmão no estado em que está?
— Não é por isso que estou aqui.
— Está a bater à porta errada, sabe. O Andrew não sabe onde está aquela rapariga.
— Tem de pensar assim. Eu acharia estranho se não pensasse.
— Mas ele é mesmo inocente de lhe ter feito mal. É meu neto. Vivi com ele, praticamente criei-o, conheço-o desde a infância. Não acha que sei distinguir, acha que estou a mentir a mim própria? Estou demasiado velha e frágil para isso.
— Não há nada de frágil em si — ripostou Spencer. E se ele é assim tão inocente, porque é que recusa o polígrafo?
— Porque os advogados o aconselharam a isso. Inocente, digo-lhe. Juraria em tribunal.
— Não há necessidade, o seu neto jura o suficiente pelos dois. Mas a questão mantém-se: onde está Amy?
Estavam na entrada impessoal, incongruente e fluorescentemente iluminada do hospital, com estranhos a passar para a frente e para trás, com as enfermeiras no seu serviço nas proximidades, risos, o telefone a tocar, um homem idoso a ser empurrado numa cadeira de rodas, a olharem para eles sem os verem. Spencer olhava para eles sem os ver. Enquanto Lily jazia dentro da porta número 5547, a lutar para parar as náuseas, eles estavam a discutir a ligação do irmão ao desaparecimento da colega de casa.
— Não sei — disse Claudia. — Mas sinto a inocência dele no meu coração.
Spencer suspirou.
— Está bem. Mas eu tenho de seguir o que sinto no meu coração, sem a vantagem de ser parente do seu neto. — O elevador finalmente chegou. — Agora, dê-me licença.
Claudia chamou-o com zangada frustração.
— Porque é que está a embirrar com ele? Porque é que não interroga os mendigos que Amy alimentava todas as semanas? Há mais hipótese de saberem o que aconteceu com ela.
Spencer virou-se lentamente e saiu do elevador. Aproximou-se de novo de Claudia.
— O que é que disse?
— Perguntei porque é que não pergunta aos sem-abrigo...
— Espere, espere. — Abanou a cabeça, incrédulo. — Que sem-abrigos?
— Que sem-abrigos? Saiu-me cá um detetive — ridicularizou. — Estive com ela uma mão cheia de vezes e até eu sei.
— É uma mão cheia de vezes a mais do que aquela que eu estive, por isso desista. Que sem-abrigos?
— A Amy passou o Dia de Ação de Graças connosco no ano passado. Também me veio visitar com Lily uma vez e ficou para jantar.
— E?
— E, e... Ambas numa quinta-feira.
— E?
— Teve de sair mais cedo ambas as vezes, porque dizia que tinha de ir servir o pequeno-almoço na sopa dos pobres. Perguntámos-lhe se até no dia a seguir à Ação de Graças. E ela respondeu que todas as sextas-feiras.
Spencer ficou rígido, sem se mexer.
— Que sopa dos pobres? — perguntou por fim.
— Como é que quer que eu saiba? Agora, se me dá licença, vou voltar para ao pé da minha neta. Mas ouviu-me bem: não venha mais.
No caminho de regresso à esquadra, Spencer teve de tentar manter a boca fechada, para parar todos os pensamentos em turbilhão que o assolavam quais pedintes frenéticos.
Tinha desejado uma palavra que lhe apontasse a direção correta, uma palavra que o fizesse sentir que não estava a perseguir aranhas por paredes de tijolo. Aí estava ela. Três palavras, até.
Mas sopa dos pobres?
Quem diabo é que podia ajudá-lo?
Era o dia de folga de Paul e Spencer não o conseguiu encontrar. Rachel também não estava no salão. Lenny não fazia ideia da sopa dos pobres. De que servia um investigador privado que não conseguia esses detalhes do monte remanescente da vida de Amy? Jan McFadden devia despedi-lo. A própria Jan, desconcentrada ao telefone, não fazia ideia que a filha visitava sopas dos pobres. Foi uma surpresa tão grande para ela como tinha sido para Spencer.
O Copa Cobana, onde Amy costumava trabalhar, tinha arranjado uma data de novos funcionários. Toda a gente tinha ouvido falar de Amy, mas ninguém sabia muito sobre ela ou da sua afinidade para com os desamparados.
Spencer ligou a Joshua que disse «oh, sim, ela fazia qualquer coisa com eles, mas juro pela minha vida que não me lembro do quê, quem, como ou onde. Se calhar nunca soube.»
Viveu com as raparigas durante sete meses e nunca soube? Lily teve sorte em livrar-se dele.
Spencer não tinha outra hipótese. Tinha de falar com a única pessoa que podia ajudá-lo. Que dia era hoje? Não era sexta, isso de certeza. As mãos dele tremiam. Passaram duas semanas entre bebidas. Tinha de estar sempre a agarrar nalguma coisa para que ninguém notasse: canetas, lápis, costas de cadeiras, a roda do carro.
Depois do trabalho, regressou ao Mount Sinai.
Marcie tinha-se ido embora, DiAngelo tinha-se ido embora. A enfermeira da noite não queria deixá-lo entrar, uma vez que as horas de visita tinham acabado há muito. Spencer teve de mostrar o distintivo e dizer que estava ali em serviço. Porque é que se sentiu um canalha ao dizer aquilo? Porque era verdade?
A avó também não estava lá. Portanto, havia uma altura para ir sem ninguém em redor dela. O problema era que ela também não estava em seu redor.
Spencer sentou-se na quietude ao lado de Lily, enquanto a água pingava na casa de banho e a televisão estava sem som. Ele detestava televisões sem som. Aumentou o volume um bocadinho. Lily parecia tão desamparada, com o tubo no nariz, debaixo dos cobertores, deitada ligeiramente encostada para cima, com o pouco que faltava do seu cabelo a cair em aparas escuras na almofada. Pelo cateter do peito, tinha um tubo fluido ligado, uma solução de glucose a pingar nele, como a torneira da casa de banho. Ping, ping.
Depois de observá-la durante algum tempo, sussurrou o nome dela até ela acordar, parecendo confusa.
— O que aconteceu, o que é que se passa? — perguntou.
— Nada, está tudo bem.
— Farto-me de sonhar com pessoas a sussurrar o meu nome, uma e outra vez, e depois abro os olhos e estás aqui.
— A sussurrar o teu nome, uma e outra vez. — Deu de beber a Lily, perguntou se queria que ele fosse buscar-lhe mais alguma coisa. Não, respondeu ela, acrescentando timidamente, talvez mais um cartão-de-visita? Spencer tirou do bolso o que ela tinha atirado para o chão e colocou-o dentro da gaveta da mesinha de cabeceira.
— Então, o que é que os teus amiguinhos polícias pensam do teu cabelo? — perguntou.
— Os outros miúdos gozaram comigo.
Ficaram calados.
— Lily — disse —, a que sopa dos pobres é que Amy ia todas as sextas?
Os olhos dela, que mal se mantinham abertos, fecharam-se agora de vez. Com um suspiro de dor, os braços à volta do estômago. Gemeu. — À igreja na 51st, na Seventh.
Spencer não conseguiu evitar. Adorava ter conseguido.
— Porque é que não me disseste? Porque é que não me disseste há três meses que ela ia a algum sítio às sextas-feiras?
Lily não respondeu. Uma pequena lágrima rolou-lhe pela cara abaixo.
A enfermeira veio para verificar os sinais vitais.
Spencer ficou sentado com ela por mais um bocado e depois foi-se embora.
27
Liz Monroe e 57/57
No dia seguinte, depois da reunião matinal, Spencer estava na sala de provas a vasculhar os vários sacos de compras vazios de Amy, recibos, papéis, blocos de apontamentos, livros, casacos, bolsos de calças de ganga, com o quarto copo de café na mão, quando Harkman enfiou a cabeça e chamou:
— Spence...
Spencer decidiu ignorá-lo. Não gostou do tom do sussurro.
Harkman trouxe lentamente até ele a sua massa de cheiro acre. Spencer resistiu à tentação de lhe perguntar se tinha tomado os medicamentos para a gota. Era um cheio demasiado forte para as nove da manhã. Harkman descansou o traseiro na mesa e com o seu coração a ofegar um ostensivo e inaceitável ritmo de 137 batimentos por minuto, disse:
— Spence, tenho de te contar uma coisa.
Spencer não levantou o olhar dos sacos de compras de Amy. Estava interessado na variedade e na qualidade deles.
— O quê? — Estudava uma carteira de fósforos que tinha encontrado num dos bolsos do casaco. Era do lounge bar do Four Seasons Hotel, chamado Fifty-Seven Fifty-Seven. Por si só não queria dizer nada, mas o casaco tinha sido lançado para dentro de um saco da Frederic Fekkai. A Frederic Fekkai também era na 57th. Claro que Amy também tinha fósforos do Caviar Bar na 58th e do Bombay Palace na 52nd. Estava a tentar juntar um mais um, quando Harkman disse:
— Eles querem ver-te lá em cima.
Spencer levantou o olhar da carteira de fósforos do Four Seasons.
— Quem são eles?
Harkman não falou por um momento e depois inclinou a cabeça para a frente e disse em voz baixa:
— Juro por Deus, Spencer, não faço ideia do que se trata. Não tive nada a ver com isso.
— De que merda é que estás para aí a falar? — disse Spencer, levantando-se abruptamente da cadeira, deixando cair a carteira de fósforos no chão e avançando para ele. — Quase não estava a ouvir porque estava a tentar trabalhar. Quem é que me quer ver lá em cima?
Tudo o que Harkman conseguiu murmurar foi um impotente AI.
— Assuntos Internos?
Ele assentiu com a cabeça.
— E tens a certeza de que, seja o que for, não tem nada a ver contigo? Como é que sabes? Talvez tenha alguma coisa a ver contigo. Talvez queiram perguntar-me sobre aquele pequenino suborno que recebes dos traficantes de droga do Tompkins Park para olhares para outro lado, e não trazer de volta os pulhas que estão viciados na porcaria que vendem, hã? Talvez tenha alguma coisa a ver com isso?
— Para, não teve nada a ver comigo, estou-te a dizer. Há rumores de que os Assuntos Internos receberam uma carta anónima sobre... ti...
— Que carta?
— Sobre Greenwich, Connecticut. — Harkman sussurrava. Os lábios dele tremiam. — Mas não fui, não fui eu que a mandei.
Spencer agarrou Harkman pelo casaco.
— Mas que merda é que tu sabes sobre Greenwich, Connecticut?
— Larga-me, O’Malley. — A voz dele era fininha. — Não queres mais chatices com os Assuntos Internos, pois não?
Spencer empurrou-o com força. Harkman caiu de costas contra a mesa que se virou e amparou a queda dele para o chão.
Lá em cima, Spencer sentou-se na ponta de uma comprida mesa de conferências à frente de três pessoas que nunca tinha visto. Uma era uma mulher atraente no início da casa dos trinta, aprumada, despachada, eficiente, num fato azul-escuro, perfeitamente maquilhada e sem uma mitocôndria de sentido de humor. Os outros eram dois homens. Spencer não prestava muita atenção a homens e, por isso, não reparou no seu aspeto. Eram mais velhos do que a mulher e vestiam fatos que estavam longe de ser tão aprumados ou estar bem engomados. Spencer ficou desagradado que ele, quebrando o próprio protocolo, estivesse deliberadamente de calças de ganga em vez de fato, pensando em parecer informal na sopa dos pobres. Devia ter vestido um fato.
Harkman era cá um cabrão!
A mulher bem-engomada apresentou-se como Liz Monroe.
— Estes são os meus colegas. — Apontou para os colegas e Spencer ficou agradecido por ela não dizer os nomes deles. — Sabe porque é que estamos aqui, detetive?
— Não.
Ela pigarreou. Spencer pensou que ela podia estar à espera de um «Porquê?» a seguir, mas ele não lhe ia dar o que ela esperava. Só o inesperado para ela.
— Estamos aqui porque foram feitas alegações sobre o seu possível envolvimento na morte de um tal de Nathan Sinclair.
Spencer não disse nada. Não tinha nada a dizer.
— Sabe quem é Nathan Sinclair?
— Bem, obviamente.
— Foram feitas alegações ...
— Que alegações?
Monroe começou a procurar nos apontamentos.
— O que é que você sabe sobre as circunstâncias da morte dele?
— Nada.
— Sabe quem ele era?
— Já perguntou isso. A resposta ainda é sim.
— Quem era?
— Uma das testemunhas num caso de homicídio.
— Isto foi em Hanover, New Hampshire?
— Sim, isso foi em Hanover, New Hampshire.
— Foi o detetive principal de lá durante dez anos?
— Sim.
— Porque é que se veio embora? Foi por causa de... Nathan Sinclair?
— Não, não foi por causa de... Nathan Sinclair. — Spencer tentou bastante não ser demasiado óbvio com a sua imitação. — Vim-me embora por causa de uma diferença de opiniões com os meus superiores em relação à investigação do homicídio que mencionou.
— E depois?
— Voltei para casa, para Long Island, e fui recontratado pelo Departamento de Polícia Distrital de Suffolk.
— O que é que fazia para eles depois de ser recontratado?
— Isso não está nos meus registos? Era agente de trânsito.
— E depois?
— E depois fui transferido para o NYPD. Há quatro anos.
— Vamos manter-nos na Polícia de Suffolk por um momento. Passou de detetive-sargento em Hanover a polícia de trânsito?
— É verdade.
Liz Monroe calou-se.
— Isso é uma grande despromoção.
Spencer não respondeu, uma vez que não era necessária, ou até possível, resposta nenhuma.
— Não financeiramente — disse por fim.
Ela olhou para baixo, de novo para os apontamentos. Quase não tirava os olhos deles. — Foi-nos chamado à atenção...
— Por quem?
— Essa não é a questão.
— Peço desculpa por interromper. Receio que seja mesmo essa a questão.
— Recebemos uma carta anónima, se quer mesmo saber. Cheia de suspeitas admissíveis, como deverá saber. A carta indicava que houve testemunhas a vê-lo a almoçar com Nathan Sinclair, no Cos Cob, um restaurante em Connecticut.
— Sra. Monroe, certamente que não precisou que uma carta anónima lhe dissesse isso. Está no meu ficheiro. Na letra O, de O’Malley. A qualquer altura que quisesse poderia ter encontrado essa informação. E para além disso, eu já tratei desse assunto em grande detalhe com os Assuntos Internos da Polícia de Suffolk. Há quatro anos.
— Sim, sim, encontrei essa informação. Tenho os registos à minha frente. Foi por isso que deixou o Departamento de Polícia Distrital de Suffolk?
— Não foi por isso que deixei o Departamento de Polícia Distrital de Suffolk. Não me vim embora. Fui transferido para o NYPD.
— Deve compreender...
— Com quem é que pensa que está a falar, Sra. Monroe?
Ela tossiu, corando.
— Detetive O’Malley, peço desculpa. Deve compreender que as acusações de qualquer tipo são levadas muito a sério pelo departamento e são-lhes dados peso e mérito.
— A carta acusa-me de almoçar com Nathan Sinclair num restaurante? Sou culpado das acusações.
— Só é significativo porque foi a última vez que alguém o viu vivo. Foi encontrado pelo jardineiro semanas depois, a televisão ainda ligada. Estava morto há muito tempo. Era verão, o corpo já estava em estava avançado de decomposição.
Spencer olhava diretamente para Liz Monroe que olhava diretamente para ele.
— Talvez deva falar com o jardineiro.
— Sim, obrigada, detetive. Porque é que se encontrou com o Sr. Sinclair? Foi uma visita de polícia ou pessoal?
— Foi uma... — Spencer hesitou. — Acho que ambas.
— Estava de serviço?
— Não.
— E já não era o agente investigador desse caso, tendo-se retirado quando se demitiu?
— Já não havia caso. Houve uma sentença. O caso estava fechado.
— Portanto, ir ver Nathan Sinclair foi mais a título pessoal, não diria?
Talvez Spencer não tenha respondido imediatamente.
— Suponho que sim.
— Essa parte não está no seu ficheiro, detetive — disse Liz Monroe, levantando os olhos dos apontamentos desta vez.
— É obviamente uma investigadora exaustiva, Sra. Monroe.
— Obrigada. Suspeitava que o Sr. Sinclair pudesse estar envolvido num homicídio que tinha investigado em Dartmouth College?
— De modo algum. Tinha apenas questões por responder.
— E que questões eram essas?
— Discutimos vários assuntos. Música. Carros. Trocámos compaixão por ambos termos perdido a esposa em acidentes de carro.
— Não o procurou só para falar sobre música e mulheres, detetive — afirmou Monroe sem sinal de simpatia.
— Tal como disse, queria pôr a conversa em dia. Conversa de ocasião.
— Eram amigos, então?
— Amigos de vista.
— O que é que fez depois de deixá-lo?
— Conduzi até Hanover, New Hampshire.
— Porquê?
— Pela mesma razão que procurei Nathan Sinclair. Para encontrar velhos amigos.
— Mas não viu ninguém quando chegou a Hanover. Pelo menos é o que diz nos apontamentos do seu caso.
— É verdade. Quando lá cheguei, já passava bem da hora de expediente e não havia ninguém. O meu antigo parceiro estava de férias. Andei por lá e depois guiei até ao centro comercial de Brattleboro, em Vermont. Jantei e comprei uma mala de mão, pois estava a pensar visitar a minha irmã na Califórnia. O recibo da compra está no ficheiro.
— O recibo está aqui. Pago em dinheiro. Mas onde está a mala, detetive?
— Desapareceu há muito, Sra. Monroe. A alça rebentou depois de muito uso e tive de deitá-la fora. A mala tem muito interesse para si?
— Algum interesse, sim. Mais pela razão de a ter comprado só nessa altura. Os Assuntos Internos de Suffolk pediram para ver a mala?
— Não, não pediram.
— Viaja muito, então? Vejo aqui no seu registo de emprego que nos últimos sete anos na polícia de Suffolk e de Nova Iorque tirou os seus vinte e sete dias de férias aos poucos, nem uma vez, nem uma única vez, num período alargado.
— E quer chegar com isso a?
— Depois da compra da mala frequentemente usada, o que fez?
— Conduzi de volta para casa. Como sabe, é uma longa viagem, de cinco horas, àquela hora da noite. Estava cansado. Fui com cuidado. Parei várias vezes. Devo ter chegado às duas da manhã. Estava a morar num apartamento em cima da garagem do meu irmão nessa altura, e eles ouviram-me a abrir a porta da garagem. Disseram que foi por volta das duas. Deve estar tudo no meu ficheiro, Sra. Monroe.
A mulher ficou em silêncio a olhar para os apontamentos.
— Está, está. Sabe que é da nossa responsabilidade verificar alguma má conduta dos nossos agentes que juraram respeitar a lei.
— Eu sei. Está a fazer um trabalho admirável. Eu respeito a lei. E ainda por cima, não era um agente da polícia de Nova Iorque durante essa altura. Era um agente do Departamento de Polícia Distrital de Suffolk, fora de serviço, e eles já investigaram este assunto e resolveram-no, para satisfação deles.
— Alguma má conduta?
— Não — disse Spencer.
— Nathan Sinclair foi morto com um tiro de uma Saturday night special 22, diretamente na artéria femoral, sangrando até morrer.
— Ouvi dizer.
— A polícia, depois de chegar à cena do crime, descobriu que a televisão estava sem som. — Ela fez uma pausa. — Como se Nathan Sinclair tirasse o som à televisão porque queria falar com o seu agressor, talvez suplicar pela vida.
Spencer não disse nada, uma vez que não tinha sido requerida resposta.
Ela continuou.
— A arma nunca foi encontrada. A bala da arma tinha sido retirada, arrancada da coxa por uma mão com luva, sem impressões digitais.
Spencer sentiu que esperavam qualquer coisa dele aqui.
— Eu usava uma Magnum naquela altura.
— Confiscava as specials durante as apreensões de droga?
— Confisquei algumas de tempos a tempos, sim.
— Havia pegadas de bota perto dele, do próprio sangue.
— Não me consigo lembrar. Eram pegadas de botas de polícia?
— Hum... Não. Mas não estava a almoçar com ele como um agente da lei, detetive.
— A testemunha que nos viu no restaurante a almoçar e que de forma tão solícita lhe escreveu, lembrava-se se eu estava a usar botas? Era verão, é uma espécie de coisa em que dá para reparar.
— Não há menção às botas, não.
Spencer apertava e abria os punhos em cima da mesa de cerejeira mesmo à frente da Sra. Monroe.
— Que número calça, Detetive O’Malley?
— O 44. Eu e setenta por cento dos homens nos Estados Unidos.
— As botas eram o 46.
— A sério? — Spencer tentou manter um tom de voz normal, mas se calhar exagerou o tom no meio daquele a sério.
Houve uma pausa.
— Já sabia disso, não já?
— Interrogado exaustivamente sobre esse assunto, Sra. Monroe.
— Então não faz ideia de quem o matou?
— Não faço ideia de quem o matou.
— O assassino não foi trazido à justiça. Por isso, a justiça precisa de ser trazida ao assassino.
— Suponho que sim. — Spencer encolheu os ombros.
Liz Monroe levantou os seus olhos sérios para Spencer.
— Detetive O’Malley, sente que trazer assassinos à justiça não é algo com que devamos perder tempo, ou sente apenas que não devemos perder tempo com o assassino de Nathan Sinclair?
— Oh, os Assuntos Internos são responsáveis pelas investigações, agora?
— Não, mas os Assuntos Internos são responsáveis por si.
Lá fora, Spencer encostou-se a uma parede por um momento para se acalmar. E depois, desceu três lanços de escadas, resistindo ao impulso de se agarrar ao corrimão.
28
A sopa dos pobres
O Primeiro Abrigo Presbiteriano para os Mendigos ocupava a cave de uma velha igreja. Em vez de bingo ou encontros sociais de igreja para protestantes recentemente divorciados, a entrada de baixo era usada para a caridade: setenta camas e uma sala de jantar. Spencer tinha conseguido finalmente ir lá na sexta-feira ao amanhecer. Tinha quase perdido a vontade de prosseguir com o caso McFadden. A luta tinha fugido dele, mas isso não o impediu de agarrar Harkman pela camisa quando avançou para ele na entrada vazia. Spencer mandou-o com força contra a parede, e sufocando a vontade de lhe bater, gritou:
— És mesmo um sacana filho da puta. É melhor teres cuidado, Chris Harkman, porque mais ninguém vai tê-lo por ti.
— Estás a ameaçar-me? — perguntou Harkman. — Afasta-te de mim.
Spencer afastou-se.
— Eu disse-te, não fui eu. Eu disse-te isso, porque é que não acreditas em mim? Mas sabes uma coisa, O’Malley, todos temos o que merecemos. Todos temos exatamente o que merecemos, não é?
— Sim, pois temos, Harkman — disse Spencer, afastando-se e apontando um dedo zangado na cara do homem —, e toma cuidado para que não tenhas exatamente o que tu mereces. Que dia de arrependimento seria para ti.
Whittaker levou-o para o seu gabinete. Spencer pensou que fosse para repreendê-lo por causa de Harkman, mas Whittaker disse:
— Não quero saber de porra nenhuma das vossas brigas de meninas de escola, resolvam-nas entre vocês e deixem-me fora disso. E não, não podes ser parceiro do McGill, mas O’Malley, larga o congressista.
E de repente, a luta voltou em força em Spencer.
— Está a dizer para eu largar um caso principal, chefe?
— Não, só o Quinn, O’Malley.
— Porquê?
— Porque ele não tem nada a ver com aquilo, é por isso. — Whittaker era um bom polícia irlandês, há trinta anos na força. A personalidade dele de não-aturo-nada-de-ninguém melhorou bastante na mente de Spencer pelo facto de ele gostar dele. — Ele andava a comê-la, não a matá-la. Vês a diferença?
— Andava a comê-la e agora ela está desaparecida!
— Oh, vá lá! Não seria um político se não tivesse um caso amoroso. É assim que os reconhecemos, com as calças pelos tornozelos. O que é que vais fazer? Acusar cada um deles?
— Sim, se as amantes acabarem desaparecidas durante quatro meses no meu turno.
— Olha, O’Malley, vou ser honesto contigo: o congressista tem amigos poderosos na cidade de Nova Iorque e andam a encostar-me para, ou apresentar provas, ou largar.
— Ele recusou o polígrafo!
— O’Malley, e então esta manhã, lá em cima? Se aquela castradora Liz Monroe te pedisse para passares pelo polígrafo, ias?
— Chefe — disse Spencer com sinceridade —, eu recusava só para a chatear.
— Exatamente. As pessoas têm toda a espécie de razões para recusarem testes de polígrafo. Sai da cabeça deles. A recusa é inadmissível como prova. Inadmissível, ponto. Deixa passar. — Apontou para cima. — E tem cuidado com a caça-tomates. Ela própria tem um par e são feitos de aço. O Sargento Vicario, lembras-te dele? O Jesse Ventura do NYPD? A mulher fê-lo chorar. Chorar, estou-te a dizer!
— Obrigado pelo conselho. — Spencer ia assegurar-se de que Liz Monroe não o fizesse chorar.
Portanto, talvez Harkman, aquele filho da puta, estivesse a dizer a verdade. Era perfeitamente possível que o congressista tivesse contratado um otário para descobrir podres velhos, novos ou de qualquer género sobre Spencer. Talvez pensassem que isso faria Spencer recuar, mas eles não o percebiam, não sabiam que ele tinha ficado perversamente revigorado pelos Assuntos Internos e, por isso, às cinco e meia da manhã de uma sexta-feira, Spencer estava zelosamente na sopa dos pobres.
Falou com um homem chamado Clive, um homem baixo e forte, vestido de fato, de atitude eriçada. Spencer não sabia que os administradores da sopa dos pobres se vestiam tão bem. Ele vestia um par de calças de ganga coçadas que considerou apropriadas para a ocasião.
Clive contou a Spencer que Amy McFadden aparecia de facto todas as sextas-feiras sem falta há anos, «até ter deixado de aparecer».
Spencer explicou que Amy nunca mais tinha vindo porque tinha sido dada como desaparecida pela mãe há uns meses e que a ajuda de Clive seria apreciada para traçar os movimentos de Amy em maio.
— Então, Clive, recorda-se de a Amy ter estado aqui na sexta, 14 de maio?
Mas Clive não sabia dizer.
— Olhe, as manhãs são todas iguais para mim...
Spencer juntou as palmas das mãos para evitar que o seu tom de voz subisse.
— É de extrema importância que descubramos se Amy veio nesse dia.
— Bom, não faço ideia!
— Não chega, Clive.
— Infelizmente, é tudo o que tenho.
— Clive, Clive. Gostaria de vir comigo de volta até à esquadra da polícia? Tudo para que possa ajudá-lo a lembrar-se da última vez que a viu.
Clive ficou calado.
— Espere. Lembro-me da última vez que a vi. Ela disse que tinha acabado os exames e que se ia licenciar... — O olhar de Clive concentrou-se. — Ela disse que se ia licenciar precisamente dali a duas semanas. Portanto, quando foi isso?
— A cerimónia de licenciatura foi a 28 de maio.
— Bingo.
Spencer recuou.
— Nunca mais a vi depois disso — disse Clive.
Spencer olhou em redor na sopa dos pobres. Era uma sala escura cheia de mesas de cafetaria e cadeiras desdobráveis. Todos os lugares disponíveis estavam cheios de homens em farrapos que estavam a comer qualquer coisa parecida com ovos.
— Ela falava com alguém aqui?
— Bem, claro. Ela falava com toda a gente. É uma rapariga amigável. Todos gostavam dela.
— Alguém em particular?
Clive olhou em volta da cave como se estivesse à procura de alguém.
— Hum... Mas ele não está aqui.
Spencer empertigou-se.
— Um tipo com quem falava em particular?
— Sim. Andava sempre à volta dela. Não se sentava. Perturbava-lhe o serviço.
— Como é que se chamava?
— Não sei. Não está aqui, posso dizer-lhe. Deixou de vir há meses.
O cabelo rapado de Spencer eriçou-se.
— Clive, quando?
— Não sei. Centenas de homens, todos os dias. Não consigo registá-los a todos na minha cabeça.
— Tente.
— Ok, deixe-me pensar. Estou aqui há cinco anos, comecei antes da Amy. Este tipo já costumava vir nessa altura, lembro-me. Não lhe prestava atenção, mas prestava um pouco a Amy, porque, sabe como é, gostava de olhar para ela. Depois deixou de vir aqui, durante uns anos. De repente, bum! Estava de volta, a vadiar em torno da Amy. Acho que devia ser hóspede de um hospital psiquiátrico. Ou da prisão. Reaparecia por altura da primavera. Depois, quando ela deixou de vir, tenho quase a certeza que ele deixou também.
— Como é que ele se chamava?
— Não sei nada sobre ele.
— Como é que ele era?
— Sem-abrigo. Vestia-se com trapos, gorros na cabeça, cartão nos pés. Cheirava mal.
Spencer olhou para as mesas de pequeno-almoço. Todos os homens à frente dele correspondiam à descrição.
— Ainda jovem, no entanto — acrescentou Clive cuidadosamente.
— Quão jovem?
— Não sei. Vintes? Trintas, talvez? Ele não cambaleava, tinha qualquer coisa no andar. Um pouco de juventude. Não andava como um viciado. Agora que penso nisso, também não andava como um doente mental. Conseguem-se reconhecer passado um tempo, pela forma como cambaleiam, pela forma como inclinam a cabeça.
— E?
— Era estranho. Passava-se algo de errado com ele.
— O quê?
— Como quer que eu saiba? Algo não parecia bem. Tinha olhos assustadores, como se fosse bater a alguém se lhe dissessem a palavra errada. Também era repulsivo. Nunca tomava banho, mesmo quando lhe ofereciam. Temos aqui duches para os homens. Nunca tomou um, nunca se barbeou, nunca lavou a sujidade da cara. Era, diria, mais nojento do que os outros. Talvez tivesse tatuagens na cara, não me consigo lembrar bem agora. Podia ser sujidade...
— Alto, baixo?
— Médio. Mais baixo que você. Talvez queira tentar a Missão Bowery. Se calhar começou a ir lá depois de a Amy deixar de vir aqui.
— Porquê? A Bowery oferece ovos melhores?
— Realmente não sei. Talvez por causa de a Amy ter parado de vir. Ele parecia muito ligado a ela. Nunca falou uma única vez com ninguém sem ser com ela. Nunca. O que é fora do normal. A maioria das pessoas aqui tem alguma ligação aos outros. Ele não. Só com a Amy.
— Mais alguma coisa de que possa lembrar-se?
Clive pensou sobre isso.
— Ela costumava dar-lhe coisas — disse, por fim. — Não sei o quê, mas trazia sacos de compras cheios de coisas. Havia sempre algo a mais dela para ele. Uma vez perguntei-lhe e ela disse que eram donativos. Mas os sacos eram de boas lojas. Da Guess, talvez? The Gap. O que lhe dava, roupa? Sabe-se lá o que ele fazia com ela. Talvez trocasse as coisas por droga.
Spencer deu o seu cartão a Clive e disse-lhe que se o homem aparecesse outra vez, para lhe ligar a qualquer hora do dia ou da noite. A sentir-se desesperançado, foi até à primeira mesa de clientes com os seus uniformes de trapos para descobrir quantos deles se lembravam de Amy e se algum se recordava do admirador misterioso de olhos assustadores.
— Detetive O’Malley!
Era Clive, animado, satisfeito consigo próprio.
— Milo!
— Milo?
— Foi o que a ouvi chamar-lhe uma vez. Não acho que seja o nome verdadeiro.
— Não me diga.
Milo era uma palavra e um raio de sol numa sexta-feira que seria de outro modo negra — e sóbria.
Lily estava deitada na cama, de almofadas elevadas, quando Spencer chegou para vê-la no início da tarde de sexta. Estava a meio do terceiro e último tratamento de sete dias. Todas os visitantes tinham agora de usar máscaras e não podiam tocar-lhe. Pela aparência dela, Spencer não sabia como é que ia acabar aquilo, muito menos como ia aguentar-se nas treze semanas da quimioterapia de consolidação. Parecia tão esquelética e cinzenta como alguém podia parecer e ainda estar vivo.
Ela não lhe sorriu. Olhou desconfiada para ele, mas não tão desconfiada quanto a avó que, também de máscara, se levantou da cadeira e disse:
— Pensei que tinha sido bem clara consigo. Você não é bem-vindo aqui.
DiAngelo entrou a seguir a Spencer.
— Claudia, venha comigo — disse. — Já conhece as regras: um de cada vez aqui.
— Sim. Eu! Ela não quer vê-lo.
Lily e Spencer fitavam-se um ao outro.
— Espera, avó — disse Lily, olhando de forma acusadora para Spencer, que teve de evitar encará-la. — Dá-nos um minuto.
Extremamente infeliz, Claudia deixou o quarto com DiAngelo, que disse calmamente a Spencer:
— Dez minutos, ok? Ela não aguenta muito mais.
Deixaram-nos sozinhos e primeiro não falaram. Depois, Lily disse:
— Aqui novamente por razões profissionais, Detetive O’Malley?
O que podia ele dizer? Ficou em pé calado, a usar uma máscara na boca, desejando por um momento estar a usar uma nos olhos em vez disso, para não ver a desintegração dela. Juntando o que pôde de inspiração, energia e otimismo, Spencer inspirou fundo debaixo do algodão de hospital e chegou-se à frente.
— Ambas, pessoais e profissionais.
Lily olhava para a manta.
— Como estás? Tens comido? — Dois ciclos e meio de quimioterapia e estava a desaparecer debaixo dos lençóis da cama.
Ela encolheu os ombros.
— Comer está sobrevalorizado. Se toda a gente pudesse ser alimentado através de um buraco no peito, quem é que não o faria? Mas Nova Iorque ia à falência. Oitenta por cento da nossa economia é feita de restaurantes.
— Sim, mas pensa em como o negócio de material médico ia expandir-se.
— Hum... Gostava de tomar um batido de baunilha através deste Hickman. A Marcie diz que os batidos de baunilha são demasiado espessos. Diz que me pode trazer um batido de baunilha mais líquido. Marcie, digo-lhe eu, isso não é um batido de baunilha, é leite.
Spencer sorriu debaixo da máscara, enquanto os seus olhos vislumbravam as sobrancelhas ralas, a boca pálida e a brancura translúcida das bochechas dela. — Trouxe-te alguns Krispy Kremes. Queres que te traga um batido de baunilha da próxima vez que vier?
— Nã, acabava por deitá-lo fora. Não desperdices dinheiro. — Lily recostou-se nas almofadas, enquanto Spencer se sentava na cadeira a seis passos dela. — Obrigada pelos donuts. A minha avó adora-os. — Fez uma pausa. — Então, o que é que queres?
— Nada — disse apressadamente. — Passei pelo teu prédio para ir buscar o teu correio.
— Passaste? — Lily franziu a testa. — Mas não tens a chave da caixa do correio.
— Pois, eu sei. Não estou a dizer que o fiz, mas seria possível ter usado o meu distintivo para convencer o administrador que o conteúdo da tua caixa de correio era de grande importância para a polícia.
Porque é que aquilo a fazia sorrir?
— Não estás acima desse tipo de coisas então, de usar o distintivo em benefício próprio?
— De modo algum — respondeu Spencer, tirando um envelope retangular. — Mas achei que ias querer ver isto. — Era uma carta do Estado de Nova Iorque.
Lily, na verdade, riu-se, embora sem som.
— Chegou! Abriste?
— Claro que não. É um crime federal abrir o correio das outras pessoas.
Os olhos dela cintilaram um pouco para ele.
— Ah, mas abrir a caixa de correio não? Podes abri-la agora?
Spencer abriu-a e entregou-lha. Lily parecia feliz por segurá-la, por olhar para ela, por dizer alto o montante.
— 7,348,200$! Olha para estes números, Spencer.
— Vejo-os claramente, mesmo daqui. Mas não sei contar tão alto.
Depois de estarem algum tempo sentados a pôr a conversa em dia, Lily pousou o cheque no colo e pigarreou.
— Spencer, detesto ter de te pedir isto. Não sei se me podes ajudar.
— Se eu puder, ajudo. Do que é que precisas?
— Não posso sair daqui, diz o Dr. D, até contratar uma enfermeira interna para minha casa. Não me deixa sair. Acreditas? Diz que nem a minha avó, nem a minha irmã servem. Parece cauteloso com a Anne, não percebo bem porquê, mas continua a dizer que ela não está à altura. E sobre a avó, diz que eu acabava por ter de tomar conta dela, em vez do contrário. Naturalmente que a avó deixou de lhe falar.
— Se ela continua assim, em breve não sobrará ninguém.
— Mas a Anne deixou o emprego, estás a ver, para me poder ajudar e em troca eu pagava-lhe a renda. Como é que lhe posso dizer que não?
Spencer expirou pela máscara.
— O DiAngelo tem razão. Precisas de um profissional, não de uma irmã. Seria um prazer informá-la disso.
— Se lhe dirigires a palavra, ela arranja uma providência cautelar contra ti.
— Sim, e eu era aquele que a teria de aplicar. Pronto, está bem, eu digo ao DiAngelo para lhe dizer que, sob as suas estritas instruções, já contrataste um profissional.
— Não achas que ela saberia que estaria a mentir, se nem me consigo levantar desta cama sozinha?
