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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SENHA / Irving Wallace
A SENHA / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SENHA

Primeira Parte

 

Tinha acabado de chegar ao aeroporto John F. Kennedy, e no momento em que apresentava o bilhete para Chicago à verificação, o funcionário que se encontrava ao balcão das instalações da companhia de aviação entregou-lhe um recado urgente.

            Telefone para o seu escritório. Importante.

            Receando o pior, com o coração batendo em ritmo acelerado correu para a cabine mais próxima e marcou apressadamente o número do seu escritório em Manhattan.

            Ouviu a voz da sua telefonista.

            - Steven Randall e Companhia. Serviço de relações públicas.

            - Daqui fala Randall - disse impacientemente. - Ligue o telefone para a Wanda.

            Momentos depois a ligação foi feita e entrou em contato com a sua secretária.

            - Wanda, que se passa? É a respeito do meu pai?

            - Não... não... desculpe, era meu dever ser mais explícita... perdoe-me a negligência. Não, não há más notícias sobre a sua família. Trata-se de outra coisa, assunto de negócios... pensei que talvez fosse melhor avisá-lo antes de levantar vôo. A chamada chegou logo depois do senhor ter partido para o aeroporto. E... soou-me a coisa importante.

            Randall sentiu-se, imediatamente, aliviado e aborrecido.

            -Wanda, que mais pode haver de mais importante depois de tudo porque hoje passei? Não me sinto com disposição para negócios...

            - Patrão, não me dê uma descompostura. Apenas pensei que...

            - Está bem, as minhas desculpas. Mas, despache-se, ou acabarei por perder o maldito avião. Vamos, desembuche. De que trata esse negócio tão importante?

            - Possivelmente será uma nova conta. Foi o cliente em pessoa que telefonou. Quando lhe expliquei que o patrão tinha que sair da cidade devido a um caso urgente respondeu-me que compreendia, mas insistiu na necessidade de vê-lo logo que estivesse livre e dentro das próximas quarenta e oito horas.

            - Bem, sabe perfeitamente que é impossível. Quem era?

            - Já ouviu falar de George L. Wheeler, presidente da Editora Missão?

            Ao ouvir o nome reconheceu-o imediatamente.

            -O editor de obras religiosas?

            -Esse mesmo. O maior deles. O Verdadeiro Medalhão do mercado. Palavra de honra que não queria incomodar numa altura destas, mas, o assunto pareceu-me tão invulgar, tão misterioso... e, tal como já lhe disse, o homem insistiu tratar-se de algo muito importante. Fartou-se de me recomendar que tentasse colocá-lo em contato consigo. Respondi-lhe que era impossível prometer, fosse lá o que fosse, a não ser que tentaria encontrá-lo para lhe transmitir a mensagem dele.

            - Que mensagem? Afinal, o que é que esse Wheeler deseja?

            - Palavra de honra, patrão, tentei descobrir exatamente de que se trata, mas não consegui. O tipo mostrou-se muito reservado, para além de insinuar ser um assunto ultra-secreto de natureza internacionalmente importante. Finalmente, acabou explicando que se tratava do patrão representar um projeto altamente confidencial que engloba a publicação de uma nova Bíblia.

            - Uma nova Bíblia? - explodiu Randall. - Então é esse o grande e importante negócio? Temos já um bilhão de Bíblias. Que raio poderemos fazer com mais uma? Nunca ouvi semelhante absurdo. Eu feito palerma, servir de instrumento pra uma Bíblia? Não pense mais no assunto.

            - Foi o que eu achei também. Não pensaria mais no caso, patrão, mas, não posso, devido a mensagem do senhor Wheeler... a mensagem que ele insistiu para lhe transmitir. Uma mensagem tão estranha, tão extravagante... Disse-me: «Se o Sr Randall for um indivíduo à maneira de S. Tomé, ver para crer, e quiser saber mais coisas a respeito do nosso projeto secreto, diga-lhe para abrir o Novo Testamento no Evangelho de S. Mateus 28:7. Isso dar-lhe-á uma pista a respeito daquilo que é o nosso projeto».

            Completamente desesperado, Randall quase bramiu:

            -Wanda, não tenho a mais leve intenção de ler essa passagem, nem agora nem nunca. De modo que telefone para o tipo e...

            - Patrão, não se excite, eu já a li! - interrompeu Wanda. Essa passagem de S. Mateus reza assim: «Ide, pois, imediatamente, e dizei aos seus discípulos que já ressuscitou dos mortos. E eis que Ele vai adiante de vós para a Galiléia; ali o vereis ... » Trata-se da passagem a respeito da Ressurreição de Cristo. Foi isso que mais me intrigou... que me despertou a curiosidade e me fez tomar a decisão de encontrá-lo no aeroporto antes de partir. O que faz com que o caso seja duplamente estranho foi a última coisa que Wheeler me disse antes de desligar. Escrevi o recado. Cá está ele. Reza assim: «E depois do Sr. Randall ler a passagem do Evangelho de S. Mateus, diga-lhe que pretendemos que se encarregue da Segunda Ressurreição». É tudo.

            Era um enigma e soava a mistério e fantasmagórico ao ouvido, num dia como aquele, considerando o que havia acontecido e aquilo que ainda tinha enfrentadas. A irritação amainou, e começou pensando no que quereria o tal Wheeler.

            -Quer então que eu me encarregue de tratar da Segunda Ressurreição? Mas, de que raio é que se trata? Será o homem um desses maníacos religiosos?

            - Pareceu-me bastante sóbrio e sério - respondeu Wanda. E pelo que disse fez com que o projeto soasse como... uma coisa destinada a abalar o mundo.

            A memória de Randall voltou-se para o passado. Como tudo aquilo lhe era familiar! O túmulo estava vazio. O Senhor ressuscitara. Erguera-se. Aparecera. A Ressurreição.     Memorizando, foi a época mais significativa e mais segura da sua vida. Todavia, levara anos a libertar-se daquele fetichismo decrépito e estropiado.

            Através da porta entreaberta da cabine chegou-lhe aos ouvidos a chamada que faziam pelos alto-falantes.

            -Wanda, estão anunciando a última chamada para o meu vôo. Tenho que me apressar.

            - Que digo ao Wheeler?

            - Diga-lhe... diga-lhe que, por enquanto, ainda não foi capaz de me encontrar.

            -Nada mais?

            - Nada mais, até que consiga saber o que me aguarda em Chicago e Oak City.

            -Espero que tudo corra bem patrão.

            -Veremos, telefono-lhe amanhã.

            Desligou, e ainda intrigado e vagamente inquieto pelo telefonema de Wanda, apertou o passo a caminho do avião.

            Voavam há mais de duas horas. Randall há muito que afastara do pensamento o tal Sr. Wheeler, a sua nova Bíblia e a sua enigmática Segunda Ressurreição.

            -Estamos prestes a aterrissar - lembrou-lhe a aeromoça a bordo.-Façam o favor de apertar o cinto de segurança, Sr.... Sr. Randall.

            Ela hesitara ao pronunciar o nome, como tentando recordar se já o teria ouvido antes e se ele seria «Alguém». A moça era uma daquelas belezas texanas de abundantes seios e com um sorriso estereotipado. Randall pensou que sem o uniforme talvez fosse engraçada, a não ser que pertencesse ao número daquelas moças que, após dois copos, começam dizendo que não estão habituadas a sair com homens casados e que andam às voltas com um livro de Dostoiewski. Pensou consigo mesmo, provavelmente, seria uma outra Darlene. Mas não, quando a encontrara pela primeira vez havia um ano e meio, Darlene lia Kahlil Gibran e, que ele soubesse, desde então, não voltara lendo mais nada.

            Sentiu-se tentado dizendo à aeromoça que era «Alguém», embora tivesse a certeza de que não devia ser a espécie de «Alguém» que ela pretenderia. Além disso, não interessava, naquela noite não, especialmente naquela noite.

            Fez-lhe um sinal de assentimento com a cabeça e principiou, obedientemente, a apertar o cinto de segurança.

            Não, não era considerado um «Alguém», refletiu, exceto por certas pessoas que desejassem tornar-se celebridades ou continuarem celebridades e por pessoas poderosas que tinham um produto ou até um país necessitando de promoção. O seu nome, Steven R. Randall, raramente, aparecia em letra impressa, ou era mencionado na televisão, a sua fotografia jamais aparecera em parte alguma. O público lá fora via somente o que ele queria que visse, enquanto ele permanecia na sombra, invisível. E não se importava - mesmo em relação à aeromoças – porque era importante onde devia sê-lo, onde a importância na verdade contava, e as pessoas interessadas sabiam que ele era importante.

            Nessa manhã, por exemplo. Encontrara-se finalmente, cara a cara, com Ogden Towery III, daquelas pessoas que interessavam e que sabia que Steve Randall era importante, com uma importância que pesava um par de milhões de dólares. Chegaram, finalmente, a um acordo,sobre à absorção da Companhia Randall, Relações Públicas, pelo monopólio internacional Towery, Empresas Cosmos. Haviam discutido em pé de igualdade em todos... bem, em quase todos os pontos relativos aos negócios menos em um.

            Esse compromisso -Randall tentava minimizar a sua capitulação chamando-lhe compromisso -ainda o deixava inquieto, mesmo envergonhado. Em todo o caso, a reunião dessa manhã fora uma antecipação do que prometia ser um dos dias mais infelizes da sua vida. Sentia-se infeliz porque, personagem importante como se julgava, experimentava uma sensação de desamparo a respeito da sua vida e acerca daquilo que o esperava no fim da viagem.

            Para acabar com a introspecção, resolveu dar atenção ao que se passava dentro do avião. A aeromoça, sem cinta, belo traseiro, regressava à parte dianteira da cabine, distribuindo cordialidade a todos os outros corpos também apertados nos cintos de segurança. Pensou nas outros pessoas a bordo. Pareciam moderadamente felizes, e, pôs-se a imaginar se seriam capazes de ver que ele se sentia infeliz. Imediatamente se sentiu grato pelo seu anonimato dado não ter disposição para falar com ninguém. Na verdade, nem vontade tinha para o encontro com Clare, a sua irmã mais nova, que o esperava no Aeroporto O'Hare, com lágrimas nos olhos e pronta a conduzi-lo de carro de Chicago até ao Wisconsin e a Oak City.

            Sentiu o avião inclinar-se e começar baixar. Compreendeu que o grande jato estava quase chegando ao seu destino, a «casa». Sim, a casa, literalmente.

            Regressava à casa por algum tempo, não aparecia ocasionalmente ou estava de passagem; regressava à casa depois de estar ausente - por quanto tempo? - dois anos, dois ou três anos desde a sua última visita. O fim do curto, mas, ao mesmo tempo, longo vôo desde Nova York. O princípio do fim do passado. Tornava-se duro regressar à casa. Esperava que a sua estadia fosse breve e misericordiosa.

            A aeromoça detivera-se no corredor, a seu lado, dizendo:

            -Estamos a aterrissar, -Parecia aliviada, mais humana, menos plástica, uma terráquea com pensamentos terrestres. -Desculpe, mas, estou imaginando que o seu nome me é familiar. Não o terei visto nos jornais?

            Afinal, uma colecionadora de «alguéns», pensou.

            - Lamento desapontá-la, mas a última vez que o meu nome figurou nos jornais deve ser na coluna dedicada aos nascimentos.

            A aeromoça sorriu embaraçada.

            - Bom, Sr. Randall, espero que tenha feito uma viagem agradável.

            - Formidável.

            Sim, formidável. A oitenta quilômetros dali o pai jazia em estado de coma. E, pela primeira vez desde que alcançara o êxito (mas, certamente, que o caso já lhe ocorrera antes, em anos recentes), Randall compreendeu que o dinheiro não o podia livrar de todas as preocupações, nem solucionar todos os problemas, tanto como, não podia salvar o seu casamento, ou fazer com que dormisse às três da madrugada.

            Ao mesmo tempo que se apoderava do dinheiro do filho, seu pai costumava dizer: «Meu filho, o dinheiro não é tudo». E acrescentava: «Deus é tudo». E permanecia de olhos voltados para Deus, dando a Deus o seu amor. Seu pai, o Reverendo Nathan Randall, estava a serviço de Deus. Recebia ordens da Grande Organização celeste.

            Não era justo, não era justo.

            Randall espreitou pela janela do avião, com os vidros polvilhados de gotas de chuva, e deu uma olhada pela paisagem e pelos edifícios que os holofotes do aeroporto surpreendiam da maneira mais alucinada.

            Muito bem pai, pensou, o dinheiro não te pode tirar nem a ti nem à mãe desta enrascada. Portanto, o assunto é agora estritamente entre ti e o teu Criador. Mas, coloca-te em meu lugar, pai: quando falas com Ele estás convencido que Ele te escuta?

            Compreendeu que sempre esse desabafo não era justo, que não havia justiça nesse tardio azedume de criança, nessa recordação de um contínuo insucesso na rivalidade entre si e o Todo-Poderoso, relativamente, ao amor do Pai. E sempre foi uma coisa Sem Discussão. Surpreendia-o, nesse momento, que essa espécie de ciúme ainda o afetasse. Tornava-se blasfemo - evocava a velha palavra antiquada, irascível, lançada do alto do púlpito - numa noite de crise.

            Portanto, esse sentimento estava errado, também ele se encontrava em erro. Na verdade passara belos tempos ao lado do pai. Bruscamente, conseguiu lembrar-se com mais fidelidade do pobre velhote - aquele velhote um pouco tolo, sem prática do mundo, carinhoso, maravilhoso, honesto, dogmático, mal orientado, paciente, o seu velhote – e, de repente, amou-o mais do que o amara em todos aqueles anos.

            Apeteceu-lhe chorar. Parecia impossível. Ali estava ele - o grande homem dos grandes momentos e da grande cidade, com um terno feito sob encomenda, sapatos italianos, unhas arranjadas pela manicure, cartões de crédito, «cocktails», mulheres, carros de luxo, boas mesas - um fazedor de imagens sofisticado, mundano, tarimbado, endurecido e com vontade de chorar como aquele antigo garotinho de Oak City.

            A voz da aeromoça anunciava:

            -Chegamos a Chicago. Façam o favor de verificar os vossos objetos pessoais. O desembarque far-se-á pela porta da frente do avião.

            Randall assoou o nariz, agarrou a pasta de couro, levantou-se vacilante e colocou-se na fila que ia avançando para a saída -aquela saída que o levaria a casa e a tudo o que esperava além.

            Foi só depois do aeroporto O'Hare ter ficado para trás, há cerca de quarenta e cinco minutos e quando um sinal luminoso na estrada indicou que estavam entrando no estado de Wisconsin, que Clare, finalmente, acabou com os seus soluços e com o vão balbuciar de seus lamentos para mergulhar num agradável silêncio agarrada ao volante do carro.

            No terminal do aeroporto, Clare atirara-se-lhe para os braços semi-desmaiada, chorando e gemendo como uma Madalena. Nenhuma Electra dos tempos modernos manifestaria melhor a sua dor pública. Quase com rudeza, Randall ordenara-lhe que se dominasse o suficiente para lhe conseguir dizer em que estado estava o pai. Soube apenas - Clare evitava os termos médicos, sempre o fizera, como sendo ameaçadores - que se encontrava mal e que o Dr. Oppenheimer não fizera quaisquer previsões Sim, havia uma tenda de oxigênio, e claro, o pai estava inconsciente lá dentro, e, oh, meu Deus o pai tinha um aspecto como nunca tivera.

