Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAPARIGA DE TIMES SQUARE / Paullina Simons
A RAPARIGA DE TIMES SQUARE / Paullina Simons

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

No Vaticano, depois de escolherem um novo papa, conduzem-no a uma sala fora da Capela Sistina onde lhe são dadas as vestes papais. É chamada de Sala das Lágrimas. É chamada assim porque é aí que o peso e as responsabilidades papais tendem a abater-se sobre o novo pontífice. Muitos deles choraram.

 


 


O que aconteceu ao amor? Lily sussurrou para si mesma. Alguém levou todo o que foi distribuído no universo ou será que não me tenho esforçado o suficiente? O que aconteceu ao amor arrebatador, esmagador, o tipo de amor que move montanhas, o tipo de amor que a minha avó sentiu pelo seu Tomas há meio século, noutro mundo e noutra vida, o tipo de amor que o meu pai diz ter sentido pela minha mãe quando se encontraram pela primeira vez a nadar no mar morno das Caraíbas? Já ninguém sente esse tipo de amor? Será que não há ninguém sem defesas, sem barreiras, sem dor? Será que não há ninguém disposto a morrer por amor?

É óbvio que esta noite não.

Chamavam-lhe Lil. Às vezes, quando a amavam, chamavam-lhe Liliput. Ela gostava. E às vezes, quando não a amavam, chamavam-lhe Lilianne. Esta noite ninguém lhe chamou nada. Lily, esfomeada e sem dinheiro, ficou silenciosamente encostada à parede a observar Joshua a fazer as malas enquanto ela permanecia como uma mancha estoica na parede, olhos castanhos, cabelo cinza, vestida de negro — de alguma forma apropriadamente, pensou, apesar do que ele disse: «É apenas temporário, só para nos dar um tempo. Precisamos disso.» Ele estava a ir-se embora, não ia voltar, e ela vestida de negro. Lily gostaria de ter pigarreado, de ter dito alguma coisa, talvez convencê-lo a não ir, mas de alguma forma sentiu que o tempo para isso já tinha passado. Quando, não sabia ao certo, mas tinha passado na mesma e agora não restava mais nada a não ser observá-lo a partir, e talvez mastigar alguns pretzels velhos.

Joshua era magro e ruivo. Voltando os olhos baços para ela, perguntou, passando a mão pelo cabelo — e como ele adorava o seu cabelo! — se não tinha nada melhor para fazer do que estar ali parada a observá-lo. Lily respondeu que não, que por acaso não, não tinha. E continuou a mastigar alguns pretzels velhos.

Ela queria perguntar-lhe por que partia, mas os seus motivos ficaram por dizer. Ficou muito por dizer entre eles. A sua saída seria inconcebível há um ano: como é que ela conseguia lidar com aquilo, como é que ela conseguia lidar tão bem? Afastou-se da parede, aproximou-se dele, abriu a boca e ele afastou-a acenando, de olhos colados à televisão.

— É a final da Taça Stanley — foi tudo o que Joshua disse, com uma mão nos seus CD’s e a outra no comando com o qual aumentou o volume do aparelho para abafar Lily.

E pensar que na semana passada, o professor de escrita criativa lhes deu como tema para o artigo final — como se o flagelo do obituário anterior não fosse suficiente — «O que farias se soubesses que hoje seria o teu último dia de vida?».

Lily odiava a cadeira. Tinha-se inscrito porque precisava de uma cadeira de inglês, mas se então soubesse o que sabe hoje, teria escolhido «Leitura Avançada de John Donne», às segundas-feiras às oito da manhã, em vez de escrita criativa às quartas à tarde. Oh, o desfile impiedoso da autoanálise! A primeira memória, o primeiro desgosto amoroso, a experiência mais memorável, as férias de verão favoritas, o próprio obituário (!) e agora isto.

Tudo o que Lily mais desejava naquele momento era que hoje — a separar-se do seu namorado da faculdade — não fosse o seu último dia de vida. O seu apartamento era demasiado pequeno para tanto drama. A entrada da casa servia de sala. Na cozinha, o micro-ondas ficava em cima da única bancada existente e o escorredor da louça em cima do micro-ondas, onde estavam latas de Coca-Cola enxaguadas a pingar para o lava-louça, em parte a servir também para guardar pão já bolorento. Não usavam pratos normais e raramente comiam em casa. Havia dois quartos na casa — o dela e o de Amy. Esta noite, Lily foi para o quarto de Amy e deitou-se na cama dela, tentando a todo o custo não se encolher em posição fetal. Durante o intervalo, Joshua levantou-se do sofá para ir buscar uma bebida, lançou-lhe um olhar e disse:

— Achas que podias dormir com a Amy? Vou ter de levar a minha cama. Até a deixava, mas não tenho mais sítio nenhum onde dormir.

Lily queria responder. Pensou que poderia ter algo espirituoso para dizer. Mas a única coisa que lhe ocorreu foi:

— O quê, a Shona não tem cama?

— Não comeces outra vez com isso — respondeu ele, entrando na cozinha.

Lily encolheu-se. Joshua pagava um terço da renda. E ainda assim ela estava falida, a sua dieta alternava entre pretzels velhos e massas chinesas. Um bagel com requeijão era um luxo a que só podia dar-se aos domingos. Nalguns domingos tinha até de escolher entre um bagel e um jornal.

Lily costumava ler as notícias online, mas agora não conseguia pagar os 20 dólares da ligação de Internet. Por isso, não havia Internet, bagels e, em breve, Joshua, que estava a ir-se embora e a levar a cama e um terço da renda com ele. Se ao menos tivesse tido notas para entrar na Universidade de Nova Iorque, na baixa, em vez do City College, na rua 138, poderia ir a pé para a faculdade tal como ia para o trabalho e pouparia quatro dólares por dia. Seriam vinte dólares por semana, 80 por mês, 1040 por ano! E quantos bagels, jornais e cafés poderia comprar com esse valor!

Lily pagava quase 500 dólares por mês pela sua parte da renda. Bom, na verdade, a mãe dela mandava-lhe 500 dólares para poder pagar a sua parte, ralhando com ela todos os meses. E no próximo mês de maio, no dia da sua pretensa, suposta e alegada licenciatura, Lily ia receber o último cheque do banco da mamã. Sem o Joshua, a sua parte da renda ia subir para 750 dólares. Como raio ia ela arranjar mais 750 dólares em junho? Já estava a servir à mesa vinte e cinco horas por semana para pagar a comida, os livros, os materiais artísticos e os seus filmes. Teria de pedir para fazer mais um turno, talvez dois. Talvez pudesse fazer turnos duplos, levantar-se cedo. Lily não queria pensar nisso. Queria ser como a Scarlett O’Hara e pensar nisso amanhã — noutro livro, uns cinquenta anos mais à frente.

O telefone tocou.

— Ele já se foi embora, querida? — Era Rachel Ortiz, outra grande amiga de Amy, senão a melhor amiga, aquela do repentino cabelo louro esticado e uma maneira de ser contundente. Alguém devia explicar à Rachel que o facto de ser amiga de Amy não a tornava automaticamente em amiga de Lily.

— Não — respondeu Lily, acrescentando que a Taça Stanley Cup estava a atrasar a saída de Joshua.

— Esse desgraçado! — disse Rachel, de qualquer modo.

— Mas sai em breve — declarou Lily —, muito em breve, Rach.

— A Amy está aí?

— Não.

— Onde é que ela está? Num dos seus encontros?

— Apenas a trabalhar, acho.

— Bom, amanhã à noite não quero que fiques em casa sozinha. Vamos sair. O meu novo namorado quer levar-nos a Brooklyn, a uma discoteca em Coney Island.

— Ir a Coney Island, numa segunda-feira? — perguntou Lily, recusando de imediato — Não posso. É noite de escola.

— Escola, uma treta. Não vais ficar em casa sozinha. Vais sair comigo e com o Tony — Rachel baixou o tom de voz para dizer Tóni, com uma acentuada pronúncia italiana. — A Amy também é capaz de ir e tem um amigo para ti do Bed-Stuy que ela diz ser um «pão».

— Oh, por favor! — Lily baixou a voz até ao sussurro. — O Joshua ainda está aqui.

— Esse desgraçado! — disse Rachel. E desligou.

— O quê? A Rachel já te está a tentar arranjar encontros? — perguntou Joshua — Ela detesta-me.

Lily não disse nada.

Nessa noite, depois da Taça Stanley acabar, Joshua traçou os cinco lanços de escadas de cima a baixo, levando as suas caixas, caixotes e malas para a Avenida C com a rua 4, onde ia agora ficar com o amigo comum Dennis, o cabeleireiro. (Amy uma vez disse-lhe: «Lil, já alguma vez te perguntaste porque é que o Joshua se quis mudar tão precipitadamente para casa do Dennis? Já alguma vez pensaste que talvez ele também possa ser gay?» E Lily respondeu: «Pois, mas não me digas isso a mim. Diz isso à Shona, a rapariga nua do norte do estado de Nova Iorque a quem ele andava a ligar com o meu telefone.)»

Quem ia agora cortar o cabelo a Lily? Era sempre Dennis que o fazia. Porque é que Joshua tinha de herdar o cabeleireiro? Bem, talvez o Paul, outro dos melhores amigos de Amy, e um especialista em coloração, também soubesse cortar cabelo. Tinha de lhe perguntar-lhe.

Joshua teve a decência de não pedir ajuda a Lily e ela a dignidade de não lha oferecer.

Por volta das três da manhã, a agarrar a última caixa, ele acenou-lhe com a cabeça e saiu, passando rapidamente pelo seu A rapariga de Times Square, a única tela a óleo que pintou quando tinha 20 anos, antes de conhecer Joshua.

«Há coisas em ti que eu nunca poderia amar,» dissera Joshua a Lily há dois dias, quando tudo se começou a desmoronar.


Se eu soubesse que hoje era o meu último dia de vida, gostaria de ser como a rapariga daquele postal famoso do final da guerra, ser lançada atrás no tempo para o meio de Times Square e beijada com paixão por um estranho. Só que essa não sou eu. Essa fantasia da rapariga em Times Square é de outra pessoa. Talvez da Amy. Mas é uma Lily fraudulenta.

A verdadeira Lily dormiria até tarde, pelo menos até ao meio-dia, sem aulas ou trabalho. E então, uma vez que o tempo estaria quente e soalheiro no seu último dia, iria até ao lago do Central Park. Compraria uma sanduíche de atum, um chá gelado e um pacote de batatas fritas e levaria o livro que está a reler devagar — Sula, de Toni Morrisson —, porque tinha tempo, o seu bloco de apontamentos e lápis. Passaria a tarde sentada, a comer, a desenhar os barcos e o Ajax de Sula — por quem estava perversamente apaixonada — a ler e a pensar sobre o que ia desenhar a seguir. Teria uma longa e descontraída tarde de desenhos e, à noite, no regresso a casa, passaria por Times Square alheia a todas as pessoas, encostando-se à parede a observar os coloridos painéis animados e as torres cintilantes, os semáforos verdes a mudar de cor, as luzes azuis e brancas das sirenes a piscar e os táxis amarelos a zumbir à passagem. O cowboy nu no meio da rua, a tocar a sua guitarra apenas com o seu chapéu e roupa interior, e as famílias, as crianças, os casais, os novos e os velhos, todos apaixonados, a tirar fotografias, a rir, a passar pelo meio das luzes.

Esta rapariga em Times Square fica encostada à parede enquanto outros avançam pelas luzes.


Lily afastou-se da porta e contemplou a noite pela janela aberta, da cama de Amy, sozinha.


Allison Quinn

 

Em tempos houve uma vez uma mulher que vivia para o amor. Agora estava parada a olhar pela janela. Lá fora via palmeiras verdes, rododendros vermelhos, um céu azul, um mar cristalino, rochedos cinzentos, vulcões pretos e areias brancas. Ela não olhava para dentro da divisão. Estava à espera que o marido regressasse com as mangas que tinha ido comprar. Estava a demorar uma eternidade. Afastou ligeiramente o cortinado para dar conta de algum movimento lá fora, e suspirou, recordando o tempo em que era nova e sonhava com o céu, o mar e a abundância.

Agora tinha tudo isso.

E em tempos, um homem pôs um disco a tocar numa vitrola antiga e levou-a a dançar pelo pequeno quarto. O homem era elegante e ela bela, e falavam então uma língua diferente. The look of love is in your eyes... Agora, o homem passeava sozinho debaixo das palmeiras sobre as areias. Molhava os pés no oceano, e a alma também, caminhando depois até à frutaria para comprar mangas sumarentas que a jovem e atrevida vendedora assegurava serem as melhores de sempre. O homem olhou para ela e sorriu enquanto as tirava da mão dela.

A mulher afastou-se da janela. Ele estava sempre a caminhar, sempre a sair de casa. Mas ela sabia — ele não estava a sair de casa, estava a sair de ao pé dela. Ele simplesmente não conseguia suportar a ideia de estar sozinho com ela durante uma hora, não conseguia suportar a ideia de fazer alguma coisa que ela quisesse, em vez de alguma coisa que ele queria. Quando ela não fazia o que ele queria, como ele amuava... como uma criança. Era na verdade o que ele era, uma criança. Faz as coisas à minha maneira ou nunca mais falo contigo. Era assim. Bem, ela tinha culpa de as manhãs não serem a melhor altura do dia para ela? Tinha culpa de não conseguir levantar-se durante a manhã para ir passear e dar um mergulho debaixo de todo aquele sol? Deprimia-a a um nível insano o facto de às oito da manhã o oceano estar tão quente e o sol tão forte. Se ao menos chovesse, uma vez que fosse! Estava farta do raio do oceano. E do sol. E daquelas mangas, do sashimi de atum, da cinza do vulcão. Farta.

Comprou cortinas pesadas e opacas e fechou-as bem para afastar a luz do dia, para fazer de conta que ainda era de noite. Fingia muita coisa hoje em dia.

Não conseguia perceber onde é que ele estava. Quando é que ele ia agraciá-la com a sua presença? Não sabia que ela estava doente, que tinha fome? Não sabia que ela tinha de comer pequenas refeições? Era isso, ele não queria saber daquilo que ela precisava. Só se preocupava com o que ele precisava. Bem, ela não ia pôr uma única migalha na boca. Se desmaiasse por falta de açúcar no sangue e partisse um osso, tanto melhor. Queria ver como ele se iria sentir depois, por estar fora a manhã inteira sem preparar o pequeno-almoço para a sua mulher doente. Queria ver como ia explicar essa à mãe dela, aos filhos. Nem pensar que ela ia colocar sequer uma colherzinha de açúcar na própria boca.

A porta do quarto abriu-se ligeiramente.

— Estou de volta. Já comeste?

— Claro que não comi! — disparou ela — Como se quisesses saber. Podia morrer para aqui sozinha enquanto tu andavas a passear agradavelmente na tua estúpida Maui, sem pensares uma única vez em mim!

... a look that time can’t erase...

A porta fechou-se silenciosamente e ela ficou sozinha no quarto escurecido com as persianas corridas na manhã radiante de Maui.


Um homem e uma mulher

 

É sexta-feira à noite e estão no apartamento dela. Foram jantar, ela convidou-o para uma bebida e para irem dançar num bar vínico, perto do sítio onde mora. Ele recusou. Ele recusa sempre — beber e dançar em bares não faz o género dele —, mas há que concordar — ela é persistente. Continua a convidar. Agora estão na cama dela e quer isto já faça o género dele, quer ela não tenha opções mais atrativas, ele não sabe porquê, mas ela continua a aparecer todas as sextas à noite. Por isso só pode estar a fazer alguma coisa bem, apesar de não fazer a mínima ideia do quê. Afinal, o que ele lhe dá, ela pode ter em qualquer lado.

E depois de lhe dar e de tomar a sua parte, ela adormece satisfeita na dobra do seu braço, enquanto ele fica deitado de olhos abertos a contar as peças de estanho do seu teto alto, na luz amarela e azulada que vem da rua. Para alguém que o observasse de fora, científica e empiricamente, ele também podia parecer satisfeito — no prazer ostensivo dessa noite, vindo da sua comida e da sua mulher. Mas agora, numa perversão da natureza, a mulher está a dormir e o homem a olhar para o teto. Portanto, o que resta integralmente do prazer no seu interior?

Ele está a contar as peças de estanho. Já as contou antes e o que o fascina é que, de cada vez que as conta a horas tardias da noite, chega sempre a um número diferente.

Depois de ter a certeza de que ela dorme, ele desembaraça-se dela, sai da cama e leva as suas roupas até à sala.

Ela aparece quando já tem os sapatos calçados. Deve ter tilintado as chaves. Normalmente, não o ouve sair. Está escuro. Olham um para o outro, parados.

— Não entendo porque fazes isto — diz ela.

— Tenho de ir.

— Vais para casa ter com a tua mulher?

— Para.

— Então porquê?

Ele não responde.

— Sabes que sim. Vou sempre. Porquê tornar as coisas difíceis?

— Não foi uma noite agradável?

— É sempre.

— Então, porque é que não ficas? É sexta-feira. Preparo-te waffles para o pequeno-almoço.

— Eu não como waffles ao pequeno-almoço aos sábados.

Silenciosamente, ele fecha a porta atrás de si. Ruidosamente, ela dá duas voltas na fechadura e tranca a porta com a corrente de segurança. Se pudesse, usava até um cadeado.

Ele está na rua, em Amesterdão. Na estrada, circulam apenas táxis. Os passeios estão vazios, os poucos frequentadores dos bares vagueiam entre um e outro. Os semáforos alternam entre verde, amarelo, vermelho. Antes de chamar um táxi para regressar a casa, ele afasta-se vinte quarteirões a pé da zona dos bares abertos, às três da manhã, sozinho.


PARTE I
NO COMEÇO

 


Achas que és livre? Livre de quê?

O que importa isso a Zaratustra?

Mas os teus olhos devem dizer-me

claramente: livre para quê?


FRIEDRICH NIETZSCHE


1

Aparentando ser uma coisa quando de facto é outra


1, 18, 24, 39, 45, 49.

E de novo:

1, 18, 24, 39, 45, 49.

Realidade: algo que tem existência real e com que se tem de lidar na vida real.

Ilusão: algo que engana a lógica mental por aparentar existir quando não existe, ou aparentar ser uma coisa quando de facto é outra.

Milagre: um acontecimento que aparenta ser contrário às leis da natureza.

49, 45, 39, 24, 18, 1.

Lily fitava os seis números na secção metropolitana do The Sunday Daily News. Pestanejou. Esfregou os olhos. Coçou a cabeça. Algo não estava bem. Amy não estava em casa, não havia a quem perguntar, e os olhos de Lily pregavam-lhe partidas frequentemente. Lembram-se no ano passado, na sala de partos, quando ela achou que a irmã teve um menino e gritou «É menino!», porque todos queriam um rapaz, e afinal era mais uma rapariga, a quarta? Como é que a mente dela pôde adicionar ali um pénis? O que é que estava errado com ela?

Saindo do apartamento, percorreu o corredor estreito para bater à porta da velha Colleen, no 5F. Felizmente, Colleen estava sempre em casa. Infelizmente, Colleen estava quase cega desde os tempos da fome da batata, quando ainda era uma donzela, como Lily descobriu para seu desalento, porque Colleen leu 29 em vez de 49 e 89 em vez de 39. No momento em que Colleen acabou de ler os números, Lily estava ainda menos certa deles.

— Não te preocupes com isso, minha querida — disse Colleen gentilmente. — Toda a gente pensa estar a ver os números vencedores.

Lily queria dizer, ela não, não ela, eu não, que como sempre era só uma mancha no céu refletido. Eu não vejo números vencedores. Posso ver pénis, mas não imagino portais do universo que nunca se abrem para mim.

Lily nasceu americana de segunda geração, a mais nova dos quatro filhos de uma mãe doméstica que sempre quis ser economista, e de um pai jornalista do Washington Post que sempre quis ser romancista. Adorava desporto e não ajudava particularmente com as crianças. Alguns poderiam chamar-lhe insensível e preocupado. Lily não.

A sua avó era merecedora de mais do que um parágrafo no sumário da vida de Lily nessa conjuntura peculiar, mas enfim... Na história de Lily, uma Klavdia Venkewicz nascida em Danzig, fugiu com o seu bebé — a mãe de Lily —, de uma Polónia ocupada pelos nazis através da Alemanha destruída. Após vários anos em três campos de refugiados, conseguiu meter-se num barco para Nova Iorque com a criança. Chamou Olenka ao bebé, mas mudou-o para um nome mais americanado, tal como mudou o seu de Klavdia para Claudia e Venkewicz para Vail.

Lily viveu a vida toda em torno da cidade de Nova Iorque. Morou em Astoria, Woodside e Kew Gardens, e quando subiram realmente na vida, em Forest Hills, tudo nas redondezas de Queens. O sonho dela era morar em Manhattan e agora estava a vivê-lo, mas a vivê-lo falida.

Quando George Quinn, que era o correspondente do Post em Nova Iorque, foi transferido de repente para D.C. devido a uma reestruturação para controlo de custos, Lily recusou ir e ficou com a avó em Brooklyn, a frequentar a Escola Secundária de Forest Hills para acabar o último ano. Esse é que foi um ano louco, sem supervisão parental. Acalmando ligeiramente, foi para a City College de Nova Iorque, na 138th Street em Harlem, em parte porque não tinha dinheiro para ir para mais lado nenhum, tendo os seus pais gasto todo o fundo universitário com o irmão, que foi para Cornell. A mãe, felizmente levada pela culpa de ter ido à falência à custa de Andrew, pagava a renda de Lily.

Quanto às escassas rações de amor juvenil, Lily, demasiado calma para Nova Iorque, viveu quase sem elas até encontrar Joshua — um empregado de mesa que queria ser ator. O cabelo ruivo não foi o que a atraiu. Foram o sofrimento passado e os sonhos futuros; Lily carecia um pouco de ambas as coisas.

Lily gostava de dormir até tarde e de pintar. Mas acima de tudo, de dormir até tarde. Desenhava caras inacabadas e rebocadores em papel, rabiscos em contratos, lírios pelas paredes e murais com barcos e manchas de água. Esperava nunca ter de sair do apartamento porque nunca poderia duplicar o trabalho. Teve uma relação séria com Joshua até descobrir que ele não tinha uma com ela. Lia intensivamente mas de forma esporádica, gostava genuinamente das suas Natalie Merchant e Sarah McLachlan e adorava doces: chocolates, gomas com cobertura de chocolate, Oreos com recheio duplo de chocolate, bolachas Chips-Ahoy e bolo de chocolate com ou sem cobertura.

Uma das suas irmãs, Amanda, era a mãe modelo de quatro meninas modelo e a esposa suburbana modelo de um marido suburbano modelo. A outra irmã, Anne, era uma mulher com uma carreira modelo, jornalista financeira do KnightRidder, frequente e imperfeitamente empenhada, mas sempre impecavelmente vestida. O irmão, Andrew, era congressista dos Estados Unidos. Cornell tinha compensado.

As coisas mais interessantes na vida de Lily aconteciam às outras pessoas e era assim que ela gostava. Gostava de reunir-se com Amy, Paul, Rachel e Dennis às primeiras horas da manhã a ouvir as suas histórias de vida sobre amor violento, experimental, andar à boleia ou orgias na praia de South Miami. Gostava que os outros fossem jovens e inconsequentes. Para ela própria, gostava que os seus baixos não fossem demasiado baixos e que os seus altos não fossem demasiado altos. Absorvia os sonhos de Amy, os sonhos de Joshua, os sonhos de Andrew, ia ao cinema três dias por semana — ah, a emoção indireta que vinha deles! Serpenteava alegremente pelas ruas de Nova Iorque, lia o jornal em St. Mark’s Square e vivia no presente, dormindo, pintando, dançando, sonhando com um futuro que não conseguia imaginar. Lily adorava a sua vida avulsa, até ontem e hoje.

Hoje, isto. Seis números.

E ontem, Joshua.


Dez coisas boas sobre acabar com o Joshua:

10. A TV está sempre desligada.

9. Não tenho de dividir o meu café e bagel com ele.

8. Não tenho de fazer de conta de que gosto de hóquei, sushi, golfe, quiche ou de atores.

7. Não tenho de ouvi-lo queixar-se acerca da pouca sorte que tem na vida.

6. Não tenho de ouvir nada sobre o pai negligente, a mãe inexistente.

5. Não tenho de fazer um piercing no umbigo só porque ele gosta.

4. Não tenho de ficar acordada até às quatro da manhã a fazer de conta que temos interesses em comum.

3. Acabaram-se as toalhas molhadas em cima da minha cama.

2. Não tenho de culpá-lo pelo rolo vazio do papel higiénico.


E o número um das coisas boas sobre acabar com o Joshua é:

1. Não tenho de me sentir mal acerca das minhas mamas pequenas.


Dez coisas más sobre acabar com o Joshua:

10. Há

9. Coisas

8. Em

7. Ti

6. Que

5. Eu

4. Nunca

3. Poderia

2. Amar.

 

Bem, o número um das coisas más sobre acabar com o Joshua...

1. Sem ele não consigo pagar a renda.


1, 18, 24, 39, 45, 49.


O cabelo dava-lhe pelas costas, mas na semana anterior, depois de ele partir, tinha-o cortado pelo pescoço, como as raparigas fazem frequentemente quando acabam com os namorados. Corte, corte. Agradava a Lily sentir-se tão realizada. Para ela significava que não estava a mergulhar no desespero.

Agora, quase sem precisar de pentear o cabelo rebelde, Lily agarrou no casaco e saiu do apartamento. Dirigiu-se à mercearia onde tinha comprado o bilhete. Depois de ter descido quatro dos cinco lanços de escadas, arrastou-se de volta para cima, para se calçar. Quando finalmente chegou à loja na esquina da 10th com a Avenue B, abriu a boca, procurou atabalhoadamente no bolso e apercebeu-se que tinha deixado o bilhete ao pé da sapateira.

Resmungando de frustração, a contrair os músculos faciais, Lily fez uma careta ao empregado, um homem do Médio Oriente sem graça com uma barba preta sem graça, e foi para casa. Nem sequer procurou mais o bilhete. Viu os contratempos como sinal, sabia que os números não podiam estar certos, não podiam. Não os do seu bilhete de lotaria! Deitou-se na cama de Amy e esperou que o telefone tocasse. Olhou pela janela, tentando esvaziar a mente. As janelas do quarto estavam viradas para o pátio interior de vários edifícios de apartamentos. Tinha muitas árvores verdejantes e jardins compridos e estreitos. A maioria das pessoas não fechava os estores das janelas do lado interior. As árvores, a relva, eram vistos como escudos do mundo. Talvez escudos do mundo, mas não dos olhos de Lily. Afinal que raio de tarado é que ficava a olhar para as janelas de outras pessoas?

Lily observava as janelas de outras pessoas. Observava a vida de outras pessoas.

Um homem estava sentado a ler o jornal de manhã. Esteve sentado durante duas horas. Lily desenhou-o para a aula de arte. Desenhou outra senhora, uma jovem que, depois do banho, se debruçava sempre à janela e olhava para as árvores. Para a aula de improvisação, desenhou o seu favorito — o casal de solteiros que andava nu de manhã e à noite tinha sexo de luz acesa e persianas abertas. Via-os por trás das próprias persianas, envergonhada por ela e por eles. Obviamente eles pensavam que só os demónios os observavam, a julgar pelas coisas malandras que faziam. Lily sabia que não eram casados porque quando ele não estava em casa, ela lia a revista Today’s Bride e depois discutia com ele todos os sábados à noite depois de beberem.

Lily desenhou muitas vezes o gato deles. Mas hoje pegou no bloco de esboços e sem pensar rascunhava a lápis o número 49, 49, 49, 49, 49, 49, 49, 49, 49, 49, 49. Não podia ser, pois não? Era apenas um erro cósmico? Claro! Claro que era, os números podiam estar corretos, mas eram de uma data diferente: quantas vezes tinha ouvido aquilo? Levantou-se num salto para verificar.

Não, não. Os números correspondiam. A data também batia certo.

Foi até ao quarto de Amy. Ela e Amy iam hoje ao cinema, mas Amy não estava em casa e não havia sinal dela. Não tinha voltado de onde quer que tivesse estado ontem.

Lily esperou. Amy dava sempre a ideia de voltar num instante.

Lily. A mãe dela tinha-se esquecido de colocar-lhe o terceiro L no nome. Apesar de ela própria ser uma Allison com L duplo. Oh, por amor da santa, em que é que estava a pensar? Lilianne tinha ciúmes do duplo L da mãe? Onde é que a sua mente queria chegar com isso? Longe de seis números. Longe de 49, 45, 39, 24, 18, 1.

Tomou um duche. Secou o agradável cabelo arrapazado, deu uma olhadela ao The Daily News e resolveu-se pela sessão das 2h15 do The Butcher Boy, no Angelica.

Quando passou pela mercearia, ocorreu-lhe uma coisa e, inspirando profundamente, entrou.

— Desculpe — disse Lily, tossindo em desconforto agudo —, qual é o valor do último prémio da lotaria? — Sentia-se ridícula só por perguntar. Tinha o rosto pálido corado.

— Para quantos números? — perguntou asperamente o empregado.

Sem olhar para ele, Lily pensou em não responder. Finalmente disse para as barras de chocolate com amêndoa:

— Todos eles.

— Os seis? Vamos ver...Ah, sim, dezoito milhões de dólares. Mas depende de quantos ganham.

— Claro. — Recuou na loja.

— Normalmente, ganham algumas pessoas.

— Pois...

— Saíram os seus números?

— Não, não.

Lily saiu tão depressa quanto podia.

O 18 era um dos números. E o 1 também.

 

Aquilo foi em abril. Depois de Joshua, Lily renunciou aos homens para a vida, concluindo que não havia um único solteiro decente em toda a área triestatal, exceto Paul que era incontestavelmente gay (como se houvesse outro modo de sê-lo). Rachel continuou a oferecer-lhe os seus serviços algo indesejados de casamenteira; Paul e Amy continuaram a oferecer os seus bem-vindos serviços de apoio. Foram ver outros filmes para além de The Butcher Boy e The Phantom Menace e reuniam-se a qualquer hora para beber tequila e discutir os vários pontos negativos de Joshua, para fazer Lily sentir-se melhor. E por fim, tanto a tequila como as discussões surtiam o efeito desejado.

Fazendo, por enquanto, arte mural do seu bilhete de lotaria, Lily afixou-o com pioneses vermelhos no quadro de cortiça onde tinha colocado toda a espécie de pedacinhos da sua vida: fotos dela com o irmão, algumas das duas irmãs, fotos da avó, das seis sobrinhas, do pai, do gato que morreu cinco anos antes de leucemia felina, de Amy, notas da faculdade (não muito boas) e até do secundário (não muito melhores). A parede costumava ter fotos de Joshua, mas retirou-as, desenhou em cima da cara dele, apagando-o e deixando um buraco negro, e depois colocou-as de novo. E agora o bilhete de lotaria também era arte.

Amy, que se orgulhava de só ler o The New York Times, nunca leu um jornaleco como o The Daily News. E como não lia, não sabia o que a avó de Lily sabia e levou ao seu conhecimento numa quinta-feira em que ela estava de visita.

Antes de sair, bateu à porta de Amy. Quando não houve resposta, abriu-a ligeiramente, chamando «Ames?» Mas a cama estava feita, a colcha feita à mão em forma de coração, branca, esticada simetricamente em todos os cantos.

Agarrada à maçaneta, Lily olhou em redor, e quando não viu nada que a detivesse, fechou a porta. Deixou um bilhete a Amy na porta. «Ames, sempre vamos ver ou The Mummy ou The Matrix amanhã? Liga-me para casa da minha avó para me dizeres. Beijinhos, Lil.»

Foi até à Barnes & Noble, em Astor Place, e comprou os números de junho de Ladies Home Journal, Redbook, Cosmopolitan (a avó gostava de estar a par do que «os jovens andavam a fazer») e também levou cópias de National Review, American Spectator, The Week, The Nation e The Advocate. A avó gostava de saber o que toda a gente andava a fazer. Na casa da avó, a televisão estava sempre ligada, imagem sobre imagem, a CNN no ecrã pequeno, o canal estatal no grande. A avó não gostava de ouvir a CNN, apenas de ver as bocas deles a mexer. Quando havia sessão no Parlamento, sentava-se numa cadeira confortável, com as revistas à volta, de óculos postos e via e ouvia cada votação. «Quero saber o que anda a fazer o teu irmão.» Quando não havia sessões no Parlamento, ficava completamente perdida, e durante semanas andava a arranjar coisas na cozinha, a limpar obsessivamente ou a beber canecas de café forte sem fim, enquanto lia as suas revistas e ocasionalmente via o canal estatal para saber notícias parlamentares do Reino Unido. À pergunta sobre o que ela faria se não houvesse canal estatal, a avó responderia: «Eu não estava viva antes do canal estatal.»

Morava na rua Warren, em Brooklyn, entre a Clinton e a Court, numa casa de pedra em mau estado, mais estragada pelas grades nas janelas do que pelo desarranjo dos degraus da frente. E não era apenas nas janelas ao nível da rua. Ou nas da sala. Ou nas do segundo ou terceiro andar. Mas em todas as janelas. Todas as janelas da casa, quatro andares, à frente e atrás, estavam cobertas de grades de ferro. A própria fachada de pedra do edifício estava a desmoronar-se, mas as grades estavam impecáveis. A avó, por razões que nunca se descobriram, não se tinha aventurado uma única vez fora de casa em seis anos. Nem uma vez.

Lily tocou à campainha.

— Quem é? — ladrou uma voz, após um minuto.

— Sou eu.

— Eu, quem? — perguntou de modo estridente.

— Eu, a tua neta.

Silêncio.

— Lily. Lily Quinn. — Fez uma pausa. — Costumava viver contigo. Venho cá todas as quintas.

Uns minutos depois, ouvia-se o barulho da porta de vestíbulo a destrancar, das três fechaduras a abrir, da corrente a cair e depois o som das três fechaduras da porta da frente a abrir, de uma tranca de titânio a deslizar e outra corrente a cair e, finalmente, depois da porta da frente ser aberta, só uma fresta, talvez com 20 cm e uma voz apressada:

— Entra, entra. Não percas tempo.

Lily comprimiu-se pela abertura, perguntando-se se a avó abriria mais a porta se Lily fosse mais larga. Abriria mais a porta a Amanda, por exemplo, que tinha tido quatro crianças?

Lá dentro estava fresco e escuro e cheirava como se o local não tivesse sido arejado durante semanas.

— Avó, porque não abres as janelas? Está abafado.

— Hoje não é o Memorial Day, pois não? — respondeu a avó, uma mulher pequena de cabelo branco, forte e de semblante sério, que arrancou os sacos das mãos de Lily e carregou-os energicamente para a cozinha, nas traseiras da casa.

A casa da avó estava arrumada à exceção da pilha de jornais em cima da mesa redonda da cozinha, primeiro o The New York Times, depois o The Observer, o The Wall Street Journal e então os tabloides, Newsday, Post e News.

— Queres uma chávena de chá?

— Não, tenho de ir andando em breve.

— Ir andando? Acabaste de chegar!

— É a última semana de exames finais, avó. Talvez já tenhas ouvido falar. — Lily sorriu, para o caso de a avó decidir ficar ofendida.

— Ouvi, ouvi bastante. Como está o metro esta manhã?

— Está bem...

— Claro, já nem te dás ao trabalho de fingir uma resposta educada. Ficaste longe da linha amarela?

— Fiz melhor do que isso — disse Lily, colocando o leite no frigorífico. — Sentei-me no banco.

A avó contorceu-se.

— Lily, como é que isso é melhor? Sentares-te naquele banco coberto de sujidade? Quantas daquelas pessoas que lá se sentaram antes de ti lavaram a roupa nessa manhã? E estão sentadas ao pé de ti, a respirar para cima de ti, a observar-te por cima do ombro, a ver o que estás a ler, a ouvir as canções do teu Walkman, tamanha perda de privacidade. Todos os sem-abrigo se sentam naquele banco.

Lily quis contrapor que não, que todos os sem-abrigo estavam deitados nas escadarias da igreja da 53th Street na Quinta Avenida, mas não disse nada.

— A partir de agora, dou-te dinheiro e apanhas um táxi para me vires ver.

Lily teve vontade de abotoar o casaco, caso tivesse um vestido.

— Então, o que se passa contigo?

— Eu digo-te o que se passa — respondeu a avó, Claudia Vail, 79 anos, viúva, sobrevivente de guerra, sobrevivente de campo de concentração, todas as cataratas removidas, um novo pacemaker instalado, artrite sob controlo, sem protuberâncias, altos ou distensões misteriosas, mas viúva em primeiro lugar e acima de tudo. — No domingo, uma criança caiu de um sexto andar e morreu. Isto num domingo. O que é que os pais estão a fazer sem ser tomar conta do próprio filho num domingo? Na segunda, uma menina de cinco anos foi apunhalada e morta pelo irmão e um amigo, que supostamente deviam estar a tomar conta dela. Quando regressou a casa do trabalho, a mãe disse: ‘Não parece nada dele. Normalmente é tão bom rapaz.’ Depois descobrimos que o rapaz, de 11 anos, já tinha passado três anos num reformatório por ter espancado a avó cega. A mãe aparentemente ignorou esse facto quando deixou a criança com ele.

— Avó — proferiu Lily debilmente, levantando as mãos num gesto de defesa.

— Na sexta-feira passada, um casal vegano foi preso em Canarsie por ter alimentado a filha com soja e tofu desde o dia em que nasceu. O leite daquela mãe deve ter secado, pois aos 16 meses, a criança pesava 4,5 quilos, o peso de uma criança de dois ou três meses.

— Avó — disse Lily, impotente. A sua avó encurralava-a entre ela própria e o frigorífico. Pelo seu olhar, Lily sabia que estava longe de ter acabado —, aconteceu alguma coisa no sábado?

— No sábado, a tua irmã e aquele homem imprestável dela vieram visitar-me...

— Qual delas?

— E eu disse-lhe — continuou Claudia — que ela tinha sorte em não ter filhos.

— Ah, essa. Avó, se a vida não é boa aqui porque não te mudas? Muda-te para Bedforf, com a Amanda. Nunca acontece nada em Bedford. Daí o nome. Cidade das camas.

— Quem disse que a vida não é boa aqui? A vida é perfeita. E estás louca? Viver com a Amanda e as quatro filhas? Para que ela possa tomar contar de mim também? Porque é que haveria de lhe fazer isso? Porque é que haveria de fazer isso a mim própria?

— O José trouxe as tuas compras esta semana? A cozinha parece um pouco vazia.

— Já não. Despedi-o.

— Despediste-o? — Lily ficou alarmada. Não por causa da avó, mas por ela própria. Se o José já não entregava as compras, então quem ia fazê-lo? — Porque é que o despediste?

— Porque no jornal de domingo passado havia uma história de uma mulher idosa como eu que tinha sido roubada pelo moço das entregas, roubada e violada, acho.

— Foi o José? — perguntou Lily, tentando não parecer aborrecida e a lutar para não coçar a ponta do nariz.

— Não, não foi o José. Mas todo o cuidado é pouco, não é, Liliput?

— Sim, com certeza que sim.

— A tua porta está trancada? A do teu quarto? — A avó abanou a cabeça. — Ainda vives com aqueles vagabundos, aqueles dois que nem conseguem manter o lava-louça limpo? Sim, o teu pai contou-me sobre a visita dele ao teu lar. Contou-me o chiqueiro que estava. Quero que procures um novo lugar, Lil. Procura um novo lugar. Eu pago os serviços da imobiliária.

Lily fitava a avó em tal confusão que, por um momento, pensou realmente nunca ter falado com a avó acerca das suas condições de vida, ou se teria havido demasiadas mudanças de casa para a avó conseguir acompanhar.

— Avó — disse, lentamente —, eu não vivo com esses vagabundos, como gostas de chamá-los, há anos. Estou a viver com a Amy num apartamento diferente, lembras-te? Na 9th Street, na Avenue C? — Olhou para a avó com preocupação.

A avó ficou perdida no pensamento.

— 9th Street, 9th Street — murmurava —, porque é que isso me faz lembrar de alguma coisa?

— Bem, porque eu moro lá?

— Não, não. — Claudia fixava o infinito. De repente o olhar fixo desfez-se. — Ah, sim! No sábado passado, no mesmo dia do assalto e violação da idosa, havia uma pequena notícia no Daily News. Aparentemente, há três semanas, houve um bilhete de lotaria premiado numa pequena loja na esquina da 10th Street com a Avenue B, e o vencedor ainda não foi levantar o prémio.

Lily ficou completamente muda, tirando o som sibilante do seu pestanejar, ensurdecedor até para ela própria.

— Ah, sim? — disse sem conseguir pensar em mais nada. A torneira do lava-louça deixou pingar algumas gotas de água. O sol brilhava pelas janelas.

— Já pensaste? O The News publica os números todos os dias na esperança de que a pessoa os reconheça e apareça. Dezoito milhões de dólares — soletrou. — Imagina! Por falar nisso, publicam os números tantas vezes que já os sei de cor. Alguns deles, até eu os podia ter escolhido. Quarenta e nove, o ano em que vim para a América, trinta e nove, o ano em que o meu Tomas foi para a guerra. Quarenta e cinco, a minha Marcha Fúnebre — palrava ela com deleite e desaprovação. — Costumas ir àquela loja?

— Bem, já não.

— Talvez esteja perdido — disse Claudia. — Talvez esteja algures num esgoto porque caiu do bolso do vencedor. Presta atenção aos passeios nas redondezas do teu prédio, Liliput. Um bilhete de lotaria por assinar é um título ao portador.

— Um quê?

— Um título.

— O que é que isso quer dizer?

— Quer dizer — explicou Claudia — que pertence ao portador. Se o encontrares, é teu.

Porque é que Lily quis imediatamente ir para casa assinar o seu bilhete?

— Quais são as probabilidades de encontrar um bilhete premiado, avó?