Spencer estava a pensar no que é que ela queria dele, do que é que ela precisava.
— Precisas que te ajude a encontrar alguém?
— Sim — disse Lily calmamente. — Deus! Sim, por favor.
— Porque é que não me pedes logo? Se precisas de alguma coisa, não me faças adivinhar, pede diretamente. Se eu puder, trato do assunto. O meu pai teve uma enfermeira durante uns tempos quando esteve doente. Ataque cardíaco. Agora já está bem. Custou-lhe setenta e cinco por semana, mas foi dinheiro bem gasto. Eu ligo às agências. Arranjo-te alguém.
— Obrigada. Podes, por favor, pedir para me mandarem um homem solitário, alto, moreno, havaiano, bonito e descontraído que dê pelo nome de Keanu. A experiência de enfermagem é uma vantagem, mas não é obrigatória.
— Eu trato disso. — Spencer riu-se.
Lily parecia agradecida e aliviada.
— Quando sair, levo-te a almoçar a um sítio simpático, se quiseres.
— Vai ser um almoço e peras, Lily, por sete milhões de dólares!
— A Mary também pode vir. Não a quero excluir. Podemos ir almoçar num domingo a Palm Court e vestirmo-nos como se pertencêssemos a Upper East Side — disse ela segurando o cheque nas mãos.
— Que boa memória tens. Não te lembras do meu número do beep, mas lembras-te bem do nome da minha namorada.
Lily sentiu uma pontada.
— Olha — disse Spencer —, o DiAngelo vem expulsar-me a qualquer minuto e acredita que sei que não estás para isto, mas tenho de perguntar...
O olhar dela arrefeceu dramaticamente.
— Quid pro quo, hein, detetive?
Spencer continuou.
— Depois de teres voltado do Havai, porque é que não me contaste que a Amy trabalhava num abrigo para mendigos? Quer dizer, achas que não teria ajudado saber se ela tinha feito a vida normal naquela sexta de manhã?
— Escapou-me. Não pensei nisso. E ainda não vejo qual é a importância. — Lily fez uma pausa. — Ela foi naquela sexta de manhã?
— Foi.
— Deixou a sopa dos pobres?
— Bem — disse Spencer —, ela não ficou lá.
— Não, claro que não. — Lily ficou pensativa.
Tanto Spencer como Lily olhavam um para o outro, atentamente, doentiamente, a pensar, conceber, a tentarem pôr por palavras o que não conseguiam articular, descobrir.
Lily não estava em estado de ficar preocupada e por isso Spencer não lhe contou que no fundo de um dos sacos de costura, embrulhado muito bem no fundo do armário de Amy, encontrou um pequeno recibo, apesar de no resto dos sacos os recibos terem sido todos removidos. Um recibo de um cinto Ferragamo, comprado numa sexta à tarde em março passado, por cento e cinquenta e cinco dólares, pago em dinheiro. Duzentos dólares por um cinto, pago em dinheiro. Lily achava mesmo que Amy andava a fazer jogging durante aquelas horas todas?
Sacos da Prada, Louis Vuitton, Versace. Pequenos sacos da Tiffany’s. E onde estavam aquelas joias ou cristais? Certamente não no quarto de Amy. Onde estavam os cintos, as malas? Todas as coisas que Spencer suspeitava que Andrew Quinn lhe tinha comprado?
Se Andrew Quinn, um homem que recebia um salário governamental, com uma mulher e família para sustentar, era tão generoso com Amy McFadden, isso soava a que estivesse mergulhado num caso insignificante? E, no entanto, as únicas coisas que Amy tinha guardado eram os sacos das compras.
— Porque é que a Amy ia para a sopa dos pobres? — perguntou Spencer.
Lily ficou pensativa antes de responder.
— Acho que um dia ela própria pode ter tido fome.
— Alguma vez ouviste o nome Milo?
— Quem?
Spencer contou-lhe acerca de Milo.
Lily não disse nada porque não havia nada a dizer.
— Poderia Milo ser uma das pessoas com quem a Amy foi viajar, uma das outras pessoas que desapareceram?
Boquiaberta, Lily disse sem se engasgar:
— Podia. E então?
— Talvez esse Milo saiba onde ela está. Não gostavas de me ajudar a encontrá-lo se ele puder ajudar a libertar o teu irmão?
Ela assentiu silenciosamente, sem dizer uma palavra.
DiAngelo irrompeu pela porta.
— Já chega, detetive — disse. — Despache-se.
Levantando-se da cadeira, Spencer desejou poder tocar nas mãos de Lily antes de sair. Parecia precisar desesperadamente disso.
Marcie e DiAngelo tiravam-lhe sangue de dois em dois dias para ver como ela estava a responder à quimioterapia. Podia ver os resultados dos seus glóbulos sanguíneos através das suas expressões. Não tinham de lhe dizer nada, mas ela perguntava na mesma e eles tossiam e hesitavam, e chamaram outra enfermeira, que deu a Lily uma transfusão de glóbulos vermelhos e brancos (e azuis, ta-nam!), de plasma, de plaquetas. O Hickman dela infetou; deram-lhe antibióticos e proibiram as visitas por dois dias, até a infeção passar. DiAngelo não achou que ela estivesse suficientemente forte para o gotejar contínuo da citarabina, por isso esperaram, um dia, outro dia. Mas o corpo dela não recuperava, por isso avançaram, deram-lhe o fármaco mesmo assim e contaram o sangue. As plaquetas estavam a 48, 45, 42, quando deveriam estar a mais de 100.
Lily não quis perguntar porque não queria saber, mas finalmente perguntou algo como: — Isso são quarenta e duas plaquetas no meu corpo todo?
E o médico sorriu e abanou a cabeça.
— É abreviado. Adiciona três zeros e então já tens alguma coisa.
E Lily sorriu de volta, tão esperançosa, tão encorajada.
— Quarenta e duas mil é uma quantidade colossal!
— Claro, Lil. Comparado com o quê? O normal? O normal, no nível mais baixo é duzentas mil.
— Oh.
— Exatamente.
Terceiro dia sem visitas. Os funcionários do hospital usavam máscaras ao pé dela e à noite, quando tinha força para acordar e vomitar, Lily achava ver anjos com asas no quarto. E os anjos também usavam máscaras.
— Isto é o pior de tudo — disse DiAngelo. — É sem dúvida intenso. Vai melhorar e tu vais melhorar. Aguenta, Lil, estás a ir muito bem. Estás mesmo, estou orgulhoso de ti. Continua.
Ela continuou.
— Quanto tempo falta?
E o médico fez uma pausa e depois perguntou prodigiosamente:
— Quanto tempo falta para quê?
— Para a pizza chegar — respondeu Lily.
— Mais um dia. E depois descansas, fazes uma biópsia rápida e vais para casa. Só mais um dia, Lil.
Mas mais um dia era mais do que aquilo que ela conseguia suportar. Não conseguia respirar sozinha. Tiraram-lhe o medicamento e puseram-na a oxigénio em vez disso. Apeteceu a Lily perguntar se o oxigénio podia ser colocado no seu pequeno cateter, como tudo o resto, mas não teve fôlego suficiente para dizê-lo.
E por isso ficou deitada a imaginar-se a morrer.
Fitava o teto escuro e imaginava-se a ficar cada vez mais doente, imaginava a massa negra a alastrar pelas esquinas e limites do seu corpo, a instalar-se, a marchar pelos órgãos a caminho do coração. Como será adormecer e não acordar, cair na escuridão e nunca mais voltar?
Não gostaria de estar sozinha no momento da morte. Não. Morreria no hospital com a família à volta dela, a segurar-lhe as mãos, a fazer-lhe festas na cara, na cabeça, a chorarem por ela. E depois ela distanciava-se, ainda a ouvi-los, mais fracos, a ouvi-los a chorar e a vê-los a curvarem-se para ela, mas cada vez mais difusos.
Não havia mais dor, mais cancro.
E iam cantar para ela, cantar numa bela igreja, e a mãe, derreada pela dor, estaria no altar a cantar Panis Angelicus, e a igreja ecoaria a sua linda voz e faria todos chorar ainda mais...
Espera lá.
Aguenta já aí esses coloridos cavalos!
Até no sonho estava a ser difícil acreditar. A mãe dela na igreja? A mãe de Lily não estaria na igreja! A mãe estaria ainda no Havai e ligaria à avó e diria: «Quero ir, quero mesmo ir, mas não posso. Estou muito doente, nem consigo sair da cama. Não tenho força para ir à casa de banho. O bendito George faz tudo por mim. É por isso que também não pode ir.»
Uh! Subitamente a respirar sozinha, Lily tentou sair da cama. Incrível. A mãe a arruinar-lhe a morte até nas fantasias. Nem nas fantasias a morte de Lily podia ser sobre Lily, tinha de ser acerca da mãe de Lily. Nem sequer podia morrer da maneira como queria.
Na manhã seguinte, a sentir-se melhor e sem oxigénio, Lily pediu a Anne para ir à loja de arte comprar alguns lápis de cores pastel que, quando molhados, ficavam em aguarelas. Passou a tarde a desenhar. Quando Spencer chegou para a ver mais tarde naquele dia, Lily estava sentada, elevada na cama e ele exclamou:
— Em nome dos céus, o que é que andas a pintar na tua boca?
Ela pegou num pequeno espelho de maquilhagem. Havia violetas e lilases e rosas à volta do queixo, na boca, nos lábios. Sorriu e mostrou-lhe a pequena pintura da...
— Primavera — disse. — Estou a redecorar.
— A ti mesma?
— Sim, estou a redecorar-me. Toma, queres para o teu apartamento? Não tens nem uma bendita coisa nas paredes.
Desde então, Lily não voltou a fantasiar com a hora da morte.
DiAngelo assinou os papéis da alta, dizendo a Lily que ia estar uma semana em casa e depois voltaria na primeira segunda-feira de outubro para começar as treze semanas de consolidação. Teria sessões de quimio à segunda e terça e depois recuperava em casa de quarta a domingo. Ia acabar no Ano Novo, mesmo a tempo do novo milénio.
O cancro tinha ido todo embora?
— Não, mas eu disse-te para não esperares que desaparecesse todo depois da indução. Só esperávamos matar as células cancerígenas existentes.
— E matámos?
— Quase todas.
— Quase todas? Quase aplica-se sequer a um tratamento contra o cancro?
DiAngelo riu-se.
— É um novo provérbio: quase não se aplica a granadas de mão, gravidez ou cancro.
Lily não disse nada, presa à palavra gravidez. DiAngelo parou rapidamente de rir e continuou.
— Parece que abrandámos a produção de novas células cancerígenas. Isso é extremamente significativo.
— Abrandámos?
— Oh, olha, Lil. Isto não é o fim. Nem sequer é o princípio do fim. Isto é apenas o fim do princípio.
— Só me faltava esta, o meu oncologista a citar Churchill.
O dia 22 de setembro veio e foi. Lily cancelou o seu vigésimo quinto aniversário.
29
Spencer preso pela segunda vez
Complicando a intuição de Spencer, o exame ao livro de registos do Four Seasons Hotel não revelou no nome de Andrew Quinn. E decerto não mostrou o de Amy. Ainda assim, a carteira de fósforos do 57/57 ficou. Talvez o hotel diamante de quatro estrelas fosse demasiado caro para Andrew e ele levasse a jovem amante para o Sheraton na Seventh. Havia três mil hotéis na baixa da cidade de Nova Iorque. A investigação seria assaz frutífera.
Estava preso ao Four Seasons Hotel porque toda a essência combinava com os sacos de compras vazios de Amy. Uma pessoa não trazia malas Prada para casa da 57th, e mousse Frederic Fekkai, também da 57th, canetas Mont Blanc, também da 57th, para depois caminhar para a Seventh, na 51st, e foder no Sheraton.
E Spencer estava preso a 14 de maio porque Amy disse à mãe que estaria em casa nessa sexta à noite. Disse à mãe que iria, nunca chegou, nunca telefonou e não havia telefonemas feitos do apartamento após quinta, 13 de maio. Esteve na sopa dos pobres na manhã de 14 de maio. Parecia altamente provável ser esse o dia em que Amy desapareceu.
E agora havia Milo.
A polícia foi a todos os abrigos de mendigos na cidade de Nova Iorque à procura de um homem de estatura média em farrapos, de olhos assustadores e possíveis tatuagens faciais que dava pelo nome de Milo.
Fez Harkman ligar para o Riker’s, Sing-Sing e Attica a perguntar se tinham lá tido um homem chamado Milo que tivesse sido recentemente libertado da prisão. Não teve sorte.
Spencer não sabia o que esse Milo tinha andado a fazer na sexta, 14 de maio. Andrew era mais fácil de localizar.
A agenda de Andrew disse a Spencer que ele estava em D.C. na quinta, o que quinhentas pessoas ou mais podiam confirmar, e voltou para Nova Iorque no primeiro comboio de sexta, o que as sessenta e três pessoas que estavam no comboio com ele podiam atestar. Chegou a casa às 20h30 naquela noite, de acordo com a mulher. Um pouco tarde para uma sexta-feira à noite? De modo algum, disse Miera. Normalmente chegava a casa a essa hora.
Estava chateado, preocupado, normal, estranho quando chegou a casa? Miera friamente respondeu ao telefone que não se lembrava.
Antes de ir para casa, Andrew parou no banco e no seu escritório de Port Jeff. Levantou dinheiro para o fim de semana no multibanco da Port Jeff Main Street, pertencente ao Chase Bank, às 19h22 e levou o recibo como prova disso. Era estranho? Guardar um recibo de há quatro meses de uma transação insignificante no multibanco? Spencer nem sequer guardava os recibos de há cem minutos.
Os extratos bancários de Andrew mostravam que de facto tinha levantado cem dólares às 19h22, mas também mostravam que ele tinha levantado dois mil dólares na Penn Station às onze daquela manhã. Isso era muito dinheiro para trazer no bolso. Porquê as duas idas ao multibanco?
Um olhar pelos extratos bancários até ao início de 1999 mostrou a Spencer que, regularmente, numa quinta ou sexta, somas avultadas de dinheiro saíam da conta de Andrew para as mãos de Andrew, talvez explicando alguns dos sacos de compras da Prada. Pagava o Four Seasons em dinheiro? Mesmo assim, teria de fazer o check-in no hotel.
Os funcionários do Four Seasons não conseguiam confirmar de qualquer modo se Andrew Quinn usou os serviços de porteiro ou carregador. Talvez tivessem visto o congressista, mas não tinham a certeza. Talvez tivessem visto Amy, mas também não tinham a certeza disso.
O comboio de Andrew vindo de D.C. chegou à Penn Station, em Nova Iorque, às 10h45, mas ele só apareceu em Port Jeff às sete da noite.
O comboio da Penn Station até Port Jeff demorava cerca de oitenta minutos. Onde esteve Andrew nas seis horas e meia de intervalo?
A gerente do escritório em Port Jeff confirmou que ele tinha ido ao local pouco tempo depois das sete, pois ela estava prestes a ir para casa. Assinou alguns documentos, ditou uma carta sobre novas regras de parqueamento na Main Street, que ela podia mostrar a Spencer, e verificou a agenda para a semana seguinte.
Com semelhante tipo de escrutínio, como é o que o congressista conseguia ter um caso, de todo? Ainda assim, havia seis horas e meia por explicar. Não podia levantar dinheiro do multibanco sem que alguém verificasse as horas no recibo. Ninguém reparou no congressista Andrew Quinn de braço dado com uma jovem ruiva? Como é que Amy escapou ao escrutínio? Andrew disse que ele e Amy tinham acabado em meados de abril, mas já estavam em meados de maio quando ele desapareceu numa sexta-feira à tarde.
As horas do alibi estreitavam-se. Era tempo de falar com Andrew Quinn mais uma vez. Mas aparentemente, numa tentativa de salvar o casamento, Andrew e Miera estavam a passar duas semanas de férias em Oahu, Havai, apesar de haver sessão de congresso. Andrew pediu uma licença.
30
Quimioterapia avançada
Joy apareceu à porta de Lily, cortesia de Spencer, na forma de uma mulher magra e rabugenta de cinquenta anos, que olhou para dentro de casa e perguntou:
— Você vive aqui? O seu... — Acenou em direção ao fundo das escadas, onde era suposto Spencer estar invisivelmente a esconder-se. — ... O homem que me contratou disse que você tinha dinheiro.
Surpreendida, Lily disse:
— E tenho. Tenho dinheiro, mas o que é que... desculpe, o que é que isso tem a ver com seja o que for?
— Nada. Pensei que vivesse melhor, é só isso. — Sorriu. — Estava à espera de um apartamento do género Park Avenue.
— Na Avenue C?
— Tem razão, não pensei bem nisso. — Joy entrou.
Lily tinha chegado a casa três dias antes e uma semana depois tinha de regressar ao hospital para a primeira rodada de quimioterapia em ambulatório. Será que ia haver gentileza, compaixão de Joy? E era disso que precisava? A verdade é que Lily não sabia do que precisava.
O apartamento era agora um espaço estranho para ela. As cinco semanas que passaram tinham sido há séculos. Parecia esquisito para Lily que o Presidente fosse o mesmo, o ano o mesmo, que a mercearia continuasse a vender pêssegos, que a pizaria da esquina ainda tivesse a promoção de leve-duas-pague-uma nas noites de terça-feira.
A avó e as irmãs, com as quatro sobrinhas, trouxeram-na para casa. E rapidamente ficou muito barulhento por causa das pequenas.
Antes de irem embora, Amanda disse:
— Pinta alguma coisa, Lil. Vais sentir-te melhor.
Lily não sabia o que pensar daquilo. Pinta alguma coisa e vais sentir-te melhor? Amanda quis dizer fisicamente? Tudo o que Lily tinha de fazer era pintar e o cancro esfumava-se? Então porque tinha aparecido, em primeiro lugar? Tinha aparecido porque Lily gostava de dormir, não era suficientemente dedicada à pintura? Ou Amanda quis dizer sentir-se melhor psicologicamente? Pinta alguma coisa e vais sentir-te melhor por dentro. Sentires-te melhor por teres cancro aos vinte e quatro.
Vinte e cinco, agora.
Lily colocou-se em frente ao espelho completo do quarto de Amy. Ficou ali por um mero momento, dividido em momentos mais pequenos onde as memórias apareciam em flash — de usar roupa de sexta à noite para ir à discoteca, roupa para a escola, de ver corpos nus bronzeados com marcas de fatos de banho. Do corpo de Amy em frente àquele espelho no seu sutiã e cueca a condizer. E de Amy dizer «tenho de perder algum peso, irmã, se quiser ter hipótese de arranjar um homem», mas à medida que Lily se lembrava de Amy a dizê-lo, a memória do momento foi tingida pela desonestidade daquilo tudo: Amy já estava com Andrew nessa altura, já tinha um homem, já tinha o irmão de Lily.
Anne resmungou, mas fez o que Lily pediu: retirou todos os espelhos do apartamento, os três existentes, arrastando-os para fora para o patamar.
O espelho da casa de banho estava pegado a um armário e não pôde ser retirado, mas Lily cobriu-o com papel e fita adesiva e depois pintou o papel de preto. Perfeito na sua falta de reflexo, e assim, de pensamento.
A sweatshirt do Mickey Mouse que Amanda lhe comprou escondia o emagrecimento do seu corpo, mas não podia esconder o que tinha acontecido à cara de Lily nas cinco semanas que passara deitada de costas ou debruçada na sanita — as bochechas chupadas, a pele esticada sobre osso, os lábios cinzentos, caídos, a tremer ligeiramente, a cabeça careca.
Pegou num lenço e amarrou-o por baixo do maxilar como uma babushka e de repente parecia ter sessenta, setenta anos e sentia-o. De repente parecia mais velha do que a avó e sentia-o. Agora, numa justaposição de almas, a avó saía de casa, apanhava táxis e metros para chegar ao hospital e tomar conta de Lily. O cancro de Lily fez a avó ficar jovem de novo! Livre de novo! Lily está doente e a avó, curada da agorafobia, apanha táxis. Iupiii! Entretanto, Lily tem ordens estritas para não se aventurar fora de casa. Marcie e o Dr. D não confiam que os seus ossos não se partam dada a sua fragilidade, que a pele não se rasgue, que alguém não lhe espirre para cima.
Os primeiros três dias passaram numa névoa glacial. Uma coisa que fez foi atender o telefone. Sabia que a sua casa ia ficar como a Penn Station à hora de ponta se não atendesse. Por isso, atendia para ficar sozinha. Sim, estou bem, a sentir-me bastante bem, sim, a comer, sim, a beber fluidos, sim, a tomar banho, até a ler, e sim, a ver televisão, está tudo bem, obrigada por teres ligado.
E depois chegou Joy. Joy tinha o cabelo liso castanho, uma mala hippie ao ombro, uma saia hippie comprida e solta e uma camisola larga, como se se estivesse a esconder. Mas a cara era inteligente, o nariz inteligente. Joy mantinha a cara, o cabelo e as roupas de maneira a não ter de pensar em arranjar-se, ou em maquilhar-lhe, ou em moda. A pele dela parecia ter sido ocasionalmente bronzeada e os olhos castanhos tinham traços de maquilhagem antiga. Maquilhagem antiga já com dias.
Joy quis saber onde ia dormir e ficou agradada com a presença de um segundo quarto. Lily quis dizer que não esperava que Joy fosse passar a noite, mas lembrou-se depois de que tinha sido contratada como enfermeira 24 horas por dia. Desconfortável com o facto de Joy ficar no quarto de Amy, Lily não conseguiu explicar, nem mesmo quando a mulher perguntou onde é que estava a colega de casa.
— Está fora há um tempo — disse Lily. E à questão de quando é que ia voltar, Lily respondeu: — Não sei e podemos falar de outra coisa?
O quarto de Amy era muito maior do que o de Lily e Joy ofereceu-se de bom grado para trocar, mas Lily recusou, por isso Joy disse que ia dormir no quarto até Amy voltar e depois passaria para o sofá-cama. Lily perguntou quanto tempo é que Joy contava ficar. Afinal, apetecia-lhe dizer, Eu não vou ficar doente para sempre.
— Vou ficar até já não estar doente, o que lhe parece? Mas se eu não estiver a resultar consigo, basta dizer uma palavra e eu saio. Mas vou precisar de folga aos domingos. Vai ser o seu dia mais fácil, de qualquer modo. Acha que dá? E quem me vai pagar, você ou o seu... — E acenou de novo.
— Eu.
— Hum, quem é ele afinal?
— Ele é quem toma conta das coisas.
Lily sentiu-se melhor por Joy dormir no quarto de Amy quando se apercebeu que a maioria das coisas pessoais de Amy tinham sido confiscadas por Spencer como provas. As fotos de Amy, as roupas, livros, sacos, pequeninas coisas todas em exposição de A a ZZZ na pequena sala de provas da esquadra.
Lily deu trezentos dólares a Joy e pediu-lhe para comprar lençóis e toalhas novas. E assim que foi deixada sozinha, ligou a Spencer e perguntou-lhe se achava que Joy tinha sido uma boa escolha.
— Ela é exatamente o que precisas — disse ele. — Vais ver. Confia em mim.
Porque é que devo confiar em ti? Pensou Lily. Queres mandar o meu irmão para a prisão.
Infelizmente, Spencer tinha razão acerca de Joy. A mulher não parava de se mexer, limpar, cozinhar, fazer compras. Telefonou a Amanda, Anne e à avó e disse-lhes para ficarem em casa na segunda e terça pois ela ia levar Lily ao hospital para as sessões de quimioterapia.
De alguma forma, o facto de Lily estar em mãos protetoras e capazes fez toda a gente sentir-se melhor, incluindo a própria Lily. E o Dr. D parecia extremamente agradado com a escolha de Joy como enfermeira. Verificou-se que a conhecia. Um médico amigo dele tinha tratado o marido de Joy quando teve um linfoma. Joy ainda tinha uma aliança no dedo, mas quando Lily perguntou por acaso como é que o marido a deixava ficar com alguém 24 horas por dia, Joy respondeu que o marido tinha morrido há um ano, em agosto, depois de um transplante de medula o deixar com uma violenta pneumonia.
Lily não sabia o que responder. Quis perguntar se não havia antibióticos para isso, mas antes de poder falar, Joy acrescentou:
— Por isso, não te preocupes. Já vi muitos mais doentes do que tu.
E a isso Lily respondeu.
— Não quero ouvir que outras pessoas também sofreram — disse. — Não quero ouvir que outras pessoas estiveram pior do que eu, mais doentes, que se sentiram horríveis. É por isso que eu não vou a correr para nenhum grupo de apoio. Lamento a perda do seu marido, mas saber coisas sobre ele só me faz sentir pior porque não consigo imaginar nada pior do que isto. O que me faz sentir melhor é pensar que sou única, que estou inacreditavelmente doente, mas inacreditavelmente forte, também. Como o meu irmão, o poderoso Quinn. Não quero ouvir sobre outras pessoas. Não quero ler nada sobre outras pessoas. Não quero ler as histórias de cancro delas. Estou a viver a minha, obrigada. Consegue perceber?
— Sim — respondeu Joy. — Você é surpreendentemente direta para alguém tão fraca. — Tinham acabado de chegar a casa depois da primeira sessão de quimio de Lily.
— Na verdade, não me sinto muito mal. — Só dois sacos plásticos, um de Vepesid, um de citarabina a gotejar durante duas horas para dentro do seu átrio direito.
Lily não devia ter falado tão depressa porque depois dos dois sacos de terça-feira, deteriorou-se rapidamente. Passaram dias sem comida. Ela não queria comer. Joy insistia. A sua avó com a sua canja insistia. Amanda, sempre maternal, insistia com os seus brownies. Anne, com a sua comida tailandesa, paga por Lily, insistia. Spencer com a piza, insistia. E Lily comeu um pedaço do que ele estava a oferecer antes de ir à casa de banho vomitá-lo. À porta da casa de banho estava Joy.
— Não pode vomitar o único pedaço de comida que ingeriu num dia inteiro. — Ela não se mexeu da porta. Lily não teve hipótese senão inclinar-se para vomitar aos pés de Joy, nas largas pranchas de madeira do chão, enquanto Spencer virava a cabeça. Depois disso, Joy nunca mais bloqueou a entrada da casa de banho, mas tentou encontrar e fazer comida que Lily conseguisse manter. Mais fácil de dizer do que fazer. Depois da segunda semana, Lily não conseguia segurar nada no estômago às segundas e terças. Na quarta, comia um pouco de canja. Spencer trazia a sopa do Odessa.
— Lily, tens de comer. Percebes? Não podes não comer.
— Não tenho fome.
— Quero lá saber. Não se trata de ter fome, trata-se da comida. A tua força volta com a comida.
— Não tenho fome.
— Quero lá saber. Come.
— Fala comigo. Há novidades?
— Não te digo a não ser que comas.
Então Lily, porque era curiosa, bebia um pouco de líquido, comia algumas bolachas e depois ouvia Spencer, todo o tempo a lutar com ela própria para não vomitar. Se se deitasse muito sossegada no sofá-cama e não falasse ou acenasse com a cabeça, sentia-se equilibrada.
O que é que posso fazer para te sentires melhor? O que posso fazer para ajudar?
Rachel. Paul. Dennis, o gerente Rick, a avó, Amanda, Anne, Spencer, todos em uníssono agora: O QUE POSSO FAZER PARA AJUDAR?
Parem de falar do Andrew. Parem. Não consigo ouvir nem mais uma palavra sobre isso. Estou doente, não veem? Mas às vezes, Lily também tinha de se desviar do cancro.
Desviar para onde?
31
Interrogatório avançado
Uma semana depois de Andrew voltar para casa, Spencer foi até Port Jefferson para falar com ele. Harkman acompanhou-o, mas ia extremamente relutante, repentinamente resmungando sobre outros casos, outras pistas, outras investigações, coisas que tinha empilhadas na secretária, mas sobretudo qualquer coisa sobre não se sentir bem. Spencer ainda começou a argumentar, mas logo parou. Não fazia sentido. Era preciso fazer alguma coisa a respeito de Harkman. Spencer precisava de um novo parceiro. Precisava do seu amigo Gabe dos Homicídios. Seguiram até Port Jefferson num silêncio sepulcral.
Spencer sabia que talvez tivesse de trazer Andrew para interrogatório e, para tal, Andrew teria de ser formalmente detido e depois formalmente acusado. Mas de quê?
— Não tem qualquer noção de decência? — disse Andrew. — Não posso acreditar que está aqui. Já lhe disse da outra vez. Não sei nada sobre o desaparecimento da Amy, e nada mudou desde então. Tem ideia do que isto está a fazer à minha mulher?
— Prefere vir connosco e falamos em privado na esquadra?
— Porque está aqui? — Andrew abriu a porta de par em par.
— Porque tenho dados novos. Acredite, se não tivesse nada de novo para lhe perguntar, não estaria aqui. — Spencer entrou.
— Você tem algo contra mim — disse Andrew. — Desde o princípio. Deve sentar-se ao balcão do bar a fazer julgamentos a meu respeito.
O olhar de Spencer obscureceu-se.
— Uau — disse —, isto não tem nada a ver comigo. Por mais lisonjeado que me sinta por falar de mim próprio com um congressista dos Estados Unidos, nós vamos falar é sobre si. Aqui ou na esquadra? A decisão é sua.
— Aqui, mas digo-lhe já, detetive, que é a última vez.
Spencer deu um passo em direção a um Andrew bem maior e mais volumoso.
— Eu é que lhe digo, senhor congressista — disse ele —, quase encurralando Andrew em direção à entrada, vamos falar tantas vezes quantas forem necessárias e quando você deixar de falar comigo vou acusá-lo de obstrução à justiça, estamos entendidos? Estou-me nas tintas para quantos amigos você tem na polícia.
Andrew não respondeu. Spencer e Harkman seguiram-no até ao escritório. Ele bateu com a porta e inclinou-se sobre a secretária.
— O que foi? — perguntou em voz alta. — O que foi agora?
Harkman estava de pé junto a Spencer com uma expressão quase tão amarga e zangada quanto a de Andrew.
— Você comprou à Amy um cinto da Ferragamo de 195$ na 5th Avenue em março? — perguntou Spencer.
Andrew riu-se.
— Está mesmo a perguntar-me se me lembro de comprar um cinto há seis meses?
— Não. Estou a perguntar-lhe se se lembra de ter pago 200$ em dinheiro por um cinto há seis meses.
— Detetive, digo-lhe honestamente que não me lembro.
— Esse honestamente é para contrastar com todas as outras vezes que disse que não se lembrava?
A face de Andrew gelou.
— Tem mais alguma coisa além do cinto?
— Sim. Tiffany, Prada, Guess, Gucci, Versace, Mont Blanc, Louis Vuitton. Todos presentes seus?
— Não sei. Alguns, possivelmente. Não todos.
— Quero dizer com isto que a tratava bastante bem, não era?
— Detetive, em que raio é que isso lhe diz respeito?
— Eu vou explicar. Não gostaria de ser indelicado e vou perguntar-lhe da forma mais educada que conseguir, mas certamente que você e Amy não se limitavam a ir às compras quando estavam juntos?
Andrew não respondeu.
— Você sai do comboio vindo de D.C, vocês os dois encontram-se, almoçam, e depois? Onde é que iam quando não estavam a beber copos no 57/57 ou a comprar canetas na Mont Blanc?
— Não sei o que me está a perguntar.
— Tenho de ser mais direto? — Spencer abanou a cabeça exasperado. — Onde é que iam quando...?
— Aqui, ali. A um hotel.
— O Sheraton? O Grand Hyatt? O Marriott? O Hilton? O Holiday Inn? — perguntou depreciativamente Spencer.
— Não me lembro.
— Não se lembra?
— Não — retorquiu Andrew em tom de desafio.
Tanta intransigência. Spencer tinha que tentar alguma coisa. Mas Andrew estava a ser tão evasivo que o deixava sem alternativa.
— Estou a ver. A Amy tem uma quantidade considerável de amostras de champô e de loção de um determinado hotel. Acha que dar uma olhadela poderia ajudá-lo a lembrar-se?
Andrew suspirou profundamente.
— Ao Four Seasons, se tem mesmo de saber.
Aha. Com que então o congressista só respondia a verdade quando estava encostado à parede.
— O Four Seasons. — Spencer assobiou. — Não sabia que o Four Seasons era o tipo de estabelecimento que aluga quartos à hora.
— Oh, já chega!
Estavam todos de pé. Andrew tinha os braços cruzados. Harkman transpirava. Era difícil para ele estar tanto tempo de pé: as pernas começavam a ficar inchadas e entorpecidas. O seu odor acre enchia o escritório de Andrew.
Spencer encarou Andrew.
— Obviamente sabe onde costumavam ficar. Porque não dizê-lo? — disse calmamente. — O que está a fazer é a própria definição de obstrução à justiça. Está a dar-me amplas razões para acreditar que tem muito mais a esconder do que aquilo que lhe estou a perguntar.
— Detetive, está a ser particularmente obtuso para um investigador. Eu tenho uma mulher que não levei ao Four Seasons. Sinto-me extremamente desconfortável a falar consigo sobre este assunto, percebe agora porque é que não estou talvez tão disponível como poderia estar se estivéssemos a falar de desporto ou de política?
— De facto, você tratava a Amy McFadden muitíssimo bem. — Spencer estudava-o. Parecia haver inúmeras razões para Andrew não ser honesto. Como quartos de hotel a 600$ com o dinheiro de Hartford da mulher.
— Em que nome se registou no Four Seasons?
— Sabe que mais — disse Andrew —, recuso-me a responder a essa pergunta. Simplesmente recuso-me.
— Porquê?
— Detetive! — Andrew expirou. — Não vê o que isto vai parecer? Já acabei com a minha candidatura ao senado. Estou a tentar desesperadamente salvar o meu emprego e o meu casamento. As suas perguntas não vão ajudá-lo a encontrar a Amy, mas vão sair-nos muito caras, a mim e à minha mulher.
Spencer notou a falta de resposta.
— Em que nome? — repetiu.
— No nome de solteira da minha mulher — disse Andrew entredentes. — Está contente agora?
— Não, contente não estou. Mas começo a compreender um pouco melhor. Senhor congressista, o que fez na sexta-feira, 14 de maio? Apanhou o comboio do costume, que o deixou na Penn às 10h45 da manhã. Mas já eram sete da tarde quando chegou ao seu escritório em Port Jeff. O que lhe aconteceu nas horas que decorreram entre as onze, que foi quando levantou dois mil dólares de um multibanco na Penn Station, e as cinco e meia, quando fez a viagem para Port Jeff?
— O que me aconteceu nas horas que decorreram entre as onze e as cinco e meia?
— Porque é que está sempre a repetir as minhas perguntas, congressista?
— Porque não entendo o que me está a perguntar. Quais horas?
— As horas da parte da tarde do dia de sexta-feira, 14 de maio de 1999. As horas que costumava passar no Four Seasons, mas como já nos tinha dito, o senhor e a Amy acabaram a relação em abril.
— É verdade.
— Bom, onde estava então, senhor congressista, a 14 de maio?
Andrew quase gaguejou.
— Francamente, não me lembro. Não entendo o que é que a tarde do dia 14 de maio tem a ver com o que quer que seja.
— Seis horas a meio da última sexta-feira em a Amy foi vista viva, é isso que tem a ver.
— Acho que não me está a ouvir, detetive.
— Estou a ouvi-lo muito bem. Se não estava com ela, onde estava?
— Não estava em lado nenhum. Não sei do que está a falar. Pensava que não fazia ideia de quando ela desapareceu?
— Sabemos quando foi a última vez que foi vista com vida. O senhor saiu do comboio às onze, levantou dois mil dólares e só apareceu em Port Jefferson às sete. Onde estava?
— Não estava em lado nenhum, já lhe disse. Talvez tenha ido às compras.
— Onde costumava ir às compras com a Amy?
— Por aí.
— Dessa vez foi às compras com ela?
— O inglês não é a sua língua materna? Já lhe disse mais de mil vezes, eu não a vi nessa sexta-feira!
— Então o que comprou?
— O que comprei? — Andrew estava incrédulo. — Não me lembro.
— Deve ter comprado alguma coisa.
— Devo, mas já passaram quatro meses. Não me lembro.
— Tem recibos das compras que fez? O senhor guardou o recibo do multibanco daquele dia quando levantou dinheiro em Port Jeff. Guardou recibos das suas compras dessa sexta-feira? Talvez junto ao recibo do multibanco?
— Não tenho recibos dessas coisas. Nem me lembro das lojas a que fui.
Harkman e Spencer abanaram a cabeça. Harkman pronunciou as primeiras palavras daquele interrogatório.
— Congressista, nunca vi um homem que se lembrasse de tão pouco sobre tanta coisa. Não me parece que o senhor tenha capacidade para elaborar leis para o país.
— Poupem-me a esta merda.
— Será que indiciá-lo por um crime capital poderia ajudá-lo a lembrar-se?
— Quantas vezes vou ter de repetir? Eu não a via desde abril, que foi quando ela... quando nós acabámos. Não a vi nessa sexta-feira, já disse.
— Então porque é que levantou os dois mil na Penn Station?
— Sei lá eu! Provavelmente foi o dinheiro que gastei nas compras.
— Compras de que não se lembra de fazer, coisas de que não tem memória, em lojas cujo nome não sabe dizer?
— Detetive, vou ligar ao meu advogado e ao seu superior porque tudo isto não passa de assédio descarado.