            Depois daquela cena, dentro do carro e agarrada ao volante, por entre fungadelas, Clare continuava a pautar, incessantemente, a sua verborréia incessante. Como ela amava o pai, e a mãe, e o que iria ser dela, da mãe e do tio Hermann e de toda a família? Tinham estado no hospital o dia todo, desde que a doença se declarara ao princípio da madrugada. Ainda estava toda a gente no hospital, à espera dele, Steve. Estava lá a mãe, o tio Hermann - irmão da mãe -e o melhor amigo do pai, Ed Periot Johnson e o Reverendo Tom Carey, todos lá, todos à espera de Steve.

            A espera dele, pensou Randall, o êxito da família, o êxito de Nova York que realizava milagres com o talão de cheques, ou por intermédio dos seus conhecimentos. Teve vontade de perguntar a Clare se alguém esperava d'Aquele, Aquele que era tudo para o pai, a Quem o pai tudo dera, de quem dependera, no Qual fizera todos os seus investimentos pensando no dia do Juízo Final, o Criador, Jeová, o Pai do Céu. Teve vontade de perguntar, mas conseguiu dominar-se.

            -Julgo que já te contei tudo o que sei - dizia Clare.

            Logo a seguir, a irmã, com os olhos postos na estrada molhada e escorregadia, de dedos crispados no volante, disse:

            -Não demora muito. Estamos quase chegando - acabando por mergulhar no silêncio.

Deixando a irmã a confabular com os seus íntimos demônios de culpa privada, Steve Randall recostou-se bem no assento e fechou os olhos, bendizendo aquele interlúdio para poder estar sozinho.

            Continuava sentindo dentro de si a carga emotiva que o acompanhara durante todo o dia, mas, nesse momento podia analisá-la, e o mais curioso era que a dor pelo pai ocupava a menor parte da sua infelicidade. Tentou procurar a razão da sua reação tão pouco filial e acabou por decidir que o sofrimento era a mais intensa das emoções e, por isso mesmo, a de menor duração.

            A extraordinária intensidade da dor torna-a tão auto destruidora, que o instinto de sobrevivência de uma pessoa é obrigado a erguer-se e a lançar um manto sobre o sofrimento, furtando-o da mente e do coração. Ele Steve, lançara esse véu resistente sobre a sua aflição e deixara de consagrar ao pai os seus pensamentos. Naquele momento pensava em si próprio-como sua irmã o consideraria um herético se soubesse! -e imaginava em todos os seus recentes infortúnios.

            Não podia dizer exatamente, o dia em que começara a perder o interesse no seu próspero negócio de relações públicas em plena ascensão, mas, teria acontecido há um ou dois anos. Essa perda de interesse iniciara-se pouco antes, ou pouco depois, de ter discutido pela última vez com a mulher, Bárbara, quando decidiram separar-se e ela partira para S. Francisco onde tinha amigos, levando consigo Judy, a filha do casal.

            Tentou situar no tempo o momento em que o fato ocorrera. Judy acabara de completar treze anos. Tinha agora quinze, por conseguinte, fora há dois anos. Bárbara falara firme de divórcio, mas sem que tivesse depois agido de acordo com tal idéia, de modo que tudo se situava numa mera separação. Randall não se importava com tal estado transitório, dado não conceber a concretização do divórcio. Não porque tivesse receio de perder a mulher, as relações entre ambos estavam para sempre condenadas, mas, porque se preocupava com Bárbara na medida em que era o seu ego que estava em causa e lhe era merecedor dos maiores cuidados. Não pretendia um divórcio porque isso significaria admitir um fracasso. Todavia, mais importante ainda do que um malogro, significaria um afastamento radical em relação a sua filha Judy. Ora, muito embora Randall não visse a filha com muita freqüência, nem lhe tivesse dedicado grande parte do seu tempo, o fato é que a filha era uma pessoa humana e a representação de uma idéia, um prolongamento de si próprio, que ele valorizava e acarinhava.

            A carreira profissional a qual dedicara tanta energia e devoção, acabara finalmente por se tornar aborrecida e monótona, tão aborrecida e monótona como o seu casamento. Cada dia que passava nada mais era do que uma cópia do dia anterior. Uma pessoa entrava na sala de recepção, decorada com requinte, onde a jovem recepcionista, marcadamente sexual e vestida a primor, encontrava-se, permanentemente, bebendo café com duas outras moças, ao mesmo tempo que conversavam frívolas sobre jóias. Deparava-se com jovens e brilhantes agentes de publicidade sobraçando da mesma maneira as suas pastas, com gabardines dobradas nos braços da mesma forma, dirigindo-se para os serviços onde se refastelavam como toupeiras nas suas macias tocas. Organizavam-se reuniões de trabalho nos modernos e luxuosos gabinetes desses jovens promotores, onde se deparava com escrivaninhas superabundantes de fotografias das mulheres e filhos, deixando antever que tudo aquilo não passava de um embuste e que provavelmente atraiçoavam todos os princípios de família.

            Passara o tempo da excitação em conseguir novos clientes, novas contas. No seu trabalho lidara com toda a espécie de pessoas - a cantora negra em ascensão, o último grupo «rock», a caprichosa atriz inglesa, os mais rápidos carros de desporto, o detergente miraculoso, o país africano recém-independente que necessitava de uma indústria de turismo. O lançamento de personalidades de renome, ou de produtos comprometedores, deixara de ser emocionante. Perdera o estímulo criador e a motivação do dinheiro. Tudo o que fizesse, já tinha feito antes. Tudo quanto lucrava o tornava mais rico, mas não suficientemente rico.

            Randall sabia que estava afastado da irremediável prisão da classe média, mas, essa condenação a prisão perpétua parecia-lhe quase tão vazia como desumana. Todos os dias acabavam para ele tal como haviam começado, com despeito e ódio por aquela existência de enfadonha, de círculo vicioso. Inevitavelmente, o seu desgosto privado por uma vida sem perspectivas, sem mulher, sem a sua Judy não só continuou, como ainda se intensificou. Havia mais mulheres a quem possuir sem a mínima parcela de amor, mais bebidas alcoólicas, mais noites de insônia, mais restaurantes, bares, clubes noturnos a freqüentar, mas, todos com a visão dos mesmos clientes habituais, dos mesmos rostos de homens e dos mesmos corpos de mulheres.

            Recentemente, principiara a refugiar-se cada vez com mais insistência num velho sonho, um devaneio, um objetivo pelo qual tanto lutara outrora, mas, de que foi desviado. Desejava um refúgio, um lugar com verdes arvoredos, com apenas água pura para beber e sem oficina onde se pudesse reparar o relógio, um local idílico onde o New York Times chegasse com um atraso de duas semanas e onde tivesse que fazer uma longa caminhada a pé até à aldeia mais próxima para fazer um telefonema ou encontrar uma moça com quem pudesse dormir e com quem desejasse tomar o café na manhã seguinte. Pretendia escrever não publicidade exagerada e palavrosa, mas, verdadeiros livros eruditos numa máquina de escrever portátil sem pensar em dinheiro como necessidade imediata, aprendendo a razão porque se torna tão importante continuar na Terra.

            No entanto, era-lhe impossível encontrar a ponte que o levasse à concretização desse sonho. Dizia pra você próprio que não tinha possibilidades de mudar de vida por não possuir economias que o permitissem. De maneira que tentava arranjar esse dinheiro redentor e manter-se em linha com os seus anseios. Durante semanas engajava-se, compulsivamente, num método de vida saudável. Nada de bebidas, de comprimidos, de tabaco, nada de deitar-se horas tardias. Afadigava-se a praticar handball à beça.

            Tinha trinta e oito anos de idade, um metro e oitenta, olhos castanhos injetados de sangue, já um pouco empapuçados, nariz reto implantado entre faces avermelhadas, queixo forte pronunciado já revelando os primeiros indícios de papada e uma constituição física cheia de solidez. Nos seus períodos de vida saudável, quando começava sentindo-se com vinte e oito anos em vez de trinta e oito, os olhos castanhos começavam a clarear, as olheiras fundas se atenuavam, a cara redonda e balofa tomava uma feição quadrada, o queixo ganhando definição e tornando visível, o estômago perdendo a adiposidade, e os bíceps quase musculosos, quando isso acontecia, ele perdia todo incentivo para manter esse regime espartano e uma vida limpa e saudável.

            Dedicava-se a tal jogo de ganha-perde duas vezes por ano – e perdia. Ultimamente tinha desistido de joga-lo. Nessas esporádicas tentativas para regularizar a sua existência, tentara também limitar-se a ter uma só mulher. Uma ligação de caráter permanente. Fora desse modo, recordou, que Darlene Nicholson e o Kahlil Gibran havia penetrado na sua vida no mesmo momento em que Darlene entrara no seu apartamento em Manhattan.

            Tornava-se-lhe, particularmente, difícil agüentar-se durante horas de trabalho, que lhe preenchiam a maior parte do tempo. Wanda Smith, sua secretária particular, uma moça negra, alta e empenhada, com uma natureza enérgica, mas, espontaneidade contida e busto bem desenvolvido, preocupava-se muito com as suas crises. Joe Hawkins, seu protegido e associado, preocupava-se com ele, Randall. Thad Crawford, seu advogado grisalho e de falinhas mansas, preocupava-se com ele. Reafirmava-lhes a todo o instante que não rebentaria, e trabalhava com regularidade todos os dias a fim de o provar. Todavia, o trabalho que fazia era duro e melancólico.

            Porém, de vez em quando, embora com raridade, surgia um poço de luz na sua existência sombria. Um mês antes, por intermédio de Thad Crawford, travara conhecimento com um recém-formado em direito que não exercia advocacia, entretanto, enveredara por uma profissão na verdade inédita no seio de uma democracia de caráter competitivo: profissão que constituía uma verdadeira ciência social e que se denominava Honestidade. Esse homem, no último estádio dos vinte anos, possuidor de uns olhos ardentes como carbúnculos e um fantástico bigode a cair-lhe para as comissuras dos lábios como o de uma foca, era Jim McLoughlin. Jim fundara uma coisa chamada Instituto de Pesquisas Raker [Raker esquadrinhador de velhas coisas; investigador; pessoa que procede a limpezas com um utensílio especial (N. do T.)]; em Nova York, Washington, Chicago e Los Angeles. A organização não dava dividendos, e o pessoal era constituído por jovens colegas advogados, por assistentes formados em comércio, antigos professores, jornalistas rebeldes, investigadores profissionais e filhos pródigos fugidos à opulenta comunidade empresarial americana. Operando calmamente durante alguns anos, o Instituto Raker de Jim McLoughlin procedera a investigações, como um primeiro projeto a que se sucederiam muitos outros, a uma conspiração inconfessável e oculta da alta finança americana, através das suas indústrias e companhias, conspiração lançada contra o bem comum e contra o público consumidor em geral.

            Durante o primeiro encontro, McLoughlin dissera a Randall:

            -As coisas chegaram a este ponto: durante décadas, os nossos dirigentes em empresas privadas, monopolistas virtuais, têm suprimido novas idéias, invenções, produtos que teriam baixado o custo de vida para o consumidor. Essas idéias e novas invenções morreram ao nascer, ou foram abafadas pelos grandes negociantes, dado que se chegassem ao conhecimento do público liquidariam os fabulosos lucros das empresas particulares sustentadas pela alta finança. Em todos estes meses efetuamos um incrível trabalho de detetive. Sabia que houve alguém que inventou uma pastilha capaz de produzir gasolina de alta qualidade para os veículos carros?

            Randall respondera que há muito tempo vinha ouvindo boatos sobre o caso, mas que sempre considerara tais descobertas como pura fantasia.

            McLoughlin, prosseguiu com decisão:

            - Os homens de dinheiro sempre se esforçaram por levá-lo pensando que essas descobertas não passavam de puras fantasias, como você disse. Mas, pode acreditar no que digo: tais maravilhas existiram e continuam existindo. Um dos mais notórios exemplos é a pastilha concentrada de gasolina. Um químico genial, completamente desconhecido, surgiu com uma fórmula de gasolina sintética e conseguiu reduzir os compostos químicos integrantes até ao tamanho de um pequeno comprimido. Você nada mais tinha fazendo do que encher o tanque de gasolina com vulgar água da torneira, jogar a pastilha dentro e obtinha setenta ou oitenta litros de combustível, que não eram fatores de poluição e que, provavelmente, lhe custariam para aí uns dois cents. Julga então, que as grandes companhias iriam consentir que o invento fosse lançado no mercado? Jamais em dias da sua vida - muito menos durante a vida deles -, porque isso significaria o fim da multimilionária indústria petrolífera. Todavia, trata-se apenas de um caso. E quanto ao chamado fósforo perpétuo? Haveria na verdade um fósforo que lhe podia proporcionar quinze mil chamas? Pode apostar que sim e pode também apostar sem receio de perder, que foi prontamente suprimido pelos grandes monopólios. Porém, depois descobrimos mais, imensamente mais.

            Randall sentira-se positivamente intrigado e interessado no caso.

            - Que mais? - perguntara.

            - Tivemos conhecimento de um têxtil, isto é, de um tecido impossível de se gastar. De uma lâmina de barbear para a vida inteira sem sequer necessitar ser afiada. Vários exemplos de pneus capazes de percorrerem cerca de quinhentos mil quilômetros, sem nada perderem das suas qualidades e sem furarem. Uma lâmpada elétrica especial capaz de se manter dez anos sem ter que ser substituída. Você pode calcular o que tais produtos podiam significar para os periclitantes orçamentos familiares? Mas não, a alta finança não iria permitir tal coisa. No decorrer dos anos foram comprados muitos inventores, reduzidos ao silêncio muitos outros, vitimados por chantagem ou destruídos - em dois casos desapareceram como o fumo e suspeitamos que foram assassinados. É verdade, Sr. Randall, temos tudo muito bem documentado e vamos expor toda a repugnante roupa suja de tais supressões num livro branco - ou se preferir, num livro negro - que terá por título A Conspiração Contra Vós.

            Randall saboreara o título, repetindo-o e murmurando:

            - Formidável!

            McLoughlin prosseguira:

            - Na altura em que o nosso livro branco for editado, os grandes tubarões dos monopólios, utilizarão todos os meios ao dispor deles, a fim de evitarem que a nossa denúncia chegue ao conhecimento do público. Se isso falhar, tentarão desacreditá-la. Eis o motivo porque o procurei. Pretendo que se ocupe da promoção do Instituto Raker na publicação do seu primeiro livro branco. Desejo que transmita ao público tudo o que descobrimos - através de congressistas interessados no caso, repórteres do rádio e televisão, jornalistas, por meio de monografias impressas e de apadrinhamento de conferências explicativas. Pretendo que inutilize todos os esforços para tentarem reduzir-nos ao silêncio, ou difamarem-nos. Quero que lance a nossa história na publicidade espalhada por todo o país até que se torne tão conhecida como o hino nacional, The Star-Spangled Banner. Certamente, não seremos clientes para o enriquecer, mas esperamos, depois de se inteirar das nossas atividades, que venha a ter a consciência de fazer parte de um significativo núcleo de pessoas que pela primeira vez se revelam na história da América. Tenho fé que venha a juntar-se a nós e que realize o trabalho que proponho.