— Maiores do que a probabilidade de ganhar um — respondeu Claudia em tom resoluto. — Então, como está a Amy? É aquela que passou o último Dia de Ação de Graças connosco em vez daquele teu namorado imprestável? Como é que ele está?

Há algum homem que não seja imprestável?, pensou Lily, mas estava demasiado envergonhada para perguntar, uma vez que parecia que a sua avó estava certa pelo menos acerca de Joshua. Era altura de lhe contar.

— Ela está boa, e... já não estamos juntos. Ele saiu de casa há um mês.

Por um momento, a avó ficou calada, erguendo de seguida os braços em direção ao teto.

— Afinal, Deus existe! — exclamou.

A cara de Lily não devia transparecer o mesmo nível de alegria infinita, pois Claudia disse:

— Oh, vá lá. Devias estar contente por te veres livre dele.

— Bom, não tão contente como tu.

— É um vadio. Ias sustentá-lo para o resto da vida, da mesma forma que a tua irmã sustenta o namorado imprestável dela. — E continuou a falar, sem intervalo. — A Amy vai licenciar-se contigo daqui a umas semanas?

— Comigo não — respondeu evasivamente Lily. Não queria mentir, mas também não queria dizer à avó que Amy ia mesmo licenciar-se.

— Quando é exatamente?

— A 28 de maio, acho eu.

— Achas?

— Está tudo bem, avó. Não te preocupes.

— Vem para a sala — disse Claudia. — Quero falar contigo sobre uma coisa. Não é sobre a guerra. Guardo isso para o jogo de póquer de sábado. — E sorriu. — Vens?

— Não posso. Tenho de trabalhar. — Sentaram-se no sofá coberto com plástico. — Avó, vives aqui, porque é que não tiras a cobertura disto? É o que as pessoas fazem quando moram nalgum sítio. Tiram os plásticos.

— Não quero sujar a minha mobília. Afinal, vais ficar com ela quando eu morrer. Sim, sim, não protestes. Vou deixar-te a minha mobília. Não tens nenhuma. Agora para de abanar a cabeça e vê o que tenho para ti.

Lily viu. Nos dedos, a avó segurava um bilhete de avião.

— Para onde é que vou?

— Maui.

Lily abanou a cabeça.

— Oh, não. De modo algum!

— Sim, Lily. Não queres ver o Havai?

— Não! Quer dizer, sim, mas não posso.

— Comprei-te um bilhete em aberto. Vai quando quiseres o tempo que quiseres. Provavelmente é melhor ires em breve, antes de arranjares um emprego a sério. Vai ser bom para ti.

— Não, não vai.

— Vai, sim. Pareces desgastada ultimamente, como se não andasses a dormir. Vai bronzear-te.

— Não quero dormir, não me quero bronzear, não quero ir.

— Vai ser bom para a tua mãe.

— Não, não vai. E o meu trabalho?

— O quê, não me digas que o Noho Star é o único restaurante em Manhattan?

— Não quero outro trabalho a servir à mesa.

Claudia apertou as mãos de Lily.

— Tens de pensar para além de servir à mesa, Liliput. Vais acabar a faculdade. Passados seis anos, finalmente! Mas neste momento, a tua mãe precisa da tua ajuda no Havai.

— Porque é que dizes isso?

— Digamos — disse a avó de forma evasiva — que acho que se sente sozinha. A Amanda está ocupada com a família. A Anne é ocupada, nem sei bem com o quê. Bem, eu sei que ela faz de conta que trabalha, mas então porque é que está sempre sem dinheiro? O teu irmão também está ocupado, mas uma vez que está a governar o nosso país, dou-lhe um desconto por não ligar mais vezes à própria mãe. A tua mãe sente-se muito isolada.

— Mas o Papi está com ela. Ele reformou-se para estar com ela!

— Sim, pois, não sei como está a correr a história da reforma. Para além disso, conheces o teu pai. Mesmo quando está lá, não está.

— Dissemos-lhes para não se mudarem para o Havai. Avisámo-los sobre a febre, sobre o isolamento. Nós avisámos.

— E então? Eles têm sessenta anos. Tu tens vinte e quatro e não ouves. Porque é que eles haveriam de ouvir?

— Porque temos razão.

— Oh, Liliput, se todos ouvissem as pessoas que têm razão, não haveria sofrimento no mundo. E, no entanto, queres que te descreva a semana passada de novo?

— Não, não.

— Houve sofrimento?

— Algum, sim.

— Vai ter com a tua mãe. Ou escreve o que te digo, vai haver sofrimento aqui também.

Lily lutou para se levantar do sofá amarelo coberto com celofane amarelado que um dia haveria de ser seu.

— Há lá sofrimento em grande quantidade, avó.

 

Estava a vacilar em relação ao Havai como vacilava em relação a tudo, penosamente. Amy insistia que Lily devia decididamente ir. Paul achava que ela devia ir. Rachel achava que ela provavelmente devia ir. Rick, do Noho Star, disse que lhe dava um mês de férias agora, antes de todos os miúdos regressarem da universidade e haver movimento de verão.

Ligou ao irmão no fim de semana para saber o que ele achava. Atendeu a mulher, que disse:

— Ah, és tu.

E então Lily ouviu ao telefone:

— ANDREW! É a tua irmã! — E quando o irmão perguntou qualquer coisa, Miera respondeu: — Aquela que precisa sempre de dinheiro.

E Andrew atendeu a rir, dizendo:

— Miera, tens de ser mais específica do que isso.

Lily também se riu.

— Andrew, não preciso de dinheiro. Preciso de conselho.

— Sou rico nisso. E ainda te mando alguns trocos se quiseres.

A voz dele fazia-a sempre sorrir. Toda a vida a fez sorrir.

— Podes almoçar comigo na próxima semana?

— Não posso, o Congresso está em sessão. O que se passa? Eu ia ligar-te. Nem acreditas quem está comigo.

— Onde?

— Em D.C.

— Quem?

— O nosso pai, Lil.

— O quê?

— Pois.

— Ele está em D.C.? Porquê?

— Olha que não pareces ser a filha jornalista, com tantas questões. Porquê, não sei. Saiu de Maui com duas grandes malas. Acho que está a pensar em voltar ao ativo. As palavras exatas? ‘Não é nada de grave, filho. Só estou aqui para ajudar na transição para o Greenberger, que vai ficar no meu lugar.’

— O que significa...

— O que significa, não aguento nem mais um dia com a tua mãe.

— Oh, Andrew, que situação. — Lily enterrou as unhas na palma das mãos. — Não admira que a avó me tenha comprado um bilhete para Maui. É tão dissimulada, aquela avó. Nunca se abre e diz exatamente o que quer. Está sempre ocupada a manipular.

— Sim, ela quer que faças o que ela quer, mas pelos teus próprios meios.

— Muito provável. Quando é que o Papi vai voltar? Não quero ir a não ser que ele esteja lá.

— Vais esperar a vida toda. Não me parece que ele vá voltar.

— Para.

— Onde estás?

— Em casa, porquê?

— Estás... sozinha?

— Sim. — Lily baixou a voz. — O que me queres dizer?

— Estás sentada... a ouvir?

— Sim.

— Vai já para Maui, Liliput. Nem acredito que vou dizer isto, mas deves ir. Mesmo. Sai da cidade por uns tempos.

— Nem acredito que estás a dizer isto. Não te vejo a ir.

— Eu iria se não estivesse tão assoberbado. Esquartejado, mas ia.

— Pois, exatamente.

— Referi... esquartejado de bom grado?

Depois de darem umas boas risadas, Andrew e Lily fizeram um acordo — ele cuidava do pai em D.C., entre presidir ao comité das dotações e trabalhar na proposta de lei 2740 sobre subvenções agrícolas, e ela iria acalmar a mãe, entre banhos de sol e arrancar cabelos.

— Andrew, é verdade o que a Amanda me contou, que te vais candidatar a um lugar no Senado no próximo outono?

— Estou a pensar nisso. Ando a explorar as minhas opções, a formar uma comissão. Não quero fazê-lo se não for para ganhar.

— Muito bem, Andrew, o que posso fazer? Trabalho na campanha por ti de novo. Eu e a Amy.

— Bem, as meninas vão estar demasiado ocupadas com as vossas novas vidas, a deixar a escola, a arranjar empregos verdadeiros, para me ajudarem no outono. Mas obrigado na mesma. Tenho de ir. Eu telefono-te para Maui. Queres que te empreste algum dinheiro?

— Sim, por favor. Mil? Eu depois pago-te.

— Claro. É por isso que continuas a comprar bilhetes de lotaria todas as semanas? Para me pagares de volta?

— Sabes, — disse Lily — deixei de comprar esses bilhetes de lotaria. Adoro-te.

— Também te adoro, miúda.


2

Havai


O Havai não era a Polónia. Não era a terra húmida do Norte de Danzig, o Danzig chuvoso, frio, pantanoso e infestado de mosquitos de onde Allison tinha saído durante a guerra. O Havai era a antítese da Polónia. Há dois anos, a mãe e pai de Lily tinham ido numa viagem de investigação a Maui e voltaram, no final de uma breve visita, com uma casa de 200,000$. Aparentemente, aprenderam tudo o que podiam sobre Maui em duas semanas — como a adoravam, quão bela era, limpa, calma, quão frescas eram as mangas, quão delicioso o atum cru, quão quente era a água e como iam apreciar a aposentação ali.

Lily sabia como o pai estava a encarar a reforma, apreciando-a agora no apartamento de congressista do seu único filho, na capital da nação.

Como é que a mãe estava a lidar com o Havai, Lily não sabia dizer para já, pois ela não estava no aeroporto de Kahului para ir buscá-la.

Depois de ter esperado um tempo considerável — nem um segundo para além dos noventa minutos —, ligou à mãe, que atendeu o telefone com um ar estremunhado. Lily apanhou um táxi. A estrada estreita entre o desfiladeiro que conduzia ao lado sul de Maui, a Kihei e Wailea, onde os pais viviam, era bonita, mas tornou-se de alguma forma menos atrativa devido à irritação de Lily por a mãe não ter aparecido. Tocou à campainha durante vários minutos e acabou por ter de ser ela a pagar ao taxista (35$, o equivalente ao total de gorjetas de um turno matutino de quatro horas). Após tocar à campainha, Lily tentou abrir a porta e encontrou-a destrancada. A mãe estava a dormir no quarto, em cima da cama, e não acordava.

Algumas horas depois, Allison saiu a tropeçar do quarto. Lily estava a ver televisão.

— Estás aqui — disse, agarrando-se ao corrimão que acompanhava os dois degraus da entrada até mais abaixo, à sala funda.

Lily levantou-se.

— Mãe, era suposto teres ido buscar-me ao aeroporto.

— Não sabia que vinhas hoje — disse a mãe. — Pensei que vinhas amanhã. — Falava lentamente. Vestia um robe e o seu cabelo curto estava grisalho, tinha parado de pintá-lo. Tinha a cara inchada, os olhos quase fechados pelo inchaço.

Lily ia levantar a voz, dizer uma série de coisas severas, mas a mãe parecia péssima. Não estava habituada a isso. Habitualmente, a mãe estava perfeitamente penteada, perfeitamente maquilhada, perfeitamente vestida, perfeita. Lily virou o seu olhar frustrado novamente para a televisão. Allison ficou parada por um momento, depois encolheu os ombros e saiu da sala. Lily levantou-se de seguida e foi para a cama no quarto do pai. Claro que a avó tinha razão — alguma coisa precisava de ser tratada. Mas Lily era a filha e Allison a mãe. Não era suposto a filha tratar da mãe. A mãe devia tratar da filha. Era essa a ordem natural das coisas no universo.

Na manhã seguinte, Allison apareceu toda fresca, de banho tomado, com rímel e batom na cara. O cabelo estava penteado, apanhado, as sobrancelhas arranjadas. Até as unhas estavam pintadas. Pediu desculpa pelo contratempo do dia anterior e fez ovos e café enquanto falavam um pouco sobre a vida de Lily. E foi então que Lily lhe deu as más notícias, disse-lhe que achava que não se ia licenciar nesse ano pois pensava não ter créditos suficientes.

— Quantos créditos te faltam? — perguntou Allison.

— Alguns.

— Espera até o teu pai descobrir.

— Mãe, já não me podes ameaçar com o pai. Tenho 24 anos.

— Por acaso, já reparaste que o teu pai não está aqui?

Lily tossiu.

— Reparei. O Andrew disse-me que ele está em D.C..

Agora era Allison que tossia.

— Sim, pois. Ele disse que ia em negócios como freelance. Disse que o Andrew lhe tinha pedido ajuda na preparação da campanha de outono. É tudo mentira. É só o que ambos fazem, mentir. — Voltando-se, levantou-se e foi para o quarto. Quando Lily foi lá bater para perguntar se ia com ela à praia, Allison disse que não lhe apetecia ir.

A praia de Maui não conseguia evitar apagar algum do azedume na boca de Lily. Imaginou estar ali com Joshua, tendo dinheiro, um carro, a mergulhar, a observar as baleias, em passeios de bicicleta ao amanhecer até aos vulcões, em caminhadas nas florestas tropicais, nadar em água que, para seu grande entusiasmo, parecia ouro líquido. Era o suficiente para se deprimir com a própria situação e esquecer a mãe. E que mais queria uma pessoa do paraíso senão esquecer os problemas da mãe e recordar os próprios?

Estranhamente, o Havai era capaz até de ajudar a superar desilusões amorosas, pois parecia, cheirava e dava a sensação de que Deus nos estivesse a observar de perto. Nunca tinha visto água tão verde, céu tão azul ou rododendros tão vermelhos. Nunca tinha visto ninguém tão feliz como o homem que balançava numa cama de rede no seu quintal sobre o oceano, a ler um livro. Lily não percebia como ele conseguia ler. Não se conseguia desviar o olhar do oceano. Não tinha calor e quando entrou na água não ficou com frio. A água e o ar estavam à mesma temperatura. Quando acabou de nadar e voltou, não se sentiu molhada. Achou que não conseguia bronzear-se com um tempo tão ameno, mas quando afastou a tira do fato de banho, viu branco por baixo e, ao lado, pele que definitivamente não estava branca. Isso fê-la ficar incrédula e feliz e quando regressou estava pronta para a aproximação.

Mas no apartamento escurecido, Allison ainda estava deitada e Lily, não querendo incomodar a mãe, foi para o seu próprio quarto. Eram apenas quatro da tarde.

Fez uma sesta e, às seis, quando saiu, estava a mãe a engomar uma camisola na sala, de cabelo arranjado e maquilhada.

— Vá lá, tens alguma coisa bonita para vestir? Ou queres que te empreste algo? Vou levar-te a um café maravilhoso à beira-mar onde eu e o teu pai vamos às vezes. Mas é elegante, não podes lá ir vestida com esse pequeno biquíni.

— Tenho um vestido.

— Então, vamos. Têm uma lagosta ótima.

E lá foram todas arranjadas e perfumadas. Ao ver a mãe entrar de forma tão elegante, tão magra e tão alta nos seus sapatos de salto, a sorrir para o anfitrião do restaurante e a ser acompanhada pelo braço até à mesa junto à praia, Lily pensou que o pai tinha razão — quando Allison estava, não havia mulher mais bonita no local, independentemente da idade. Anne, Amanda e Lily tinham herdado algumas das características físicas admiráveis da mãe, mas divididas, não na totalidade. Ao passo que a mãe tinha todos os traços físicos notáveis nela. O cabelo forte, ondulado, castanho-arruivado, os afastados olhos cinza, ligeiramente inclinados, o nariz real, as maçãs do rosto elevadas, a boca perfeita, elegante e fina, como toda ela. Amanda herdou o cabelo e o nariz. Anne a altura, as maçãs do rosto e a magreza. Anne herdou muito. Lily não herdou nem altura, nem maçãs do rosto, cabelo ou olhos cinzentos. Ficou com a orientação dos olhos, uma certa graciosidade fluida da boca, o pescoço e os braços.

Antes de a água ser servida, Allison disse:

— Não me estou a sentir bem, Lil. Este medicamento para o estômago que estou a tomar faz-me sentir horrível. Não sei por que estou a tomá-lo.

— Porque é que estás?

— Porquê, porquê... Porque o médico mandou, é por isso. Tenho um problema sério de estômago. Tu sabes como sou doente.

Lily olhava em frente. Há dez anos, Allison foi operada de urgência por causa de uma úlcera perfurada.

Há dez anos!

— Não perguntaste pelo Joshua, mãe.

— Como está o Joshua?

— Acabámos. Ou melhor, ele acabou comigo.

— Acabou? Porquê? Achava que vocês se davam tão bem — disse, mudando ligeiramente de tom.

— Nem por isso. Eu não era uma ouvinte suficientemente boa para ele, acho. Tudo o que ele queria era falar sobre si mesmo.

— Ah, bom. Vais encontrar outro. Ainda és tão nova. — Suspirou profundamente. — Não como eu. Estou tão deprimida, Lily.

Claro que estás.

— Mãe, como é que consegues estar deprimida num lugar como este? Olha à tua volta. — A perda de cor da depressão abundava no Havai, com cor em excesso.

— O que é o Havai para mim? Estou tão infeliz. Não sabes que carregas o que está dentro de ti para onde quer que vás?

Lily supôs que sim. Para Hemingway, Paris era uma festa constante. Para a avó era a Polónia — uma palavra sinónima de apocalipse e kielbasa. A festa da mãe de Lily era a tristeza.

A mesma conversa outra vez não.

— Porque é que estás tão infeliz? — perguntou, tentando dar o tom certo, tentando e falhando, tentando não deixar a impaciência de uma vida apoderar-se da sua voz. — Porque é que estás tão infeliz? Tens uma bela vida. Não tens de trabalhar. Não tens de te preocupar com dinheiro. Podes viajar, ler, nadar, pescar, mergulhar. Tens todas as tuas faculdades, para além de um marido que te ama.

Allison suspirou de novo.

— Mãe, o Papi ama-te.

— Oh, Lily, és tão ingénua. — Abanou a cabeça e olhou para a comida. — Que amor é esse de que falas? Antigamente, o teu pai e eu tivemos amor, é verdade. Mas isso foi há muito tempo. — Allison rangeu os dentes. — O teu pai é muito cruel. Não fazes ideia.

A lagosta foi trazida. Lily tentou lembrar-se dos seus primeiros dezasseis anos de vida com a mãe e o pai.

— O Papi não é cruel. — O Papi era demasiado passivo para ser cruel, queria ela dizer.

— É isto que quero dizer com seres ingénua! Como é que posso sequer falar contigo sobre isto se não me ouves?

— Estou a ouvir — disse Lily, desejando não estar. Continuava a comer a lagosta com um garfo. A mãe tinha parado completamente de comer.

— O teu pai é muito controlador, muito indelicado. E não percebe a minha depressão, não percebe quão infeliz estou. E pior, não quer saber. É como tu, pergunta-me que razões tenho para estar deprimida.

— Mãe — disse Lily, calmamente. — Responde-me. Responde-lhe. Que razões tens tu para estar deprimida?

Apareceram lágrimas nos olhos de Allison.

— A minha vida toda é um falhanço total.

— Porque é que dizes isso? — Lily desejava poder parecer mais ofendida. Ela queria estar ofendida. Se essa fosse a primeira vez que o ouvia, podia estar. Em breve, a sua mãe ia abordar a menção aos quatro filhos que criou habilmente, aos seis netos, às várias vidas felizes da sua descendência, do seu filho, o congressista! Prosseguiria com a menção ao emprego que não conseguiu quando ficou grávida de Lily, como se aquele trabalho fosse o milagre para os males daqueles que sofrem. Traria à luz o pai de Lily e como a vida toda de Allison tinha girado em torno dele. «Ele era a árvore em cuja sombra todos caímos.»

Foi Allison quem disse isso ou foi a voz incrivelmente alta dentro da cabeça de Lily?

Olhou para a mãe, que acenava afirmativamente com a cabeça.

— Sim, sim, é verdade. Tu também, Lily, tu também estavas sob a sombra dele. Dele e do Andrew. Não percebo porque é que vocês, minhas filhas, adoram tanto o Andrew. Nunca podem contar com ele. Especialmente tu. Levava-te uma vez por mês ao cinema e achavas que isso era uma dádiva de Deus, porquê? Eu passava o dia todo, todos os dias contigo, parques, passeios de bicicleta, patinagem no gelo, cinema, livrarias, e nunca consegui que olhasses para mim com um centésimo da afeição com que olhavas para ele. E perguntas-me porque estou amargurada.

— Não perguntei — ripostou Lily.

— O meu filho, ele está bom, por acaso? Agora que o pai não está cá, parou de ligar.

— Ele não liga a ninguém.

— Qual é a tua desculpa? Ou a das tuas irmãs? Nenhuma de vocês me liga. A Amanda tem mais filhos do que qualquer um e é quem me telefona mais. E isso é quase nunca. Espera, espera até teres a minha idade. Espero que Deus vos dê filhas tão ingratas como vocês.

Dizer que Lily gostava de estar noutro lado qualquer sem ser ali era o mesmo que dizer que preferia dormir numa cama confortável em vez de numa de pregos enferrujados.

— Mãe — disse —, podias estar em Nova Iorque e ver-nos todas as semanas. Mas mudaste-te para o Havai. O que é que queres?

— Morrer — respondeu Allison. — Às vezes é tudo o que quero, o alívio da escuridão. — Pegou na mão de Lily. — Filha, às vezes penso em matar-me, mas tenho demasiado medo de Deus. Penso em matar-me todos os dias.

Lily retirou a mão. Isto contava, ou não, como abuso psicológico?

— Nem acredito que me estás a dizer isso.

— É suposto as filhas serem amigas das mães na velhice.

— Acho que é suposto serem filhas primeiro. Não posso acreditar que me estás a dizer que queres morrer. Percebes como é horrível? — Se ao menos fosse a primeira vez que o ouvia... Mas ela tinha a vívida memória de ter treze anos quando a mãe a levou para o quarto e calmamente lhe disse que só tinha três meses de vida. Ainda assim, de cada vez que Lily o ouvia, parecia a primeira vez. Sentia como se fosse a primeira vez.

— Não estou a dizê-lo para te perturbar. Estou a dizê-lo para que possas estar preparada. Para que saibas que não foi do nada. Se o teu pai fosse um homem diferente, talvez a minha vida tivesse sido diferente. Se ao menos ele me percebesse, fosse solidário comigo...

— Mamã, o Papi pôs comida na mesa por mais de quarenta anos. Alimentou-nos, vestiu-nos, pagou a faculdade.

— Mal te conseguiu pagar o City College — disse Allison. — Não tinha nada reservado para ti.

— O City College é ótimo — disse Lily.

— E tu retribuis a generosidade dele recusando acabares o curso. Sabes que não conseguimos manter-te. Pagamos o teu apartamento, a casa da tua avó, os impostos e a manutenção deste condomínio. Estamos completamente falidos porque pagamos três casas diferentes.

— Eu faço mais horas no Noho Star. Vou ficar bem.

— Sim, mas a tua avó, e ela? Ela não vai a lado nenhum, pois não?

— Acho que não. Acho que a tua mãe não vai a lado nenhum.

Allison não disse nada, mas ocupou-se a fazer de conta que puxava pedaços da sua lagosta.

— Não acredito que não acabaste o curso. Seis anos completamente pela sanita abaixo. Seis anos de faculdade para poderes lavar pratos num restaurante. Bom, espero que os laves bem. De facto, tiveste educação suficiente para seres a melhor.

Lily não ingeriu nem mais um pedaço de lagosta. O que tinha dito Andrew, que ela devia ir até Maui acalmar a mãe? Alguém na história do universo teve alguma vez uma ideia tão estúpida? Ela era precisamente a pessoa errada para fazer tal coisa. Lily nem conseguiria acalmar a mãe com uma massagem.

Na tarde seguinte, quando bateu à porta da mãe para convidá-la a ir à praia, Allison estava deitada.

— Já estive na praia. Não quero ir a lado nenhum.

— Não estiveste na praia comigo. Anda.

— Deixa-me em paz, sim? — disse Allison — És exatamente como o teu pai. Para de me obrigar a entrar nos vossos regimes inúteis.

Lily foi sozinha. Como é que ia conseguir aguentar mais um dia que fosse?

Mas era o Havai, o Havaiii! As florestas tropicais, os vulcões. O que é que ela preferia, a conversa de ontem no restaurante ou ir à praia sozinha? A escolha era tão óbvia.

E assim era ela sozinha na praia, e almoço, e caminhadas pelas palmeiras, e pores do sol e a piscina do condomínio.

Os dias passaram. A concentração de Lily esgotou-se. Era incapaz de se concentrar o suficiente para desenhar. Continuava a fazer esboços das mesmas palmeiras uma e outra vez. O carvão era um insulto para o Havai, as aguarelas não faziam justiça ao Havai e não tinha tintas a óleo, nem uma tela para elas. Tudo o que tinha era lápis de carvão e o bloco de esboços. E não havia nada para desenhar a carvão no Maui a não ser o interior do apartamento sem cor da mãe e os números 1, 18, 24, 39, 45, 49.

O Andrew não tinha ligado para contar como estavam a correr as coisas com o Papi. A Amy não tinha ligado. Não tinha tido notícias de Joshua.

Durante várias horas do dia, Lily sentia-se arruinada pelo bilhete da lotaria. Amaldiçoada.

Simplesmente, era naquilo que acreditava: acreditava que o universo mostrava certas coisas a cada um de nós, que fazia certas coisas abrirem-se.

Muitas pessoas viviam uma vida descansada sem nunca lhes acontecer o que quer que fosse. Mas nalgumas famílias, outras coisas se abatiam. Algumas famílias eram atingidas por tragédias aleatórias: acidentes de carro, de avião, de asa delta, desastres de autocarro, esfaqueamentos, afogamentos, cachecóis a ficarem presos debaixo das rodas dos seus Rolls Royces, partindo-lhes o pescoço. A rapariga encantadora no seu vestido do baile de finalistas no meio da pista de dança, e partir-se subitamente um tubo de aço do topo, cair sobre ela, empalando-a pelo crânio na noite do baile! O melhor aluno dos finalistas da secundária que entrou em Cornell, estando na esquina de uma rua de Nova Iorque, a ver-se subitamente no meio de um assalto. Uma bala perdida — a única disparada — atinge-o, matando-o. Lily não estava preocupada com a velhice ou as doenças hereditárias, estava preocupada com portais do universo a abrirem-se e demónios a engolirem-na.

Lily acreditava que os portais que permitiam que as tragédias aleatórias se alinhassem eram os mesmos que permitiam alinharem-se bilhetes da lotaria. Carrinhas fora do controlo em feiras de diversões. Ser ofuscada por um raio de sol e zás, a tua criança estar morta. Quedas de avião, colisões em cadeia, estranhas tempestades de relâmpagos, infeções fatais vindas de um dia inofensivo na quinta e 1, 18, 24, 39, 45, 49. Tudo vindo do mesmo sítio. Tudo a conduzir para o mesmo sítio — destruição.

E Lily Quinn toda a vida se tinha orgulhado de ser exatamente o tipo de rapariga que nunca ganhara nada. O seu carma tinha sido não só o de uma não-vencedora, mas o de uma antivencedora. De facto, ela tinha a certeza de que o que ela escolhia nunca ganhava. Não podia ganhar nem sequer um maço de cigarros numa visita gratuita à fábrica de tabaco da Philip Morris, na Carolina do Norte. Não podia ganhar um fim de semana sem trabalho de casa quando havia apenas dez candidatos e o professor escolhia três nomes. Não ganhava nem a palha mais pequena nem a maior. Não perdia para ter de limpar a casa de banho, ou ter de ir pedir mais papa de aveia ao diretor, tanto como não ganhava um prémio num concurso numa festa de bebé. Uma vez jogou um jogo na festa da irmã chamado «Conheces bem a tua irmã?» e ficou em terceiro!

49— por causa do ano em que a mãe e avó vieram para a América.

45— por causa do ano do final da Guerra que mudou o mundo.

39— por causa do seu início.

24— por causa da sua idade. No ano passado, Lily jogou o 23.

18— porque era o seu número favorito.

1— porque era o número mais solitário.

Comprou a lotaria todas as semanas, durante seis anos, jogando os números que significavam alguma coisa para ela, não porque tivesse esperança, mas porque queria reafirmar a ordem do seu pacato universo. Porque acreditava realmente que a Força que nunca deixou que os números dela saíssem do chapéu na noite do sorteio de sábado era a mesma Força que não colocava a barra de aço nos seus dois metros de vida.

 

Sem conseguir desenhar, ler ou focar-se, Lily concentrava todos os esforços no bronzeado. Numa parte isolada de um pequeno semicírculo da praia local, perto de Wailea, Lily despia a parte de cima do biquíni, e tomava banhos de sol em topless, conseguindo um bronzeado muito completo. Passadas quase três semanas, os seus seios pareciam positivamente brasileiros e até os mamilos estavam castanho-escuros.

Na primeira semana de junho, Lily estava sentada lá fora no terraço, vinda da praia, a pensar no que ia fazer no resto do dia — pois o dia era tão loooongo —, quando o telefonou tocou. O telefone nunca tocava! Lily ficou tão entusiasmada que quase derrubou uma cadeira ao atender.

— Estou? — disse, com voz carente.

— Lilianne Quinn? — perguntou um desconhecido com voz de barítono do outro lado.

— Sim? — respondeu, muito mais moderada, num tom que lhe era estranho.

— Fala o Detetive O’Malley do NYPD. Estou a ligar por causa da sua colega de casa, Amy McFadden.

O entusiasmo foi instantaneamente suplantado por outra coisa, preocupação.

— Sim? O que é que aconteceu? — Pelo seu tom, Lily pensou que Amy pudesse ter tido um acidente de carro.

— Teve notícias dela?

— Não. — Fez uma pausa. — Estou aqui no Havai.

— Sim, eu sei — disse o detetive. — Estou a telefonar-lhe para aí, não é?

Era verdade.

— O que é que aconteceu?

— Ela parece ter desaparecido.

— Ah. — Lily acalmou-se imediatamente. — Hum, falou com a mãe?

— Foi a mãe dela quem a deu como desaparecida, razão pela qual lhe estou a ligar. Segundo a Jan McFadden, a Amy não liga para casa há três semanas. As repetidas tentativas de apanhá-la no apartamento falharam. Lembra-se da última vez que a viu?

— Não sei — respondeu Lily, desviando o assunto. — Tenho de pensar nisso.

Fez-se silêncio do outro lado da linha.

— Está a pensar nisso agora?

— Detetive, eu não sei. Estou aqui há três semanas. Acho que a vi mesmo antes de me vir embora.

— Quando foi isso?

— Eu... não me consigo lembrar agora. As datas tinham sido queimadas da cabeça dela pelo sol do Trópico de Câncer.

— Posso pensar sobre isso e ligar-lhe de volta?

— Sim, mas rapidamente.

— Ou... — Lily lembrou-se de uma coisa. — Acha que devo voltar? Isto é algo que tem de ser falado pessoalmente?

— Não tenho a certeza. É?

— Sim, sim, acho que devo voltar. Posso dar-lhe muitos mais detalhes.

— Bom, agradeço, menina Quinn. Isto parece bastante sério.

Lily não achava, mas o detetive não conhecia Amy.

— Precisa que regresse de imediato? Quanto mais depressa, melhor?

— Bem...

— Claro. Isto é uma emergência. Terei todo o gosto em ajudar. Apanho hoje à noite um voo de regresso. É suficientemente cedo?

— Sim, acho que está bem. Peço desculpa por fazer com que deixe o Havai. Não tem mesmo de...

— Não, não. Tenho. Não tem problema. Quero ajudar. Onde vou ter?

— Venha à 9.ª Esquadra, na 5th Street, entre a Primeira e Segunda avenidas. Pergunte por mim.

— Como se chama, de novo?

— Tenente-Detetive O’Malley. Spencer Patrick O’Malley.

Lily ligou para a United Airlines para saber qual era o próximo voo disponível: daí a quatro horas. Levou 45 minutos a fazer as malas e depois chamou um táxi.

Carregava a mala com dificuldade. A mãe estava no terraço, a fumar e a beber sumo de mirtilo.

— Tenho de voltar para Nova Iorque. Aconteceu... aconteceu alguma coisa — disse, não querendo verbalizar mais nada. — Era a polícia ao telefone.

— Polícia? O que é que aconteceu? O que é que fizeste?

— Nada, mas... ninguém consegue encontrar a Amy. A polícia quer falar comigo.

— Não podem falar contigo ao telefone?

— Não. Acho que é sério — disse Lily, mas não acreditava nisso por um segundo.

Ela não estava preocupada com Amy. Achava que o desaparecimento de Amy era uma bela artimanha cármica para tirá-la do Maui.

Mandou-se para dentro do táxi com precipitação de alívio. Quando o avião estava no ar a caminho de casa, viu-se a expirar pela primeira vez em três semanas. Tinha a certeza de que Amy já teria aparecido pela altura em que chegasse a casa.


3

Uma hora na 9.ª esquadra


Amy ainda não tinha aparecido na altura em que Lily chegou a casa mas, pelo aspeto do apartamento, parecia que a polícia esperava encontrar Amy no armário de Lily. Estava uma cópia do mandado colada na parede no corredor. Não havia nada óbvio fora do lugar no quarto de Lily — apesar de ela ter a sensação de todas as suas coisas terem sido revistas, até tocadas —, mas o quarto de Amy tinha sido virado de pernas para o ar.

Sem sequer desfazer as malas, ainda com a roupa de viagem — um top branco de alças, um casaco curto de malha bege e uma minissaia de ganga —, Lily largou a bagagem e dirigiu-se para a esquadra. Deu o nome e esperou dez minutos antes de um homem pesado e ofegante descer as escadas.

— Detetive O’Malley? — perguntou, esticando a mão.

— Não, o meu parceiro manda-me sempre a mim. Acha que o exercício me faz bem. — O homem soprava.

A mão dele estava húmida, pegajosa e desagradável. Ela afastou a dela.

— Que parceiro tão atencioso — comentou Lily, observando-o cautelosamente, um pouco aliviada por ele não ser o detetive principal. Tinha um aspeto amargo e seboso, com cabelo fino, comprido e áspero a precisar de ser lavado ou pelo menos penteado; era muito alto, mas desajeitado, com os membros a pender ligeiramente para a direita e a cabeça a balançar ligeiramente para a esquerda. A pança era tão grande que a camisa branca que vestia não a conseguia conter e ambas, camisa e barriga, alastravam por cima do cós das calças, sobre o cinto e abaixo dele. Lily teve vontade de lhe dizer para enfiar a roupa para dentro. Não parecia jovial nem alegre. Não era um homem gordo feliz.

— Detetive Harkman — disse o homem ofegante, indicando-lhe que o seguisse. Quando passou por ela, cheirou-lhe ao que sabia ser inequivocamente ácido úrico. O detetive Harkman tinha gota. O seu corpo não conseguia metabolizar bem os resíduos de azoto, a julgar pelo cheiro azedo que dele emanava. O avô paterno dela tinha-o tido no final da vida. Involuntariamente, susteve a respiração enquanto o seguiu três lanços de escadas acima (— O quê, sem elevadores? — brincou ela. — Ou os elevadores, ou os nossos salários — respondeu ele retribuindo a brincadeira). Ela própria estava sem fôlego quando entraram na divisão simples, de teto alto, com uma dúzia de secretárias de madeira atafulhadas, atrás de uma das quais estava um homem sentado que não era nem pesado nem ofegante.

— Lilianne Quinn? — O homem levantou-se e estendeu-lhe a mão. — Sou o Detetive O’Malley. — Ele não tinha gota.

Olhou para cima, para ele. O aperto de mão dela deve ter parecido formal, inseguro e mole comparado com o dele, que era casual, seguro e firme. Apesar do calor húmido da divisão, ele tinha as mãos secas.

Lily era boa com as idades, mas não conseguia situar bem a do Detetive O’Malley. Movia-se como um jovem — tinha uma constituição magra que vinha ou de desporto ou de não comer —, mas os olhos eram velhos. Parecia estar algures pelos quarenta e algures para além do sentido de humor, apesar de isso poder ser uma pose, querendo parecer sério à frente dela. Tinha imenso cabelo castanho claro, ligeiramente grisalho nas têmporas, e usava óculos pretos de armações metálicas. O casaco cinzento de fato estava pendurado uniformemente nas costas da cadeira. A indescritível gravata cinzenta estava lassa e tinha os dois botões de cima da camisa desabotoados. Todas as janelas da divisão aberta estavam entreabertas e uma brisa quente provinha delas no início da noite. Ele abotoou a camisa depois de se levantar, ajeitou a gravata e vestiu o casaco. Lily reparou na enorme pistola preta no coldre.

— Podemos ir para ali — disse, apontando para uma porta que dizia Sala de Interrogatório #1.

Ele tinha metade do tamanho do parceiro, embora Lily não pudesse dizer se O’Malley parecia magro apenas em comparação. Não, ele era definitivamente magro e não parecia ter tempo para fazer desporto. Em cima da secretária havia uma pilha de trinta centímetros de ficheiros e papelada. Talvez jogasse um pouco de basebol. Parecia rápido como um interbase. Os interbases usavam óculos? Ou será que jogava futebol? Seguiu-o, ocupando assim o cérebro ligeiramente ansioso com observações e impressões inúteis, com o Detetive Harkman a ofegar atrás dela. Teve esperança de que a sala tivesse ar condicionado, mas descobriu ser aquecida por uma grande ventoinha sibilante que fazia girar o ar quente em torno dela, num vórtice húmido. Resistiu ao impulso de colocar a cabeça de fora da janela aberta e ofegar como um Labrador. O seu casaco era demasiado quente para a sala, mas não ia despi-lo à frente de dois polícias, ficando só com um top diminuto.

O Detetive O’Malley convidou-a a sentar-se (ela sentou-se) e perguntou-lhe se queria alguma coisa para beber (ela disse que não, embora quisesse). Começou sem demora. Tamborilando com a ponta do lápis ao lado do bloco de notas em cima da mesa, colocou os pés em cima da cadeira ao lado dele.

— Ok, diga-me o que sabe.

— Bem, nada. — Lily quase gaguejou. Que raio de pergunta era aquela? — Sobre o quê?

— Sobre o paradeiro da Amy.

— Eu não sei isso.

— Porque é que não está preocupada? A mãe dela está louca de preocupação. A Amy não foi à cerimónia de licenciatura. Você também não foi, presumo?

— Hum... não. — Ela não ia contar a um estranho porque é que não tinha ido, pois não? Mas o detetive sabia que ela estava no Havai, sabia que ela não podia ter ido. Ela semicerrou os olhos e ele arregalou-os em resposta. Eram de um azul intenso. Pareciam saber coisas, compreender coisas sem que ela abrisse a boca. Então, porque estavam a fitá-la à espera de uma resposta?

— Porque não?

Pronto, cá vamos nós.

— Ao contrário da Amy, não sou oficialmente licenciada. — Lily pigarreou. — Ainda tenho créditos para fazer.

— Não é finalista?

— Sou. Só não sou uma... — baixou o olhar para estudar as complexidades da textura da mesa de madeira — finalista licenciada.

— Estou a ver.

Ela não estava a olhar para ele por isso não podia dizer se ele via. Apostava que ele percebia tudo. Só queria vê-la sofrer.

— Que idade tem, menina Quinn?

— Vinte e quatro.

— Começou tarde a faculdade? A Amy também tem vinte e quatro.

— Não comecei tarde, apenas... deixei andar.

Ele observava-a.

— Durante seis anos?

— Durante seis anos, sim.

— E ainda não se licenciou?

— Não propriamente.

— Estou a ver. — Mudou então de assunto como se fosse uma pasta de arquivo em cima da mesa. — Então, não foi à licenciatura porque não se ia licenciar. É justo. Mas a Amy também não foi e ela ia.

— Humm... — Aquilo era surpreendente. Lily não tinha explicação para aquilo.

— Você e a Amy eram chegadas?

— Éramos, sim. Quer dizer, somos. Somos... — Fez uma pausa e decidiu-se pela abordagem direta. — Está a confundir-me.

— Não propositadamente, menina Quinn. Então, o que estava a fazer no Havai?

— A apanhar banhos de sol, aparentemente — respondeu Harkman atrás dela.

O Detetive O’Malley não disse nada mas entre as piscadelas dos olhos dele, atrás dos óculos de armações pretas, um lampejo expressivo fez Lily corar, quase como se... ele lhe pudesse ver os mamilos castanhos cheios de sol.

Fechando o casaco, olhou para baixo e mordeu o lábio.

— Os meus pais. Fui visitar a minha mãe.

— Quando partiu?

— Na quinta de manhã, muito cedo. O meu voo era às oito. Apanhei um táxi para o JFK às seis da manhã.

— A Amy estava levantada?

— Não.

— A Amy estava em casa?

— Acho que sim. Não fui ao quarto dela confirmar, se é o que quer dizer.

— Portanto, podia não estar em casa?

— Podia não estar, mas...

— Portanto, a última vez que a viu terá sido...

— Na quarta à noite, 12 de maio.

— Teve tempo para se recordar de algumas datas desde o nosso telefonema?

Lily levantou o olhar. Os olhos do Detetive O’Malley fitavam-na sem pestanejar na sua cara barbeada, calma e angular. E subitamente ela teve a sensação que o aperto de mão firme e casual era um ardil, uma pose, que ela devia ser muito cuidadosa com as coisas que dizia a este detetive porque ele podia lembrar-se de cada sílaba.

— Sim. — Cruzou os braços. — Inicialmente fiquei espantada com o seu telefonema.

— É compreensível. Ela pareceu-lhe normal nessa quarta-feira?

— Sim. Parecia a mesma de sempre.

— Que é como?

— Não sei. Normal. — Como é que se descreve uma noite normal com Amy? Lily ficou desconcertada. — Foi a mesma do costume. Bebemos um pouco, conversámos um pouco.

— Sobre o quê?

— Nada. Tudo. Filmes. Finais. A sério, só... coisas normais de raparigas.

— Namorados?