— Sabe que mais? — disse Spencer. — Não consigo acreditar que um homem que compra à amante pelo menos quatro conjuntos de joias da Tiffany e a leva ao Four Seasons seja o mesmo homem que não consegue lembrar-se da primeira vez que a viu, da primeira vez que estiveram juntos, de quanto tempo o caso durou, do que lhe ofereceu e da frequência com que estavam juntos. Ou é um ou é o outro, mas não podem ser ambos verdadeiros, não faz sentido. Entende o que estou a dizer?
— Não entendo nada do que diz. Deixei de o ouvir.
Harkman levantou-se com dificuldade.
— Spencer, vamos — disse. — Vamos embora.
— Só mais uma coisa — disse Spencer. E perguntou se Andrew sabia que Amy era voluntária no abrigo.
— Vagamente. Superficialmente. E então? Tenho a certeza que há muitas coisas sobre ela que eu não sabia. — Falava num tom gélido.
— Sabe quem é o Milo?
O congressista pestanejou antes de responder.
— Não.
— Nunca ouviu falar dele? — Spencer nem pestanejou para não perder pitada.
— Não me recordo. Não me parece. Quem é ele?
— É o que estamos a tentar descobrir. — Saberia Andrew quem era Milo e não estava a querer dizer? Spencer não estava a perceber nada. — Congressista, se souber quem é o Milo e se o pudermos encontrar, talvez ele saiba onde está a Amy, e se for esse o caso, não voltamos a vir aqui incomodá-lo. Estou certo de que gostaria disso, não? Mas da forma como as coisas se estão a apresentar, eu vou voltar — disse Spencer. — Vou voltar com um mandado de captura.
E no carro, um Harkman exausto, de olhos fechados, disse a Spencer:
— Não me lembro de nenhuma miniatura de champô do Four Seasons na sala de provas.
— Ah — disse Spencer. — É porque não havia nenhuma.
O corpo de Harkman tremeu de descrença.
— Homem, você tem-nos no sítio.
No dia seguinte, as manchetes dos jornais estavam cheias do congressista e do resto.
32
O alibi de Andrew
O chefe Colin Whittaker chamou Spencer ao gabinete e pediu-lhe para fechar a porta. — O’Malley, estás mompletamente caluco?
— O que é que se passa, chefe? — Spencer podia ver Harkman pela janela de vidro, sentado, a suar, com um sorrisinho satisfeito naquela cara gorda.
Whittaker era alto, de cabelo grisalho despenteado. Usava duas armas, sem casaco, e já transpirava apesar de ainda ser de manhã cedo e estar frio.
— O nosso honrado congressista está prestes a explodir.
— Sim, explodir na prisão.
— Ele disse que foste a casa dele e que ultrapassaste completamente os limites. Diz que o pressionaste. Diz que vai processar o NYPD.
— Não o pressionei — retorquiu Spencer. — Fiz-lhe algumas perguntas de rotina, às quais ele respondeu muito lentamente, por sinal. Cauteloso, a tentar ganhar tempo, a gaguejar, evasivo, rápido a ficar zangado, a repetir as minhas perguntas. Lento. A esconder alguma coisa. A mentir, chefe.
— Puseste-o a cuspir informação baseado em provas que não tens?
— Pu-lo a dizer a verdade sobre uma maldita coisa, sim. — Harkman era mesmo um grande cabrão.
Whittaker colocou as mãos uma na outra e quando falou por entre dentes, usou um tom de voz deliberadamente apaziguador, como se faz com as crianças desobedientes.
— Spencer, tenho sido muito bom para ti. Nunca duvido de ti, deixo-te fazer o que queres, protejo-te, apoio-te e às vezes encubro-te. Tens merecido. Mas receio que tenha de parar com isso. Sabes quem é o Bill Bryant?
— Não.
— É um vereador reformado de Nova Iorque, que se tornou homem de negócios, filantropo, beneficente de marcos históricos da cidade, e um patrocinador muito generoso do NYPD. A maioria dos coletes Kevlar que temos, incluindo o teu, vieram da generosidade dele.
— Que bom para ele. O que é que isso tem a ver com seja o que for?
— Tem um escritório na Carnegie Hall Tower. Na 57th Street.
— Está bem... — Spencer recuou.
— O Bryant telefonou ontem à noite, já tarde, ao seu grande amigo comissário da polícia — o comissário da polícia! —, e disse que Andrew Quinn o tinha ido visitar na tarde de 14 de maio para tomarem uma bebida por volta da uma ou duas da tarde. Estiveram duas ou três horas juntos, foram tomar um copo ao bar 57/57, e depois Quinn foi para a Penn Station para apanhar o comboio para casa. O nosso vereador, que é uma figura pública há cinquenta anos e um membro muito respeitado da comunidade, disponibilizou-se para jurar e testemunhar sobre isto. Esta manhã mandou-nos a cópia original da sua agenda pessoal, onde o nome de Andrew Quinn se encontra escrito à mão com a própria letra de Bryant, no espaço entre a uma e as quatro da tarde.
— A sério?
— A sério.
— Porque é que o Quinn não se lembrou disso ontem quando falei com ele?
— Não sei porquê. Não conheço tudo o que vai naquela mente adúltera canalha. No entanto, se ele precisava de um alibi para essa sexta à tarde por causa de alguma teoria absurda que tenhas sonhado, já tem um.
— Convenientemente, arranjou um no dia a seguir a eu ir falar com ele, quando não tinha nenhum.
— Ele não se lembrava. Disse que ficou nervoso, que decorria um evento social na casa dele, que se sentiu extremamente pressionado e stressado por ti.
— Oh, tretas!
— Spencer, sabes uma coisa? Que tal fazermos um pequeno acordo? Até encontrares o corpo, partes do corpo, roupas ensanguentadas ou fotografias do cadáver na carteira do congressista, não incomodas mais o congressista, o vereador, os senadores, os governadores ou o raio do presidente. Deixas simplesmente todos os políticos fora disto até teres uma centelha de prova de delito. O que achas?
— Chefe, vá lá. O Quinn tem muito a perder. Como é que sabe que ele não a matou por ela ameaçar tornar o caso público? Talvez estivesse grávida. Ele vai candidatar-se novamente ao senado, vai ver. Não tem vergonha nenhuma. E você sabe disso. Repare, ele usou o nome de solteira da mulher para se registar num hotel onde ia saltar para cima da amante! Quer dizer, é este o tipo de homem com que estamos a lidar.
— Espero que o digas em sentido figurado, O’Malley. Sim, é um filho da puta para a mulher. É para isso que serve o divórcio. O resto que me contas são só conjunturas, suposições, presunções ou adivinhas. Não é trabalho de polícia. Móbil especulativo, sim, mas não prova, nem sequer prova circunstancial! E ele agora tem um alibi.
— Bem, talvez ela não tenha sido morta naquela sexta. Talvez tenha sido morta no sábado ou na segunda seguinte, quando o congressista voltou para D.C..
Whittaker bateu com a cabeça várias vezes na secretária antes de começar a falar outra vez.
— Spencer, estou a falar a sério. Isto não é um homicídio. É uma pessoa desaparecida. Estás a enfurecer metade das forças da lei de Nova Iorque e nem sequer sabes se foi cometido um crime. Deixa a merda do congressista em paz. Ouviste-me?
— Vamos prendê-lo e deixar que os tribunais decidam.
— Prendê-lo com base em quê? Por ir às compras? Tem um alibi comprovado! Ah, e por falar nisso, outra coisa, que pareces esquecer-te: não temos nenhum corpo!
— Sim, também não a temos a ela! E sabemos que era suposto ter ido para casa da mãe e nunca apareceu.
— Oh, sim, está bem. — Whittaker tossiu e sentou-se direito, assumindo a gozar um ar sério como se estivesse em tribunal. — Sra. McFadden, diga-nos, com que regularidade falava com a sua filha? Talvez uma ou duas vezes por mês, diria. Às vezes, ainda menos. A Amy era fiável? Não me diga! O quê? Houve muitas vezes no passado em que ela disse que ia aparecer no fim de semana e depois nem aparecia, nem ligava a explicar? Bom, isso não pode ser, Sra. McFadden! Construímos o nosso caso inteiro com base na fiabilidade da Amy. Ela pura e simplesmente não podia não ter aparecido e depois nem ter ligado! Porquê? Porque é a nossa única prova incontestável de homicídio!
Spencer fitava o comandante sem sequer pestanejar.
— Assim que tiver terminado, chefe.
— Não temos nada, Spencer. Tu não tens nada. Não temos corpo, não temos sinais de luta no apartamento, não temos uma carta dela, uma entrada no diário a implicar o Quinn, um telefonema suspeito. Não temos um pedido de resgate de um raptor, não temos sangue no fato do congressista. Não temos testemunhas, nem fluidos, nem provas, nem corpo! Não temos nada! É tempo de seguir em frente, meu amigo. Tempo de seguir em frente. Tens dezoito casos do Ministério Público abertos na secretária e o Harkman está a ficar impaciente.
— O Harkman que se foda! — Spencer nem sequer baixou a voz.
— Não queres que o promova a ele em vez de ti para o calar, pois não?
Spencer quis cuspir assim que saiu do gabinete de Whittaker.
Daí em diante, Colin Whittaker começava a reunião matinal com todos os detetives e agentes de patrulha da esquadra da seguinte maneira:
— Bom dia, senhoras e senhores, queria começar a nossa reunião reiterando o seguinte ponto em relação ao caso McFadden do Detetive O’Malley. Encontrámos algum corpo até esta manhã?
— Não — respondiam os agentes em uníssono.
— Detetive O’Malley, ouviu isto? Não há corpo. Por isso, é uma investigação de homicídio ou de pessoas desaparecidas? Detetive O’Malley, não ouvi a sua resposta.
— Pessoas desaparecidas. — Entredentes.
— Muito bem. Agora que isso ficou esclarecido, vamos continuar com o próximo assunto da nossa agenda de hoje.
33
O caminho do riso
Só por volta do início da sua terceira semana de quimio é que Lily disse a DiAngelo: não aguento mais isto. Achou que as palavras tinham saído sussurradas pois ele respondeu:
— O quê?
— Isto. Não aguento.
— Para. Estás a ir muito bem, isso não é nada.
— Estou a falar a sério. Eu só... — Apetecia-lhe dizer: estou demasiado triste, não consigo ultrapassar o facto de me sentir tão em baixo e não aguento mais. A tristeza nunca se vai embora. E é dominante. As mágoas que a afligiam assaltavam-na por todos os lados.
Por exemplo:
Lily e Spencer estavam sentados lá fora, no alpendre do prédio dela. Estava um dia de verão de São Martinho e, prometendo carregá-la cinco lanços de escadas acima, se tivesse de ser, convenceu-a de algum modo a descer e se sentar-se por uns minutos na amena tarde de outubro. Ambos vestiam calças de ganga, blusões de ganga, ambos estavam pálidos e abatidos. Ele tinha o cabelo cortado rente. Ela não tinha cabelo na cabeça, de todo. Estavam preguiçosamente sentados, a conversar sobre nada quando o beep dele tocou. Ele mostrou a Lily a identificação de chamada de J. McFadden. Lily esperou calmamente enquanto Spencer tinha uma conversa formal de cinco minutos com Jan. Ela parecia muito aborrecida. Quando ele desligou, Lily perguntou-lhe:
— Liga-te até aos domingos?
— Lily, ela liga-me todo o santo dia.
De repente, ela já não queria mais estar sentada no alpendre. Sabia que alguma coisa o tinha incomodado quando Jan McFadden ligou e já não estava a pensar nos sobrinhos e sobrinhas, que era sobre o que tinham estado a falar antes de o telefone tocar. A confirmar tudo isto, Spencer disse:
— A Jan McFadden chamou-me a atenção para a página onze do The New York Post. Viste?
— Não.
— Eu vi. Uma rapariga, de dezasseis anos, foi encontrada a flutuar no oceano Atlântico, presa às correntes que tinha atadas à volta dos pés.
Lily fechou os olhos.
— Tenho mesmo de ouvir isso? — Porque é que Jan McFadden continua a ler jornais?
Foi como se não tivesse falado.
— A rapariga foi amarrada, amordaçada e estrangulada num quarto de motel em Delaware — continuou Spencer —, e depois lançada com correntes e blocos de cimento de um avião que um dos assassinos fretou. Estava desaparecida há dois meses.
Lily ficou calada, a tentar controlar a náusea, a tentar decifrar o significado.
— Dois jovens delinquentes mataram-na. Sabes porquê?
— Não quero saber porquê.
— Um dos assassinos namorava com a irmã adotada, que não gostava dela. Ela não gostava dela e queria tirá-la do caminho. Então mataram-na.
Lily deu um suspiro teatral, bem vocalizado.
— E porque é que isto é pertinente? Porque a maioria dos homicídios são cometidos por pessoas que conhecemos? Por pessoas próximas? Ou é por achares que deves verificar alguns quartos de motel em Delaware?
— Não, não e não. Mas ainda bem que perguntaste. Os dois suspeitos foram detidos muito antes de o corpo da rapariga ter sido encontrado. Acabaram eventualmente por confessar e foram acusados de homicídio em primeiro grau. É pertinente porque mostra que se pode ter uma investigação de homicídio sem corpo. Tudo o que é preciso é uma potencial confissão.
— Diz isso ao teu chefe, não a mim. — Lily tentou levantar-se com dificuldade. — Não me estou a sentir bem — disse, usando o cancro para se desviar de Amy. — Dói-me a garganta. E sei o que pensas. E tu sabes o que penso. Não aguento mais ouvir falar disso, Detetive O’Malley.
Outras vezes, Lily tentava desviar-se do cancro examinando as ultrajantes desgraças infligidas ao irmão, mas virar-se para Andrew significava instantaneamente ter de se afastar de Spencer; debruçar-se sobre o irmão significava por necessidade afastar-se de Amy e de tudo de bom que sentia por ela, afastar-se de se preocupar com o desaparecimento de Amy, da vida feliz com Amy no apartamento, dos dois anos de amizade íntima; virar-se para Andrew significava invariavelmente virar-se para a hostilidade com Spencer, uma hostilidade tão crua que depois da conversa no alpendre, Lily pediu a Joy para lhe dizer para não aparecer mais até ela pôr as ideias em ordem. Lily era tão patética, nem sequer conseguia dizer-lho pessoalmente.
Só havia um pequeno problema. Pensamentos vagos de defesa acérrima do sigiloso e invisível Andrew não iam substituir para Lily a real e solene tomada de responsabilidade de Spencer por coisas que nem sequer eram dele.
E o que ficou, mesmo sem Spencer e as suas comparações malucas de Delaware, foi isto: o seu irmão Andrew mentiu e enganou Lily e a família inteira ao estar com Amy. Nada do que Spencer dissesse ou fizesse mudava isso.
Mas não havia modo de evitar o detetive em Spencer. Ele levava o detetive com ele mesmo quando trazia canja e os seus olhos azuis. Não conhecia uma maneira de vê-lo sem ter de pensar em Andrew e Amy. Spencer fez com que fosse impossível para Lily estar em negação sobre tantas coisas na vida dela, e todas de uma só vez. De tal modo que dava frequentemente por si a discutir ambos os lados, incapaz de encontrar consolo em buraco algum da sua mente. Estava doente, mas a pessoa que a ajudava a sentir-se melhor achava que o irmão tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento da sua melhor amiga. Não havia maneira de contornar o problema na sua cabeça. Foi por isso que Lily fez a única coisa que podia para manter metade da sanidade mental. Pediu a Joy para a afastar de Spencer. Joy recusou. Lily disse que era uma ordem, não um pedido, ao que Joy replicou:
— Estás a livrar-te dele e agora ameaças-me também a mim? Quem é que vai sobrar, Lily? Não queres que ele venha mais? Diz-lho tu.
Lily deixou-lhe uma dolorosa mensagem no beep. Sem sequer lhe ligar de volta, Spencer parou de aparecer, parou de telefonar. E agora, Lily não conseguia enfrentar a vida.
Sem dizer nada disto ao médico, era isso que estava a dizer ao médico: Não aguento mais.
E o que é que o bom do médico sugeriu como solução para sair daquele pântano?
— Devias ver o Jay Leno à noite. Vê o Comedy Central. Repetem o Saturday Night.
— Completamente destituído de humor, por falar nisso.
— Estou só a usá-lo como exemplo. Aluga comédias. Compra um leitor de DVD, uma televisão nova, um sofá novo. Aluga filmes, só os divertidos. Vou dizer à Joy, nada fora da secção de comédia.
— Não me parece que a Joy entenda. Ela não tem um único osso humorístico naquele corpo.
— Coisas engraçadas. Só comédias, Lily.
Tentou a abordagem DiAngelo. Com a ajuda de Joy, Lily comprou a televisão mais absurdamente cara do Best Buy — um plasma de cinquenta polegadas. A televisão era boa. Pendurou-a na parede como se fosse um quadro. Isso agradava-lhe. O leitor de DVD era bom. A manta de veludo de 300$, pesada como um tapete de pele de ovelha, era boa. O sofá da Pottery Barn era bommmm. Macio, mole, com grandes almofadas. Tudo junto quase não cabia na sala.
— Se eu não precisasse de todo o meu dinheiro para o cancro, comprava aquele apartamento da Park Avenue de que falaste, Joy — disse Lily. A conta de setembro tinha chegado recentemente. Com as taxas de hospital, o anestesista, DiAngelo, as radiografias, o sangue, os medicamentos, as drogas (nem acreditava que tinha de pagar para pôr aquilo dentro do corpo!) e a renda e contas de Anne, setembro custou a Lily quatrocentos mil dólares. A tal ritmo, era melhor ou morrer ou melhorar até à primavera porque não ia sobrar nada dela ou do dinheiro dela.
— Dinheiro bem gasto — disse Joy. — Vais ficar falida, mas vais ter a tua vida.
— Uhm, que alegria ficar viva e falida — comentou Lily.
— Preferias morta e rica?
Tapada pela pesada manta, Lily deixou-se estar sentada o resto da semana três a ver Tootsie, Airplane, Animal House, Bachelor Party, Porky’s Revenge e Bill and Ted’s Excellent Adventure. Quanto mais estúpidos os filmes, melhor. Joy sentava-se com Lily no sofá uma ou outra vez, mas assistia ao filme como se se tratasse de um I, Claudius em vez de Bachelor Party. Nem um músculo facial de Joy se movia em resposta às artimanhas no ecrã. Por volta do começo da semana quatro, enquanto o Vepesid era canalizado, Lily disse a DiAngelo que os filmes não estavam a ajudar.
— Experimentaste o Conan O’Brien? Ele é muito bom.
— Doutor, não me está a ouvir. — Ela não achava ser disso.
— Não andas a comer. Lily, tens de comer.
Ela não achava ser disso.
— O que é que queres, uma semana de folga? Teríamos de começar tudo de novo. Teríamos de fazer citarabina contínua de novo. É isso que queres?
— Não. Mas também não quero isto.
— Só faltam mais nove semanas.
Por volta da semana quatro, tudo o que era pelo no corpo tinha desaparecido. Só ficaram as pestanas. De que é que eram feitas, se não de proteína?
— Não te preocupes — disse Joy, que estava a ajudá-la a tomar banho. — Cresce tudo outra vez.
— Como se eu me importasse. Nunca mais teria de fazer a depilação.
Semana quatro: Some Like it Hot, Annie Hall, The Great Dictator, My Fair Lady, não tecnicamente uma comédia, mas um dos seus favoritos. The Graduate, Blazing Saddles, Ghostbusters. Redescobriu Bill Murray e viu Caddyshack, Stripes, Ghostbusters outra vez, Ghostbusters II e Groundhog Day. Lily encalhou no Groundhog Day. Alguma coisa nele a prendeu. Viu-o três vezes na sexta-feira, três no sábado. E então no domingo, quando Joy estava de folga, Lily ligou a Spencer e, a gaguejar ao telefone, perguntou-lhe se ele queria aparecer e ver a sua nova televisão de plasma.
Ele veio e trouxe Coca-cola, Ginger Ale e pipocas. O cabelo tinha crescido um pouco. Estava tão soturno mesmo ao seu lado no sofá, como aquela canção da Sinead O’Connor, Gloomy Sunday.
Mas então viram o Groundhog Day e ele riu-se. Depois de acabar, Lily perguntou-lhe se podiam ver outra vez.
— Se quiseres — disse Spencer.
Havia uma deixa no filme dita por Bill Murray a um dos clientes habituais num bar de bowling: «O que farias se ficasses preso num sítio onde todos os dias eram exatamente iguais e nada do que fizesses interessava?» Bill Murray fitava o cliente com a sua cara de pau e o tipo respondeu: — «Isso praticamente resume tudo para mim». Spencer olhou para Lily com a sua cara de pau e depois alcançou o comando no colo dela, carregou no STOP e disse:
— Muito bem, acho que já chega de Groundhog Day por esta noite.
Estavam sentados no sofá, ela numa ponta, ele noutra. Spencer disse que tinha de ir andando e Lily concordou que era melhor.
Às sextas, quando achava conseguir mexer-se, Lily punha o gorro de Amy e com a ajuda de Joy ia à HMV, na Broadway, ou à Best Buy, na 6th, e comprava filmes. Nada de alugar e devolver com a Blockbuster. Comprava às dúzias de uma vez. Um dia na Best Buy ofereceu-se para comprar um frigorífico a Joy, que recusou.
— Se fosse a ti, esperava pela conta de outubro do hospital antes de começar a comprar frigoríficos.
A conta de outubro do hospital foi só cem mil dólares. Lily ficou tão contente que comprou um frigorífico e um fogão a Joy. Deu dez mil dólares a Anne para a renda e extras de novembro e mais cinco mil a Amanda para os aniversários das meninas. Comprou outra manta de veludo de 300$ para o sofá, para o caso de Spencer precisar de uma.
Lily comprou todas as comédias na secção de comédia, até mesmo A Life Less Ordinary, que não parecia minimamente engraçada. Às vezes adormecia a vê-las. Às vezes via-as de olhos meio abertos. Punha os mesmos filmes uma e outra vez até os ter visto totalmente. Às vezes até se ria.
Durante a semana cinco, a falar da televisão como se fosse diretamente para Lily, Steve Martin disse:
— Não vês filmes suficientes. Todos os enigmas da vida são respondidos nos filmes. Então Lily assistiu a The Out of Towners, Dead Men Don’t Wear Plaid, Planes, Trains and Automobiles, All of Me, Man with Two Brains, My Blue Heaven e Lonely Guy para encontrar a resposta de Steve Martin ao enigma da sua vida.
— Ele respondeu em Dead Men Don’t Wear Plaid — disse-lhe Spencer. — Não te lembras? Disse: ««Todas as damas são parecidas: chegam-te à garganta, agarram-te o coração, puxam-no para fora e depois atiram-no para o chão, pisando-o com os seus sapatos de salto alto. Cospem nele, mandam-no para o forno e cozinham aquela merda toda. Depois cortam-no em pequenos pedaços, enfiam-no num bocado de pão e servem-to, esperando ainda que digas: ‘obrigada, querida, estava delicioso’.»
Spencer podia ser mais engraçado do que qualquer comédia, especialmente A Life Less Ordinary. A rir por dentro, Lily comentou:
— Não acredito que penses mesmo assim.
E Spencer disse que não, que não pensava, que apenas achou engraçado.
— Acho que a resposta para o enigma da vida vem mais de Bill and Ted’s Excellent Adventure do que de Steve Martin. Bill diz: «A única verdadeira sabedoria consiste em saber que não sabes nada.»
E Lily, tal como Ted, respondeu:
— Isso somos nós, meu. Somos nós.
34
As estações de Lily
Lily sente que o seu corpo deixou o seu espírito, e não o oposto, e apenas o espírito se mantém na cama ou no sofá. Fica deitada na cama e imagina-se a andar de bicicleta em Central Park ou de patins pela cidade de Nova Iorque à hora de ponta. Imagina montanhas-russas, carrosséis e casas assombradas, canoas e rápidos no rio. Imagina fazer jet-ski, mesmo que nunca o tenha feito. Imagina-se a mergulhar, as pernas a mexer, os braços a mexer, os pulmões a encherem-se de ar por um tubo. Imagina-se a saltar do topo de um grande rochedo para o mar ou para dentro de um lago de água fresca, como se ainda fosse criança, a oscilar como Tarzan numa corda sobre um rio, um grande rio de caudal lento. Imagina-se a oscilar um taco durante um jogo de softball, a jogar badmínton e ténis de mesa, a correr sem fôlego a fazer dez corridas de 440 metros com apenas dois minutos de descanso entre elas.
Quando Lily consegue segurar um lápis de carvão, desenha, mas detesta as coisas que faz e por isso manda-as fora instantaneamente. São tão negras e sombrias. Quando consegue segurar uma caneta, escreve em papel, desenhando à volta das palavras; compõe pequenos poemas, até tenta fazer haikus.
A morte olhou para mim
Eu olhei de volta destemida
Apenas falsa bravura.
Embora a vida me acene
Estou demasiado ocupada a dormir
Dormir e não morrer.
Ele fica de pé no seu fato
Segura doces e cola
Oxalá se sentasse.
O intestino dói-lhe a toda a hora. Dói em rajadas intermitentes, como se ela estivesse a ser envenenada.
Spencer traz sopa, a canja mais gorda que consegue que o chef do Odessa cozinhe. Fá-la comer até à última colher. Sabe que ela está a ser envenenada pela canja, mas não quer saber. «Come», diz ele. Ela come. Quando ele se vai embora, como inevitavelmente tem de ir, ela vai e vomita, como inevitavelmente tem de fazer. Quando sai, Joy está à porta a segurar uma toalha reprovadora nas mãos.
Spencer traz-lhe batidos de baunilha, batidos de morango. Lily bebe-os e mantém-nos no estômago! Viva! Joy deve ter dito isto a Spencer porque de repente vem cinco vezes ao dia com batidos de morango e baunilha. Vem tanta vez e a todas as horas que até o intercomunicador se avaria. E o administrador está de férias e Joy tem de descer cinco lanços cinco vezes ao dia para deixá-lo entrar. Isso torna-se aborrecido e Lily diz a Joy para dar uma chave de casa a Spencer.
Quando Spencer não pode vir, manda Pedro, o rapaz das entregas do Odessa, que lhe traz couve recheada, couve roxa e schnitzel, salada grega e ensopado de amêijoa de Manhattan. Pedro traz pudim de pão e cheesecake. Joy senta-se e observa Lily a não comer. Quando é que é o próximo dia de folga de Joy? Quando é que Lily pode estar sozinha outra vez?
— Vais estar sozinha quando estiveres morta — diz Joy, como se a estivesse a ouvir. — Come. — Spencer tinha razão acerca dela. Lily não consegue passar sem ela.
Amanda telefona todos os dias. Anne aparece uma vez por semana e deleita Lily com histórias sobre as suas aflições financeiras. Lily ouve e ouve, e depois passa um cheque a Anne. Pergunta-se se poderia apenas mandar um cheque no início de cada mês a Anne para contornar a tagarelice contínua, mas tem medo de que Anne não venha mais se o fizer.
A avó vem uma vez por semana, tal como Lily costumava ir vê-la uma vez por semana. Chega, senta-se ao pé da cama, lê-lhe jornais e deleita Lily com histórias de grande sofrimento, de Marchas Fúnebres, de fornos crematórios, de pavor, fome e medo, de depravação e maldade que Lily não consegue compreender. Lily sente-se um pouco melhor a ouvir a avó. Desde que não seja sobre cancro, ela consegue ouvir. A avó pergunta-lhe se ela quer ouvir coisas sobre o Amor, mas Lily não quer. Claro que ela não quer ouvir coisas sobre o Amor. Eu cá não, camaradas, não é para mim, amigas. O amor azedou.
Eu desistiria do amor para sempre se ao menos pudesse ter a minha própria vida. Se ao menos pudesse ter os meus minutos de volta, os minutos que perdi a ansiar, lamentar, chorar; os minutos que passei a queixar-me sobre namorados que me traíram, sobre amigos que me afastaram, sobre a minha mãe que deixou de ser uma mãe para mim, sobre o meu pai que se esqueceu de falar comigo ao telefone, sobre o meu querido irmão — meu Deus, até o meu irmão! — que se anda a esconder de mim. Não quero saber, não quero acreditar. Só quero VIDA!
Quero ser aquela rapariga de cachecol vermelho e cabelo castanho ondulante, completamente sozinha em Times Square, que fica encostada à parede enquanto aprecia os enamorados e os entrelaçados, os casais e os sem-abrigo, desejosa de um pouco do que eles têm — VIDA. Só que agora a rapariga está lá e nem sequer olha para eles, mas está lá, de olhos fechados, ligeiramente a sorrir, apenas agradecida pelo seu insignificante, mas vívido Ser em Times Square, já tarde numa noite húmida de dezembro.
Spencer está mais magro, mais pálido ou é só imaginação de Lily? Ela não sabe ao certo.
Não, não é verdade. Ela não quer saber. Não quer saber das notícias, de cinema, de política. Não quer saber de Amy ou Andrew, ou da própria mãe. Não quer saber de ninguém. Lily só se preocupa com ela própria. Na semana seis, sobe à balança — trinta e nove quilos e careca. Na semana seis, repara em lesões na cara, no corpo. As folhas estão a cair. Adora o outono mas não pode sair, não pode deixar que ninguém a veja assim.
Na sexta-feira à noite, Rachel e Paul aparecem de surpresa. O choque nos seus olhos é inconfundível. Tentam escondê-lo, mas não conseguem. Ela ouve Rachel chorar no patamar quando vão a descer as escadas.
Lily não é uma paciente muito boa, uma boa tia, boa irmã, boa amiga, boa qualquer coisa. Ela mal é uma Lily.
No domingo, Amanda convida-a a ir passar lá o dia. Lily gostava de poder levar Spencer. Telefona-lhe a dizer-lhe para não aparecer à tarde e vai de carro alugado até Bedford. Lily acha que a visita pode fazer-lhe bem. Mas as meninas a correrem de um lado para o outro, a gritarem, a saltarem para cima dela, apesar dos fortes protestos da mãe e dos débeis rogos de Lily, fazem com que fique exausta passado uma hora. Ela não está em condições de ir até ao parque infantil, de rastejar no chão, de jogos de tabuleiro ou de ajudar com o jantar. Nem sequer está em condições de falar. Vai, dorme no quarto de hóspedes e depois vai de carro para casa, onde liga a Spencer que aparece já tarde para outro episódio de sofá e Groundhog Day.
— Sei este estúpido filme de cor — diz Spencer.
— Tem graça porque eu cá podia vê-lo outra vez, e outra, e outra, e outra...
— Muito engraçado, Harlequin.
Spencer chamou-lhe Harlequin.
— Pronto, isso é que é teve mesmo graça.
Só mais oito tratamentos. Só mais oito tratamentos, só mais oito tratamentos.
E depois alguém tosse.
— A tosse de alguém é o teu caixão — tinha-lhe dito DiAngelo.
O invólucro de um corpo esvaziado de todos os anticorpos fica doente. Apanha bactérias que viajam da língua para a garganta, para o estômago, para o intestino, para o sangue, para os pulmões.
Nos pulmões a infeção transforma-se em pneumonia.
Lily, febril e a sangrar das gengivas e dentes, é levada de helicóptero para o Mount Sinai. Ligam-na pelo cateter a alguns antibióticos, alguma glucose, alguma morfina. Mas todos os seus sinais vitais estão em baixo. Quase não tem pressão arterial, quase não tem pulso.
Lily não sabe quanto tempo esteve sem sentidos — parece um sono muito longo, mas quando abre os olhos encontra um padre ao seu lado. Olha para ele. Ele olha para ela e diz: «Estás agora mais próxima de Deus, minha filha». E Lily fecha os olhos e pensa: «Isso é inegável, mas eu ainda não quero estar assim tão próxima». E não abre mais os olhos até ele se ir embora. Passados três, quatro dias? Passados três, quatro anos? Passados vinte anos? Talvez não tenha sido ele a ir-se embora.
Em vez do padre, está a avó sentada na cadeira ao pé da sua cama. E ao lado dela estão Amanda, Andrew e Anne.
Andrew!
O olhar de Lily para nele. Observa-o, quer dizer alguma coisa, mas não consegue abrir a boca para falar. Tem um tubo de respiração dentro da garganta.
A máquina dos pulmões outra vez a mantê-la a respirar. Lily estica a mão para ele, ele vem, ela agarra-o e lágrimas deslizam para dentro dos ouvidos. Ele desvia o olhar dela até naquele momento.
Andrew, porque é que estás aqui? Lily quer gritar. Porque é que estás aqui, tu que me traíste, que te escondeste de mim todos estes meses? A Amy evaporou-se e tu evaporaste-te também. Ambos me deixaram e eu não sei porquê nem como repará-lo. Como reparar seja o que for.
Come all without, come all within[2]...
Spencer não está aqui.
Olhando nos olhos da avó e percebendo neles algo estranho e também perturbador, embora marcadamente diferente da expressão de Andrew, Lily pede uma caneta e papel e escreve: «Achas que vou morrer, não achas?»
A avó primeiro não responde e depois olha para outro lado:
— Não, querida. Acho que vais ficar bem.
Lily olha outra vez para Andrew. É por isso que ele está aqui! Pensa que eu vou morrer. Toda a minha família pensa o mesmo. Mas há outra coisa qualquer nos olhos de Andrew, outra para além daquele reconhecimento tácito. Quase como se tivesse esperança que eu morra.
Lily não sabe o que dizer. Pensa em não escrever nada. Mas não pode não escrever.
— Onde está a minha mãe? — Escreve Lily.
[2] Citação da canção de Manfred Mann, Mighty Quinn (poderoso Quinn). (N.T.)
35
A mãe de Lily está aqui
George regressou da praia às oito e mal entrou viu Allison no chão perto da cozinha, a tentar levantar-se com dificuldade. Tinha acabado de regressar de uma caminhada de uma hora, de um mergulho. Ainda não tinha fumado um cigarro, bebido um café e ali estava Allison, já no chão. Pelas portas duplas de vidro, na escuridão matinal do apartamento, de cortinas corridas, viu-a no chão, a tentar levantar-se. George foi ajudá-la.
Mas ela não se conseguia manter de pé. Cheirava a álcool.
— Oh, por amor de Deus — disse, largando-a. Ela não conseguia falar, balbuciava incoerentemente.
Escorria-lhe baba da boca, os olhos a revirarem.
Nessa manhã George sentiu fúria dela e uma impressionante pena de si próprio. Decidiu que o Havai não era para ele, um homem de sessenta e seis anos. O Havai era para os jovens. Para os jovens do snorkeling, do mergulho nas profundezas, praticantes de jet-ski, de subidas aos vulcões, de passeios de bicicleta colina acima. Para Lily, talvez. No Havai não podia ter as coisas que lhe davam mais prazer: pescar num barco a remo, ter uma horta. E a sua outra paixão, o desporto, perdia todo o significado com o atraso das exibições. Não havia cobertura em direto de desportos em Maui. Não podia ter um sistema de satélite porque não estava autorizado a instalá-lo no telhado do condomínio. Por isso entretinha-se com o seu amor pela cozinha. Mas Allison não comia a sua comida. O que comia, vomitava. Cozinhar só para ele não tinha qualquer significado. Tal como cantar só para ele. Gostava de ser elogiado pelos seus talentos.
Allison vomitou na carpete. George nem sequer podia entrar na sua própria cozinha para fazer o café da manhã. Praguejou e passou por ela a caminho do duche. Passou muito tempo a barbear-se, a lavar-se. Quando saiu, o vómito estava quase limpo e Allison não se via em lado nenhum. Deve ter conseguido chegar ao quarto. Foi ver como estava, para lhe perguntar se queria café. Estava inconsciente no chão e ele não lhe pegou para a colocar na cama. Deixou-a ali.
George não tinha muitos dias assim, mas havia alguns. Teve alguns dias como este em que se deitava na cama a meio de um dia maravilhoso, punha o braço em cima da cara e pensava «não acredito que isto é a minha vida.»
Hoje Allison deve ter bebido mais do que o habitual, mais depressa do que o costume. Quando George foi vê-la, estava deitada no próprio vómito e a gemer.
— Allison — disse —, vou a Nova Iorque ver a Lily. Parto amanhã. Ouves-me?
— Estou a morrer — gemeu. — Não volto a fazer isto, mas por favor... Estou a morrer. Pede ajuda.
George ficou, pediu ajuda. Allison conseguiu recuperar.
Agora tomava banho a cada três dias. Talvez não com tanta frequência. Era difícil de perceber, passava tantos dos seus dias envolta numa névoa. Não podia ir nadar ou passear: as pernas por depilar envergonhavam-na. Mas porque é que ela não as depilava?
Porque não se conseguia dobrar-se sem cair. E Allison não podia pôr uma perna na borda da banheira sem perder o equilíbrio e cair. Cair parecia ser o que ela fazia melhor atualmente e, por isso, evitava rapar as pernas, não por escolha mas necessidade, porque uma vez escorregou, caiu e magoou mesmo a costela. Havia uma boa hipótese de a ter partido. Mas passadas seis semanas, a costela já não doía tanto.
As mãos dela tremiam. Começavam a tremer de manhã e não paravam o dia todo. Quando levantava o copo até à boca, as mãos tremiam e o cigarro tremia também, no meio das unhas por pintar. Allison já não conseguia escrever cartas aos amigos nem assinar cheques.