            À medida em que ia considerando o projeto, Randall sentia-se voltar à vida. Entrar na luta, realizar o trabalho? E de que maneira estava disposto a fazê-lo? Estava pronto a elaborar pormenores, a iniciar reuniões, logo que Jim McLoughlin e os seus cruzados estivessem preparados? McLoughlin dissera que em breve estariam preparados, talvez, lá para o fim do ano. Juntamente com uma equipe investigadora veterana, Jim estaria ocupado durante alguns meses no estudo relativo ao protótipo, altamente secreto, de um carro movido a vapor, sem poluição do ambiente e a baixo preço que há duas décadas estava suprimido pelos tipos do motor de combustão interna predominantes em Detroit. Além disso, iria proceder à verificações, juntamente, com os seus ajudantes de campo, colaboradores que se encontravam empenhados na avaliação de futuros projetos, que englobavam outros poderosos extorsivos amparados pela lei, defraudadores do sonho americano, incluindo-se entre esses gangsters autorizados algumas companhias de seguros, monopólios dos telefones, companhias de conservas alimentares, de aparelhagens domésticas e associações de crédito.

            O jovem e entusiasta McLoughlin dissera-lhe:

            -Durante algum tempo não espere ouvir falar de mim, nem do meu pessoal. O nosso paradeiro será confidencial. Temos de trabalhar na sombra, disfarçadamente, foi uma coisa que bem cedo aprendi. De outra maneira, os grupos das grandes negociatas, bem como os seus fantoches espalhados pelos diversos departamentos governamentais, não tardariam em colocar seus asseclas no nosso encalço, em movimentos de antecipação e para contrariarem o nosso trabalho. Houve um tempo em que julguei impossível uma tal política a nível estadual num governo do povo, pelo povo e para o povo. Pensava que falar de coisas assim não passava na verdade de paranóia juvenil, de um absurdo melodramático. Mas não. Logo que o lucro desmedido se torna sinônimo de patriotismo, qualquer meio se afigura justificado para a sua preservação. Em nome do público, o público que vá para o inferno! De modo que para protegermos o público, para expormos à luz do dia as mentiras e fraudes, temos que agir como guerrilheiros. Pelo menos por enquanto. Uma vez que, por seu intermédio, possamos sair em campo aberto, passarão então, a prevalecer as práticas honestas e o bem público; conseguiremos apoio e segurança em doses maciças. Manter-me-ei em contato consigo, Sr. Randall, ou pelos menos tentarei. Seja como for, peço-lhe que esteja preparado para irmos para a frente, com a sua ajuda, num prazo de seis ou sete meses, talvez em Novembro ou Dezembro e será esse o prazo definitivo. Randall concordara, sentindo uma genuína excitação.

            -Está bem, procure-me então dentro de seis ou sete meses. Estarei pronto e à espera para desencadear a ofensiva.

            Antes de franquear a porta, McLoughlin voltara-se para trás, dizendo:

            -Passaremos a depender de si, Sr. Randall.

            Eis que ainda mal começara o período de espera para a grande campanha promotora do Instituto de Pesquisas Raker quando de repente, surgiu uma perspectiva de mudança ainda maior para Randall. As empresas Cosmos, grupo internacional multimilionário sob a presidência de Ogden Towery III, interromperam como um furacão na existência de Randall. Tal como um ímã colossal, as Empresas Cosmos andavam passando pente fino nos Estados Unidos e o mundo, atraindo e aglomerando para a sua esfera de influência pequenos negócios de reconhecido êxito, a fim de engrandecerem o seu programa de diversificação. Procurando bastiões no setor das comunicações públicas, o grupo Towery considerara Randall Associates como uma promissora empresa de relações públicas. Conversações preliminares a nível de advogados foram iniciadas. Rapidamente se fizeram sentir progressos. E, antes da papelada legal ser assinada, só faltava um encontro entre o próprio Towery e Randall.

            Ora fora precisamente nessa manhã, bem cedo, que Ogden Towery III surgira na Companhia Randall. Depois de ter examinado as premissas do negócio com os seus assistentes, acabara por se encerrar, numa reunião a sós, no escritório de Randall, apresentável na sua mobília estilo HeppIewhite do século XVIII.

            O vago e distante Towery, uma lenda nos círculos financeiros, tinha o aspecto de um próspero rancheiro. Tratava-se de um homem do Oklahoma, que mantinha o seu típico chapéu, ligeiramente modificado, de abas largas colocado nos joelhos enquanto se ajeitava no fofo sofá de couro, falando seco como um homem habituado sendo obedecido e escutado.

            Randall passara a escutá-lo atentamente, visto que considerava o seu visitante como um verdadeiro anjo salvador. Por obra e graça daquele bilionário, em poucos anos Randall possuiria a fantasia há tanto sonhada, aquele paraíso, aquela felicidade com verdes arvoredos, sem telefone, com uma máquina de escrever portátil e com segurança para o resto da sua vida.

            Foi perto do final do monólogo de Towery que ocorrera o único momento desagradável -na verdade terrível.

            Towery lembrara a Randall que embora as Empresas Cosmos passassem sendo proprietárias da firma, Randall ficaria a tomar conta da companhia por meio de um contrato de direção assinado por cinco anos. Ao expirar o contrato poderia optar por ficar ou demitir-se com dinheiro suficiente de contado e em ações para ser um homem rico e independente.

            -Isto continuará sendo o seu negócio enquanto estiver conosco - dissera Towery a Randall. -Continuará pois a dirigir isto como o fez até agora. De resto não faria sentido que interferíssemos com um modo de gerência cheio de êxito. A minha política, em tudo aquilo de que me apodero, foi sempre de me manter à parte.

            A partir daquele momento, Randall deixara de ser um mero assistente a escutar em silêncio. Fora assaltado por uma suspeita. Resolvera pois experimentar o seu anjo libertador, dizendo:

            - Sr. Towery, aprecio imenso a sua atitude. Se bem compreendi, quis significar que a minha repartição poderá tomar as suas próprias decisões a respeito das operações a realizar e dos clientes a aceitar sem sermos vigiados e orientados pela Cosmos.

            - Com certeza. Vimos os vossos contratos, a vossa lista de clientes. Se não aprovasse não estaria aqui.

            -Bem, nem todos os clientes figuram nos fichários que observou, Sr. Towery. Existem alguns novos cujos cadastros ainda não foram formalizados. Tudo o que desejo é saber na verdade se nos vão deixar resolver as coisas como desejarmos, trabalhando como nos apetecer e com quem nos apetecer.

            - Claro que sim. E porque não? - perguntara Towery, franzindo ligeiramente o cenho. - O que é que o pode levar pensando que nos preocuparíamos com tais coisas?

            - É que por vezes aceitamos um cliente, tomamos conta de um caso que seria considerado como sujeito a controvérsia. E eu estava pensando...

            Towery interrompeu-o rapidamente:

            -Por exemplo, que cliente e que caso?

            -Há cerca de duas semanas realizei um acordo verbal com Jim McLoughlin para lançar e promover o primeiro relatório do Instituto de Pesquisas Raker.

            Towery empertigou-se no sofá. Mesmo sentado era muito alto. O seu rosto pareceu repentinamente moldado em bronze, bronze endurecido.

            - Jim McLoughlin! - exclamou como se proferisse uma obscenidade.

            -E o seu... e o Instituto Raker. Towery levantou-se.

            -Aquela corja de anarquistas comunas -pronunciou rouco. - Esse... esse McLoughlin. Como muito bem sabe assalariado por Moscovita. Bem, talvez não saiba.

            - Não foi essa a impressão com que fiquei.

            - Escute-me bem, Randall: Eu sei. Esses radicais, nem o meu mijo merecem. Não merecem um país como este. A partir do momento em que comecem a fomentar complicações garanto-lhe que os correremos daqui para fora. - Olhou de soslaio para Randall, e logo a seguir o rosto abriu-se num sorriso. - Randall, não possui as informações que nós temos e, por isso, é natural que tenha embarcado na coisa. Agora que já conhece os fatos, julgo que não precisa se preocupar com gente dessa laia.

            Towery fez uma pausa para observar Randall atentamente e percebeu seu conflito devido à perturbada reação, amenizando imediatamente a sua arremetida com modos complacentes.

            - Não se preocupe. Tudo se passará tal como lhe disse. Nada de interferências nos seus negócios... excetuando quando virmos que alguém tentando subvertê-lo, subvertendo a Cosmos no mesmo processo. De resto estou certo que o problema não voltará a impor-se. - Estendera a enorme, e larga mão. - Combinado, Sr. Randall? Pelo que me diz respeito, o senhor já faz parte da família. A partir daqui é trabalho para os nossos consultores jurídicos. Dentro de oito semanas estará tudo arranjado e assinado. Bom, e agora vou almoçar. - Piscara o olho maliciosamente. - Parabéns, Randall, o senhor vai ser um homem rico e independente!

            Assim decorrera a entrevista. E depois, a sós, sentado na cadeira giratória da secretária, Steve Randall compreendeu que não tivera alternativa. Adeus, Jim McLoughlin e Raker. Viva, Ogden Towery e Cosmos. Não tivera nenhuma alternativa. Quando uma pessoa chegava aos trinta e oito anos, sentindo-se como se tivera setenta e oito, pois, deixa de alinhar no jogo da gente honesta se tal implicar pôr em perigo a única oportunidade de ser alguém. E só havia uma maneira de se ser alguém: independência e dinheiro.

            Foi um momento terrível, um dos seus piores momentos, e sentira depois uma espécie de náusea. Dirigira-se para a sua banheiro privativa e vomitara, dizendo depois com os seus botões que lhe fizera mal qualquer coisa que comera ao café. Voltara para a secretária sem experimentar melhoras. Precisamente nesse momento Wanda ligara para ele soando a campainha do telefone interno, anunciando que a irmã, Clare, estava ao telefone de Oak City,

            Foi então que soube que o pai tivera um grave colapso, que ia a caminho do hospital e que ninguém sabia se sobreviveria. Nas horas seguintes, o dia transformou-se numa espécie de

caleidoscópio de um rodopio de atividades. Entrevistas canceladas, marcação de lugar no avião, assuntos pessoais a arrumar, avisar Darlene, Joe Hawkins e Thad Crawford do sucedido, um sem número de chamadas para Oak City e, finalmente, a corrida até ao aeroporto internacional John F. Kennedy.

            Presentemente regressava daquela retrospectiva, dando-se conta que era noite em Wisconsin, que estava em Oak City e que a irmã o olhava de soslaio.

            -Dormiste? - perguntou ela.

            -Não - respondeu ele.

            Eis o hospital - disse apontando para a frente. - Não fazes idéia de quanto venho aqui orar pelas melhoras do pai. Randall empertigou-se no assento quando Clare voltou ao carro no parque de estacionamento cheio de carros, parque que se prolongava ao longo da fachada do Hospital do Bom Samaritano de Oak City.

            Mal Clare localizou um espaço vazio e arrumou o carro, Randall saiu e fez uns movimentos com os braços para descontrair os músculos das costas. À espera no passeio, Randall deu-se conta pela primeira vez que o carro da irmã era um Lincoln Continental, tipo sedan, novo em folha.

            Quando a irmã finalmente se juntou a ele, Randall fez um gesto na direção do Lincoln.

            - É quase um vagão de luxo, mana. Como é consegues ter uma coisa destas com o teu ordenado de secretária?

            O redondo e claro rosto de Clare vincou-se numa carranca de mau humor.

            -Já que queres saber, foi o Wayne quem me deu.

            -Tens um patrão formidável. Espero que a mulher do Wayne tenha metade dessa generosidade relativamente aos amigos do marido.

            Clare fitou-o.

            -Dito por ti, isso é para fazer rir.

            E desatou a caminhar com um passo firme e apressado pela área circular que levava à entrada principal do hospital. Randall seguiu-a lentamente, arrependido de ter atirado pedras ao telhado do vizinho uma vez que também o tinha.

            Já estava há mais de uma hora no quarto particular para onde o Pai fora transferido após ter passado pela sala de observações. Mantivera-se sentado na desconfortável cadeira de costas retas, por baixo da prateleira onde se encontrava um aparelho de televisão desligado, e junto à parede voltada para os pés da cama de onde pendia, emoldurada, uma reprodução do Sagrado Coração de Jesus. Naquele momento, quase vazio de emoções, com as pernas cruzadas, começava sentindo a perna direita dormente. Descruzou os membros inferiores. Principiava sentindo-se inquieto e apetecia-lhe imenso fumar.

            Esforçou-se por se integrar na grande atividade que desenvolvia em volta do leito do pai, mas como que hipnotizado, seus olhos eram irremediavelmente atraídos para o corpo, coberto com uma manta, que se encontrava no interior da tenda de oxigênio.

            O pior momento daquela dolorosa experiência fora o primeiro vislumbre que tivera do progenitor. Penetrara naquele quarto arraigado à imagem do pai tal como o vira pela última vez.

O Reverendo Nathan Randall, mesmo na casa dos setenta, apresentava uma figura imponente. Aos olhos do filho assemelhava-se a um desses magnificentes patriarcas descritos pelo Êxodo ou pelo Deuteronômio. Tal como Moisés no apogeu da idade, «o seu olhar não se ofuscara, nem a sua força natural declinara». O cabelo branco e fino ainda coroavam a testa grande e o rosto longo, como um desses magnificentes patriarcas descritos pelo Êxodo ou pelo de perdão, era marcado por uns serenos olhos azuis colocados em feições que primavam pela regularidade, com exceção, talvez, do apêndice nasal, demasiado reto e cortante como a lâmina de uma faca. Randall nunca vira o pai sem aquelas profundas rugas que lhe vincavam o rosto, umas rugas que serviam para acentuar o seu ar de autoridade, muito embora não fosse um autoritário. O Reverendo Doutor Randall possuíra sempre um ar difícil de definir, mas, algo de privado, secreto, místico, sugerindo que era um dos escolhidos, que estão em comunicação com Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo membro privativo do sapiente conselho do Senhor. Alguns dos seus paroquianos metodistas mantinham essa opinião a respeito do Reverendo Nathan Randall, e por isso, acreditavam nele e no seu Deus.

            Ora essa límpida imagem que Steve Randall trouxera para aquele quarto de hospital, como que projetada num espelho, quebrara-se em miríades de pedaços. Por aquilo que podia observar através da transparência da tenda de oxigênio afigurava-se-lhe ver uma ruína, um arremedo de ser humano, tal como aquelas encarquilhadas cabeças das múmias egípcias ou como aqueles sacos de ossos do campo de concentração de Dachau. O sedoso e brilhante cabelo branco mostrava-se fosco, opaco, desbotado, amarelado. As pálpebras riscadas de veias velavam uns olhos perdidos na inconsciência. O rosto apresentava-se esquálido, terroso, chupado. Ouvia-se-lhe a oprimida respiração custosa, roufenha. Ao que avaliara, em todos aqueles frágeis membros se viam inseridos tubos, agulhas.

            Para Randall fora assustador ver alguém tão íntimo, uma pessoa do seu sangue e da sua carne, alguém tão invulnerável, tão seguro de si, tão crente, tão confiante, tão bom e tão merecedor do bem, reduzido àquela condição vegetativa e de tanto abandono.