— Hã-hã...— Lily não queria contar ao detetive coisas sobre a sua patética vida amorosa e uma vez que só falaram de namorados, não lhe podia dizer nada. — Falámos sobre as nossas mães.

O Detetive Harkman estava em pé atrás de Lily e, de vez em quando, o Detetive O’Malley olhava para ele numa troca silenciosa, e depois novamente para ela. Agora era uma dessas vezes.

— E depois foi-se embora...

— E não tive notícias da Amy desde então.

— Nunca lhe ligou para lhe contar como se estava a dar em Maui?

— Liguei uma série de vezes. Deixei mensagens no atendedor, mas ela nunca me ligou de volta.

— Quantas vezes diria que lhe ligou?

— Não sei. Talvez três?

— Três?

— Por volta de três.

— Portanto, possivelmente duas, possivelmente quatro?

— Possivelmente. — Lily baixou a cabeça. Não sabia o que ele queria dela.

— Ela tem telemóvel?

— Não.

— Você tem?

— Não. Não posso pagar um. Não sei porque é que ela não tem.

— Portanto, telefonou-lhe algumas vezes, ela não ligou de volta e desistiu?

— Não desisti. Ia ligar outra vez. Pensei inclusivamente em ligar para casa da mãe dela.

— Mas não ligou.

— Não me conseguia lembrar do número.

— Ela contou-lhe os planos para visitar a mãe no fim de semana em que você voou para o Havai?

— Não me lembro de ela me dizer nada disso, não. Ela foi visitar a mãe nesse fim de semana?

— Não — disse o detetive. — A que horas lhe telefonou?

— À noite, acho eu.

— À noite para si?

— O quê? Sim. Sim, à noite para mim. À meia-noite havaiana. Antes de ir para a cama, ligava-lhe. — O’Malley fez uma pausa antes de dizer: — O Havai tem um atraso de seis horas em relação a Nova Iorque.

Lily também fez uma pausa.

— Sim.

— Portanto, à sua meia-noite seriam seis da manhã no horário de Nova Iorque?

— Sim. — Lily tossiu. — Acho que deveria ter tido mais consideração.

— Talvez — disse O’Malley de forma evasiva. — No que estou realmente interessado, no entanto, é no facto de a Amy não atender o telefone às seis da manhã.

— Podia estar fora.

— Fora onde?

— Bem, não sei, pois não? Talvez estivesse a dormir.

— Talvez ela pudesse ter-lhe ligado de volta, menina Quinn. Quer saber quantas vezes o identificador de chamadas mostrou o seu número havaiano no visor? Vinte e sete. De manhã, à tarde e à noite foi quando lhe ligou. O atendedor de chamadas no seu apartamento tinha nove mensagens suas para a Amy. A primeira foi no domingo, 16 de maio, a última foi depois de falarmos, a 3 de junho.

Lily, abalada e confusa, ficou em silêncio. Tinha sido apanhada numa mentira? Ela telefonou mesmo algumas vezes. E deixou algumas mensagens. Mas nove? Recordava-se de algumas dessas mensagens: «Ames, ohmeudeus!!! Não aguento nem mais um dia. Esta minha mãe; liga-me, liga-me de volta, liga-me.»; «Ames, há quanto tempo estou aqui? Parecem cinco anos e eu sou aquela que parece ter sessenta. Liga-me para me dizeres que ainda sou jovem.»; «Amy, onde raio estás tu? Preciso de ti. Liga-me.»; «Vou para casa, casa, casa, não aguento nem mais um minuto. O meu pai não está aqui, só eu e a minha mãe louca. Se eu não falar contigo, vou transformar-me nela.»; «Amy, no caso de te teres esquecido, esta é a tua colega de casa e melhor amiga Lily Quinn. A L-I-L-Y Q-U-I-N-N.»

Estava profundamente envergonhada. Estranhos, agentes da polícia, detetives, estes dois homens, estes homens adultos a ouvir as tagarelices imaturas dela, o seu tumulto e frustração num atendedor de chamadas!

Harkman ofegava atrás dela, espirrou uma vez, só esperava que não tivesse sido para cima dela. O Detetive O’Malley disse finalmente, como se estivesse a falar diretamente para as humilhações dela:

— Pronto, vamos avançar.

Sim, vamos. Mas Lily não sabia o que dizer. O olhar fixo de Harkman arrepiava-lhe a nuca. Sentia-se intensamente desconfortável. As mãos de O’Malley estavam unidas pelas pontas dos dedos, fazendo a forma de uma tenda à medida que continuava a estudá-la. Lily não aguentava mais, desviou o olhar dele para baixo, para as próprias mãos a tremer, e reparou que tinha um pequeno corte perto do nó do dedo a escorrer sangue.

— Menina Quinn, está a sangrar? Chris, podes por favor trazer um lenço a esta jovem? Ou prefere um kit de primeiros socorros? Quando é que se cortou?

Lily não queria ser evasiva, considerando a quantidade de sangue fresco que estava a sair de uma velha ferida, mas não conseguia dizer-lhe quando.

— É uma coisa antiga — murmurou. — Não é nada.

Harkman voltou com algodão e uma ligadura. Lily limpou o corte, sentindo-se ridícula.

— Talvez seja melhor ir ver isso — disse O’Malley.

— Não, está ótimo.

— Bem, menina Quinn, talvez pareça ótimo para si, essa capacidade de sangrar espontaneamente, mas não estava a sangrar quando chegou aqui e a cor viva do seu sangue diz-me que você pode estar anémica.

— Sim, sempre fui um pouco anémica. — Emitiu uma gargalhada gutural. — Nunca pude doar sangue.

Ele escrevia algo no bloco de notas, sem lhe prestar atenção.

— Tenho só mais algumas perguntas, se achar que está bem para continuar.

— Estou bem.

— Diga-me, a Amy tinha inimigos?

— Inimigos? Somos miúdas universitárias!

— A resposta então é não? Pode sempre responder na negativa.

— Não. — Na voz mais baixa possível.

— E quanto a namorado?

— Não.

— Ela andava com alguém? Mesmo casualmente?

— Que espécie de pergunta é essa? — disse Lily.

O’Malley deixou de fitar o bloco de apontamentos e olhou para ela.

— Não estou interessado em fazer julgamentos. Agora, andava ou não?

— Bem, ela é descomprometida, por isso... sim.

— Ela alguma vez passava a noite fora, noutro sítio?

— De vez em quando.

— Com que regularidade?

— Não sei bem.

— Onde?

— Também não sei.

O’Malley trocou outro olhar com Harkman. O que foi, quis Lily exclamar, para que é que estão a olhar um para o outro? O que é que eu não estou a contar-vos? Virou-se e olhou ela própria para Harkman. Começava a desgostar ativamente dos olhos dele, que percebeu serem como dois pequenos, redondos e feios buracos perfurados. Estavam perdidos numa cara grande, redonda, com duplo queixo mas, caramba, bem que lhe conseguiam perfurar a parte de trás da maldita cabeça dela!

— Como é que conheceu a Amy, menina Quinn? — perguntou O’Malley.

— Conhecemo-nos numa aula de arte na faculdade há quase dois anos.

— Ficaram boas amigas?

— Fomos viver juntas, não fomos?

— Não se irrite comigo. Sei que foi um longo dia. Podiam ter-se mudado por razões financeiras. Podia ter odiado Amy de morte. Não sei. É por isso que estou a perguntar.

— Sim, ficámos amigas. Depois encontrámos este apartamento e fomos morar juntas. Só para ter a certeza de que não ficam com a impressão errada — disse Lily —, o meu namorado viveu connosco por uns meses.

— Três naquele pequeno apartamento? — O’Malley assobiou. — Porque é que a Amy tinha o quarto maior, então?

— Porquê? Porque quando nos estávamos a mudar, tirámos à sorte para ver quem ficava com ele e calhou-me a palha mais curta. — Deixou aquilo interiorizar. A Lily nunca calhava a palha mais comprida, mas às vezes ficava com a mais curta.

— Compreendo. E durante o tempo que moraram juntas, a Amy teve muitos namorados?

— Não sei. O que é que considera muitos?

O’Malley levantou o sobrolho.

— O que eu considero muitos, como é que isso é relevante, menina Quinn?

Como ele estava a enervá-la!

— Tal como lhe disse, ela via pessoas esporadicamente, de vez em quando. Ninguém sério.

— Nem um único namorado sério?

— Não. — Porque é que isso era estranho? Não era estranho. Amy andava sempre à procura do amor. Só que não tinha sorte, como a boa velha Lily com o bom velho Joshua.

Mas havia uma memória difusa de algo. Lily nem sabia bem de quê. Era uma sensação de algo que Lily não conseguia precisar, nem antes, nem agora.

Não sabia se envolvia sequer Amy, ou o amor, mas por alguma razão achava que sim. E também frio, humidade e luzes intermitentes. Que coisa mais estranha para se pensar numa altura assim. Lily abanou a cabeça para afastar a estranheza daquilo.

— Isso é interessante. Pois enquanto esperávamos que regressasse de Maui, interrogámos uma série de pessoas, entre as quais uma rapariga chamada Rachel Ortiz. Conhece-a?

— Sim, conheço a Rachel. — Será que a sua resposta foi demasiado despachada? A julgar pela expressão na cara do detetive, foi, sim.

— Não se perdem de amores? — perguntou. — Bem, a menina Ortiz afirmou categoricamente, e para que conste, que a Amy lhe disse ter andado com alguém durante algum tempo, mas que agora estava tudo acabado.

Lily esfregou os olhos.

— Detetive, peço desculpa, estou com jetlag e exausta. E não vejo de que forma isso pode ser relevante.

— Por causa do seu jetlag, permita-me dizer-lhe de que modo é relevante. Vejo que não está particularmente preocupada com o desaparecimento devido às suas próprias razões peculiares. Mas passaram mais de três semanas desde que a Amy foi ouvida ou vista pela última vez por alguém. Já não se trata de um incidente com datas e horários e pequenas coisas como licenciaturas. Isto é uma investigação sobre uma pessoa desaparecida. Se descobrirmos a pessoa com quem ela andava, talvez descubramos onde está.

— Percebo, detetive, mas não sei o que lhe dizer. Não sei com quem é que ela andava.

Estavam a gravar a conversa toda, mas a julgar pelo olhar franco-atirador de O’Malley, Lily não achava que fosse preciso fazer uma gravação eletromagnética. Assinou o relatório do desaparecimento, deitou fora o algodão ensanguentado, agarrou no cartão-de-visita dele e dirigiu-se para a porta. O’Malley permaneceu sentado à mesa, com os pés em cima de uma cadeira

— Mesmo assim, não a incomoda nem um bocadinho, menina Quinn — perguntou o Detetive O’Malley, colocando as mãos atrás da cabeça —, nem sequer um bocadinho pequenino, que a sua melhor amiga não lhe tenha contado nada acerca da vida amorosa dela? Isto é, porque é que ela fazia segredo disso consigo?

Lily não sabia onde ele queria chegar e por isso não respondeu. Será que ele achava que Amy não gostava de rapazes? Será que achava que Amy estava interessada no seu namorado Joshua? Ela não queria pensar nisso.

O’Malley não se levantou quando lhe disse para ligar a qualquer hora para a esquadra ou para o número do beep que estava no cartão, se soubesse ou se lembrasse de alguma coisa.

Saiu da sala sem olhar para Harkman. Preferia que tivesse sido ele a interrogá-la. Preferia que tivesse sido Robespierre a interrogá-la.

A sua casa não era suficientemente longe da esquadra para digerir, enquanto caminhava, a corrosiva sensação de mal-estar em torno das terminações nervosas de Lily.


4

Carteiras nas cómodas


O Noho Star, na Bleeker e Lafayette, estava com falta de pessoal, por isso Lily foi no dia seguinte e fez o turno da noite, treze horas, das onze da manhã até à meia-noite. A seu pedido, as suas horas foram aumentadas para cinquenta. Esperava conseguir aguentar.

Quando chegou a casa da esquadra na noite anterior, Lily encontrou Rachel, Paul e, para grande surpresa dela, Joshua(!), acampados à porta de entrada. Seguiram-na escada acima até ao quinto andar. No terceiro, Lily estava já tão sem fôlego que teve de parar e descansar. Como é que a velha Colleen fazia? Quando finalmente entrou em casa, desabou no sofá-cama.

Joshua tinha andado a ligar nas últimas duas semanas porque, disse ele, precisava de vir buscar o estojo da guitarra.

— O que é que se passou com a tua mão? — perguntou a Lily. Infelizmente, ela não queria falar com ele na presença de todas aquelas outras pessoas.

Paul, pequeno, magro, perfeitamente cuidado, perfeitamente vestido, perfeito no seu look italiano, e calmo como um pequeno lago, perguntou:

— Estás bem, Lil? — E depois: — O que é que aconteceu? Onde está a Ames?

Lily abriu um olho do sofá-cama.

— É uma pergunta com rasteira?

Rachel, outrora uma porto-riquenha de cabelo preto e crespo, que conquistara um quarto lugar num concurso de beleza em Santo Domingo, e agora uma loura platinada com o cabelo mais fino e liso do que o de Lily, fazia barulhos de vómito no lava-louça da cozinha depois de beber sumo de maçã com três semanas do frigorífico demasiado quente. Lily não conseguia manter os olhos abertos. De repente, havia uma árvore à frente dos seus olhos e um animal a esconder-se atrás dela. E havia um turbilhão de cor vermelha, pensos rápidos, pequenos pedaços de diálogo e aqui chegou o frio húmido. E Amy de novo, e o Havai, as flores vermelhas e a mãe a dizer tudo o que estou a passar, passo completamente sozinha, e aqui os sons de Rachel a bochechar com água, irritando Lily. Ela queria que todos eles se fossem embora, especialmente Joshua. Por isso, permaneceu de olhos fechados, fez de conta que foram, e adormeceu, mesmo naquela posição, em cima do sofá-cama, ainda sentada e ligeiramente curvada para um lado. E Amy longe, a sua mãe longe, o seu pai longe. Talvez Amy estivesse com o próprio pai? Talvez tivesse ido à Flórida visitá-lo? Tem de mencioná-lo ao detetive. Como é que ele se chamava? Joshua longe, Joshua que era suposto ser um caso sério, agora a vir buscar o estojo da guitarra... E quando Lily acordou, catorze horas depois, tinha o corpo rígido, o telefone estava a tocar e o nó do dedo escorria sangue por debaixo da ligadura.

Hoje, no trabalho, o jetlag estava a afetá-la. Durante o período de descanso, em vez de comer gelatina com chantilly, como costumava fazer, deitou a cabeça na mesa das empregadas na cabine nas traseiras e ficou instantaneamente a dormir. Ela não adormeceu, ficou a dormir. Quando acordou, Spencer O’Malley estava sentado a olhar para ela do outro lado da mesa.

— A sua mão continua a sangrar espontaneamente, estou a ver — disse.

Ela olhou em redor, meio zonza. O parceiro não estava com ele.

— Veio aqui só para me dizer isso? — Sentia-se desprezível.

— Telefonou-me esta manhã. Pensei que se tivesse lembrado de alguma coisa importante.

— Sim, sim. — Tentava lembrar-se do que quer que fosse. Sabia ainda menos a razão de lhe ter ligado há nove horas.

— Alguma coisa sobre a Amy?

— Alguma coisa sobre a Amy. — Lily anuiu, esfregando os olhos. Ele empurrou um copo de água na direção dela. Ela bebeu, acordando um pouco. — O pai dela vive em Islamorada, acho eu. Ou no Cabo Canaveral?

— Talvez St. Augustine?

— Não, não é aí.

— Sim, é onde ele mora. St. Augustine.

— Certo, então. Talvez tenha ido visitá-lo.

O’Malley ficou calado.

— Ligou-me para dizer isso?

— Sim.

— Você deve achar que eu comecei agora este trabalho. Vai ter de fazer melhor do que isso. Ele foi o primeiro a quem liguei. Não sabia dela. Mas, para além disso, menina Quinn, está a escapar-lhe o essencial. Ela disse à mãe que ia para casa. Não foi. Ela disse à família que ia à licenciatura. Não foi. Não telefonou, não apareceu e ninguém sabe dela, nem mesmo o pai em Islamorada.

Lily tentou levantar-se.

— Dá-me licença? Penso que a minha pausa acabou.

— Pausa? — repetiu O’Malley. — Acho que o seu turno acabou.

— Ah. — Foi lavar a cara. E ele ainda estava sentado quando regressou.

— Detetive, tenho mesmo de...

Mas ele não se mexeu.

— Apenas mais dois minutos do seu tempo. Houve algumas coisas que me esqueci de mencionar ontem. Afinal de contas, tínhamos tanto que falar. Durante a nossa revista ao quarto da Amy, encontrámos as chaves de casa e a carteira dela em cima da cómoda, levando-nos a achar que não tinha ido longe.

— Como lhe disse, provavelmente é verdade.

— Em geral, ela tinha por hábito sair de casa sem carteira ou chaves?

— Acho que sim — respondeu Lily. — Não estou a tentar ser evasiva — acrescentou, ao ver a cara dele. Sorriu palidamente, mas O’Malley não sorriu. Na verdade, estudou-a ainda mais cuidadosamente, como se ela fosse uma palavra numa página cujo significado estava a tentar decifrar. — Ela costumava ir correr e não gostava de ir pesada. Normalmente saía apenas com o dinheiro de menor valor que tivesse com ela. Ou amassado numa bola ou com moedas enfiadas no bolso das calças.

— Onde é que ela ia correr?

— Ao Central Park. No reservatório.

— É bastante longe para uma corrida indo de East Village.

— Longe, mas vale a pena.

Escreveu uma nota no bloco.

— E noutras vezes? Quando ela desaparecia durante a noite? Também deixava a carteira e as chaves? Andava a correr durante dias, era?

— Ela estava muito em forma — respondeu Lily numa tentativa débil de fazer uma piada. Também durante esses dias, Amy deixava a carteira. Porque é que Lily decididamente não queria dizer isso ao detetive? — Sabe, eu nem sempre reparava. Tentava não ir ao quarto dela sem ela estar, a não ser que precisasse de alguma coisa. Portanto, não sei se ela deixava sempre a carteira. Tenho a certeza que às vezes a levava.

— Onde é que está a carta de condução dela, por falar nisso?

— Acho que não tem — respondeu Lily de forma hesitante.

— A sério? — Obviamente surpreendido e com o olhar fixo na hesitação dela.

Lily desviou o olhar, tentando pensar na coisa que a fez evitar o olhar dele. Alguma vaga confusão, alguma vaga inconsistência em relação à carta? Mas ela não conseguia precisar bem, daí o olhar desviado.

— A Amy não sabia conduzir. Vivemos em Nova Iorque. Eu também não sei conduzir.

— Interessante — disse o detetive, afagando o queixo. — Fascinante. — Levantou-se para se ir embora. — Bem, vai desculpar-me por não partilhar a sua atitude relaxada e descontraída sobre o paradeiro da sua melhor amiga, mas estou a achar estranho, no mínimo, que ela esteja fora há três semanas, com o cartão de débito, cartão de crédito, de estudante, passe e as chaves de casa, todos serenamente deixados em cima da cómoda. E não conduz. Então, para onde foi? Quando fizemos a busca ao seu quarto, encontrámos o seu passe. Mas não encontrámos as suas chaves, ou a sua carteira, ou o seu cartão multibanco. Você foi para o Havai e levou-os consigo. Pareceu-nos normal.

Os seus olhares cruzaram-se por um momento. O Detetive O’Malley de olhos claros, a quem não escapava nada disse:

— Então, onde está a sua cama?

— O namorado levou-a.

— Simpático.

— Sim, pois.

Naquele momento, bateu na mesa sentando-se de novo.

— Raios! Já descobri. Já percebi porque está a ser tão indiferente em relação à Amy.

— Não sei a que se refere.

— Claro. Não está preocupada com ela porque ela desaparece com regularidade constante. Ela deixava a vida dela na cómoda, desaparecia e depois regressava, como se tivesse saído apenas para uma longa corrida. Não achava isso nada estranho antes e não acha nada estranho agora.

— Dedução incorreta, detetive. Eu agora estou a achar estranho. Ele nunca esteve fora durante três semanas.

— Ela deixava a carteira, identificação e chaves na cómoda quando saía e nunca lhe perguntou porquê?

Lily não sabia porque não tinha perguntado.

— Achei que Amy me diria quando estivesse preparada.

Houve uma longa pausa.

— Ainda está à espera, não está, menina Quinn?

Lily despediu-se apressadamente e foi acabar o turno. No trabalho, toda a gente reparou no detetive equipado com o distintivo que tinha vindo procurar Lily. Perguntaram-lhe, provocaram-na, picaram-na, ela ambígua, eles a continuarem e continuarem. Rick, o gerente, observou-a cuidadosamente e depois chamou-a.

— Estás metida nalgum problema?

— Não, não.

— Não tem a ver com drogas, tem? Porque...

— Não é droga.

— Ele é giiiiro — comentou Judi, outra empregada pequenina e ainda abaixo dos vinte. — É solteiro?

— Não sei e tem o dobro da tua idade!

— Dizes isso como se fosse uma coisa má.


5

Spencer Patrick O’Malley


Spencer chegou a casa nessa noite e sentou-se à mesa de jantar redonda. Vivia num pequeno apartamento perto do trabalho, com uma localização perfeita — na 11th com a Broadway. Da cozinha em miniatura e janelas da zona de jantar contígua, via uma dúzia de semáforos na Broadway, todo o caminho na direção sul, depois de Astor Place. Os sinais vermelhos, molhados, irrompiam coloridos na chuva cinzenta. Quanto mais cinzenta a chuva, mais brilhantes ficavam os vermelhos e verdes. Da entrada do foyer, que era a sua biblioteca e quarto, olhou de cima para o átrio de uma pequena igreja. Spencer continuava a viver sozinho, certamente não por falta de tentativas da parte de algumas mulheres com quem esteve. Que esforço foi este para si, detetive, viver com outro ser humano, tinha perguntado a última namorada mesmo antes de deixá-lo. Ele estava convencido que não estavam a viver juntos; muito revelador. É claro que andava a passar muito tempo em casa dela, e ela a pedir-lhe para deixar lá as coisas, a insinuar-se. Agora andava com Mary, uma assistente social. Gostava bastante dela — estavam juntos há um ano —, mas não conseguia evitar sentir ser apenas mais um dos seus casos complicados. Assim que o resolvesse, ela ir-se-ia embora. Spencer mal podia esperar por esse dia. Só não tinha a certeza porquê: por ser resolvido ou por ela se ir embora?

A casa pertencia a Patrick, o seu irmão mais velho, que tinha sido um rapaz maroto e fora corrido pela mulher. Por isso, comprou um apartamento na cidade onde podia ser solteiro durante a semana e ter os filhos ao fim de semana. Depressa a mulher percebeu que viver sozinha com os filhos não era bem como imaginava e decidiu dar outra oportunidade ao Patrick errante. E assim Spencer subarrendou o apartamento de Patrick que mal podia pagar com o salário de detetive de Nova Iorque. Mas ninguém na cidade podia pagar os apartamentos, por isso não adiantava queixar-se. Só se queixava de estar constantemente sem dinheiro.

Quando Spencer voltou para o Departamento de Polícia Distrital de Suffolk, depois de deixar o cargo de detetive principal em Dartmouth College, New Hampshire, ficou num quarto por cima da garagem da casa do irmão Sean. Mas depois, ser um polícia de patrulha em Long Island tornou-se demais para Spencer. Para além disso, não achava muita piada à mulher de Sean (demasiado arrumada para o seu gosto), por isso transferiu-se para o NYPD. Foi a aberrante mania das limpezas da mulher do irmão que o conduziu a Nova Iorque, aquele confuso caldeirão do vício.

Nova Iorque era bastante diferente de mudar pneus a mulheres na via rápida de Long Island e de fazer testes de alcoolémia quinze vezes nas noites de sábado. Spencer foi primeiro designado detetive de terceira categoria na Divisão de Investigação Especial do Departamento de Detetives. Era um dos quatro detetives da patrulha local a trabalhar na equipa conjunta de Assaltos e Apreensões. A seu pedido, foi transferido para as Pessoas Desaparecidas depois do detetive principal estar no sítio errado à hora errada e ser atingido mortalmente por um criminoso em fuga de um assalto a uma loja de conveniência na Avenue C com a 4th. Spencer achou estar de novo pronto para as pessoas desaparecidas. Foi designado principal de Chris Harkman, o parceiro do homem morto que estava no Pessoas Desaparecidas há doze anos, permanecendo na terceira categoria porque, como dizia Harkman, «é um trabalho de tão baixa pressão». Já tinha feito três operações ao coração, tinha gota, artrite e ficaria à secretária do departamento de pessoas desaparecidas só por mais dois anos, tempo suficiente para se aposentar aos quarenta e oito, com reforma e regalias quase integrais.

Mas Spencer não estava pronto para se reformar. Não se importava de ser encostado e, tal como Harkman, também o faria. Mas só que aconteceu que, por acidente ou destino, ou virtude da sua própria personalidade picuinhas e memória peculiar, descobriu um rapaz que estava desaparecido desde 1984, a viver anos depois num antro de crack na Twelfth Avenue com a 43rd Street. O miúdo tinha sido apanhado pelos dos narcóticos, mas Spencer reconheceu-o quando viu o nome dele nos registos que verificava religiosamente todos os dias. Mario Gonzalez. Spencer verificava obsessivamente as fotografias e nomes de cada pessoa detida pela polícia de Nova Iorque, precisamente por causa de um caso como o de Mario Gonzalez. Afinal o rapaz, que tinha doze anos na altura que desapareceu, não queria ser encontrado pelos pais inconsoláveis. Mas isso não interessava, pois para o departamento, Spencer era um herói. Foi promovido a tenente de primeira categoria e colocado como responsável de toda a divisão de Pessoas Desaparecidas. Entretanto Harkman, em virtude de ter sido designado seu parceiro, ganhou um aumento e uma promoção para a segunda categoria. O facto de o rapaz se ter suicidado umas semanas depois de ter sido encontrado não atenuou a alegria de a) encontrar uma pessoa desaparecida há tanto tempo; b) encontrar um desaparecido vivo.

Depois disso, eram esperados resultados de Spencer num departamento que era manifestamente baixo em resultados. Não era como os outros departamentos de investigações especiais onde os detetives estavam constantemente a receber palmadinhas nas costas pelo trabalho bem feito, detenções, criminosos apanhados — em jogos de cartões de crédito e ilegalidades, furto e extorsão, fraude em companhias aéreas, fogo posto e roubo de obras de arte; e em especial, homicídio. Se ao menos Spencer se interessasse um bocadinho pelas outras divisões, já podia ser capitão.

Mas o coração de Spencer, por razões insondáveis para ele, preferia encontrar pessoas há muito desaparecidas. Não, nem isso. Procurar pessoas que estavam desaparecidas há muito.

Desde Gonzalez, encontrou mais seis ou sete casos desesperados. De alguma forma, transformou-se num génio mitológico do departamento e no favorito de Colin Whittake, o chefe e parceiro da vizinha divisão de homicídios, com quem estava livremente associado. «Entrega ao O’Malley», corria a expressão na esquadra. «Ele encontra qualquer coisa». Tornou-se próximo de uma dupla de homens nos homicídios, um em particular — Gabe McGill —, de quem Spencer gostava tanto que desejava poder ser seu parceiro, embora nem Spencer quisesse os homicídios nem Gabe os desaparecidos.

O apartamento estava escuro. Ainda não tinha ligado as luzes e era mesmo assim que gostava de estar nos primeiros minutos depois de chegar a casa do trabalho. O trabalho era frenético e turbulento e o apartamento estava maravilhosamente sossegado; o trabalho tinha contraste de luz fluorescente ofuscante e o apartamento estava confortavelmente escuro. Só os semáforos da Broadway piscavam através das janelas abertas. Spencer serviu-se de um J&B — misturado com 116 maltes diferentes e 12 grãos — e deixou-o à sua frente enquanto mexia o copo com as duas mãos, rodando-o e rodando-o no sentido dos ponteiros do relógio, contando os segundos, os minutos do tempo a passar, a olhar para a bebida, cheirando-a. Descalçou-se. Tirou a camisa e a gravata. Foi à casa de banho e voltou para a mesa. A bebida ainda estava ali. Spencer ainda estava ali. Sentou-se no escuro, de frente para as janelas abertas e pegou na bebida de novo.

Entrevistou a mãe em pânico, as pessoas com quem Amy McFadden servia à mesa no Copa Cobana, o seu círculo de amigos, todos confusos, mas desejosos de ajudar. Fez uma busca ao apartamento, verificou os movimentos bancários, as contas dos cartões de crédito, o Departamento de Veículos Motorizados.

E depois conheceu Lily.

A rapariga parecia tão confiante, tão despreocupada. E tão bronzeada. Sem histerismos, sem choraminguices. Ele gostava disso. Ao contrário da outra, Rachel Ortiz. Era uma emotiva. Mas Lily tinha-se a si e ao assunto sob controlo. Ao contrário da mãe, Lily não estava excessivamente ansiosa. Ela devia falar com a mãe de Amy, acalmá-la. Talvez Lily tivesse razão. Talvez a sua colega de casa desaparecida aparecesse.

Lily era suave, com um bronze cor de chocolate e jovem. E o seu pequeno top de alcinhas, a sua saia de ganga muito, muito curtinha. De fugida, imaginava-a deitada na areia branca de Maui, húmida e quente de estar ao sol, de olhos fechados, de costas, a ficar castanha, queimada, em topless. Spencer precisava de colocar a bebida de novo na garrafa. Nunca bebia em dias de trabalho pois Spencer sabia que a mente lhe pregava partidas quando lhe dizia que podia fazê-lo, tomar apenas um copo, quando intelectualizava e racionalizava o copo nas mãos. Imaginava levar o uísque à boca e emborcá-lo em três grandes goles. Sem provas delicadas, sem cheirar ou bebericar o malte misturado para ele numa pipa.

Se a vida ensinou alguma coisa a Spencer Patrick O’Malley foi que os desaparecidos nunca apareciam por si sós e que tomar apenas um uísque era coisa impossível.


6

Conversas com mães


— Detetive O’Malley... — Lily gostava de poder pedir-lhe para parar, dizer-lhe para parar de aparecer no restaurante. Tinha ido vê-la cinco vezes em dez dias.

— As pessoas começam a falar — foi tudo o que ela disse.

— A sério? O que é que andam a dizer?

Lily abanou a cabeça.

— O que posso fazer hoje por si? Posso oferecer-lhe um café? Um donut?

— Muito estereotipado da sua parte, menina Quinn. Não, obrigado. Não sou pessoa de donuts. Já falou com a mãe da Amy?

— Não, ainda não.

— Devia ligar-lhe. Ela ia gostar de saber de si. Acho que seria bom para ela falar consigo. Está sempre à beira da histeria. Liga-me quatro vezes por dia. E eu sem pistas nenhumas para além de si.

— Não sou uma pista — disse Lily, surpreendida, percebendo depois que ele estava meio a brincar. — Detetive — disse, quase de forma agradável, — eu ligo-lhe e digo-lhe o mesmo que lhe disse a si. Que acho que ela está preocupada sem razão. Que acho que a Amy só se foi embora por uns tempos e vai aparecer em breve, sã e salva, e tudo ficará bem. O meu palpite é que a Amy foi de férias com quem quer que seja que ela se andava a encontrar.

— Então, há um minuto não pensava que ela andasse a encontrar-se com alguém e agora já acha que fugiu?

Lily contorcia as mãos. Já não podia fazer isto, tinha de regressar ao trabalho, tinha outros clientes!

Durante o silêncio dela, Spencer disse:

— E acha que a Amy iria de férias por quatro semanas sem dizer a ninguém e perdendo a cerimónia de licenciatura, para a qual convidou toda a família? Ela é assim tão irracional, sem consideração? Não se aperceberia de que os pais ficariam doentes de preocupação com ela?

— Nem irracional, nem sem consideração, apenas apaixonada, detetive. Sabe? Perdoamos as pessoas apaixonadas pela falta de consideração de curta duração. É falta de educação negar-lhes isso.

— Portanto, há um minuto, não havia qualquer tipo de namorado e agora tão loucamente apaixonada que você a defende baseando-se em insanidade temporária? Por favor, escolha um lado da barricada, menina Quinn, e mantenha-se nele. — Saudou-a, tirando o chapéu enquanto se ia embora.

Judi aproximou-se e sussurrou um «Uuuuuuh» atrás dela.

— Para com isso! — exclamou Lily.

 

Porque é que ela não conseguia ligar à mãe de Amy? Porque é que não conseguia fazer o telefonema? Aparentemente, parecia tão fácil. Tão fácil como falar com o detetive. Mais fácil ainda. Conhecia-a e gostava dela. Olá, Sra. McFadden, como está? E os seus outros filhos... Ui, aí está. Os outros filhos? Sim, Sra. McFadden, sei que isto da Amy é terrível. Ela foi-se embora e ninguém sabe onde está, mas os outros filhos que ainda tem, como é que eles estão? Em segurança? Esse era o verdadeiro problema. Imaginar a conversa enchia Lily de tanto desconforto que era incapaz de pegar no telefone.

Em vez disso, ligou à avó.

— Tens lido os jornais? — perguntou Claudia. — Um comboio da Amtrak abalroou esta manhã um camião carregado de toros numa passagem, fazendo descarrilar as dez carruagens e ferindo dez pessoas. Duas pessoas ficaram feridas com gravidade.

— Avó...

— Um suporte de microfone empalou uma mãe grávida que caiu na própria casa quando estava a preparar os dois filhos para a escola. Caiu do segundo para o primeiro andar e foi trespassada no peito pelo suporte de microfone. Era música.

— Avó, por favor!

— Pensa naqueles rapazes. É terrível ver a própria mãe ser ferida num acidente tão estranho.

— Sim. Sim, deve ser. Bem, obrigada pela conversa. Tenho de me despachar.

Andrew não tinha telefonado a Lily desde que ela tinha voltado. Ela ligou-lhe para casa na semana anterior, mas Miera disse que ele estava em Washington: «Lily, o horário dele está online. Diz claramente Washington. Telefona-lhe para lá.»

Ligou-lhe para lá, mas ainda estava no Parlamento. E não lhe retribuiu a chamada. Típico. Estava tão ocupado que por vezes ela não sabia dele durante semanas. Ligou para o apartamento de Andrew para falar com o pai, mas ninguém atendeu. Andou de um lado para o outro no seu quarto vazio, olhou para as suas aguarelas, para as suas fotografias, para as suas palavras, imagens dela própria em criança, ao colo da irmã Amanda, a ser abraçada pelo irmão... A mais nova, Lilianne, boa menina, menina morena, menina esperta, a andar desde cedo, a sorrir desde cedo, inteligente, engraçada, a segurar uma imagem de uma flor de lótus perfeita que desenhou quando tinha três anos, a rir para a mãe, que tirou a fotografia. De repente, Lily parou de andar, o olhar ensombrou-se, os olhos pestanejaram, pestanejaram de novo, fecharam-se.

Spencer que via tudo. Poderia ter olhado para a parede e ter-lhe escapado o bilhete de lotaria? Era pequeno e estava entalado, como parte de uma colagem, coberto com uma fotografia de um lado e bilhetes antigos da Companhia de Ballet Americano do outro. Mas poderia tê-lo visto? Aproximou-se do bilhete. E qual era o problema? Não sabia de cor os números saídos nesse dia, 18 de abril, 1999.

Quando o telefone tocou, atendeu distraidamente.

— Lil? — Era a mãe! Aquilo apanhou Lily desprevenida. Se estivesse com atenção, nunca teria atendido o telefone. A conveniência moderna do identificador de chamadas — ver o número no visor. Talvez se levantasse o bilhete de lotaria pudesse pagar os seis dólares extra do identificador com chamadas em espera. Isso seria de grande utilidade. Ora, estava ela a pensar nisso enquanto tentava decifrar o tom de voz da mãe que parecia bastante bem-disposto para uma mulher que se encontrava recente e inesperadamente sem marido.

De repente, o pai atendeu o telefone noutra extensão.

— Lil?

— Papi?

— Porque é que estás tão chocada? Eu moro aqui, sabes? — E riu-se.

— A mãe disse...

— Mal consigo falar cinco segundos com a minha própria filha. Posso tê-la primeiro e ficas com ela depois de eu terminar?

— Mãe, deixa-me falar rapidamente com o Papi agora.

Assim que Allison bateu com o telefone no descanso, George disse:

— Sim querida? — na sua voz mais casual, mais despreocupada, mais estou-no-Havai-e-estou-tão-feliz.

— Não percebo. Pensava que estavas em casa do Andrew.

— Bem, estive em D.C. por causa de um pequeno negócio. Foi isso. Nada de especial.

— Portanto... estás de volta?

— Está tudo bem, ótimo até. Fiquei nervoso, sabes, tendo trabalhado quarenta e cinco anos sem parar. Bom, não sabes. Mas um dia trabalharás.

— Eu já trabalho. Cinquenta horas por semana. Pai, o que é que se passa? Fala comigo.

— Não há nada para falar. Sabias que a tua mãe tem vindo comigo à praia todas as manhãs? Adora. Não se estava a sentir bem quando estiveste cá. Está muito melhor agora. E está a reduzir o tabaco. Está linda, a propósito, a tua mãe.

Allison voltou à linha e estavam ambos, ela e George, ao telefone agora, a tagarelar, a brincar, a rir.

— Lily, isto é uma espécie de segunda lua de mel com o teu pai — sussurrou a mãe. — Nem imaginas como estamos felizes.

Poderia Lily desligar com rapidez suficiente? Não lhe parecia.

Agora já tinha força para ligar à mãe de Amy!

A voz do outro lado da linha soava grogue e ligeiramente arrastada.

— Oh, Lily! — disse a Sra. McFadden. — Onde é que ela está? Onde está a Amy? Porque é que não temos notícias dela?

Lily quis dizer algumas palavras vazias, e disse, desviando-se, arrastando-se. Quis dizer mais, sobre quão despreocupada estava — o que era cada vez menos verdade — e como Amy gostava de ser independente e odiava dar conta dos seus atos («isso é tão verdade» — comentou a mãe de Amy). Disse que ligaria assim que Amy voltasse, mas fê-lo num tom débil. E não interessava de qualquer modo, não se ouvia por cima do choro da Sra. McFadden. Não havia forma de convencer a mãe, tal como Lily tinha suspeitado, e não tinha nada no seu arsenal com que a convencer. Talvez Amanda soubesse como. Afinal de contas, tinha quatro filhas. Talvez se uma desaparecesse, soubesse o que dizer à Sra. McFadden, que tinha tido Amy com o primeiro marido e estava agora novamente casada, com dois filhos novinhos em folha. Ela deve ter pensado que esteve tão perto de não ter de se preocupar mais com Amy.

Jan continuou a chorar e Lily continuou ao telefone a não saber o que dizer, exceto um intermitente e impotente «Lamento muito».

Paul e Rachel, que eram amigos de Amy e cujo núcleo era Amy, só queriam falar de... Amy. A conversa com Paul corria inevitavelmente assim:

— Lil, onde é que achas que ela está?

— Não sei. E tu?

— Não faço ideia. Mas eu também não morava com ela, não conheço os hábitos diários dela.

— Paul, posso até saber quantas vezes por dia a Amy lava os dentes, mas não sei para onde foi.

— Compreendo. Ninguém te está a culpar, Lil. Porque é que estás tão na defensiva?

— Porque toda a gente parece pensar que eu tenho respostas que simplesmente não tenho. Não imaginas a quantidade de vezes que aquele detetive me pergunta onde é que ela está.

— Onde é que achas que ela está?

— Não sei!

— Achas que lhe aconteceu alguma coisa?

— Não! Tipo o quê?

E com Rachel:

— Meu Deus, Lil, o que é que achas que aconteceu à Amy?

— Não sei. E tu?

— Não faço ideia. Mas também, eu não morava com ela.

Lily colocava as suas dúvidas.

— Rach, o detetive disse-me que lhe disseste que a Amy andava mesmo com alguém.

— Foi o que ela me disse. Tu não sabes? Achei que ias confirmar. Quem era?

— Não sei.

— Como podes não saber?

— Ela não me disse, Rachel.

— Porque é que ela não te ia contar uma coisa dessas? Achava que vocês eram chegadas.

— Éramos chegadas. Somos chegadas.

— A propósito... o detetive é casado?

— Não sei. Porque é que haveria de saber? E o que é que isso te interessa? Como está o Tó-niii?

— O Tony está ótimo — disse Rachel misteriosamente. — Melhor do que nunca.

— Então porque é que estás a perguntar pelo detetive?

— Por nada.

Lily caiu para trás na cama de Amy. Será que ela tinha as respostas? Deveria ter as respostas? Isso era ainda pior. Deveria e só não tinha porque Lily Quinn não tem respostas para nada? Não tinha resposta para a razão de não ter acabado o curso em seis anos, não tinha resposta para o que queria fazer na vida, também não tinha qualquer resposta para o que se passava com a mãe, nem para o que Joshua não conseguia amar nela, não tinha resposta para o paradeiro de Amy. Nem para 49, 45, 39, 24, 18, 1.


DESAPARECIDA: Amy McFadden

DESCRIÇÃO:

Sexo: Feminino

Raça: Caucasiana

Idade: 24

Altura: 1,73 cm

Peso: 64 kg

Constituição: Média

Aparência: Normal

Cabelo: Ruivo, comprido, encaracolado

Olhos: Castanhos

Roupa/Joias: Desconhecido.

Vista pela última vez: Maio, 1999, nas proximidades da Avenue C com a 9th Street, em Manhattan, Nova Iorque, dentro dos limites da 9.ª Esquadra.


Lily, Rachel e Paul andaram pelo bairro a afixar cartazes A4 com a fotografia de Amy nos postes dos candeeiros de cada quarteirão, da 12th Street até à 4th, e em três avenidas, A, B e C. Lily não conseguia deixar de se lembrar de estar a afixar o bilhete de lotaria à parede. De cada vez que pensava nisso, sentia-se a ser um bocadinho apunhalada no peito, andando para o poste seguinte sem levantar a cabeça, com cuidado para não olhar para os amigos, ou para os sem-abrigo das paragens que olhavam para eles debaixo dos seus trapos. Paul amarrou laços amarelos brilhantes por cima dos cartazes.