Fazia-o de qualquer modo, porque tinha de fazê-lo, e não queria saber de como o seu nome parecia tão desajeitado na linha de assinatura. Era ilegível. Mas ela já nem cartas ilegíveis conseguia escrever. Mal conseguia marcar um número no telefone. Só havia uma coisa que fazia as mãos de Allison pararem de tremer. Agora...Onde estava essa coisa?
36
As estações de Lily, Continuação
Lily recupera a consciência, respira sozinha e até leva comida à boca. Pois claro! Tiveram de esquecer a quimioterapia enquanto lhe aumentavam a pressão arterial. Tinham-lhe dado uma transfusão de sangue e estava sentada direita quando DiAngelo a veio ver.
— Estás a ir muito bem, Lily. Estou-te a dizer, vais dar cabo desta coisa.
— Hum — disse ela —, reparou que ando especialmente bem quando não faço quimio? Olhe, estou a comer Jell-O. Costumava adorar Jell-O. O que acha? Podemos simplesmente esquecer isto tudo? Deixe-me ir para casa e comer, comprar aquela mala Prada que a minha irmã diz que eu tenho mesmo de ter, se quiser ter uma vida plena, mesmo que curta?
DiAngelo sorriu.
— Mais oito semanas de quimio, Lil. Quase metade do caminho feito. Depois podes dormir numa mala Prada gigante. A julgar pelo teu tamanho, nem sequer vais precisar duma muito grande. Mas o que te queria dizer era que vou restringir as tuas visitas. Só por algum tempo.
— Até quando?
— Até teres alta.
— Oh, então! De quem é que está a tentar proteger-me, Doutor D? — Lily baixa a voz. — Você é como a avó e está a tentar manter o detetive à distância?
— Ele é o único que pode vir — diz DiAngelo. — E só por dez minutos.
Spencer não vem de todo, mas no dia seguinte, Lily acorda e encontra Anne ao seu lado, que se põe a pigarrear durante cinco minutos.
Por fim, Anne começa a falar.
— Como tua irmã mais velha, Liliput, detesto ter de ser eu a aconselhar-te nestes assuntos, mas é da minha responsabilidade. Por favor, tenta compreender. Já pensaste, mesmo que por breves momentos, em colocar os teus assuntos em ordem? Não sabes como estiveste doente.
— Eu não sei? Do que é que estás a falar?
— Lily, tenho de soletrá-lo para ti?
— Sim, tens. Se quiseres que eu entenda, tens.
— Pensaste em fazer um testamento? Nos detalhes de um funeral? Pensaste pelo menos num testamento em vida?
— Um quê? E isso não é um oxímoro?
Em tom conspirativo sussurrado, Anne pergunta a Lily se considera assinar um formulário de ONR para o hospital.
— O que é ONR?
— A maioria dos hospitais requer que assines uma declaração porque normalmente tentam manter-te viva a todo o custo.
— Gosto disso.
— Para de ser engraçada.
— Quem é que está a ser engraçada? É verdade, gosto.
— Ouve, quando todas as tuas faculdades tiverem desaparecido — continua Anne —, tiveres caído em coma e já não houver hipótese de saíres dele, a Ordem de Não Reanimação vai poupar-te a ti e à tua família a muito sofrimento. É mais decente, mais humano. Depois do preço que o cancro te fez pagar, uma ONR significa consolo para a tua família.
— Annie, eu gostava que o hospital me mantivesse viva a todo o custo, se não te importares.
— Mesmo se não houver hipótese de o teu corpo recuperar? Mantém-te viva artificialmente.
— Qualquer maneira de me manterem viva está bem para mim.
— Como queiras. Só quero que saibas as tuas opções. Algumas delas são mais simpáticas para as famílias.
— Suponho que a minha família gostasse que eu sobrevivesse, não?
— Bem, claro, mas se não houver esperança...
— Sra. Ramen! — DiAngelo entra importunamente. — Não há visitas antes das seis. Fui bastante específico.
— Mas são horas de visita — diz Anne de forma petulante.
— O cancro não quer saber de horários de visita — responde DiAngelo. — O cancro está aqui para a Lily vinte e quatro horas por dia e ela precisa de descanso. Não, nem sequer a família durante o dia. Ninguém. É para a proteção de Lily. E tem de usar uma máscara. Disse-lhe isso vezes sem conta. Volte à noite se desejar. Na verdade, esta noite ela vai fazer uma tomografia. Talvez seja melhor voltar amanhã.
No dia seguinte Lily tem alta e é mandada para casa, saltando uma semana de cancro graças à pneumonia, prolongando assim a agonia até às catorze semanas.
Lily obriga-se a sair da cama. Força-se. Obriga-se a fazer a cama todos os dias, mesmo que depois se deite em cima dela e durma até ao almoço. Mas todas as manhãs, anda de gatas à volta da cama e enfia as pontas dos lençóis para dentro. Na semana oito, Lily não se consegue levantar exceto para fazer a cama. Segundas e terças já se foram. Quartas são inexistentes, quintas nebulosas. Às sextas faz a cama. Aos sábados costuma sair com Joy para um passeio pelo bairro. Come um pouco. Aos domingos lê, toma banho e dorme até Spencer chegar. Os domingos são os dias melhores, mas depois chega segunda outra vez.
Amanda vai fazer o jantar de Ação de Graças este ano e quer que Lily celebre com eles, mas Lily não pode de maneira nenhuma. Ia arruinar a festa a toda a gente.
Dá um dia de folga a Joy e diz a Spencer que vai para casa de Amanda, mas fica sozinha no Dia de Ação de Graças. Ele foi para Long Island para estar com a família. Rachel e Paul estão com as famílias. Jan McFadden telefona cedo, a chorar, para lhe desejar um bom feriado.
— As pessoas hoje dizem-me coisas tão horríveis. Dizem, bom, considera-te com sorte, agradece por ainda teres mais dois filhos.
— Apenas não sabem o que dizer, Sra. McFadden.
— Mostram-se como realmente são. Dizem que tudo acontece por uma razão.
— Essa é a que eu mais odeio, eu sei. — Lily sabe.
— Oh, Lil, vais ficar boa, só tens de ser forte.
É tudo o que ela tem de fazer? Ou só uma das coisas? Também a Sra. McFadden cai na armadilha de não saber o que dizer.
— A senhora também, Sra. McFadden. A senhora também.
Spencer nunca diz nada exceto «lamento» e «come». Porque é que o resto do mundo não pode ser como ele?
Ela perdeu a noção do tempo nestes últimos meses e para ajudá-la a manter-se sã, colocou relógios em cada parede de casa — relógios que dão as horas, relógios do Mickey Mouse, relógios digitais, relógios em segunda mão, relógios mexicanos e chineses para lhe dizerem o que a mente dela não consegue. Como por exemplo: quanto tempo é que esteve a sangrar do nariz na casa de banho na tarde de Ação de Graças quando não conseguia ficar de pé tempo suficiente em cima do lavatório? Sessenta e cinco minutos, pensa Lily. Nunca consegue lembrar-se das horas a que começa alguma coisa. Não consegue lembrar-se de nada. Tem de manter o número de beep do Spencer ao pé do telefone.
Na semana nove, já todas as folhas caíram e o tempo fica frio. Mas Lily não pode vestir o casaco e ir dar um passeio, pois não pode sair de casa, descer as escadas, não tem força para mexer as pernas pelas escadas abaixo. Joy força a comida na sua relutante boca com alguma canja caseira que a avó trouxe. Lily luta para a reter no estômago. Rachel vem visitá-la e fala e fala sobre como ganha sempre peso no inverno e como não há dieta suficientemente boa que se possa fazer permanentemente. Lily brinca a dizer que uma dieta permanente é provavelmente um erro. Rachel ri-se também e pergunta:
— Estou a ser uma idiota por estar a falar contigo sobre isto?
E Lily responde:
— De que mais é que haverias de falar comigo?
Rachel pergunta a Lily sobre o que é que ela e Spencer falam.
— Sobre nada — responde Lily. — A sério! — acrescenta quando vê o ar cético de Rachel. — Nada. Ele senta-se, vemos televisão, às vezes rimos, caso a comédia seja engraçada, e ele vai para casa. No outro dia estávamos a ver Something About Mary e tu sabes como aquele filme é obscenamente atrevido. Eu nem conseguia olhar para ele, estava tão envergonhada, mas ele ria-se que nem um perdido. Quase chorou.
— Só isso?
— Só isso.
— Ele não pergunta como te sentes?
— Ele sabe.
Lily não consegue ir ao telefone. Grava uma mensagem para dizer a quem liga como se está a sentir, que não é nada bem, não se sente nada bem. Mas quando ouve as mensagens gravadas, às vezes a paciente fica agitada. «Lily, é a tua mãe. Não percebo. Nunca estás em casa... Ou talvez estejas em casa e não atendas. Lily? LILY?» Garantidamente para aborrecer Lily. Depois disso, ao contrário dos desejos expressos de Lily, Joy atende o telefone. Num tom maquinal, dá alguma informação clínica e informa quem ligou que Lily está a dormir. Pergunta se querem deixar mensagem. Quase faz o sinal sonoro. Assim, Lily recebe as mensagens mediadas pela calma e dedicação à causa — fazendo com que Lily fique bem outra vez. O que é que Lily faria sem esta máquina-enfermeira?
Joy não refere que Lily está na casa de banho a vomitar. Ou inconsciente. Que Lily não consegue ver televisão ou concentrar-se no jornal. Que não consegue sentar-se tempo suficiente para desenhar. Às vezes, Lily faz esboços a carvão deitada de lado e adormece com a cara em cima do papel. Quando acorda, as bochechas estão todas pretas do carvão.
A pele de Lily aparece de repente com marcas que ela nunca tinha visto. Por todo o lado há riscas castanho-avermelhadas. A pele está a sair. É a quimio, diz-lhe o Dr. DiAngelo, a queimá-la de dentro para fora. Lily acha que o cérebro também se está a queimar.
Joy apanha Lily a chorar na banheira, com água cor-de-rosa do sangue que pinga do seu nariz. Ela conta a Joy quão agradecida está por ela e Joshua terem acabado antes que ele a pudesse ver assim, tão doente, o corpo tão destruído. Isso é algo por que está genuinamente agradecida, que Joshua não tenha tido oportunidade de acabar com ela depois de a ver a passar pelo seu maior sofrimento.
Joy limpa a cara de Lily, ajuda-a a levantar-se, dá-lhe uma toalha, seca-a.
— O Spencer está aqui — diz Joy calmamente. — Trouxe-te Jell-O.
Lily está a perder a capacidade da fala. Não só da fala, mas também da visão. E certamente o olfato, não consegue cheirar nada. E poderia estar enganada?
As árvores pararam de fazer barulho ao vento ou ela já não conseguia ouvi-las? Nova Iorque está a ficar mais sossegada, sem sirenes, carros de polícias, mulheres bêbadas a gritar com os namorados aos domingos de manhã cedo, em vez de irem calmamente à igreja. Até as mulheres estão mudas. Lily liga a televisão, senta-se mais perto.
Quase quatro meses desligada do mundo. Quatro meses.
Em breve, vai acabar.
Essa é a luz ao fundo do túnel. Não a vida, mas a morte.
37
Pessoas belas
Hoje era domingo. Spencer estava quase a chegar. Antes de o telefone tocar, Lily tinha estado esticada na cama, em modo crucifixo. Pensou que a morte pudesse ser um dia assim, com vento frio, a luz amarelo-dourada refletida nos carvalhos despidos, os áceres cinzentos, sons suaves de carros de domingo, carrinhos de bebé de domingo, o gato a apanhar sol numa janela no lado oposto do pátio, a velha vizinha de baixo sentada no jardim, de casaco vestido, a beber o seu café e a ler o jornal. Não haveria dor depois da morte, nem sangramentos, nem vómitos, nem fraqueza. Só felicidade e leveza no coração...
E eis que o telefone tocou.
No céu não haveria telefone. Ninguém te interromperia. Nunca te sentirias aborrecido ou frustrado. A morte seria um domingo eterno.
E agora, digo-vos que, por muito mal que pensassem estar a sentir-vos ao domingo, não era tão mau quanto pensavam.
Talvez fosse o pai. Havia sempre essa possibilidade.
— Estou? — atendeu Lily ansiosamente.
— Finalmente ela atende o telefone!
Não era o pai. Lily não sabia bem o que dizer a seguir.
— Olá, mãe.
— Bem, isso é um bom olá. O que se passa?
— Nada. O que se passa?
A mãe de Lily não soava bêbada, o discurso não estava arrastado nem lento, apenas um pouco ríspido.
— Então, como estás tu?
— Estou bem, obrigada — disse Lily. Pensou em perguntar à mãe como ela estava, mas não queria saber e não conseguia fingir.
— Não vais perguntar-me como estou?
Inspira profundamente.
— Como estás, mãe?
— Agora estou bem. Não te preocupes. O tumor era benigno.
Lily fechou os olhos.
— Qual... tumor?
— O quê, o teu pai não te disse? Está demasiado ocupado a contar-te mentiras sobre mim e não te dá informação real sobre a minha saúde. Então, o que se passa contigo? Ainda andas a fazer a tal quimio?
— Sim. Ainda a fazer a tal quimio. Mais quatro tratamentos.
— E depois ficas completamente boa?
— Não sei.
— Então, o que tens agora? Parece que engoliste uma lata de vermes.
— Não, não, estou bem — Lily não acrescentou mais nada.
Allison disse lentamente:
— Quis ligar-te mais vezes, mas tenho estado mesmo doente, Lil. O teu pai não te disse... Tive de ir para o hospital. Tiraram uma radiografia aos meus pulmões. Acham que posso ter uma mancha num deles. Deus!
— Surpreendente — disse Lily. — Ele não me contou.
— Sabes que podes pegar no telefone de vez em quando e ligar à tua mãe. O braço não te cai.
— Tenho andado ocupada, mãe.
— A fazer o quê?
— Tenho estado muito, muito doente.
— Oh, para de ser tão melodramática. És mesmo como o teu pai. Devias ouvir as histórias que ele conta sobre o Andrew aos ex-colegas. Está sempre ao telefone com eles. Já tem o Andrew praticamente na Casa Branca, depois de todo aquele fiasco da rapariga desaparecida ser esclarecido. Como está o teu irmão?
— Não faço ideia. — Lily não tinha trocado uma única palavra em privado com Andrew desde maio.
— Hum. Também não lhe telefonas. Bem, isso é uma surpresa. Sabes, o médico disse-me que estou deprimida. Disse que estou clinicamente deprimida. Pôs-me a tomar Prozac, mas eu não me dei com aquilo. Passava a vida a vomitá-lo.
Lily, com o telefone ligeiramente afastado da orelha, virou-se ao contrário na cama para que pudesse olhar pela janela e cheirar o ar. Inspirava e expirava para tentar o desprendimento nela própria. — Mãe, tenho de ir.
— Ir? Acabei de te ligar. Não falamos há meses! Porquê? Eu não te ligo? Não deixo mensagens?
— Não sei, deixas? — Será que a mãe achava que tinha deixado mensagens no atendedor? — Às vezes quando ligas, não consigo entender uma única palavra do que dizes — acrescentou Lily.
— Não sei porquê, falo em inglês perfeito. Bem, estou a ligar-te agora. Conta-me como estás.
— Já te contei, estou ótima.
— A avó diz que te estás a aguentar. A Amanda também. A Anne está mesmo preocupada contigo, está a ser uma boa irmã.
— Mãe... Sabias que estou doente desde agosto e esta é a primeira vez que eu e tu falamos?
— Nunca atendes o telefone! Seja quando for que ligue, não atendes. E quando o fazes, estás assim.
— Como é que eu estou?
— Estás quase tão deprimida quanto eu, Lil.
Lily fez um som exasperante. Se ainda tivesse algum pelo no corpo, estaria em pé.
— Tenho. De. Ir. Mãe — disse entredentes, com a boca quase fechada. Um perfeito domingo arruinado. Não podia carregar no botão para desligar com força suficiente. Tão descontente. Atirou o telefone para o outro lado do quarto em direção à porta que estava a abrir-se, atingindo Spencer em pleno queixo, quando estava a entrar.
Ele levantou as mãos num gesto de rendição. Ela virou-se para a janela.
Viram o LA Story porque Lily estava convencida que nele residia a resposta para o enigma da vida.
Não o encontrou.
Por isso, viram Parenthood. Talvez estivesse lá.
Spencer disse:
— Diz-me a verdade, estás a ver isto para encontrares a resposta para o enigma da vida ou por causa do Keanu?
— Sou assim tão transparente? — atirou-lhe Lily.
O filme era sobre pais e filhos, mas Lily não podia evitar pensar em mães e filhas. Quando Spencer perguntou porque é que ela não se estava a rir, ela fez PAUSE no filme e virou-se para ele.
— Sabes qual é o problema da minha mãe?
Ele voltou-se para ela.
— Disseste-me que tem alguns problemas.
— É demasiado bela — disse Lily. — E pior, sempre pensou que o era. Não só bela, mas mais bela do que qualquer um. Viste fotografias da minha mãe em Maui.
— Sim — disse Spencer sem se comprometer.
— Quê? Ela ainda é bela. Mais velha, agora.
— Não é isso.
Lily sabia que não era.
— Sei que ela já não está tão bem como antigamente. Mas digo-te, alguma coisa acontece às pessoas belas. Acham que lhes é devido algo mais pela vida, por Deus, por todas as pessoas que as rodeiam. Pensam que a vida delas tem de ser melhor, mais dramática, mais feliz, a cores e não a preto e branco.
— Toda a gente deseja que a sua vida seja mais feliz.
Lily abanou a cabeça.
— Não. Não como as pessoas belas. Andam neste mundo, de queixo erguido para o resto de nós e pensam que a felicidade plena, o amor pleno, a alegria plena é seu direito e prerrogativa. É a paixão como direito dos belos, da mesma forma que o poder é direito dos ricos. — Lily fez uma pausa. — Especialmente no que diz respeito ao amor. A beleza e o amor tornam-se de algum modo em sinónimos. Como é que as pessoas simples podem ter amor pleno? Não podem, é assim. Podem ter amor mediano, amor medíocre, mas os seus corações não podem elevar-se. Só os corações belos podem elevar-se.
— Acho que essa foi ao lado — disse Spencer. — As pessoas bonitas não têm necessariamente corações bonitos.
— Mas isso não interessa, não vês? Tu não te apaixonas por um coração. Apaixonas-te pela cara de uma mulher, pelo seu corpo, pelo seu cabelo, pelo seu cheiro. Isso é o principal, tudo o resto é secundário. A beleza da minha mãe, quando era nova, era tão extrema que ela não entendia como é que cada homem que a conhecia não a amava in extremis.
— O teu pai amou-a?
Lily assentiu.
— Amou. Outro problema: após quase quarenta e três anos de casamento, ela ainda quer que ele o faça.
Spencer não disse nada por algum tempo e Lily achou que ele estava a pensar naquilo que tinha acabado de lhe dizer, mas a coisa seguinte que saiu da boca dele foi:
— A Amy era bela?
— Oh, por amor de Deus, Spencer! — Lily virou-se para a televisão, premiu o PLAY no comando, ligando o volume. Inclinando-se, ele tirou-lhe o comando das mãos e carregou no PAUSE.
— Porque é que fazes sempre isso? — perguntou Lily sem olhar para ele. — Porque é que viras sempre a conversa de volta para aquilo?
— Porque é o que faço, e tu não me respondeste.
— Sim, ela é bonita, sim, sim, sim, mas eu não quero falar dela agora, não quero falar dela nem dele, ou sobre eles, consegues perceber?
Ela ficou calada, ele ficou calado. O filme continuou em PAUSE. Finalmente Spencer disse:
— Diz-me, o teu pai era bonito?
Lily suspirou.
— Muito. Era muito popular entre as raparigas, diz a minha avó. Mas não ligava muito à cara exceto como forma de arranjar miúdas. Ligava muito mais ao intelecto. Era demasiado inteligente para dar muito crédito às suas características exteriores.
— Mas a tua mãe...
— Ela também era inteligente, mas não dava nada por isso. Quando se olhava no espelho, via Botticelli. E todos os homens à volta dela, viam-no também. Por isso, quando se apaixonou, por alguém antes do meu pai, pensou que ia ser para sempre, porque a beleza dela parecia eterna. Quando ele acabou tudo, após apenas alguns meses, ficou chocada, não queria acreditar.
— Porque é que ele acabou?
— Não sei. Ela nunca disse. Acho que nunca disse a ninguém, nem ao meu pai. Mas sabemos uma coisa: ela queimou duas pontas de cigarro nos pulsos a tentar lidar com essa rejeição impensável.
Spencer levantou as sobrancelhas. Lily sorriu.
— Eu disse-te. Maluquinha de todo.
— Então, diz-me, o Andrew é parecido com quem?
— Spencer!
— Está bem, está bem. — Ele inspirou. — Sabes, saíste-te surpreendentemente bem.
— Hum, não, não acho.
Spencer ficou silencioso.
— Tu achas que o amor só pertence aos belos?
Lily ponderou. «Há coisas em ti que eu nunca poderia amar».
— Sim — disse ela, relutante. — Não gosto de admiti-lo, mas acho que sim. Não quero acreditar que o Joshua não me deixaria de qualquer modo, mas não posso deixar de sentir que ele não se teria ido embora se eu fosse mais bonita.
— Não vejo como seria isso possível — disse Spencer. — E aquele rapaz não deixou a tua mãe apesar da beleza dela?
— Sim, mas isso só confirmou à minha mãe que dentro dela havia um buraco negro que a beleza podia esconder do resto do mundo, mas não tão bem dos seus amantes. — Lily ficou em silêncio. O Spencer acabou mesmo de dizer «Não vejo como seria isso possível»? Observou-o do outro lado do sofá mas ele tinha voltado à televisão. — O Andrew não é nada como a minha mãe — disse Lily premindo o PLAY. — Para responder à tua estúpida questão.
Spencer sorriu.
— Liliput — disse ele —, para de negar o teu legítimo lugar no universo. Tu não queres a extrema beleza da tua mãe, ou o buraco negro dela. Olha no que dá.
A campainha tocou. Não a lá de baixo. Mas a campainha do apartamento. Lily premiu o PAUSE. Eram seis da tarde.
— Estás à espera de alguém? — Spencer levantou-se.
— Não — respondeu ela. — Talvez seja a Rachel. Vai ver.
Spencer foi à porta ver. Lentamente, virou-se para Lily.
— Não sei bem como dizer isto. É a tua família.
Lily colocou a mão sobre a cara.
— Oh, não! Qual delas?
— Hum.. Todas.
— Oh, não! Oh, não! — A campainha tocou de novo, mas a confusão de Lily era tanta que nem sequer se conseguia levantar do sofá.
— Tenho de abrir a porta, Lily.
— Spencer, elas vão... — Ele deixou-as entrar.
Ter um ataque, pensou Lily. E viu, mesmo antes de as ver, a expressão delas ao entrar — a Amanda, a Anne, a avó, a segurar tabuleiros de massa, de brownies, jarros de Kool-Aid, sacos de batatas fritas — e encontrarem Spencer, extremamente casual, confortável, de calças de ganga coçadas, uma sweatshirt, a arma das folgas na mesa, as botas à porta, a dar-lhes passagem para um apartamento pequeno, pouco iluminado, onde só estavam ele e Lily.
Ninguém, nem mesmo Spencer, fazia a mínima ideia do que dizer.
Foi Lily quem falou primeiro.
— Avó, Annie, Mand, lembram-se do Detetive O’Malley?
Elas não disseram nada, ainda com a comida nas mãos.
Ele pegou na arma, no casaco, calçou as botas.
— Até à próxima, Lily.
— Sim, adeus.
Depois de ele ter fechado a porta, elas rodopiaram para ela, que caiu de costas no sofá. Fitavam-na de forma tão acusadora a exigir uma resposta, uma explicação, e ela sem saber o que dizer. Ele veio ao serviço da polícia, incomodar uma rapariga na sua décima semana de quimio? Ou veio sentar-se com ela um bocado? E o que era pior?
— Não sei o que querem que diga. Ele dá folgas à Joy ao domingo.
— De todas as pessoas na cidade de Nova Iorque, deixas aquele homem entrar na tua casa?
Foi uma visita curta e constrangedora. Vinte minutos depois saíram porta fora e Lily ficou sozinha.
38
Treta do cancro
A família de Lily deixou de falar com ela, exceto Anne que, de forma notável, ainda ligava a perguntar se Lily precisava de alguma coisa. E Lily, cansada, respondia:
— Não preciso de nada. E tu precisas de alguma coisa? — Amanda tinha parado de telefonar. A avó regrediu e voltou a encerrar-se em casa, citando Joy e o regresso da sua agorafobia como razões para não ter de ir ver Lily. O pai não telefonava.
Mas foi a mãe quem esclareceu as coisas com ela. Oh, porque é que Lily atende alguma vez o maldito telefone! Foi a mãe que lhe disse num belo dia frio:
— Toda a gente está furiosa contigo, sabes, por andares com esse malandro.
— Que malandro?
— Sabes muito bem de quem estou a falar. Para além do facto de ele ter idade suficiente para ser teu pai, não tens vergonha nenhuma? Ele quer pôr o teu irmão atrás das grades por algo que ele não fez. O teu irmão!
— Eu não ando com ele, do que é que estás a falar?
— Oh, para de fazer joguinhos. Sim, há uma geração entre vocês os dois, mas és uma mulher de vinte e cinco anos, não uma criança. Ele está decidido a destruir a nossa família e deixa-lo entrar assim na tua casa? Ele é um enviado do diabo. É o inimigo. Lily, passa-se algo de errado contigo, se não consegues ver isso. A sério, tu pura e simplesmente não tens alma ou consciência.
— Mãe, estás a falar de quê? Eu tenho cancro... Ele traz-me comida...
— Oh, a treta do cancro! Não uses o cancro como desculpa, Lil, como uma arma contra o resto de nós. Ainda tens de tomar boas decisões, decisões inteligentes. Porque é que não lhe dizes que o teu irmão está inocente?
— Eu digo e não quero falar disso. Tenho de ir.
— A Amanda conta-me que a tua qualidade de vida é horrível. Diz que não estás a fazer nada para te ajudares a ti própria, que não sais, não fazes exercício, nem lês ou pintas. Não admira que andes com ele. Estás aborrecida, Lil, mas precisas de te recompor.
— Eu estou recomposta, mãe. Tu estás recomposta?
— Porque é que achas que o teu irmão não quer falar mais contigo...?
Lily desligou violentamente o telefone.
Como é que ela pôde dizer isto, como é que ela pôde dizer isto, como-é-que-ela-pôde dizer isto.
A gemer, Lily deitou-se na cama, tentando afogar as palavras que lhe martelavam as entranhas como tambores. Mães... tanto poder, tantas facas... tantas maneiras de as espetarem em ti.
Oh, porque é que em nome de tudo o que é sagrado foi Lily atender o maldito telefone...
Atrevia-se a pensá-lo? Preferia a sua mãe amargamente bêbada e indisponível do que assim e completamente sóbria.
Os efeitos cumulativos de quatro meses de quimioterapia estavam a destruí-la. Não havia alegria em saber que ia acabar em breve, porque todo o santo dia era como se tudo fosse acabar. Tipo, oh, assim acabava tudo de vez.
Só mais dois tratamentos. Um era mesmo antes do Natal.
No Natal, Lily foi relutante com Spencer — que não aceitava um não — a casa da mãe dele em Farmingville. Ela não queria ir e disse que ia para a casa de Andrew, mas Spencer argumentou:
— Disseste-me essa mentira no Dia de Ação de Graças e depois descobri que ficaste aqui sozinha. Não vais ficar sozinha no Natal, Lily, é só o que tenho a dizer.
Por isso, foi.
No carro, Lily perguntou:
— Como é que me vais explicar?
— Sou um rapaz crescido. Porque é que tenho de explicar o que quer que seja?
A família de Spencer era uma divisão do exército mas sem a disciplina. Apresentou-a como «Lily.» Tipo «Esta é a Lily.» E foi tudo. Duas das irmãs — ela não se conseguia lembrar do nome de ninguém — olharam duas vezes lentamente de um para o outro, dele para ela e de volta a ele, com um olhar persistente. E foi tudo.
A família gritou, eles beberam, a música estava alta, as crianças ainda mais, os adultos a tentar suplantar ambas. A cabeça careca de Lily, desprotegida pela falta da cortina acústica de cabelo, fazia com que cada emissão de som ecoasse e rebatesse até a cabeça ficar uma grande bola vermelha viral de terminações nervosas; mais um sussurro e seria lançada numa sobrecarga neural espetacular. Ainda assim, os miúdos não queriam saber da cabeça dela, todos queriam tocá-la, apesar dos gritos dos adultos, incluindo os do «tio Spence» para deixarem «a rapariga em paz!»
— O tio Spence já tem uma namorada — disse Sam, o sobrinho de oito anos de Spencer que ia fazer quarenta e quatro no mês seguinte. — Ela está em Chicago com a família dela. A mamã diz que ele só te trouxe porque tens cancro.
— Sammy! — A mãe estava mais vermelha do que a sobrecarga neural de Lily.
Lily sorriu. Não encarou Spencer, sentado ao lado dela na mesa de jantar.
— Lily, eu não disse isso. Por favor, desculpa-o — disse a mãe, lançando olhares lívidos em direção a um filho que um dia já tinha sido amado.
— Não se preocupe. — Lily estava divertida. — A sério. E Sammy, a tua mãe tem razão, o teu tio só me trouxe mesmo porque eu tenho cancro.
Seguiu-se um silêncio terrível antes de toda a gente se mandar ao peru e inhames.
Spencer ficou quieto. Lily comeu alegremente e pediu para repetir uma vez, e duas, e depois vomitar tudo na casa de banho branca e imaculada da mãe de setenta e sete anos de Spencer.
— É só uma criança — disse finalmente Spencer depois de ficarem mudos no carro, a caminho de casa. — E não é verdade.
— Como se eu me importasse com isso.
— Então?
— Nada.
— Vá lá, é Natal.
— Sim, já me disseste. Obrigada pela sua caridade de Natal, Detetive O’Malley.
— Ah. Então importas-te com isso.
— Nem sequer remotamente. Mas é verdade.
— Lil, o que se passa? Algo se passa, o quê?
Ela não respondeu.
— O quê?
— Sabes, eu teria ido para casa do Andrew hoje, onde está toda a minha família. Sabes porque não fui? Porque não me convidaram. De facto, o que a Amanda disse foi: «Lil, à luz das circunstâncias, é mesmo melhor que não venhas. Tu percebes. Deixa a poeira assentar.»
— Desculpa. A culpa é minha.
Sim, apeteceu a Lily dizer. A culpa é tua. E minha. Quando Spencer não disse mais nada, ela acrescentou:
— Eles estão tão chateados comigo.
— Eu sei.
— Não sabes. Tu não percebes nada.
— Não?
— Claro que não! Eles acham que eu os estou a vender.
— A quem? — Spencer olhou para ela tão intensamente que quase saiu da estrada. — A mim? Só podes estar a brincar comigo. Disseste-lhes que és a vendedora mais relutante, que és uma desgraça de vendedora, que és a pior testemunha, tens a pior memória, que nunca te lembras de nada, disseste-lhes isso?
— Eles não querem saber e não acreditam em mim.
— De que forma é que isso é culpa tua?
— Oh, Spencer. Não tem a ver com eles. — Lily calou-se. Tem a ver contigo. Achou que eles tinham razão. A mãe tinha razão. No dia de Natal, Lily sentiu-se impura por estar na companhia de um irlandês católico que queria pôr o irmão na prisão. Como é que isso aconteceu? Como é que o irmão dela virou a família de pernas para o ar e era Lily quem levava com as culpas?
— Não sei porque é que eles estão com tanto medo — disse Spencer. — Não falo com ele há um mês. Não telefonei. Não fiz nada. Estou embrulhado no meio de uma dúzia de coisas. O Natal é a pior altura para os desaparecidos. São demasiados e as famílias querem-nos de volta. — Fez uma pausa. — A maioria das famílias quer os seus entes queridos com eles no Natal.
— Para com isso. Para de julgar a minha família. Olha, queres que te conte uma coisa sobre o meu irmão? É isso que queres?
— Não! O que quero é que faças as pazes com a tua família. Faz as pazes contigo própria.
— Queres ouvir ou não? Não te vai ajudar, mas aqui está. — A voz de Lily tremia e falava baixo. — Há muitos anos, quando ele estava na faculdade, num ou noutro fim de semana, vinha de Cornell a casa e, no domingo, antes de voltar, levava-me a Nova Iorque. Ele tinha vinte, eu três. Levava-me ao Museu de História Natural, ao Met e ao Guggenheim. Levava-me ao cinema, a comer gelado e beber sumos ao Serendipity, ao Cloisters, a Battery Park, ao Empire State Building e às Torres Gémeas. Aprendi a adorar a cidade de Nova Iorque porque ele ma mostrou aos domingos durante quatro anos, de mão dada comigo no metro e a levar-me ao colo no regresso a casa. Ele estava na faculdade de Direito e eu tinha sete anos da última vez que me levou ao colo. Depois casou-se, tornou-se numa pessoa ocupada e passei a vê-lo com menos frequência, mas ainda assim levava-me a almoçar, ao cinema, a jantar. Telefonava-me; falávamos. Nunca foi assim, este afastamento total.
Lily viu as mãos de Spencer a agarrarem com mais força o volante. Olhava fixamente a estrada.
— Compreendes que eu o venerasse? A Amy estar envolvida com ele é como incesto. Ela bem que podia ser minha irmã a ter um caso com o meu pai. E o Andrew sabe que é uma traição brutal. Não me consegue encarar. É por isso que não me foi ver e não por causa das coisas maldosas que a minha mãe diz, e não por causa das tuas suposições estúpidas e absolutamente erradas! — Todo o corpo de Lily tremia. O nariz começou a sangrar.
Spencer levantou a palma da mão para ela.
— Pronto, Lily.
— Pronto, o quê? — gritou ela.
A mão ficou levantada.
— Estás doente. Estás doente com cancro e eu não vou, pura e simplesmente não vou ter esta conversa contigo. É impossível. É o que quero dizer com pronto, Lily. Por isso, acalma-te.
E o que é que Lily lhe disse quando se acalmou e se limpou?
— Oh, a treta do cancro — disse Lily.
Foram o resto do caminho em silêncio e quando Spencer tentou ajudá-la a subir as escadas, ela disse que ficava bem e que já não precisava da ajuda dele.
Ele agarrou-a pelos ombros.
— Sabes que mais? Depois de eu te levar até lá acima, podes ficar bem. Mas de modo algum vais chegar lá acima sem mim, por isso para com a parvoíce.
Ela parou com a parvoíce. Não conseguiu subir até ao quinto andar sem ele. Deixou-o ajudar. Spencer teve de carregá-la o último lanço de escadas. Quando já estavam no apartamento, ele perguntou-lhe se ela queria que ficasse.
— Não!
— Feliz Natal — disse Spencer, e saiu.
A penúltima quimio era a cinco dias do Ano Novo. Joy tirou alguns dias para o milénio. Uma avó ressentida convidou Lily a ir a Brooklyn e ficar lá, mas Lily recusou: estava demasiado doente, o nariz constantemente a sangrar e, para além disso, não aguentava ouvir nem mais uma palavra sobre Spencer que também não estava disponível no sábado em que acabava o milénio. Lily não sabia onde ele ia. Não se ofereceu e ela não perguntou. Na noite de fim de ano, Rachel e Paul apareceram com champanhe, a implorarem que ela fosse com eles a uma festa de arromba no Palladium, mas ela não se conseguia levantar da cama. Ficaram uma hora e foram embora sem ela às dez, deixando-lhe uma taça de champanhe na mesa de cabeceira.
Passou a meia-noite a dormir até ao ano 2000, apesar de ter deixado as janelas abertas para, no meio dos seus sonhos negros, conseguir ouvir a alegria das rolhas a saltar noutras janelas, noutros quartos.
39
Larry DiAngelo como Imhotep
— Detetive O’Malley, preciso do seu conselho — disse DiAngelo.
— O que se passa? Como estava a biópsia dela? — Estavam na primeira semana do ano novo e Lily tinha acabado o último assalto.
— A biópsia estava ótima. Excelente. A medula óssea está limpa. O sangue está limpo. A contagem sanguínea ainda está baixa, mas não estou muito preocupado com isso. Ela portou-se muito bem, mesmo bem.
O médico deveria parecer mais feliz a contar isto a Spencer.
— Então porquê o ar triste?
— Há uma coisa... — DiAngelo tossiu. — Houve um teste a um marcador proteico chamado antígeno CD56 que deu positivo nas células mieloides malignas.
— O que é que isso quer dizer? Dar positivo a isso é bom ou mau?
— Bem, este marcador genético causa uma resistência aos fármacos químicos ao multiplicar os esforços para criar imunidade em relação a eles. Um quarto de todos os pacientes de leucemia mieloide dá positivo a esta proteína.
— Cria imunidade à quimioterapia?
— Sim. Apesar de as células cancerígenas terem sido erradicadas, a presença do CD56 assinala prováveis problemas com a remissão.
— Que tipo de problemas?