            Depois de alguns minutos, Randall voltara-se para esconder as lágrimas que sentia assomarem-se-lhe aos olhos, procurara a cadeira às apalpadelas, deixando-se cair no assento, e nunca mais se mexera. Houvera uma enfermeira franzina, de aspecto eslavo, possivelmente uma polaca, que operava com firmeza no perímetro do leito, ocupando-se com os frascos de soro suspensos nas suas armações, a ajustar tubagens e a consultar os gráficos clínicos. Decorrera certo tempo, que não podia definir, talvez meia hora ou mais, quando finalmente chegara o Dr. Morris Oppenheimer para se juntar à enfermeira privativa. Era um homem maciço e sólido, ultrapassando a meia idade, movimentando-se à vontade, com eficiência e confiança. Cumprimentara Randall com um rápido, mas, vigoroso aperto de mão, uma palavra de simpatia, e a promessa de relatar o mais breve possível o que havia quanto ao estado do seu doente.

            Por momentos, Randall observou o médico no exame que fazia ao pai. A seguir, exausto, fechou os olhos com força e tentou recordar-se de uma oração apropriada àquele momento de aflição. Fora o Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome... mas a memória fraquejou e esqueceu o resto. Seu espírito, em viagem retrospectiva por todos os acontecimentos do movimentado dia, deteve-se culposamente na projeção dos desenvolvidos seios de Wanda, a sua secretária; retrocedeu depois até a noite anterior, quando beijara os seios de Darlene; envergonhado apagou da mente aquelas imagens de pecado e procurou situar o pai no passado mais próximo. Veio-lhe à idéia a última vez que visitara o pai e a mãe, talvez há mais de dois anos, e a visita anterior a essa, possivelmente há mais de três.

            Ainda sentia o tormento que o devorara nessas duas visitas anteriores: o desânimo do pai por causa dele. O Reverendo não escondera seu desagrado relativamente ao filho ter rompido o casamento, pela vida que levava, pelo seu cinismo e falta de fé.

            Ao evocar a reprovação paterna, Randall ainda se sentia intimamente revoltado: afinal quem era o pai para o censurar, quando, a avaliar pelos padrões sociais convencionais, o pai representava o malogro e ele o êxito? Mas agora, esfriada a paixão da revolta por se ver censurado, considerava que o seu sucesso era meramente material. O pai julgara-o por um padrão diferente, que servia igualmente para se julgar a si próprio e a toda a gente, partindo desse princípio de retidão. E segundo esse padrão, achara-o em falta, em pecado. Randall compreendia. Na verdade o pai possuía o grande componente humano que lhe faltava: a Fé. O pai possuía uma fé cega e ardente no Verbo, e através dele numa humanidade melhor e num melhor sentido e pureza de vida. Randall não tinha fé.

            Pensou: «É precisamente isso, pai. Falta-me fé. Não acredito. Não confio em nada.»

            Mas, como era possível acreditar-se num Deus de Bondade, Justo? A sociedade era injusta, hipócrita, podre até o âmago. Em grande maioria, os homens não passavam de animais à solta, selvagens para sobreviverem, ou que se escondiam para sobreviverem. E coisa alguma que o homem pudesse fabricar, desde o Mito de uma hipotética ressurreição lá em cima do Céu-visto que o Inferno não precisava ser garçon, existia desde sempre na Terra - até aos falsos deuses que forjavam, sim, coisa alguma poderia modificar a realidade do presente e o Nada que era o fim de todos os animais humanos. Parecia-se com aquele velho provérbio hebraico que um cliente judeu lhe citara certa vez: «Se Deus vivesse na terra, certamente as pessoas Lhe quebrariam os vidros das janelas».

            Caramba, pai, não é capaz de ver como as coisas são?

            Para de discutir com ele (quase que pronunciara mentalmente Ele, disse Randall para com seus botões. Pera de discutir com o passado.

            Randall abriu os olhos. Amargava-lhe a boca, tinha dificuldade em respirar e começavam a doer-lhe as costas. Sentia-se enjoado devido ao cheiro a desinfetantes que imperava no quarto, desinfetantes e carne moribunda - o cheiro próprio dos hospitais. Sentia-se também fatigado da fúria e dor interiores, de não fazer nada, de ser capaz de não fazer nada. Frustrava-o aquele papel de mero espectador. Aquilo não era um espetáculo esportivo. Achou que já bastava.

            Levantou-se da cadeira. Deu um passo para falar ao médico e à enfermeira, para os avisar que ia para junto dos outros na sala de espera, mas, Dr. Oppenheimer estava absorvido estudando os gráficos do doente e nesse momento entrou no quarto um especialista empurrando à sua frente um aparelho portátil de cardiografia.

            Coxeando, pois a perna ainda continuava dormente, Randall saiu, percorrendo o longo corredor até à sala de visitas. Parou à entrada para acender o seu cachimbo favorito, britânico, saboreando por uns segundos o perfumado e tranqüilizante narcótico daquele fumo azulado. Depois, aprumando-se, atravessou o vestíbulo com decisão. Mas, voltou a deter-se no limiar da porta da sala de visitas.

            A sala era iluminada por lâmpadas fluorescentes, tinha cortinados com flores estampadas que lhe conferiam uma certa vida; estava mobiliada com um sofá, cadeiras de vime, um aparelho de televisão antigo, mesinhas com os inevitáveis cinzeiros e revistas já muito velhas. Lá dentro estavam apenas os membros da família e os mais íntimos amigos do pai.

            Esparramada numa cadeira, com o rosto oculto atrás de uma revista cinematográfica, encontrava-se Clare. Junto dela, ao lado do telefone de parede, falando em voz baixa com a mulher, encontrava-se o seu antigo condiscípulo e escolhido sucessor de seu pai, o Reverendo Tom Carey. Não muito distante, sentados próximos a uma mesa, jogando cartas, estavam Ed Ponto Jonhson

 

[Para melhor compreensão, em português o nome seria: Ed Ponto Final Johnson. (N. do T.)]

 

e o tio Herman.

            Ed Ponto Johnson era o melhor amigo do Reverendo Nathhan Randall. Muitos anos antes fundara o Oak Gyty Bugle, o periódico local, que continuava ainda a dirigir e editar e que surgia seis dias por semana. Ed dissera certa ocasião a Randall:

            -A melhor maneira de se poder dirigir um pequeno jornal provinciano é arranjar modo de toda a gente da cidadezinha ter o nome publicado pelo menos duas vezes por ano. A partir daí já não há preocupações com a rivalidade desses pretensiosos jornais de Chicago.

            O verdadeiro nome de Johnson, o seu nome de batismo, não era Ed Ponto, mas sim Lucas (ou seria Lutero?), Randall não se lembrava muito bem. Anos antes, um dos seus repórteres começara a chamar-lhe Ed abreviatura de Editor, e dado ser uma abreviatura, certo gramático consciencioso acrescentara o Ponto. Johnson era um sueco desajeitado, de rosto marcado pela varíola e nariz arrebitado que ninguém conseguia ver sem os seus óculos de espessas lentes bifocais.

            Diante de Johnson, dispondo cuidadosamente as cartas em leque por naipes, estava sentado o tio Herman, irmão mais novo da mãe de Randall. O seu rosto continha uma perpétua expressão de total vacuidade, dando a impressão de um pote de margarina. Randall recordava-se do único emprego que o tio Herman agüentara. Durante algum tempo fora empregado de uma loja de bebidas alcoólicas em Gary, Indiana. Após ser despedido, mudara-se com armas e bagagens para o quarto reservado aos hóspedes em casa da irmã e nunca mais havia saído daquela casa. Ora o caso ocorrera quando Randall ainda andava no liceu.

            Tio Herman era a pessoa que aparava e regava o jardim, quem fazia os arranjos na cerca e outras obras simples de interior, desempenhava o papel de moço de recados, sendo ao mesmo tempo um devotado espectador dos jogos de futebol na televisão, e o habitual consumidor das tortas caseiras. O pai de Randall nunca se preocupara com a sua presença em casa. De resto o tio Herman constituía um produto visível daquela caridade tão apregoada pelo reverendo nos seus sermões: aquele que tiver dois casacos, reparta um deles com quem não tem nenhum; e aquele que tiver de comer, reparta também a sua refeição com quem não tem. E era assim que o reverendo procedia com o cunhado... Amém.

            O olhar de Randall deteve-se na mãe. Já a tinha beijado e consolado à chegada, embora de fugida porque ela o empurrara praticamente para junto do pai. Cochilava encolhida a um canto do sofá. Sem o marido parecia estranhamente incompleta. Seu rosto era rechonchudo e bondoso, quase sem rugas, não obstante encontrar-se nos últimos estádios dos sessenta. Seu corpo, que se afigurava destituído de formas, ocultava-se por baixo de um daqueles familiares vestidos de algodão azul, já muito usado, mas, impecavelmente limpo e, ainda, calçava os mesmos sapatos ortopédicos pesados de anos atrás.

            Randall amara-a sempre, e continuava a amar aquela criatura paciente, meiga, simples e discreta para quem ele nunca podia fazer nada de mal. Sarah Randall, a adorada esposa do adorado pregador, segundo Randall supunha tinha bastante reputação na comunidade. No entanto, para ele, não a podia conceber como um indivíduo separado, era unicamente a sua mãe. Quase lhe era impossível evocar uma imagem da progenitora como uma individualidade com opiniões, idéias e preconceitos próprios, salvo pelas recordações dos seus tempos de menino e moço. Como adulto, conhecia-a como alguém que escutava e se fazia eco do seu companheiro, que realizava os trabalhos domésticos que eram necessários fazer-se e cuja função primordial se resumia em estar presente no lar. Sentia-se sempre confusa e surpresa, mas instintivamente satisfeita, com os êxitos do filho e modos de homem da grande cidade. O amor dela pelo filho era constante, cego, incondicional.

            Randall resolveu sentar-se junto da mãe e esperar que ela acordasse. Quando atravessava a sala a cabeça de Clare espreitou por cima da revista.

            -Steve. Onde é que estiveste este tempo todo?

            -Junto do papi.

            - O médico disse alguma coisa? - perguntou Ed Ponto Johnson voltando-se na cadeira.

            - Tem tido muito que fazer. Vem aqui logo que termine. Subitamente acordada, Sarah Randall afastou-se do braço do sofá, onde estivera encostada, e alisou o vestido. Randall deu-lhe um beijo na face e colocou-lhe o braço por cima dos ombros.

            - Não estejas preocupada, mãe, verás que tudo acabará bem.

            -Enquanto há vida, há esperança. O resto é com Deus.- Sarah Randall olhou para Tom Carey, que se encontrava nesse momento a telefonar.-Não é verdade, Tom?

            -Tem toda a razão, Sra. Randall. As nossas orações serão ouvidas.

            Steve Randall seguiu os olhos de Carey que se voltavam para a porta, levantando-se imediatamente.

            Dr. Oppenheimer, ocupado vestindo o casaco, remexeu nos bolsos à procura de um cigarro, que encontrou. Só quando se preparava para acender um fósforo pareceu dar-se conta das pessoas que se encontravam na sala e da tensão que a sua chegada despertara entre eles.

            - Quem me dera ter alguma novidade para lhes dar! - disse o médico não se dirigindo a ninguém em particular. - Infelizmente ainda nada tenho para lhes dizer, por enquanto.

            Fez um gesto para que Randall se sentasse, arrastou uma cadeira para junto do sofá, sentou-se e acendeu finalmente o cigarro, enquanto Clare, Johnson, o tio Herman e o Reverendo Tom Carey se reuniam junto dele.

            Dirigindo-se especialmente a Randall e à mãe, o Dr. Oppenheimer começou:

            - Clinicamente falando, eis o mal que estamos a combater: Nathan sofreu esta manhã uma obstrução intra-craniana cuja origem se desconhece. O colapso foi provocado pelo bloqueio de uma artéria-um coágulo de sangue numa das artérias que irrigam o cérebro. O resultado habitual dessa espécie de acidente cerebral é a perda de consciência, seguida geralmente por uma hemiplegia temporária, pelo menos.

            Fez uma pausa para chupar o cigarro. Steve Randall aproveitou para perguntar:

            -O que é a hemiplegia?

            -Paralisia de um lado do corpo -normalmente o rosto, o braço e a perna - , precisamente do lado do corpo oposto à parte do cérebro onde se verificou o acidente. Neste caso foi o lado esquerdo. Antes de Nathan entrar em coma, o seu lado esquerdo mostrou indicações de paralisia, mas os órgãos vitais estão em funcionamento. Até agora não registrou também qualquer agravamento no seu estado. -Percorreu com os olhos o círculo de seres humanos que o rodeavam - e para já é tudo o que tenho para lhes dizer.

            -O senhor, Dr. Oppenheimer, nem sequer nos disse qual a gravidade do caso. Podemos ao menos alimentar esperanças? - perguntou, impacientemente, Randall.

            - Não posso prever o futuro - respondeu o médico encolhendo os ombros. -A minha profissão nada tem vendo com a de Nostradamus, Steve. Ainda é cedo demais para poder pronunciar. Sem dúvida que o estado dele é grave, mas, estamos fazendo tudo aquilo que os nossos meios permitem. Desde que não ocorra qualquer perturbação cardíaca, muito bem, julgo que lhe posso prever grandes possibilidades de escapar.

            Voltou-se então, declaradamente, para Sarah Randall.

            - Sarah, seu marido é um homem dotado de um organismo cheio de resistência. Tem vontade de viver, tem fé. São fatores para se levar em conta. Mas, não posso esconder a realidade atrás dos óculos cor-de-rosa. O estado de Nathan é grave. É uma coisa que temos de aceitar. Mas, em contrapartida existem diversos fatores que podem pesar positivamente. De momento, nada mais podemos fazer do que manter a mais estrita vigilância; limitamo-nos a observá-lo e esperando. Muitas pessoas, certas das quais bem conhecidas mundialmente, tiveram distúrbios do mesmo gênero e conseguiram sobreviver. Por exemplo, Louis Pasteur. Aos quarenta e seis anos, Pasteur sofreu um colapso seguido de paralisia, de modo não muito diferente do que afetou o seu marido. Todavia, conseguiu recuperar, e nos anos que se seguiram à doença manteve-se suficientemente ativo para prosseguir na sua ascensional carreira para benefício da humanidade. Conseguiu ainda isolar o vírus da cólera das aves, procedeu a investigações laboratoriais sobre o antraz, foi o pioneiro da vacinação maciça, descobriu um tratamento para a hidrofobia e viveu até aos setenta e três anos.

            Esmagou a ponta do cigarro num cinzeiro e levantou-se. Sarah, devemos pois ter esperanças.

            -Rezarei-disse Sarah com decisão, ao mesmo tempo que Clare e Randall ajudavam-na levantar-se.

            -Fará mais do que isso, Sarah-frisou o Dr. Oppenheimer. -Agora vá para casa e veja se consegue dormir como deve ser. O que mais importa é conservar as suas energias intactas... Clare, providencie para que sua mãe tome um calmante, um daqueles comprimidos que lhe receitei. Que o tome antes de se deitar... Steve, quanto a si lamento imenso que este nosso encontro se tenha verificado em momento tão crítico. No entanto, tal como disse, devemos aguardar o melhor. Manter-me-ei em contato com a secretaria hospitalar e com a enfermeira especializada. Fique descansado que lhe comunicarei se houver qualquer alteração durante a noite. Caso contrário, voltaremos vendo-nos amanhã de manhã.

            O médico agarrou Sarah Randall por baixo do braço e levou-a para fora da sala de espera, falando com ela num tom reconfortante.

            Por momentos os outros ficaram para trás. Tio Herman colara-se a Randall.

            -Que vais fazer agora, Steve? Podemos arranjar-te uma cama no teu antigo quarto.