A Amy desapareceu. 49, 45, 39, 24, 18, 1. A Amy desapareceu. 49, 45, 39, 24, 18, 1.


7

Pássaros do Paraíso


Allison aderiu à nova felicidade conjugal de lua de mel durante três dias seguidos. Foi alegremente à praia com ele no primeiro dia, relutantemente no segundo e com hostilidade na terceira manhã, a queixar-se acerca da humidade da água, da arenosidade da areia, da capacidade solar do sol, da inclinação da colina, a queixar-se dos sapatos que, tanto quanto ele podia ver, não a estavam a incomodar. A queixar-se da omelete que ele ainda haveria de fazer («Estou farta das tuas omeletes.») e do café («Nunca fazes que chegue.»).

Na quarta manhã, não saiu da cama, balbuciando que tinha adormecido tarde e precisava de dormir. Na quinta manhã, disse que não se sentia bem. Doíam-lhe as pernas de tanto andar. Estava a ficar com calos nos pés. Estava a ficar constipada da água fria de manhã tão cedo (26°C!). O fato de banho estava sujo e precisava de ser lavado. As toalhas não estavam secas e não ia sem toalha.

— Allie, queres ir à praia?

— Não. A quantas praias podemos ir? Já as vi todas.

— Já viste uma praia vulcânica?

Calou-se por um momento.

— Areia e água, certo?

— Não. Seixos vulcânicos.

— Queres que ande descalça sobre rochas? Não te lembras de como corto facilmente os pés?

— Allie, vamos só uma hora.

— Não vou. Tenho de colocar as toalhas no secador. Ficam a cheirar mal se não o fizer. Porque não vais tu?

— Não quero ir sozinho.

— Bem, eu não vou.

George foi sozinho.

— E que tal a Praia Hamoa, com areia cinzenta e penhascos de 1220 metros a pairarem sobre o oceano?

— Areia cinzenta? É suposto ser tentada por isso?

George foi sozinho.

Praia Grande, Praia Wailea, Praia de Areia Preta?

— Praia Grande, pouco maior do que a nossa? E areia preta? Que perdição! Agora praias de areia branca no Golfo do México? Isso é que é atrativo, isso é que é bom. Não fica muito calor e a areia é fina como farinha. Porque é que não arranjámos um apartamento na Flórida?

— Porque disseste que havia demasiadas tempestades e que era demasiado quente e húmido.

— Nunca disse isso, nunca! Teria sido uma bela vida.

George foi sozinho.

Lahaina, Estrada para Hana, floresta tropical?

— Queres que vá ver árvores, George? A caminhar pela estrada entre as árvores? Na Polónia havia florestas. E estradas. Vai chover na floresta tropical? Não me parece.

George foi sozinho. Allison foi com ela a Lahaina uma vez porque havia lojas em Lahaina.

— Maui, deus do sol, maldito deus do sol. Amaldiçoou este lugar perpetuamente com longos dias de sol — disse Allison.

George tentou uma tática diferente.

— E se fôssemos ao continente, Allie? Embora voar até São Francisco e vamos de carro em direção ao sul até Las Vegas. Não era demais?

— Calor demais, sim. Tens noção da temperatura que está em Las Vegas em julho? Estão 48 graus. E o que vamos fazer, alugar um carro? Não conseguimos suportar essa despesa. Agora estás reformado, George.

Ele sugeriu levar o próprio carro de barco até São Francisco.

— O quê, o nosso carro, sem ar condicionado, em julho? Vamos sufocar antes de sairmos da Califórnia. Olha, tira isso da cabeça. Eu não vou para o continente no verão. Sabes que não me sinto bem, não posso andar a viajar com tanto calor com todos os meus problemas. Vai custar-me dez anos.

Ele sugeriu fazerem planos para irem no outono, quando o tempo estivesse mais fresco. Tentava apostar no amor dela pelas slots. No amor dela por se aperaltar e, como uma verdadeira pessoa civilizada, dar-lhe dinheiro para esbanjar voluntária e alegremente numa pequena máquina de aço.

Viva! Las Vegas.

Mas ela não conseguia encarar a ideia de viajar fosse para onde fosse com George, de passar todos os momentos acordada com ele, e a dormir também, pois dificilmente conseguiam arranjar dois quartos de hotel, não era? A ideia de não ter quarto próprio para se retirar, onde poderia fechar a porta quando não quisesse ver ninguém, era demasiado para suportar mesmo enquanto mera ideia para Allison. Se não conseguia imaginá-lo, como é que poderia vivê-lo?

— Para já de me aborrecer! Que compulsão é esta de ter sempre de partir? Ir, ir? Porque é que não consegues ficar quieto um momento? E se querias tanto o teu querido continente, porque é que compraste um apartamento em Maui, então? Porque é que me pressionaste a comprar um aqui?

George relembrou-a que tinha sido ela a querer viver em Maui.

— Está bem, manda as culpas para cima de mim. Bem, muito bem, estamos aqui e estou a pagar bastante por este condomínio. Não vou sair daqui por três meses para ir para outro lado qualquer. Que desperdício de dinheiro mais idiota. Sempre foste um gastador. É por isso que agora não temos dinheiro nenhum.

Devagarinho, muito devagarinho, ele sugeriu vender a casa e mudarem-se de novo para leste. Para a Carolina do Norte, talvez, onde havia pesca, jardinagem, estações e lagos, onde morava o irmão.

— Acabámos de chegar aqui e já te queres mudar? És doente, é o que é. Precisas de ajuda profissional. Porque é que não consegues estar feliz em lado nenhum, porquê? Isto aqui é lindo, o que raio se passa contigo? Tens demasiado tempo disponível, é esse o teu problema.

E depois ela começou a cair.

Depois de ter caído a primeira vez, ele perguntou-lhe acerca isso e ela disse:

— Xarope para a tosse. Não tens andado a prestar atenção ao que se passa comigo? Estou muito doente. — E tossiu para enfatizar.

— Talvez te sentisses melhor se saísses do apartamento uma vez por cinco minutos num mês inteiro.

— Olha que bom! Continua, grita com uma mulher doente!

Na manhã seguinte, quando George voltou da caminhada e mergulho diários às oito e meia, ela tinha caído de novo na sala de estar funda.

— É a minha osteoporose — explicou ela depois. — Os meus joelhos vacilam. Já não se dobram como era costume.

Encontrou-a no chão com o correio nas mãos.

— O xarope para a tosse — disse-lhe Allison. — Misturado com antidepressivos. O médico disse que é uma combinação perigosa. Podia ter morrido.

— Então porque os tomas ao mesmo tempo?

— Espera, deve ser o que tu queres, que a tua mulher deprimida tussa até morrer!

De manhã, estava sempre com uma disposição terrível e durante a tarde, George não a via porque ela dormia. Ele odiava cozinhar só para ele, odiava comer sozinho. Mas o que podia fazer? Comia sashimi de atum, com molho de soja e wasabi. Nunca tinha comido atum como aquele que comprava em Maui, ou ananases. Comia-os à tarde, enquanto planeava o menu para o jantar, lia livros de receitas, via o computador, mandava mails aos amigos, telefonava a um dos filhos e sentava-se no terraço a fumar e à espera que a sua mulher acordasse. O sol brilhava, o vento soprava forte, as árvores estavam verdejantes e duas vezes por semana o relvado das casas do condomínio era aparado e o ar ficava tão verde, fresco e a cheirar a relva acabada de cortar enquanto ele comia mangas suculentas.

 

Allison levantava-se horas antes de George, apesar das mantas pretas que pendurava nas janelas para tapar a luz. Assim que o sol havaiano mandava uma seta de luz acima do horizonte, às cinco, Allison acordava. Ela não queria acordar. Queria dormir tranquilamente até ao meio-dia. Não fora com isso que tinha sonhado quando as filhas eram pequenas? Não é com isso que sonha agora a filha mais velha com quatro filhas? Dormir sem ser acordada? Porque é que o corpo de Allison não dorme após o ofuscante nascer do sol?

Era aquele amanhecer havaiano.

À noite, ficava acordada até às duas ou três da manhã, a ver filmes antigos, anúncios, o canal das videntes, o canal de compras e fazia grandes planos para o dia seguinte. Grandes planos. Levantava-se e ia naquela maldita caminhada até à praia com ele, limpava e tratava da roupa, e depois talvez saíssem à tarde para um passeio de carro pela merda da floresta tropical, até ao merdoso vulcão. Talvez até Lahaina, onde ela podia fazer umas compras, ver umas montras. Encontrariam um restaurante perto do mar onde jantariam enquanto viam o pôr do sol. Ah, e ia ler. Tinha tempo. As filhas mais velhas continuavam a mandar-lhe romances para ler. O pequeno apartamento estava repleto das embalagens delas. Não é que ela não tentasse ler. Tentava. Apenas não conseguia ler uma única frase até ao fim. Nem uma. A mente começava a divagar, perdia o rumo dos pensamentos, começava a examinar as mãos, salpicadas pela idade, escurecidas pelos anos. As unhas, a pensar no verniz, vermelho ou transparente? Ia...

Não tinha interesse por nada, nem por uma única palavra sobre a vida de alguém. Será que não sabem o que me está a acontecer? Apetecia-lhe gritar. Estou velha. A minha pele está a descair e os cantos dos meus olhos descaíram. Estou inchada e tenho pele em sítios onde não devia haver nenhuma.

The look of love is in your eyes...

Às vezes, a música do passado soava no sossegado condomínio.

Quero ser jovem de novo, gritava, ao pé da janela. Quero ser jovem e nadar no mar, apaixonar-me, ser bela e vê-lo a apaixonar-se por mim.

Disse-o a George e ele largou-lhe a mão e disse: «Nada no mar todas as estúpidas manhãs, Allison.»

— Não percebes nada — respondeu-lhe. — Eu disse nadar jovem no mar.

Ela não estava a envelhecer graciosamente.

O dia era tão comprido, havia tanto para fazer e não havia nada que ela quisesse fazer, que ela precisasse de fazer. Se o Havai era bonito? Sim, e então? Calmo? E depois? Ela desejava chuva constantemente. Chuva! Céu com nuvens! Cinzento!

Todos os dias eram iguais. A manhã era fresca, à tarde havia vento e à noite era só tons dourados e águas tranquilas.

Vinha outro dia, e outro, e outro. Depois de viver tantos anos na sazonal Nova Iorque, depois de vir em miúda da húmida Polónia do Norte, Allison tinha dito toda a vida que tudo o que queria era um sítio quente para descansar o resto dos ossos gastos. Vieram para Maui depois de ouvirem dizer que era um paraíso. E ali estava.

Allison nunca esteve tão infeliz.

Limpava a casa, mas isso demorava uma hora. Tomava banho. Fazia a cama. Fazia café. Fumava. Fazia de conta que lia o jornal, fazia de conta que lia livros, folheava catálogos, via televisão indiferentemente. Não sabia como viver bem a vida dela. Se ao menos não tivesse tido aqueles filhos todos. Minaram-na, sugaram toda a jovem vida que ela tinha tido e agora também não serviam de conforto na velhice. Nunca tinha notícias deles. Até a mais nova, a quem ela ainda mandava dinheiro. Allison não tinha sobretudo notícias de Lily. A ingrata filha mais nova. A esperança frustrada de Allison.

Mas nem era a inexistente carreira que mais lamentava. Não eram os filhos. Não era o marido. Era a perda da juventude, a perda da beleza da juventude, a perda do tom e suavidade da pele, a frescura atrevida das pernas jovens, os braços, a barriga firme; eram as linhas verticais, as linhas horizontais, era o pescoço que nenhum Creme de la Mer podia solucionar. A juventude. Na guerra contra o Tempo, os seus exércitos minúsculos estavam a ser vencidos e não era uma luta justa. O tempo sabia que ela não era uma criatura mítica que escamava a pele velha quando ia ao mar, saindo nova para as filhas e netas, como uma jovem rapariga dentro de uma velha mulher. Não era tempo de mitos. O tempo todo do dia brincava com Allison, ria-se dela.

E às cinco da manhã, quando acordava com o sol a espreitar promessas através das mantas opacas, o tempo gozava com ela ao máximo.


8

As desvantagens de ir a pé para o trabalho


Spencer estava à porta de Lily. Era final de junho. Ela vestia o uniforme de trabalho: calças pretas e camisa branca. Tinha o cabelo curto apanhado atrás, ainda molhado.

— Detetive... Se a Amy voltar, não acha que será a primeira pessoa a quem vou ligar?

— Não sei. Serei?

— Não há outros vícios nesta cidade para além do de pessoas desaparecidas? Não há ninguém a cometer crimes por aí? Sei que o programa ‘Limpeza de Nova Iorque’ do presidente tem tido um sucesso considerável, mas há de haver qualquer outra coisa para que possa fazer. — Dobraram a esquina e continuaram a andar pela Avenue C abaixo.

— Não há. — Parecia desanimado. — Estes casos de pessoas desaparecidas...

— Este é um caso comum, então? — Lily desejou nunca ter dito aquilo. Soava tão vulgar. E se ele dissesse que sim? Sim, este é um dos casos habituais, comuns, nada de especial. Daqui a um mês, já não será um caso. Será uma estatística. Lily teve um arrepio, mesmo no calor. Porque é que perguntou aquilo?

Mas Spencer, de uma forma louvável, disse:

— A Amy não é um caso típico. — E quando Lily temeu olhar para ele, sob o risco de ver a mentira nos seus olhos e ele o ceticismo nos dela, ele repetiu: — A sério. Não é mesmo. Os casos de pessoas desaparecidas são muitas vezes mal-entendidos. Alguém se muda e não deixa uma nova morada. Ou alguém decide ir numa viagem à Europa por duas semanas e fica três meses. Ou a fuga da adolescente com o namorado que a mãe proíbe de ver. A família contrata um detetive privado e, com sorte, encontra-os no espaço de duas semanas.

— Não há detetive particular para a Amy — disse Lily melancolicamente.

— Há, sim senhora.

Ela parou de andar e olhou para ele, surpreendida.

— A Jan McFadden está a pagar a um. Lenny, o «descobre-porcarias», demitido passados vinte anos na polícia. Nós despedimo-lo e agora, subitamente, é indispensável.

— É um investigador, Detetive O’Malley?

— Investigador é uma forma de descrevê-lo. É uma versão pouco saudável do meu parceiro, com menos noção de estilo. O Lenny não conseguiu descobrir nada. E isso quer dizer alguma coisa, já que o Lenny levanta poeira que por vezes nem nós queremos. — Spencer fez uma pausa. — O Lenny é... digamos, um «limpa-fundos».

— Então isso é bom. A Amy não está obviamente no fundo.

— Quem sabe? Ela fez com que seja impossível localizá-la. Mas, repare, na identificação descartada está tudo. Ela não deixava a identificação para trás sempre que saía. Você mesma o disse. Deixava-a às vezes, contou você. Quando a Amy saía de casa sem identificação, significava uma de duas coisas: ou estava a tentar proteger-se ou a tentar proteger alguém com quem estava.

Lily ficou calada.

— Ela não era assim tão calculista. Talvez esteja a trabalhar nalgum lado. E tentar descobrir se levantou algum tipo de cheque, talvez da Segurança Social?

— As últimas entradas da Segurança Social datam da segunda semana de maio, quando o imposto foi retirado do salário dela no Copa Cobana.

Ele tinha sido muito exaustivo.

— Há mais alguma coisa para verificar?

Sem olhar para ela, Spencer disse:

— No Estado de Nova Iorque não há notícia de cadáveres de jovens mulheres por identificar, quer em hospitais, quer em morgues ou funerárias. Não há notícia de jovens mulheres encontradas em acidentes de carro, comboios descarrilados ou parques públicos. E acredite, temos homens a vasculhar cada arbusto em torno do reservatório do Central Park. Devem faltar-nos só mais três ou quatro anos para pesquisar cada hectare.

Ela pensava noutras sugestões, tentando ser prestável, a andar rapidamente. A Lafayette Street nunca pareceu tão longe. Ele caminhava ao lado dela.

— Talvez a Amy — disse Lily, com a voz a enfraquecer pela diminuição de batimentos cardíacos — não queira ser encontrada.

— Talvez a Amy — respondeu Spencer — queira ser encontrada e não possa.


9

A ignorância na cama de Amy


Às três da manhã, Lily estava acordada. Estava deitada na cama de Amy, a olhar para o teto, a pensar em Amy, a tentar iludir a própria mente para não pensar em Amy. Havia algo a incomodar terrivelmente Lily. Afastou os cobertores e esticou os braços e pernas como se quisesse voar. Tinha uma dor estranha nos membros e o coração não deixava de palpitar. Uma torneira pingava na casa de banho. Lily conseguia ouvi-la claramente pela porta aberta. Quis levantar-se e fechar a porta, mas não conseguia.

Passava-se algo de errado dentro dela. A sua fraqueza, a sua tristeza, a sua exaustão. Talvez Spencer tivesse razão, talvez ela devesse ir falar com alguém. Mas quem?

Lily não conseguia dormir. Uma besta interior rangia os dentes no seu baço, a sugar-lhe a médula óssea. Oh, santo Deus!

De repente, saltou da cama. Onde é que arranjou energia para fazer aquilo? Estava tão cansada. Mas saltou da cama e ficou em pé por um momento, ofegante, a olhar para baixo, para a manta de retalhos de Amy, as almofadas de Amy, os lençóis de Amy.

Foi à casa de banho e depois à cozinha, beber água. A seguir, sentou-se de pernas cruzadas no chão do seu quarto vazio e marcou 1800-c-o-l-c-h-õ-e-s, poupando no último S. Em quinze minutos, às quatro da manhã, comprou um colchão de casal com estrado, tudo por quinhentos dólares — a totalidade do que tinha ganho na semana anterior — e ia ser entregue apenas algumas horas depois, às onze. Que país!

Depois de falar com as pessoas da cama e desligar, Lily ficou no sofá-cama no corredor-sala-de-estar e ligou a televisão miserável a-meio-da-noite, fazendo zapping durante alguns minutos de pesadelo — creme facial, vidente na linha telefónica 900, perca peso rapidamente com a nossa fórmula de sucesso —, pegou outra vez no telefone e ligou para a esquadra. O agente de serviço noturno perguntou se era uma emergência e ela achava que não era, mas não tinha a certeza.

— O Detetive O’Malley não está de serviço esta noite, minha senhora. Posso dizer-lhe de manhã quando ele chegar. Está em apuros?

Lily achou que estava. Mas disse ao agente que não. Desligando, deitou-se no sofá-cama, tirou o som à televisão e observou o ecrã a piscar. Pensou em ligar para o número do beep no cartão-de-visita, mas não o fez. Palavras de uma canção quase esquecida de Springsteen continuavam a vir-lhe à cabeça. Hey man, did you see that? /His body hit the street with such a beautiful thud/I wonder what the dude was sayin’/or was he just lost in the flood?

Brincou com o comando e ajustou as cores para preto e branco. Agora estava a ver o Canal Psíquico a preto e branco e, enquanto fixava a televisão, tudo em que Lily conseguia pensar era nas semanas e semanas que dormiu na cama de Amy sem sequer se preocupar em arranjar uma para si, como se soubesse no seu mais profundo e negro ser que Amy não ia voltar.

 

Tinham planos para arranjarem emprego juntas. Eram ambas artistas, ambas pintavam. Lily gostava de pintar pessoas, tinha jeito para caras e corpos. Amy gostava de pintar naturezas mortas, cadeiras, vasos, árvores. Faziam esboços juntas em Washington Square Park, em Union Square Park, em Battery Park e até no decadente Tompkins Square Park, local de desnorte cheio de sem-abrigos e heroína. Desenhavam as linhas noturnas da Broadway e da Fifth Avenue para mais tarde as colorirem. Mas em muitos esboços, em particular nos últimos, Lily tinha reparado que enquanto ela continuava a adicionar cor onde era necessária, Amy deixava o seu trabalho a preto e branco, cinzento, sem tom, por colorir. Não havia os amarelos dos candeeiros, os vermelhos dos semáforos, os azuis dos carros da polícia. A noite da Estátua da Liberdade, do World Trade Center e do Empire State Building de Amy permaneciam escuras e sem cor. Um dos desenhos tinha só tons escuros e quando Lily perguntou o que era, Amy respondeu que era Times Square na Broadway, à meia-noite. «Onde estão os painéis?, perguntou Lily. Estão sempre ligados. Está nevoeiro, respondeu Amy laconicamente. É um blackout. Não os consigo ver.» Porque é que Lily se estava a lembrar de tudo aquilo agora?

Dormiu no sofá-cama e recordou-se de Amy. Quando acordou, Amy estava tão vívida como se estivesse ainda na cama a dormir.

E Lily chorou.

Chegou o colchão e o estrado metálico. Deu uma gorjeta de vinte dólares aos dois hispânicos das entregas por serem jovens e insinuantes para com ela, tomou um duche, vestiu-se e foi fazer um turno duplo. Depois de ganhar cento e setenta dólares, apanhou um táxi para casa. Agora, pagava dez dólares para apanhar um táxi para casa do trabalho todas as noites, os dias sem táxi ficaram para trás no tempo. Numa noite pensou que bastava levantar o seu 49, 45, 39, 24, 18, 1 e podia ter uma limusine com motorista à espera dela todas as noites quando acabasse o turno de empregada de mesa. Lily riu-se e foi a pé para casa nessa noite.

Nessa noite, Spencer estava à espera dela à porta de entrada.

— Quanto tempo dura esse turno, afinal? — perguntou, fechando o bloco de notas policial.

Ela não conseguiu evitar um pequeno sorriso.

— Detetive O’Malley, são nove e meia da noite. Nunca para de trabalhar?

— Não quando tenho uma mãe a ligar-me todos os dias para saber se eu lhe encontrei a filha — respondeu Spencer.

Lily parou de sorrir e ficou calada. Calada ou derrotada. Tentou contorná-lo, mas ele agarrou-lhe no braço.

— Porque é que me ligou a meio da noite, Lilianne?

— Eu... — gaguejou ela.

— Tem alguma coisa para me dizer?

— Eu só... fiquei preocupada com uma coisa.

— Com o quê?

— Não me lembro agora.

Sentaram-se na entrada. Era uma noite de julho em Nova Iorque, ainda a anoitecer, ainda quente.

— Agora já não sou a menina Quinn?

— Quando a menina Quinn me liga a meio da noite, transforma-se automaticamente em Lilianne. Regra municipal 517.

Quando é que Lilianne se transforma em Lily? Apeteceu-lhe perguntar, mas não o fez. Soava demasiado insinuante.

Spencer disse:

— O Café Odessa na Avenue A e a 7th tem couves recheadas muito boas e estou esfomeado. Posso trabalhar e comer?

— Comer conta como trabalho?

— Claro. Jantar com testemunhas. É chamado de investigação. Venha. Enquanto come, pode tentar lembrar-se em que é que estava a pensar às quatro da manhã. Mas sabe que se me ligar a essa hora da noite, eu vou pensar que a Amy voltou, não sabe?

— Infelizmente, não. — Lily tentou levantar-se da entrada e percebeu que ele resistia à ideia de ajudá-la. Apeteceu-lhe perguntar-lhe se lhe podia chamar Spencer. Parecia estranho ser tão formal.

— Deve ver muitas coisas más nestas ruas, não?

— Sim, especialmente no seu bairro.

— Disse que conduzia um carro de patrulha antes de vir para Nova Iorque?

— Sim.

— Subiu de polícia de trânsito de estrada até à direção de uma divisão especial?

— Antes disso fui detetive principal durante anos em Dartmouth College.

Lily empertigou-se.

— Isso deve ter sido um trabalho incrível! Na verdade, fiz uma visita a Dartmouth no meu último ano da secundária. Parecia mesmo um lugar fantástico para estudar.

— Hum... — respondeu. — Não andei na escola lá. Não sei.

— Mas que tipo de experiência de investigação lhe deu? Prender rapazes universitários aos sábados à noite por beberem álcool sendo menores de idade?

— Se fosse só isso — disse Spencer.

Lily lançou-lhe um olhar curioso.

— Mais do que isso?

— Um bocadinho mais do que isso.

Estaria ele a abrir-se com ela?

— Detetive... a Ivy League Dartmouth tem um lado obscuro?

— Não sei se obscuro é a palavra certa. Talvez perverso.

— Conte lá, por favor. Adoro histórias perversas.

— Noutro dia. Apesar de eu gostar da sua fé naquilo em que acredita. É muito juvenil — disse a sorrir. — Eu sou ligeiramente menos juvenil.

No restaurante, depois de se sentarem e de pedirem, Lily disse:

— Lembro-me do que lhe queria contar.

— É alguma coisa sobre a Amy?

— Sim. Ela fez uma pausa de dois anos entre a secundária e a faculdade. Mesmo depois de acabar a secundária, foi viajar pelo país com alguns amigos dela de Port Jeff. Acho que acabou por se cansar da coisa e voltou para casa.

Spencer interessou-se pela sabática de Amy. Fez perguntas sobre as pessoas com quem ela viajou. Lily contou-lhe o que sabia, o que não era muito de facto. Paul poderia saber mais, tendo frequentado a mesma escola.

— O que aconteceu a todos eles? Voltaram para Long Island, como a Amy?

Lily não tinha a certeza. A única coisa que achava saber era que um se tinha suicidado, um tinha tido uma overdose e outro tinha morrido num acidente de carro derivado de excesso de álcool, esmagando a caravana. E dois andavam por aí, a monte. Mas ela não tinha a certeza.

Spencer parou de comer a sua couve recheada.

Lily tossiu.

— A Amy falava evasivamente desse período da sua vida. Contou-me algumas anedotas do Kansas, de Nova Orleães, mas quase não dava outra informação voluntária para além do pouco que me contou sobre os amigos e de me avisar para não me meter na droga. — Lily olhou para a sua couve fria. — Ela era como você com Dartmouth. Cautelosa.

Spencer bateu na mesa para lhe chamar a atenção.

— Mais lhe vale que ela não seja como eu em relação a Dartmouth. Mas está a dizer-me que, das seis pessoas que viajaram na caravana batida, três delas estão mortas?

— Se o quiser colocar dessa forma.

— Como é que você colocaria?

— É a vida, detetive. Acidentes de carro, drogas, suicídios. O que é que mata jovens hoje em dia para além disso? — Bilhetes de lotaria?

Spencer estudou Lily em silêncio.

— Como você é sábia. Eu digo-lhe o que mais pode matar jovens. Matança ilícita. Homicídio. Homicídio involuntário. Matar com indiferença perversa em relação à vida humana. Assassínio. Mas há mais duas pessoas desaparecidas? O Paul deve conhecer esses miúdos. Andaram todos na mesma escola. Amanhã eu e você vamos falar com ele.

— Spencer... Quero dizer, Detetive O’Malley... — Lily corou. Ele sorriu. — Não sei se o Paul sabe de alguma coisa. Mas esses miúdos não são o importante.

— Acha que não? Seis pessoas juntas num carro com um destino extremo? Não é importante?

Lily perguntou-se se os seus aniversários ou números significativos seriam 49, 45, 39, 24, 18, 1. Mas porque é que se perguntava isso? O que é que os seis números dela tinham a ver com seis pessoas que ela não conhecia?

Conhecia Amy. Amy tinha 24 anos.

Lily também tinha 24 anos.

Era uma linha estúpida de pensamento. Lily desejou que Spencer não a tivesse encaminhado para isso com a sua conversa sobre o destino.

Quando ele ia pagar e tirou o dinheiro, caiu um maço de bilhetes de lotaria da carteira. Ela riu-se.

— Ora, aqui temos um otimista! Faz coleção?

— Sim, quando tiver doze, vejo-os todos de uma vez. Mas o quê, você só coleciona aquele na sua parede?

Sentiu um baque no coração. E outro.

— Mas há alguma coisa em que não repare, Detetive O’Malley?

— Obviamente, menina Quinn, ou não estaria ainda à procura da sua colega de casa.

 

Encontraram-se na tarde seguinte na área de receção do piso térreo da esquadra para irem ao encontro de Paul no salão. Spencer vestia um casaco de fato, dentro do qual parecia ferver, enquanto Lily praticamente não tinha roupa, e ainda assim os seus braços, pernas e pescoço estavam brilhantes. Nova Iorque em julho. Calor.

— Está com um bocadinho de calor com esse casaco, detetive?

— Estou, sim. Mas quem é que me vai levar a sério se eu usar calções minúsculos e um top de alcinhas, menina Quinn?

Lily semicerrou os olhos. Mais uma provocação de Spencer? Ela não queria chamar a atenção para o facto de ele ter reparado na sua roupa de verão. Ele não parecia ser do género de reparar nesse tipo de coisas. Mas tinha dito calções minúsculos. Quando avançou à frente dele para atravessar a rua, perguntou-se se estaria a observá-la.

— O seu parceiro não vem consigo?

— Em pequenas tarefas como esta? Não. Você viu o Detetive Harkman. Gosta de se guardar para as grandes viagens. Durante a maior parte do dia, é só um rato doméstico.

Lily riu-se da expressão.

No salão, Paul declarou que não sabia «nada de nada». Esse período da vida de Amy, contou a Spencer, foi um buraco de dois anos de onde ela emergiu intacta, como se nunca tivessem existido. Acabou o liceu, desapareceu, foi descobrir o seu lado selvagem, o seu novo ‘eu’. Voltou, com o lado selvagem e o novo ‘eu’ descoberto e reentrou na vida. Matriculou-se em Hunter, passou a servir à mesa num bar de coquetéis, transferiu-se para o City College onde conheceu Lily, restabeleceu as amizades e nunca falou sobre os dois anos na estrada.

— Não quero saber sobre os dois anos na estrada. Quero saber sobre as pessoas com quem a Amy viajou.

Paul não as conhecia.

— Você e ela não eram amiguinhos na secundária?

— Os melhores amiguinhos.

Spencer aguardou.

— Vivíamos no mesmo bairro, mas não nos dávamos com as mesmas pessoas, está bem? Ela dava-se com verdadeiros idiotas e eu não. Não eram músicos, nem atletas, nem cromos ou meninos de coro. Não sei quem eram. Não os conheço, não sei os nomes deles, não sei o que lhes aconteceu. Como eu disse, não nos movíamos nos mesmos círculos nessa altura.

— Compreendo. Consegue identificá-los no anuário do liceu?

— Meu deus! Não vejo o interesse. Foi há seis anos. O secundário interessa agora para quê?

— Consegue identificá-los no anuário do liceu? — repetiu Spencer.

— Não, acho que não.

— Pertenciam a algum clube?

— Não sei. Acho que não.

— Eram politizados talvez?

— Talvez. Não sei nada deles. Politizados! Era só um grupo de charrados que não ia a lado nenhum.

— A Amy também?

— Não, ela não! Ela só se misturou com as pessoas erradas, Ok?

— Bem — disse Spencer —, estaria Ok se a Amy não estivesse desaparecida há dois meses. Mas como está, não está Ok, não. Aqui a sua amiga parece pensar que era algo mais do que erva.

Paul lançou a Lily um olhar matador, em pé, agarrado à cadeira de coloração.

— E a Harlequin tem a certeza disso?

— A Harlequin não tem a certeza de nada — disse Lily.

— Exatamente — disse Paul.

Spencer levou-a para fora, a mão dele a fazer pressão momentânea no meio dos seus ombros nus.

Falar com Spencer sobre Amy estava a tornar-se mau para o ego de Lily. Era como estar com Joshua. Lily ficava com a noção, surpreendentemente alarmada, da quantidade de coisas que deveria ter sabido e não sabia.

Teria Amy tido uma vida mais agitada e com mais problemas do que dera a entender, vinda da classe média, branca, a morar no tranquilo Port Jefferson? Teria Amy segredos tão bem escondidos? Ou Lily era menos interessada do que pensava? Não sabia e não queria saber.

Quanto tempo é que Lily esteve sem ser capaz de falar normalmente com a mãe? Quando é que a mãe tinha saído tão cuidadosa e completamente da vida de Lily?

Lily não sabia e não queria saber. Há dez anos, depois da operação de urgência à úlcera? Há nove, em Forest Hills, quando caiu de uma cadeira (!) no apartamento, partiu um braço e o pai disse: «A mãe está bem. Está bem, não te preocupes. Foi só uma queda.»? Lily achou ser uma aberração, um acidente polaco. Foi há tanto tempo. Mas quase não houve mãe desde essa altura. O que é que a sua mãe andou a fazer durante nove anos?

Mais uma camada de ignorância profunda.


10

Coisas no armário


Eram cinco da manhã. O sol mal tinha acabado de nascer e Allison, que estava acordada, ainda fervilhava.

Ela nunca telefonava, nunca, pensou Allison, enquanto serpenteava do quarto para a cozinha, perguntando-se se quereria comer alguma coisa. Nem sequer ligava quando Allison lhe mandava metade da renda e um pouco mais. Desde que Amy desapareceu, a totalidade dos 1500$ tinha recaído nos ombros de Lily. E Allison queria ajudar a filha, que nem sequer telefonava a agradecer! Nem sequer um obrigada por lhe mandar novecentos dólares, como se o dinheiro fosse uma dádiva, um direito inato.

Era típico dela. Lily olhava para tudo como um dado adquirido, como se tudo tivesse de ser servido numa grande bandeja à filha mais nova.

George ressonava atrás das portas de correr do seu pequeno quarto. Estão a ouvir? Dorme como se não se importasse minimamente com o mundo. Nada o intimida. Nem os meus problemas de saúde, nem a minha depressão, nem a minha infelicidade, nada! Ele também não precisa de mim.

Deu uma olhadela às contas, em monte na secretária, em cima das encomendas por abrir de Amanda e Anne. Continuavam a mandar os malditos livros. Mais valia telefonarem, uma vez que fosse, em seu lugar.

Ninguém liga.

Bem, o Andrew liga todas as semanas, para lhe dar um rápido olá e depois ficar a falar durante meia hora com o pai. O Andrew, que não tem tempo para ninguém, fala com o George durante meia hora todas as semanas! Fazem de conta que estão a falar de política e hóquei, mas o que estão realmente a fazer é a ignorá-la. E até Andrew tem telefonado cada vez menos e menos ultimamente.

Foi até à casa de banho e examinou a própria cara ao espelho. Estava deformada e inchada. Examinou os dentes acinzentados (por causa de todo o tabaco e café) e a pele amarelada. Procurou o sumo de mirtilo. Não se estava a sentir bem. O sumo de mirtilo havia de aliviá-la. Fazê-la sentir-se melhor. Deitou uma gota de sumo de mirtilo num copo alto e fitou-o. Tudo o que ela queria era alívio por estar acordada de madrugada. Não conseguia dormir, não queria comer, e não havia nada no mundo que quisesse fazer. Tudo o que ela queria era alívio disto.

Foi até ao armário que tinha uma grande pilha de roupa no chão, roupa de inverno que ela já não usava por estarem no Havai. Não era necessária, da mesma forma que ela não era necessária. Ela poderia estar em cima de uma pilha dentro do armário. Enterrando a mão no fundo, dentro das camisolas, procurou qualquer coisa, bem lá em baixo, escondida por debaixo de camadas, à direita e no fundo. Não era difícil de encontrar. Debateu-se um bocadinho e depois puxou uma garrafa, meio vazia, de gin Gordon. Antes de Allison a retirar, palpou no fundo para se assegurar que ainda tinha outra garrafa cheia. Tinha.

Trouxe-a até ao balcão onde o sumo de mirtilo aguardava por ela. Olhou por um momento para o copo e para a garrafa nas mãos. Decidiu que o buraco dentro dela era hoje demasiado grande para preencher com um copo tão pequenino. Amanhã assumiria o controlo. Amanhã poderia dormir até depois das cinco e talvez ir passear com o George... embora, para quê? A sério, para quê? Porque é que haveria de se controlar, mesmo que só amanhã? Como se tivesse algum sítio para onde ir.

Desenroscou a tampa da garrafa de gin e, de mãos a tremer, levantou-a até à boca. As mãos mal conseguiam agarrar a garrafa tão pesada. Abriu a garganta e derramou o gin, mal tendo de engolir. A garrafa estava muito mais leve, que bom. E o coração dela muito mais leve. Tão bom.

Teve de guardar a garrafa antes de perder...


11

Spencer Patrick O’Malley e Lilianne Quinn


Para fugir do calor do seu apartamento abrasador, Lily estava sentada a jantar às oito de um domingo à noite no Odessa, com ar condicionado, quando Spencer entrou. O restaurante estava quase vazio, mas ela ficou escondida num reservado, umas mesas à frente da porta de entrada, sem que ele a visse. Foi até ao balcão, onde Jeanette o atendeu. Estava de calças de ganga e vestia um incongruente blusão de ganga. Lily estava quase nua, tinha tanto calor. Olhar para o blusão dele só a fez ficar ainda com mais calor. Não queria que ele a visse, por isso deslizou no banco e observou disfarçadamente a interação com Jeanette.

Pediu uma sandes de peru.

— É para levar ou comer aqui, Detetive O’Malley?

Jeanette tinha vinte e nove anos e servia à mesa há onze.

Ele respondeu que era para levar.

— Porque é que não se senta, para variar? Terei muito gosto em servi-lo.

E deu uma risadinha!

Ele declinou e agradeceu, que era só uma sandes de peru, sem maionese, um café grande, uma Coca-Cola grande e outro café enquanto esperava.

Jeanette, toda mamas e olhos devoradores, disse que voltaria em breve e foi para a cozinha. Spencer afastou-se do balcão para olhar para os clientes do restaurante. Lily deslizou ainda mais no seu banco.

Ele viu-a.

Ela fez uma espécie de sorriso e acenou, fechando o bloco de esboços enquanto ele se aproximava. Tinha estado a desenhar a bancada vazia do restaurante num domingo à noite com ela, e não Jeanette, atrás dele.

— Olá, menina Quinn — saudou ele.

Lily disse olá.

— Jeanette, bebo esse café agora, enquanto espero — pediu ele à empregada que lhe trouxe uma chávena, olhando para Lily com extremo desagrado quando Spencer se sentou no banco em frente dela.

Lily perguntou se estava de serviço naquele dia.

— Não, tento não trabalhar aos fins de semana — respondeu.

Devia ter melhor aspeto por não trabalhar aos fins de semana. Parecia esgotado, como se não dormisse há dias. Só sorriu quando viu a comida diante de Lily: uma grande sandes com alface e tomate, uma salada grega, uma fatia de cheesecake, gelatina e pudim de pão.

— Com fome, hoje? — Fez um sorriso ligeiro.

Um pouco timidamente, contou-lhe que nunca sabia o que lhe ia apetecer até a comida estar mesmo à frente dela.

Jeanette trouxe o saco de papel castanho a Spencer, colocou-o à frente dele e disse:

— Aqui estão as suas coisas, Detetive O’Malley. Quer que eu vá agora até à caixa?

Spencer disse:

— Pensando bem, vou ficar e comer aqui. Podia trazer-me um pouco de mostarda, por favor?

Comeram tranquilamente. Ela estava um pouco mais conversadora do que ele. Perguntou-lhe porque tinha o casaco vestido com tanto calor e Spencer, abrindo-o, revelando o coldre com a arma, disse:

— Prefiro não andar a brandir a Glock quando estou de folga. Faz as pessoas ficarem nervosas.

Ela perguntou-lhe por que motivo trazia a arma se não estava de serviço.

Ele respondeu:

— A arma pode ser mais pequena, mas tenho sempre de usá-la. O estar de folga é só um faz de conta. É para nos levar a acreditar que somos devidamente compensados por todos os problemas. Nunca estamos fora de serviço. A cidade de Nova Iorque ficava falida se tivessem de nos pagar 24 horas por dia de serviço.

Ela perguntou se ele vivia nas redondezas, se era o seu restaurante local habitual. Jeanette parecia conhecê-lo tão bem — mas isso Lily não lhe disse.

— Não. Vivo na 11th da Broadway.

— Ah — exclamou ela —, isso é tão perto da Veniero, aquela pastelaria sublime!

— Não conheço. Nunca lá estive. Não acho muita piada a doces — disse, lançando uma olhadela ao buffet de sobremesas dela. Ela encolheu os ombros e comentou que achava alguma piada a doces.

Acabaram de comer e pagaram as contas em separado. Jeanette pareceu contente com a divisão. Spencer abriu a porta a Lily e Lily ficou contente com isso.

 

— O seu nome escreve-se de forma esquisita — comentou Spencer, como se estivesse a fazer uma declaração de importância extrema sobre um facto fascinante.

— Esquisita, porquê?

Caminhavam após a saída do Odessa. Era de noite e estava calor. Estavam cheios. Spencer abrandou um pouco, Lily abrandou um pouco, estavam a passear. À passagem de um bar na Avenue A, retumbou música alta. Bruce Springsteen estava out in the street / walking the way he wanted to walk. Spencer trauteou parte da canção antes de responder:

— Não sei, Lily-Anne. Já tinha ouvido falar de Lilian com um ‘l’ e Lillian com dois. Mas Lili-ANNE?

Lily não sabia ao certo se ele estava a gozar com ela. Não sabia se devia gozar de volta ou proceder com precaução solene. Por fim, optou pela precaução.

— Nasci dezasseis anos depois do meu irmão, e a minha mãe, tendo-se esquecido que já tinha chamado Anne à minha irmã mais velha, quis chamar-me Anya, ou Anita, ou algo parecido. O meu pai disse que já tinham uma Anne, mas a minha mãe não viu isso como justificação suficiente. Não tinham uma Anita. O meu pai perguntou se éramos hispânicos. Foi quando a minha mãe se lembrou de Anya. «Anya nunca!», disse o meu pai. «Nem Anastasia, nem Anika!» Já tinham uma Anne. Nem mais nenhuma Anne. Por isso a valente cedência da minha mãe, como ela o apelida até hoje, foi chamar-me Lilianne. De forma a conseguir ter Anne no meio. Não sei como é que o meu pai concordou.