— Uma remissão curta, uma recidiva aumentada, uma piora de prognóstico.
Spencer ficou em pé, calado na entrada, a olhar para a cara do médico.
— O doutor soube disto agora?
— Já sabia há um tempo, há um mês. Não valia de nada dizer-lhe alguma coisa com as últimas semanas a serem tão difíceis.
— Então que conselho quer de mim? — perguntou Spencer.
— Devo dizer-lhe? Fui sempre muito franco com ela sobre o tratamento. Ela não espera outra coisa de mim, mas já passou por tanto...
Spencer interrompeu-o.
— Não lhe vai contar sob nenhuma circunstância. Vai entrar ali, caminhar até ela com um grande sorriso na cara, mandá-la para casa e tratá-la de todos os modos como se fosse viver para sempre.
DiAngelo cerrou os lábios.
— Entendido — disse.
Lily estava à conversa com Marcie quando DiAngelo chegou com um grande sorriso na cara.
— Bem, Lilianne Quinn, conseguiste. Olha. — Mostrou-lhe algo na ficha. Ela tentou perceber a importância do que ele lhe mostrava. Estava a ver a dobrar, o que tornava sempre a vida infinitamente mais interessante. Números a dobrar. Eram ainda mais interessantes a dobrar. Plaquetas, 74, estava ele a dizer. O dobro disso era 148; muito melhor.
— O que resta de mim?
— Surpreendentemente pouco — disse alegremente DiAngelo. — Mas acontece que é suficiente. Plaquetas a 74, subiram das 48 na semana passada. É muito bom. Estás limpa.
— Passei a biópsia?
— Passaste a biópsia. O Spencer está à espera para te levar para casa. A Marcie vai ajudar-te a vestir.
Marcie beijou-lhe a cabeça.
— Vês, Corajosa? Eu disse-te que ia correr tudo bem.
— Vou para casa e depois?
— Boa pergunta. Depois voltas todas as terças para fazeres análises ao sangue.
— Durante quanto tempo?
— Quanto tempo o quê?
— Durante quanto tempo tenho de voltar?
— Cinco anos.
— Uma vez por semana durante cinco anos?
— Não, uma vez por semana durante os próximos seis meses. Depois, uma vez a cada duas semanas. Daqui a um ano, uma vez por mês. Daqui a três, uma vez a cada três meses. Percebeste?
Lily não sabia se tinha percebido.
— Alguma pergunta?
— Porquê à terça? Porque não à segunda?
DiAngelo sorriu abertamente.
— Para o caso de aproveitares demasiado os fins de semana. Quero que o teu corpo recupere da folia antes da análise ao sangue.
Marcie deu-lhe um beliscão.
— Eu bem vi aquela tua amiga Rachel. As duas vão decididamente tramar alguma.
— Quando é que me vou sentir melhor? — quis saber Lily.
— Não é a pergunta que deverias estar a fazer — respondeu DiAngelo.
— Não?
— Não.
— Porque é que eu me sinto mal como a merda? Desculpe a linguagem.
— Estás limpa de todas as coisas más, mas também limpa de todas as boas. Não te preocupes. Espera umas semanas, um mês. Vais deixar crescer toda uma nova Lily. Entretanto, tem cuidado em espaços públicos. Têm germes.
— Também vou deixar crescer algum novo cancro?
— Isso não é o que deverias estar a perguntar-te — disse rapidamente DiAngelo.
— Não consigo adivinhar o que deveria estar a perguntar-me.
— Bem, deixa-me ilustrar-te respondendo à questão por ti.
— Não sei qual é a questão.
— Colabora comigo — pediu o médico. — Contei-te que fiz um quíntuplo bypass no ano passado? Não? Pois bem, fiz. Ninguém acredita que voltei a exercer medicina. Os meus médicos achavam que eu não ia voltar a andar.
— Mas você chegava sempre aqui vindo da pista de corrida!
— Sim, ando ocupado a provar-lhes que estão enganados.
— Não sei...
— Prova-me que estou enganado — disse DiAngelo. — Prova que as estatísticas estão enganadas. Faz o impensável. Mesmo agora, estás deitada na cama porque não te consegues mexer. Não te imaginas a mexer. Mexe-te, Lily. Prova a ti própria que estás enganada.
— Até provava, só que não me consigo mesmo mexer.
— Ah. Eu próprio tenho de me mexer mais devagar agora. Não posso tratar tantos pacientes. Não posso estar tão envolvido como dantes. — Bateu no peito. — O velho coração já não aguenta.
— Um médico oncologista com um mau coração? — Lily achou aquilo engraçado. Sorriu.
— Ri-te o que quiseres mas diz-me uma coisa sobre ti. Gostas de correr?
Ela ficou rígida, lembrando-se de Amy.
— Não. É essa a questão?
— Não.
— Doutor, está a deixar-me perplexa.
— Queres que te conte uma coisa sobre mim?
— Se quiser.
— Eu dou entrada com os meus próprios candidatos em todas as eleições gerais. Na última, votei em George Burns. Como é que eu ia saber que ele estava morto há nove meses? O que mais? A esposa número três achava que eu era demasiado sensível. A esposa número quatro acha que sou um sacana sem coração, não é, Marcie?
— É, doutor.
— A esposa número um...ah. Era qualquer coisa. Tinha umas pernas demasiado compridas. Casei com ela a pensar que teria sorte se a conseguisse manter durante a lua de mel. E estava certo. Ela conheceu outra pessoa no health club enquanto estávamos em St. Croix.
— Então e a esposa número dois?
— Quem?
— Estou a ver — disse Lily. — Se você é tão mau, porque é que a esposa atual casou consigo?
— Acho que nem ela sabe. Está a divorciar-se pelo meu dinheiro.
— Oh. Estão a divorciar-se?
— Há dois anos. Nem o divórcio está a resultar.
Lily riu-se.
— O meu tempo acabou no ano passado — disse ele. — Esta é a minha rodada de bónus. E a tua. Aqui vão duas questões. Os antigos egípcios perguntavam-se isto a eles próprios para determinarem o tipo de vida que teriam para além da morte.
Lily não aguentava mais uma questão.
— Vida para além da morte?
— A primeira questão era: ‘Produziste alegria?’; E a segunda era: ‘Encontraste alegria?’
Lily ficou a olhar para ele. — Só pode estar a gozar comigo.
— Cheguei à filosofia bastante tarde — disse DiAngelo. — Até agora, o meu único outro hobby era a pesca. Transcendental em si mesma, por acaso, mas não interessa. — Levantando-se, apertou o fecho do casaco de fato de treino e agarrou no boné dos Yankees juntamente com a ficha dela. — Levanta-te e sai da cama, Lily. Vais para casa. Não quero saber como estás doente. Levanta-te e vai viver a tua vida de bónus. Vai encontrar alguma alegria. Vai produzir alguma alegria.
PARTE III
O JOGO FINAL
E portanto, parece (embora raramente) que o amor pode entrar não só num coração aberto, mas também num bem fortificado, se a guarda não for bem mantida.
FRANCIS BACON
O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua verdadeira essência
BENTO DE ESPINOSA
40
Lily como uma antiga egípcia
Joy foi-se embora. Lily tinha encontrado Joy, mas agora que já não era necessária, empacotou os poucos pertences, pegou no seu cheque, abraçou o corpo emagrecido de Lily e partiu. Lily ficou sozinha no seu apartamento, sozinha com o seu saquinho do hospital e com os seus carvões. Não havia mais quimio às segundas, não havia mais quimio às terças. Não havia mais dias desaparecidos da semana.
Não haveria mais comédias com Spencer? Depois do Natal, as coisas tinham ficado tensas com ele. Não falavam de coisas que os deixassem tensos; muito melhor assim.
Eram duas da tarde. Lily tinha fome? Tinha sede? Tinha sono? Precisava de um duche, de um filme, de um casaco? Era janeiro e estava um frio de rachar.
E agora?
E agora?
E agora?
Lily estava deitada na cama, mas não se sentia satisfeita. Foi deitar-se na cama de Amy, mas esta tornara-se na cama de Joy. Lily voltou para a própria cama, abriu as janelas para deixar entrar algum ar fresco e procurou a ver se via o casal que costumava desenhar, o casal que tinha chegado a ter sexo de estores abertos.
Os estores estavam corridos, o gato tinha-se ido embora.
Foi preparar uma chávena de chá, a primeira que fazia para si em quatro meses, sentou-se no sofá, ligou a televisão, e vagueou sem propósito pelos canais. Não havia nada a dar a não ser notícias e melodramas vulgares mas espirituosos.
Envolveu-se na história de uma mulher casada grávida de outro homem. Deveria ela contar ao marido? Aparentemente, ele costumava ser muito compreensivo, mas a mulher não estava certa de que ele fosse compreensivo em relação àquele tipo de coisas. Antes de saber como aquilo acabava, Lily adormeceu. Sentada no sofá, com a chávena vazia no colo.
Quando acordou, estava escuro, a televisão ainda estava ligada mas com o volume baixo e Spencer estava sentado a seu lado.
— Spencer? — sussurrou Lily. — A Joy foi-se embora.
— Eu sei. Foi contratada a tempo parcial por outra pessoa.
Ficaram sentados. Ele tinha-lhe tirado a chávena das mãos, tinha-a tapado com uma manta.
— A tua família vai-te ajudar, Lil?
— Já não preciso da ajuda deles. Vou ficar bem.
— Não quero que eles fiquem zangados contigo por minha causa. Não valho de todo a pena.
— Eu sei, estou sempre a dizer-lhes.
— Muito engraçadinha, Harlequin. Mas diz-lhes que eu deixei de cá vir. Diz-lhes que foi só porque estavas doente, mas que agora estás muito melhor e ficas bem sozinha.
Se aquilo era verdade, então porque é que Lily se sentia tão absoluta e completamente dependente dele e de Joy? Ele estava sentado no sofá dela, sossegado a ver o John Goodman num antigo Saturday Night Live em repetição e ela ia adormecendo e acordando.
— Spencer?
— Sim? — Ele baixou o som da televisão. — Precisas de alguma coisa?
— Estou bem, não preciso de nada. Queria só perguntar-te uma coisa. Achas que encontraste a alegria?
— O quê?
Lily contou a Spencer sobre DiAngelo, o filósofo.
Spencer meditava em silêncio.
— Bom, olha... A resposta é um sim comedido. Estou no ramo errado para a alegria. Tal como o teu médico egípcio. Ele vê demasiado.
— Como tu?
— Humm.
— Mas ainda assim?
— Bem, sim. Ainda assim. Nos batizados dos meus afilhados. Sou padrinho de seis dos meus trinta sobrinhos e sobrinhas. Costumava divertir-me nos casamentos das minhas irmãs, dos meus irmãos. — Spencer fez uma pausa antes de prosseguir. — A jogar futebol no relvado da nossa casa em Farmingville com os meus irmãos mais velhos e levar uma sova deles. A jogar futebol todos os sábados na Liga da Polícia de Hanover. Diria que me sinto bem quando vou a casa nas férias e a minha mãe não me larga e quando me sento com o meu pai a ver um jogo de futebol, e os miúdos trepam por mim acima, e há barulho. Barulho feliz. O meu apartamento está sempre tão silencioso que às vezes gosto de um bom barulho. Gosto do verão. Detesto o inverno. Gostava de viver num sítio onde fosse verão o ano inteiro. Deixa ver, que mais? Não odeio totalmente despedidas de solteiro. — Sorriu abertamente. — E estive nalgumas, como direi, bem alegres. Torneios de bowling da polícia. São hilariantes, também. O pessoal desgraça-se e depois joga. Só visto, contado ninguém acredita.
Lily escutava-o.
— Respondi à tua pergunta?
— Humm.
— Então e tu?
Mas ela já estava a adormecer. Quando voltou a acordar de novo, era de manhã e ele tinha-se ido embora. Era quinta-feira, 6 de janeiro de 2000. Era o primeiro dia do resto da sua vida. Lily ia ter de aprender a viver de novo.
Está bem.
Então e agora?
A cantilena foi sendo intercalada por um «não estou falida», o que ao fim e ao cabo constituía uma espécie de revelação na inquieta mente em cura, no quieto corpo por curar. Estou viva e não falida, então e agora?
Estou viva.
A avó ligou e disse:
— Então, é quinta. Não vens?
Lily disse que talvez fosse na semana seguinte.
Na terça-feira, teve de voltar ao hospital para fazer análises ao sangue. Joy, apesar de estar agora com outra pessoa, veio buscá-la. Quando Lily protestou e disse que ela já não tinha de vir, Joy disse:
— Eu venho porque quero. Faço-o como amiga, como o Spencer. Não tens de me pagar. Não lhe pagas, pois não?
Foi o próprio DiAngelo que lhe tirou sangue. Ora aí estava um médico prático, pensou Lily. Normalmente são os enfermeiros que tiram sangue aos pacientes. Onde estava aquela Marcie? Mas o Dr. D é tão minucioso, tão comprometido.
Foi então que ela reparou na saia nova, gira, que Joy usava, e nas marcas de maquilhagem nova no rosto, assim como na ligeira falta de ar de DiAngelo que traiu o seu coração desobstruído. As análises vieram limpas — se bem que esperar pelos resultados tivesse sido a coisa menos agradável que Lily tinha tido de fazer na primeira semana da sua nova vida. E Joy sorriu, toda corada, e DiAngelo sorriu — mas não para Lily — e Marcie entrou e abraçou Lily, enquanto Lily olhava incrédula para eles os três.
As náuseas continuavam e não havia apetite, mas também não havia mais vontade de vomitar e isso já era alguma coisa. O abdómen continuava a doer-lhe.
As terças-feiras eram os piores dias para Lily: ela sustinha a respiração e fazia figas, mas as análises vieram limpas na primeira semana, na segunda, e as plaquetas e os glóbulos vermelhos estavam a subir e os brancos mantinham-se saudavelmente baixos, os neutrófilos eram baixos, embora a subir, e as saias de Joy iam ficando mais curtas, e Joy mais magra, e DiAngelo deixou de usar os seus fatos de treino, e as análises continuavam limpas, Joy sorria, e ainda era pleno inverno, e estava frio, e ainda assim, decorria um melodrama espirituoso no meio daquelas suas tardes de janeiro repletas de análises ao sangue.
Spencer ligou na terça-feira para saber das análises. Lily perguntou-lhe se se podiam encontrar para almoçar.
— Spencer, não vais acreditar no que te vou dizer, mas acho que o DiAngelo tem uma coisa pela Joy — disse Lily. Estavam pretensamente a almoçar no Odessa. Spencer estava deveras a comer. Lily brincava com a sopa.
— Para de rodopiar a colher, Lil. Come. Não tenho o dia todo. Ainda tenho de te levar de volta e depois tenho de ir para o campo de tiro.
— Ouviste o que eu disse?
— Sim.
— Então?
Ele ergueu o olhar para ela.
— Faz-me um favor, não te ponhas a tentar fazer trabalho de detetive. Onde é que tens andado? O DiAngelo está caído por ela desde a primeira vez que apareceu contigo.
— Está? — Lily disse aquilo um bocadinho alto de mais. Até o cozinheiro dos pedidos rápidos saiu da cozinha.
— Chiuu. Sim.
— Não posso!
— Achas que te ia mentir sobre uma coisa dessas?
— Acho que ias, sim.
— Desde o primeiro dia, Lily.
— Não posso acreditar! Normalmente sou muito boa a topar coisas do género.
Spencer fitou-a longamente e ela foi ganhando uma consciência aguda de si própria, até que ele disse:
— Lily, acho muito difícil acreditar nisso tendo em conta quão cega estiveste em relação a coisas que estavam a acontecer no teu próprio apartamento.
— Oh não, outra vez isso! — Lily levantou-se, aconchegando o chapéu sobre as orelhas. — Já acabei de comer. Vamos.
Fizeram o caminho de volta, devagar. Ela tinha pouca força nas pernas. Spencer ofereceu-lhe o braço.
— Não, estou bem, estou bem — respondeu logo. Só falsa bravura. Mas estava farta da caridade dele.
Nessa tarde encontrou um velho esboço num dos seus blocos, decidiu redesenhá-lo e depois pintá-lo a aguarela numa cartolina prensada de oito por oito. Quando Spencer foi vê-la na terça-feira seguinte depois das análises, ficou a olhar para o desenho durante muito tempo, até que perguntou:
— Lily, o que é isto?
— Gostas? Fi-lo na semana passada.
Lily via que ele não sabia o que dizer.
— Estou muito confuso com esta imagem — disse ele. — Quando é que a fizeste?
— Na semana passada, acabei de te dizer.
Era um desenho de Spencer com Mary pendurada no seu braço, frente a um canteiro de flores no Dagostino.
— Lembras-te quando te encontrei no verão passado?
— Lembro-me — disse ele devagar. Consigo perceber como podes ter convocado a minha imagem, mas o que quero saber é como fizeste para colocar aqui a da Mary? Só a viste durante aqueles dois segundos, não foi?
— Sim, só a vi durante aqueles dois segundos — disse Lily, a sorrir. — Redesenhei um velho esboço.
— Hum... Talvez devesses fazer um pouco mais deste redesenhar. — Ele não pegou na pintura.
— Não o queres?
— Sabes, ia ter de dedicar algum tempo a explicá-lo, portanto não — disse Spencer. — Porque detesto ter de explicar o que quer que seja.
41
Compras curativas
Quem quer que tenha dito que o dinheiro não traz felicidade, não tinha obviamente nenhum. Lily sentia-se um pouco melhor, um pouco mais forte, já comia um pouco. Nas duas semanas em que saía todos os dias e regressava com pilhas de coisas, sentiu uma grande felicidade.
Saía vestida com o seu fato de treino de caxemira novo, com o casaco de lã preto novo, com as botas novas, mala nova, um novo chapéu vermelho todo janota para esconder a penugem da cabeça. Lily comprou brincos e livros, e mais DVDs, completamente viciada em comédias. Comprou um casaco de caxemira para Joy. Comprou um SUV a Amanda, para poder andar com as miúdas por aí. Pagou mais um mês de renda a Anne. Pagou os impostos de propriedade relativos aos cinco anos seguintes da casa de pedra da avó em Brooklyn. Após duas semanas de Gucci e Guess e de uma gabardina vermelha pelo joelho da Prada (o mais giro casaco para a chuva de todos os tempos), Lily estava farta. Comprou uma máquina fotográfica digital, um gravador de vídeo digital, comprou uma aparelhagem e uma torneira para a cozinha porque a dela tinha uma fuga. Comprou um iMac. Comprou uma colcha de pelúcia para a cama, almofadas confortáveis, um tapete, uma jarra. Duas semanas de compras e estava farta.
E agora?
Ligou-lhe.
— Spencer, posso comprar-te alguma coisa?
— Já te disse que não. Nada.
— Vá lá. Não sejas tão picuinhas com as conveniências. Isto não tem a ver com um detetive e a sua testemunha.
— Então tem a ver com o quê?
Boa pergunta.
— Quando é o teu aniversário?
— Não é.
— Que tal um fato da Armani pelo teu aniversário?
— Se queres que perca o emprego, força nisso.
Que casmurro que ele era.
— Acho que quero mudar de casa — disse Lily com um suspiro.
— Excelente ideia. Mudar para onde?
— Não sei. Central Park West? Central Park East? SoHo? Chelsea? Para onde achas?
— Para qualquer lado que não seja esse apartamento seria bom.
Só pela piada, Lily decidiu ir ver alguns apartamentos disponíveis. Pediu a Spencer que a acompanhasse porque não queria parecer a tonta ingénua que era na realidade. Mas, apesar de Spencer ter aceitado ir com ela, não lhe deu notícias nesse sábado e, mesmo quando ela lhe enviou um beep, ele não lhe ligou de volta. Não o viu no domingo, o que não era habitual. Na terça-feira depois das análises, quando ele finalmente ligou, disse que iria com ela no fim de semana seguinte, mas veio o fim de semana e mais uma vez não houve qualquer contacto da parte dele.
— Spencer, onde estiveste? — perguntou Lily, num tom quase queixoso, na segunda-feira. Não queria parecer aborrecida, com certeza que ele não era obrigado a ir com ela, mas se ele próprio tinha dito que ia, então porque não ia? Será que não era um homem de palavra? Lily não esperava aquilo de Spencer.
Ele não respondeu, e, quando ela o pressionou na brincadeira, ganhou um ar estranhamente frio, que lhe disse estar a passar os limites, mesmo a brincar. Então, ela rapidamente desistiu e não voltou a pedir-lhe para a acompanhar, e ele não se ofereceu.
Lily foi então com Paul e Rachel, apesar de Paul ter dito:
— Lil, eu não quero que largues o apartamento. O que é que vai acontecer quando a Amy voltar e descobrir que vocês se foram todos embora?
— Isto é só para brincar, Paulie — disse ela, abraçando-o.
A mulher da imobiliária, Marilyn Alterbrando, perguntou:
— Vai vender o seu apartamento? — e Lily respondeu que não, que de momento vivia num apartamento arrendado. O rosto da agente endureceu-se. — Vai precisar de um empréstimo?
— Não — respondeu Lily —, pago a pronto.
— Os apartamentos que vamos ver hoje são um bocado caros.
— Eu sei.
— Oh!
Pronto, aquilo sabia bem.
Viram um loft em Greenwich Village, um estúdio em West Side, um T1 em Hell’s Kitchen, um pequeno T2 no Upper East Side, todos por um milhão de dólares.
— Se tiver dois milhões, posso mostrar-lhe casas mesmo boas. Talvez possa pedir um empréstimo para o outro milhão?
— Não preciso. — Pronto, aquilo também sabia muito bem.
Depois de dois fins de semana a correr Manhattan, Lily encontrou o sonho da sua vida: um andar novinho em folha de 1500 metros quadrados na 64th Street, com vista sobre o Central Park, que estava à venda por 9,000,000$ sem acabamentos ou por $11,000,000 com sancas trabalhadas.
— Porra, isso é mesmo muita sanca — disse Spencer quando soube.
Lily tinha gostado tanto do apartamento que conseguiu uma segunda visita para domingo de manhã e arrastou um relutante mas curioso Spencer para vê-lo, levando-o em seguida para o há muito prometido e há muito adiado brunch no Plaza — mas sem Mary. Sentaram-se a uma mesinha em Palm Court. Lily estava monocromaticamente de vermelho: barrete, gabardina, galochas. Spencer estava monocromaticamente de cinzento: calças, camisa, gravata. O cabelo castanho dele estava a crescer. A careca dela estava sob cobertura carmesim.
— Então, o que é que achaste?
— Lily, porque é que queres viver no Upper East Side? Tu não és o tipo de miúda do Upper East Side.
— Ora aí é que te enganas, Senhor Sabichão. Eu quero ser esse tipo de miúda. — O empregado veio e perguntou-lhes se queriam mimosas — champanhe com sumo de laranja. Lily disse que sim. E só sumo de laranja e café para Spencer.
— Tu precisas de um quarto e de um estúdio para pintar. Que vais tu fazer com cinco quartos, salão de baile e uma biblioteca?
— A minha arte precisa de ir para algum lado.
— A tua arte cabe no teu armário. Não vais armazenar toda a arte do futuro, pois não? Tencionas vendê-la, certo? Porque consegues armazenar a tua arte inexistente por bastante menos que onze milhões.
— Quero um elevador que vá diretamente para o interior do meu apartamento. Quero vista sobre o parque. Quero sancas.
— Para que queres cinco casas de banho? Vais ter de limpá-las todas.
— Bom, não tenciono usá-las todas. Só vou usar uma.
— Então para que precisas de cinco?
— Oh, Spencer! Não gostaste?
— Tu não precisas de um apartamento de 1500 metros quadrados — disse ele com firmeza. Lily e Spencer estavam a ter esta conversa com waffles nos pratos enquanto esperavam pelas suas omeletas personalizadas e o violinista e o flautista tocavam um pas de deux da Dança Húngara de Brahms Nº1.
— Eu não disse que precisava dele. Eu disse que o queria.
— Tu não tens onze milhões de dólares.
Era verdade. O dinheiro de Lily não era suficiente em Nova Iorque. No entanto Nova Iorque era tudo o que ela conhecia. Ali estava o dilema. Ela ficou onde estava, mas uma coisa estava a tornar-se cada vez mais clara. Ela não podia ficar onde estava. O fantasma de Amy estava a viver com ela no apartamento. Aquilo começava a ficar lotado. Agora que Lily estava a melhorar, o fantasma estava a melhorar também.
Lily começou a ter a sensação doentia de que estava a ser observada. Começou a fechar todas as janelas e a correr os estores como o casal do outro lado do pátio. Acontece que eles não corriam os estores, já não estavam juntos. Agora moravam duas mulheres no apartamento.
Era loucura, aquela leve paranoia? Ou era só uma racionalização por querer mudar-se para a casa de onze milhões de dólares na Fifth? Perguntou a Spencer se tinha chegado a descobrir alguma coisa sobre Milo. Quando ele disse que não, Lily cerrou os punhos. Vendeu a segunda mala da Prada no eBay, e o segundo par de sapatos Stuart Weitzman, assim como a sua única pulseira da Tiffany. Começou a alugar os DVDs e a comprar molas para os pacotes de aperitivos para que estes não ficassem moles. De repente, a vida agigantava-se de novo em frente a Lily, e não fazia sentido deitar dinheiro fora. Afinal, podia chegar o dia em que precisasse dele.
Mas, embora tivesse vendido todas as bugigangas e tarecos, continuava a sentir-se observada, quase como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra.
«Toda a gente tem o seu karma. Poderei evitar pensar que o meu é morrer cedo?», disse Amy uma vez a Lily. Palavras esquecidas que teriam ficado esquecidas se ao menos, ao menos Amy não estivesse desaparecida há nove meses. Há nove meses que todas as noites as mesmas palavras ressoavam a cada passo que Lily dava de cada vez que apagava as luzes do apartamento e passava em frente da porta fechada do quarto de Amy em direção ao próprio quarto. Mas só nas horas mais escuras, quando sentia olhos fantasmagóricos pousados sobre ela. Porque, à luz do dia e durante a manhã, durante os almoços com Spencer, a fazer compras ou a desenhar, Lily, em conjunto com Paul, o amigo de infância de Amy, continuava a clamar sobre margaritas caseiras pela esperança de que Amy estivesse algures em segurança.
Algures com vida.
42
As aflições financeiras e alimentares de uma premiada da lotaria e sobrevivente de cancro
No princípio de fevereiro, depois de uma quinta análise limpa ao sangue e da celebrada remoção do seu cateter de Hickman, e após se aperceber que não poderia pagar uma mudança de vida de onze milhões de dólares, Lily decidiu procurar os serviços de um consultor financeiro. Ainda dava dinheiro a Anne. E o marido de Amanda tinha ligado, a gaguejar e a enrolar, para pedir um «pequeno empréstimo» destinado a abrir a sua própria oficina em Bedford. Havia um espaço simpático numa boa localização que ia vagar, mas os bancos estavam a dificultar, e poderia Lily fazer-lhe um pequeno empréstimo de duzentos e cinquenta mil dólares, para mudar as vidas da irmã e das sobrinhas para melhor? Lily deu-lhe o dinheiro para que a irmã Amanda a amasse novamente e lhe voltasse a ligar. O SUV para as miúdas não parecia ter sido suficiente.
Funcionou. Lily recebeu uns quantos telefonemas fraternais. Valeu a pena, mas agora tinha de pensar no seu futuro. Afinal de contas, tinha uma família para sustentar.
Escolheu um nome ao acaso na lista telefónica. Lily pensou que, já que tinha ganho a lotaria por acaso, bem que podia escolher da mesma forma o homem que ia tomar conta desse dinheiro.
O homem acabou por ser uma quarentona chamada Katherine, vice-presidente da Smith Barney. Era alta e intimidatória, e tinha uma estrutura óssea perfeita que não provinha de a sua gordura corporal estar a ser comida por fármacos de quimioterapia. Examinando Lily cuidadosamente, disse que lhe chamasse Katie, o que não a tornou menos intimidatória. Olhava para Lily intensamente e dizia o tipo de coisas corretas que um estranho compassivo diria.
Não foi um momento confrangedor no escritório de Katie, cujas paredes estavam cobertas de livros, mas nenhuma arte.
Katie e Lily chegaram à conclusão de que, se ela continuasse a viver no seu apartamento tipo toca de rato na 9th Street, com as mesmas necessidades em termos de comida, serviços correntes, lazer e material artístico, as despesas anuais andariam na ordem dos 50,000$, e isso incluía compras de Natal e de aniversário e ocasionalmente uma mochila ou umas botas, mas não ambas. Um retorno seguro de seis por cento sobre os remanescentes seis milhões renderia a Lily 360,000$ por ano.
— Pode pedir um empréstimo para um fantástico apartamento — disse Katie, tamborilando a secretária com um lápis —, comprar botas e malas, ir de férias, dar dinheiro para causas de solidariedade social para reduzir os impostos sobre o capital, já agora, os presentes para a família não são considerados causas de solidariedade social, e ainda sobrarem cem mil por ano para miudezas.
Lily mordeu o lábio. Pigarreando, perguntou timidamente:
— Um empréstimo, hein? Em quanto ficariam as prestações para, digamos... a título meramente argumentativo... um apartamento de onze milhões?
Isto fez com que Katie parasse de tamborilar com o lápis na secretária.
— Cerca de cem mil dólares — disse ela. — Por mês. Mais de um milhão por ano. — Levantou a sobrancelha. — Não pensei que estávamos a investir para isso.
— Talvez devêssemos investir de uma forma um bocadinho mais agressiva — disse Lily pigarreando. — Talvez ligeiramente menos segura, mas mais compensadora?
Ao fim de mais uma hora a examinar planos de fundos de garantia, com Lily a desejar apenas os seus carvões para poder desenhar aquela sala com aquele computador e aquela mulher sentada à sua frente vestida de fato e a falar sobre dinheiro, chegaram a acordo sobre um fundo que — assim não sucedesse nenhuma catástrofe mundial — proporcionaria a Lily um rendimento entre quinze e vinte e seis por cento ao ano.
Era dinheiro a sério, um retorno significativo para o investimento. Uma vez que Lily só precisava de 50 mil para viver, ainda podia reinvestir os dividendos anualmente de forma que o capital duplicasse a cada três ou quatro anos. Por outras palavras, quando estivesse a festejar a meta dos cinco anos de sobrevivência ao cancro, Lily, se vivesse de forma frugal — e se vivesse — poderia comprar o apartamento a pronto e ainda lhe sobraria dinheiro para montes de coisas.
Ora aí estava um plano que lhe agradava. Lily assinou os papéis, preencheu os impressos, arranjou novos cartões, novos livros de cheques. Quando finalmente saiu dali, deixando todo o seu dinheiro para trás com Katie, Lily pensou que teria pago o dobro para não ter passado a tarde num escritório abafado. Será que trabalhar é assim?, pensou. É isto que vou ter de fazer quando tiver acabado o curso universitário, conseguido finalmente a licenciatura e tiver procurado na secção de empregos do The New York Times, acabando por encontrar um emprego como este?
O pensamento foi o suficiente para deixar Lily em polvorosa durante os três dias seguintes, acabando por gastar praticamente todo o orçamento anual em material artístico. Pediu a Spencer que a ajudasse a esvaziar o quarto de Amy das coisas delas, colocando-as num pequeno armazém por poucos dólares por mês. Spencer ficou contente por ajudar. Lily comprou três rolos de tela, tábuas de madeira, um agrafador pneumático, terebentina, primário para telas de gesso, quatro cavaletes, pincéis e tintas!
Comprou tintas de óleo e lápis de pastéis de óleo, aguarelas e tinta acrílica, lápis de cor e marcadores, e carvões e lápis pretos que eram tão bonitos, que se sentou imediatamente na cama e, de memória, numa folha de 12 por 16, desenhou Katie, a corretora, a lápis preto, sentada atrás da secretária com livros em redor, a janela aberta, árvores primaveris lá em baixo ao longe e também o rio Hudson lá ao fundo. E Katie no seu elegante fato atrás da secretária, à espera do próximo cliente, tendo à mão de semear The World According to Garp e 67-Pound Marriage e Hotel New Hampshire. Dois dias depois, quando foi de novo ver Katie, levou o desenho, a cores. Katie olhou para ele durante muito tempo e depois perguntou a Lily quanto queria por ele.
Lily ficou surpreendida.
— Nada. Porque haveria de querer o seu dinheiro? Eu dou-lhe dinheiro a si, não vice-versa. A propósito, quanto é que eu fiz em dois dias?
— Vinte e um cêntimos — disse Katie, mas antes de Lily se ir embora, acrescentou, olhando para o seu retrato —, mas se fosse a si não me preocupava com aquele andar na Fifth, Lilianne. Tenho a sensação que vai chegar mais cedo do que espera.
Lily não estava bem certa do que Katie quisera dizer com aquilo, mas no dia seguinte Katie ligou, perguntando se gostaria de, «só a troco de dinheiro», pintar As Crianças.
Lily concordou e pintou em acrílico duas pequenas Katie, um macho, uma fêmea, sentados lado a lado, próximos e melancólicos, num parque em Brooklyn, com uma bola laranja entre eles que parecia uma abóbora.
Katie deu-lhe um cheque de 500$ que Lily aceitou e pregou na parede, devidamente emoldurado, como o primeiro dinheiro de sempre ganho com a sua arte.
Passou a semana a rabiscar coisas novas no caderno: frigoríficos, candeeiros, árvores lá fora, gatos em parapeitos, mulheres adormecidas em camas vistas através de janelas. Depois desenvolveu-os no seu novo estúdio de arte — o quarto de Amy — com a sua magnífica exposição a sul e soalho de tábua corrida sobre o qual a tinta respingava. Lily pintou alguns a aguarela e outros a lápis de cor. Usou tintas acrílicas, que secaram em horas, e até pintou dois pequenos quadros a óleo sobre tela que lhe ocuparam toda a quinta e a sexta-feira, um de um gato sentado a olhar para as árvores enquanto a dona dormitava numa cama atrás dele, e outro de Spencer atravessado num sofá a ver televisão com um ar sombrio.
— Eu não tenho este ar — disse Spencer mal-humorado.
Lily riu-se. — Não?
— Que cheiro é este?
— Terebentina! — disse ela. — É por causa dos óleos. É muito mau?
— Não é um cheiro lá muito sedutor, não.
— Bom, não estou no ramo da sedução — declarou-lhe ela alegremente. — Estou no ramo da pintura. — Além disso, o sentido do olfato ainda não tinha regressado completamente. Pintava de janela aberta. — Vou vendê-lo na 8th Street no sábado de manhã.
Spencer andou pelo estúdio, inspecionando o trabalho dela.
— Então, o que te parece? — perguntou ela expectante.
— Não me parece que sejas sequer capaz de me impingir a alguém de graça — respondeu.
No sábado de manhã, Lily apanhou um táxi com as suas vinte peças de arte, uma mesa e uma cadeira desdobráveis, em direção à 8th Street, a via pública artística em Greenwich Village, e com três cavaletes desencontrados e a mesa desdobrável, tinha as vinte peças expostas pelas nove.
Pelo meio-dia, Lily tinha voltado para casa. Era uma hora da tarde de sábado quando Spencer lhe apareceu à porta. Ficou muito surpreendida ao vê-lo.
— Que aconteceu? — perguntou ele. — Fui à 8th à tua procura e tinhas desaparecido. Isso não evidencia grande capacidade de permanência.
— Hum.
— Porque te foste embora? Tens de ter paciência. É como pescar. Eles vão acabar por morder. O tempo tem de estar conforme.
— Hum. O tempo deve ter estado mesmo bom, porque vendi tudo.
— O quê?
Lily deu um pulo.
— Sim! Vendi tudo. Até ao último quadro. Incluindo tu, Senhor Resmungão. Para os últimos dois, ia havendo zaragata. Tinha quatro clientes quase a fazer um leilão. A coisa aqueceu. Finalmente os quadros foram por cem dólares cada.
— Cem dólares? Uau!
Lily olhou-o de soslaio.
— Estás a ser irónico?
— As molduras custam mais do que isso! Porque não dás a tua arte, simplesmente? Quanto é que fizeste ao todo?
— O suficiente para te pagar o almoço. Embora.
— Posso bem pagar a minha própria sandes. Quanto?
— Mil dólares.
Spencer assobiou.
— Bem, isso é quase um salário.
— Pois é. Estou a tentar poupar onze milhões de dólares.
E Spencer riu-se com todos os dentes brancos e olhos azuis, e Lily riu-se, e, num frio sábado de fevereiro, sentaram-se durante três horas no Odessa. E então ele disse:
— O Scream 3 está a passar no Union Square. Eu pago.
Lily passou metade do filme com a cabeça enterrada nos joelhos. Detestava filmes de terror, e não sabia o que Spencer tinha apreciado mais, se o filme, que era assim-assim, se ela estar toda enrolada, de olhos fechados, demasiado assustada para olhar para o ecrã. Cada um comeu as suas pipocas e bebeu a sua bebida.
Mas quando Lily pintou na semana seguinte, pintou um pacote médio de pipocas amarelas e uma das mãos dele e uma das dela lá dentro juntas.