            -Obrigado, mas não é preciso-disse Randall firmemente. -A minha secretária reservou-me um quarto no Oak City Hotel. De resto tenho uma série de chamadas telefônicas para fazer e de modo nenhum quero que toda a gente acorde por minha causa. -Prometera de fato a Darlene telefonar-lhe para o apartamento nova-iorquino, e queria também falar com o seu advogado Thad

Crawford a respeito da transação com Towery e as Empresas Cosmos. Todavia, o dia foi esgotante e sentia-se completamente cansado. - Além disso, também preciso telefonar à Bárbara e à Judy para S. Francisco, elas foram sempre muito amigas do pai e acho que devo...

            Clare interrompeu:

            -Deus meu, com tudo isto esqueci-me de te dizer que a Bárbara e a Judy estão aqui, em Oak City.

            - Como?

            -Esqueci-me, Steve, desculpa. Fiquei tão atordoada que esqueci tudo o mais. Logo a seguir à chamada de aviso que te fiz, telefonei também para S. Francisco. Ficaram as duas impressionadas, tanto que apanharam o primeiro avião para cá. O tio Herman contou-me que chegaram à hora de jantar e vieram diretamente do aeroporto para o hospital. Viram o pai e estiveram durante algum tempo à tua espera, mas a Judy ficou tão enervada que a mãe resolveu levá-la para o hotel, precisamente, na hora em fui buscá-lo ao aeroporto.

            - Onde é que elas estão hospedadas?

            -No Oak Ritz, onde é que havia de ser? Há por aqui mais algum hotel decente? - disse o tio Herman. - Ora, Bárbara deu-me um recado para ti. Que não fosses para o hotel muito tarde. Quer falar contigo.

            Randall consultou o relógio. Ainda não era meia-noite. Não era tarde. Bárbara estaria a pé à espera dele. Desejou com todas as suas forças que aquele dia tremendo tivesse fim. Não sentia a mais leve disposição para se encontrar com a mulher depois de tanto tempo de separação, de tudo o que acontecera, mas não tinha maneira de evitar o encontro. Fosse como fosse, Judy também estava no hotel e naquela noite particularmente atroz sentia uma forte vontade de ver a filha.

            - Ok. Quem me dá uma carona até o hotel?

           

            A porta dos aposentos de Bárbara no hotel abriu-se e ela apareceu no limiar.

            -Olá, Steve.

            - Olá, Bárbara.

            -Lamento imenso o acontecimento com Nathan. Amo-o como se fosse meu pai. Mas claro que coisas destas só acontecem às pessoas boas, não é verdade?... Bem, não fiquemos aqui embasbacados. Entra, Steve. Sinto-me contente de teres aparecido.

            Ela não havia feito o mais leve movimento para o beijar e ele não fez o mínimo esforço para isso. Entraram para a sala de estar. O aposento era limpo mas pouco convidativo. Tinha um amontoado de cadeiras características, duas mesinhas baixas, um sofá, um móvel aberto que servia de bar, com alguns copos numa prateleira, junto a uma garrafa de uísque ainda intacta. Ao que se tornava óbvio, a mulher esperava-o.

            Bárbara, que se encontrava no meio da sala, mostrava-se estranhamente silenciosa e calma. O seu aspecto não se havia modificado muito depois da separação. Quando muito, talvez aparentasse um ar mais cuidado, com os cabelos tratados e bem penteados. Tinha um cabelo castanho, liso, olhos castanhos também, pequenos, duros, incrustados numa face sem qualquer sinal especial de beleza. Levando em consideração os seus trinta e seis anos, possuía uma figura bem proporcionada, de seios pequenos e cintura estreita. Trajava um costume sob medida, cópia de algum modelo caríssimo. Seu ar era muito S. Francisco, sem sinal de extravagâncias, o que parecia de louvar.

            -Logo que chegamos a Oak fomos direto ao hospital- disse ela.-Imagino como te sentes, Steve. Ver Nathan naquele estado partiu-nos o coração. Judy não pôde suportar, afastou-se e começou logo a chorar. Somos muito amigas dele.

            Talvez fosse ilusão sua, mas afigurou-se-lhe ter apanhado um realce especial nas palavras de Bárbara, naquele emprego da primeira pessoa do plural- chegamos, somos muito amigas dele. Agora Judy estava moldada naquele nós de mãe e filha, e adeus pai afastado e estranho. Bárbara conhecia-o bem, sabia onde ele era mais vulnerável e das duas uma: ou estava servindo-se daquela arma do nós para obter alguma coisa, ou tratava-se de um simples estratagema para lhe lembrar que mãe e filha pertenciam uma à outra. Bom, e daí talvez não passasse de um excesso de imaginação da sua parte.

            - Sim, é horrível o que aconteceu - disse ele. - Observou-a aberta e atentamente. -Já passou muito tempo. Parece que conseguiste sobreviver.

            Ela sorriu.

            -Vou indo.

            -E a Judy? Como está ela?

            -Bem. Está na cama. Sentia-se esgotada pela longa viagem e pelo que viu no hospital. Talvez já tenha adormecido. Mas queria ver-te. Fica para amanhã.

            - Quero vê-Ia agora mesmo.

            - Como queiras. Posso arranjar-te uma bebida?

            -Estava pensando convidar-te para irmos lá embaixo ao bar. Ainda está aberto.

            - Se não te importas, Steve, prefiro ficar aqui. Estamos mais à vontade. Gostaria de ter uma pequena conversa contigo. Não demorará muito tempo, prometo.

            Bom - pensou - então ela quer uma pequena conversa? Recordou as pequenas conversas dos dois em tempos idos. Quem disse - algum filósofo alemão com certeza - que o casamento era uma longa, longuíssima conversa entre dois seres de diferentes sexos? Gostaria que o seu casamento fosse uma longa conversa, diálogo plácido, e não o que fora, uma realidade de pequenas conversas furiosas nas quais ele sabia estar verbalmente castrado e ela acreditava estar sofrendo uma histeroctomia oral.

            -Como queiras- anuiu. -Arranja-me então um uísque com gelo.

            Steve abriu cuidadosamente a porta do quarto e entrou. O aposento estava tênue iluminado por um abajur, abajur na mesinha de cabeceira. Adaptou os olhos àquela meia-luz e acabou por descortinar a filha na cama, voltada para o lado direito.

            Aproximou-se e ajoelhou-se no chão junto ao leito para vendo melhor e mais perto. Tinha a cabeça afundada na almofada, a coberta puxada até o pescoço e o cabelo espalhado em cascata sedosa. Dormia. Aquele anjo, aquela parcela de si mesmo, aquela coisa rara e única feita por ele, de que podia orgulhar-se, era uma beleza de quinze anos, uma coisa fofa e querida. Observou-a atentamente, insistindo no rosto de linhas puras e de pele macia, o nariz delgado e perfeito, os generosos lábios entreabertos. Escutou-lhe a respiração ritmada.

            Num súbito impulso, inclinou-se e roçou-lhe a face com os lábios. Quando se afastou dela, viu os olhos abrirem-se.

            - Olá... - murmurou com voz ensonada.

            -Viva, minha querida. Senti a tua falta. Amanhã ao café falamos os dois.

            - Humm...

            - Dorme. Vemo-nos amanhã. Boa-noite, Judy.

            Quando se levantou ela já estava de novo mergulhada no sono. Voltou a contemplá-la durante um instante e depois saiu do quarto.

            A saleta estava mais iluminada do que antes, e viu que Bárbara acendera os apliques da parede. Imaginou porquê. Bárbara estava sentada no sofá, com ambos os cotovelos mergulhados na maciez de uma almofada que tinha no regaço e com as mãos em volta de um copo alto onde se vislumbrava um líqüido cor de âmbar.

            - A tua bebida está ali - disse designando um copo colocado num extremo da mesinha mais próxima.

            -O que está tomando? Um refresco?

            -O mesmo que tu -respondeu.

            A coisa prometia, pensou, enquanto dava a volta ao sofá para se sentar numa cadeira em frente dela. Bárbara há muitos anos que não compartilhava uma bebida forte com ele. Poderia tomar um ou dois copos em festas, mas nunca quando os dois estavam sozinhos, recusando-se sistematicamente bebendo uísque com ele. Havia sido até uma forma de o censurar, de lhe fazer saber que detestava as suas bebidas, aquelas bebidas que levavam uma pessoa para longe, que ajudava um tipo a afastar-se da sua legítima mulher. E agora ali estava ela com um copo de Scotch na mão. Seria um sinal agradável ou de mau agouro? Preferiu pensar no mau agouro e manteve-se em guarda para o que desse e viesse.

            - Estava dormindo? - perguntou ela.

            - Estava. Mas acordou durante um momento. Tomaremos amanhã o café juntos.

            - Excelente.

            Randall deu um sorvo no uísque.

            - Como vai a Judy nesse novo colégio de Oakland em que depositavas tantas esperanças? Ela vai...?

            - Não vai bem nem mal - atalhou Bárbara. - Pura e simplesmente já não está lá. Há um mês que saiu.

            Randall não escondeu a sua surpresa pela informação.

            -Então onde é que ela está agora?

            -Em casa. Essa é uma das razões porque queria falar contigo esta noite. Judy foi expulsa do colégio.

            - Expulsa? Mas que raio queres dizer com isso? - Não havia quaisquer indicações antecedentes para tal coisa. A sua Judy era perfeita, fora sempre perfeita, uma estudante dedicada sempre com altas notas. - Pretendes dizer que a escola prescindiu de educá-la?

            -Pretendo dizer que a escola a expulsou. Não se trata de uma suspensão. -Fez uma pausa como que para dar ênfase à frase seguinte: - Foi uma expulsão definitiva motivada por drogas.        Randall sentiu o rosto a arder.

            -Mas de que raio estás tu falando?

            - Estou falando de drogas, de comprimidos, pílulas, cânhamo, cristais, alucinógenos, drágeas de várias cores, anfetaminas. Estou falando, Steve de coisas que se ingerem e que se injetam. A Judy foi apanhada num período de alucinação e logo que o diretor a apanhou sóbria falou com ela, falou comigo e resolveu expulsá-la.

            -Quer dizer que não lhe deram uma segunda oportunidade? Filhos da mãe, qualquer criança nestes dias pode andar descontrolada, estar influenciada por alguém, resolver experimentar...

            Ela interrompeu-o.

            -Steve, não se tratava de experiência. A tua filha drogava-se regularmente, era uma viciada. Também, posso dizer que não era influenciada por nenhuma companheira ou companheiro. De fato foi ela que arrastou para o vício um par de colegas.

            -Não posso acreditar nisso -disse ele abanando a cabeça.

            -Julgo melhor que te convenças.

            -Bárbara, essas coisas não acontecem com uma garota a Judy. E onde é que tu estavas?

            - E tu, Steve? Onde estavas tu? - A réplica foi feita sem qualquer sentido de reprovação violenta, apenas num tom objetivo. - Desculpa. Perguntaste onde é que estava? Significa, como foi que não vi? Pois bem, porque a princípio é impossível notar-se qualquer coisa. Quem pode esperar uma coisa dessas numa filha? Nem sequer pensamos no caso. De resto nada disso é visível. Claro que detectei algumas mudanças, mas atribuía-as ao ambiente do novo colégio, ao excesso de estudo, às dificuldades iniciais em fazer amigos. A princípio parecia-me brilhante, alerta, cheia de confiança em si própria quando a via aos fins de semana, depois, algumas vezes, dei fé de que se apresentava irritável, enervada, deprimida - esmagada, como os viciados lhe chamam-e por fim num estado de alheamento. Depois, de repente, fui chamada à escola e pronto.

            -Porque é que não me telefonaste contando o sucedido?

            Barbara fitou-o.

            -Estive quase a fazê-lo, Steve, mas depois decidi que não te incomodar. Achei que de momento nada havia que pudesses fazer, e com certeza que também, não havia nada que pudesses fazer a longo prazo. Não vi vantagem em que as nossas vidas voltassem a emaranhar-se. Não vi maneira de Judy poder ganhar alguma coisa com esse fato. Decidi que devia ser eu arranjar-me e foi o que fiz.

            Randall apertou bem nas mãos o copo e acabou a bebida.

            -Ela ainda continua nas drogas? Pareceu-me estar excelente, de bom aspecto. Não me pareceu drogada, nem anormal...

            -Não, não está. Está a caminho da recuperação. Julgamos que ela está voltando as costas ao vício. Por intermédio de pessoas amigas, consegui para Judy o maior auxílio possível. Foi duro, terrível, mas agora está recuperando-se. Julgo que ela ainda fume um pouco de marijuana, alguns cigarros, ocasionalmente, em festas, mas nada de extraordinário, pelo menos nada de entorpecentes perigosos, como a cocaína e a morfina.

            -Estou compreendendo. - Randall considerou o copo vazio e viu o gesto de Bárbara.-Não te incomodes, não vale a pena levantares-te. Eu vou preparar outra bebida. Estou necessitado dela.

            - Steve, sinto muito estar falando em tudo isto depois do dia que tiveste. Mas tinha que aproveitar a oportunidade para te falar pessoalmente.

            Randall deitou meio copo de Scotch.

            -Claro que tinhas que me contar. -Regressou à cadeira.- Como é que conseguiste tirar a Judy da droga? Numa clínica?

            -Para te dizer a verdade, foi um homem, um homem que continua tratando dela. Um psicólogo de S. Francisco, um especialista em casos de viciados por narcóticos. Chama-se Dr. Arthur Burke. Está escrevendo...

            -Não me interessa o que ele escreva. Judy ainda tratar-se com ele?

            -Ainda. Esqueci-me de dizer que tem também uma clínica. Seja como for, Judy gosta dele. Sente-se ligada a ele. Trata-se de um homem novo, isto é, de meia idade, com um farto bigode e barba, um homem perfeitamente decente e franco. O Dr. Burke está confiante de que não só pode curá-la como voltar a integrá-la numa vida normal.

            - Bom, suponho agora que as coisas se encaminham para me apontar como o único culpado. Pai muito ocupado, logo, como conclusão, filha viciada em drogas.

            - Não, Steve, a culpa não foi tua nem minha. Ou, melhor, talvez a culpa seja dos dois. É conseqüência do modo como as pessoas orientam a vida, do que acontece com os pais, daquilo que se proporciona ou não às crianças. E mais ainda (uma coisa que os pais não podem evitar): do estilo de vida da sociedade moderna, da espécie de futuro, ou da falta de futuro, que nos aguarda... e da rebeldia, fuga, desejo de se procurar um mundo melhor pelo alargamento da mente, encontrando outro nível de consciência, procurando um planeta perfeito dentro da caixa craniana. É dessa forma que se chega à droga, que se viaja pela infinidade do espaço em alucinação e, se houver sorte, é possível encontrar alguém que nos faça descer da órbita e voltar à terra antes que seja tarde demais. Bom, foi precisamente o que o Dr. Burke fez à Judy, auxiliou-a sair da órbita, voltar a terra firme. A nossa filha voltou sendo considerada como um membro da família humana, revendo todo o seu sistema de valores.

            Randall encostara o vidro frio do copo ao nariz e esfregava-o com ele. E de repente, elevando-o até aos olhos e olhando através do vidro deu-se conta que Bárbara já não estava na frente dele. Baixou o copo e ficou ensimesmado fitando o sofá.

            - Steve -ouviu a voz dela.

            Voltou a cabeça e viu-a caminhar do bar para o sofá trazendo consigo uma segunda bebida.

            - Eh, estás com disposição para a pinga.

            -É só hoje -disse ela sentando-se.

            -Olha, Steve, há outra coisa que gostaria de te dizer esta noite.