Spencer sorriu e quando olhou para ela, olhou-a de forma diferente, com mais familiaridade.

— Eu sei porque é que ele concordou. Foi da mesma maneira que o meu pai concordou. Quando nasci, a minha mãe pôs Patrick O’Malley na certidão de nascimento e nunca disse ao meu pai. Chamou-me «Bebé» nos meus primeiros três meses de vida, e assim o meu pai nem sequer soube da verdade. E nunca perguntou, graças a Deus, até eu começar a sorrir.

— Nunca sorriu durante os três meses?

— Você sorria se lhe chamassem Bebé durante três meses?

— Boa resposta. Qual era o mal de Patrick?

— Eles já tinham um Patrick.

Agora era a vez de Lily olhar para Spencer de forma diferente.

— Chamaram-no de Patrick e já havia um Patrick?

— Sim.

— Quantos é que vocês eram? Por favor, diga-me que mais do que dois.

— Onze.

Os olhos de Lily abriram-se muito.

— Talvez queira perdoar a sua mãe — comentou. — Onze filhos!

— Quem disse que eu não perdoei a minha mãe?

— Então ela deu-lhe a alcunha de Spencer por causa do Spencer Tracy?

— Correto. — Olhando-a de novo, em assentimento amigável.

— Spencer é um belo nome irlandês. — Olhava para o chão.

— Quinn é um belo nome irlandês. Porque é que o seu amigo Paul lhe chama Harlequin?

Lily ficou incomodada.

— Uma vez viu um livro de cordel no meu quarto. Nunca mais me deixou esquecê-lo.

— A sério? As minhas irmãs leem isso e não param de me torturar. De acordo com elas, a única forma de eu vir a dar o nó é tornando-me mais parecido com o homem de uma dessas novelas. De que série era o livro? Tentação ou Intriga?

— Brasa — disse Lily, corando de embaraço e rindo a seguir, quando viu a cara divertida de Spencer. Já tinham chegado ao apartamento e sentia alguma pena que o passeio tivesse acabado tão depressa.

— Então, porque é a sua mãe gostava do nome Anne? Quem é a Anne?

— Não sei. A minha mãe simplesmente gosta do nome.

— Gosta mesmo muito do nome — disse Spencer, pensativo.

Lily olhou-o do cimo da entrada.

— Detetive O’Malley — chamou, em tom de gozo —, desculpe informá-lo, mas a preferência da minha mãe pelo nome Anne não é uma das suas investigações de polícia.

— Não esteja tão certa disso. E então a sua irmã mais velha? É apenas uma simples Amanda.

— Esse foi mais um subterfúgio da minha mãe sobre o meu pai. AmANNEda.

Spencer sorriu.

— O seu irmão? Foi poupado?

— ANNE-drew.

Spencer riu-se. E depois disse:

— Ah, claro. O seu irmão é o Andrew Quinn, o congressista do primeiro distrito?

— Sim. O Andrew Quinn.

— Bem, parabéns. Ele foi recentemente reeleito no ano passado, não foi? Lembro-me vagamente. Aquilo foi uma vitória.

— Pode creditar-me por essa vitória, trabalhei na campanha dele. Eu e a Amy. E foi uma derrocada em comparação com a primeira eleição contra Abrams.

Ela abriu a porta do prédio enquanto ele permanecia ao fundo da entrada.

— Muito, muito interessante, Lily Brasa Harlequin. Bem, boa noite. Continuo a dizer que talvez queira verificar o interesse da sua mãe pelo nome Anne.

— Obrigada, Detetive O’Malley. Vou fazer isso no meu abundante tempo livre.

— Menina Quinn, pode chamar-me Spencer.

Lily ficou com um sorriso na cara enquanto subia os cinco lanços de escadas.


12

Um pequeno Honda de aluguer


Lily estava a ter uma conversa incoerente com a mãe. Percebia quão incoerente pela quantidade de círculos pretos rápidos e desajeitados que estava a rabiscar no bloco de desenho, gastando a ponta do lápis, já com os dedos e a colcha de retalhos todos negros. Tinha acabado de sair do banho. Há já uns tempos que tomava banhos. Sentia-se demasiado cansada para ficar de pé no chuveiro.

Agora sentia-se descontraída e sonolenta, mas a mãe mantinha-a ao telefone. Lily estava em cima da confortável cama nova, com as cortinas azuis, da cor do céu, atadas com laços, a ondular atrás de si na brisa quente. Círculos negros, negros. Blá blá blá. Depois veio o pai ao telefone e disse:

— Sabias que a tua mãe lançou o carro por uma vala abaixo?

Fez-se silêncio.

— Podes sair da linha? — pediu Allison. — Não vês que estou a falar com a minha filha?

— Que vala? — perguntou Lily, de forma incongruente.

— Foi uma vala pequenina, ao pé de casa — respondeu Allison.

— A tua mãe quer dizer uma ravina, Lil. Despistou o carro numa ravina, deixou-o lá e agora tem de ir a tribunal explicar ao juiz porque é que deixou um Mercedes ótimo numa valeta, sem notificar um reboque ou a polícia.

Allison não acrescentou nada àquilo.

E a única coisa que Lily disse foi:

— Foi a primeira vez que a mãe despistou o carro numa ravina?

— Sim, foi uma aberração — respondeu Allison.

— Ai foi? — disse George. — Diz isso ao sinal de stop que abalroaste e derrubaste em Wailea Drive no mês passado.

— Isso não conta — comentou Allison. — Era um carro pequeno de aluguer. Um Honda.

— A tua mãe anda a tomar muita medicação, Lily — comentou George, apercebendo-se talvez de como aquilo estava a soar. — Às vezes põe-na a dormir. Torna-a instável ao volante.

Lily voltou a telefonar na manhã seguinte na altura em que tinha a certeza de que a mãe estava a dormir.

— Papi — começou —, não podes deixar a mãe conduzir um carro. A primeira vez foi um sinal de stop, a segunda uma valeta, mas a terceira pode ser uma mulher com um carrinho de bebé.

— Eu sei. Achas que não sei? Eu sei! Quem é que a deixa? Eu não a deixo. Digo-lhe sempre que a levo onde quer que ela queira ir. O que é que posso mais fazer? Mas ela diz que quer dar um pulinho à farmácia, que são só quinze minutos. E Lily, repara, o que é que eu sou, o polícia de guarda dela? Reformei-me para ser o guarda da tua mãe? É uma mulher adulta. Sabe bem quando deve ou não conduzir.

— Não acho que saiba. Acho que não deve conduzir de todo. Na melhor das hipóteses, ela é um pouco... instável.

— E eu não sei disso? Sei disso melhor do que tu, minha filha.

— O que é que se passa com ela, Papi?

— Bem, conheces a tua mãe. Adora dramatizações. Adora que ande tudo à volta dela. «Olha para mim, estou doente, deprimida, não estou bem, vou a julgamento». É uma farsa total. Não se passa nada com ela.

Lily ficou à espera.

— Nada? — perguntou.

— Passa-se uma coisa com ela. Passa a vida a cair. Não pode descer um degrau para a sala, ou subir outro para a porta de entrada para ir buscar o correio, sem cair. Devias ver as pernas dela. Nem imaginas como estão. E os braços. Estão cobertos de nódoas negras. É quase impossível imaginar o péssimo estado das pernas dela. E a tua mãe tem umas pernas bem bonitas, como sabes. — George sorriu. — Se alguém não me conhecesse bem, diria que ela é vítima de violência doméstica.

— Uma pessoa que não consegue descer um degrau até à sala não devia conduzir — disse Lily, sentindo o peso da tristeza a abater-se sobre si.

— Não me digas isso a mim. Diz-lho a ela. — Fez uma pausa. — Ela está agora a dormir. Foi por isso que ligaste? Mas sabes, ela não sai muito. Mesmo nada. Talvez uma vez por semana. Sai de repente de casa. E normalmente é depois de uma semana boa.

— Boa quer dizer?

— Quer dizer sem gritar, ou chateada ou incoerente. Até vai andar comigo. Depois sai de repente e as coisas tornam-se más de novo durante alguns dias, uma semana. Acho que os comprimidos que anda a tomar não são bons para ela.

— Papi? — Lily seria capaz de pronunciá-lo? Respirou fundo. — Passa-se alguma coisa com a mãe. Ela... será que ela anda a...

— O quê?

Lily não disse nada. Era tão cobarde.

— O quê? A beber, queres tu dizer? — perguntou George por fim.

Ela expirou.

— Sim. — Que alívio. Sim! A beber. E nem sequer teve de dizê-lo.

— Não, não. Acho que não.

Lily ficou à espera. George ficou à espera.

— Papi, será que ela fica sem álcool e depois conduz para ir buscar mais?

— Acho que não. Ela regressa com sacos cheios de coisas: champô, sabão, loções, lixívia, os comprimidos. Eu carrego-lhe os sacos. Sei o que traz lá dentro. Não há bebidas alcoólicas nos sacos.

— Ok, Papi.

A caminho do trabalho, Lily pensou que esperava que Spencer fosse um investigador melhor do que o seu pai, pois de outro modo Amy estaria condenada.


13

Lily e a cidade dos sonhos


Numa sexta-feira à noite, já tarde, andava Lily a deambular pelas ruas de East Village à procura dos cartazes que tinham afixado sobre Amy, vagueando pela Avenue C, Avenue B, Avenue A, First Avenue, Second Avenue, Lafayette e, na Broadway, em frente ao Dagostino, deu de caras com Spencer que estava com uma mulher de trinta e tal anos, de braço dado com ele. Estava vestido de forma casual, de calças largas e casaco leve da polícia de Nova Iorque. A mulher usava uma saia e uma blusa. O cabelo dela era castanho e comprido. Era alta. Bonita.

A boca de Lily abriu-se num grande Olá!, de tão contente por ver uma cara conhecida e depois viu os braços dados e não soube o que fazer ou dizer. Spencer respondeu um «Olá, Lily», sem brilho, e ela sentiu-se tão insuportavelmente estranha que quis ter pozinhos mágicos que a deixassem cair através do passeio até lá abaixo à fogueira do inferno. Numa sexta à noite dá de caras com Spencer e sorri que nem uma idiota. E agora tem o sorriso petrificado na cara e não sabe para onde olhar e como raio é que ele a vai apresentar, parecendo uma estátua ...

Spencer apresentou-a:

— Mary, esta é a Lilianne.

Foi tudo o que disse. Lily apertou a mão de Mary, que sorriu educadamente, com tão boas maneiras, tão treinada como um caniche esperto.

— Prazer em vê-lo — disse Lily, afastando-se. — Ouça, tenho de ir, peço desculpa — disse a acenar, correndo para o Dagostino para se esconder na seção de comida congelada. Oh, Deus!

Depois de passar um tempo para além do razoável nas batatas congeladas e refeições leves, saiu da loja e deambulou de volta a casa, tão distraída que quase atravessou o Tompkins Park.

Sentia-se uma desgraçada. Não conseguia pensar como deve ser. Cruzou-se sozinha com Spencer numa sexta-feira à noite! Que espécie de falhada era ela, a vaguear pelas ruas de Nova Iorque à meia-noite de uma sexta? Era a falhada número seis, essa espécie. Amy conhecia seis fracassados e Lily tinha sido a última.

Mas também... mesmo sozinha numa sexta à noite, de forma acidental e surpreendente — até para ela —, ficou contente por ver Spencer, uma cara familiar, uma pessoa familiar. E menos contente assim que percebeu que ele não estava sozinho.

Só dias mais tarde é que Lily finalmente se acalmou o suficiente para se resignar à leve dor deixada pela memória do braço feminino atravessado no braço masculino. Mas não porque... não, não mesmo porque... não era nada disso, ele era demasiado velho e não era o tipo dela. E ela demasiado jovem e não o dele, obviamente. Conhecia-se, sabia que estava a dizer a verdade, não havia nada de impróprio naquela dor. Não foi por causa dele em particular. Foi por ver a calorosa carne feminina no caloroso braço masculino e familiar. Foi o companheirismo da vida de casal que magoou Lily. Estavam todos em redor dela, apercebeu-se mais tarde, às sextas-feiras à noite, casais, de braço dado, a passear por Greenwich Village no verão, felizes por estarem vivos.

E até Spencer, o assediado, taciturno e sobrecarregado Spencer, que quase não se parecia com um homem. E ainda assim, decididamente homem! Não um detetive, não um polícia, não um profissional, mas um homem, a passear com uma mulher, que lhe tocava sem ele contestar. Era isso que doía a Lily. O querer de querer sentir. A inveja e tristeza acutilante da noção de alguém, que ela pensava ser a sua alma gémea nisto, que ela também pensava que não sentia, afinal sentir.

 

Rachel, sempre pronta para ser casamenteira, arranjou logo três encontros a Lily, todos um desastre. Um mal falava inglês, vindo para aqui de Marrocos com um visto de estudante, à espera de se tornar um jogador profissional de basquetebol — isto sem sequer chegar aos 1,80 metros de altura. Até Lily tinha mais juízo.

Outro era um gestor com um cargo superior na Deloit. Tinha trinta e um anos, era baixo e quadrado, mas usava roupa demasiado ousada, conduzia um carro vistoso e frequentava bares para tentar engatar miúdas mais novas. Passou a noite inteira a aconselhá-la a desistir da futura profissão de «alguma coisa em arte» e optar por uma escolha mais sensata, e tirar um curso para se vir a tornar um quadro médio de gestão numa grande corretora. («É onde o dinheiro e a segurança estão.») Lily surpreendeu-se ao dar por si a pensar quão diferente parecia Spencer daquele homem, quão resistente e ainda longe da meia-idade, mesmo havendo algo ligeiramente soturno em Spencer, como se andasse por aí a carregar o sentimento de que a vida já tinha passado por ele.

O último era um miúdo mestiço de Coney Island, adorável, mas obviamente sob o efeito da droga do início ao fim do encontro. E é possível que tenha ido à casa de banho dos homens para tomar mais uma dose do que quer que fosse (cocaína? heroína?) durante o jantar deles em bancos de bar, num sítio foleiro com comida mexicana, em Clinton Hill. Estava desorientado e não se conseguia concentrar em nada do que ela dizia, que admitamos, não era muito. Mas era bem giro!

Lily pediu a Rachel para não lhe arranjar mais encontros. Rachel achou que ela estava a ser demasiado exigente.

— Construíste um muro ao teu redor, um campo de forças e não deixas ninguém chegar perto.

— Obrigada, senhora doutora.

— Não podes deixar que o Joshua tenha assim tanto poder sobre ti, Lil.

— Ele não tem poder nenhum sobre mim — protestou Lily.

Mas Paul, que ouviu falar sobre a conversa, ligou-lhe no dia seguinte.

— Ele tem todo o poder. Deste-lho durante a vossa relação e ainda lho estás a dar. Continua a sair com os rapazes, sê feliz.

Lily tinha saído com os rapazes, mas como podia ser ela feliz?

Sentia algo a fugir-lhe, mas não sabia como solucioná-lo porque não sabia o que era.

Só para demonstrar o tipo de poder que tinha sobre ela, Joshua ligou a titubear, fez algumas perguntas superficiais e depois pediu a televisão dele de volta.

Aparentemente, Dennis estava sem dinheiro. Apareceu por cinco minutos quase mudos e levou a televisão! Pediu a Lily para lhe abrir a porta e ela cruzou os braços e recusou.

Paul parou de lhe chamar Harlequin. Ela tinha saudades disso. Parou de lhe telefonar tantas vezes. Ela também tinha saudades disso. Disse andar ocupado, Rachel disse estar ocupada. Quem diria que Lily algum dia quisesse saber se Rachel estava ocupada! Mas queria saber, mesmo. Lily não conseguia deixar de sentir uma ponta de julgamento vindo de Paul e Rachel, caracterizada pelo distanciamento desagradável e fora de comum, julgando Lily por perder Amy e não saber onde ela se tinha enfiado.

Spencer contou-lhe que o anuário tinha resultado em nada: Paul não conseguia lembrar-se de um único amigo de Amy, nem mesmo visualizando-os. Apontou para três que lhe pareciam familiares, mas depois de serem verificados, apareceram todos sãos e salvos, a dar aulas ou a viver a maternidade em Long Island. À mãe de Amy também tinha dado uma branca. Não se conseguia lembrar do resto dos amigos de Amy, mas conhecia bem Paul. A amizade de Amy com Paul estava mesmo, mesmo bem corroborada.

Chris Harkman continuou sentado à secretária, a conferir os registos telefónicos de Lily. Apesar da verificação exaustiva, Harkman não conseguiu descobrir uma única pista. 90% das chamadas eram de Lily para os irmãos e mãe. Em abril, havia chamadas para um número de Nova Iorque. Aquela maldita Shona, a repetir-se como um sabor amargo na boca de Lily! As chamadas de Amy incluíam as feitas para Paul, Rachel e o Copa, para pedir para mudar de turno. E era tudo. Spencer disse a Lily que a utilização do telefone por Amy parecia igual à identificação deixada na cómoda e à falta de recordações dos dois anos na estrada: todos suspeitos por serem tão circunspectos. Era tão cuidadosa, aquela Amy. «Há alguma coisa que me está a falhar», tinha-lhe dito Spencer. «Tenho a certeza. Só não sei o que é.» Amy não deixou pistas porque Amy não queria deixar pistas. Mas será que Amy quis evaporar-se? Ou era essa a coisa que não tinha sido planeada? Uma coisa era certa: após 14 de maio, e até Lily regressar a 4 de junho, não havia chamadas feitas de casa das raparigas. Onde quer que Amy estivesse, já não estava no apartamento depois de 14 de maio.

Depois de ter sido visto de braço dado com uma mulher adulta, Spencer tornou-se mais profissional com Lily, ele próprio cauteloso e circunspecto. Os dois encontravam-se na esquadra ou no Noho Star, falavam por alguns minutos sobre anuários e registos de chamadas e depois cada um ia para seu lado. Parou de aparecer ou ligar tantas vezes; Lily tinha notícias dele talvez duas vezes por semana, sobre Amy. Sentia um bocadinho a falta dele, sentia a falta de algo apaziguador nele, do seu apoio, sensível e verdadeiro.

 

Nova Iorque, a cidade dos sonhos, a cidade dos pesadelos. A Nova Iorque dos pobres, dos ricos, dos sem-abrigo, dos donos de múltiplas habitações, a Nova Iorque dos oito milhões de pessoas que ali rondavam. Quando chovia em Nova Iorque, iam todos para as livrarias, e quando o sol brilhava, sentavam-se na relva em Central Park com os seus livros. Queixavam-se de que havia demasiado barulho, de que era demasiado cara, demasiado cheia de anfetaminas, demasiado multicultural, demasiado poeirenta. Todos viviam solteiros na grande cidade e quando se casavam e tinham filhos, muitos iam-se embora. Os amigos de Lily, Erin e Michael — ele corretor de Bolsa 24 horas por dia na Shearson Lehman, workaholic confesso —, saíram de Nova Iorque quando tiveram filhos. Mudaram-se para New Jersey. Compraram um apartamento num arranha-céus nas Palisades para que Erin pudesse olhar para Nova Iorque sempre que quisesse. Ele não precisava disso, passando os dias inteiros ali, no World Financial Center, a fazer milhões, perder milhões, entupindo as artérias com stresse e mau café.

Mas Lily não era casada nem tinha filhos. Não havia mais sítio nenhum para onde ir. Vivia perto de Lower East Side, onde a mãe e avó moraram primeiramente quando vieram para a América. E sempre que queria sair de uma parte da sua vida, caminhava pelas ruas de Nova Iorque até se conseguir perder dela própria.

Mas Lily não conseguia andar o suficiente para se livrar do incómodo persistente causado pela persistente ausência sem fim de Amy.

— É por estares deprimida e falida — comentou a irmã Anne. — A depressão está a destruir-te a partir do teu interior. Estar sem dinheiro é horrível. Mas tenho de ir, Lil.

— É porque não consegues libertar-te de algo como o desaparecimento da tua colega de casa — disse a outra irmã Amanda. — Vai dançar. Isso vai animar-te. Vai em frente, como costumavas fazer. Vai ficar tudo bem. És nova. Mas tenho de ir, Lil.

Mas Lily não tinha energia para dançar.

Antigamente, era esclarecida por Joshua, por Amy. Ele não vai regressar, mas até que ela regresse, estou no limbo. Amy, volta e diz-me o que é suposto fazer aos 24 anos, a meio da minha vida. Define a minha vida por mim, Amy.

Quanto tempo é que ia passar a gastar o que ganhava nos deliciosos calamares do Union Square Café e em táxis amarelos? Até Amy regressar.

Quanto tempo é que ia passar a não levantar o seu bilhete de lotaria?

Até descobrir quem ela era.

Até Amy regressar.

Como se não o levantar fosse uma segurança contra o impensável.

A exaustão de Lily ficou pior. Ficou tão má que ela teve de cortar as horas de trabalho de cinquenta para quarenta, para trinta e cinco, para vinte e cinco. Sentava-se durante o intervalo e adormecia. E uma vez não conseguiram acordá-la. Ficaram tão assustados que quase chamaram uma ambulância. Afinal, tinha uma pneumonia.

Tomou antibióticos e comeu fígado de vitela ao jantar todos os dias até perder o apetite para tudo, não só para o fígado de vitela. Tinha medo de se pesar. Nem os doces da Yodels a tentavam. Apesar de a tentarem no supermercado ao fundo da rua. Tinha grandes planos para a Yodels, para a Chips Ahoy, para a Mallomars, para os Double Chocolate Milanos, para o bolo German Chocolate, para o strudel e para os donuts Krispy Kreme. Depois, chegava a casa e colocava-os em cima do micro-ondas. Equilibrava-os delicadamente em cima do micro-ondas e, assim que espirrava, seis caixas da Entenmann e Pepperidge Farm acabavam no chão. Não as apanhava durante...

Bem, ainda estão no chão, por abrir.

Estava calor, mas ela tinha frio. Enroscava-se num casaco de malha que pertencia a Amy e ia ao cinema para dormir.

A mãe mandou dinheiro para agosto, ameaçando-a de que seria a última vez. Quando Lily diminuiu as horas, pediu mais dinheiro, mas Allison recusou enviar-lho. Gritou ao telefone durante dez minutos enquanto Lily, de telefone agarrado à orelha, desenhava uma boca negra perpetuamente aberta num gritante O com o lápis de carvão.

— O teu pai anda a contar-te mentiras venenosas sobre mim, eu sei. Enquanto durmo, tão doente, no meu corpo velho, repleto de nódoas negras, cheia dos medicamentos que me mantêm viva. Eu sei que ele te telefona para se queixar de mim, diz-te que ando a beber. Mas e ele, diz-te alguma coisa dele próprio, como ele se recusa a ser um homem para a sua mulher...

— Tenho — de — ir — Mãe. Tenho — de — ir.

Queimou o antebraço no trabalho e com o passar dos dias, ficou tão infetado que precisou de tratamento médico de urgência e mais antibióticos. Era um esporo fúngico ambulante. Tentou comer iogurte para equilibrar o desequilíbrio de PH no seu corpo, mas descobriu que o iogurte tinha acabado. Lily continuava com ligaduras na queimadura que não sarava. Mais para continuar escondida do que para continuar ligada.


14

No lugar do pendura


Na quinta-feira, 5 de agosto, Claudia sentou-se com Lily e disse:

— Não vou estar com rodeios. A família está preocupada contigo.

Lily torceu as mãos, apercebendo-se de que estavam adormecidas. Largou-as e disse:

— Não te preocupes, avó. Estou apenas cansada, é só isso.

— Não é só isso — disse Claudia. — Não estás demasiado cansada para arranjar um emprego, ou estás?

— Oh, isso. — Sim, demasiado cansada para isso também.

— Sim, isso. A família quer saber se andas à procura de trabalho. Trabalho decente.

— Diz-lhes a todos por mim: não.

— Para de contorcer as mãos. Não estás desesperada. Tens um curso universitário.

— Não exatamente.

— Bem, isso é de propósito, sabes disso. Não sabias que precisavas de mais uma cadeira para acabares o curso? Uma! Três horas por semanas, três créditos. Não sabias disso?

Eu não sabia. Teria energia suficiente para dizê-lo?

— Não sabia. — Boa, Lil!

— Por favor!

— Avó, eu já estava a fazer dezoito créditos no semestre passado, o máximo permitido.

— Podias ter pedido autorização para mais.

— Caso não saibas, eu trabalho para pagar a renda.

— A tua mãe manda-te metade da renda. O teu namorado e a Amy pagam o resto.

— Talvez não me tenhas ouvido nos últimos três meses, mas o Joshua foi-se embora em abril. E acredites ou não, a Amy não paga a renda desde que desapareceu em maio.

Claudia continuou como se Lily não tivesse falado.

— Acho que guardaste esses créditos, consciente ou inconscientemente, para que te pudesses agarrar a alguma coisa, agarrar-te e não avançares. Acho que queres sentir que ainda estás inacabada.

Quis dizer à avó que ainda estava mesmo inacabada. Inacabada, sem resposta, sem forma.

— Não posso ter esta conversa outra vez. Aqui estão as revistas. — Levantou-se do sofá e cambaleou.

— Não vais para mais nova, sabes? Achas que o teu tempo é infinito. Mas vais fazer vinte e cinco no mês que vem. E em breve a tua juventude vai-se embora. Pergunta à tua mãe como se sente por a juventude ter acabado.

— Eu sei como ela se sente. Disse-mo vezes suficientes. E sabes uma coisa? A minha mãe tem problemas maiores para além da juventude ter acabado.

— Que tipo de problemas?

— Esquece.

— Na altura em que eu tinha vinte e quatro, sabes o que andava a fazer?

— Sim, eu sei, avó. Disseste-me...

— Estava num campo de concentração, Ravensbruck, e num campo de extermínio, Sobibor. Andei duzentos quilómetros com a tua mãe às cavalitas. Vivi em campos de refugiados perto de Hamburgo, a dormir no chão durante três meses, e depois em barracas de tifo. Tudo isto na altura em que tinha vinte e quatro.

— Milhares de vezes... — Lily terminou tranquilamente.

Claudia permaneceu sentada.

— Estás à espera de quê? Queres ficar como aquela jovem mulher no Iowa? — Não disse mais nada, como se Lily pudesse intuir ou talvez saber o resto.

— Que mulher no Iowa? — perguntou Lily por fim, num tom sem emoção.

— A mulher, de trinta e quatro anos, que ia no lugar do passageiro no seu carro quando um bloco de construção caiu de uma ponte e atravessou o para-brisas. Acertou-lhe na cara. Um bloco de cimento de sessenta centímetros quadrados atingiu a mulher na cara. O que é que isto te diz?

— Que não devia ir no lugar do pendura? — tentou Lily.

— Exatamente. Lily, não sejas apanhada no lugar do passageiro com um bloco de cimento na cara.

Lily queria pedir à avó para parar, para desistir por um momento, para se lembrar de Lily, da vida de Lily, que Amy estava desaparecida, que a mãe estava desaparecida, que Joshua estava desaparecido, muito embora este fosse para sempre. Que até ela, Lily, estava desaparecida. Mas não havia forma de falar sobre isso quando as suas mãos, as pernas estavam a ficar dormentes, dormentes! Não havia forma de falar sobre nada. Foi-se embora.

 

Na noite de sexta-feira, 6 de agosto, Paul convidou-a a ir vê-lo tocar no Fez, na Lafayette. Lily ficou contente por ser convidada, por isso foi, mas descobriu que era quase impossível permanecer em pé. O barulho e o fumo eram debilitantes para ela, de uma forma que nem conseguia explicar. Foi-se embora assim que o número de Paul acabou. Em casa, o atendedor estava cheio. Rachel pediu-lhe para ir com ela ao cinema. Amanda telefonou a convidá-la para o jantar de domingo. Anne ligou só para saber como estava. A mãe ligou, falou numa espécie de código. «O teu pai vai ser a minha morte» foi tudo o que Lily conseguiu decifrar. O fofinho cheio de coca telefonou a convidá-la para uma bebida, mas desta vez em Bedford-Stuyvesant. «Não frequento Manhattan, baby, mas ó se conheço Bed-Stuy. Anda lá, eu faço-te passar um bom bocado... como antes.» Ela sorriu. Ele tinha-a beijado tão bem.

Mas Lily já não passava bons momentos em Bed-Stuy, não com as nódoas negras que lhe apareceram nas pernas, nos braços, nos ombros. Nódoas negras nas coxas, nos tornozelos. Recusou dar-lhes atenção uma semana antes, pensando que desapareceriam, sem se lembrar onde é que tinha batido. Mas durante o último fim de semana, não tinha batido em lado nenhum e, no entanto, elas apareciam e mantinham-se. As mais antigas não ficavam amarelas. Permaneciam azuis e negras, apareciam novas e cresciam enquanto Lily dormia. Teria caído sem saber? Foi de encontro ao sofá-cama, mobília, vasos e não sabia? Seria sonâmbula? De facto, sentia-se mesmo como se andasse sonâmbula.


15

Os doze bilhetes de Spencer


Na quinta-feira, 12 de agosto, Spencer convidou Lily para jantar. Caminharam em silêncio absoluto, ela lentamente. A dormência e peso das suas pernas fazia com que fosse difícil acompanhá-lo. Estava uma noite nova-iorquina abrasadora, mas vestia calças de ganga e uma camisola de manga comprida da Gap para cobrir as nódoas negras. Não há cá mais calções minúsculos para Lily. Spencer andava ao seu lado e uma vez pensou que ia oferecer-lhe o braço, mas não o fez. Será que aceitaria se ele lho oferecesse? Aceitaria e, por um caloroso segundo, faria de conta que era a Mary numa sexta à noite.

No Odessa, mal se tinham sentado e pedido sopa e couve recheada quando ele disse: — Portanto, cheguei aos doze.

— O quê?

Spencer tirou o maço de bilhetes da lotaria da carteira.

— Doze. Lembra-se de eu contar que quando chegasse aos doze, os veria todos de uma vez?

— Sim... Ganhou?

— Não, acredite ou não.

— Hum...

Tirou o bloco de notas, passou algumas folhas para trás e mostrou-lhe os números 1, 18, 24, 39, 45, 49.

— Mas adivinhe uma coisa? Quando estava a verificar os meus, deparei-me com estes, de 18 de abril, e fizeram-me lembrar algo porque já os tinha visto, sabe? E não me lembrava onde, mas quando revistei o seu apartamento, apontei estes números no meu registo.

Lily ficou calada durante muito tempo sem olhar para ele.

— Está bem. E? Há um bilhete de lotaria. E então?

— E então? Lily... — Spencer pousou as mãos e o bloco na mesa, fitando-a.

— Ganhou a... lotaria?

— Não sei — respondeu. — Não sabia se era a data correta.

— Bem, é mesmo a data correta.

Ela não respondeu. Não havia questão.

— O que é se passa de errado consigo? — perguntou Spencer. E por um momento, Lily, tal como aconteceu com a avó, não sabia a que é que ele se referia, pois errada era a sensação de mal-estar no próprio corpo. — Não fique aí sentada a fazer de conta que não faz a mínima ideia do que estou a falar quando pergunto o que há de errado consigo.

— Veio aqui ridicularizar-me? É que não tenho energia para isso.

— Você não tem energia para uma série de coisas.

— E o que é que tem a ver com isso? — A cara de Lily era agressiva, de perfil. — Já acabámos? Não lhe devo nenhuma explicação, pois não?

Spencer abanou a cabeça.

— Não me deve uma explicação embora eu gostasse de uma.

— Oh, Spencer... — Lily resistiu ao impulso de cobrir a cara com as mãos. — Não tenho uma explicação.

— Ganhou a lotaria e não reclamou o prémio? Percebe porque é que isso pode parecer ligeiramente estranho para um polícia falido, a ganhar setenta mil dólares por ano, a falar com uma empregada de mesa que ganha possivelmente trinta?

Veio a sopa de couve. A couve recheada, a Coca-Cola, o café. Ficaram intocados entre eles, enquanto Spencer e Lily ficaram sentados, ela a torcer as mãos debaixo da mesa, ele com os dedos tensamente entrelaçados por cima dela.

— Não sei o que quer que diga — declarou Lily, por fim.

— Olhe... — disse Spencer. — É normal estar em baixo. É inegável que aconteceu algo terrível na sua vida. Uma jovem desaparece e apesar dos esforços concertados entre a polícia de Nova Iorque, o envolvimento do FBI e um detetive privado, não há sinal dela. Foi engolida pelo mundo, desapareceu no ar. Saiu do país. Está morta. Não ligou a ninguém, não levantou dinheiro, não fez malas, não deixou qualquer bilhete. Um dia, pura e simplesmente desapareceu. E continuamos a andar sobre o mesmo chão infértil. Não temos nada de novo para dizer, mas ainda assim, continuamos a pegar no caso como uma ferida por sarar, como a queimadura no seu braço.

— Detetive... — começou Lily, indo-se abaixo. Esperava que a voz saísse firme. — E se... Como é que eu posso prosseguir com a minha vida se a Amy — Deus me livre — tiver perdido a dela?

— Não sei. — Spencer não olhava para Lily. — Não sei como prossegui quando perdi a minha mulher aos vinte e três num acidente de carro. Mas não ganhei a sorte grande, isso posso garantir-lhe.

— Lamento pela sua mulher.

— Não lamente. Já foi há muitos anos, já ultrapassei. Mas porque é que fica sentada no seu quarto, a olhar para quatro paredes, para os seis números no seu painel de cortiça?

— Não sei — respondeu.

— Então? Faça alguma coisa para se sentir melhor. Pinte. Foi você que pintou aquele quadro a óleo que eu vi no seu apartamento? O da rapariga em Times Square? Está muito bom. Pinte mais.

— Não me apetece pintar.

— Então saia com amigos, vá a uma discoteca, vá ao cinema. Vá jantar fora. Esqueça o fulano que lhe levou a cama, não vale a pena. Saia com outros. — Ela encolheu os ombros.

— Bem, olhe, eu decidi que sou solteira por alguma razão e isso não é motivo para preocupação. É aborrecido quando tenho de despejar o lixo todas as segundas e quintas à noite. Mas, ei, alguma pobre e desesperada alma há de me encontrar um dia. Esse é o pensamento a que me agarro. E depois entra-se naquele drama de ter de ser simpática para as pessoas... Quem, eu?

— Lily... — disse ele suavemente, aproximando-se para lhe tocar na mão.

— Admito que estou um pouco fechada. Mas, e você, detetive?

— O que tenho eu? Eu não sou a questão. EU tenho uma vida de adulto. Não tenho vinte e quatro anos. Não ganhei dezoito milhões de dólares.

E apeteceu a Lily dizer que também não sentia ter vinte e quatro anos.

49, 45, 39, 24, 18, 1.

— É por causa dela que não o reclamou?

— Nem por isso. — Não queria olhar para a cara dele.

— Então porquê? — perguntou-lhe. — É contranatura. É contra tudo o que eu entendo dos seres humanos e eu ganho a vida através dos meus instintos primários.

Lily não podia contar-lhe que, naquele momento, tinha algumas pequenas dificuldades espirituais e recusava atrapalhar mais as suas livres escolhas já de si atrapalhadas pela tentação de um milagre que não procurou e nunca quis. Não sabia que tipo de vida era suposto viver, ou até que queria viver, mas reclamar o prémio acabaria com a escolha dela e mesmo que ela estivesse a chafurdar, a afundar-se, e até mesmo a afogar-se um pouco, não queria as suas liberdades, dádivas da avó, dádivas de Deus, esmagadas dessa maneira. Um coração escravizado não podia escolher de forma sensata, nem insensata. Por isso, apesar de ela atualmente praticamente só dormir, ainda queria reservar os seus direitos, só por precaução.

Era nisso que ela estava a pensar, mas para Spencer, o que estava a dizer com um encolher de ombros negligente era: «não sei o que te dizer. Apenas não o fiz, é tudo.»

— Porque é que não reclamou o dinheiro?

Lily não disse nada.

— Responda-me, porquê? — E levantou a voz.

Lily tocou na chávena de café. Estava frio. Fez sinal à empregada para pedir mais uma chávena. Mas Spencer ainda estava à espera de uma resposta.

— Porque é que está a gritar comigo? — perguntou calmamente.

— Quero que me dê uma explicação que eu perceba.

— Detetive O’Malley — disse Lily —, por muito que o queira, o bilhete de lotaria não vai ajudar a descobrir o desaparecimento da Amy.

Café por beber, sopa por comer, Odessa, agosto, pernas dormentes, calor húmido, barulho, fraqueza.

E Spencer inclinou-se para a frente na mesa e disse:

— Estou apenas a tentar falar consigo e não está a perceber de todo a minha ideia. Faça alguma coisa para além de trabalhar e afligir-se. Reclame o dinheiro, mude de cidade, dê-o aos pobres, invista-o na campanha do seu irmão para o Senado, qualquer coisa. — Interrompeu-se subitamente, parou de falar, olhou para ela.

Lily não sabia como se conseguia levantar todas as manhãs. Não fazia ideia como ia cumprir a promessa que tinha feito a Andrew na primavera passada, quando disse que o ajudava com a campanha.

Spencer continuava a analisá-la atentamente, com a boca de quem está a remoer.

— O que se passa? — perguntou, tão cansada...

Ele pestanejou, saiu daquele estado.

— Nada. Tenho de ir andando. Tenho de voltar imediatamente para a esquadra. — Levantou-se, tirou duas notas de vinte e mandou-as para cima da mesa. — Pensei que éramos um pouco amigos — disse friamente —, que podíamos falar sobre as coisas. — Saiu, deixando Lily sozinha no restaurante.

 

Na manhã seguinte, sexta-feira, 13 de agosto, Lily ainda estava a dormir quando o telefone tocou. Ela não atendeu. Era o Detetive Harkman. Ligou de novo passados cinco minutos. Ela não atendeu.

Meia hora depois, a campainha tocou. Era injusto. Pelo intercomunicador, ouviu-se a voz de Harkman:

— Menina Quinn, podemos falar um instante?

Incrível! Ela pediu-lhe para esperar lá em baixo enquanto se lavava e vestia rapidamente (a passo de caracol).

No exterior, Spencer e Harkman esperavam ambos por ela. Spencer não olhou na sua direção. Harkman disse que precisavam de falar com ela na esquadra. Guiaram de volta no carro de patrulha. Ela sentou-se atrás, como uma criminosa.

De regresso à sala de Interrogatório #1, sentou-se do outro lado da mesa, mas desta vez com Harkman. Spencer ficou em pé atrás dela, de braços cruzados. Não percebia o que se estava a passar. Spencer estava frio e calado.

— Menina Quinn — disse Harkman com brusquidão, os pequenos olhos a atravessá-la —, há algo que eu e o Detetive O’Malley queríamos falar consigo, algo que lhe queríamos perguntar. Apenas uma série de questões sobre uma pequena inconsistência.

Spencer não disse nada. Lily perguntava-se porque é que ele estava a deixar Harkman questioná-la, como se estivesse a remover deliberadamente qualquer relação pessoal entre eles, como se lhe estivesse a dizer: «muito bem, se me tratas como ninguém, vou tratar-te do mesmo modo, como se fosses ninguém.» Sentiu um baque de culpa. Harkman perguntou-lhe qualquer coisa, mas ela estava tão absorta nos remorsos que não ouviu.

— Menina Quinn!

— Desculpe, diga?

— Disse que tinha trabalhado na campanha de reeleição do seu irmão no ano passado?

— Sim. — Franziu a testa.

— Contou ao Detetive O’Malley que você e a sua amiga Amy trabalharam ambas na campanha?

— Sim, provavelmente mencionei-o. Ajudámos na sede de Port Jeff. Ganhámos um crédito universitário por isso, no âmbito da cadeira de ciência política. Porquê?

Harkman e Spencer cruzaram o olhar.

— Nas minhas notas — e Harkman folheou alguns dos seus papéis —, no meu trabalho de fundo neste caso, passei muitas horas a ligar para os números dos vossos registos telefónicos. Um desses números era o do gabinete parlamentar do seu irmão, em Washington.

— E depois? Telefono-lhe para lá a toda a hora.

— Sim, sim. Ele demorou um pouco a ligar-me de volta. Diz aqui no meu relatório que tive de lhe ligar mais três ou quatro vezes até ele falar comigo.

— Ele é sempre assim. Não falo com ele há meses.

— A nossa conversa foi muito breve. Perguntei-lhe se ele recebia frequentemente chamadas do seu apartamento e ele respondeu que costumava ligar-lhe uma ou duas vezes por mês. E os registos telefónicos confirmam-no, assim como as chamadas de retorno para sua casa. Esporadicamente regulares, diria, com duração de vinte ou trinta minutos.

— Sim.

— Tivemos uma conversa curta e desligámos, mas não antes de eu lhe perguntar se conhecia a Amy McFadden. E sabe o que o seu irmão me respondeu?

Porque é que o coração de Lily batia tão depressa? O que poderia ter respondido?

— Ele respondeu, menina Quinn, que não se conseguia lembrar.

Numa voz que não era a dela, Lily perguntou:

— Não se conseguia lembrar de quê?

— Da Amy McFadden.

Sentados em silêncio, Spencer atrás dela, Harkman a arfar à sua frente, enquanto ela própria achava ter parado de respirar.

— Não percebo o que me está a dizer — disse Lily por fim. — Não percebo o que me está a perguntar.

— Perguntei-lhe se ele conhecia a sua colega de casa e ele disse que não se lembrava dela. Repetiu-o duas vezes. Depois teve de ir e desligou. E não achámos estranho. E continuámos a não achar estranho porque não era nada até ontem, até o Detetive O’Malley ter chegado ao escritório e ter chamado a minha atenção para esta pequena contradição.

Nada se mexia em Lily, tirando a cabeça, que lenta e desesperadamente se virou para olhar para Spencer, os olhos a implorarem-lhe por ajuda, por uma explicação, por um esclarecimento.

— Não percebo o que quer dizer — disse Lily, abalada.