Pintou mãos de pipocas e sorrisos e tufos de cabelo; pintou olhos pintados de preto, e lágrimas e gatos. Pintou camas vazias e chuveiros molhados, e Tompkins Square Park, com todas as suas árvores e ramos despidos, as suas fontes de pedra e grades de ferro. Pintou as mãos de Spencer com a forma de um tipi. Lily mal podia esperar pela primavera para poder passar mais tempo lá fora. Passava o dia todo, todos os dias, no quarto de Amy onde não estava só lá fora, mas em todo o lado ao mesmo tempo — em lojas e parques e galerias e na água. Tudo num quarto só. E aos sábados de manhã, montava a mesa e os cavaletes na 8th Street, e, independentemente de quanto ou o que desenhasse, Lily voltava para casa sem nada a não ser um maço de notas.
O apetite voltou-lhe, devagar. Trinta e seis quilos, depois trinta e sete, depois um pulo até aos trinta e nove. Devia ter sido daqueles Milanos duplos de chocolate. Quando o contou à avó, no dia seguinte chegou uma caixa de Milanos do supermercado. Em duas semanas a caixa tinha desaparecido e Lily pesava quarenta e um quilos. Donuts de geleia da Dunkin’ Donuts. Batidos de baunilha. Batidos de proteínas, de manhã, ao almoço e à noite. Depois, comida sólida sem ser bolachas e éclairs divinais da Veniero, a melhor pastelaria do planeta. Tomava o pequeno-almoço e o jantar no Odessa e no Veselka, o restaurante ucraniano na Second Avenue perto da esquadra de Spencer. Omeletes, latas de carne picada, bacon, salsichas, batatas fritas caseiras, couve recheada, pierogi. À quinta-feira, quando ia a casa da avó, Lily fazia brownies na cozinha.
— Aquele homem já não tem aparecido, pois não, Lily? Porque estás muito melhor agora, e o teu irmão seguiu em frente.
— Não quero falar sobre isso, Avó.
— Lily.
— Avó.
Se o meu irmão seguiu em frente, queria Lily dizer, então porque é que não me ligou? E porque é que eu não posso ligar-lhe? E onde está a Amy?
Quarenta e seis quilos. Lily já parecia quase só assustadoramente magra, e não acabada de sair de Dachau. As análises continuavam limpas. O cabelo, a pouco e pouco, estava a voltar a crescer. De forma dolorosamente lenta e descolorada. Crescia em feios tufos pastosos, deixando-a de tal forma consciente de si própria que Lily não parava de pedir a Spencer que o cortasse, que o igualasse. Continuava a pedir-lhe a ele e não deixava que Paul o fizesse, porque Spencer lhe segurava a cabeça com a mão esquerda para a imobilizar, enquanto cortava com a mão direita. Era a única altura em que ele lhe tocava.
Rachel disse a Lily que, assim que ela deixasse crescer o cabelo, Rachel tinha um tipo para ela que ia saltar-lhe para a cueca. Foi o que Rachel disse.
— Vai saltar-te para a cueca.
— E é isso que eu quero? — Lily sentia-se como se a quimioterapia não lhe tivesse apenas removido o cancro mas também os órgãos sexuais.
— Limita-te a deixar crescer o cabelo, está bem?
43
Só uma coisinha sobre Spencer
Por vezes Spencer ficava completamente metido consigo próprio. Enquanto Lily esteve doente, mal reparara. Só queria um ser humano que se sentasse a seu lado. Mas desde que tinha terminado o tratamento, andava a dar mais por isso.
Ele andava melhor durante a semana. Ela não conseguia perceber. Ele estava bastante menos de mau humor durante a semana do que ao domingo. Lily decidiu carregar no botão de pausa enquanto viam Roxanne.
— Porque é que estás tão calado? É engraçado, não?
— É.
Lily ergueu as sobrancelhas.
— Que foi? É engraçado. Estou a rir por dentro.
— Sim, mas porquê por dentro? — Insistiu ela.
— Porque estou, só isso.
— Mas não estás só calado, estás... taciturno.
— Hum.
— O que é que se passa?
— Nada.
— Queres falar sobre isso?
— Não.
— Então quer dizer que há alguma coisa para falar?
Devagar, Spencer voltou a cabeça na direção dela. Lily sentiu-se intensamente perturbada sob o seu olhar de detetive.
— Lily-ANNE — disse ele —, não uses os meus métodos de interrogatório comigo. Não funcionam.
Ela vacilou um instante, mas logo recuperou a fala.
— Spencer, não consigo deixar de reparar que por vezes não estás em ti.
— Errado, Lily. Isto sou eu. O outro eu é que não sou eu. Este é o verdadeiro eu. Carrancudo, calado. Taciturno.
— Quando eu estava doente não via isso.
— Estavas doente. Não vias praticamente nada. — Spencer não estava a olhar para Lily; estava a olhar para as suas mãos ossudas e com nós.
— Não acredito que isto és mesmo tu.
— Acredita.
— Não acredito. Acho que és tu preocupado com alguma coisa.
— Não estou minimamente preocupado.
— São problemas no trabalho?
Spencer sorriu.
— Não, não são problemas no trabalho. — Virou-se para ela. — Olha, eu agradeço o teu interesse. Mas, por favor, não te preocupes comigo. Vamos ver o nosso filme.
Mas Lily não ia desistir. Ele ainda não estava zangado, ainda lhe restava um pouco de corda. A técnica da ligeira persuasão não estava a funcionar. Ia tentar a autocomiseração.
— Não tens de estar aqui, sabes Spencer, se não te apetece. Estou bem agora. Não é como dantes. Consigo estar bem sozinha, posso tomar conta das coisas, tomar conta de mim própria. Não tens de vir se não quiseres.
Spencer esfregou a cara.
— A que propósito vem isto agora? Mencionei o teu irmão sem dar por isso?
— Não, não, a sério. Não tens de fazer de conta. Se queres estar noutro lado, não tens de estar aqui sentado comigo. Quer dizer, qual é a ideia, mesmo?
— Nós gostamos das nossas comédias.
— Quando nos rimos, sim!
— Lily, passaste quatro meses a ver comédias sem te rires. Vais compreender, eu sei que vais, se eu não me rir só num domingo.
— Não é isso. É... — Mas Lily não sabia o que era. — Spencer, o que é que te está a incomodar? Anda, diz lá. Ajudaste-me tanto, por favor, diz lá.
— Não há nada para dizer.
— Queres estar sozinho?
— É a última coisa que quero.
Quando raio teria aquilo acontecido? Lily dizia a si própria que era inevitável que, após dias e semanas e meses de Spencer a ligar-lhe, sentado sozinho com ela, a fazer compras com ela e para ela, a comer com ela, era inevitável; haveria algo de seriamente errado com ela, efetivamente, se não começasse a sentir um leve desejo de ouvir a sua voz ou de ver o seu rosto. Tinha-se tornado como um hábito, um bom amigo, como Paul. E ela gostava tanto de Paul, como poderia ela não gostar pelo menos da mesma forma de Spencer, que tinha passado aquele tempo todo com ela quando ela estava doente? Era gratidão, isso é que era.
Só que... Lily não sentia um apertão algures nos seus capilares afetados pelo cancro
quando Paul ligava ou deixava de ligar, nem suspendia ligeiramente a respiração para melhor ouvir Paul, nem estudava o rosto de Paul à procura de emoções novas, nem nunca tinha tentado fazer Paul rir para depois se sentir esvair quando não conseguia.
Oh, meu Deus, pensou Lily. O que é que está a acontecer comigo? Ainda nem sou bem uma sobrevivente. A minha cicatriz do Hickman no peito ainda nem sequer sarou. Mal tenho uns tufos de cabelo na cabeça. São os químicos. O Vepesid afetou-me o cérebro. Estou parcialmente surda de um ouvido, vejo turvo de um dos olhos e não consigo cheirar coisa nenhuma. Os contornos do mistério que estou a formar na minha cabeça são produto dos medicamentos, os contornos que formam estas sensações totalmente idiotas e não correspondidas a respeito de Spencer são só produto da bondade que ele teve comigo, dos cuidados que tem tido comigo, e o medo de que quando eu estiver realmente melhor, ele se vá embora e não torne a aparecer.
Estou doente da cabeça. Talvez afinal precise mesmo daquele grupo de sobreviventes de cancro. Onde está Joy? Onde está Marcie? Onde está o Dr. D?
Queria ligar a Spencer, para que ele a pudesse esclarecer. O que está a acontecer comigo, queria Lily perguntar-lhe, e vê-lo a olhar para ela calmamente e dizer-lhe: «Lily-Anne, não faço a mais pequena ideia do que se passa contigo.»
Mas ela sabia que de certeza que algo estava terrivelmente errado com ela quando já nem sequer era capaz de se obrigar a mandar-lhe um beep só para dizer olá, ou perguntar-lhe se ia estar por perto para almoçarem, ou que filme queria ele que ela alugasse. Lily apercebia-se de que algo estava terrivelmente errado quando ela queria ir ver The Whole Nine Yards no Union Square e não conseguia ligar e perguntar casualmente a Spencer se queria ir com ela.
Em vez disso ligou a Rachel. Rachel Ortiz, a conselheira sobre vícios.
Quando Paul e Rachel apareciam, embebedavam-se com margaritas no apartamento de Lily, e ouviam Tori Amos, ou Enya, ou algo igualmente lúgubre e sombrio, e fartavam-se de chorar para ela, em vez do contrário. Paul tinha acabado há pouco com Ray e Rachel estava a passar um mau bocado com TÓ-niii. Oh, diziam eles, lambendo as palavras em torno dos copos cheios de lima e debruados a sal, nós queremos amor, nós queremos amor, nós queremos Amor!
— Eu não — disse Lily. — Eu não preciso de Amor. Eu tenho o Spencer.
E Rachel riu-se, Paul riu-se, beliscaram-lhe o braço e fizeram mais margaritas e disseram-lhe que ela era tão engraçada, e que o apartamento cheirava horrivelmente a terebentina e a gesso. E Lily já não queria falar do assunto com eles, mas não via onde estava a graça, o que é que era tão digno de riso.
Spencer era impenetrável. Não havia nada que ele dissesse ou fizesse que pudesse ser interpretado de outra forma que não da forma literal, educada, apropriada de Spencer, que era: «Estou aqui. Para falar, para ver um filme, para comer. Se queres caminhar, vamos embora. Se queres sopa, vou buscar-ta. Central Park? Com certeza. Palm Court, absolutamente. Se queres que eu retire camas de quartos ou que te ajude a esticar a tuas telas, também faço. Queres que te ligue depois das análises? Que me sente contigo no sofá ao domingo? Aqui estou.» Lily estudava-o tão intensamente com o seu olhar de artista, tentando decifrar outros significados, outras expressões, outros pensamentos, que daquela vez nem devia ter prestado atenção ao que ele estava a dizer, pois ele meteu-lhe o dedo debaixo do queixo.
— Que diabo estás tu a pensar? — perguntou.
Ela saiu do marasmo.
— O quê?
— Não estás sequer a responder à minha pergunta.
— O que estou a pensar?
— Estás a tentar ganhar tempo.
— Não, não. Oh, nada, nada mesmo.
— Ah, agora és tu que estás a ser evasiva. — Spencer sorriu abertamente. — Deve ter sido algo mesmo mau, Lil. Foi sobre o Keanu?
Era isto que Lily queria dizer. Neste mundo para todas as audiências, ela era uma doente de cancro. A irmã de alguém. Testemunha numa investigação. Bem podia ser um homem a ligar-lhe por causa de um cavalo.
Não cem por cento impenetrável. Num domingo à noite, tinham acabado de ver A Fish Called Wanda, e Spencer levantou-se para ir buscar uma bebida enquanto Lily se espreguiçava e ficava deitada de barriga para baixo sobre o sofá. Ele permaneceu de pé, sob o arco entre a cozinha e a sala, com uma Coca-Cola na mão. Lily conseguia ver-lhe o rosto refletido no ecrã de cinquenta polegadas da televisão de plasma, num momento em que ele não sabia que ela o estava a observar. Spencer estava a olhar para ela, e não apenas para ela, mas em particular para as ancas dela enquanto ela estava estendida de barriga para baixo, de leggings pretas, pernas ligeiramente afastadas, cabeça para baixo sobre o sofá. O coração de Lily martelava no peito, e ela deixou-se ficar mais tempo do que o necessário, tentando ver os contornos da expressão dele. Depois ele disse
— Queres alguma coisa antes de eu ir?
Ela sentou-se.
— Não, não. Estou bem.
Estaria enganada? Seria demasiado vago o reflexo obscuro da intenção do seu olhar à meia-noite de um domingo?
No domingo seguinte, ele veio para ver It Happened One Night.
Lily estava no estúdio. Ele bateu à porta de Amy.
— Ei — disse ela. — Entra. Estou mesmo a acabar. — Ela estava a pintar o granizo no parapeito. Vestia as leggings pretas de cintura descaída e um top amarelo curto e sem mangas. Tinha a barriga à mostra. Não tinha sutiã.
Spencer entrou.
— O que é que se passa aqui dentro? Está um gelo.
— Tenho de manter a janela aberta. É a terebentina — disse Lily inocentemente, dando um gole numa lata de Coca-Cola. — Queres um golinho?
— De terebentina?
Ah. Lily estava mesmo com muito frio no seu pequeno top sem mangas. Podia não ter seios muito grandes, mas sabia que os mamilos eram enormes.
Spencer reparou.
Lily sabia que ele tinha reparado porque, enquanto ele lhe retirava a lata de Coca-Cola das mãos que se encontravam perto dos seios, não disse nada, apenas levantou o olhar para ela, e foi então que ela soube, e a respiração prendeu-se-lhe no peito quando lhe viu os olhos. Uma batida. Outra. Cuidadosamente, Spencer disse:
— És capaz de querer fechar as janelas. Está fresco aqui.
Lily foi fechar as janelas, tentando fechar o ouvido ao deleite auditivo. Depois de vestir um casaco, instalou-se no seu lado do sofá, como sempre, e ele no dele, mas ver um simples filme não era assim tão simples e ainda se tornava menos simples devido a esta recém-adquirida falta de simplicidade. Qualquer coisa em Spencer a olhar para os seus seios atingiu Lily diretamente no estômago com um prazer delicioso. Ele tinha-se sempre mantido numa postura estoica, assexuada. Mas este Spencer era capaz de ser só um homem!
Ela sabia o que era. Sabia exatamente o que era. Era o peso novo. Eram os Milanos e os Krispy Kremes, lá onde se tinham instalado entre a sua pele e os ossos, nos ombros, no peito, era o gelado de baunilha nos seios dela, gelado da Chunky Monkey nas coxas dela, nas ancas dela, toda redonda, a toda a volta.
Soo Min, Hannah, Dana estavam certas. Talvez nem mesmo Spencer fosse imune ao rebolar das ancas feito de creme pasteleiro, ao redondo das nádegas, à suavidade das coxas, às barrigas das pernas salientes, aos mamilos ansiosos a aparecer através do algodão translúcido, traz tudo, amor, onde está o cheesecake, onde está a manteiga e a marmelada? Talvez quando eu ficar enorme ele não seja capaz de tirar algo mais do que os olhos de mim. E Lily comia e comia, vorazmente, e quando foi às compras já não comprava só camisolas de lã da Gap como dantes, mas camisolas justas e sexies de veludo H. Starlet na Bloomingdales por 120$, que eram tãão cintura à mostra com pontos de seda — mais ou menos como Lily se descreveria a si própria. Quando as vestia, o triângulo superior da tanga preta aparecia, o topo das suas recém-recuperadas nádegas redondas aparecia. Fez compras minuciosas na secção de lingerie da Victoria’s Secret, da LaPerla, da Sak. Lily precisava de um apartamento novo para guardar todas as cuecas fio-dental, todos os sutiãs transparentes de renda que andava a comprar.
Pôs espuma no cabelo para o espevitar, bálsamo e gloss nos lábios, e montes dele, como se fosse uma miúda de treze anos num ringue de patinagem, na esperança de chamar a atenção do miúdo de dezasseis, parado na esquina com os seus companheiros adolescentes. Pôs loção no corpo, para o tornar mais macio, para o fazer cheirar bem, para quando ele se sentasse no sofá pudesse cheirá-la. Descobriu umas calças de ganga de morrer na Bergdoff’s. Quando Spencer apareceu numa quinta-feira às oito, já vestido com as suas Levi’s, a sua camisola dos Yankees e o boné dos Yankees e deu de caras com Lily com as botas novas de salto alto e as calças novas, com os seus lábios mais vermelhos, o seu rímel mais negro, o seu cabelo com gel, ficou a olhar para ela como se se tivesse enganado no apartamento.
— Onde vamos? — perguntou ao fim de um momento.
— Ao Odessa — balbuciou Lily.
— Oh, pronto. Por um segundo pensei que me tinha esquecido de alguma coisa. Vais para a noite depois de eu me ir embora, Lil? — disse Spencer, sorrindo. — A boa da tua velha amiga Rachel conseguiu finalmente orientar-te?
Com o bom-humor em queda, Lily resmungou algo incoerente como resposta, e o jantar decorreu silencioso, após o qual ele a deixou novamente em casa e, sem alteração na voz, disse alegremente:
— Espero que passes um bom bocado esta noite. Tu mereces divertir-te.
Fixe, mesmo fixe esta porcaria.
44
O muso
Lily começou, lentamente, a ter seguidores. As mesmas pessoas vinham todos os sábados ver se ela tinha alguma coisa nova. Começou a pensar sobre a sua semana: aos domingos, estava no estúdio, a pintar antes de Spencer chegar. Às segundas e quartas, deslocava-se por toda a Manhattan, a fazer esboços de sujeitos e objetos possíveis no seu bloco. Às terças, depois do hospital, almoçava com Spencer e depois pintava em casa. Às quintas, desenhava Brooklyn, porque estava com a avó. Às sextas e sábados, coloria os esboços em acrílicos, aguarelas ou pastéis de óleo. Raramente pintou um óleo sobre tela, apesar de ser o que ela gostava mais. Demoravam muito tempo e nunca secavam, mas eram sempre os primeiros a serem vendidos, dando-lhe a impressão de que ela simplesmente não cobrava o suficiente por eles, mas o curioso era que independentemente do que cobrasse, vendiam-se sempre, e sempre primeiro.
Consideraria Lily pintar nus em óleo sobre tela? Consideraria pintar as planícies do Serengeti para um berçário? E que tal uma mulher nua e muito grávida? Uma esposa e o marido a fazerem amor no seu décimo aniversário de casamento?
De memória, Lily pintou a cara de Spencer em óleo sobre tela. De memória, a sua pessoa completa. Primeiro as mãos, ossudas e tensas, em que reparou logo a seguir aos olhos, pela expressão e aos lábios, pelo movimento. Spencer estava em pé ao lado da sua secretária com o telefone na orelha. Olhava diretamente para Lily, sem sorrir. Ele não era sorridente. Tinha dentes brancos e fortes. Tinha um belo sorriso. Apenas não sorria muito.
Estava de pé de calças cinzentas, um cinto preto, uma camisa branca aberta no colarinho, uma fina gravata preta com o nó largo. As roupas dele também estavam largas, era magro. Spencer, que parecia como se corresse à volta do maldito reservatório três vezes por semana. Lily pintou-o com deltoides compactos debaixo da camisa branca, e bíceps e peitorais. Estava todo em sombras a preto e branco exceto os lábios e os olhos, para os quais ela procurou azuis e vermelhos, dando-lhes cor. A artista nela apreciava a estética de ambos. De uma perspetiva artística, a boca dele era uma boca humana perfeita. A linha elegante do arco do carnudo lábio superior assente num redondo carnudo lábio inferior, uma boca de Cupido como um presente embrulhado de Deus. Ligeiramente envergonhada, Lily apercebeu-se como conhecia bem os lábios de Spencer, quão gravados estavam no lugar do seu coração a partir do qual pintou. Os olhos mais profundos, bem abertos, de um azul intenso, mas implacáveis — olhos de cão de caça, enquadrados pelos seus óculos pretos de finas armações metálicas. Lily deu a Spencer cabelo forte ondulado porque o cabelo comprido dele significava ausência de doença nela. Deu à cara dele barba por fazer, maçãs do rosto e um conjunto de queixo quadrado e testa alta descoberta.
Estava embaraçada com o cuidado que tomou ao pintá-lo.
— Isto não sou eu — disse-lhe Spencer quando viu a pintura. — Nunca tive tão boa aparência. Onde é que estão os olhos raiados de sangue, os papos debaixo deles, a cara pálida, as manchas de café na gravata? E a minha camisa está passada a ferro, vá lá! Isto é definitivamente arte, não vida.
— Quem é que vai querer comprar-te se te desenhar da forma que és? — disse uma Lily provocadora. — Estou a tentar ganhar a vida.
No sábado, na rua, recusou-se a vendê-lo, mesmo apesar de lhe terem oferecido mil dólares por ele (!).
Spencer apareceu, olhou para a imagem dele próprio em exposição inclinada num cavalete.
— Eu disse-te que ninguém me quer comprar.
— Isso é porque não estás à venda — respondeu Lily.
Nesse momento, uma mulher passou a olhar.
— Quanto é que é aquele fofinho na montra? — perguntou, apontando para Spencer.
— Desculpe, é apenas para exposição, não está à venda.
A mulher encolheu os ombros para Spencer, depois olhou duas vezes, primeiro para a pintura, depois de volta para ele. Spencer encolheu também os ombros.
— O quadro é melhor, certo?
— Ela é claramente muito talentosa — disse a mulher, indo embora.
— Simpática — disse Spencer virando-se para Lily.
Não te faz justiça, Lily teve vontade de dizer, ocupando-se a contar o dinheiro.
45
Um curso de mestrado em quimioterapia
Meados de março, mais outra terça-feira, outra análise ao sangue.
Lily normalmente esperava cerca de uma hora. Desta vez estava perto de duas. Quando DiAngelo voltou, primeiro não disse nada. Estava calado. E Joy, embora toda arranjada, estava quieta e não sorria. E ele não estava a olhar para ela.
— Alguma vez te falei de Alkeran? — perguntou DiAngelo.
— Não, o que é isso?
— Um pequeno comprimido. Vais tomá-lo três vezes por semana. É importante não falhar.
— Para que é que serve?
— É apenas para te manter bem e limpa por dentro.
— E porquê? — perguntou Lily em voz baixa.
— Por nada. Lembras-te de eu te ter dito que isto era um processo? Bem, às vezes o processo recua um pequeno passo. Avançámos passos gigantescos. Mas os teus glóbulos brancos estão outra vez a aumentar...
Lily abanou a cabeça.
— E os vermelhos não se estão a produzir tão bem como tínhamos esperado. Ainda estás num nível baixo nas contagens. Por isso uma pequena terapia de manutenção...
Lily continuava a abanar a cabeça.
— Não te preocupes, esta é a razão de te controlarmos todas as semanas.
— É impossível!
— Eu sei. Lamento. Mas o Alkeran é fácil e muito eficaz. Podes tomá-lo oralmente com um pouco de prednisona. É só por umas semanas e vai logo reparar-te.
— Por favor. É impossível.
— Não é nada comparado com o que passaste.
— Por favor, não. Não, não, não.
— Lily.
Ela não aguentava.
DiAngelo e Joy estavam sentados perto da cama dela, calados.
O Alkeran dar-lhe-ia náuseas de novo e tinha o infeliz efeito secundário de destruir a própria medula óssea que estava a tentar salvar. Reduziria a sua capacidade de resistir às infeções; ela seria a rapariga na bolha de plástico outra vez, com medo de um lenço nas mãos de outras pessoas. Um lenço branco suave e fino era mais assustador do que o Scream 3. Não havia mais sítios públicos, nem cinemas, almoços, desfiles. Possivelmente nem mais venda de arte aos sábados de manhã.
Terapia de manutenção! Terapia de manutenção, como se Lily fosse um carro velho a precisar de mudar o óleo, uma afinação, possivelmente correias e mangueiras novas por todo o lado.
Ficou no hospital o resto da manhã para mais uma biópsia por punção, para uma rápida transfusão de glóbulos vermelhos. A biópsia mostrava que a medula estava novamente a produzir blastocistos. A irmã Anne apareceu, no seu fato Armani pago pelo dinheiro da lotaria e abriu-lhe os braços vestidos de casaco de lã.
— Eu avisei-o — silvou Anne para o médico na entrada quando estava fora do campo de audição de Lily, ou achava que estava, uma vez que Lily conseguia ouvir. — Avisei-o sobre isto há três meses. Durante quanto tempo vai torturá-la? Deu-lhe falsas esperanças, manteve-a artificialmente saudável, e agora, veja. Faz alguma ideia de como ela estava entusiasmada a pensar que aquilo nunca mais ia voltar?
— Eu sei que ela está desapontada, mas isto é perfeitamente normal, ainda não é nada preocupante.
— Para si, talvez não.
— Sra. Ramen, ela tem cancro. Isto é o que o cancro faz. Por isso, tratamo-lo de novo. E de novo, se tiver de ser. Ela está a entrar numa pequena recidiva. Queremos pará-la. A Lily percebe isso.
— Ela só está a fazer de conta que percebe! Eu não percebo.
— Anne!
Anne continuou a falar.
— Anne! — chamou Lily de novo. Saiu até à entrada, arrastando o suporte intravenoso com ela.
— Anne, podes chegar aqui à minha cama, por favor?
E dentro do quarto de hospital, ela disse:
— Para, isso não está a ajudar.
— Ele disse-nos que ia desaparecer completamente!
— E desapareceu. Exceto uma pequena célula que a biópsia de janeiro não conseguiu detetar. E essa pequena célula é agora dois milhões delas. Temos de fazer o que tivermos de fazer.
— Oh meu Deus, oh meu Deus! — Anne agarrou o seu cabelo como se fosse ela que estivesse prestes a fazer mais quimio. — Quando é que isto vai acabar? Quando é que isto vai terminar? Quanto tempo mais é que vais ter de sofrer assim?
Lily virou as costas. O seu palpite era que ia ser até ao fim.
Depois de se vestir e ter alta, disse que não queria companhia até casa e, lentamente, caminhou sozinha pela Fifth Avenue abaixo, apertando melhor a sua gabardina da Prada, enfiando melhor a boina na cabeça. Abriu o seu enorme chapéu de chuva vermelho. Estava a chover.
Lily entrou na St. Patrick’s Cathedral quase vazia, na 51st e Fifth, e sentou-se no banco da frente. Tirou a boina em sinal de respeito e chorou, achava ela que porque o incenso a fazia chorar, e um padre de batina veio sentar-se ao pé dela. Devem ter sido as lágrimas e o seu cabelo fino aos pedaços que o atraíram até ela; ele deve ter visto as coisas que ela não conseguia exprimir a não ser através da pintura.
— É católica? — perguntou.
— Sou uma católica de Nova Iorque — respondeu Lily. — Quando ele levantou as sobrancelhas em forma de pergunta, ela explicou: — Quer dizer que não venho à igreja desde o meu crisma.
— Ah, sim. Há muitas pessoas a vir ter comigo como você.
— Então elas acabam mesmo por vir?
— Sim. À procura de respostas.
Era um padre mais velho, muito gentil, grisalho e apaziguador.
— Vi-a a chorar. E queria contar-lhe que, nalgumas das nossas igrejas, os bebés choravam durante a missa. E choravam tão alto que não conseguíamos continuar com o serviço, por isso, tínhamos uma sala para onde as mães os podiam levar e passar ali a missa. Era chamada de sala das lágrimas.
— Eu gostava de ter uma mãe que me pudesse levar para a sala das lágrimas — disse Lily. Durantes uns instantes, não disse mais nada.
Por fim, acrescentou:
— O problema é que eu acho que a minha mãe entrou lá uma vez e nunca mais saiu.
— Muitas pessoas que me procuram estão igualmente aflitas — disse o padre. — O bispo de Roma também vai à sala das lágrimas. Sabia? Mesmo antes de envergar as vestes papais. Os mais poderosos, os místicos, todos entram lá.
Lily ouviu, assentiu com a cabeça, tentou compreender.
— O meu conselho é que faça tudo o que puder para se reconfortar. Tudo o que puder. Não há nada que lhe traga alegria?
Oh, santo Deus, porque é que ela estava sempre à procura de uma longa hora de consolo quando tudo o que ela precisava desesperadamente era de um momento eterno de sofrimento extremo? Bem, agora tinha o sofrimento, não era? Lily olhou para ele através do véu das próprias emoções. Viu-lhe algo familiar em torno dos olhos, algo que Claudia Vail carregava, um cansaço consciente.
— Conhece a minha avó?
O padre sorriu.
— Ela é da geração da guerra então? Onde vimos coisas que não conseguimos esquecer e que nos permitem encontrar consolo nas mais ínfimas coisas?
— Se ao menos o resto de nós pudesse quase morrer à fome e ser torturado... Estaríamos muito melhor — disse Lily sem rancor.
— Como se chama?
— Lily.
— Mas que nome maravilhoso. Lily, está aborrecida acerca das coisas que não tem? Então e todas as coisas que tem? Então e todas as coisas que não quer e não tem?
— Não sei nada sobre isso. Tenho demasiadas coisas que não quero. Tenho cancro.
— Lamento.
— A minha melhor amiga desapareceu sem deixar rasto. Também não quero isso. Ninguém consegue encontrá-la, ninguém sabe onde ela está.
— Muito triste para os pais.
— Sim. Mas explique-me a minha mãe. Sofreu muito, mas não consegue encontrar consolo em lado nenhum.
— Ah, não. A sua mãe deve encontrar consolo no próprio sofrimento.
Lily debateu-se.
— Penso que sim. Então onde é que é essa sala das lágrimas, padre? Leve-me lá.
O padre fez-lhe o sinal da cruz.
— Carrega-a consigo para onde quer que vá, minha filha. Essa é a marca dos aflitos. Todos lá entramos. A questão é: saímos de lá? Ficamos lá? Quem é que arrastamos connosco lá para dentro?
Foi para casa e não foi ao estúdio, não foi ao quarto. Descalçou-se e foi à cozinha buscar uma bebida e sentiu-se a afundar, a ser puxada para baixo pelas âncoras da vida e subitamente encontrou-se no chão, contra a parede. Não se conseguia levantar.
O telefone tocou. Lily atendeu sem ver o identificador de chamadas. Pensou ser Spencer.
Mas era Jan McFadden a telefonar para convidá-la a ela, Paul e Rachel para o oitavo aniversário dos dois filhos.
— Sem a Amy aqui, acho que seria melhor para todos ver-vos. Prometes que vêm?
Lily queria contar-lhe sobre ela, mas a Sra. McFadden parecia ela própria estar em baixo nos ladrilhos do chão da sua cozinha.
— Lá estaremos — disse Lily. — Claro que sim.
Ela ouviu o bater familiar e depois a chave na porta. Ouviu a voz dele.
— Lil? — Pousou as chaves na mesa, entrou na cozinha.
Ela estava no chão e não olhou para cima. Ele ficou silenciosamente em pé na arcada e depois sentou-se no chão ao lado dela.
— Ei — disse.
— Já deves ter ouvido — disse Lily sombriamente.
— Sim, quando não tive notícias tuas o dia inteiro, liguei ao DiAngelo. Mas porque é que estás tão triste? Então, tomas um pequeno comprimido. Eu tomo vinte Advil por dia e vês-me no chão?
Lily virou-se para ele, a cara molhada.
— Anda lá — disse ele, colocando-se de pé num salto e pondo-lhe as mãos debaixo dos braços para a levantar. — Levo-te ao Odessa, sem olhar a despesas e depois o Wonder Boys com o Michael Douglas está em cartaz no Union Square.
Spencer ajudou-a a descer as escadas. Ele vestia o seu fato e uma gabardina escura. Abriu o grande chapéu de chuva vermelho dela e segurou-o sobre ambas as cabeças. Ofereceu-lhe o braço e desta vez Lily agarrou-o enquanto caminhavam até ao Odessa debaixo da chuva de março. Ela contou-lhe sobre o padre e a sala das lágrimas. Afagou o queixo, pensativo, sem dizer nada mas parecendo concordar. No cinema comprou-lhes apenas uma embalagem de pipocas, mas comeu a maior parte delas sozinho enquanto as mãos de Lily se mantiveram no seu colo triste.
Enquanto caminhavam de regresso a casa, Spencer, que sabia bastante sobre música dos tempos antes dela, cantou a canção de Bob Dylan do filme Things Have Changed: — «I’ve been trying/ to get away as far from myself as I can...»
Lily tinha dúzias de pedidos para quadros de crianças, berçários, cães, gatos, alguns peixes e uma anaconda. Recusou a maioria deles. Não havia como lhes dizer que ela agora estava a tomar Alkeran em dias alternados e que qualquer dia o Dr. D ia dizer-lhe que ela precisava de regressar ao hospital para uma infusão de Vepesid. Fez autorretratos dela doente, a perder o cabelo, careca, com um Hickman no peito, e depois só a cicatriz. E depois só olhos numa página com angústia negra à volta deles. Spencer levou esse. E deu-lhe um conselho. Disse-lhe que ela não cobrava o suficiente pelo trabalho dela, que era a razão de se estar a afogar em pedidos. No sábado seguinte, Lily começou a cobrar mais e as encomendas acalmaram um pouco.
46
O poderoso Quinn
No fim de março, Lily, Paul e Rachel apanharam o comboio para Port Jefferson para ir à festa de aniversário dos irmãos de Amy. Lily, que tinha deixado de comer como era costume, e cujo cabelo tinha parado de crescer ao mesmo ritmo incerto, mas flagrante, estava a aguentar-se, apesar de tudo. O seu sangue bom estava a ser morto pelo Alkeran, mas o mau também, por isso, de algum modo estava tudo a resultar. A festa era num sábado. Quando ela esteve com Spencer, dois dias antes, não lhe disse que ia. Não sabia o porquê de não lho ter contado. Talvez fosse por andar a magicar ligar para casa do irmão, que ficava só a alguns quilómetros de distância da de Amy. Ou talvez fosse por Lily não ver há muito o detetive nos olhos azuis de Spencer, nem querer ver.
Lily achou que a Sra. McFadden estava de particular mau humor, apesar do facto de ser a festa de aniversário dos filhos. A casa estava decorada, havia balões a flutuar pela sala e o bolo Carvel estava na bancada a descongelar. As velas estavam em cima da mesa da cozinha, os presentes embrulhados, havia uma toalha da Disney sobre a mesa da sala e as batatas fritas estavam à vista. À superfície, tudo parecia igual a qualquer outra casa onde crianças, uma irmã e um irmão gémeos, faziam oito anos e os adultos lhes davam uma festa.
Mas nessa casa, o pai das crianças estava sentado em frente da televisão, mal olhando para eles quando entraram, e a mãe na cozinha. Quando Lily, Rachel e Paul entraram, Jan pousou o copo alto na bancada. Não estava maquilhada e parecia estar a usar um casaco de andar por casa.
Cumprimentaram-se e Jan até se lembrou de lhes oferecer algo para beber. Agarraram em copos de Coca-Cola e ficaram desajeitadamente em pé. Paul odiava situações estranhas e por isso começou imediatamente a falar sobre os miúdos, os cães que ladravam, o salão de cabeleireiro onde ele e Rachel trabalhavam, tudo menos ficar só ali especados.
— Como estás, Lil? — perguntou Jan McFadden. — Pareces... muito melhor. Não te vejo há tanto tempo. Desculpa não ter ido visitar-te.
— Tem tido muito em que pensar, Sra. McFadden.
— Sim, sim. Mas estás a aguentar-te?
Lily assentiu com a cabeça.
— Estou a aguentar-me.
— Ela ainda está a fazer quimio, Sra. McFadden — informou Rachel. — Estava bastante melhor há umas semanas.
— Sim, o Paul disse que estás com dificuldades.
— Algumas — disse Lily. — Mas a primavera chegou. Estou otimista.
Jan virou a cara para o lava-louça e colocou a água fria a correr para fazer ponche de frutas.
— Pelo menos estás a viver, Lily. A minha Amy não viveu.
Mas viveu, queria Lily interpor. Amy viveu. Amy viveu em grande e ia dançar todos os fins de semana. Amy escreveu ensaios e pintou, apesar de não saber pintar, e cantou, apesar de não saber cantar. Amy pintava o cabelo de uma cor diferente a cada dois meses, por gentileza de Paul. Amy foi a um sem número de restaurantes luxuosos e sofisticados, e usava roupa luxuosa e sofisticada.
Amy fazia esqui e andava de patins, e sentava-se no lugar do pendura de um avião monomotor a voar sobre o estuário de Long Island. Amy fazia water ski e jet ski, corria a maratona de Nova Iorque e jogava ténis. Amy estudava muito e divertia-se ainda mais. Bebia, fumava erva. Uma vez fez standup comedy.
Amy amou. Amy amou quando andava na secundária e quando era mais velha.
E mais importante, Amy também foi amada. Amy, a lançar o seu cabelo por Central Park, a ajustar os ténis enquanto tentava roubar a segunda base num jogo de soft-ball de domingo; Amy, a correr três vezes à volta do reservatório completamente maquilhada e com o seu melhor batom, foi amada. Foi amada! Viveu.
Lily não disse nada para as costas devastadas da Sra. McFadden.
Paul, que não gostava de ambientes taciturnos em dias de celebração, puxou o cabelo de Lily, deu-lhe uma palmada no traseiro e disse:
— Não vamos falar hoje da Amy, hoje é suposto ser um dia feliz. E a nossa Lily aqui não tem outra alternativa senão sair a voar desta confusão toda. E sabem porquê?