            -Não achas que é muita coisa em tão pouco tempo. Já me contaste o que se passou com a Judy...

            -De certa maneira o que ainda tenho para te dizer relaciona-se também com a Judy. Ouve, deixa-me dizer-te o que quero rapidamente, Steve. Ficarei aliviada.

            -Muito bem, despeja lá o saco. Que mais temos?

            Bárbara olhou-o bem nos olhos, depois deu um sorvo no seu uísque.

            - Steve, vou-me casar.

            Steve não sentiu nada de especial ao ouvir semelhante declaração, na verdade até se sentiu divertido.

            -Então casa-te e já sabes que vais para a gaiola. - Riu-se de modo perverso.

            -O que pretendo dizer é que já és casada. Será um ato de bigamia, Bárbara empertigou-se, endureceu a expressão.

            - Steve, não brinques. O que te disse é uma coisa séria, muito séria mesmo. Quando certa vez me perguntaste pelo telefone se tinha relações com outros homens, respondi-te que de vez em quando. Mas agora, isto é, ultimamente, tenho tido relações com um só homem. Precisamente com o Dr. Athur Burke de que te falei.

            - Arthur... Arthur... Ah, o tal psicólogo da Judy, não é?

            -Exatamente. Um homem encantador sob todos os aspectos. Simpatizarias com ele. Acontece que eu... eu quero-lhe muito. Como já te disse, a Judy gosta também dele. -Fixou o olhar no copo que tinha nas mãos. -Ela precisa de um lar, de uma família, de estabilidade. Em suma necessita de um pai.

            Randall pousou o copo violentamente no tampo da mesinha. E quando falou, articulou as palavras lenta e com máximo cuidado.

            - Também tenho novidades para ti, minha doce pombinha sem fel: a Judy já tem um pai.

            - Evidentemente que tem pai. Tu és pai dela e ela sabe muito bem isso. Arthur também não desconhece o fato. Mas, eu refiro-me a um pai autêntico, que viva sob o mesmo teto que ela, no mesmo lar, uma pessoa que esteja sempre presente. Sabes, ela precisa daquele tipo de vida, de cuidados, de carinho que só uma família convencional lhe pode proporcionar.

            - Ah, agora já percebi. Ouço os sons da boa lavagem do cérebro. O tipo de vida, os cuidados, o amor... ora merda! É então essa a linguagem que ele utiliza, em seu trabalho asqueroso, o seu modo barato de tentar conquistar uma família, arranjar uma filha sem a merecer, hem? Se ele quer uma filha, que faça uma. Com a minha é que não se governa. Não, minha querida madame, com a minha Judy é que ele não fica.

            - Steve, pensa bem. Sê razoável.

            - Não me venhas dizer que imagina tudo isso só para salvar a Judy. Que queres casar com esse tipo por causa da Judy, porque ela necessita de um pai!

            -Não, Steve, essa não é a razão fundamental. Quero casar com o Arthur porque preciso de um marido, um marido como ele. Estou apaixonada e quero divorciar-me para poder casar como ele.

            - Divorciar-te?... Randall sentia-se estonteado e moribundo. - Nem penses nisso. Não te concedo o divórcio.

            Levantou-se.

            -Steve!

            Ele pegou no copo vazio e dirigiu-se para o bar.

            - Não. Digo-te já redondamente que não estou disposto a desistir da minha filha só porque a mãe precisa de alguém para a cama.

            -Não sejas louco. Tornas-te insuportável quando te embebedas e perdes a lucidez. Sabes bem que não preciso arranjar um homem para a cama. De fato já tenho um. Tenho o Arthur e pretendo apenas legalizar a situação. Ele precisa de uma esposa, de um lar, e merece ter isso, tal como a Judy também merece. Se é a Judy que te dá cuidados, deves então colaborar a anuir em vez de nos fazeres a vida um inferno. Tiveste imensa oportunidades para nos mandares regressar, mas nunca mexeste sequer o dedo mínimo para fazer um sinal. E no momento em que queremos seguir a nossa vida é que impede-nos o caminho melhor. Por favor, peço-te, deixa-nos em paz de uma vez para sempre.

            Randall mandou o conteúdo do copo pelas goelas abaixo.

            - Não me venhas dizer que a Judy deseja ter o teu amante como pai.

            - Pergunta-lhe.

            - Claro que vou perguntar, não te preocupes com isso. Mas, tu que já começaste a rebolar com esse tipo pela cama, não consideras também que isso significa alguma coisa?

            Em pé, junto ao bar, traçando círculos com a ponta do dedo nas bordas do copo, viu que Bárbara se levantava para ir buscar um maço de cigarros. Seguiu com os olhos os movimentos daquele corpo de mulher que tão bem conhecia, e que ela dava a outro homem. Imprevista - ou deliberadamente... Sim, estaria bêbado-voltou atrás, enveredando pelas ruínas do seu casamento, até um momento particular que há muito jazia enterrado no poeirento sótão da sua memória dos anos de união: a última viagem que haviam realizado juntos ao estrangeiro. Certa noite em Paris -noite horrível, tremenda-já muito tarde acabaram de ir para a cama, um largo leito de casal cuja cabeceira encostava numa parede, situada num dos quartos de um hotel de luxo. O George V. Ou foi o Brístol? Bom, de qualquer forma um deles... ou talvez o Plaza Athenée? Já não se lembrava qual. Deitados, erguiam-se entre eles como uma barreira de ressentimento, ou indiferença. Estavam acordados, mas fingiam dormir. Pouco depois, através da pouco espessa parede que ligava ao aposento contíguo, começara chegando-lhes o som abafado de vozes. Um homem e uma mulher falando, frases indistintas... e logo a seguir o ranger das molas de uma cama e os gritinhos abafados, os gemidos de prazer da mulher e o pesado arfar do homem. Gemidos da mulher e ruidosa respiração do homem em ritmo com o constante ranger das molas; ruídos excitantes, ardentes, cheios de paixão carnal.

            Tais sons eram como que punhais apunhalando-o e ele sentira despeito, inveja tremenda daquele prazer. Sentira raiva e culpa, misturadas, por causa de ter aquele corpo de Bárbara ali a seu lado, naquela grande cama. Não podia observá-la, mas sabia que também ela, na escuridão estava ouvindo. Não havia meio de evitar aquilo. Os ruídos do quarto pegado zombavam dos seus próprios corpos frios, isolados em compartimentos estanques. Faziam ainda realçar mais o vazio de tantos anos. Randall odiou aquela mulher, uma estranha, ali ao lado dele, odiou as duas criaturas que se agigantavam do outro lado da parede naquele coito íntimo e interminável, e, acima de tudo, odiou-se a si mesmo pela incapacidade que sentia de poder amar a companheira. Teve vontade de saltar da cama, de se ver livre do corpo de Bárbara, de sair daquele quarto horrível, de se afastar daqueles sons carnais insultuosos. Mas, não fora capaz de fazer um movimento. Depois do último suspiro, do último gemido de prazer, do outro lado da parede, impôs-se o silêncio da carne satisfeita... mais insuportável ainda.

            Na noite seguinte, a primeira coisa que lhe acorrera ao espírito fora o fragmento de um poema de George Meredith que lhe causara calafrios:

            Então, quando a meia-noite fez adormecer com o incolor remédio do silêncio,

            Seu gigantesco coração prenhe de recordações e lágrimas,

            Batendo pesado compasso das horas sepulcrais,

            Eles, da cabeça aos pés, ficaram imóveis,

            Espreitando um passado vazio e morto,

            Que se estampava como um vão lamento na parede nua.

            Como esculpidas efígies podiam ver sobre o túmulo,

            Do seu casamento a espada que os separava;

            Cada qual esperando essa outra espada que tudo corta.

            E, naquela persistente escuridão, ele tinha a consciência que jaziam no túmulo do casamento. O pensamento dominante, antes da libertação do sono, fora a perfeita compreensão do vazio do casamento deles e da impossibilidade em continuarem vivendo juntos. Para eles não havia futuro, segundo soube com mais acuidade naquela noite. Nunca poderia, com toda a honestidade, voltar a amar e a possuir o corpo deitado a seu lado. Talvez, fosse possível uma fraude. Talvez, pudesse fingir o amor, mas não amá-lo livre e espontaneamente, nem sequer desejá-lo. Era uma intimidade vã, estéril. E ela também sabia a verdade. Naquela noite, antes de adormecer, compreendeu que o fim estava próximo - desceria a espada que tudo corta - e orou para que fosse ela a separar-se. Alguns meses depois, Bárbara deixara, com Judy, o apartamento de Nova York e fora viver com a filha para S. Francisco.

            Regressou ao presente. Com um olhar já turvado, viu-a atravessar a sala a fumar, medindo os passos dados, evitando encontrar-lhe o olhar. Através da saia apreciou-lhe o contorno das coxas. Despiu-a mentalmente e pôs a nu aquela carne familiar, com uma bacia de ossos salientes, tentando imaginar como aquele corpo em segundo mão, um corpo inflexível, sem entrega poderia estimular a paixão de alguém chamado Arthur, fazer acelerar-lhe a respiração e despertar um desejo violento. Aparentemente podia. Uma coisa extraordinária.

            Afastou-se do bar e caminhou ao encontro dela. Os olhos de Bárbara cravaram-se nele, suplicantes.

            - Steve, pela última vez, não te recuses ao divórcio. Por favor, liberta-me e não levantes problemas. Tu não precisas de mim para nada. Nunca utilizarás o direito de opção que, tens sobre mim. Logo, porque é que não me concedes a liberdade sem alaridos nem problemas, como fazem normalmente as pessoas decentes e civilizadas? Não discutamos. A tua recusa não deve ser só por causa da Judy. Poderás continuar a vê-Ia sempre que tenhas tempo disponível para lhe conceder. Será uma coisa que ficará escrita no acordo. Afinal o que é que te perturba? Deve haver alguma coisa. É a consumação do fato? Será que não podes admitir a idéia de fracasso em qualquer coisa. Vamos fala, de que se trata?

            -Trata-se da Judy. Nada mais. Não sejas ridícula. Trata-se apenas de não querer que seja outro homem, um estranho, a educar a minha filha. Eis a minha decisão. Pelo menos até que ela faça vinte e um anos. Até lá nada de divórcio. Acabou-se... Talvez... -hesitou -...talvez tu e eu... nós... pudéssemos encontrar juntos uma solução, descobrirmos qualquer coisa.

            -Não, Steve. Não te quero nunca mais. Quero o divórcio.

            -Muito bem! Pois sabe que não o terás.

            Randall começou a dirigir-se para a porta, voltando-lhe as costas, mas ela agarrou-o por um braço para o obrigar olhando para ela.

            -Pois bem, muito bem então! -exclamou numa voz trêmula. -Vais forçar-me fazendo aquilo que nunca desejei. Vais obrigar-me a pôr em juízo uma ação de divórcio contra ti.

            - Não hesites nessa decisão. Encontrar-nos-emos no tribunal. Terás a devida réplica, e desde já te declaro que vai ser ótimo para me divertir. Foste tu que abandonaste o lar. Tu é que não soubeste vigiar a nossa filha. Permitiste que se envolvesse na droga até ser expulsa do colégio. Andas metida com outro homem e fazes porcarias com ele tendo em casa uma garota de quinze anos, Bárbara não me obrigues a apresentar toda esta roupa suja no tribunal.

            Calou-se aguardando a explosão, mas para sua surpresa a cara dela manteve o semblante calmo, seguro, nos olhos com que o fitava luzia algo que se assemelhava a piedade.

            -Ouve, Steve, tu vais perder. Não é preciso esforçar-me muito para revelar a tua podridão. Aliás, era coisa que eu nunca faria. Mas o meu advogado demonstrará em público quem tu na realidade és e o tribunal ficará conhecendo toda a verdade-a maneira como te comportaste comigo, com a tua filha, o papel de marido e pai que nunca soubeste desempenhar. A tua conduta passada e presente. A tua vida irregular. O vício do álcool. Os teus casos amorosos. A moça que sustentas com casa em Nova York... e ela é ainda uma jovem. Perderás, Steve e até talvez percas a possibilidade de poder voltar vendo Judy. Espero que não sejas teimoso e obstinado de modo a permitires que tal coisa aconteça. Seria mau para todos nós, péssimo para a Judy, uma coisa terrível. E no fim das contas talvez, a perdesses para sempre, fosse o que fosse que o tribunal decretasse.

            Desprezou-a naquele momento, não pelo que ela tinha dito, mas pela sua segurança, a sua confiança, talvez pela justeza das suas palavras.

            - Estás fazendo chantagem comigo. Quando eu provar em tribunal que esse teu amante, esse Arthur não sei quê, utilizou as suas relações profissionais com a Judy para conseguir insinuar na tua vida, para se apossar de ti e da nossa filha, podes crer que o juiz nunca te concederá a custódia da garota.

            Bárbara teve um encolher de ombros de pena, dizendo:

            - Bom, veremos. Steve, pensa no caso, pensa nele quando... quando estiveres perfeitamente sóbrio. E antes de partir diz-me qualquer coisa. Se não mudares de idéias e persistires em contestar o divórcio, terei então de tomar as minhas medidas a fim de pôr a ação em tribunal. Rogo a Deus que não permita que tal coisa aconteça. Essa noite rezarei também... - deteve-se abruptamente-Vai dormir um pouco. Talvez amanhã tenhas um dia igualmente mau.

            Bárbara abriu-lhe a porta e esperou. Randall pousou o copo e dirigiu-se para ela.

            -Acaba o que ias dizer-insistiu.

            - Eu... claro está, rezarei pelas melhoras de teu pai. Rezarei pela Judy, como sempre faço. Mas acima de tudo, Steve, rezarei... por ti,

            Randall odiou aquela atitude safada de beata superior e hipócrita. Com uma voz emaranhada disse-lhe:

            - Guarda as orações para ti mesma. Vais precisar delas... no tribunal.

            E saiu sem sequer lhe lançar um olhar.

           

            Acordou de manhã com uma ressaca, dando-se imediatamente conta que dormira demasiado.

            Enquanto tomava um bom banho de chuveiro, se limpava e se vestia, pensou que a ressaca não era devida ao que bebera na noite passada. Normalmente, bebia muito mais, e costumava acordar relativamente fresco. Não, de fato tal estado advinha-lhe do mais profundo do ser, era um resíduo da vergonha que o sufocava, a vergonha pelo procedimento que tivera com Bárbara na noite anterior.

            Objetivamente, podia perfeitamente ver que o pedido dela para um acordo de divórcio fora perfeitamente razoável. Podia justificar também a sua resistência. Não existiria nenhuma diferença a não ser que poderia perder a sua única filha se Bárbara voltasse a casar. Ora tal perda seria absolutamente insustentável, especialmente devido a serem tão escassas as suas ligações de caráter emocional. Fosse como fosse, não concedera a Bárbara qualquer escolha alternativa.          Pensou na hipótese de um compromisso. Bárbara não era obrigada a casar com Arthur. Sim, podia perfeitamente continuar a viver com o tipo, tal como já vinha fazendo -e porque não? Estavam em pleno século XX... e Judy não precisava ter outro pai, devia continuar sabendo que ele, Randall, era o único pai em cima da terra.

            Ah, lutaria contra Bárbara no tribunal, lutaria com unhas e dentes.