— Menina Quinn. — Era Spencer. Finalmente falou. O tom de voz era como se não a conhecesse. Foi para o outro lado da mesa e ficou de pé na esquina. — À luz do que me contou, parece peculiar que o seu irmão diga que não se lembra da sua colega de casa quando você e ela o ajudaram com a reeleição. Ou ele não se lembra dela ou ela ajudou-o na campanha. Não podem ser ambas verdadeiras. Ou você não nos está a dizer a verdade — a Amy não ajudou na campanha —, ou ele não está a dizer a verdade e lembra-se de facto dela.

— Por favor — sussurrou Lily. — Não sei o que está a querer dizer. — Com as palmas das mãos na mesa, Lily debruçou-se, a hiperventilação a atacar-lhe os pulmões. — Detetive — disse, tentando respirar mais devagar para manter um tom calmo. E falhou. — Desculpe, realmente não sei o que está a querer insinuar... Não percebo o que me está a perguntar.

— Poderá ser, menina Quinn — disse Harkman —, que Andrew Quinn não se lembre da Amy?

— Acho que sim, que pode ser verdade, sim — Lily disse-o em ofegante pânico, colocando a mão sobre o peito para acalmar o coração. Era impossível! Talvez uma sala de interrogatório não fosse o sítio certo para tais exclamações da sua alma. A voz dela perdia a batalha e ficava progressivamente mais fraca. Agora sussurrava. — Pode ser verdade. — Era quase inaudível.

E então ficaram os três em silêncio. Spencer observava-a, Harkman observava-a e Lily fitava a mesa. Era como se todo o seu corpo tivesse sido subitamente esvaziado e enchido de novo com terminações nervosas, todas a disparar angústia elétrica na sua pele.

— Menina Quinn...

— Por favor — E levantou-se de um salto. — Se já acabaram, tenho de ir. Tenho mesmo, não posso ficar aqui sentada nem mais um minuto. — Lily gemeu no meio da sala de Interrogatório #1 e saiu a correr. Spencer seguiu-a. Parou-a na rua, fora da esquadra.

— Lily — disse, ligeiramente ofegante —, estás a fugir de mim?

— Sim — disparou ela. — Não. — Tentou empurrá-lo para passar, mas ele manteve-se firmemente à frente dela. — Deixa-me passar. Já acabámos, não já? Deixa-me passar.

Spencer agarrou-lhe no braço para fazê-la parar. Ela tremia.

— Por favor — disse —, deixa-me em paz.

— Lily — disse gentilmente. Ainda estava a agarrar-lhe nos braços, quase a puxou para si num abraço... E ela demasiado agitada para perceber.

— Desculpa. A sério. Estamos só a tentar encontrar a Amy.

— Ah, passar multas de trânsito dá-te experiência com pessoas desaparecidas, não é? — ironizou, tentando afastá-lo. Os joelhos fraquejavam-lhe de tristeza. — Não — disse a abanar furiosamente a cabeça. — Não! — Ainda mais vigorosamente. — Há uma explicação simples para o que quer que estejam a pensar.

— Não estou a pensar nada. — Largou-a e ela ficou parada, mas encostou-se à parede suja do edifício. — Tu é que estás a pensar tudo. Porque tu és a única que sabe se a declaração dele é verdadeira. — Spencer olhou para o chão. — E pela tua reação, parece-me que sabes que não pode ser.

Virando a cabeça para olhar para dentro da janela, o vidro a refletir a captação dos próprios olhos, Lily cobre a cara com as mãos, tentando não chorar.

 

Quando Spencer regressou à secretária, sentou-se pesadamente, olhou o escritório em redor e achou que estava na altura de ir, talvez permanentemente. Em contraste, sentado em frente dele, Harkman estava eufórico.

— Finalmente! Uma brecha no caso imóvel. Uma pista.

— Sim, uma pista. — Passados alguns minutos, Spencer disse: — Acho que o Sanchez e o Smith se orientam a partir de agora. — Virou-se para Harkman na cadeira giratória. — Vou dar-lhes isto. Não posso fazê-lo, Chris. Tenho de sair deste caso.

— Qual caso? O caso McFadden?

Spencer assentiu.

— O que raio estás para aí a dizer? Finalmente fizemos progressos. Um congressista!

Laços de sangue. Irmão e irmãs. Spencer daria tudo por uma bebida.

— Eu sei. É mesmo por isso. Não consigo fazê-lo.

— O’Malley, o que é que te deu?

Spencer fez uma retrospetiva dos edifícios brancos e molhados de Hanover, de New Hampshire, de Dartmouth College até às cortinas negras da sua alma. Pensou em Greenwich, Connecticut, e na emaranhada rede que um dia teceu ao investigar outra rapariga desaparecida e a duplicidade e manipulação dos que lhe eram próximos. A história sórdida deles engoliu-o. Não podia voltar duas vezes àquele lugar. Foram precisos anos como polícia de trânsito na via rápida de Long Island até conseguir ser um investigador normal outra vez. Havia algumas coisas na vida em que uma vez era suficiente. Não eram muitas. Muitas das oferendas da vida eram prazeres renováveis, como o sexo, ou desgraças renováveis, como o álcool. Mas este afogar-se em águas pouco profundas não era algo que ele quisesse reviver, mesmo que estivesse encharcado em uísque.

— O’Malley, estás sobrecarregado. Dá-me os casos mais pequenos. Concentra-te neste.

— Não estou sobrecarregado. Para de me psicanalisar. Este é precisamente o caso que eu não quero. Fico com os mais pequenos. Tenho muito mais que fazer e tu também. O Sanchez e o Smith são mais do que capazes de assumirem o caso por nós.

— Não quero que eles o assumam! Este é um grande caso. Um congressista, O’Malley! Pode haver outra promoção aqui para mim e para ti também. Tenho de pensar na minha família. Já fiz três operações ao coração. Mas que merda é que se passa contigo?

— Chris, desculpa. Simplesmente não quero fazê-lo. Mais não te posso dizer?

— Mas foste tu que vieste ter comigo com isto! — exclamou Harkman. — Foste tu que te lembraste de ler o que Andrew Quinn tinha dito. Ora bolas! Porque é que estás a fazer isto?

Spencer não ia explicar mais nada a Harkman.

— Não me podes fazer mudar de opinião. Não me quero envolver nisto. Há demasiada bagagem aqui para mim. Vou colocar o Sanchez e Smith nisto.

— Não, não vais, O’Malley.

O olhar nublado de Spencer iluminou-se ligeiramente.

Harkman estava em pé e veio até à secretária de Spencer, debruçando-se sobre ele. Spencer afastou-se e deve ter parecido desconfiança, mas era só aversão.

— Seu sacana egoísta! — exclamou Harkman. — Pensas que és o único que sabe coisas. Mas eu sei coisas, O’Malley, sei coisas sobre ti, o género de coisas que os Assuntos Internos teriam interesse em ouvir. Tenho sido muito bom para ti, mas não me lixes com isto, porque eu preciso deste caso. Como sempre, só estás a pensar em ti.

Spencer olhou fixamente para os pequenos olhos zangados de Harkman, para a sua cara inchada contorcida.

— Não te aproximes mais de mim — avisou, levantando-se e afastando a cadeira. — O que é que poderias saber sobre mim?

Harkman recuou meio passo.

— O’Malley, podes crer que se me lixas, eu lixo-te e em grande. Queres uma licença? Farei tudo para que tenhas uma bem boa e prolongada.

Harkman saiu escritório fora, como uma mulher ferida.

Spencer afundou-se de novo na secretária. De que raio estava Harkman a falar? Será que ele era egoísta? Provavelmente. Não pensou em como dar o caso a Sanchez ia afetar Harkman. Só pensou em como ia afetá-lo a ele, se conseguia lidar com isso. E achava que não. Não ia dizer a Harkman que o que ele queria era... não se envolver pessoalmente para não magoar Lily. Se ela ia ser esmagada, ele não queria que fosse debaixo da sua mão. O afastamento do caso seria a coisa mais amável, a melhor para ela. E certamente, a melhor para ele. Spencer sentiu a escuridão, instintivamente pressentiu as águas lamacentas e pouco profundas, o design do pântano, em vez do ar de acidente no desaparecimento de Amy. O que sentia em relação ao parceiro mudou para pior. Spencer odiava ser ameaçado, ainda mais do que a maioria das pessoas. Claro que Harkman estava só a fazer bluff. Spencer tinha alguns segredos a manter e mantinha-os, ainda para mais do parceiro relativamente novo, praticamente um estranho. Agarrou no casaco e saiu.


16

Realidade: a única coisa que aparenta ser


Lily deixou-o entrar, mas de forma tão relutante que nem sequer abriu a porta toda.

— Não sei o que queres de mim — disse friamente, não deixando de lhe notar a cara exausta e o esgar sombrio da sua boca.

— Quero que venhas comigo — disse Spencer, empurrando a porta para entrar —, quero ir falar com o teu irmão.

— Não vou a lado nenhum.

Spencer inspirou profundamente.

— Queres ajudá-lo ou não? — Foi até ao quarto de Amy.

Ela seguiu-o.

— Como é que falar com ele vai ajudá-lo?

Estava a olhar em volta, rodopiando com a mão no ar.

— Lily, mais uma vez percebeste-me mal deliberadamente. Tu e eu podemos ir falar informalmente com o teu irmão neste momento a casa dele ou o meu parceiro e eu teremos de lhe fazer uma visita policial.

— Detetive O’Malley — começou Lily, torcendo as mãos numa súplica —, não percebe? O meu irmão, Andrew Quinn, é congressista. — Baixou a voz. — É casado. Tem duas filhas em idade escolar. Está prestes a começar a campanha para a eleição no Senado. Não é só falar com ele, como o enuncia, é a carreira dele e a família. Não vê isso? Você é um detetive, não pode ser assim tão tapado.

— Peço desculpa, sim, gostava de ser tão esperto como uma raposa — disse. Olhava para as paredes, para dentro do armário. Abria as gavetas da cómoda de Amy. Pôs-se de joelhos e procurou debaixo da cama. — Ela não tinha um diário?

— Tinha. Pensava que o tinhas lido.

— Oh, isso não era um diário, era uma agenda. Não tinha lá nada. Queria dizer um diário a sério. Querido diário, nem acreditas no que me aconteceu hoje, beijei um rapaz, esse tipo de coisa. Todas as raparigas têm um.

— Eu não tenho.

— Claro que tens. O pequeno bloco de esboços que anda sempre contigo. Aquele que tem os teus números da lotaria desenhados em todo o lado. O que achas que é aquilo?

— Não sei do que estás a falar — Lily cruzou os braços. — Queres ir ou não?

— Ela tinha de ter alguma coisa — murmurou. — Deve ter guardado alguma coisa nalgum sítio.

— Quero que saibas que não quero ir — afirmou Lily.

— Acredita que eu quero ir ainda menos do que tu. — Endireitou-se. — Já fiz este caminho antes. — Spencer desviou os olhos antes de a fitar de novo. — Este caminho corrompe a alma. Quero retirar-me do caso, mas não posso. Talvez devesse ter escolhido outro tipo de trabalho. Há muitas possibilidades de isso vir a acontecer depois deste caso. Mas agora, vamos. Talvez haja uma explicação simples, como disseste. — Calou-se. — Talvez a Amy vá entrar por aquela porta a qualquer momento.

 

No carro, ele perguntou-lhe de novo acerca da lotaria e desta vez Lily contou-lhe. Spencer ficou incrédulo.

— És irlandês, católico — disse ela. — Não me digas que não acreditas. Metade da minha família é como a tua. A outra metade esteve do outro lado do Mar do Norte, a viver no norte da Polónia, nos pântanos, a rezar para que Hitler não subisse até às partes perto de Danzig, perto do corredor polaco. Isto não pode ser tudo estranho para ti. — Lily abanou a cabeça.

— Irlandês e católico sim, mas louco não. O quê, achas que lá por eu rezar o Pai Nosso ia deixar um bilhete de dezoito milhões espetado na minha parede no meio das fotos de família? E para além disso, Lily, o facto de não reclamares o prémio da lotaria do Estado de Nova Iorque não altera a ordem das coisas, não altera o facto de os números terem saído e de o teu nome estar neles.

Lily afastou o olhar dele para a janela do pendura, para observar a via rápida de Long Island a apressar-se, as pálpebras pesadas, as pernas doridas, os dedos ligeiramente a tremer.

— É precisamente disso, Detetive O’Malley, que tenho medo — disse ela.

 

Spencer pediu a Lily para lhe contar como era o irmão.

Andrew era casado. Duas vezes. A primeira tinha sido por amor e durou onze dias. Estiveram juntos antes do casamento durante sete anos, mas o casamento em si durou onze dias. Produziu somente uma cicatriz ao desviar a faca que estava apontada ao seu coração. O segundo e atual era... sabe-se lá. Pelo amor dela? Ela amava-o, portanto ele casou-se com ela. E ela tinha algum dinheiro. Por isso tudo bem. Catorze anos depois, ainda eram casados. E ela ainda o amava. E ela adorava ser a mulher de um congressista e adoraria ser a mulher de um senador. E talvez... algures no caminho... a mulher de um presidente. Para quem conhecesse Andrew desde criança, sabia isso sobre ele: é um líder nato de homens e a sua única ambição na vida era continuar a sê-lo a um nível cada vez mais alto.

Foi o presidente de cada clube em que se inscreveu, o presidente da Sociedade Nacional de Honra, o presidente do Clube de Direito, o presidente do Conselho de Estudantes. Em Cornell, foi o presidente da associação de estudantes e era o capitão da equipa de futebol All Ivy Big Red no outono, e da equipa de apoio na primavera.

Andrew nunca falhava quando queria obter o que quer que fosse.

Portanto, aos trinta e quatro anos, concorreu a um lugar no primeiro distrito congressional do condado de Suffolk, e depois de uma batalha sangrenta e de uma amarga recontagem de votos com acusações de erros de ambos os lados, ganhou por cinquenta e dois votos. Em 1998, ganhou a sua quarta reeleição por uns poucos milhares; chamou-lhe a sua «vitória avalanche.»

— Então, Lily, diz-me, o Andrew conhecia bem a Amy?

— Eu apresentei-os. Conheceu-a através de mim — disse, agarrando os braços. — Não só trabalhámos na campanha dele, como nos levava a almoçar, a jantar. A Amy e eu íamos a D.C. de vez em quando visitá-lo. Fomos às compras com ele em D.C. no Natal passado e foi tão divertido. — Baixou a cabeça. — A Amy foi ao Dia de Ação de Graças comigo no ano passado, foi ao nosso churrasco do Quatro de julho. Era minha amiga, ia comigo. Ele conhecia-a como a Anne, a Amanda e a avó a conheciam. Estás a ver? Só pode ser um mal-entendido o que ele disse ao Harkman.

Os Quinn viviam numa mansão colonial na Old Post Road, em Port Jefferson. Parecia quase uma casa normal se se descontasse o facto de ficar a cerca de cem metros do passeio, com arbustos bem posicionados e perfeitamente aparados para cortar o campo de visão da rua para as janelas ou portas. Normal, se não se contasse com a bandeira americana a esvoaçar num poste de seis metros, e um antigo cartaz de campanha ainda pregado ao chão perto do passeio: «Reeleja o congressista Quinn! É bom para Long Island e para a sua família.» Normal, se não se contasse com o carro descaracterizado do outro lado da estrada com dois agentes do Tesouro lá dentro.

A casa dos Quinn estava imaculada, magistralmente decorada, com mármores e madeiras e cortinados a combinar com os estofos, candeeiros a combinar com os cortinados, sem um único papel fora do lugar ou um copo sujo no lava-louça. Miera tratava disso para Andrew. Era uma ótima mulher de político. Tomava conta da casa, das meninas e aparecia fabulosa nas festas, e ainda melhor nas campanhas eleitorais. Já em 1992, Andrew creditou a curta margem da vitória ao polimento de Miera, pois a esposa do opositor não era de longe tão glamorosa ou atraente. «Tenho plena consciência do que ela fez por mim», disse sobre a mulher no discurso de vitória.

Ninguém na família de Lily gostava de Miera. Tinha um nome esquisito, para começar. Ninguém o conseguia pronunciar e ela odiava quem não o pronunciasse corretamente. As pessoas chamavam-lhe Mii-E-ra, ou MII-ra, mas era simplesmente My-ra. Porque é que ela não o soletrava daquela forma? Estava sempre a testar as pessoas, contou Lily a Spencer, a começar por aquilo.

Miera abriu a porta. Era alta, loura, produzida, com frígida boa aparência. Mostrando o distintivo, Spencer perguntou:

— MII-ra Quinn, certo? Detetive O’Malley. Já conhece a Lily. Estamos aqui para ver o congressista Quinn.

Lily apertou os lábios para se impedir de sorrir involuntariamente.

Esperaram na entrada, perscrutando o ambiente. Spencer reparou que a porta era feita de metal grosso impenetrável e as janelas tinham vidros fumados, e à prova de bala, apostava. Comentou calmamente com Lily que a casa parecia bem fortificada.

— Sim. É a vida de político. Ele teve... Bem, tu sabes... há uns anos, alguém disparou contra eles na Route 110, quando regressavam do cinema. Estavam simplesmente a conduzir na estrada e pum! Dispararam para as janelas, pregaram um susto de morte às miúdas e à Miera.

— Não ouvi falar disso. Magoaram-se?

— Sim, o vidro cortou-as um bocado. A Miera teve de ser operada. Uma lasca de vidro alojou-se no olho.

— Quem foi?

— Oh, uns delinquentes. Ninguém sabe. Miúdos estúpidos sem nada para fazer a não ser arranjar problemas. Mas uma vez, foi encontrada uma bomba por cães-polícia na suite executiva em Washington. Por isso, tornou-se um pouco mais cuidadoso.

— Então como é que vocês conseguiam ir almoçar e jantar fora?

— O Andrew preocupa-se com a família, mas ele próprio não quer viver numa prisão. Arrisca-se, o que é que eu posso dizer... Até agora correu tudo bem.

Ainda não tinham sido conduzidos até à cozinha, a um escritório ou à sala de jantar. Deixaram-nos ficar em pé sem uma bebida ou onde se sentarem. Lily franziu a testa e sussurrou:

— O que é que eu te tinha dito? Ela odeia-me. E depois de teres pronunciado mal o nome dela, esquece, nunca te vai oferecer uma bebida na casa dela.

Antes que Spencer pudesse responder, Andrew desceu até à entrada para os cumprimentar. Tinha a cara acabada de barbear, aberta, feliz e amigável, um aperto de mão vigoroso. Tinha altura e cintura. Tinha ficado prematuramente grisalho, o que na política lhe dava uma margem sobre os seus oponentes de aparência jovem e inexperiente. Sorriu, olhou de frente para Spencer enquanto lhe apertava a mão, colocou-lhe a mão nas costas e conduziu-o para dentro. Deu um grande abraço à irmã. Era Andrew, um homem de grandes abraços.

— Lily, desculpa-me dizer-to assim, amo-te como um irmão, mas tens de descansar. E de comer alguma coisa. Olha para ti! Tens fome?

Ela abanou a cabeça. Sentaram-se nas almofadadas cadeiras de ferro-fundido na cozinha de granito, enquanto o próprio Andrew lhes servia limonada. Spencer recusou a limonada, levantou-se da cadeira e perguntou:

— Podemos falar alguns minutos a sós?

No escritório com painéis escuros de cerejeira e vista para o arranjadinho e limpo pátio verde e floral, Andrew sentou-se à secretária e Spencer e Lily nas cadeiras em frente.

Lily estava tão desconfortável que não era capaz de tirar os olhos do chão. Havia uma dor fora do normal na parte superior das pernas a viajar até ao estômago que ela nunca tinha experimentado até então, uma dor surda e acutilante ao mesmo tempo, possivelmente vinda das nódoas negras das coxas. Se não tivesse um fosso tão grande aberto no estômago, podia sentir como a dor nas pernas e abdómen era capaz de lhe tirar o ar. Certamente que não conseguiria recuperar o fôlego agora. Levantou o olhar para Spencer, que estava completamente calmo e as duas mãos dele não estavam tensamente apertadas como as de Lily, para escudá-la da dor. Parecia quase descontraído quando disse:

— Senhor congressista, sabe porque é que estou aqui?

Andrew sorriu agradavelmente e abanou a cabeça.

A dor nas pernas de Lily tornou-se mais forte.

— É por causa da Amy McFadden.

— Ah. — Andrew calou-se e olhou para Lily. — O que é que se passa com ela?

— Sabe que estou a investigar o desaparecimento dela.

— Sim, sim. O seu parceiro, Harkman, seria? Ele falou-me disso. Foi encontrada?

Spencer ficou em silêncio.

— Não. Mas a questão é esta... O senhor sabe de quem estou a falar, não sabe? Amy McFadden?

— Como assim? Era a companheira de casa da minha irmã. — Andrew continuou a olhar para Spencer.

Ela tentou sorrir, mas não conseguiu fazê-lo através do seu coração acelerado.

— Bem, está certo. Senhor congressista, porque é que contou ao meu parceiro que não se conseguia lembrar da Amy?

— O quê? Acho que não disse isso.

— Disse.

— Não posso ter dito isso. Tenho a certeza que disse que a conhecia de passagem.

— Não, senhor congressista. Os registos da conversa dele consigo são bastante claros. O senhor disse que não se recordava dela.

Andrew riu-se.

— Então devo ter percebido mal a pergunta. Estava muito barulho no escritório. Não conseguia ouvir. Pensei que ele estava a perguntar-me coisas sobre os telefonemas. Nunca podia ter dito que não me lembro da Amy. Não seria verdade.

— Então o que disse?

— Estava talvez a responder a uma questão que ele não fez.

— Ele foi muito específico. Conhece a Amy McFadden foi a pergunta dele.

— Acho que não o ouvi devidamente. É óbvio que não foi a essa questão que respondi.

— Não, é óbvio que não. — Spencer lançou um olhar a Lily. — Então a que é que estava a responder?

— Não sei. Mas a Amy era amiga da Lily e elas vieram a minha casa a festas de família, foram ver-me a Washington. Quer dizer, isso é simplesmente absurdo. É manifestamente um simples mal-entendido. Ou eu me enganei ou ele percebeu mal.

— Você não disse não me lembro dela?

— Claro que não!

Não a incomoda nem um bocadinho, menina Quinn, nem sequer um bocadinho pequenino, que a sua melhor amiga não lhe tenha contado nada acerca da vida amorosa dela? Isto é, porque é que ela fazia segredo disso consigo?, Spencer tinha perguntado a Lily ainda em junho.

Oh, meu Deus.

Lily gemeu. Ambos os homens olharam para ela.

— Desculpem — disse. — Não me estou a sentir bem. — Coxeou para a saída sem deixar entrar ar nos pulmões até estar na casa de banho, onde se sentou, a balançar-se com as mãos a cobrir as pernas doridas. A dor era parecida às agulhas que se sentem nas pernas dormentes, depois de acordarem de um sono forçado. Era alguma coisa parecida, exceto que estas não eram agulhas. Eram facas e as pernas não acordavam e a dor não parava. Sentou-se na casa de banho, gemeu e balançou-se.

 

Andrew e Spencer ficaram no escritório.

— A minha irmã está bem? Tem um aspeto horrível.

— Acho que não se está a sentir bem. Tem andado adoentada ultimamente.

— Parece. Detetive, há mais alguma coisa que possa fazer por si? Tenho gosto em ajudar. Não conhecia bem a Amy, mas como disse, conhecia-a através da Lily. Eram muito próximas. A minha irmã estava sempre a falar dela.

— Congressista, alguma vez foi visitar a sua irmã ao apartamento dela?

— Sim. Raramente. Mas estive lá uma ou duas vezes.

— Então não tem objeções a que eu tire uma amostra do seu cabelo? Temos uma série de cabelos desconhecidos que estamos a tentar identificar. — Spencer tirou um saco de plástico do bolso do casaco, um raspador e uma tesoura pequena.

— Claro. Não há problema nenhum. — Andrew baixou a cabeça para que Spencer pudesse cortar-lhe um pouco de cabelo. — Mas não lhe vai servir de muito. Eu estive no apartamento.

— Com certeza. Queremos apenas eliminar toda a família e amigos para ver o que sobra.

Spencer achou Andrew um homem charmoso. Ele era neutro em relação a homens charmosos. O charme deles não era perdido, mas sim desperdiçado com ele.

— A Amy alguma vez o visitou sozinha?

— O quê? — Andrew afastou-se um passo de Spencer e semicerrou os olhos.

— Congressista, é uma pergunta simples. Alguma vez a Amy veio visitá-lo sozinha, sem a Lily?

— Visitar-me onde?

— A qualquer lado. Aqui em Port Jeff. Em Washington. Em Nova Iorque. A pergunta era se alguma vez ela foi vê-lo sozinha?

— Não sei — respondeu Andrew. — Não me recordo. Deve compreender, detetive, eu lido com centenas e centenas de pessoas por semana. Não consigo lembrar-me de cada uma que me vem ver. Apenas não me recordo. Pode ter vindo aqui ao meu escritório, talvez passar para dizer olá. A família dela não vive em Port Jefferson?

— Sim.

— Bem, então. Talvez tenha passado. Não tenho memória disso, mas não quer dizer que ela não o tenha feito. É apenas algo que eu não registo. — Sorriu educadamente.

— Quando acha ter sido a última vez que não se recorda de ver a Amy passar por cá?

— O quê?

— Você não respondeu a uma única questão que lhe tenha perguntado diretamente. Nem mesmo esta.

— Se me permite, esta foi particularmente complexa.

— Era para ser irónica. Quando foi a última vez que viu a Amy?

— Não sei. Já há um tempo que não via a minha irmã, por isso há uns tempos.

— Quando foi a última vez que viu a Amy sozinho, sem a sua irmã?

— Já lhe disse, não me recordo.

— Alguém do seu gabinete é capaz de confirmar a visita da Amy ao seu escritório de Port Jeff? Talvez o seu chefe de gabinete? O seu assistente? A rececionista?

— Eu não anoto visitas improvisadas dos meus eleitores no meu livro de registos, detetive.

— A Amy não era sua eleitora. Vivia em Nova Iorque.

— Percebeu o que quis dizer.

— Quantas vezes é que a Amy passava... de improviso!?

— Detetive, ela não passava. O que é isto?

Ouviu-se bater à porta.

— Andrew? — Era Miera. A porta abriu-se. — Peço desculpa por interromper. Mas passa-se alguma coisa com a tua irmã. Ela está... Não sei o que está a acontecer com ela. Está na casa de banho e soa como se estivessem a abri-la.

 

No carro, de regresso, depois de quilómetros e quilómetros de uma plana Long Island à volta deles, de quilómetros e quilómetros de via rápida, algures em Westbury, depois de cinquenta minutos de silêncio, Lily falou. Como conseguiu Lily abafar um gemido; como o fez? A dor nas pernas era incessante. Na voz mais calma possível, expirou:

— Vê, Detetive O’Malley, eu disse que havia uma explicação simples.

Vê-lo a agarrar o volante sem dizer nada tornava a agonia interior dela ainda mais aguda.

 

O irmão e Amy voaram sobre Lily nessa noite, perfurando-a com as suas vidas separadas, os julgamentos separados. Os julgamentos de Lily eram na sua cama, onde estava deitada com tantas dores, a gritar com Andrew, Amy, Joshua, Spencer, e para as paredes vazias. A gritar pela mãe, por alívio. O que tinha dentro do corpo que a alvejava assim; o que era aquilo no seu abdómen? O estômago parecia estar a ser esmurrado por uma bola de aço a partir do interior.

Finalmente, depois de horas a contorcer-se, ligou à irmã Amanda que não ligou de volta. Ligou à irmã Anne, mas Anne estava fora e não atendeu. Ninguém atendia, mas Lily precisava desesperadamente de alguém. Não podia telefonar à avó, que não conseguia sair de casa e não podia ligar à mãe, que não podia ajudá-la e também não queria. Lily ligou à única pessoa que sabia que não viria. Ligou a Joshua. — Desculpa, Lil — disse. — Ainda estou no trabalho e depois vamos sair. Pode esperar até amanhã?

Ligou à única pessoa que viria.

Ligou a Spencer.

Era sexta-feira à noite, já tarde. Ligou para o beep e ele ligou-lhe de volta passados minutos.

— O que se passa? — Parecia acabado de acordar.

— Spencer — sussurrou Lily —, podes por favor vir ter comigo e levar-me para o hospital?

— Vou, o que é que tens?

— Não sei. Mas passa-se alguma coisa comigo. — Deixou cair o telefone. — Por favor, vem logo...

Ele foi logo. Com o braço à sua volta, conseguiu chegar lá abaixo e lentamente, suportada por ele, apanharam um táxi e foram para o Hospital St. Vincent na 12th Street.

Enquanto a enfermeira estava a colocar o medidor de pressão arterial no braço de Lily, perguntou-lhe:

— Porque está aqui?

— Tenho uma dor de estômago — expirou Lily, com o braço esquerdo ainda a apertar o abdómen.

— Hummm... Tem a tensão arterial baixa... — disse a enfermeira.

— Baixa quanto? — perguntou Spencer.

— É o marido? — A enfermeira olhou ceticamente para os dedos sem anéis de Spencer e Lily.

— Responda apenas à pergunta — disparou ele. — Quanto?

— 80/40. Vou chamar o médico.

Ela saiu e eles esperaram.

— Isso é baixo, Lil.

— Eu sei.

Spencer limpou a testa. Lily vestia uma camisola azul.

— Não tens calor?

Estava dobrada sobre os joelhos.

— Não sei.

A enfermeira voltou.

— Deixe-me pesá-la. Tire os sapatos.

Spencer ajudou-a. Subiu para a balança. A enfermeira moveu os pesos de 54 para 45 quilos. Lily tinha 46 quilos.

— Qual é a sua altura?

— 1,64 cm.

Pela primeira vez a enfermeira da triagem olhou para Lily com uma expressão que bem podia ser preocupação.

— Está a tomar alguma medicação controlada?

— Não.

— Vão fazer-lhe análises ao sangue, vão descobrir, sabe.

— Eu quero que descubram.

Finalmente levaram-na para um quarto. Spencer saiu para que ela vestisse uma bata de hospital. Quando voltou, ela estava deitada de lado, de olhos fechados, os braços enlaçados à volta do estômago.

— Lily — perguntou em tom chocado. — O que raio é que se passa com as tuas pernas?

As coxas tinham nódoas negras do tamanho de toranjas.

— Não sei.

— Caíste?

— Não.

— Alguém te... bateu?

— Claro que não — murmurou.

— Então o que é isso?

— Não sei. Nódoas negras?

— De quê?

Seguidamente chegou o médico, de meia-idade, magro, baixo, indiferente.

— Sou o Doutor Mladek. Qual é o problema?

Lily gritava. A dor tinha voltado.

Colocou uma mão sobre ela.

— Pare de gritar, diga-me o que se passa.

Ela gritava e não conseguia parar. Mladek perguntou-lhe se estava grávida. Lily abanou a cabeça. Spencer afundou-se numa cadeira ao pé da cortina que separava o cubículo dela do resto do serviço de urgências.

— Quando é que teve o último período? — Mladek estava a medir-lhe o pulso.

Teve de pensar.

— Maio, acho eu.

Mladek largou-lhe o pulso.

— Isto pode ser uma gravidez ectópica — disse-lhe.

Lily abanou a cabeça.

— Quando foi a última vez que teve relações sexuais?

Não tinha estado com Joshua desde o início de abril e era agosto. Escapou por um triz a sexo de primeiro encontro com o bonitinho de Brooklyn. Estaria grávida de quatro meses sem saber? Achava que não. As gravidezes ectópicas não aconteciam nos primeiros meses?

— Deixe-me palpar o seu estômago, por favor. — Virou-se de costas. — Há quanto tempo tem esta dor? — Ele palpava por cima da bata de hospital.

— Desde esta tarde — respondeu-lhe.

— Poderá ser uma rutura do apêndice? — perguntou Spencer.

— Pode ser — respondeu Mladek sem parar o exame. — Muito provável, de facto.

— Isso seria um milagre — disse Lily quando conseguiu falar. — Porque me tiraram o apêndice há doze anos.

Mladek perguntou-lhe se ela conseguia andar até ao Raio-X. Não conseguia. Puseram-na numa cadeira de rodas.

Os ossos dela estavam ótimos. Mas... viram qualquer coisa nos pulmões e recusaram dizer-lhe o que era. Tiraram-lhe sangue, pediram uma amostra de urina.

Finalmente, fizeram-na beber meio litro de água azulada enjoativamente doce.

— Para fazer um TAC. — Lily não conseguia, não parava de vomitar.

Mladek fez ele próprio a ecografia e disse em tom pensativo:

— É estranho. Parece que pode estar com uma hemorragia interna. O que poderia explicar a dor abdominal.

— Porque é que eu haveria de estar com uma hemorragia interna?

— Bateram-lhe? Teve um acidente?

— Não e não.

Mladek saiu. Lily ainda estava na mesa de ecografia. Spencer estava calado ao lado dela.

— Não tenho médico — disse. — Nem sequer tenho seguro. Como é que vou pagar por isto? Emergência, Raios-X, ecografias, os honorários dos médicos.

— Pagas tu — disse Spencer.

— Com o quê? — murmurou.

— Com dezoito milhões de dólares.

— Já te disse que não vou reclamar o prémio até a Amy voltar.

— Está bem, Lily.

Esperaram.

— O que achas que é, Spencer?

— Sou detetive, não médico. — Calou-se e desviou o olhar.

A dor dentro do abdómen vinha em ondas. Hemorragia interna, o quê, porquê?

Mladek regressou com uma enfermeira.

— Vou administrar-lhe uma gota de morfina — disse. — Precisa de algum alívio.

Por um momento Lily nem quis saber o diagnóstico. Tudo o que ouviu foi a palavra alívio.

— Obrigada — murmurou. — Alívio de quê?

— Olhe, vamos transferi-la para outro hospital. Vamos mandá-la para o Mount Sinai.

— Porquê?

— Têm melhores condições.

— Condições para quê?

— Para lhe fazerem uma biópsia à medula óssea. — A cara de Mladek’s já não estava indiferente. — Os seus glóbulos brancos estão descontrolados. Tem andado doente?

— Não me tenho sentido bem.

— O número surpreendente de glóbulos brancos, escassos glóbulos vermelhos e quase nenhumas plaquetas... as nódoas negras nas pernas... há quanto tempo não se sente bem?

Lily não respondeu. Há meses?

— Porque é que não foi ao médico?

— Pensava que era só uma constipação. — Parou para tomar fôlego. A onda de dor bateu no abdómen outra vez. Onde é que estava aquela morfina? — Depois pensei que era psicológico. Tenho andado... sob muito stresse ultimamente.

— Teve alguma constipação que não conseguisse curar?

— Uma pequena pneumonia no mês passado. Foi isso que viram nos meus pulmões?

— Não fizeram análises?

— Para a pneumonia? Não. Fui a uma clínica. Auscultaram-me o peito, deram-me antibióticos.

— Teve alguns cortes ou nódoas negras que não sararam ou demoraram muito tempo a sarar?

Lily olhou para Spencer, lembrando-se do corte no dedo de há meses que deitou sangue durante dias, a queimadura infetada de umas semanas antes.

— Sim, pensei que era psicológico — respondeu calmamente.

— Deitar sangue é psicológico? — perguntou Mladek. — Suar, perda de apetite, perda de peso, cólon irritável, dores de cabeça, esses podem ser psicológicos. Mas sangrar?

— Tinha muita coisa em que pensar — retorquiu. — Já estive doente antes. Pensei que ia passar.

A enfermeira estava a preparar uma injeção, enquanto Lily estava ali deitada de braço esticado.

Mladek levantou ligeiramente a bata para expor as coxas dela. Fixou as nódoas negras escuras do tamanho de uma toranja, silenciosamente, e depois saiu da tenda.

Ficaram sozinhos. Spencer não olhava para ela.

— Spencer? — chamou. — O que é que achas?

— Não acho nada — respondeu Spencer.

Ficaram lado a lado, a glucose a pingar lentamente para as veias, o braço esquerdo ainda à volta do abdómen dorido. Spencer sentado na cadeira, ligeiramente recolhido, a olhar para as mãos.

— Obrigada por ficares comigo — murmurou.

— Não tens de quê.

— Estavas a dormir quando te liguei?

— Algo parecido.

— Estavas com a...Mary? — perguntou.

— Sim, felizmente para ti, estava.

Lily não percebeu o que ele quis dizer com aquilo. E de repente havia confusão e Spencer teve de se levantar e sair. Ela estendeu a mão para ele, mas ele não viu.

Não se lembrava do trajeto até ao Mount Sinai. Esperava que a tivessem levado de helicóptero; teria sido o máximo. A entrada do hospital, as paredes, os cheiros estavam a ser todos filtrados pelo nevoeiro da morfina. O estômago parou de doer. Ouviu alguém dizer que lhe iam administrar um anestésico geral.

— Um pouco de oxigénio para a sua perna — disse-lhe um médico, com um sorriso, e ela a sentir as facas na perna outra vez.

Recuperando o fôlego, gritou:

— O que é isso, o que é isso? — E caiu.

...Na escuridão, da qual saiu uma eternidade depois, acordando lentamente e grogue. As enfermeiras mudamente alvoraçadas em redor dela, a levantar o braço, a verificar a tensão arterial, o pulso, a ajustar o soro, a reabastecer o saco plástico, a endireitar as almofadas. Alguma coisa a magoou na anca, uma nova dor, apesar da morfina, em cima da morfina.

Uma enfermeira era negra e parecia apreciar comida. Cheirava levemente a hambúrgueres, Milky Ways e fumo de cigarro. Sorriu para Lily. A outra era filipina e Lily podia até ser um atum, a julgar pela compaixão dos seus olhos. Quis perguntar por Spencer, mas teve medo de que ele se tivesse ido embora. Por favor, está aqui. Não tinha sede, mas a boca estava gretada, a garganta seca. Pediu uma bebida, a enfermeira negra levou-lha aos lábios. Já não havia dor, exceto o desconforto da anca. Murmurou:

— A dor passou.

— E a enfermeira negra disse:

— Não passou, com a morfina fica tudo escondido. — E era verdade, estava tudo escondido.

Tudo.

E no espaço escondido, entre a escuridão e o quarto do hospital, nos intervalos e recantos da dor sem sentido, Lily lembrou-se do frio húmido — era em Times Square, estava tão chuvoso, tanto frio. Não estava sozinha dessa vez, estava com Amy, estavam à espera de Andrew, há muito tempo. Finalmente Lily ia apresentar a nova amiga ao irmão. Viu-o a descer a Seventh Avenue em direção a elas, os painéis brilhantes atrás dele e a gabardina toda molhada. Tinha um chapéu de chuva preto sobre a cabeça e sorria. E quando Lily se virou para Amy, ela também estava a sorrir.

Libera me Domine. Liberta-me de ter de pensar sobre isso de novo. Mostra-me o caminho, sem números, sem tubos de aço, sem blocos de cimento no meu percurso. Que alegria seria! A minha vida toda em morfina metafórica.

Libera me Domine.


PARTE II
O MEIO DO CAMINHO

 


Disse à Vida que gostaria de ouvir a Morte, E a Vida ergueu a voz um pouco mais alto e disse: Estás a ouvi-la agora.


KAHLIL GIBRAN


17

O maior rio do Egito


— Passa-se alguma coisa contigo. Não, não, não discutas. Passa-se. Estás doente. Estás. Pensas que estás bem, que podes vencê-lo sozinha, mas está a vencer-te. Pensas que tens o controlo, mas tem-te sob controlo. Pensas que tens o poder, mas não tens nenhum. Sempre pensei que os seres humanos eram mais fortes, que quando quiséssemos, podíamos simplesmente parar de fazer o que nos está a matar. Mas estava enganada. Não podemos.

— Não sei do que é que estás a falar — disse ela.

— Não sabes? Então e o que se tem andado a passar? Os gritos, o descontrolo? Então e isso?

— Não me lembro de nada disso.

— Gritavas como se te estivessem a abrir ao meio.

— Não estavam. Eu estava bem.

— Agora estás a fazer de conta. Estás a mentir-me.

— Não sei do que estás a falar.

— Estás a aproveitar-te de mim. Estás a aproveitar-te do facto de eu apenas querer ter uma vida pacífica.

— Não me estou a aproveitar de ti. Tu é que estás a aproveitar-te de mim! Estou doente e estás a gritar comigo!

— Olha para ti. Olha para aquilo que fizeste contigo. O que é que as pessoas vão pensar quando virem essas pernas cobertas de nódoas negras? Nunca vi ninguém com tantas nódoas negras.

— O medicamento para o estômago faz-me ficar muito fraca.

— O medicamento para o estômago? Então e o álcool no teu copo de sumo de mirtilo? Talvez isso te faça cair?

— Não há álcool no copo.

— Eu cheirei o copo.

— Que disparate. É sumo fermentado. Está ali parado neste calor havaiano há dois dias.

— Achas que não sei a diferença entre álcool e fermentação?

— Não, acho que não sabes.

— Achas que estás a viver uma vida normal?

— Quem é que pode viver uma vida normal neste buraco dos infernos? Claro que não estou a viver uma vida normal! Estou deprimida, suicida. Talvez não tenhas reparado.

— Vamos vender a casa e regressar.

— Tens primeiro de me carregar em peso daqui — declarou. — É escusado ir para outro sítio. Não sabes que carregas o que tens dentro de ti para qualquer lado onde vás?

— Sim, sim, já me disseste — respondeu ele. — Mas seria mais feliz na Carolina do Norte.

— É sempre tudo sobre ti! Tu, tu, tu. Nem um pensamento para qualquer outra pessoa. E o dinheiro que vamos perder ao vender a casa? Não é o teu dinheiro, por isso não queres saber. És bastante informal com o meu dinheiro. Estás a viver bem agora, com o dinheiro sujo que eu recebi pela minha saúde, não estás? Paguei este apartamento com a minha saúde para que tu pudesses viver com estilo e agora queres que perca dinheiro? Nunca!