— Paul, para — pediu Lily, tentando não rir.
— Eu sei porquê — disse Rachel, a fazer-lhe cócegas na barriga. — Porque ela é a poderosa Quinn!
— É isso mesmo — disse Paul, começando a cantar: — And you ain’t seen nothin’/ like the Mighty Quinn!
Jan McFadden virou-se do lava-louça.
— A Amy costumava cantar essa canção à Lil — disse a chorar, com uma colher de pau na mão.
— Nós sabemos — respondeu Paul a revirar os olhos.
— Lembro-me como se ela estivesse nesta cozinha agora. Era o aniversário das crianças, há três anos. Ela tinha estado fora durante meses e veio só para os anos deles. Estava aqui com flores de cerejeira no cabelo a cantar The Mighty Quinn... — A soluçar, Jan levou as mãos à cara. — Não consigo fazer isto — disse ela. — Não consigo fazer nada disto. Não consigo fazer a minha vida. Não me consigo levantar todas as manhãs.
O bolo de gelado derreteu sobre a bancada. Os gémeos estavam agora na sala com o pai, a estragar artigos de festa, a baterem-se um ao outro com bolas de raquete, a fazerem voar aviões de madeira, a rebentar balões, a gritar. A televisão estava ligada com o som bem alto. Jan McFadden chorava. Rachel estava sentada, a olhar para as mãos. Paul estava ao lado de Jan. E Lily estava a afundar-se na mesa redonda, a olhar estupidamente para Jan, a abrir a boca para tentar dizer: Sra. McFadden, está a falar de quê? A Amy não me conhecia há três anos.
Mas não lhe saiu um som da boca quando tentou.
No entanto, a angústia dela era óbvia, até para Paul do outro lado da cozinha. Rachel perguntou:
— O que se passa, filha, não te estás a sentir bem? Senta-te.
— Lil, o que foi?
Amy não me conhecia na primavera há três anos. Conhecemo-nos na nossa aula de arte de outono, há dois anos e meio. Tenho a certeza disso.
— Lil?
Lily disse a única coisa que podia:
— Têm aqui flores de cerejeira?
— Não, não. A Amy trouxe-as de D.C. naquele fim de semana.
Há dois anos, as raparigas tinham ido a D.C. visitar Andrew no final de março e Amy e Lily puseram ambas flores de cerejeira no cabelo enquanto andavam pela Tidal Basin do Jefferson Memorial. Tinham feito toda a extensão da longa alameda até ao Capitólio a pé. Quando viram Andrew, estavam coradas e a ofegar. Como ficou feliz por vê-las!
Oh, meu Deus!
— Talvez queira dizer há dois anos — disse Lily, a agarrar-se à mesa de fórmica. — Há dois anos, certo? Um ano antes de ela ter desaparecido?
Jan McFadden ainda estava a chorar.
— Os gémeos faziam cinco anos. Foi por isso que ela veio. Era uma coisa importante. Veio de D.C. com flores no cabelo para o quinto aniversário deles. Há dois anos ela não veio. Não veio no ano passado. Foi a última vez que Amy esteve aqui para o aniversário deles.
Agora Lily sentou-se. Caiu na cadeira.
— O que tens, Lil? — perguntou Paul.
— O que tens, Lil? — perguntou Rachel.
Nada fazia qualquer sentido. Como é que Lily continuou sentada, sem dizer nada, a fingir que esticava a boca num sorriso pastoso? Graças a Deus pelo Cancro. Culpou-o pela palidez da cara, o entorpecimento da boca e pela perda da fala. Jim entrou, o marido de Jan. Mandou um olhar à mulher, outro a Rachel, Paul e Lily, e a ranger os dentes e a agarrar a bancada da cozinha, disse:
— Os teus outros filhos estão à tua espera na outra divisão para terem a merda da festa de anos. Agora, vais fazer isto ou vais só ficar aqui como fazes em todos os outros dias de merda da tua vida?
Nas duas horas seguintes houve correrias, cantorias, dança das cadeiras, jogos infantis, bolo. Lily mal falou, mas mesmo antes de irem embora, perguntou à Sra. McFadden se podia fazer um telefonema local e subiu ao quarto principal.
Lily ligou a Andrew.
Miera atendeu o telefone.
— Olá, é a Lily — disse Lily. — Posso falar com o Andrew?
— Ele não quer falar contigo — disse Miera, e desligou.
A tremer, Lily ligou de novo.
— Miera, por favor não desligues — pediu ela. — Por favor. Só quero dizer olá ao meu irmão.
— Ele não te quer dizer olá. Ele não quer falar contigo.
— Porquê?
— Oh, para com isso. Para! Olha, podes continuar a ligar as vezes que quiseres, mas eu não lhe vou passar o telefone.
— Estou em Port Jeff — disse Lily num tom inseguro. — Queria ver se posso passar aí só por cinco minutos.
Miera riu-se.
— Estás a gozar comigo? Tu não entras nesta casa, Lil. Não depois do que fizeste.
A outra linha foi atendida. Ninguém falava.
— Andrew? — disse Lily. — És tu?
Apenas uma respiração pesada na outra linha.
— Andrew, sou eu, a tua irmã. É a Lily. Deixa-me ir aí ver-te.
— Não, Lily — disse Andrew. — Afasta-te de mim. Fica atenta e para teu próprio bem, afasta-te.
— Andrew! Miera, posso falar com o meu irmão em particular?
— Não. — Isto foi Andrew. — Tudo o que quiseres dizer-me, podes fazê-lo com a minha mulher a ouvir.
Sem sequer se incomodar em limpar as lágrimas da cara, Lily disse:
— Andrew, diz-me, é verdade? É verdade? Tu e a Amy tinham um caso antes de ela e eu nos termos conhecido? — Como é que ela conseguiu dizer aquelas palavras em voz alta? Miera e/ou Andrew desligaram-lhe o telefone na cara.
Lily ficou sentada no quarto de Jan e continuou a chorar até Paul e Rachel virem buscá-la.
— Oh, o que é que se passa aqui? — exclamou Paul. — Bolas, este Port Jeff! Aqui é que sabem fazer festas infantis. — Saíram da casa de Jan, foram jantar com a mãe de Paul e apanharam um comboio já tarde para casa. Paul e Rachel ficaram com ela até às quatro da manhã, enchendo-a de margaritas, tentando fazê-la sentir-se melhor sobre o que era inconsolável.
Lily só conseguiu adormecer já de madrugada.
Quando Spencer chegou no domingo, ela ainda estava a dormir. Bateu à porta do quarto, entrou e ela ainda estava na cama. Partes dela poderiam estar à vista, pernas, ombros, costas, talvez. Ela nem se conseguia lembrar se se tinha despido. Despiu-se, sim. Estava nua. A contragosto, Lily puxou a manta para cima depois de Spencer já estar no quarto.
— Estás bem?
— Não sei — disse ela a olhar para ele.
— O que se passa?
— Que horas são?
— Uma da tarde.
— Oh!
— Saíste até tarde ontem? — Ele sorriu.
— Não. Bem, sim. O Paul e a Rachel estiveram aqui.
Fitou-lhe a cara ensonada.
— Porque é que estiveste a chorar?
— Não a chorar, a dormir — mentiu Lily. Ela não gostava de lhe mentir. Sentia-se desconfortável.
— Não, a chorar. As tuas pálpebras estão todas inchadas do sal. E as tuas bochechas também.
— Nada lhe escapa, detetive — disse ela. — Bem, deixa-me levantar, tomar um duche. Tens fome?
Lily não tinha defesas contra o seu olhar inquisitivo, contra as suas questões, contra a sua persistência. Quando ela estava tão claramente destroçada, não havia forma de lho esconder. E também não havia forma de lhe contar. Obviamente. Esse conhecimento ia ser usado contra o seu irmão. Esteve tempos infinitos no duche, a tentar descobrir as impossibilidades do seu domingo. E quando finalmente saiu, Spencer estava sentado no sofá a ler o jornal, que pousou, olhando-a implacável de alto a baixo no seu robe e disse:
— Estiveste lá dentro durante quarenta e cinco minutos. Há alguma coisa tão errada que nem sequer consegues sair e encarar-me.
— Não, não, não tem nada a ver contigo, a sério. — Mas Lily nem sequer conseguiu dizer estas palavras sem ser a olhar para os pés.
Spencer levantou-se e foi buscar o casaco.
— Lily, sabes que mais? Vou facilitar-te bastante as coisas. Sempre que não me quiseres ver...
— Spencer, mas eu quero!
— ...Sempre que não quiseres que eu venha, basta ligares ou deixares-me uma mensagem. Escreve-me uma carta, manda-me um beep, manda recado pela Joy. Não consigo torná-lo mais fácil para ti. Mas não fiques aí a fazer de conta que agora não me estás a mentir quando nem sequer me consegues olhar para a cara.
Lily tentou desculpar-se, dizer-lhe que estava só de ressaca, que não se estava a sentir bem, enjoada, ensonada, disse-lhe mentiras por cima de mentiras, todas para o peito dele porque não conseguia olhar para ele sem derramar a coisa que ela não podia em absoluto dizer. Gritava tão alto no seu peito, como é que ele não conseguia ouvir? Ah, isso era porque ele já estava cinco lanços de escadas abaixo, na rua.
AMY JÁ CONHECIA O ANDREW ANTES DE TER CONHECIDO LILY!
Como é que isto pôde acontecer?
Os cartões de crédito, o dinheiro, a identificação, todos deixados na cómoda de Amy, claro, mesmo desde o início. Lily não juntou as memórias aos anos, mas claro! Desde o momento em que Amy se mudou, deixava a sua vida para trás e desaparecia por dias ou ia-se embora à sexta-feira. E, hum, hum, aquela canção impiedosa, mesmo desde o início, e Lily, tão inchada pela afeição de Amy, pensou que ela a cantava para ela! Oh, a arrogância, a idiotice infantil! O poderoso Quinn, de facto.
Amy conhecia Andrew antes de ter conhecido Lily. Amy estava envolvida com Andrew, colocava flores no cabelo para ele.
Como? Então porquê? De que forma?
Como é que ela o conheceu? Como é que o podia conhecer?
E se conhecia, se por uma ou outra razão se cruzou com ele, juntou-se a ele, porque é que se transferiu de Hunter para o City College, e se inscreveu na aula de Lily?
Olá, esta mesa está livre? Não sei como é que vou fazer esta cadeira, são todos tão talentosos, meu Deus, olha como desenhas bem, deves ter um dom, então esta mesa não tem ninguém?
Naquele domingo à noite, Lily tentou de novo: ligou a Andrew outra vez. Miera desligou-lhe o telefone, mas não sem antes dizer:
— Se ligares para aqui mais alguma vez, vais ter uma providência cautelar em teu nome.
Ainda pior do que Amy. Andrew. Manteve tudo em segredo. Lily sabia ser verdade pelo peso que sentia. Ele e Amy já se conheciam antes de Lily os apresentar. Ambos a enganavam quando estavam com ela, mantinham uma fachada para que ela nunca suspeitasse. E isso não era o pior. O pior era que Andrew ainda estava a perpetuar essa mentira para o Detetive Spencer O’Malley; o pior era que Andrew sentiu necessidade de mentir e de continuar a mentir. Se o facto de Andrew e Amy estarem envolvidos antes de Lily fosse apenas uma coisa simples, uma coisa de nada, porquê continuar a mentir?
Lily não conseguiu pintar nessa semana, não conseguiu ligar a Spencer.
Não conseguiu fazer nada sem ser vomitar, até mesmo antes de tomar o Alkeran. Vomitar o gosto alcaloide indelével da traição e engano na sua boca.
47
Harkman
— O’Malley, como é que foi o teu fim de semana? O meu foi bom, obrigado. — Era Gabe McGill.
— Bom dia, porque é que estás assim irritado comigo?
— O’Malley, seu sacana, é melhor que isto não seja um subterfúgio da tua parte. O Whittaker quer-nos ver aos dois no gabinete dele.
E o Whittaker ficou atrás da secretária e disse:
— O que é que fizeste, O’Malley? Espetaste alfinetes dentro da tua pequena boneca de vodu do Harkman?
— Alguém me explica, por favor, que merda é que se está a passar?
— O Harkman está no hospital.
— Oh. O que é que ele tem?
— Ataque cardíaco. — Tanto Whittaker como McGill cruzaram os braços.
Spencer riu-se.
— O que se passa com vocês os dois? O quê? Fui eu que o mandei para o hospital?
— É o quarto ataque cardíaco e o médico disse-lhe que se tinha acabado. Nada de trabalho. Ele pode não se safar, da maneira como está.
— O quê, acham que fiz com que o trabalho dele ficasse demasiado stressante? Ele não sai do escritório há meses! Tenho ido sozinho a todo o lado. Deixei-o estar sentado à secretária sem nunca se mexer. Fiz de Sanchez o seu escravo particular. Perguntem ao Sanchez como ele se sente acerca disso. Tudo o que eu podia fazer para lhe evitar o inevitável, eu fiz. Ele sempre se queixou. Depois sentei-o a uma secretária e ele nunca se mexia, e agora a culpa é minha?
Whittaker e McGill não ficaram persuadidos pela aparente inocência de Spencer de perpetrar um ataque cardíaco a Chris Harkman.
— Não vamos fazer pouco disto. O homem pode não recuperar e ele está na polícia há mais tempo do que tu, O’Malley. Por isso, mostra um pouco de respeito, porra! Ele era um bom polícia. Nunca encontrou um único desaparecido, mas era um bom polícia.
— Não é verdade — disse Spencer. — Ele fechou casos de custódia, encontrou alguns fugitivos.
— Ele não os encontrou! Eles regressaram a casa. — Whittaker fez um aceno de mão. — Oh, olha, ele foi-se e temos aqui um problema. Como estamos de espaço na tua secretária, O’Malley?
— Espaço? Eu nunca paro. Trabalho até às nove todas as noites, a tentar compensar o desconto dado ao Harkman. Não sei o que vai acontecer agora.
— Agora precisas de um parceiro temporário até te encontrarmos um posto permanente.
Spencer olhou para McGill, que revirou os olhos.
Harkman fora-se! O homem que durante quatro anos lhe fez a vida profissional tão difícil com a sua apatia, inércia e hostilidade fora-se. Spencer sentiu cá um alívio!
Gabe McGill era um jovem irlandês do género lutador como detetive, vindo diretamente da academia «não me lixes.» Era completamente inadequado para o trabalho de detetive. E não seria muito melhor se vestisse o uniforme e fosse patrulhar o Tompkins Square Park e o resto do East Village. Tinha um ar incontrolável, como se fosse explodir a qualquer momento. O seu cabelo aos caracóis, de um ruivo castanho-avermelhado, precisava constantemente de ser cortado, a barba constantemente a precisar de ser feita, as roupas de ser engomadas. Ninguém parecia mais extraterrestre num fato de má qualidade. As camisas eram demasiado pequenas para os seus braços e pescoço massivos, estando sempre desapertadas ou de fora. Comparado com Gabe, Spencer era um modelo de elegância da Brooks Brothers. Porque é que Spencer gostava tanto dele, não sabia.
— Vou fazer do McGill o teu parceiro temporário, O’Malley — informou Whittaker.
— O’Malley — disse Gabe. — Presta atenção às palavras. Isto é um trabalho temporário. Isto não é um maldito casamento. É apenas por conveniência. Eu continuo nos homicídios e ajudo-te quando precisares de mim. Percebeste? Chefe, explique-lhe.
— McGill, tu ficas nos homicídios, mas até conseguirmos uma solução permanente, és o escravo do O’Malley.
— Chefe, não!
Spencer sorriu.
— McGill, temos oito detetives de homicídios para além de ti e do Orkney, mas nas Pessoas Desaparecidas só está ele. O Sanchez e o Smith foram tirados das Pessoas Desaparecidas para os roubos na semana passada e o teu amigo aqui precisa de ajuda.
Spencer estava encantado.
— Gabe, sou um novo homem.
— Só por eu estar aqui? — Entraram na divisão comum.
— Sim. Consegues ouvi-lo? Sou o Detetive O’Malley e este é o Detetive McGill dos homicídios. — Spencer riu-se com satisfação.
— Achas que deixar saber-se o cargo vai ajudar-te a encontrar a miúda McFadden?
— Algo melhor. Em breve vai fazer um ano e eu não vou conseguir mantê-la na minha secretária sem novos indícios. Terá de ir para os inativos e então é que é um azar de merda!
Spencer não queria ter o processo da Amy colocado num gabinete com a etiqueta «POR RESOLVER», deixado para o próximo turno, o próximo detetive, a próxima geração, juntamente com dezenas de outros. A cada dez anos, o departamento reabria todos os processos, examinava-os, e depois, se não houvesse nenhuma informação, colocava-os numa categoria bem diferente: «POR RESOLVER DEZ ANOS E MAIS ANTIGOS.» Era aí que os casos de pessoas desaparecidas iam morrer. Eram filhos adolescentes de mães desesperadas, de pais divorciados, viciados incapazes de encontrar o caminho para casa a desaparecer sem rasto. E as famílias ultrapassavam, e a polícia ultrapassava. Spencer sabia que Jan McFadden não ultrapassaria. Era uma mulher presa naquele momento de sexta, 14 de maio de 1999, e desde esse dia que a vida dela não se moveu, nem se podia mover. Ela mantinha uma esperança louca de que a filha estivesse viva, que voltasse. No mínimo, ela queria um pedaço de informação para não viver no purgatório para o resto da vida. De uma forma ou de outra, Spencer ia conseguir-lhe essa informação.
Gabe e Spencer saíram da esquadra e subiram até à Second Avenue para almoçarem no McCluskey.
— Então, achas que devemos ir visitar o Harkman ao hospital? — perguntou Gabe.
Spencer pensou naquilo durante dois segundos.
— O Harkman que se foda.
Tinham acabado de virar a esquina na Second quando Spencer ouviu uma voz a chamá-lo.
— Spencer! — Virou-se e ali estava Lily, com blocos de esboços nas mãos, a caminhar para eles e a sorrir. Tinha apanhado o seu agitado cabelo com uma dúzia de pequenos rabos de cavalo e a sua cabeça irradiava com elásticos lilases, cor-de-rosa, azuis e amarelos. Era um dia glorioso do início de abril. Ela estava hoje toda de cor-de-rosa: saia de ganga cor-de-rosa, casaco cor-de-rosa, botas cor-de-rosa, blusa transparente cor-de-rosa, sutiã cor-de-rosa. As pernas estavam nuas.
Foi ter com eles e o seu sorriso era tão familiar que ele deu meio passo atrás, de tão íntima que ela lhe parecia, bem como íntima era a forma como o olhava.
— Olá, Detetive O’Malley — disse ela, fingindo-se profissional.
— Olá, Lily — disse Spencer, tentando parecer sério. — Este é o Detetive McGill.
Gabe sorria abertamente para Lily.
— Bem, olá aí — disse, pegando-lhe na mão, apertando-a, segurando-a. — Olá, Lily. Pode chamar-me Gabe.
— Detetive McGill serve muito bem — disse Spencer.
— Então você é o famoso Detetive McGill — disse Lily sorrindo. — O Detetive O’Malley fala muito sobre si.
— Todas as coisas que ele lhe disse são pura mentira.
Spencer contou a Lily o que tinha acontecido naquela manhã com Harkman e Gabe.
— Lamento pelo Detetive Harkman — disse. — Ele deve estar bastante doente. Mas o Detetive O’Malley deve estar contente por tê-lo a si a trabalhar com ele. — Os olhos dele brilhavam.
— Bem, não sei se sabe isto sobre o Detetive O’Malley, menina...
— Quinn.
— Menina Quinn, mas ele é um sacana miserável. Não sei se alguma coisa é capaz de o fazer feliz, e pessoalmente, não me vou matar a tentar.
— Já chega, vocês os dois — disse Spencer, acenando com a cabeça para Lily. — Temos de ir.
— Quer juntar-se a nós? — perguntou Gabe. — Ao almoço?
Lily olhou para Spencer que mordia o lábio.
— Não, obrigada. Talvez noutro dia. Tenho de ir para Astor Place desenhar enquanto o tempo ainda está bom. Prazer em conhecê-lo Detetive McGill. Até à vista Detetive O’Malley. — Ela sorriu para ele, a cara corada.
Gabe franziu a testa.
— Disseste que o nome dela era Lily Quinn? Não está relacionado com...
— Gabe, vamos embora! Não vou ficar na rua o dia inteiro.
Spencer virou-se mais uma vez para olhar de novo para ela, mas tinha desaparecido.
— O’Malley, tenho a sensação de que me estavas a afastar daquela adorável criatura colorida — disse Gabe quando estavam dentro do bar.
— Por razões mais numerosas do que o meu tempo para as enumerar.
— Diz-me uma, para além da mais óbvia.
— Uma, está bem. Deixa ver... Talvez a tua mulher e os teus dois filhos pequenos?
— Não vejo aqui o queridinho a impedir-te de seres amigo de miúdas com metade da tua idade. O que se passa com o cabelo?
— Cancro.
Gabe olhou para Spencer, para a própria cabeça rapada de Spencer.
— Ainda?
— Por um fio.
— Ela, por acaso, é parente do queridinho da Amy McFadden?
— Gabe, nem posso dizer-te quanto não quero falar sobre isso.
48
Os laços amarelos
Laços amarelos tinham sido atados aos postes ao lado das fotografias de Amy, e os laços amarelos ficaram velhos e estragados com o tempo.
Com Paul e Rachel a seu lado, Lily estava a afixar novos laços e novos cartazes aos postes quando sentiu alguém a observá-la do outro lado da rua. Ela não conseguia falar nem se mexer, apesar de ser pleno dia. Pela visão periférica, Lily pensou ver uma figura em pé, do outro lado da rua, a olhar para ela, para eles, três jovens a atarem laços amarelos aos postes numa quarta de manhã antes de irem almoçar ao Veselka na Second Avenue, e...
Sentiu medo. Teve medo de erguer o olhar, e apesar de continuar os movimentos de atar os laços, as mãos dela começaram a tremer. Paul perguntou o que se passava. Com ele a falar com ela, Lily sentiu-se um pouco mais corajosa e levantou os olhos. Estavam várias pessoas do outro lado da Second, e nenhuma a olhar: havia um homem a comprar flores numa loja, outro homem a falar com o dono da loja na rua, um casal de pé a olhar para a ementa de um restaurante. E depois, as costas castanhas de um homem vestido de trapos, às apalpadelas pela rua, mas longe dela. Ele começou a correr, não como um homem em farrapos, mas como alguém que tinha a corrida no sangue: as pernas moviam-se com força, era rápido, os braços balançavam, o corpo não parecia degenerado.
Talvez Lily tivesse inventado os trapos, talvez estivesse vestido com um casaco castanho comprido.
Lily questionou-se... enquanto, de mãos a tremer, voltava lentamente a atar os laços debaixo dos postes. Pensou que tinha imaginado. Era só paranoia, só uma suspeita irracional, do tipo que a fazia desenhar sombras por sentir que alguém a observava no seu apartamento.
Ficou a pensar se seria o fantasma de Amy. Mas ali, numa quarta de manhã em East Village, na Second Avenue? O que seria aquilo, de verdade?
49
O basebol como metáfora para tudo
Num sábado à tarde, mesmo no início do fresco abril, Spencer encontrou Lily. Eram apenas dois olhos sem corpo e de casaco desabotoado sentados num banco de jardim em Tompkins Square Park. Já tinha vendido os quadros todos naquela manhã. À volta dela, estava um grupo de dez ou doze homens. Lily oferecia-lhes notas de vinte dólares. Eles estendiam as mãos encardidas a tremer e nelas ela colocava dinheiro para crack.
— Compra qualquer coisa bonita com isto — dizia-lhes, e eles balbuciavam «Assim farei, meu anjo, Assim farei, docinho, muito obrigado, querida, não te preocupes e que Deus te abençoe».
Spencer levantou-a do banco quando ela lhe dava uma nota.
— O que é que estás a fazer?
— A passar o tempo — disse Lily quase vivamente. — A responder aos enigmas da vida
— Oh, por amor da santa! Para que é que lhes estás a dar dinheiro?
— Tenho esperança de encontrar a Amy.
— Muito bom. Estás a perguntar-lhes sobre a Amy? Eu não te vi perguntar-lhes nada.
Ele apressou-a para fora do parque.
— Tenho esperança que um deles me pareça familiar.
— Tens conhecido muitos homens sem-abrigo familiares?
— Ele virá, vais ver. O tal Milo. Ando à procura dele.
— Sim, tu e eu.
— Ele vai ouvir falar de mim por causa do falatório por estar a oferecer dinheiro. Ele virá. Eu sei.
— Estás a atraí-lo com o teu dinheiro? Andas à pesca? Muito, muito bom, Lily. Mas talvez tenhas de aumentar um pouco o isco. Quer dizer, vinte dólares não chegam para comprar um saco de droga.
— Ele vai procurar-me. Da mesma forma que ela me procurou.
— O quê?
— Nada — disse rapidamente Lily, com o olhar a encobrir-se. — Tens fome? Queres ir almoçar?
— Não. — Spencer interrompeu-se e pigarreou. Ela franziu-lhe a testa, confusa. — Mas os Yankees vão jogar contra os Angels.
— Ai vão? — Lily susteve a respiração. Talvez ele me convide para ir a um jogo com ele. Passar uma rara tarde de sábado com ele. Longe do cancro, longe da Amy, um dia com ele, só eu e ele — e cinquenta e cinco mil estranhos.
— Sim, quando foi a última vez que foste a um jogo de basebol?
— Quando tinha dezasseis anos. — Sustém o ar, sustém o ar, morde o lábio, age naturalmente.
— Então és uma veterana. — Spencer fez uma pausa. — Queres ir?
— Claro. — Sorriu e encolheu os ombros, oh, tão por acaso. Claro, sim, eu vou, como queiras. Eu ia para casa passar a tarde sozinha a esticar umas telas, mas ei, posso ir a um jogo contigo. Lily queria era pular de contente em vez disso. Mas foi tão comedida, tão recolhida.
— Deixa-me ir num pulo a casa. Pôr alguma coisa na cabeça. — Ela queria era pôr maquilhagem. Ela queria vestir uma camisola diferente, calças de ganga giras, pôr perfume. Queria pintar as unhas, talvez até as dos pés, tomar um duche, lavar-se um pouco. Queria pintar os lábios para ir a um jogo de basebol com ele.
— É melhor irmos já — disse Spencer. — Ou não chegaremos a tempo da primeira partida. Eu compro-te um boné dos Yankees para pores na cabeça.
— Fixe. — O que podia ela fazer? — Tens bilhetes?
— Eu talvez tenha bilhetes. Isso é todo o dinheiro que resta do que fizeste hoje com os quadros e que acabaste de dar aos viciados em crack?
— Encontrar o Milo não sai barato, Spencer.
Dez coisas boas acerca de perder o cabelo:
10. Podes usar a casa de banho dos homens ou a das mulheres.
9. Não tens de lavar a cabeça e repetir.
8. Ninguém alguma vez te diz com um sorriso fingido: «Onde é que arranjas o cabelo?»
7. Piolhos, lêndeas, carraças e ácaros não têm onde se agarrar.
6. O duche agora demora dez minutos em vez de quarenta e cinco.
5. Não há cabelos na banheira.
4. Com o sol a refletir-se brilhante no teu couro cabeludo, forneces serviços de iluminação aos clientes permanentes de Tompkins Park.
3. Consegues uns mil olhares complacentes por dia.
2. Quando as pessoas dizem «Oh, tens um novo penteado», tu dizes, «Não, não tenho é nenhum».
E a coisa boa número um acerca de cabelo canceroso...
1. Quando o Spencer Patrick O’Malley te compra um boné dos Yankees, não ficas com cabelos no chapéu.
Lily, coberta pelo boné de basebol, foi a um jogo com o Spencer entre os Yankees e os Angels da Califórnia. O engraçadinho do Spencer. Através dos seus contactos com a Associação Benevolente de Patrulhas, conseguiu ótimos lugares, mesmo atrás da primeira base. Portanto, deve tê-los encomendado antecipadamente, sabendo que ia convidá-la. Porque é que não a tinha convidado no dia anterior ou antes desse, para que ela tivesse tempo de se arranjar?
Era abril, mas frio e ventoso, e apesar de Lily ter vestido três camadas de roupa, ainda tiritava. Spencer comprou-lhes cachorros e Coca-Cola.
— Nada de cerveja? — perguntou ela.
— Se quiseres, pago-te uma.
Ela não queria uma. Já estava com frio e quando ele reparou, deu-lhe o seu casaco de polícia com a sigla NYPD. Era um casaco tão fantástico que o tipo cuspidor e asneirento atrás deles tocou no ombro de Spencer e disse: «Ei meu, que casaco fixe, onde o arranjaste?». E Spencer, mostrando o distintivo e a arma ao cuspidor asneirento disse:
— No Departamento de Polícia de Nova Iorque. — E Lily riu-se, e Spencer riu-se também, quando se virou. Spencer riu-se! Mostrou os dentes!
— Ainda estás com frio? — perguntou. E quando ela assentiu, ele pôs-lhe o braço sobre os ombros.
Ele. Pôs-lhe. O. Braço. Sobre. Os. Ombros.
Com cuidado, aproximou-se dele. O resultado das duas equipas estava perto uma da outra, mas não tão perto como Spencer dela.
Lily saltou, festejou e o braço saiu. Fez a onda, cumpriu a tradição de se esticar na sétima entrada e cantou Take Me Out to the Ballgame e We Will Rock You. As rajadas do vento de abril continuam a tirar-lhe o ar. Eram as rajadas do vento, certo?
Os Yankees empataram o jogo no final da nona e toda a gente saltou, incluindo Lily, incluindo Spencer e quando ela se virou para ele, radiante e a bater palmas, ele estava a olhar para ela. E ela, erguendo o olhar para ele perguntou: «O que foi?». E ele inclinou-se para ela e beijou-a. Assim do nada, durante a gritaria, os aplausos, a folia. Spencer, com os lábios mais quentes, mais macios, mais carnudos; Spencer Patrick O’Malley, investigador principal, detetive-tenente, um agente da polícia, com uma Glock-26, a arma de folga apertada no coldre. Spencer, de quarenta e três anos, inclinou a sua cabeça e beijou-a com lábios de adolescente, com paixão de adolescente, e Lily, que há quase um ano não era beijada (como era perverso!) ergueu a cara para ele, pressionou o corpo contra o dele, levantou a mão para lhe segurar na cabeça, descansar no seu peito e depois mal conseguia olhar para ele e já não queria saber se os Yankees ganhavam ou perdiam. Mas então ganharam, no prolongamento da décima primeira, e tudo o que ela queria era que Spencer a beijasse outra vez — e ele beijou. E a alegria bateu no seu coração esmorecido pelo cancro e correu-lhe pelas veias enfraquecidas pela quimio. We will/we will rock you continuava a soar dentro dela durante todo o caminho que foi encostada a ele no comboio D.
Lily não sabia como pedir-lhe para ficar. Sentia-se assexuada. Fora do sexo. Fora do desejo, fora de uso, doente. A doença era tão pouco sexy. A doença era o oposto da juventude, o oposto de sexy, o oposto de sexo. Outrora tinha sido um pouco mais segura de si própria, mas agora só estava segura da sua velhice, da sua fealdade. Talvez ele e ela tenham sido apanhados num jogo empatado no final da nona entrada; quem não beijaria durante aquilo? Ou no prolongamento, quando os Yanks ganharam — mesmo que o beijo tenha sido arrebatador, aberto e admiravelmente comprido.
De forma chocante, e apesar do seu medo esmagador e autoaversão, Spencer entrou com ela. Sem formalidades entre eles. Sem incómodos. Ele ficou com a chave dela, ele usava a chave dela. Esta noite, não havia cá «queres subir?». Ele subiu, como sempre. Sentou-se ao pé dela.
— Deves estar cansada. Foi um longo dia.
Lily não disse nada.
Ele esperou.
— Não me quero ir embora...
— Eu não quero que te vás embora.
Spencer beijou-a ardentemente no sofá, pegando-lhe ao colo passado um tempo para levá-la até ao quarto. Sentado à beira da cama, colocou-a entre as suas pernas, de frente para ele e desapertou-lhe a blusa. Saiu; as calças de ganga saíram. Lily foi deixada em sutiã preto transparente e cuecas pretas de fio dental. Com uma mão, desapertou-lhe o sutiã e tirou-lho, deixando-o cair no chão. E ela ficou assim, à frente dele de tanga, sem parte de cima, com os seios, os mamilos doridos ao nível da cara, enquanto as mãos dele lhe acariciavam os braços, as costelas, as ancas, as coxas de alto a baixo.
Ele respirava tão pesadamente, ela tão levemente e ela avançou só um bocadinho para a frente, um bocadinho só, oh meu Deus, pensou, estou a ser tocada por outra pessoa que não eu. Estou a ser tocada.
— Spencer... — sussurrou, querendo desesperadamente a boca dele nela.
— Espera.
Despiu-se até ficar de boxers que pareciam os mais sensuais que Lily alguma vez tinha visto, pois há tanto tempo que não via um homem; deitou-a na cama e montou-a, apoiando-se nos braços e joelhos para não pesar sobre ela; beijou-lhe docemente o pescoço e a garganta e roçou muito levemente o peito contra os seus seios palpitantes. E Lily, num espasmo rígido, arqueou-se para ele, tentando puxá-lo para cima dela. Ele beijou-a e sussurrou:
— Tenho medo, Lily. Tenho medo de te magoar.
E ela respondeu-lhe gemendo em sussurro:
— Deus, não tenhas medo de nada, de coisa nenhuma, eu quero... quero açúcar na minha tigela, Spencer. Vá lá, qualquer coisa, tudo, não me deixes nada senão pele e osso... mas... por favor... put some sugar in my bowl.
Na rádio, Nina Simone continuava a gemer por algum daquele açúcar, as Pointer Sisters iam no seu carro, em brasa. Bruce também estava em brasa, Johnny Cash caminhava sobre a linha, Peter, Paul e os beijos de Mary, mais doces que o vinho, e depois Lily deixou de ouvir a música. Spencer fez amor com ela tão delicadamente quanto a fragilidade dela permitia, mas fazer amor podia ser delicado antes e depois — e foi —, mas raramente durante, e assim ele reafirmou o movimento da vida com ela, vencendo a morte vinda dela — dela e de Amy — por aquele único instante, por aquela hora no tempo. E depois abraçou o seu corpo trémulo debaixo dos lençóis até lhe dar mais uma hora notável e depois abraçar o seu transpirado corpo devastado sem os lençóis, e depois (!) dar-lhe mais alguns milagrosos sem delicadeza ou fragilidade e adormecer profundamente. E enquanto Lily estava deitada nos braços de Spencer, sem sono algum, com a taça a transbordar de açúcar, praticamente sem pele e osso, pensou que se aquele fosse o último dia da sua vida, não teria arrependimento.
Hoje tinha vivido. Tinha comido comida caseira e bebido Coca-Cola, a bebida dos americanos, tinha respirado ar puro e fresco, e tinha-se com o triunfo de outras pessoas. Esteve com companheiros de alegria, teve boas conversas, saltou, gritou de alegria, riu.
Tinha sido beijada. Tinha sido amada. Por Spencer. E ela correspondeu. Lily tinha amado Spencer de volta. O ar cheirava a árvores primaveris e relva nova. Tinham-lhe sussurrado. «Lily, és linda...» — O corpo dela tinha sido devorado por um homem. E então sentiu-se bela, sentiu-se como uma jovem mulher outra vez. Foi um dia perfeito.
Spencer, tu és lindo, sussurrou-lhe ela a ele, mas ele estava abençoadamente exausto a dormir. Tens uma cara perfeita, tens um coração perfeito cheio de cicatrizes. Tens braços que te levantam acima de mim, levantando-me. Tens força — para tudo —, tens pernas para longas corridas, tens tudo de grande valor e nem acredito que esta noite me deste tudo isso, a mim.
Agora já podia escrever aquele artigo. Não havia uma mancha no seu coração nesse sábado fresco de abril. Nenhum sítio sombrio, nenhuma escuridão, nenhuma penumbra na alma, nenhuma sombra no homem com falhas e ainda assim sem elas que lhe mudou a vida. Apesar da sua relutância suprema, Spencer tinha cortado o coração dela e preencheu-o com ele. Ele deitou abaixo à força o seu campo de forças, em virtude de nada senão ele próprio. Ele deu a Lily o único dia na vida que ela queria ter antes de morrer.
50
Tolos de abril
Lily não conseguia acreditar nas ondas estonteantes de felicidade que a inundavam. Andava a fazer sexo outra vez! Andava a fazer SEXO. Queria gritá-lo dos telhados, queria contar aos estranhos na rua. Queria fazê-lo de janelas abertas, com os estores para cima. Queria fazê-lo em sítios públicos, em corredores, no autocarro, no metro. A Paul, para quem ela correu para fazer uma coloração ao cabelo na segunda, a primeira coisa que disse foi:
— Ando a fazer sexo!
— Andas? Parabéns! Maria, chega aqui! — Paul gritou para a outra ponta do salão de cabeleireiro.
— Ouviste isto? A nossa Lily anda a fazer sexo!
— A fazer sexo, tu? Com quem? — Da outra ponta do salão!
— Como se isso fosse importante — zombou Paul. — Ninguém quer saber, Maria. Anda a fazer sexo, não ouviste?