            Não obstante, o que realmente lhe transmitia aquela sensação de pesadelo era o pensamento do seu procedimento infantil, vergonha da sua imaturidade e do seu comportamento mesquinho. Uma pessoa estranha ao caso que o tivesse observado diria que ele não passava de um filho da mãe, um verme. Tal pensamento modificava-o porque não se sentia assim tão mau. No íntimo sabia perfeitamente que não era mau, era muito melhor do que deixava as pessoas pensarem através as suas detestáveis birras, muito melhor do que o modo como se mostrara na visita anterior a essa que agora fazia ao pai, muito melhor do que se mostrara a passada noite com a mulher e como muito em breve seria considerado pelo magnífico Jim. McLoughlin do Instituto Raker quando ele soubesse da sua patifaria em aceitar a prepotência das Empresas Cosmos.

            Mas, a verdade é que as pessoas não podem ser avaliadas por sentimentos que não se manifestam, são avaliadas pelo seu comportamento relativamente em determinado momento demonstrativo. E o fato é que ele enganava e magoava toda a gente que se relacionava com ele.

Quanto a nível social, também o seu comportamento merecia reparos. A trabalhar- excelente. Manifestava as suas verdadeiras potencialidades. Fora das horas de trabalho, nos contatos com pessoas que interessavam tornava-se perfeitamente irresponsável.

            Havia prometido à filha-e que coisa seria mais importante? - que tomaria com ela o café naquela manhã. Na noite anterior esquecera completamente a promessa quando avisara a recepção de que não queria ser perturbado por quaisquer telefonemas com exceção de chamadas do Dr. Oppenheimer. Esquecera-se também de acertar o despertador para uma hora conveniente, daí a razão de ter dormido demais.

            Antes de ligar para o serviço de quartos, tentou telefonar para Bárbara para saber se a Judy ainda estava no hotel. Ninguém respondeu. Desanimado e sentindo-se miserável, estava agora instalado para comer o seu presunto com ovos e beber o seu café, tendo que tomar a refeição sozinho. Nessa altura tomou consciência que por baixo do jornal matutino se encontravam alguns bilhetes. O garçon que trouxera o café, encontrara certamente as mensagens junto à porta e colocara-as em cima da mesinha.

            Abriu-os. O primeiro dizia-lhe que telefonara de Nova York uma senhora chamada Darlene Nicholson. Já na noite anterior a recepção lhe entregara um recado semelhante. Nessa altura, depois da cena com Bárbara, não se sentira com disposição de telefonar para Darlene, e agora sentia-se demasiado aborrecido para ligar para Nova York. Prometeu a si mesmo que entraria em comunicação com ela mais tarde. Havia um recado do tio Herman. O tio deslocara-se ao hotel no carro da família para lhe dar uma carona até o hospital como ficara combinado, mas não lhe foi permitido que telefonasse para o quarto do sobrinho. Pela hora marcada na mensagem viu que o tio passara pelo hotel cerca de três horas antes. Bolas. A única coisa afinal agradável, ou de bom agouro, era o caso de não ter recebido qualquer chamada do Dr. Oppenheimer.

            Acabou apressadamente o café, enfiou o casaco desportivo de camurça e desceu no elevador até ao saguão. Estava certo de que encontraria Judy no hospital, mas para que não se desse o caso de um novo desencontro, dirigiu-se à recepção e escreveu uma nota pedindo desculpa à filha de não ter podido tomar o café com ela e pedindo-lhe para não se comprometer, pois, almoçariam os dois. Pedindo ao recepcionista que colocasse o bilhetinho no quarto de Bárbara, Randall correu para fora do hotel, naquela morna e úmida manhã de Maio, fez sinal a um táxi e mandou seguir para o Hospital do Bom Samaritano da cidade de Oak City.

            Ao chegar, subiu dois em dois os degraus da escadaria de cimento da fachada frontal, entrou no elevador, carregou no botão do segundo andar e, logo que o monstro parou, abriu a porta e enveredou pelo corredor, à direita. Mal tinha dado alguns passos quando viu, apreensivo, que a mãe, a irmã e o tio Herman estavam agrupados em volta do Dr. Oppcnheimer em frente do quarto particular do pai.

            Ed Ponto Johnson e o Reverendo Tom Carey estavam afastados alguns metros, entretidos numa grande conversa. À medida que se aproximava não podia impedir-se de pensar em algo de mal. Toda a gente reunida no corredor, não era coisa natural e parecia falar de uma emergência ou de uma mudança. Alguma coisa com certeza acontecera.

            Chegando alguns passos de distância, pôde ver melhor as caras e observar as expressões. Procurou sinais de dor e perturbação. Frio, muito frio. Admirou-se, tal como sentiu estranheza de não ver Bárbara nem Judy entre os presentes.

            Furou pelo grupinho e sem delongas em cumprimentos interrompeu aquilo que o médico estava dizendo aos circunstantes para perguntar com ansiedade:

            -Doutor, como está o pai? O que é que se passa?

            As comissuras dos lábios do Dr. Oppenheimer abriram-se num rasgado sorriso.

            - Boas notícias, Steve. Está correndo tudo bem. Seu pai recobrou a consciência às... humm... deviam ser cerca de seis horas. O eletrocardiograma que fizemos mostra as mais determinantes melhoras. A pressão sangüínea está muito perto do normal. O lado esquerdo está parcialmente paralisado e a fala tem uma certa dificuldade. Todavia, de um modo geral, podemos dizer tratar-se de uma recuperação notável. A partir de agora, se não advierem complicações todos os sintomas são manifestamente favoráveis.

            Randall soltou um suspiro de alívio, como se tivessem tirado de cima um peso atormentador:

            - Meu Deus! Graças a Deus...

            Precipitou-se para a mãe e beijou-a, beijou Clare, que desatara a chorar, e piscou o olho para o tio Herman. Voltando-se repentinamente para o médico, agarrou-lhe a mão.

            -É maravilhoso, um milagre. Nem sei como exprimir-lhe nossa gratidão.

            Dr. Oppenheimer abanou a cabeça, embora os seus olhos manifestassem o apreço em que tivera aqueles cumprimentos.

            - Obrigado, Steve, mas os louros pertencem inteiramente a seu pai. Estava, precisamente, explicando a Sarah que a rapidez e o grau de recuperação estão nas mãos dele. A medicina não pode ir muito mais longe. Depois dele ir para casa - possivelmente dentro de duas, três ou quatro semanas - começará um programa de fisioterapia. Arranjar-se-á um modo de poder perfeitamente aplicar em casa. Se ele cooperar, poderá chegar a um surpreendente grau de reabilitação. O objetivo do programa é restituir-lhe a mobilidade e a independência. Como eu estava dizendo à sua mãe, o principal fator reside no espírito de seu pai, na vontade que ele manifestar, no seu desejo de viver.

            - Foram coisas que nunca lhe faltaram - disse Randall.

            - É certo - concordou o Dr. Oppenheimer. - Mas, não esqueçamos que Nathan nunca enfrentou uma situação destas. Pode ter-se alterado a disposição psíquica; bom, seja como for o futuro de seu pai depende dele permanecer fundamentalmente o mesmo.

            -Jesus sentiu-se abandonado na Cruz - era Sarah Randall quem falava com suavidade.

-Ele morreu, e todavia voltou, ressuscitado para nos salvar a todos.

            -Com a ajuda de Deus- acrescentou o tio Herman.

            Sarah fitou o irmão.

            - Nathan vai também ter a ajuda de Deus, Herman. E merece-a.

            Embaraçado por aquela conversa sem tino, piedosa, embora viesse de sua mãe, Randall afastou-se dela e voltou a aproximar-se do médico.

            -Gostaria de ver o meu pai. Poderei?

            -Bem... por hora devia repousar o máximo possível. No entanto, se não for uma visita de mais de um ou dois minutos... está bem. É possível que esta noite já possam passar mais tempo junto dele.

            Randall penetrou no quarto.

            A transparente tenda de oxigênio estava aberta, e a enfermeira particular estava puxando para cima o cobertor, alisando o leito, escondendo o doente com o seu corpo. Logo que ouviu a aproximação de Randall, recuou.

            - Apenas quero olhar para ele - explicou Randall - Está dormindo?

            -Dormindo. Portou-se excelentemente. Estamos orgulhosos da maneira como reagiu.

            Randall encaminhou-se para o leito. Ali estava repousando, na almofada, a velha cabeça, abatida e esquelética, mas, não tão chocante como a noite passada. Tinha os olhos cerrados. As faces haviam voltado a ganhar uma certa cor. O pai ressonava pacificamente.

            Randall voltou a cabeça e disse:

            - Tem um aspecto incomparavelmente melhor em relação a ontem.

            Atrás dele a voz da enfermeira concordou:

            -Sim, muito melhor.

            Randall voltou-se, de novo para o pai e ficou surpreso de o ver de olhos abertos, embora com um ar vago, parado.

            -Viva, pai. Sou eu, Steve. Já te encontras melhor. Em breve ficarás bom.

            Nos olhos do velho pastor notou-se um sinal de reconhecimento e os lábios mexeram-se.             Randall inclinou-se e depôs-lhe um beijo na testa.

            As pálpebras bateram, rápidas, um abrir e fechar; como que uma espécie de cumprimento.

            -Papá, estás recuperando bem. Temos rezado por ti e as nossas orações foram ouvidas. Vou continuar rezando por ti...

            A voz de Randall sumiu quando viu franzirem-se os cantos da boca do pai, ainda que ligeiramente e não concluiu a frase por não saber qual o significado daquele arremedo de sorriso do pai. Se foi um sorriso de apreço pelas orações, ou de dúvida que seu filho fosse capaz de rezar por alguém. Pensou que o pai continuava vendo seu âmago como se o seu corpo fosse de vidro, uma forma de o conhecer que tivera desde sempre, uma maneira antiga de aceitar tudo o que fosse uma preocupação sincera, mas, opondo-se a qualquer pieguismo repentino e com marca de artifício.

            O sorriso, tão enigmático como o da Mona Lisa, desaparecera, mas, no entanto, a sua motivação e o seu significado parmaneciam explicando. foi finalmente um sorriso de compaixão? Compaixão não pela falsa pieguice do filho, mas, compaixão (por parte de alguém que sabia perfeitamente que a fé, a crença, a fidelidade, a algo tinham triunfado) por uma crença que nada mais possuía do que um ceticismo ímpio e que estava destinado a jamais conhecer a elementar paixão do amor, da ternura e da paz.

            Randall queria falar do caso, sondar para conseguir uma explicação, mas as pálpebras em que se destacava a fina rede de veias haviam-se cerrado e de novo se ouviu ressonar.

            Fazendo o menor barulho possível, Randall afastou-se do leito de dor do pai e voltou para o corredor. O médico procedia à sua rotina pelos quartos dos outros doentes. Os outros reuniam-se num grupo feliz perto da sala de espera, conversando animados.

            Randall perguntou a Clare por Bárbara e Judy. Ela respondeu-lhe que haviam chegado cedo e tomado conhecimento das boas notícias. Tinham ido espreitar o doente e saído cerca de meia hora antes.

            Quando a mãe os interrompeu para convidar Randall a almoçar lá em casa, ele contou-lhe que tinha convidado a filha para almoçarem juntos, mas prometeu-lhe que iria jantar, nessa noite, antes de voltar de novo ao hospital.

            Dado que não havia necessidade de ir a casa, Sarah Randall resolveu ficar no hospital mais um pouco na companhia do tio Herman. Clare achou que devia voltar para o trabalho, prometendo contudo à mãe que estaria em casa cedo para a ajudar preparando o jantar. Voltou-se depois para os outros e perguntou:

            -Alguém quer uma carona?

            Ed Ponto Johnson pensava melhor regressar ao jornal. Pouco e pouco o seu filho mais velho fora tomando conta de tudo o que se referia à redação, mas, Ed Ponto gostava de estar presente, de fiscalizar o bom andamento das coisas. O edifício onde se situava o jornal era tão próximo que não precisava de carona. Quanto a Tom Carey tinha que voltar para a igreja. Estaria ocupado em receber vários paroquianos, responder uma montanha de correspondência em atraso e escrever um sermão.

            - Faz-me bem apanhar um pouco de ar fresco e preciso de fazer exercício - dizia Carey. - Obrigado pela oferta, Clare, acho melhor ir a pé. - Olhou para Randall.

            - E tu, Steve? Estás disposto fazer uma caminhada a pé? Com certeza que ainda te lembras que a igreja fica a alguns quarteirões do teu hotel.

            Randall olhou para o relógio de pulso. Ainda tinha quarenta e cinco minutos até à hora do almoço com Judy, presumindo que ela tivesse recebido o seu bilhete.

            -Vamos lá, isso. Estou pensando fazer-me sócio da liga dos pedestres Anônimos.

            Havia cerca de dez minutos que os três caminhavam e o passeio mostrava-se agradável. A umidade desaparecera e a atmosfera apresentava-se límpida sob um quente sol de princípio de tarde. Os enormes e veneráveis carvalhos encontravam-se em período de florescência e mostravam toda gama de verdes puríssimos. Passavam crianças pedalando suas bicicletas, viam-se cães correndo atrás de gatos, e uma mulher gorda com a boca cheia de pregadores, preparando-se para estender a roupa, acenou um adeus a Johnson e Carey.

            O forte contraste do local com aquele canyon de pedra escura em plena Manhattan fez com que Steve Randall considerasse a pequena cidadezinha do Wisconsin com um paraíso. Mas a comparação era feita com os olhos do seu coração, enevoados pela nostalgia. Quanto aos olhos do seu raciocínio viam as coisas com mais fidelidade. Lembravam a Randall que se afastou muito, visto muito, vivido demasiado para que de novo voltasse ajustando-se à monotonia e às acanhadas perspectivas daquela comunidade provinciana encerrada como uma ostra nos estreitos limites das suas convenções. Tratava-se de uma vida de compromisso entre duas coisas. Poderia sobreviver num ou noutro extremo, mas nunca naquele meio. Poderia ter suficiente espaço em Nova York, entre o rolo compressor de milhões de pessoas, ou retirar-se sozinho, sozinho ou com uma outra pessoa, para qualquer lugar solitário de uma encosta de colina francesa, a fim de dar asas à sua imaginação criado, um destino que contava fosse realidade no prazo de cinco anos quando Towery e as Empresas Cosmos dessem-lhe o bônus de dois milhões de dólares.

            Acertou o passo pelo dos seus companheiros, dando atenção ao vívido monólogo de Johnson. Este recordava o princípio da sua fraterna amizade com o Reverendo Nathan Randall, os melhores momentos dessa intimidade e os gloriosos fins de semana que os dois haviam tido em pescarias nos lagos.

            Nesse momento, Ed Ponto Johnson recordava alguns aspectos da bondade criado de Nathan.

            -Como vocês sabem, muita gente tem a pretensão de praticar boas ações, mas a certa altura do caminho acabam por soçobrar. Mas com o pai de Steve, nunca. Não, senhor, nesse aspecto o nosso excelente reverendo foi sempre uma exceção. Quando mete uma idéia na cabeça, por mais bizarra que possa parecer, por Deus, segue-a até ao fim. Isto é, encontra sempre uma maneira de realizar. Nathan é daqueles que sempre praticou as coisas que pregava.

            -Exatamente uma das facetas de Nathan -apoiou Carey.

            -Recordo-me aquela vez em que meteu na cabeça a idéia de me fazer concorrência no negócio jornalístico. Lembras-te, Steve? Recordas-te do semanário que ele publicou... Como raio é que se chamava?... deixa lá ver...

            -Boas Novas na Terra-disse Randall.