— Tens de parar de beber, entendes? Tens de beber um copo de cerveja, um copo de vinho, um pequeno golo de conhaque e depois parar. Eu faço isso. Faço isso todos os dias. Porque é que tu não consegues? Durante os meus quarenta e cinco anos de trabalho, nunca bebi antes das cinco da tarde. Porque é que não demonstras um pingo de autocontrolo?

— Sim, desculpa lá por não sermos todos perfeitos como tu. Se ao menos eu fosse um pouco mais parecida contigo, não teria quaisquer problemas.

— Tens de parar de beber.

— Não sei do que é que estás a falar.

George continuou calmamente:

— Estampas o carro, a tua carta de condução vai ser suspensa e duas vezes por mês os vizinhos chamam a polícia porque gritas tão histericamente que pensam que alguém te está a bater. Tenho de te esconder no quarto porque se vissem as tuas pernas, prendiam-me de certeza.

— Talvez devessem prender-te por causa da maneira como me tratas.

 

No início, tentou ajudá-la regulando-a, bebendo com ela.

Deu-lhe um pouco de vinho. Ela bebeu a garrafa inteira.

Comprou um pack de seis cervejas. Já não havia nada à noite.

Já não havia nada ao jantar. Já não havia nada quando se sentaram a ver um filme.

Comprou um pack de doze cervejas.

Já não havia nada à hora do filme.

Comprou uma caixa de vinte e quatro cervejas.

Já não havia nada no final do filme.

Parou de comprar cerveja, vinho e escondia o conhaque na mala do carro. Ia lá fora à noite para tomar um gole rápido, como um criminoso, um vadio, um bêbado. Estava tão zangado com ela por isso! Beber, o bálsamo da civilização. O lubrificante da cultura. Sentar-se, ler o jornal, ver as notícias, um pouco de basebol e um pequeno copo de conhaque. E agora tinha de esgueirar-se para fora da própria casa para tomar uma bebida! Nunca magoou ninguém, nunca reclamou, nunca gritou e a polícia nunca foi chamada por sua causa.

Seria imaginação sua ou a bebida estava a desaparecer demasiado depressa da garrafa de Remy Martin que escondia perto do pneu sobresselente na mala do carro?


18

Opções de fertilidade


O médico de Lily no Mount Sinai era um homem alto e branco, bizarramente chamado de Lawrence DiAngelo, embora Lily não percebesse como é que podia ser tão branquinho e ter um apelido daqueles. Não dizia uma palavra enquanto verificava a ficha médica. Vestia uma sweatshirt, ténis de corrida e um casaco azul-escuro de nylon da Adidas. Parecia ou a caminho, ou de regresso de algo nada medicinal. Talvez fosse o seu dia de folga.

— Onde é que está o Spencer?

— Quem?

Lily suspirou, desejando Spencer e o seu apoio impassível. Nunca sabia o que Spencer estava a pensar e isso era perfeito numa altura assim.

— Diz aqui que tem vinte e quatro anos. Está correto?

— Está correto. Porquê?

DiAngelo assobiou, abanou a cabeça.

— Parece ter dezasseis.

— Diga-me de uma vez, senhor doutor — disse Lily. — Mas deixe-me sentar primeiro. — Ele ajustou-lhe a cama para que se conseguisse sentar. Ela observou-o com a pasta na mão.

— Tem leucemia — disse ele de uma vez. — Leucemia Mieloide Aguda. Leucemia Promielocítica Aguda, para ser preciso.

É cancro?, Cancro!

— Sabe o que é leucemia?

— Sim... É o que a Jenny Cavilleri teve. — Lily não fazia ideia do que era leucemia. Estava a ficar dormente por dentro.

— Quem?

— Jenny Cavilleri. Oliver Barrett. Love Story.

— Ah, é verdade.

Estava sentada na cama e olhava para o médico. Ele segurava a pasta e retribuía-lhe o olhar e ela tentava concentrar-se no que estava a pensar. Mas em primeiro plano no seu cérebro, o pensamento prevalente era: QUE GRANDE MERDA! E também: foi por isso que fiquei sem os chocolates duplos Milanos?

— Deve ter mil perguntas.

— Tenho...sim. — Lily não conseguia pensar numa única.

— Sei que é difícil.

Não era difícil. Mas não podia estar a acontecer-lhe. Assim sendo, porque é que não estava surpreendida? Todas as visões na sua mente, de choque, de descrença, de medo foram reduzidas à imagem de Jenny Cavilleri sentada no ringue da Wollman a ver o Oliver Barrett no skate à frente dela. Não conseguia pensar em mais nada. Porquê?

Lily esperou até lhe vir uma questão adequada à cabeça e via o médico no seu fato de treino Adidas, com o boné da Nike, também à espera. Parecia um homem suficientemente decente. Mas ela realmente não tinha perguntas nenhumas.

O médico suspirou percetivelmente.

— Tem alguma pergunta que me queira fazer?

Lily não disse nada. Cancro.

O médico leu o relatório.

— A Lily está manifestamente hipercelular. As células cancerígenas na sua medula óssea não se conseguem transformar em células sanguíneas saudáveis. Crescem exponencialmente, como explosões, mas são vazias e não lhe fazem bem. São preguiçosas e não funcionam. No entanto, espalham-se aos milhões pela sua corrente sanguínea. O que não fazem é coagular o sangue, ou lutar contra infeções ou transportar oxigénio. Não a curam.

— E as minhas células sanguíneas normais?

— Não há espaço para elas.

— Algum espaço?

— Nenhum espaço.

— Nenhum?

— Não.

— Como é que estou viva então?

— Bem, boa pergunta. Com três transfusões de glóbulos vermelhos. Uma transfusão plaquetária. Uma transfusão de glóbulos brancos. Noutras palavras, por causa do sangue de outros.

— Mas antes disso?

— Acredito que não andasse a viver muito.

Lily nem sequer anuiu.

— As suas veias enfraquecem por causa da doença. Por fim, rebentam. É por isso que havia hemorragia interna. E a dor no estômago, as nódoas negras.

— Tão doloroso.

— Sim.

— E a pneumonia?

— Sim. Quase chegou a uma crise blástica.

— A uma quê?

— É o termo que usamos para aqueles cujo sangue foi completamente substituído pelas células cancerígenas que se dividem rapidamente. Sem glóbulos vermelhos ou brancos, apenas blastos. Não tem outra hipótese senão começar a quimioterapia imediatamente. Os pacientes em crise blástica não vão para casa.

— É o meu caso? — perguntou com uma voz sumida.

— Quase.

Lily não sabia que mais dizer. Expirou superficialmente.

— Tenho de ir a casa por um minuto, senhor doutor — explicou. — Tenho uma série de coisas para fazer, pontas soltas para atar... Sabe, só um dia ou dois... — Tinha de ligar ao irmão. Tinha de ligar à avó. Tinha de... ver a própria cama só por um segundo. A leucemia é um cancro mau? Certamente que não foi bom para Jenny Cavilleri, em 1970. O que há de ela perguntar agora ao médico? Pergunta se eles podem curá-la? Pergunta pelo prognóstico? Não quer saber. Quer perguntar se... o cancro se espalhou? Não quer saber. Quer saber... — Porquê? — Mas ela sabe. 49, 45, 39, 24, 18, 1.

— Não há razão. As pessoas simplesmente adoecem. — Sentaram-se. Conseguia perceber que o médico se queria levantar e ir-se embora. Estava inquieto. — Quer que eu chame o Spencer? É o seu companheiro? Talvez devêssemos continuar o resto com ele no quarto.

— O resto de quê?

— O seu tratamento. Os seus protocolos. A sua terapia. O seu cuidado. O seu prognóstico. O seu futuro nos próximos quatro meses e depois. As suas opções de fertilidade.

— As minhas opções de fertilidade? — Entrelaçou as mãos ainda com mais força. — O Spencer não é o meu companheiro. Nem sequer é o meu namorado. É só... um detetive da polícia que me trouxe aqui. Que opções de fertilidade?

DiAngelo agarrou a pasta com mais força.

— Há alguém a quem eu possa ligar antes de fazermos isto? Há alguém que queira aqui consigo nesta altura?

— Opções de fertilidade? — Lily repetiu-o em tom vazio. Nunca tinha sequer considerado a questão na sua vida exceto pela contraceção. Achou que tinha muito tempo para a fertilidade.

— Oh, meu Deus. Marcie! — gritou DiAngelo.

A enfermeira negra com um fraco por chocolates, hambúrgueres e cigarros entrou.

— Já conhece a Marcie, a enfermeira dos Cuidados Intensivos. Marcie, esta é a Lily. Vão passar uns tempos juntas. Agora, Lilianne, a quem é que a Marcie pode ligar por si?

As mãos crisparam-se e largaram as almofadas debaixo dela enquanto abanava a cabeça.

DiAngelo desapertou o casaco de nylon. Suava. Olhou impotente para Marcie.

— Eu já volto, está bem? — disse. — Preciso de apanhar ar.

— Eu também — respondeu Lily quando ele virou as costas.

— Estás a dificultar as coisas ao médico, filha? Não sabes que ele odeia ver jovens como tu doentes?

— Como é que eu haveria de saber isso? Pode dizer-me... por favor... — Lily teve medo de não conseguir proferir as palavras.

De repente sentiu-se monumentalmente pequena, monstruosamente sozinha. A voz quebrou-se.

— Há alguém para mim na sala de espera?

Marcie foi ver.

Marcie voltou.

— Não — informou.

 

— E acabar a faculdade, pintar, trabalhar? — perguntou Lily, em tom derrotado quando o médico voltou.

O médico pousou a pasta.

— Ouça — pediu —, nos próximos quatro meses da sua vida, esqueça a escola, o trabalho. Esqueça tudo. Não acredito que tenha trabalhado muito nos últimos tempos, da maneira como se deve ter andado a sentir. Não ouviu o que eu disse? Crise blástica, Lily. O seu sangue parece caviar Beluga, não sobrou nada a não ser cancro negro.

— Então e agora?

— Agora temos de tentar matá-lo. Deixo-a ir a casa até segunda. Tem dia e meio para tratar das suas coisas. Mas a partir de segunda, vai ficar comigo durante um mês. Quimioterapia no hospital. Depois, durante três meses, tentamos em ambulatório, a ver como se dá.

— Porquê tanto tempo?

— Quatro meses? Eu sei que tem de assimilar, mas você tem cancro, não percebe?

— Percebo. — Mas não percebia, de facto. Podia não estar surpreendida, mas também não percebia. — E o que era... a outra coisa de que falou... as opções de fertilidade?

— Desculpe, Lily. — DiAngelo abanou a cabeça. — Temos de começar a quimioterapia na segunda e a fertilização de óvulos leva tempo. Uma vez que não tem namorado, talvez ainda mais. Teria de ir a um banco de esperma para encontrar um dador. — Fez uma pausa. — Não é para si. A única alternativa remota é tomar Lupron.

— O que é o Lupron?

— É um fármaco que faz com que o seu corpo pense que está na menopausa. Para temporariamente a produção de óvulos. Só é vinte por cento eficaz a prevenir a esterilidade provocada pela quimioterapia.

— Oh, meu Deus, pare, pare, por favor...

Ele parou, parou.

— Vinte por cento é melhor do que nada — sussurrou Lily por fim.

— Antes de lhe falar do Lupron, vou falar-lhe do cancro. A única finalidade dele é matá-la. É o seu único objetivo. Não quer mais nada, não se modera, não enfraquece quando você enfraquece, só fica mais forte. E, perversamente, se você conseguir ficar mais forte, ele fica mais forte também. Come literalmente o seu sangue saudável, que é a razão de termos de o combater em todas as frentes, a razão de combatermos veneno com veneno. Colocamos fármacos venenosos no seu corpo para tentar matar a coisa que está a matá-la. E às vezes funciona. Às vezes. Mas, entretanto, na duração da batalha, também a envenena, envenena tudo o que há de saudável dentro de si. Faz com que os seus órgãos vitais fiquem doentes, todos eles. O cancro e a quimioterapia batalham mesmo a sério dentro do seu corpo e é uma batalha maldita e cruel, Lilianne. Vai sentir-se muito doente. E agora, sobre o Lupron: posso dar-lhe o medicamento para a fertilidade, mas o Lupron é uma divisão para o seu exército de combate ao cancro. O Lupron é uma arma contra si. Vai dar-lhe suores que vão fazer com que se sinta a queimar de dentro para fora. Eu aconselho todas as minhas pacientes a não tomarem Lupron, mas tenho de informá-las sobre a sua existência de qualquer modo. Percebe?

— E de ambas as maneiras, o meu cabelo vai cair, certo?

— Certo.

Lily ficou calada durante muito tempo. Finalmente disse:

— Quem é que quer viver careca?

Larry DiAngelo sorriu e tirou o boné de basebol, debaixo do qual estava uma cabeça nua e brilhante, sem cabelo. Lily não devolveu o sorriso.

— Mas após quatro meses, vou ficar muito melhor? — perguntou em tom tão esperançoso e baixo que teve vergonha.

— Você tem leucemia promielocítica aguda em estado avançado. Vamos dar o nosso melhor para não deixar o Oliver Barrett sentado naquele banco sozinho.

O quarto de hospital era privado, com cortinas e paredes bege, e cheirava ligeiramente a álcool e lixívia. Pela janela, entrava o sol, a televisão estava agarrada a um suporte na parede, acima da cabeça do médico. Lily ficou sentada a olhar para os seus lençóis brancos, para a bata azul manchada, para a janela, para a televisão, para tudo menos para DiAngelo. Por fim, fechou os olhos.

— É mesmo isso, senhor doutor. Não percebe? Em Central Park não há nenhum Oliver Barrett.

 

Spencer saiu do hospital para fazer alguns telefonemas de trabalho. Pediu ao rabugento Harkman para se encontrar com ele mais logo na esquadra, durante a tarde.

Quando chegou ao quarto de Lily e a viu na cama, reuniu toda a sua força e sorriu. Parecia um bocadinho melhor depois das transfusões de sangue. Sentou-se ao lado dela.

— Já soubeste? — perguntou. Estou doente.

— Sim. O DiAngelo falou comigo. Estás em boas mãos com ele, dá para ver. Vais ficar bem. — Tentou parecer animador.

— Acreditas nisto?

— Não consigo acreditar. — Tentou não desviar o olhar.

Sentiu-se abatida.

— Parece que tinha razão, Detetive O’Malley. Parece que vou mesmo de ter de reclamar aquele prémio de lotaria.

— Parece que vais, Lily. Consigo pensar em coisas piores do que reclamar dezoito milhões de dólares.

— Sim, estás a olhar para elas. — Lily procurou conscientemente a mão dele. Sentiu-se como uma menina pequenina, a agarrar a mão do homem adulto. Ficaram calados ao lado um do outro. — Spencer, por favor — murmurou. — Preciso do meu irmão. Preciso dele agora.

Ele afastou-se dela.

— Lily, a mãe da Amy liga-me todos os dias para saber se encontrei a filha. O meu trabalho é encontrá-la. Não ias querer que alguém te encontrasse para a tua mãe?

— Queria que alguém encontrasse a minha mãe para mim.

— Oh, Lily.

Fechou os olhos. Largou a mão dele.

Passada uma hora, teve alta provisória até segunda-feira. No seu Buick à paisana, Spencer conduziu-a até casa, onde ela arrancou o bilhete premiado da parede enquanto ele esperava.

— Então o que fazemos, vamos lá e levantamos o meu dinheiro?

— Como é que vou saber disso? Nunca ganhei nada.

— Sortudo — disse Lily.

Conduziu-a até à baixa, ao World Trade Center, onde se situava a sede da Lotaria de Nova Iorque, debaixo de uma das Torres Gémeas. Sentia-se como se fosse desmaiar.

— Vão perguntar-me como é que eu vou querer o meu dinheiro? — perguntou-lhe.

— Sim — respondeu Spencer. Dizes que queres dezassete milhões em notas de mil e o resto em vinte.

Lily pensou se depois poderiam comprar um cachorro quente e sentarem-se perto da fonte na praça, no espaço ao ar livre entre as torres. Sempre gostou de se sentar ali. Era tão sossegado. Mas hoje não lhe apetecia um cachorro quente. Quase não conseguia manter-se em pé. Sentou-se na cadeira, de cabeça encostada à parede, até ser a sua vez.

Quando foi validar o bilhete, a senhora atrás do vidro olhou para ela, para a sua identificação, para a assinatura, inseriu o número do bilhete no computador e levantou o olhar. Estudou Lily.

— Estou à sua espera há três meses. — Não é que fosse curiosa, era apenas mais forte do que ela. Há com cada um.

O valor líquido do bilhete de 18$ milhões era 11.34$ milhões. Após descontar os impostos municipais e federais ficou em 7.3$ milhões. De 18$ milhões para 7.3$ milhões em cinco segundos. Lily ficou abatida. Até o imperturbável Spencer pareceu surpreendido com a redução.

Por fim, encolhendo os ombros, disse:

— Mais vale trazeres tudo em notas de mil. É tão pouco. Trocos!

Informaram Lily que ela ia receber um cheque daí a três semanas, numa conferência de imprensa no Waldorf Astoria Hotel. Não sabia o que lhes dizer.

— Posso ter parte do meu dinheiro agora?

— Isto não é um banco, menina Quinn. Não está a fazer um levantamento da sua conta — retorquiu a mulher de olhar triste.

Lily não sabia onde ia estar dentro de três semanas, mas tinha a certeza que não seria capaz de vagabundear por hotéis de luxo. Perguntou se o Estado de Nova Iorque poderia simplesmente enviar-lhe o cheque por correio.

— Damos numa conferência de imprensa. Para tudo o que seja acima de um milhão de dólares, há uma conferência de imprensa. É a nossa política. É assim que fazemos.

Spencer pediu a Lily para se ir sentar e esperar por ele na cadeira e falou calmamente com a mulher da caixa.

Quando Lily se esforçou por voltar à janelinha, a senhora tinha um olhar que dizia «bem, bem, cá se fazem, cá se pagam, dado com uma mão para ser retirado com a outra.» Ficou satisfeita e agradada:

— Vou tratar do assunto. Não se preocupe com nada. Abrimos uma exceção e enviamos o cheque por correio. Tem algum beneficiário? Temos de colocar isso no nosso formulário de requerimento, um nome de beneficiário. Sabe, um marido, um filho, irmão, irmã?

— Qual é o teu número da Segurança Social, Spencer? Quero que assines como minha testemunha. Vá. Assina. Já aqui. — Quando saíam da fétida, suja e mal iluminada sede, ele deu-lhe o braço. Ela, agradecida, aceitou-o.

— Posso gastá-lo todo até segunda? — perguntou-lhe Lily.

— De certeza que podes gastá-lo todo até segunda. O que é que queres comprar?

— Mais sessenta anos — respondeu Lily, sentindo um baque de arrependimento pelo verão desperdiçado.


19

Fibras de suspeição


Depois de deixar Lily em casa, Spencer ficou sentado no carro durante quinze minutos a olhar para as mãos. Depois, regressou à esquadra para apanhar Harkman, que estava de mau humor por ter sido chamado para trabalhar num sábado, embora isso não fizesse qualquer impressão a Spencer, que estava ainda mais mal-humorado. Conduziram até Port Jefferson para terem uma conversa mais formal com Andrew Quinn, que veio a revelar-se o mais mal-humorado de todos. Spencer achou que havia coisas que o honrado congressista não tinha tido oportunidade de divulgar durante a entrevista informal do dia anterior, que se teve de abreviar por causa de Lily. Ia agora ter a oportunidade de se esclarecer.

— Vá lá, pessoal! Ao sábado? Tenho a família toda em casa.

— Lamento, senhor congressista — respondeu Spencer. São procedimentos. Seremos breves.

— Muito bem, mas não falo com vocês sem a presença do meu advogado! — exclamou Andrew.

E Miera, que veio à entrada para ficar ao lado dele, declarou:

— Ele definitivamente não vai falar com vocês sem a presença do advogado.

Harkman encolheu os ombros para Spencer que também encolheu os ombros e tirou um par de algemas do cinto.

— Muito bem, se prefere dessa forma. Nesse caso, terei de prendê-lo e levá-lo para um interrogatório formal na nossa esquadra. Tem direito à presença de um advogado. Tem o direito de permanecer em silêncio, pois tudo o que disser poderá e deverá ser usado contra si.

Andrew levantou as mãos.

— Parem. Parem — pediu. — Eu renuncio ao meu direito ao advogado se deixarem as coisas ficarem amigavelmente por aqui.

— Andrew! Não podes falar com eles sem o teu advogado.

— Está calada, Miera. Vai ter com a família. Tem calma. Por aqui, senhores.

— Não, Andrew.

— Eu disse para estares calada, Miera.

No seu escritório, Andrew sentou-se calmamente à secretária enquanto Spencer permaneceu de pé em frente dele. Spencer estava demasiado tenso para se sentar.

Harkman interveio antes de Spencer começar.

— Senhor congressista, pode dizer o que quiser agora, e vai obviamente dizê-lo, mas eu sei e o senhor sabe o que me disse naquele telefonema. Perguntei-lhe se a conhecia e o senhor disse-me que não.

— Não, eu disse-lhe que não me lembrava e estava obviamente a responder a outra questão.

— Eu perguntei-lhe se a conhecia!

— Não o ouvi bem! E não me levante a voz, não lho tolero.

— Senhor congressista, tinha um caso com a Amy McFadden? Ouviu esta questão?

— Sim, ouvi. E não, não tinha.

— Não tinha qualquer tipo de relacionamento com a Amy, fora a amizade dela com a sua irmã?

— Tal como contei ao Detetive O’Malley, ela pode ter vindo ao meu escritório aqui em Port Jeff. Não sei, não me lembro. Pode ter vindo. Considera isso fora do âmbito da amizade com a minha irmã?

— E quanto aos seus escritórios em D.C.?

— Não, nunca lá esteve.

— Disso tem a certeza? Disso recorda-se?

— Ela não vivia em D.C., caros senhores. Obviamente é mais fácil para mim imaginar que ela possa ter vindo aqui, mesmo apesar de não ter memória disso.

— Quando é que a conheceu? — perguntou Harkman.

— Conheci-a através da Lily.

— Quando?

— Não sei.

Spencer observava-o cuidadosamente.

— Parece haver muitas coisas das quais não consegue recordar-se.

— Sobre esta rapariga, sim. Tenho uma memória fotográfica das coisas que são importantes. Tenho pena que esteja desaparecida, desejo-vos sucesso na investigação. Quero ajudar o mais que puder, mas eu não era amigo dela e indo mais diretamente ao assunto, não sei onde está.

— Estaria disposto a passar por um detetor de mentiras em relação a isso?

— Em relação a quê? Conhecê-la? Claro que sim.

— Não em relação a conhecê-la. Em ter um relacionamento impróprio com ela. Em não saber onde ela está neste momento.

— Sim, não tivemos um relacionamento impróprio.

— Estaria disposto a fazer um teste de polígrafo?

— Estou absolutamente, cem por cento disposto, mas terei de consultar o meu advogado em relação a essa matéria. Por mim não vejo problema.

Spencer esperou para falar, calado, a formular os seus pensamentos. Devia arriscar ou não?

Andrew batia tensamente com os dedos na secretária.

— Ouçam, é tudo? É que tenho uma casa cheia de gente.

— Senhor congressista, esteve no apartamento das raparigas.

— Tal como lhe disse.

— Sim, pois disse. Mas o que não me disse — continuou Spencer, — é que passava a maior parte do tempo dentro do quarto da Amy. Foi onde encontrámos os cabelos que correspondem aos seus.

Andrew parou de tamborilar, olhando de um detetive para o outro.

— Não sei do que estão a falar — disse finalmente. — Não sei como é que isso é possível.

— Não? Eu também não.

Harkman lançou um olhar a Spencer que olhava apenas para Andrew.

— Não sei do que é que está a falar — disse Andrew numa voz ligeiramente trémula. — Estas táticas de intimidação não resultam comigo, detetive, e irei diretamente aos seus superiores para lhes contar como está a tratar um homem inocente.

Spencer lançou um olhar a Harkman.

— Senhor congressista, não sei porque está a ficar tão agitado. Estou a pedir-lhe que me explique como é que não só os seus cabelos, mas também as suas impressões digitais foram parar ao quarto da Amy.

Andrew estava sentado.

— Não sei. Não entrei no quarto da Amy.

— Será que estavam por toda a Amy?

Harkman estava sentado.

Spencer pôs-se de pé.

Finalmente Andrew, com as mãos separadas, reclinou-se na cadeira e esfregou a cara como se quisesse esfregar os olhos até desaparecerem. O seu comportamento mudou.

— Reparem — começou —, não estou preso, não estou sob suspeita, não quero fazer nada que possa impedir a investigação por isso vou divulgar voluntariamente a informação. — Tentou recompor-se durante bastante tempo, antes de começar a falar de novo. — É verdade... Tenho de admiti-lo... A Amy e eu tivemos outrora um relacionamento que não era... inteiramente próprio. — Abria e fechava os punhos enquanto Spencer aguardava, sustendo a respiração. — Mas está mais do que acabado há muito tempo. Acabámos e não a vejo há meses.

Então Spencer sentou-se. Spencer e Harkman apenas olhavam um para o outro. O escritório ficou pesadamente silencioso.

— Senhor congressista — disse Spencer lentamente —, esteve envolvido com uma rapariga que desapareceu.

— As duas coisas não estão ligadas!

— Congressista! Deixe-me repetir: acabou de nos dizer que teve um caso com uma rapariga que desapareceu.

— Eu ouvi-o! Eu sei! Mas uma coisa é uma coisa, e outra é outra. O caso, como lhe chama, acabou. Não a vejo há meses.

— Bem, isso é apropriado já que ela está desaparecida há meses. Quando é que acabou?

— Quando é que acabou?

— Porque é que está a repetir as minhas perguntas?

— Não me recordo.

— Acabou há duas semanas? Em julho? Junho? Estamos a brincar às vinte perguntas? Quando é que acabou? — Spencer odiava levantar a voz como se estivesse a falar com uma criança malcomportada.

— Detetive, está a perseguir-me.

— O senhor não sabe o que é perseguição. Espere até os jornais descobrirem isto. Agora, quando é que acabou?

— Talvez em março. Não me lembro bem. — Andrew esfregou a cara.

— Porque é que acabou?

— Porquê? O que é que eu lhe posso dizer, seguiu o seu curso. Estas coisas acontecem, às vezes, seguem o seu curso.

— Acabou em março?

— Acho que sim. Numa altura qualquer na primavera.

— Então possivelmente abril, possivelmente maio? Talvez tenha acabado nessa altura? No dia em que ela desapareceu?

— Esta conversa é ridícula.

— Sabe onde está Amy, congressista?

— Já lhe disse, não sei.

— Estaria disposto a passar por um detetor de mentiras para confirmá-lo?

— Já lhe disse que não tenho qualquer problema com isso, mas que terei de consultar o meu advogado.

— Vai consultá-lo da prisão quando tiver direito à sua chamada — lançou Harkman. — Responda à pergunta do detetive. Quando é que acabou?

— Já disse.

— Não, disse-nos que não se lembra quando. Mas tem a certeza, completamente absoluta, de que não foi em maio. Não tem a certeza de quando, mas está bastante certo de que não foi quando ela desapareceu. Interessante — disse Spencer. — Não acha?

— Foi em abril, está bem? — disse Andrew bem alto. — Em meados de abril. Quando entreguei a minha declaração de impostos, já não estávamos juntos.

Spencer, Harkman, Andrew ficaram todos em silêncio. Tudo o que dissessem podia e seria usado contra eles.

— Quando é que começou?

— Não sei.

Spencer estava impressionado com a quantidade de coisas que Andrew Quinn dizia não saber.

— Não sabe? Só a viu uma vez no apartamento dela? Encontravam-se todas as semanas? Estiveram juntos durante um mês, três semanas, quarenta e sete dias?

— Não, alguns meses.

— Antes ou depois da reeleição?

— Por volta dessa altura, acho eu.

— Onde se encontravam? No apartamento?

— Claro que não!

— Está indignado? — perguntou Spencer, abrindo os olhos. — Ofendi-lhe a sensibilidade, congressista? Perdoe-me.

— Raramente fui ao apartamento e apenas por causa da Lily, nunca pela Amy. — Andrew baixou os olhos. — Isto é completamente devastador. Para a minha mulher, para a minha irmã, para os meus filhos.

— De facto. — E a irmã dele não conseguia aguentar tais notícias nesse momento. O fogo da compaixão dele por Lily congelou qualquer compaixão que Spencer pudesse ter sentido pelo seu irmão. — Não respondeu à minha pergunta. Tem o dom de fazer isso. Onde é que os dois se encontravam?

— Não sei. Em qualquer lado.

— Na rua? Nos becos? Ela ia a Washington vê-lo?

— Às vezes, sim.

— Passava lá a noite?

— Às vezes, sim.

— Portanto, esta é a razão de ela deixar a identificação em casa. Era a si que ela estava a tentar proteger. — Spencer acenava lentamente com a cabeça.

— Sei que ela fazia isso, mas nunca lhe pedi para fazê-lo. Foi tudo ideia da Amy, não minha. O que posso dizer? Era uma rapariga muito cautelosa. Não queria magoar a Lily, acho eu. Nenhum de nós queria.

— Então e magoar a sua mulher, as suas filhas?

— Pode pelo menos poupar-me ao moralismo? Não tenho estômago para isso. — Andrew levantou a mão.

— Porque é que a relação acabou? A sua mulher descobriu?

— Não.

— Então porquê?

— Eu disse-vos. Acabou, simplesmente. Estava na altura. — Mas Andrew não olhou para Spencer ao dizê-lo. Não olhou ou não pôde olhar. Spencer não tirava os olhos de cima dele. — Não estava a resultar.

— O seu caso superficial clandestino com uma rapariga jovem o suficiente para ser sua filha não estava a resultar?

— Exatamente.

Mas aquilo tinha sido cuspido, não podia ter sido por acaso.

O cérebro de Spencer estava num turbilhão em busca de foco.

— Acabou com ela quando percebeu que ia candidatar-se ao senado e ficou preocupado com o sucesso da campanha, se os detalhes de um caso se tornassem conhecidos?

— Oh, pode parar já de lhe chamar um caso?!

Aquilo surpreendeu Spencer.

— O que lhe chamaria o senhor? — perguntou, franzindo a testa.

— Acabou! Já passou. Está terminado. Não percebo porque continua a insistir em pormenores destes.

— Traga a Amy até mim e eu paro de insistir em pormenores. Até lá, isto continua a ser uma investigação criminal e a ideia é continuar a insistir nos pormenores. — Spencer não sabia muito sobre política, mas estava certo de que se Andrew Quinn decidisse avançar com a candidatura ao senado, a sua margem de vitória nem ficava nos 52, depois de uma amarga recontagem.

Andrew foi instruído para não sair do país, para não falar com a imprensa, para não dificultar uma investigação governamental e foi informado de que todos os seus registos telefónicos e bancários seriam requeridos por intimação. Enquanto se encaminhavam para a saída, viram Miera a apressar as filhas pré-adolescentes para outra sala e passaram por duas outras mulheres carrancudas, talvez as irmãs de Andrew. Pareciam-se um pouco com Lily, mas não eram nada como ela. Uma era alta e irritadiça, outra mais baixa e maternal. Todos pareciam tão sombrios, a olharem para Spencer com austera desaprovação.

Quando chegaram à porta de entrada para saírem, Andrew bateu na parede com o punho.

— Acabei de perceber. Não havia cabelos no quarto da Amy. Nem cabelos, nem impressões digitais?

Spencer não respondeu.

— Sacanas! — Andrew bateu com a porta atrás deles.

Spencer encolheu os ombros, mas a tensão dos seus músculos fez com que parecesse mais um arrepio.

— Bem visto, O’Malley — disse Harkman enquanto se dirigiam para o carro. — A equipa forense bem que podem descobrir algum maldito cabelo Quinn no quarto dela ou vais estar a varrer os passeios de Nova Iorque na próxima semana.

— Harkman — disse Spencer quando já estavam na estrada de regresso à cidade —, o que é que achas dele?

— Não sei dizer. O caso em si é desagradável. Rapariga jovem, colega de casa da irmã... quer dizer... um pouco nojento, na minha opinião. Não sei nada sobre o resto. O que é que tu achas?

— Hummm... — Spencer fingiu estar perdido no caminho. — O que eu acho é que o Titanic está no fundo do oceano.


20

Mais uma noite de sábado para Lily


Depois de Lily ter dormido a tarde toda, apanhou um táxi para ver a avó. O motorista de táxi saiu e ajudou-a a subir o alpendre de casa da avó. Como é que iria subir cinco lanços de escadas no regresso a casa, Lily não sabia nem queria saber.

Ao sábado à noite, a avó tinha o seu trapaceiro jogo de póquer. Obviamente que ninguém queria saber que estivesse viciado, pois havia cinco senhoras a juntarem-se há vinte e cinco anos para jogarem. Vinham todos os sábados mais quatro viúvas, determinadas a enganarem-se umas às outras. Ninguém fazia bem bluff, ninguém tinha expressão impassível, mas tiravam o telefone do descanso e jogavam durante horas, bebiam vinho, comiam até rebentar e até fumavam charutos. Uma delas tinha caído à saída, depois de beber demasiado vinho, e as senhoras todas deixaram um lugar vazio para a amiga em convalescença, mas continuaram a jogar e beber como se a morte e a velhice não estivessem mesmo do lado de fora do alpendre da avó.

Por isso, quando Lily chegou à seita, pediram-lhe, ou melhor exigiram, que ocupasse o lugar de Zani da Albânia, que estava fora há seis semanas. As senhoras suspeitavam que Zani não voltaria, uma vez que tinha oitenta e oito anos e a anca não estava a sarar. A primeira coisa que a avó disse após a chegada de Lily foi:

— Santo Deus, Lily, quase parece que a morte te anda a rondar. Chega aqui, come alguma coisa, sim? Dana, olha para ela, isto é o que os miúdos fazem a eles próprios para parecerem atraentes ao sexo oposto.

— Elas não veem os homens como um pedaço de carne — disse Dana. Falavam como se Lily não estivesse na cozinha.

Lily sentou-se e fingiu que jogava, que fazia batota, até que bebia. Tentou comer alguma coisa, um pedaço de queijo francês malcheiroso, umas bolachas importadas, algum paté. Mas o cheiro da comida na boca dava-lhe náuseas e parou de tentar. Ninguém notou.

Depois de ter perdido vinte dólares na primeira hora, ficou sentada a vê-las lançar as cartas e fazerem batota umas com as outras até gastarem os próprios vinte dólares.

— Lil, estás triste, o que se passa contigo? — perguntou a avó. — Olha para o teu tamanho. És anorética?

— Deixa-a em paz, Claudia. Ela está ótima — disse Hannah da Bulgária, sempre defensora de Lily. — É uma jovem a viver em Nova Iorque. É assim que se parecem. — Virou-se para Lily. — Mas costumavas ter umas belas ancas redondas, Liliput. O que se tem passado?

— Exatamente — continuou a avó —, jovem, solteira, quase licenciada, a trabalhar, divertir-se, a viver em paz. Porquê tão triste? Falta de diversão? És bulímica?

Em breve, apeteceu a Lily dizer.

— Gostava de ter sido uma jovem em Nova Iorque — disse Dana da Polónia. — Quando tinha a idade da Lily, estava em Treblinka, à espera da minha vez nos balneários. Se os soviéticos não tivessem chegado, eu seria mais uma nas pilhas de cinzas onde os nazis faziam crescer couves.

As senhoras resmungaram em simpatia. Todas elas eram americanas de primeira geração, vindas para aqui porque a Guerra dividiu a história entre o antes e o depois.

— Ah, como as minhas netas se queixam e queixam — comentou Soo Min da Coreia do Sul. — Nascidas aqui, e ainda assim tão críticas. De acordo com elas, está tudo mal com os homens americanos pouco românticos. Eu digo-lhes, vocês sabem que o meu noivo foi morto pelos coreanos do Norte em 1950? O que eu daria por ter o meu Yung vivo, a não me trazer flores, a não se lembrar do meu aniversário! Nada romântico. — Fungou delicadamente. Era tão pequenina, fazia tudo de forma tão delicada, até fumar charutos. — E que tal estar apenas viva? Não é, Claudia? Aqui a Claudia casou com o Tomas em 1939, depois ele foi para a guerra assim que o Hitler invadiu a Polónia e nunca mais o viu. Da forma como vive, faz pensar que continua à espera dele. Mas ao menos teve uma filha e agora uma família inteira. Ela tem tanta sorte. O Yung não deixou nada para mim.

Lily reparou que a avó não anuiu, não comentou. A sua avó, Klavdia Venkewicz, afastava o assunto do seu Tomas.

— As tuas netas não mencionam a Inveja, não mencionam a Cobiça — disse a avó por sua vez, olhando para Lily que estava sentada em silêncio, com as mãos por debaixo das pernas. Ainda havia restos de morfina em Lily e tinha tomado duas oxitocinas antes de ir para ali. Provavelmente, o copo de vinho não tinha sido uma boa ideia. Estava a sentir-se delirante.

O ar na sala estava viciado, as senhoras estavam a fumar, a infusão de vinho com nicotina e dióxido de carbono misturado com o perfume barato e o malcheiroso queijo francês. Alguém abra uma janela, por favor, pensou Lily, tentando depois levantar-se para abri-la ela própria.

— O que é que estás a fazer? O ar condicionado está ligado.

— Está? — duvidou Lily, caindo de novo na cadeira. — Tens razão, avó. Na América não devemos cobiçar, não devemos invejar. Temos demasiado de muita coisa.

— É verdade — disse Dana. — Mas a minha filha não está satisfeita. Já vai no quinto casamento e ainda só tem 49 anos. Ainda está à procura do homem certo, e eu digo ainda à procura porque aparentemente o marido número cinco não despeja o lixo sem ter de ser mandado. Eu conto-lhe que na Polónia tínhamos sorte se nos pudéssemos agarrar ao único marido que tínhamos, lixo à parte.

As outras senhoras murmuraram em animado assentimento. Claudia disse:

— Naquela altura, a maioria dos homens não eram assim tão bons. Bebiam, batiam nas mulheres. Mas estavam vivos. Isso fazia toda a diferença.

— Vá lá, Claudia — disse Dana. — O teu jovem Tomas teria ido despejar o lixo.

— Eu não deixaria — disse Claudia. — Eu própria o faria, da forma como é suposto ser feito.

As senhoras murmuraram.

— Porque é que as raparigas são tão esquisitas em tempos de paz? Lily, tens namorado? — perguntou Soo Min.

— Tive um, mas já não estamos juntos.

— Veem? — exclamou Dana. — É disto que eu estou a falar. Tão exigentes. O que é que ele tinha de mal?

— Não me amava.

Um breve silêncio caiu então em cima da mesa. Mas muito breve.

— Como podia não te amar? — soprou Hannah, que adorava Lily. — És uma bela rapariga, mesmo estando demasiado magra. Portanto, não se estavam a dar bem. Devias ter tentado mais. Pensaste que havia muito mais escolhas por aí.

Para ele houve, pensou Lily. Em toda a extensão, até ao norte de Nova Iorque.

— Nem sequer são os namorados — disse Claudia. — São as escolhas em relação a tudo. Aqui temos vida, somos ricos e o que é que fazemos? Não conseguimos parar de nos queixar... — Lily desligou o volume da voz da avó. De certeza que a avó via demasiado a CNN. A olhar com ar de gozo para a neta, Claudia continuou: — Sabem porquê? Porque vivemos em paz há tanto tempo. Recebemos tudo, sempre a receber e receber há cinquenta anos e não sabemos como parar. Não sabemos o que temos. Nunca fomos invadidos, este século inteiro nunca soubemos o que eram bombardeamentos, sofrimento e privação, ou fome e genocídio. Vivemos como se fôssemos viver sempre em paz, esquecendo aquilo por que morreram trezentos mil dos nossos homens, porque cinquenta e cinco milhões de pessoas em todo o mundo morreram, esquecendo aquilo por que lutámos.

— O direito a queixarmo-nos quando quisermos, certo, Claudia? — perguntou Soo Min. — Choramingar é o nosso luxo. O direito a queixarmo-nos, a subvalorizar e discordar, a chatear, gemer e ganhar peso, a cometer suicídio e casar cinco vezes. O direito a adorar a nossa vida pacífica e a tomá-la flagrantemente por garantida! Vivê-la como se tivéssemos tempo infinito. Isso não é uma coisa má. É melhor do que a da minha juventude. Quando cheguei à idade da Lily já tinha tido malária, pelagra e distrofia. Achava que nunca ia sobreviver para além dos vinte. Nunca dei a mínima importância a programas sociais ou brutalidade policial. Só queria um naco de carne.

— Eu fui tatuada pelos nazis e tive a pele de quase todo o corpo queimada, centímetro a centímetro.

— Eu fui violada em três ocasiões diferentes na Bulgária por invasores russos. Nunca pude ter filhos por causa disso.

— Eu perdi todos os meus filhos e parentes em Sobibor. Aqui choramos a perda de um filho. Eu perdi os meus três.

— O meu marido, o meu único amor, foi para a guerra e nunca mais regressou.

— Eu tenho cancro — declarou Lily.

E então toda a gente ficou em silêncio. E desta vez, absoluto.

 

Ela não conseguia acreditar que estava a andar, por ela própria, a mover-se, sentar-se, levantar-se, a descer as escadas. Não conseguia acreditar que estava a mexer-se. De algum modo, a transfusão de sangue, de algum modo, as plaquetas de outra pessoa qualquer colaram outra vez os seus intestinos, as paredes abdominais, a veia cava. Quase não teve tempo de chegar ao contentor do lixo na esquina da Court com a Bergen antes de vomitar, à vista dos casais de jovens a regressar a casa dos restaurantes num sábado à noite. Saiu sangue juntamente com a bílis. Limpou a boca e continuou a caminhar até à Biblioteca Pública de Brooklyn, aberta noite dentro para jovens raparigas que quisessem saber mais sobre a sua doença.