— Ouvi, ouvi.
Eles falavam tão alto, que fantástico.
Rachel chegou para ir trabalhar e Lily nem sequer teve tempo de abrir a boca. Paul já estava a voluntariar a informação. Rachel disse ceticamente:
— Sexo com um quarentão? Isso é sequer possível?
— Bem, obviamente.
Ela ficou pouco convencida.
— Ele presta para alguma coisa?
— Oh, meu Deus, loucamente bom. Porquê?
— Não sei. Ouvi dizer que os homens nos quarentas param de ser bons na cama.
— Onde ouviste tamanho disparate?
— Li na Cosmo — disse Rachel, virando o cabelo para baixo, para a frente, para o lado. — O desejo sexual deles desaparece. Conseguem sequer levantá-lo com essa idade?
— O irmão de Lily de algum modo conseguiu — disse Paul que foi instantaneamente esbofeteado na cabeça descolorada por Lily.
— Porquê, mas porque é que tens de arruinar completamente tudo? — contrapôs Lily.
— Bom, não nos dês só os ossos, filha, conta-nos tudo — disse Rachel de sorriso aberto. — O que é que ele faz?
— O que é que ele não faz!
— Não sei como é que o fizeste. Como fizeste, agarraste-o?
— Devias tentar ficar doente de morte; acho que foi isso que eu fiz — disse Lily saindo a correr com manicura e pedicura feita, exaustivamente depilada, o cabelo de tufos irregulares agora com madeixas acobreadas.
Ele tinha passado lá a noite, acordou na cama dela; um Spencer nu acordou na cama dela, ficou com ela todo o dia de domingo. Tomaram banho juntos, encomendaram comida chinesa, comeram na cama, arrastaram-se para fora dela para verem um filme que ela já nem se conseguia lembrar qual era. No domingo à noite, ele foi para casa porque tinha de trabalhar no dia seguinte. E aqui estava o dia seguinte. Lily passou à porta da esquadra perguntando-se se deveria entrar, dizer olá, mandar-lhe um beep, talvez. Decidiu não o fazer. Apressou-se a ir para casa, em vez disso, para ver se havia mensagens para ela. Desde quando é que ela ficava tão ansiosa para ver as mensagens? Desde que andava a ter SEXO outra vez!
E lá estava uma mensagem dele. Nem a voz parecia já a mesma, soando profunda e rouca. Era uma voz que andava a fazer sexo — com ela. «Ei», disse ele na mensagem. Lily adorava a familiaridade. Nem sequer um «Sou eu». Só «Ei».
— Ei. Onde andas? Atende. Vou estar fora o dia todo em Jersey e depois na baixa em Washington Heights. Ligo-te mais tarde. Tenta estar em casa.
Lily não saiu de ao pé do telefone o resto do dia. Nem sequer tinha música a tocar, não fosse algum rufar no tímpano mascarar o som do telefone a tocar. Verificou se tinha bateria e estava ligado e todas as luzes se mostravam verdes de forma convidativa. Quando tocou, ela estava na casa de banho — pois claro! — e lançou-se a ele e disse o «Olá» mais expectante da vida dela.
— Aqui é a tua avó. Como te sentes?
Lily esteve ao telefone durante dez minutos. Esperava que o identificador de chamadas estivesse a funcionar. Esperou até às sete da noite pelo telefonema dele. Ele não ligou. Pintou. Desenhou. Infelizmente, tudo o que ela via na mente para desenhar eram corpos nus, corpos machos nus, massa muscular magra, cinturas magras, o espaço entre o umbigo e a púbis — e depois coiso. As mãos completamente abertas, os dedos, todos os dígitos, os dele e dela, no momento da maior tensão. Duas mãos masculinas a agarrar firmemente dois gémeos femininos. Os lábios celestiais do homem, prontos para mais, húmidos, entreabertos. Lily não podia vender estas imagens no sábado à tarde numa rua familiar. Eram quase pornográficas.
Quase?
Às sete, Lily estava a acabar um desenho de uma perna de um homem quando ouviu baterem fortemente à porta. Pulou, correu para a porta, depois abrandou para a abrir, tentando parecer calma, mas estava sem fôlego e ali estava ele, na entrada, a sorrir para ela. Spencer a sorrir. Ele também deve andar a ter SEXO!
— Olá — disse Lily, saindo do caminho para ele entrar.
— Ei. — Ele entrou.
Como perguntar?
— Disseste que ias ligar. — Assim, achou ela.
Spencer voltou-se para olhar espantado para ela.
— Estive o dia todo com o Gabe. Mal consegui ligar-te com ele mesmo ao meu lado. — Ele estava de fato. Ela com as calças da H. Starlet, e o seu pequeno top sem sutiã.
— Esqueceste-te da chave?
Ele abanou a cabeça.
— Talvez nunca me tenhas ouvido bater antes. Eu bato sempre à porta antes de entrar.
— Oh.
— Então, tens fome? — perguntou ele.
— Esfomeada.
— Eu também.
Fizeram SEXO no sofá, ele ainda a usar o seu fato de detetive principal, detetive-tenente. Teve a presença de espírito de puxar as calças para baixo, sussurrando que o seu outro fato estava na lavandaria e não podia sujar aquele. E depois, demasiado cedo, estava deitado em cima dela, a gravata de seda a roçar contra o ombro nu dela, e a sussurrar:
— Liliput, isto é ou não é a coisa mais sexy de sempre, tu nua debaixo de mim enquanto estou a usar a roupa de trabalho...
Lily riu-se, apertando-o contra ela.
— Dizes roupa de trabalho mas não é como estares no ramo da construção ou seres lenhador. Estás a usar um fato. Podias ser um contabilista, por amor de Deus.
— Sim, mas não sou um contabilista e sabes como é que podes ver? Põe as mãos um pouco mais abaixo e sente a minha Glock.
Lily riu-se até ficar excitada de novo.
Encomendaram comida do Odessa (valeu a pena só para ver a expressão de Pedro quando entregou comida a um Spencer pouco vestido), mas ele foi para casa à meia-noite.
— Tenho de estar no trabalho às sete, Lil. Não posso estar nisto a noite toda. Sou um homem velho.
No dia seguinte, ele ligou quando ela estava no duche para dizer que estava no tribunal e depois ia para Jersey até tarde e que ligaria mais tarde, mas mais tarde chegou e não telefonou. À meia-noite, quando Lily já estava na cama, ouviu a chave na porta e os passos dele a andar da sala escura para o seu quarto. A porta abriu-se. Ele entrou, ajoelhou-se à cabeceira. Lily abriu-lhe os braços. Foi para casa às três.
Na quarta, a primeira coisa que fez de manhã foi ligar-lhe e perguntar se ela queria ir jantar fora.
— Spencer, estás a convidar-me para um encontro?
— Não. Estou a perguntar se queres jantar fora ou em casa.
Ela riu-se.
Quando ele lhe bateu à porta, Lily gritou «Entraaaa» e ele usou a chave para entrar dizendo «Onde está o guardião?» De Ghostbusters! Mas o guardião em forma de Lily, nu, estava sentado no sofá, de pernas separadas e imóveis.
— Estou aqui — disse a guardiã. — Onde está o mestre da chave?
Spencer deixou cair as chaves, mal fechando a porta atrás dele, e ajoelhou-se no chão em frente a Lily. Foram jantar fora nessa noite? Lily não sabia. Já não sabia nada de nada.
Ela só tinha estado com rapazes até então, rapazes desajeitados e atrapalhados, ávidos, sempre prontos, mas sem nenhuma ideia do que fazer para melhorar e satisfazer Lily. Mas Spencer era um homem, e não havia nada de desajeitado ou atrapalhado nele. Fazia esta coisa que nunca alguém lhe havia feito, esta coisa escravizadora que punha em brasa todo o seu corpo, mesmo quando apenas pensava em pensar nisso, que a fazia incapaz de olhar para a cara dele sem sequer pensar nisso. Ele afastou-lhe as pernas com as palmas das mãos, segurando firmemente antes de colocar a boca macia nela. Parecia que se estava a vir mesmo antes de os lábios dele a tocarem. E depois, não parava de a segurar aberta, não parava nada, nem mesmo quando ela lhe implorava aqui e ali mesmo quase no final para parar e desistir.
— Não tenho a certeza, mas — Lily expirou, agarrando-se a ele na cama —, acho que andas a confundir-me o cérebro. Esqueci-me de tomar o comprimido na segunda, esqueci-me de ir fazer as análises ontem.
— Oh, não!
— Nem sequer me apercebi até me terem ligado.
— Então, o que vais fazer acerca disso?
— Vou duplicá-lo amanhã. — Sorriu abertamente. Mas ela não fazia qualquer intenção de tomá-lo no dia seguinte. Lily estava a faltar ao cancro esta semana.
— O que andaste a fazer na segunda para te esqueceres?
O que é que ela tinha andado a fazer na segunda?
— A arranjar as unhas.
— Ah. Vital, sim.
— A fazer madeixas.
— Essencial.
— A fazer uma depilação brasileira.
— Bem, assim é que é falar! — Ele estava em cima dela.
— Achei que não tinhas reparado. Nem sequer o referiste.
— Lily, aham, eu mal faço outra coisa a não ser reparar. Achei que estar aqui todas as noites falasse por si só.
E falava, falava.
Na quinta, Lily foi visitar a avó, como sempre, porque não queria que ninguém se preocupasse com ela. Ficou para jantar porque a avó parecia sentir-se solitária e quis que ela ficasse. Spencer ligou-lhe para casa da avó.
— Como é que conheces este número? — perguntou Lily, corada, deliciada por ter sido localizada.
— Sou pago para localizar pessoas. É isso que faço.
Muito calmamente, ela disse:
— Por que razão soa isso tão excitante?
Muito calmamente, ele disse:
— Vou aí buscar-te.
— Espera, espera.
Spencer esperou. A avó mandava-se ao ar se visse Lily a entrar no carro dele. Ele deveria saber disso.
— Daqui a uma hora.
— Não, Spencer. Espera.
A avó chamou-a da outra divisão.
— Lily, vens?
Spencer esperou.
— Depois nunca mais me deixam em paz.
— Nem eles, nem eu, Lil — disse ele, e desligou.
Oh, Santa Maria Mãe de Deus, no dia seguinte, no dia seguinte!
— Lily! Estás completamente louca? O que raio pensas que andas a fazer?
Quem era aquela? A avó? Anne? Amanda? A mãe? Todos eles? No espaço de uma manhã, a avó conseguiu dizer a toda a gente, e Lily referia-se mesmo a toda a gente, pois até a coreana Soo Min telefonou a apontar-lhe o dedo.
— Como é que achas que o teu irmão se vai sentir ao saber que andas com o Inspetor Javert?
— Em primeiro lugar, estás a ser melodramática. — E cansativa, quis Lily acrescentar.
— Eu não acho.
— E em segundo e último — Lily continuou calmamente, finalmente dizendo de forma clara as coisas como elas eram —, o meu irmão não está em posição de julgar quem quer que seja, não achas?
A avó tinha-lhe pedido para não ir lá às quintas. Disse que achava vergonhoso o que Lily andava a fazer, vergonhoso e imoral.
— Eu sei, eu sei. Já ouvi isto uma dúzia de vezes. Sou a vergonhosa, a imoral. Vocês são todos uns santos. Sabes uma coisa, avó? Acho que tens razão. É mesmo melhor que eu não apareça por uns tempos.
— E ligaste à tua mãe?
— Não, mas não faz mal, porque ela também não me ligou. No outro dia, antes de me ter desligado o telefone na cara, chamou-me de tudo, contando-me pela centésima vez uma parábola sobre uma mãe que amaldiçoou uma filha que depois morreu.
— Porque é que estás a falar da tua mãe dessa maneira? — perguntou calmamente a avó. — Não sabes o que ela tem passado.
Eles estavam errados acerca de Spencer; ele valia a pena. Na noite em que a foi buscar a Brooklyn, estacionou o carro nas docas de Greenpoint e, com a ilha de Manhattan a brilhar sobre o rio East, fizeram sexo adolescente atrapalhado, apertado, orgástico, no banco de trás do seu Buick enquanto o Ramrod de Springsteen tocava na rádio.
Na sexta à noite, Spencer estava na Pensilvânia: havia um caso de guarda e subtração de menores e ele foi recuperar os gémeos de doze anos ao pai para trazê-los de volta para a mãe. Telefonou a dizer que ia logo para casa dormir, mas que iria ter com ela à venda de arte no sábado. Quando lá chegou, Lily já tinha vendido todos os seus desenhos eróticos (em tempo recorde, tinha ela vergonha de confessar) e estava na mesa vazia a desenhar-se a ela própria sentada numa mesa vazia. Uma mulher de minissaia passou, comprou-lhe o desenho inacabado, pediu a Lily para desenhá-la e era o que ela estava a fazer quando Spencer apareceu, vestido com calças de ganga gastas e T-shirt usada.
— Sou forçada a aceitar trabalho suplementar enquanto espero por ti — disse ela a lamentar-se em tom de brincadeira, mas ele aproximou-se da cadeira dela, reclinou-lhe a cabeça para trás e beijou-a tão intensamente que o calor que lhe explodiu na barriga fê-la deixar cair o lápis. Deu o desenho de graça à mulher. E na semana seguinte, desenhou dez versões de um homem de calças de ganga inclinado a beijar uma rapariga de camisa branca sentada numa cadeira com o rosto erguido para os céus. Venderam-se em minutos.
No sábado à noite, foram jantar fora. Arranjaram-se e saíram para o Union Square Café, onde comeram calamares, rolo de carne e bolo quente de maçã, onde o empregado perguntou: «Vão querer um coquetel?». E Lily acenou que sim, e Spencer que não, pedindo mais dois Cosmos para ela, de forma que estava mesmo tocada na altura em que dispensaram o filme e se apressaram para casa onde o SEXO que tiveram foi tão desenfreado que Lily achou que tinha ficado cega e surda.
E no domingo, durante a noite de cinema, ele despiu-a e fê-la ver Moonstruck completamente nua enquanto ficou sentado perto dela de calças de ganga vestidas a tocá-la durante pelo menos metade do filme, antes de fazer amor com ela. Lily não ouviu uma palavra do que diziam Nicolas Cage ou Cher. Ouvia Spencer, no entanto, e todas as coisas que lhe sussurrava. Lily fez uma nota mental para ver o filme outra vez quando ficasse sã e parasse de gemer alto ao mínimo pensamento sobre ele.
Foi para casa no domingo à noite, e na segunda Lily levantou-se e arrastou-se até ao Mount Sinai, onde foi seriamente recordada do que se tinha esquecido durante sete dias intoxicantes — que os seus neutrófilos, plaquetas, glóbulos vermelhos e brancos estavam a ser lentamente destruídos pelo Alkeran que, em troca, estava a impedi-la de morrer. Deram-lhe uma infusão de Vepesid e um antiemético para ajudar com a náusea e disseram-lhe para nunca mais se esquecer do Alkeran. Mas o Vepesid fez com que ficasse tão cansada que, quando chegou a casa, deitou-se, adormeceu e só acordou na terça, quando se sentiu como se estivesse a apodrecer por dentro. E pior, assexuada outra vez. Assexuada outra vez. Foi de tão curta duração, pensou Lily debilmente, a vomitar na sanita. Tão espetacular, mas fugaz. E como isto é agora triste, mas tão intenso.
Parou de tomar o Alkeran. Parou totalmente. Não estava a fazer nada em relação às contagens e estava a afetar a sua vida SEXUAL. Era ou cancro ou SEXO.
Lily escolheu ter os dois.
E então, um milagre! Na semana seguinte, as plaquetas subiram até às 150, sem quaisquer medicamentos! Os glóbulos bancos não estavam elevados! Os vermelhos estavam normais. DiAngelo estava muito impressionado com as plaquetas e a cor nas bochechas dela; disse que o sangue parecia bem e limpo. Apertou-lhe a mão e mandou-a para casa.
Lily pulou do hospital na 66th pela Fifth Avenue abaixo, passando a St. Patrick’s Cathedral, os bancos de igreja, os padres e as salas das lágrimas.
Não conseguia esperar até chegar a casa para lhe ligar, por isso mandou-lhe um beep da rua barulhenta perto do Empire State Building. Quando ele não lhe ligou de volta após cinco minutos, ela mandou-lhe outro.
— Adivinha? — ela rebentou mal ele finalmente lhe ligou. — Estou limpa!
— A sério?
— Não... Estou a dizer que estou limpa.
— Isso é fantástico. Obrigada por me avisares.
— As minhas contagens estão todas altas. Não há mais quimio, Spencer. Percebes? Acabou-se o Alkeran. Acabou-se o cansaço, os vómitos, o sentir-me horrível, o parecer horrível.
— Eu percebo.
— Onde estás?
— No carro.
— No teu carro da polícia?
— Sim.
— Estás sozinho?
— Não.
— Hum. — Lily ainda estava sem fôlego, mas sentia-se tão leviana, tão feliz e um tudo ou nada traquina. — Mas às vezes estás sozinho no teu carro de polícia — disse, dando entoação à voz e baixando o tom quase até ao sussurro.
— Sim.
— Mmm. Digamos que estás sozinho no carro a conduzir e me encontras na estrada, como agora, digamos que a ser desordeira, desobediente, talvez suspeita de estar... indecentemente exposta, mandavas-me parar?
— Sim.
— Talvez me virasses, prendesses as minhas mãos atrás das costas, me mandasses de frente contra o capô do teu carro, virada de costas para ti...
— ...Sim.
— Que me colocasses as algemas...
— Pronto então, obrigado por ter ligado.
— E que me revistasses entre as pernas...
— Certo, sim, isso foi muito útil. Telefone-me se tiver mais informações.
— Porque, Detetive O’Malley, eu vou agora confessar-lhe que não tenho nada por baixo da minha curta, muito curta minissaia....
— Obrigado, um bom dia também para si. — Ele desligou enquanto Lily se ria às gargalhadas.
Gabe estava a conduzir e olhou de lado para Spencer, que estava sentado a olhar em frente. — Que bela fantochada aí, O’Malley. Achas que resumires-te a pequenos sins e nãos vai enganar um detetive dos homicídios?
— Oh, nada te escapa, McGill — disse Spencer, tentando em vão acalmar o fogo que lhe devorava as entranhas.
Ao almoço, subiram a 5th Street para a Second Avenue a pé. Gabe apontou para uma cabine telefónica na esquina onde estava Lily, de costas voltadas para eles. Spencer viu-a, Gabe disse «ora se não é a tua amiga» e o beep de Spencer tocou. Gabe franziu a testa. Spencer olhou para o visor. Harlequin, dizia. Fez um sinal a Gabe para ficar calado, voltou um pouco a arma para não a magoar acidentalmente e apareceu atrás dela, agarrando-a com as duas mãos mesmo por cima das ancas.
— Muito, muito marota — disse-lhe ao ouvido.
Ele sabia que ela ia ficar assustada, e ela ficou. Guinchou e deu meia-volta, com as mãos dele ainda nas ancas, e depois viu-os e relaxou, dando-lhe um murro ao de leve no peito quando ele se afastou e se riu.
— Detetive O’Malley, não é contra a lei assustar jovens mulheres civis? — disse ela. — Olá, Detetive McGill.
— Olá, Lily. Gosto em ver-te.
Ficaram ali os três.
— Os rapazes vão almoçar ao McCluskey?
— Sim. Quer vir connosco? Acabou de mandar uma mensagem ao Detetive O’Malley. Está tudo bem?
— Sim, sim. — Ela piscou o olho a Spencer. Ele piscou-o de volta. — Não, vão andando, tenho a certeza de que não têm muito tempo.
— Não temos. Embora, O’Malley.
Os olhos de Spencer não descolavam de Lily.
— Gabe, dás-me um minuto? Encontramo-nos lá dentro.
Gabe deu uma palmada nas costas de Spencer.
— Sabes que mais, e que tal se combinarmos lá em cima na esquadra às duas? Precisamos de estar em Trenton às 15h30, por isso não te atrases.
Assim que Gabe virou as costas, Lily aproximou-se, juntinho a ele, e olhou para cima a sorrir de forma tão feliz...Ele chegou-se ainda mais perto dela, deslizando-lhe a mão até ao fundo das costas. À porta do McCluskey, quando Gabe olhou para trás para eles, Lily, na sua saia de ganga e camisola curta em tons pastel, com cabelo primaveril atado num rabo de cavalo, estava completamente rodeada por Spencer, de fato e gravata, na multidão da Second Avenue a ser beijada por ele como se a guerra tivesse acabado.
Aos sábados, Lily contratava um Lincoln Towncar para apanhá-la, a ela e às suas obras, e levá-las para a banca da 8th, onde meia dúzia de pessoas poderiam estar já espera — À espera! — para ela lhes mostrar o que tinha desenhado durante aquela semana.
A sua arte estava cheia de Spencer e dela própria. Lily pintava-os a comerem waffles na cama, e no Odessa, pintava-os a passearem por Tompkins, a comer gelado na esquina da 9th com a Avenue C ou sentados a comer cachorros no poço das Torres Gémeas.
As pinturas de beijos iam sempre primeiro. Lily começou a desenhar mais dessas. Independentemente das que desenhasse — e houve uma semana em que fez vinte e sete —, elas vendiam-se sempre primeiro e até à última.
— Fico contente que me estejas a imortalizar — disse Spencer —, mas estás a guardar alguma para ti ou um dia vou-me encontrar pendurado no Wal Mart ao lado dos artigos de papelaria e de festa?
— Ao lado das ferragens, talvez.
Spencer a beijar-lhe o pescoço por trás, perto do carro da polícia, com os rotativos ligados. Spencer a beijar-lhe as mãos do outro lado do reservado no Odessa, Spencer e Lily a beijarem-se em frente às tulipas de abril das ruas de Nova Iorque. Lily ao colo de Spencer num banco em Central Park, de mãos à volta do pescoço e lábios nos dele.
— Olha lá, atrevida, não me vais desenhar nu, pois não? É esse o meu limite.
Lily mostrou-lhe que já o tinha desenhado nu, em pé, em frente dela, quanto ela estava sentada na cama. O olho de artista estava nele, totalmente frontal, enquanto ela era vista de costas, nuas e expostas, apenas de olhar voltado para cima, para ele, os seios voltados para ele. A imagem era tão sexy que Lily teve de escondê-la atrás de oito outras, mas até assim, o seu peso voluptuoso sufocava o estúdio. Spencer expirou quando a viu.
— Isto é o que fazes quando eu estou no trabalho? Fazes isto de memória? É enervante. Achava que os artistas precisavam de modelos para desenhar. Achava que era a única proteção para o homem mortal?
— Não estás seguro comigo. — Lily sorriu abertamente. — Vejo-te completamente a toda a hora.
— Tens de me ver tão completamente nu? — Mas o seu deleite e fome eram aparentes
No abril excecional de Lily, a alegria foi loucamente produzida e loucamente encontrada.
Estavam deitados na cama dela. Ela observava-o, fazendo círculos à volta dos lábios, da cara dele, com os seus dedos manchados de tinta.
— Spencer?
— Hum. Fala comigo, mas não pares de fazer isso.
— Fala-me sobre a Mary.
— Oh, não. Pronto, para de fazer isso. Falar do quê?
— Não sei. Nunca perguntei antes, não era da minha conta.
— E agora é da tua conta?
— Não sei. É?
— O que é que queres saber, Liliput?
— Ainda andas... a vê-la? — Lily nem queria acreditar que estava a perguntar. Será que ia ser a outra? Será que era o que tem sido? Magoava-a pensar assim, estabelecendo paralelos que a conduziam ao quarto dos infernos. Mas ela não podia não perguntar. Nem sequer sabia o que ia fazer com a resposta errada.
— Não.
Lily só percebeu que estava a suster a respiração quando a soltou. Spencer riu-se e beijou-lhe a face.
— Tu és mesmo engraçada, Lily. Eu mal aguento com uma mulher de cada vez. A minha vida simplesmente não permite o tipo de complexidades pessoais do teu irmão.
— Oh. Ainda bem. Quando é que deixaste de a ver?
— No início de março.
— Andaste com ela até março? — Porque é que aquilo era tão forte e desagradavelmente surpreendente?
— Sim, mais ou menos. — Spencer pegou-lhe ao colo. — Ela era o meu seguro contra as complexidades da Lily. — Ele beijou-lhe a testa.
— O que é que isso quer dizer?
— Não queria ser acidentalmente influenciado pelos teus mamilos duros como gelo que estavas sempre alegremente a fazer desfilar para mim, tentando atrair-me para a tua cama. — Os dedos e a boca dele passaram em torno deles.
— Spencer!
— O que é que foi? Lily, durante muito tempo estiveste inacreditavelmente vulnerável, depois doente, depois vulnerável de novo. Às vezes até me doía só pensar em vir ver-te, quanto mais sentar-me no teu sofá. Para um homem, tais suscetibilidades gritam «faz sexo comigo, faz sexo comigo, já.» A carne é fraca. Eu não queria um apetite básico parecido com a fome a toldar-me o discernimento. Já é toldado o suficiente à partida.
— Continuaste a ir para a cama com a Mary para que o teu discernimento não fosse toldado pela tua vontade de ires para a cama comigo?
— Agora percebeste.
— Então, o que é que mudou?
— Eu queria mesmo muito ir para a cama contigo, Lily.
Ela queria sorver o seu âmago. Ela queria-o todos os dias e apercebeu-se que todos os dias não era suficiente. Ela queria as mãos dele à volta dela, ela queria dele o seu humor, o seu sangue irlandês, os seus lábios, coração, a sua pessoa completa, a sua alma. Ela queria dizer-lhe tanto e não encontrava palavras. Desenhou-o obsessivamente e esperou que isso lhe falasse mais alto do que as palavras alguma vez falariam.
Ela não tinha tido intenção. Apaixonar-se assim tão loucamente por Spencer não apanhou Lily de surpresa. Apanhou-a de assalto.
51
Mais uma vez nos Assuntos Internos
No andar de cima chamavam por Spencer. Ele simplesmente não conseguia entender. Há meses que não tinha nenhuma informação nova sobre o caso McFadden e o Harkman estava para sempre fora de ação. Então porque estava a ser levado novamente para a jaula dos leões?
Sentou-se com os braços cruzados, as pernas cruzadas. Quando entrou na sala nem sequer acenou com a cabeça, não disse olá.
— Nós não somos o inimigo, Detetive O’Malley — disse Liz Monroe, reagindo à sua visível hostilidade.
— Tenho trabalho para fazer — disse Spencer friamente. — Vinte e cinco investigações especiais distintas sobre pessoas desaparecidas, todas em aberto, todas urgentes.
— Nós também temos trabalho para fazer — disse ela, não menos friamente. — Investigamos denúncias de corrupção e má conduta cometidas pelos nossos colegas.
— Sei muito bem o que fazem, Sra. Monroe. Tem novas testemunhas? Reuniu e analisou novos registos e provas que gostasse de partilhar comigo?
— Sim.
— Diga.
— Detetive, um Pontiac Firebird, que corresponde à descrição do seu carro, foi visto à noite, bastante tarde, na estação de comboios de Old Greenwich. Grande coincidência, não acha? O que parece o seu carro estar estacionado a três quilómetros de distância da casa de Nathan Sinclair e, depois, ele aparecer morto?
— Sra. Monroe, não pode estar a falar a sério. Não pode. O que é que está a dizer... — Spencer abanou a cabeça, depois riu-se. — Venha comigo agora à estação de comboios de Old Greenwich. Vou mostrar-lhe quinze Firebirds.
— O parque de estacionamento estava vazio naquela altura. Era de noite.
— Os parques de estacionamento de Long Island nem à noite estão vazios, mas, seja como for, não sei nada sobre a estação de Greenwich. Talvez não estivesse vazio. Mas tenho a certeza de que, se falar com algumas pessoas, vai descobrir que havia um Firebird azul-escuro estacionado na área de serviço local, num restaurante, num Dunkin’ Donuts ao fundo da rua e no centro comercial vazio. Por favor, Sra. Monroe. Que mais? Tenho trabalho para fazer.
— Mas a pessoa que nos deu esta informação não sabe que tem um Firebird, detetive. Acontece que ele é proprietário de uma oficina local, por isso conhece os carros da zona. Ele simplesmente descreveu o que viu no parque de estacionamento naquela noite.
— Tudo bem, Sra. Monroe. Isso não muda nenhuma das coisas que eu acabei de dizer. Porque, veja, seja qual for o carro que o seu especialista proprietário de oficina viu na estação de comboios, o meu Firebird estava no caminho de regresso a Long Island à meia-noite. Talvez a sua testemunha tenha visto um Firebird escuro a passar na Interstate 95, também a três quilómetros de distância da casa de Nathan Sinclair, por volta da meia-noite. Talvez esse pudesse ser eu. — Spencer quase riu, mas não quis deixá-la mais agressiva. — De onde vem esta toda essa informação?
Liz Monroe não respondeu, tirando notas furiosamente. Deixou-o ir, finalmente, por enquanto, mas Spencer sabia que não era o fim. Agora que estavam a pesquisar a sério, não iriam parar até encontrarem alguma coisa.
52
Teste número um falhado
Era maio. Era quase 14 de maio. Era dia 14 de maio. Era um dia difícil. Lily já não se sentia bem e, ainda por cima, era dia 14 de maio, e a mente não conseguia desligar-se disso. Era domingo e Spencer estava com ela. Tinha estado com ela também no dia anterior, embora os sábados, por alguma razão, não fossem dias bons para ele. O dia de jogo de basebol deles tinha sido ótimo, mas outros sábados eram muito menos agradáveis. Ele meditava. Este sábado Lily também meditou. Tinha passado a manhã na Village. Tinha pintado a Amy durante a semana anterior, tinha vendido um quadro a óleo sobre tela da Amy por setecentos dólares, mas até a pessoa que o comprou disse: «Não há amor esta semana?»
Sim, amor. Amor por Amy, quis Lily dizer.
Foi almoçar com Paul, com Rachel. Não podia ligar a Jan McFadden.
E no domingo à noite, na cama com Spencer, chorou nos seus braços, e ele tentou confortá-la.
— Spencer — disse ela —, diz-me honestamente...
— Por favor, Lily, não me peças nesse tom para te dizer seja o que for honestamente.
— Diz-me o que dizes à Sra. McFadden quando ela te pergunta? Quando ela pergunta se achas que a Amy está viva ou morta.
— Ela nunca pergunta.
— Nunca?
— Nunca.
— Bem, mas eu estou a perguntar-te.
— Por favor, não.
— Diz-me. Diz-me.
— Acho que ela está morta. Acho que ela está morta desde 14 de maio do ano passado.
— Oh, Spencer. — Lily ficou perturbada, tão triste. Ele abraçou-a, beijou-a.
— Acho que, no seu coração, a Sra. McFadden também deve temer isso — disse Lily. — Acho que é o que deve sentir. Nunca vi alguém com tão pouca habilidade para lidar com a sua vida. Quer dizer, no mês passado ela nem sequer conseguiu organizar uma boa festa de aniversário para os filhos porque a Amy não estava lá. Ficou parada a chorar sobre o lava-louça. Não sabíamos o que fazer. O marido estava tão chateado com ela, sabes?
Por longos minutos, Spencer não disse nada. Não sabia o que dizer. Lily estava deitada na dobra do seu braço e ela não conseguia ver o seu rosto, e também não estava assim tão interessada nisso. Ela estava à procura das suas reações, estava a tentar entender as suas próprias reações. Assim, os minutos silenciosos passaram sem serem notados por ela, e se o seu corpo ficou mais rígido, se o seu braço à volta dela ficou mais tenso, ela também não o notou.
Lily viu Jan McFadden e não lhe disse!
Spencer respirou fundo, tentando não mostrar qualquer expressão. Lembrou-se da angústia de Lily naquele domingo em particular. Ela não queria enfrentá-lo, uma reação familiar relacionada com Andrew. Na altura, Spencer não tinha percebido.
Mas agora...
Por fim:
— Sim, sim, o Jim está zangado com ela. Quando ela me ligou aflita há alguns dias, disse-me que não sabia como é que iria conseguir manter o seu casamento.
— Sim — disse Lily. — Eu vi isso. Sim.
Então Lily foi a uma festa de aniversário em casa da Jan McFadden. É uma coisa inocente, tão simples. Por que razão esconderia isso dele?
O que é que aconteceu na casa de Jan McFadden, que estava relacionada com Andrew, que Lily não podia dizer-lhe e com a qual estava tão perturbada que não conseguia encará-lo?
Em silêncio, Spencer ficou deitado na cama com ela. O que fazer? Ele também tinha dificuldade em falar quando as coisas pesavam demasiado na sua mente, principalmente coisas assim: onde definir o limite, o que era aceitável, o que não era, o que podia fazer, o que não podia. Ela disse-lhe que tinha visto Jan McFadden por acaso, disse-lhe enquanto estava nua na cama com ele, traída pela sua proximidade, depois de ele ter feito amor com ela, depois de se ter sentido segura com ele, protegida, nos seus braços, beijada. Ele era apenas o Spencer quando ela, inadvertidamente, deixou escapar o que tinha mantido em segredo do Detetive O’Malley a sua visita a Jan durante seis semanas.
Dizer que Spencer se transformou numa besta enraivecida teria sido subestimar as coisas.
Levantou-se da cama, foi buscar algo para beber, ficou em pé sobre o lava-louça durante alguns minutos, com a cabeça inclinada, tentando perceber o que não era percetível. Lily apareceu e ficou a olhar para ele durante algum tempo.
— O que é que se passa?
— Nada. — Terminou de encher o copo de água.
Olhou-a de soslaio e virou-se para outro sítio. Depois, como sabia que ela o queria, Spencer voltou para a cama dela e deitou-se ao seu lado.
— Spence?
— Sim? — Ele estava em silêncio.
Lily estava encolhida sobre si, do seu lado da cama, e ele estava encaixado nela.
Ela pensou que estavam aconchegados num calor bom.
— O que é que se passa contigo nos fins de semana em que não sei nada de ti? Onde é que vais?
Aquele calor. Isso foi antes. Agora, tão frio. Agora Spencer afastou-se, susteve a respiração. Lily podia senti-lo a cerrar os dentes. Porque é que ela teve de estragar tudo?
— Porque é que fazes isso? Sinceramente, não podes estar bem cinco minutos sem estragar tudo — disse o Spencer.
Ela virou-se para ele e sentou-se porque não queria ter esta conversa deitada confortavelmente.
— Porque é que guardas segredos de mim? Quero dizer, o que é que achas que parece do meu ponto de vista?
— Não sei, Lily. Porque é que guardas segredos de mim?
Ela ficou perturbada com o seu olhar frio intencional.
Depois levantou-se, começou a vestir-se. Não lhe respondeu. O facto de ele se vestir era a sua resposta. O que fazer?
— Vais-te embora?
— Vou para casa.
— Porquê? Porque é que foges quando te pergunto qualquer coisa?
— Não é qualquer coisa, Lil. Isto. Porque não aceitas simplesmente que não quero falar sobre isto? Há coisas de que não queres falar.
— Como por exemplo?
— Não sei. Diz-me tu.
O coração dela martelava no peito.
— Não sei. Tipo o quê?
— Esquece.
— Estás a referir-te ao Andrew? Isso é completamente diferente. O Andrew não tem nada a ver connosco. Isto tem.
— Não, não tem.
— Diz-me, não fico chateada. És casado?
— Já estiveste em minha casa. Estava a esconder uma mulher naquela casa? Que garanhão que eu sou: tu, a Mary, uma mulher. Estou surpreendido por conseguir manter o meu emprego.
— Porque é que estás zangado comigo?
As calças de ganga vestidas, a camisola vestida, as botas calçadas, meu Deus, o casaco já vestido! Spencer sentou-se à beira da cama.
— Ouve-me — disse —, não quero voltar a ter esta discussão. Não quero falar sobre isto contigo. Tal como há coisas sobre as quais não queres falar comigo. Mas acredita — isto não tem absolutamente nada a ver contigo.
— É disso que tenho medo — disse Lily.
— Nada a ver contigo! Porque é que haverias de ter medo?
— Então, mas se não tem nada a ver comigo, porque é que não me dizes?
— Porque é que não esqueces isso? Porque é que estamos deitados na tua cama num domingo à noite, felizes — pelo menos é o que eu penso —, e estás sempre ansiosa a pensar qual será um bom momento para me perguntares coisas sobre as quais já sabes que não quero falar. Dou-te uma dica de quando... Que tal não ser depois de ter acabado de fazer amor contigo, que tal? Que tal noutra hora?
— Está bem — disse ela num tom calmo.
— Não está bem. — Spencer levantou-se. — Não está bem. Não estou preparado para te dizer. Não quero dizer-te. Não é da tua conta. Nada do que fazemos aqui te dá o direito de perguntares ou de teres uma resposta. Nada.
— E quando me perguntas coisas sobre o meu irmão? — Lily explodiu. — O que fazemos aqui dá-te direito a isso?
Ela parou de falar assim que o disse, e ele parou de ouvir assim que ela o disse. Afastou-se, ela voltou a deitar-se sobre a almofada.
— O quê? Não te perguntei sobre o teu irmão antes de começarmos isto? — Finalmente Spencer disse-o, mas estava de costas viradas para ela. — Tu és incrível.
Ele saiu, fechando a porta, num domingo à noite, à uma da manhã.