A sua boa vida, não obstante a mãe, não obstante ter ficado falida. A sua boa infância, os felizes dias urbanos. O seu andar de bicicleta à volta de Forest Hills Park, os anos de faculdade, as suas paixões, se é que se podiam chamar assim. A sua ligeira pintura, os pequenos prazeres.

E neste doce-passar-do-tempo e vida-muito-tranquila, aparece uma célula cancerígena. Porquê? Uma única célula, em esteroides, uma célula no extremo, uma célula blástica bebé, uma simples célula com grânulos nos seus citoplasmas entra na vida de Lily enquanto ela ainda está a dançar, e a pintar, e a sonhar com o amor e uma vida futura. Porquê? Porquê a primeira? O que são estes grânulos e de onde vêm?

Mas num corpo com dez milhões de células que se dividem, e replicam, e oxidam, e catabolizam, talvez a questão não deva ser porque é dão problemas, mas sim porque é que não dão.

A biblioteca não tem respostas para esta pergunta. Só informação e estatísticas.

Os granulócitos dividem-se e crescem, mas não amadurecem. Permanece uma célula blástica bebé, dividindo-se noutra e noutra e noutra. Estes neutrófilos imaturos não podem fazer o que é suposto — tapar buracos no seu sistema. Portanto, Lily apanha uma constipação. E permanece com uma constipação. E não pensa mais sobre isso. Portanto, Lily sangra. E continua a sangrar. E, entretanto, as células blásticas mieloides dividem-se e dividem-se na medula óssea, e transbordam para a corrente sanguínea. São estúpidas e grandes e não morrem. Empurram e abrem caminho pelo corpo, que parou de produzir glóbulos vermelhos e tem cada vez menos e menos glóbulos brancos. As células cancerígenas engrossam o sangue até ao ponto de rebuçado, para depois ficar em melaço. Ela é como um doce envenenado por dentro. Ela é coagulante, xarope. Xarope negro.

E ainda assim, tenta trabalhar, correr, andar, levantar-se, deitar-se. E deita-se de costas e pensa: mas que MERDA é esta que me está a acontecer?

Entretanto, o cancro não conhece nenhuma linguagem, não fala a nossa língua. Os blastos, sem educação nas dinâmicas da exclamação e declaração, só se dividem e dividem e nunca morrem.

Crise blástica. Começa com uma célula. Uma célula mutante mortífera, errante. E subitamente, há milhões no corpo dela, e subitamente Lily é um dos 10 600 novos casos anuais de Leucemia Mieloide Aguda (LMA). É rara. É única. A maioria dos casos aparece em pessoas acima dos sessenta anos. A LMA é uma doença de pessoa idosa. No entanto, cá está ela, aos 24. Vinte e quatro. O portal de Lily abriu-se para a leucemia mieloide aguda.

49, 45, 39, 24, 18, 1

E agora, as estatísticas mais importantes.

Estatísticas de mortes.

A boa notícia é que os homens morrem em maior número. Agora, as não tão boas... A LMA causa um terço de todas as mortes por leucemia. A leucemia mieloide aguda tem o índice mais baixo de sobrevida após cinco anos de todas as leucemias. Os gráficos são os piores. Oferecem a Lily uma possibilidade de sobrevida de dezassete por cento.

Dezassete por cento.

E foi esse o número da porta que ela escolheu. 49, 45, 39, 24, 18, 1.

Rabiscou aqueles números com um lápis de grafite num pedaço de papel cor-de-rosa e pagou um dólar pelo privilégio de ter cancro. Lily Quinn, que porta queres? A da senhora, a do tigre, a porta número um, a porta número dois ou a porta número cancro!

Não está a chegar a lado nenhum. Como consolação, vai tentar comparações internacionais.

Ah, cá está. Lily tem sorte por viver nos Estados Unidos. Nas fêmeas, os índices de maior possibilidade de sobrevivência à leucemia são a Austrália e os Estados Unidos. Talvez devesse mudar-se para a Austrália. Tempo quente, oceano verde e a maior possibilidade de sobreviver aos granulócitos. Tragam os grandes tubarões brancos, pensa Lily. Vai tentar a sorte dela nas infestadas águas australianas.

É uma coisa boa que não esteja a viver na Islândia. Muito mau para mulheres na Islândia. Ou nas ilhas britânicas. Nada de ilhas frias para Lily. As pessoas embrulhadas em roupa não conseguem sentir os próprios corpos, pensam que estão só a hibernar e não reparam que há alguma coisa de errado até ser demasiado tarde.

Quer dizer, ao contrário dela? Ao contrário dela que ao primeiro sinal de problema correu para o médico e disse «Senhor doutor, passo a vida a dormir, acha que pode ser leucemia?» Há quanto tempo andava o sangue dela a ser um doce em processamento sem ela reparar?

Na próxima vez que Lily vir a avó, tem de agradecer-lhe ter escolhido a América depois da Marcha Fúnebre (1945) e do campo de refugiados na Bélgica (1949). As estatísticas na América, por muito más que sejam, são bem melhores do que noutro lado qualquer.

A avó ia ficar orgulhosa dela. É uma boa forma de descrever muitas coisas nos Estados Unidos.

 

Dias e dias, meses e meses, as folhas, as flores cresceram e em breve estarão a morrer. Não houve churrascos este verão que passou, nem encontros de família. Amy tirou a identificação dos bolsos, os cartões de crédito, as chaves de casa e colocou-as em cima da cómoda, arrumadas ordenadamente, destinadas a ficarem ali. Saiu de casa e desapareceu, dias e semanas e meses e Lily nunca fez perguntas. Andrew não lhe ligava, não falava com ela desde Maui e Lily nunca fez perguntas. Não se conseguia manter em pé, não conseguia comer, tinha as pernas dormentes, a queimadura infetada, estava ferida de dentro para fora e nunca se perguntou porquê. E agora dorme e sonha com o seu esquecimento e deseja-o desesperadamente de novo. Deseja levar uma vida tão inteiramente feliz, tão inteiramente sem problemas que podia estar a morrer, podia estar a ser traída, podia estar a ser cercada por todos os lados e nunca saber.


21

Mais uma noite de sábado para Spencer


Spencer sentou-se em frente ao seu especial de sábado à noite — o excelente e raro uísque de malte Speyside. Não trabalhava aos fins de semana, apesar de às vezes, como hoje, não conseguir evitá-lo. E não via Mary, invocando obrigações familiares ou de trabalho, mas a verdade era que nem o pai doente conseguia atraí-lo por tanto tempo. Quando havia uma função familiar, tinha de se preparar antecipadamente. Pedia baixa ou tirava dias de férias adiantados, algumas vezes atrasados. O seu corpo contava os cinco dias de segunda a sexta como se fosse um metrónomo, um pêndulo de sobriedade. Cinco dias para estar sóbrio e, à sexta, o seu corpo mal conseguia funcionar. Não conseguia comer, não conseguia estar alegre, a mente nublada, o corpo num tremor. Às sextas, costumava sair às vezes com a malta dos Homicídios e começava a beber com eles, bebendo coisas reles, pequenas e perfeitas, para mostrar a toda a gente como era normal, tão alegre, tão como eles, matando dois coelhos com uma cajadada: revelando sociabilidade fingida e começando o prémio de fim de semana. Preferia sair com a Mary às quintas, mas era difícil evitar ver a namorada em ambos os dias do fim de semana. Estava destinada a ficar desconfiada. Ou acabava com ela ou mantinha-a e pagava o preço. Por isso, Spencer manteve-a e saía com ela às sextas, acabando no apartamento dela no Upper West Side. Nunca dormia lá; pensava apenas numa coisa — em ir-se embora —, até quando se estava a vir.

Estava muito bem treinado, comprava as bebidas antecipadamente e em várias lojas, uma vez que bebia até não haver uma gota de uísque em casa e o seu comportamento era demasiado mau e errático para sair durante. Havia demasiada gente que o conheciam no bairro. Não queria que o vissem em tal necessidade. Era um detetive-tenente principal da NYPD[1]. Tinha de estar operacional, tinha de estar sob controlo. Daí a compra de uísque em Chelsea ou no Soho, daí a sobriedade rabugenta de segunda a sexta, daí o beber cuidadoso entre os amigos. Não conhecia os sábados. Para Spencer, a maioria dos sábados eram dias perdidos, dias passados, dias de todas as definições de realidade inexistente. Aos domingos de manhã, todo o Macallan, Chivas ou Johnny Walker, Glenmorangie e até o melhor, o Highland Park de 25 anos, tinham desparecido e ele ficava confinado em casa e, por necessidade, lenta e dolorosamente sóbrio outra vez.

Depois chegava a segunda-feira de novo e mais cinco dias a ser bom, cinco dias de penitência. Cinco dias a viver para o fim de semana. Spencer gostava de Mary, precisava de Mary, gostava de trabalhar, precisava de trabalhar, mas não havia nada de que Spencer precisasse tanto como de uma bebida numa sexta à noite.

Porque é que a sua mãe teve tantos filhos? Porque é que não pôde ser um filho único irlandês católico? Os fins de semana em que teve de ficar sóbrio para comunhões, confirmações, batismos e casamentos eram uma tortura para ele. Tortura a sério. O seu corpo, desidratado e latejante, expressava exteriormente a insatisfação interna. Ficava carrancudo, calado e a tremer. Nunca bebia uma gota nos encontros porque sabia que não havia maneira de beber sem eventualmente beber até apagar. Não havia maneira de dar um gole, tomar um copo, uma cerveja, um coquetel. Spencer nunca se deixava enganar, nunca se iludia, nunca fazia de conta. Sabia toda a verdade e aceitava-a totalmente, mas era mais importante que outros não a soubessem, nem sequer suspeitassem que casualmente ele molhava a garganta com a sua droga de eleição. Por isso, não bebia, mas batia com os dedos na mesa as horas a seco, nos guardanapos, com os dentes do garfo.

Depois de regressar de Port Jeff, deixar Harkman, entregar o carro de patrulha e chegar a casa, Spencer, ainda antes de se descalçar, bebeu 70cl de Glenmorangie, enquanto estava de pé perto do lava-louça, diretamente da garrafa. Tomou um grande duche para lavar a bebida dos seus poros e estava agora, horas depois e já um quarto sóbrio, sentado em frente à garrafa cheia de Macallan cuidadosamente colocada ao lado do copo alto a acompanhar. Já passava da meia-noite e Spencer ponderava se podia deitá-la fora e não beber dela. Tentou ver televisão, abrir um jornal. O que fazer com as aflições? Só continuar, tentar continuar, tentar funcionar num mundo sem paciência para tremores, para a fraqueza. Perderia o emprego nas Pessoas Desaparecidas, alegariam invalidez e depois aposentá-lo-iam da força se o Whittaker pensasse que não tinha controlo sobre a própria vida. Gabe McGill não sabia, apesar de que, se soubesse, não se importaria. Se Harkman soubesse, Spencer já estaria há muito sem emprego. Talvez fosse isso com que Harkman o estava a ameaçar?

Nesse sábado havia mais qualquer coisa quando Spencer se sentou em frente da sua garrafa e contemplou o eterno conflito, lutando consigo próprio numa batalha perdedora. Nessa noite pensou em Lily. Pensou na rapariga com olhos de corça e cabelo espetado, o fogo de uma mulher muito jovem a ser derrubado por coisas muito piores do que vícios opcionais, apesar de Spencer querer dizer em sua própria débil defesa que não havia nada de opcional na sua dependência.

Não contemplava a garrafa em relação à doença de Lily. Contemplava-se a si próprio em relação a Lily. Ela precisou dele no dia anterior e, por sorte, ele estava com outra mulher e, por isso, sóbrio. Mas e amanhã? E no próximo fim de semana? Se ela precisasse dele outra vez, ele não ia estar lá. Não estaria capaz de atender o telefone, responder à mensagem dela, aparecer, ajudá-la. Ela ligar-lhe-ia e ele não responderia. Ela perguntaria onde é que ele estava e ele não responderia.

E não havia qualquer dúvida sobre isso, não podia negá-lo, nem mesmo para si no seu apartamento escuro em frente ao seu consolo, a sua alma, o seu espírito. Lily precisava de alguém.

Talvez este sábado, este domingo, pensou finalmente e com esforço ao levantar-se. Vou aguentar por mais seis dias. Pensa nisso como uma função familiar inesperada, prolongada. Antes de se tentar convencer a não o fazer, Spencer avançou e deitou a garrafa de uísque de 93.06$ no lava-louça, agarrando-se às laterais de aço inoxidável enquanto se dobrava para inalar o cheiro intoxicante do iodo do mosto de cevada fermentado enquanto ia pelo implacável ralo abaixo.

 

[1] Departamento de Polícia de Nova Iorque. (N.T.)


22

No jardim do polícia barbeiro


Através do sono pesado, o telefone... O telefone toca, toca, toca, insiste em si próprio, no seu direito na vida dela, como quem diz: atende-me, levanta o auscultador, já, vem, vem, VEM!

Lily rastejou para fora da cama e desligou o fio da parede. Amanhã ia para o hospital. A avó deve ter ligado a toda a gente. Bem, isso era bom. Pelo menos Lily não tinha de fazê-lo. Não ia desperdiçar o tempo a falar ao telefone. Mas talvez devesse falar com alguém. Quem é que ia levá-la de manhã ao hospital para ela dar entrada para começar a quimioterapia?

Perguntou-se se a avó tinha ligado à mãe.

Espero que sim. Eu não consigo ligar-lhe. Ela fala, queixa-se, magoa, agride, empurra-nos para um conflito que eu não lhe quero dar. Mas por fim grito com ela, torno-me na coisa feia que ela quer que eu seja e fico a odiar-me. Bem, não quero culpar mais a minha mãe por ser quem sou quando estou com ela. Joshua, abençoado seja pelo seu complexo com a mãe, curou-me disso. Escolho ser outra pessoa em vez de fazer isso. Não posso falar com ela. Não posso ser levada a ser algo que não quero ser. Não lhe vou telefonar.

Palavras corajosas de uma jovem menina. Mas no fundo do coração doente de Lily, estava a mãe que ela queria que a mãe fosse. Que, depois de saber que a filha estava gravemente doente, largava tudo, mandava tudo às urtigas e voava sete mil milhas para levar a filha ao hospital na segunda-feira para a quimioterapia de indução. Indução no resto da vida dela. Uma mãe que chegasse, limpasse e lhe fizesse canja, lhe lavasse as toalhas, levando-as à lavandaria. Uma mãe que não dissesse parvoíces aos médicos, que lesse os relatórios médicos, que preparasse um banho a Lily, mesmo apesar de Lily detestar banhos, e esperasse pelo dia em que pudesse estar tempo suficiente de pé, ser suficientemente forte para tomar um duche.

Foi por causa dessa visão infantil, cor-de-rosa, da fantasia daquela mãe que ela queria desesperadamente, que Lily ligou para Maui. O pai atendeu o telefone.

— Oi, Papi.

— Oi, Liliput — respondeu, e Lily quase se foi abaixo.

— Como estão as coisas?

— Ah, já sabes — disse, e a mãe atendeu na outra linha.

— Lily? — chamou com voz arrastada. — Desliga o telefone! — gritou. E Lily ficou na dúvida para quem é que estava a falar, até a mãe acrescentar — querofalarrrsozinhacomaminhafilha.

— Papi, não. Não desligues. Tenho uma coisa para te contar.

— Ele ‘táaa a deixar-me mmaluca — exclamou Allison —, vou matar-me! Vou mandar-me da janela abaixo. Ouviste? OUVISTE??

E George, em tom cerrado, disse:

— Ouvi, ouvi. O mundo inteiro está a ouvir-te.

A mãe largou o telefone e começou a gritar com o pai. O pai começou a gritar de volta. Lily esperou por um indelicado momento, depois outro, e desligou.

 

As chamadas não tinham fim. As notícias do prémio eram abafadas pelas notícias do cancro, pelas notícias de Andrew. Amanda, Anne, a avó, Rachel, Paul, Dennis, Joshua! O Rick do restaurante, Judi, Jan McFadden. Amanda e Anne não sabiam o que fazer, se chorar por Lily, se chorar por Andrew, quando contaram a Lily que o irmão tinha sido interrogado na própria casa numa tarde de sábado por detetives intrusivos e desagradáveis do NYPD.

— Aquele detetive O’Malley precisa de um treino de sensibilidade — disse Amanda em tom reprovador. — Era capaz de mandar a própria avó para a prisão.

A campainha tocou. Era uma da tarde. Lily teve de colocar Amanda em espera, dizer a Rachel que lhe ligava de volta, novamente, e ir ao intercomunicador.

— Quem é?

— Spencer.

— Amanda, tenho de ir. — É o carcereiro de avós, apeteceu-lhe acrescentar.

Abriu-lhe a porta, passando uma mão pelo cabelo e trocou os calções por umas calças, para esconder as nódoas negras das pernas.

Spencer, por barbear, ele próprio a parecer abatido, pálido e de olhos vermelhos, trouxe com ele uma máquina elétrica de cortar cabelo.

— Como é que te sentes esta manhã?

— Como se tivesse cancro. — Apontou para a máquina. — Para que é isso?

— Vou cortar o meu cabelo.

— Vieste ao meu apartamento para cortares o teu cabelo?

— Bem, sim. Pensei em cortar o meu, e depois... — Sorriu timidamente. — Cortar o teu.

— Estás a falar de quê? — perguntou Lily, dando um passo atrás e tocando no próprio cabelo. Achava que ele não estava no seu juízo perfeito nessa manhã. — Não vou cortar o cabelo. — O telefone tocou. Olharam um para o outro. — Não vou atender. Estive toda a manhã ao telefone. A ouvir falar sobre teres ido ontem a casa do meu irmão.

Ele deu um passo na direção dela.

— Peço desculpa por isso. É uma altura terrível. Não leias os jornais.

— Não faço tenção disso. É só mentiras. Por favor, guarda a máquina, estás a assustar-me.

Ele chegou mais perto.

— Vais perder o teu cabelo.

— Não pela minha mão.

— O teu cabelo vai cair aos bocados. Vais ficar com peladas por toda a cabeça. Mas da minha maneira, fica todo rapado por igual, giro até. E para te mostrar que consigo fazê-lo, vou rapar o meu primeiro.

— Não vou cortar o cabelo — disse —, muito menos à força. Aos bocados?

— Muito bem — retorquiu Spencer. — Mas eu vou cortar o meu.

Ela observou-o na cozinha, com um espelho de mão seguro em cima do topo do escorredor da louça. Tinha tirado o blusão de ganga e o polo e de repente estava inexplicavelmente despido da cintura para cima. O cabelo do peito ainda era castanho, quase a ficar grisalho nas pontas. Era magro, não havia um pedaço de gordura nele, como se tivesse jogado futebol na juventude. Apesar de estar em forma, parecia que não se alimentava como devia ser. Ver um homem nu no seu apartamento, ainda que parcialmente, fazia Lily sentir-se desconfortável. Não era um mau desconforto. Apenas um desconforto tenso. Ele era maluco. Estava mesmo a cortar o cabelo.

E agora tinha desaparecido todo. Spencer virou-se para ela:

— O que achas? Está bem? — Parecia pronto para ir para a tropa. Deixou ficar menos de um centímetro de penugem castanha, a combinar com a barba.

— Assustador. E careca. — Mas os olhos dele eram grandes e azuis e a boca carnuda parecia esculpida, desenhada como numa caricatura com linhas aumentadas a toda a volta. A linha do maxilar, as maçãs do rosto, as sobrancelhas, as orelhas, a barba, tudo nele ficava de alguma forma mais pronunciado pela ausência de cabelo.

— Sim. És tu a seguir.

— Não.

— Lily...

— Não quero saber como me chamas ou do tom de voz que usas. Não. Ele deu pancadinhas na própria cabeça a olhar para ela com um ar sério de gozo.

— Para. — Saiu da cozinha. Ele seguiu-a.

Passados quinze minutos a tentar fugir dele no seu apartamento minúsculo, Lily cedeu.

— Mas não me vou despir.

— Isso parece-me ajuizado.

Sentou-se numa cadeira à sua frente.

— Não quero que faças isto.

— Eu sei. Mas olha para mim. Achas que eu queria fazer isto? E nem sequer estou doente.

— Não sei porque o fizeste. Estás claramente doente da cabeça. E além disso, és um homem. O que te interessa o cabelo?

— Está bem, pronto. Parece que nunca conheceste um homem antes.

Lily ficou desconfortavelmente sentada enquanto a máquina lhe passava perto da orelha e madeixas do seu cabelo castanho com reflexos caíam no chão.

— Spencer — disse ela —, o médico não disse que todo o meu cabelo ia cair?

— Sim, disse. — Ele continuava a cortar. A mão dele segurava-lhe a cabeça para mantê-la quieta. Lily fechou os olhos. Estava a ser tocada por outra pessoa que não ela própria.

— Spencer...

— Diz?

— Todo o meu cabelo? — Lily não abriu os olhos porque não queria nem sorrir nem corar. Ela não devia mesmo estar a fazer uma piada desse género com um agente da polícia.

Spencer inclinou-se para encará-la. Ela abriu os olhos, viu a expressão dele e riu-se. Os olhos dele sorriam.

— Queres que eu corte todo o teu cabelo, Lily?

— Não, obrigada. — E corou.

— Bem me parecia.

Depois de pronto, ele sacudiu-lhe os cabelos da cabeça rapada e dos ombros com uma toalha. Ficava pior do que ele sem cabelo. Simplesmente assustador. De cabeça rapada, os olhos castanhos, a boca meio adormecida e os salientes ossos faciais de formato oval não faziam nada por ela.

— Ficas muito melhor careca do que eu — declarou Lily em tom desagradável. — Como pode ser isso justo?

— Acho que é moderno. Pareces a Sinead O’Connor.

— Isso é fantástico. Bem, a minha avó ficaria orgulhosa. Pareço uma sobrevivente de um dos campos de que ela tanto me fala. Só me falta o pijama.

Spencer ofereceu-se para levá-la a um brunch no Plaza. Lily tinha dito uma vez que sempre quis lá ir, por isso, ele ofereceu-se. Mas ela sentia-se demasiado constrangida com a sua cabeça de porco-espinho para ir a um lugar como Palm Court. E não tinha uma peruca ou um chapéu bonito para a cobrir. Só tinha os gorros de Amy.

— Obrigada, Spencer, mas fica para uma próxima vez. Não tenho apetite, de qualquer modo.

Como se soubesse por que razão ela não queria ir, disse:

— Vamos ao Bergdoff arranjar-te um chapéu, se quiseres.

— Ainda não me pagaram.

— Eu pago.

— Não. Não há problema, mesmo. Um outro dia, ok? Hoje não consigo. Tu percebes.

Ele percebia. Ficou calado a limpar a máquina de cabelo.

— Bem... — disse, depois de ter acabado. — O barbeiro fechou. Por isso... queres que me vá embora?

Lily não queria. Fez um pequeno trejeito com a boca e sem olhar para ele, abanou a cabeça. Ele perguntou-lhe o que ela queria fazer mais e ela respondeu que talvez andar em Central Park. E foi onde foram, mas ela ficou tão cansada que nem sequer conseguiu chegar à entrada do jardim zoológico que era próximo do sítio onde o táxi os tinha deixado na 59th Street. Era um domingo soalheiro e quente de agosto.

Sentaram-se num muro baixo, à sombra. Ele comprou-lhe água e um gelado, enquanto ele comia dois cachorros e um gelado italiano. Ela sentia-se fraca e precisava de ir para casa deitar-se na cama; precisava, mas não queria. Depois de lhe ter voltado um pouco de energia, passearam até ao ringue de Wollman. Não havia gelo em agosto, mas contornaram-no até às bancadas e treparam para se sentarem elevados nos bancos azuis.

Tranquilamente tranquilos sentaram-se no verão. Havia muito a pesar em Lily, mas ela não queria falar sobre nada disso.

— Sabes quem é Oliver Barrett? — perguntou-lhe, em alternativa.

— Não.

— Jenny Cavilleri?

Spencer abanou a cabeça.

— Nunca viste o Love Story quando eras pequeno?

— Os rapazes de treze anos não veem o Love Story. É mais o Night of the Living Dead.

— Tinhas treze anos em 1970! — exclamou Lily, examinando-lhe a cara. Seria Spencer mais velho do que o irmão?

— Bem, sim. Até em 1970 havia rapazes de treze anos a correr por aí.

— Já havia filmes com som nessa altura, ao menos?

— Ainda mal tinham acabado de inventar o dinheiro.

— Bem me pareceu.

Continuaram sentados um ao lado do outro, com as cabeças redondas a baloiçar juntas como iscos de pesca a ondular.

— Então quando é que entraste para a polícia?

— Em 1978.

— És polícia há quase tanto tempo como eu estou viva? — Como era aquilo possível?

— Acho que sim. Durante quanto tempo andou a Amy a deixar a identificação na cómoda?

— Ah. Por favor. Não sei, Spencer. — Lily suspirou. — Olha, sei que me queres contar as coisas que tu e o meu irmão falaram ontem...

— Não te quero contar.

— Ainda bem. Porque eu não quero ouvi-las. Não consigo ouvi-las, percebes? — E emitiu um leve gemido.

— Percebo. — Ele fez pressão contra o ombro dela.

— Ele disse... Ele sabia onde ela está?

— Ele disse que não.

— Acreditas nele? — Lily não o encarou quando perguntou.

Spencer olhava em frente.

— Miúdas! Pensava que não querias falar sobre isso?

— Não quero. Vamos. — Tentou levantar-se.

Apanharam um táxi para a 11th na Broadway.

— Não moro aqui — disse Lily quando saíram.

— Moro eu — declarou Spencer.

Ficaram na Broadway com o calor do final da tarde. Ele passou-lhe a mão pela face.

— Não tenhas receio — disse ele. — Sobe. Faço-te um chá. Podes ver televisão. Porque é que não tens televisão em tua casa?

— O Joshua levou-a.

— É mesmo um verdadeiro príncipe, não é? Bom, quando saíres do hospital e o teu dinheiro chegar, podes comprar um plasma para cada divisão, até mesmo para a casa de banho.

— Ah, ele vai ver!

 

A casa dele estava limpa. Os jornais estavam no chão, o correio em cima da mesa. A cozinha parecia receber poucas visitas, como a dela.

Lily gostava dos tetos de três metros de altura dele e a Broadway mesmo ali fora das janelas de dois metros. Logo do outro lado da estrada, ficava o Dagostino em frente do qual ela o encontrou uma vez com Mary no mês passado. A ideia da Mary fê-la tremer e Lily afastou-se da janela, sentando-se no sofá cinza-acastanhado em forma de L, pegando numa Sports Illustrated enquanto Spencer estava na cozinha a fazer chá. O passar das páginas, o barulho distante dos carros de domingo a passar lá fora, o bater das portas, as buzinadelas ocasionais, o apito da chaleira, o tilintar dos talheres e Lily adormeceu com a revista no colo, a cabeça careca a pender para trás.

Quando acordou, estava tapada com uma manta azul com gatos enquanto Spencer estava sentado na ponta do sofá, a ver qualquer coisa na televisão. Tentou concentrar-se, não conseguiu. Um filme com música familiar. E as caras... quem eram? Havia neve, uma batalha de bolas de neve, felicidade e uma valsa melódica. Lily deitou-se, enrolando-se debaixo da manta e voltou a dormir. Quando acordou, era de noite e Spencer ainda estava sentado na ponta do sofá, desta vez a ver um jogo de basebol.

— Desculpa — disse, tentando levantar-se.

Ele levantou-se para ajudá-la.

— Não tens de pedir desculpa. É melhor levar-te a casa. Já é tarde. Tens de acordar cedo amanhã. A que horas tens de estar no hospital?

— Às seis da manhã para fazer análises ao sangue.

— Vá lá, as enfermeiras não podem estar acordadas às seis! Estavam só a gozar contigo. — Spencer observava-a enquanto ela se endireitava. — Precisas... de mim... para ir contigo e levar-te?

— Não, não. As minhas irmãs devem estar a tirar à sorte para ver qual delas vai fazê-lo. Não te preocupes. Não queria ter apagado. Sou tão má companhia. — E na entrada, Lily perguntou: — O que é que estavas a ver quando eu estava a dormir?

— Fui ao clube de vídeo e aluguei o Love Story — respondeu Spencer, segurando a porta para ela sair. — Para ver o que tinha de especial.

— Nada de especial — murmurou, incondicionalmente agradada com aquilo. — Então, o que achaste?

— Ei, gostei mais do Night of the Living Dead. — E sorriu.

Quando a trouxe até casa, fez-lhe uma festa no ombro e ela confessou:

— Tenho tanto medo, Spencer. Do que me espera. E se não consigo fazê-lo?

E ele respondeu:

— Vai correr tudo bem, vais ficar bem. — E Lily pôs-se em biquinhos de pés e beijou-o docemente na face barbuda no meio do corredor bege.


23

Quimioterapia 101


Na segunda-feira, às cinco e meia da manhã, o intercomunicador da porta de entrada tocou.

— É a tua avó — disse a voz.

— Quem?

— Deixa-me entrar.

— Avó? — Lily abriu a porta.

Dez minutos depois, a avó apareceu-lhe à porta, a agarrar-se às paredes, a arfar.

— Avó?

— Oh, meu Deus, estas escadas! Oh, meu Deus! O que fizeste contigo, o que fizeste ao cabelo?

— Cortei-o. Vai cair todo, de qualquer modo. Avó! — Lily colocou a mão no peito.

— O que foi? — A avó olhava para ela como se não fizesse ideia da razão de tanto alarido.

— Saíste de casa! — exclamou Lily, tentando não chorar. Saiu de casa pela primeira vez em seis anos.

— Sim, e? — disse a pequena avó de cabelo branco, abrindo-lhe os braços. — Saí de casa por ti. Agora vai-te arranjar. Mas por amor de Maria e José, faz um favor a ti própria e não leias os jornais. As notícias de hoje são terríveis e exageradas.

— Lembra-te do que disse Truman Capote, avó. Disse que não queria saber do que diziam as pessoas sobre ele desde que não fosse verdade.

— Bom, rezemos para que o teu irmão pense o mesmo. Vá lá, vamos embora.

No Mount Sinai, às seis da manhã, Marcie e o Dr. DiAngelo já estavam à espera. Desta vez, ele vestia uma bata de médico e não um fato de treino — para impressionar a avó, tinha Lily certeza —, usava óculos e não parecia um miúdo.

— Parece-me demasiado novo para ser médico — sussurrou ela.

— Obrigado — retorquiu DiAngelo —, mas vou fazer cinquenta e quatro este ano.

— Tal como eu disse — sussurrou Claudia mais baixo. — Uma criança.

Depois de DiAngelo explicar a Lily o que estava prestes a acontecer, ela levantou-se da cama e perguntou:

— Vou ter um buraco no peito? — Abanava a cabeça. — Vou para casa. Obrigada de qualquer modo.

Marcie explicou:

— É um pequeno cateter, para que lhe possamos administrar os medicamentos, tirar sangue, dar sangue sem que as veias dos seus braços fiquem cheias de cicatrizes. O cateter de Hickman não é preocupação nenhuma. Um cateter venoso central é implantado mesmo debaixo da sua pele, em cima da caixa torácica. Está diretamente ligado à sua veia cava, que está diretamente ligada ao seu coração.

Lily ia tomar vitamina A oralmente todas as manhãs e depois, à tarde, sacos cheios de fármacos líquidos seriam despejados para dentro da veia cava. Ia fazê-lo durante sete dias. A seguir tinha três dias para recuperar. Depois far-lhe-iam uma biópsia e começaria de novo. E depois outra vez. Três tratamentos, trinta dias.

— Muito, muito agressivo — disse DiAngelo. — Mas não temos outra hipótese. — E tossiu ligeiramente. — Só para seu conhecimento, estas doses de vitamina A, ou ATRA, como os comprimidos são conhecidos, estão associados à síndrome pulmonar leucocitária, que é potencialmente letal.

— O quê?

— É quando glóbulos brancos se unem nos pulmões e fazem com que se pare de respirar.

— Ah.

— A ATRA é muito tóxica.

— Então e se for quimioterapia sem ATRA?

— Níveis variáveis de sucesso, maior morbidade. Não recomendo. Mas a ATRA funciona muito bem quando combinada com outros fármacos.

— Quais os nomes desses outros fármacos, jovem? — perguntou Claudia formalmente, como se fosse investigá-los assim que chegasse a casa.

Um sorriso apareceu na cara de DiAngelo.

— Citarabina, para matar as células cancerígenas existentes; Daunomicina para fazer com que as células cancerígenas parem de se reproduzir e Vepesid, que faz ambos, em boa medida. — A citarabina, ou Ara-C, como é chamada, ia correr continuamente por sete dias.

— Isso soa a uma carga tremenda. Isto vai afetá-la? — perguntou Claudia.

— Oh, sim. Mas não tanto como morrer a afetaria — respondeu DiAngelo.

Claudia engasgou-se. Na cama na sua bata feia, Lily fazia festas na pálida mão da avó.

— Senta-te, avó. Ele está só a brincar contigo.

— Não tem piada, caro jovem. Não apreciamos esse tipo de humor na família. Sobrevivemos à guerra, aos campos de concentração, sobrevivemos a demasiado para...

— Avó, avó. — Lily estava a mandar um olhar sério à avó. — Ele está só a brincar. Para aliviar o ambiente. Está tudo bem. Ele sabe o que está a fazer.

— É melhor que saiba. — Claudia virou-se para DiAngelo. — Quanto tempo é que ela vai estar no hospital? Depois de quarta-feira, venho buscá-la para a levar para casa.

DiAngelo e Marcie trocaram um olhar.

— Lily, não contou tudo à sua avó, pois não?

— Ainda não. — Lily virou-se para a avó. — Vou estar aqui durante um mês.

— Um mês!

— Não posso dar-lhe alta se ela não se conseguir manter em pé — disse DiAngelo.

— Porque é que ela não pode ir para casa no resto dos dias? Uma das minhas amigas teve leucemia e ia para casa entre tratamentos. Toda a gente vai para casa... para recuperar, para ficar mais forte, para comer.

— Como é que está a sua amiga?

— Bem, está morta.

Com um sorriso educado prolongado, DiAngelo direcionou um olhar para Lily.

— Dê-lhe algo mais leve — pediu Claudia.

— Lily, mais leve ou viver. A escolha é sua.

— Viver.

— Bem me pareceu.

— E passado um mês? — Claudia afundou-se na cadeira.

— Sabe que mais? Vamos ultrapassar os próximos trinta dias e depois falamos sobre o que vem depois. Se tivermos a sorte de haver um depois, ela vai estar treze semanas numa quimioterapia consolidada em tratamento ambulatório. Ainda não chegámos lá. Está pronta para aquele Hickman, Lily?

— Claro que não.

— É assim mesmo, minha menina.

— Lilianne — perguntou Claudia —, pensaste em pedir uma segunda opinião?

— Lilianne — disse DiAngelo. — Vejo que não contou à sua avó a gravidade do seu estado. Não foi honesta com ela.

— Fui honesta — disse Lily. — É que ninguém consegue bem acreditar. — Eu ainda menos que todos.

— Não trate a sua neta como se ela tivesse uma constipação comum, Sra. Vail. Trate-a como se tivesse cancro.

Claudia agarrou-se ao peito e começou a arfar.

Lily apertou a mão da avó.

— Vais ficar bem, avó. Descontrai. Vais conseguir superar isto, vais ver.

 

A implantação do cateter parecia ser dolorosa. E foi. Abriram-lhe um buraco no peito e puseram um tubo dentro dela! Deram-lhe anestesia local, mas quando o médico perguntou se estava a doer, Lily disse que sim, mesmo que houvesse coisas no seu corpo a sentirem-se pior. Pediram-lhe para classificar a dor de um a dez. Nove, respondeu, baixando-a depois até ao quatro quando viu o espanto deles. Mas ver o tubo no buraco no peito provocou-lhe qualquer coisa. Começou a chorar. A avó começou também a chorar, o que deu ainda mais medo a Lily.

Marcie acalmou-a puxando a cabeça rapada de Lily contra o seu grande peito negro. Lily ficou consolada. Porque é que a avó não tinha seios assim para ser puxada contra eles?

Lily estava preocupada com uma coisa. Aguentaria a náusea constante, poderia vomitar e sobreviver a isso? Odiava sentir-se enjoada. Sempre tinha odiado e nunca na vida tinha feito nada com que ficasse enjoada. Era uma fraquinha do vómito. Podia dizer-lhes isso? Só se iam rir dela. «Ho, ho, Lily, o que é uma pequena náusea comparada com a tua vida?» Mas queria saber: exatamente quanta náusea é que implicava a sua nova vida?

A ATRA oral foi rápida, tal como o ibuprofeno, e os sacos de quimio pendurados ao lado da cama à tarde pareciam tão inocentes que Lily não podia acreditar que iam fazê-la sangrar intencionalmente. Sentia-se otimista em como ia ser uma daquelas que não ia enjoar muito, que não ia vomitar, que não ia ficar surda.

À tarde, vieram Amanda e Anne. Todas ficaram horrificadas com o seu corte de cabelo.

— Quem é que te fez isto? Pagaste para ser retalhada assim. Porquê?

Ela não quis dizer quem lhe tinha feito aquilo. Não achava que fossem perceber. Esperava que, se Spencer a viesse visitar, não viesse quando eles estivessem todos ali.

Amanda segurava-lhe numa mão. Anne na outra. Anne vestia um fato. Amanda roupas maternais, calças elásticas, camisola larga. Uma hora era muito tempo para estar deitada ali a ver a citarabina pingar, e pingar, e pingar para dentro do seu cateter no peito. Era uma solução transparente; podia ser água ou um placebo. Que conceito mais estranho: um buraco aberto no corpo dela para coisas pingarem lá para dentro. Estavam a injetar-lhe quimio, mas poderiam potencialmente injetar chocolate? Ou calda de morango? Ou gelado de baunilha derretido? Como é que se sente, como é que se sente, continuava Marcie a perguntar, a avó a perguntar, Anne, Amanda a perguntar, Paul, Rachel a perguntar.

Paul e Rachel estiveram aqui?

— Oh, meu Deus, Lily, quem te fez isto ao cabelo? — perguntou Paul. — Isto magoa-me profundamente, como teu cabeleireiro pessoal.

DiAngelo expulsou-os a todos. A avó ficou.

Lily estava sonolenta. E que tal um Cosmopolitan dentro do cateter? Vodca, Cointreau, sumo de mirtilo, lima, ahhhh...

O primeiro saco esvaziou-se. Marcie pendurou um saco de Vepesid. — Gosto do seu cheiro — murmurou Lily. — A Milky Ways e nicotina.

— Trago-te um saco cheio de Milky Ways quando ultrapassares isto — disse Marcie.

— Marca-me o encontro... diretamente através do portal cateterizado — respondeu Lily.

Esta segunda hora foi mais longa porque ela começou a sentir-se... deveria dizê-lo? Enjoada. Era psicossomático. Disseram-lhe que ia sentir-se assim. E como tal, sentiu-se. O quarto, tão simples e sem decoração, quase como um quarto de convento, começou a mudar de cor, da mais banal (como é que isso era sequer possível?) a verde-tropa, a laranja-abóbora. A imagem da televisão por cima da cabeça ficou duplicada. Lily pediu-lhes para a desligarem. Agora a televisão desligada estava duplicada. Estava sob o efeito de alucinogénios! Deram-lhe mescalina, cogumelos mágicos, sementes de miosótis!

Marcie já não era negra, mas verde, com engraçados óculos de olho-de-peixe e sardas. Ela perguntou:

— Lil, estás bem? Estás um bocadinho pálida. — Para mostrar que ela tinha razão, Lily pediu que lhe tirassem a infusão intravenosa, o que não iam fazer, e por isso arrastou o suporte até à casa de banho e vomitou. Teve de se agarrar à sanita para ter a confirmação física perante a incerteza dos seus olhos, a sanita estava duplicada. Tinha vomitado duas vezes?

As suas duas avós permaneceram caladas; podem até ter fechado os olhos em uníssono.

Na terceira hora, o saco de daunomicina. Decididamente, o enjoo não era psicossomático. Desagradada consigo, Lily perguntou a Marcie se se habituaria, se ficaria menos enjoada com o avanço da quimioterapia.

Marcie calou-se por um momento.

— Pior — disse. — O efeito cumulativo é o que te atinge. Isto não é nada.

Não era nada? A desgraça giratória não era nada!

Depois de três horas e três sacos, eram seis da tarde e Lily balbuciou à avó para ir comer alguma coisa. Balbuciou a Marcie:

— E se eu não comer, fico menos enjoada?

— Mais — respondeu Marcie. — A comida absorve algum do ácido. Queres comer alguma coisa?

Um não Rotundo.

— Conta-me uma história, avó — murmurou.

— Queres uma história, Liliput? Eu conto-te uma história — disse Claudia. Lily ouviu em parte, enquanto a avó lhe contava que na aldeia dela, a sul de Danzig, quando os alemães vieram em dezembro de 1939, levaram toda a comida para eles, deixando apenas uma pequena quantidade para os habitantes. E durante a contagem de cabeças matinal, alguns dos polacos começaram a empurrar os polacos judeus para a frente da linha, para que eles fossem levados e sobrasse mais comida. De repente, após séculos a viverem lado a lado como polacos, as pessoas ficaram divididas entre polacos e judeus. Não polacos judeus, apenas judeus. Foi só depois de os alemães virem e anexarem parte da Polónia como deles, é que este problema começou. A fome é uma ferramenta poderosa nas mãos do inimigo.

— Portanto, come alguma coisa, Lily.

Um novo saco de citarabina ficou permanentemente ligado, por mais seis dias.

— Conta-me sobre ti e o Tomas — expeliu Lily.

— O Tomas, não. Queres que te conte sobre a tua mãe? Acho que ias gostar de ouvir. Tenho algumas histórias sobre ela.

— Não. Ia gostar da minha mãe, embora...

Lily não se lembrava do resto da segunda-feira.

 

 


C   O   N   T   I   N   U   A