            -Isso mesmo. Boas Novas na Terra, foi esse o nome com que o crismou, de acordo com o primitivo significado da palavra gospel (Evangelho), derivada da palavra anglo-saxônica godspel, que significava «Boa Nova». Uma coisa linda, realmente maravilhosa. Exigiu muita coragem, aliás uma coisa que nunca faltou a Nathan. Steve, recordas-te desse jornal do teu pai?

            -Muito bem.

            Ed Ponto Johnson voltou sua atenção para Tom Carey, falando mais para ele, enquanto caminhavam por aquela tarde cálida e convidativa.

            -Tom, é uma história verídica, tão verdadeira como o fato de eu estar aqui vivo. Steve pode confirmar o que eu digo. Aconteceu já lá vão muitos anos. Certo dia estávamos ouvindo rádio; um programa que fazia parte de uma série a respeito de sacerdotes pouco conhecidos na história,   mas, que conseguiram fazer coisas invulgares no mundo secular. Nesse programa relatavam a vida do Dr. Charles M. Sheldon, da Igreja Central Congregacional de Topeka, Kansas. Já ouviste falar nele, Tom?

            -Parece-me que sim. O nome não me é estranho.

            -Bom, não me admiraria que nada soubesses dele, porque no dia longínquo de que estou falando nem eu nem o Nathan sabíamos, até então, nada a respeito de Sheldon.

            Podem ver dados sobre ele na biblioteca, se não acreditam em mim. Dr. Sheldon deslocou-se de Nova York para o Karisas a fim de fundar a sua igreja em Topeka. Por volta de 1890, julgo que Sheldon andava então pelos trinta e três anos. Começou a manifestar-se preocupado a respeito da reduzida assistência aos ofícios divinos das tardes de domingo na sua igreja. Teve então uma idéia luminosa. Em vez de fazer os habituais sermões, resolveu coligir uma história de ficção em doze capítulos, terminando cada um deles num ponto de suspense que se explicaria no capítulo seguinte e começou a lê-los todas as tardes de domingo à sua congregação. A idéia provou-se soberba, magnífica.

            -Idéia inteligente -anuiu Carey.

            -E que espécie de história era?

            -Descrevia um jovem pastor, abalado pelas condições imperantes no mundo e pela maneira como as pessoas se portavam, que pedia à sua congregação para lhe prometer que durante um ano agiriam como Jesus o teria feito em todo o capítulo das relações humanas. A série tornou-se um sucesso de tal ordem que o Dr. Sheldon, em 1897, acabou publicando num romance, que intitulou: Seguindo os Seus Passos. De acordo com certas avaliações, conseguiu vender três milhões de exemplares, inclusive quarenta e cinco traduções. Creio que foi o livro de maior venda em toda a história, com exceção da Bíblia e das Obras de Shakespeare.

            -Fantástico! -exclamou Carey.

            - Sim, na verdade fantástico. Mas aqui tens uma coisa ainda mais fantástica: três anos depois do livro ser publicado, o proprietário do jornal Topeka Capital, um diário com uma tiragem de cerca de quinze mil exemplares, foi procurar Sheldon e disparou-lhe: «Gostaria de redigir a Capital durante uma semana tal como Jesus a teria editado?» O Dr. Sheldon aceitou. Queria provar que um jornal podia ser decente, honesto, publicar boas notícias em vez de enveredar pelo sensacionalismo corrupto, continuando todavia sendo um êxito. Desse modo o Dr. Sheldon sentou-se à secretária do chefe de redação e diretor por uma semana, agindo como delegado de Cristo na terra.

            Randall abanou a cabeça.

            - Pensei sempre que o fato era já por si mesmo sensacional.

            - Publicidade, talvez, mas uma publicidade colocada ao lado da virtude - garantiu Johnson.

            - E que aconteceu depois? - perguntou Carey curiosamente.

            Johnson prosseguiu:

            - Bem, o Dr. Sheldon não se alheou do lado prático do caso. Tinha a perfeita consciência de que Jesus Cristo jamais vira um carro, um trem, telefone, luz elétrica e que desconhecera em absoluto o que era a força da imprensa, dos meios de comunicação e dos livros impressos. Sabia perfeitamente que Cristo nunca tinha visto uma igreja cristã, uma escola dominical, uma sociedade de paz, ou uma democracia. Mas, tinha a certeza que Jesus vira algo mais que nunca sofrera a mais leve modificação. Sabia perfeitamente, como declarou na altura, que o mundo fechado que Cristo conhecera e compreendera era exatamente o mesmo na sua mesquinhez e no sórdido desprezo pela bondade tal como na época do próprio Sheldon. Desse modo, na qualidade de editor de um jornal, desempenhando o papel de Jesus Cristo, Sheldon resolveu impor algumas regras novas. O escândalo, o vício e o crime passariam a ter uma importância secundária. Todos os artigos de fundo e demais notícias seriam assinados. E, pela vez primeira, histórias sobre a virtude e a boa-vontade teriam honras de primeira página. E isso seria apenas o princípio. Dr. Sheldon anunciou que recusaria todos e quaisquer artigos ociosos ou anúncios que tivessem por único objetivo o álcool, o tabaco e todos os divertimentos imorais. Além disso, os repórteres do periódico foram avisados que iria deixar de haver bebedeiras, orgias e abuso de tabaco durante os serviços.

            -Perguntaste o que aconteceu depois, não foi Carey? Pois bem, o que aconteceu foi que a tiragem do Topeka Capital subiu dos quinze mil exemplares para os sessenta e sete mil por dia na altura em que estava a findar a semana experimental do Dr. Sheldon como editor. Conseguira provar que as boas notícias podem vender tão bem como as más que são servidas ao público em doses maciças.

            Randall pousou a mão no ombro de Johnson, ao mesmo tempo que se dirigia expressamente a Carey.

            -Tom, mas a história não acaba assim. Não há dúvida que a experiência foi nessa altura considerada como uma verdadeira bomba em todo o mundo jornalístico. Também se disse que o jornal durante aquela semana foi completamente insípido, monótono, inócuo, baseado em compridos sermões e aumento de tiragem ficara a dever à novidade e à publicidade feita em volta do caso. Ademais foram feitas edições simultâneas para serem vendidas em Nova York e Chicago, o que representou o aumento de exemplares. Em suma, se Sheldon tivesse continuado por mais algumas semanas à frente dos destinos do jornal tê-lo-ia levado à falência.

            -Pura especulação -atalhou Johnson com bonomia.

            - Seja como for, a operação resultou. Os leitores não resistiram ao salientar da moralidade em detrimento da imoralidade. E voltemos agora ao que eu pretendia dizer, por ocasião da primeira vez em que Nathan Randall ouviu falar do Dr. Sheldon e teve a inspiração de realizar a mesma façanha.

            - Tentou isso? - perguntou Carey.-Não me lembro do caso.

            -Bem, parece que estavas nessa altura na Califórnia ou noutra parte qualquer. Sim, Nathan andou com a idéia na cabeça durante algum tempo, até que, dentro do seu feitio trabalhador, iniciou a publicação de um jornal chamado “Boas Novas na Terra”, um semanário, e anunciou que publicaria e editaria como Jesus Cristo o teria feito. Nathan começou a sua experiência -utilizando as minhas máquinas e algum do meu pessoal -primeiro em exemplares essencialmente dirigidos aos pais das crianças que freqüentavam as escolas dominicais e anunciando a seguir uma tiragem para o público em geral. Fiquem sabendo que conseguiu ainda uma tiragem... ora deixem-me ver... uma tiragem de cerca de quarenta mil exemplares por semana. Recebia cartas de leitores da Califórnia e do Vermont e até mesmo da Itália e do Japão. Foi um êxito seria ainda mais importante se Nathan tivesse tempo e resistência física para desempenhar o papel de Jesus como editor, continuando ao mesmo tempo cumprindo seus deveres para com a congregação da sua igreja como delegado de Cristo na Terra.

            Detiveram-se numa esquina.

            -Vou separar-me de vocês aqui-disse Ed Ponto Johnson.

            E depois voltado para Randall:

            - Steve, seja como for, sempre que penso nas coisas dedicadas que teu pai fez durante a vida, não posso deixar de me lembrar do “Boas Novas na Terra”, nem do êxito que teve. Sei que teria sucesso em qualquer atividade que resolvesse desempenhar. Mas, a notícia mais estupenda é que, graças a Deus, poderemos ainda tê-lo junto de nós por mais algum tempo. E todos nós, toda a gente de Oak City, com certeza beneficiará com isso.

            Apertou a mão de Randall.

            -Steve, foi agradável ter-te outra vez por estes locals. Vemo-nos logo no hospital. Até logo, Tom.

            E afastou-se no seu passo saltitante, percorrendo a rua até ao edifício de tijolos vermelhos em que o seu jornal estava instalado. Randall e Carey seguiram-no com os olhos durante alguns momentos, depois atravessaram para o outro passeio e continuaram caminhando até o centro comercial da cidadezinha onde ficava o Oak City Hotel.

            Depois de um breve silêncio meditativo, Tom Carey voltou-se para Randall.

            - Steve, foi uma belíssima história a que Ed Ponto contou de teu pai.

            - Um acervo de disparates - disse Randall sem qualquer traço de animosidade na voz.

            - Disparates? - repetiu Tom Carey desconcertado. - Isso significa que o Ed Ponto inventou tudo aquilo a respeito de teu pai e do “Boas Novas na Terra”?

            -Não, não inventou -respondeu pacientemente Randall.- É verdade que meu pai publicou esse estúpido semanário, mas a última parte sobre o êxito alcançado é que não passa de balela. Sim, é certo que a tiragem atingiu os quarenta mil exemplares... mas eram gratuitos... o meu pai mandava distribuí-los graciosamente. Não estarei muito longe da verdade se disser que talvez, nem uma centena de pessoas pagou os exemplares não gratuitos desse semanário ridículo. Além disso não houve um só comerciante que se atreveu anunciar naquela xaropada. Para mais, os poucos que quiseram fazê-lo por solidariedade meu pai não aceitou, que os demoveu invocando, que também Cristo não aceitaria tais anúncios. Tal como agora acontece, ninguém se mostrava disposto lendo notícias que só falassem no bem, dado que o mundo real não corresponde a essa idéia. O jornaleco do pai estava repleto de gente que amava o próximo, de pessoas preocupadas pela prática de caridade, de indivíduos cujas orações eram sempre ouvidas e atendidas. Causava náuseas. Diabos me levem, o próprio Cristo não editaria um jornal assim na Galiléia! Nem Ele nem os seus discípulos, nem os autores dos evangelhos publicariam semelhante marmelada. Também esses antigos escritores judeus e cristãos mencionavam mulheres adúlteras, violência nos tempos, flagelações, crucificações, trabalhos, descreviam a vida, ambas as facetas dela, não apenas o lado bom.

            “Boas Novas na Terra” só representava notícias más em casa de cada um. Afundou-se ao quinto ou sexto número e não porque o meu pai não dispusesse de tempo, como romantizou o Ed Ponto, mas, porque estava levando a família à mais abominável ruína. Na verdade o meu pai empenhou no projeto todas as economias familiares.

            Carey mostrou um semblante de preocupação.

            -O dinheiro era... bem... era dele?

            Randall respondeu firmemente.

            - Não. Era meu.

            - Estou compreendendo.

            Randall olhou para o amigo.

            - Não me julgues erradamente, Tom. Não estou lamentando pelo fato. O caso é que cheguei já a um período da minha vida em que estou farto e cansado de ouvir contar histórias falseadas, que acabam por passar, com o correr do tempo, por verídicas. Estou cansado de aldrabas, de meias-verdades, de exageros. Com os diabos, foi essa a minha profissão durante pelo menos metade dos anos que tenho. Presentemente, tal como um proxeneta reformado convertido ao puritanismo, começo cada vez mais a interessar-me pela veracidade dos fatos, pela verdade pura. Detesto as balelas, as atordoadas palavras vazias de sentido. Puros sons que nada dizem. Estou tentando mudar de rumo na vida.

            - Não estarás por acaso a julgar-te com demasiada severidade?

            - Não. Tal como não estava também sendo demasiado severo a respeito de meu pai. Acredita que o respeito sinceramente. Conheço o que há nele de bom tão bem como tu. Sei perfeitamente que naquele homem não existe a mais ligeira parcela de vileza. É um ser humano perfeitamente honesto e decente, qualquer coisa que eu nunca fui capaz de ser. Mas, também não me esqueço que meu pai foi e continua sendo tudo o que há de mais oposto ao lado prático da vida. Vive num estado especial chamado Euforia... responsável tão somente perante um gigantesco -desculpa Tom -saco de vento que mora lá no alto do céu e negligenciando parte das suas responsabilidades para com os filhos que estão aqui embaixo, de pés bem assentados na terra.

            Carey sorriu.

            - Desculpo-te, mas...

            -Não prossigas. Não venhas com essa de que o reverendo Nathan Randall tem algo que nós não temos... que é detentor do segredo que leva à felicidade, à paz... enquanto nós outros não passamos de uns miseráveis. Bom, de certa maneira talvez isso seja verdade. Ele foi sempre um dos contentes na Terra, ao passo que o filho, por exemplo, nunca possuiu nem sombra de contentamento. Mas porquê? Porque o pai tem tido fé, inabalável confiança e crença... mas em quê?... num Autor Divino invisível de Boas Novas, um fabricante de Perdão e de Fins Felizes? Não sei jogar esse jogo de auto-ilusão. De maneira figurada, fui positivamente agarrado à força pelo pescoço, como se faz aos gatos, quando era pequeno pelas idéias de H. L. Mencken, esse escarnecedor de todos os mitos - e injetado com a versão abreviada do Decálogo feita por Mencken: «Creio que é melhor dizer a verdade do que mentir. Creio que é melhor ser livre do que escravo. Creio que é melhor aprender do que ser ignorante». Desde então passei a crer em tudo o que os meus olhos vêem ou naquilo que os outros conseguem provar-me que viram. Sim, é nisso que posso crer. Tem sido o meu credo e, Tom, vou dizer uma coisa aqui para nós, o caso já cheira mal, mas o fato é que cheguei neste ponto, não posso modificar a minha atitude. Já faz parte de mim. E, vou-te dizer outra coisa - não me importo nada de te dizer - invejo o meu pai, Fé cega, é um jogo muito melhor.

            Voltou-se para observar a reação de Carey, mas ele olhava direto para a frente, e as suas sobrancelhas estavam franzidas num ar pensativo, enquanto continuavam a caminhar.

            Randall pensou no que se passava no espírito do amigo. Embora seguindo rumos diferentes em todos aqueles anos passados desde a escola e de pouco terem já em comum, a afeição de Randall por Tom Carey jamais havia esmorecido. Haviam jogado na mesma equipe do liceu e partilhado o mesmo quarto no complexo universitário. Depois do curso concluído, Randall deslocara-se para Nova York e Tom Carey ouvira o apelo da religião e ingressara no Seminário Teológico Fuller, da Califórnia. Após três anos de curso na faculdade de Teologia, Tom Carey obtivera o grau de Bacharel em Teologia. Depois, com os estudos para o doutorado à sua frente, casara-se com uma linda morena de Oak City que Randall namorara na Universidade de Wísconsin e acabara aceitando o lugar de pastor de uma igrejinha no estado de Illinois.

            Como se deslocava com freqüência a Oak City para visitar a mãe, uma viúva, Carey mantivera os velhos laços de amizade que o ligavam à família Randall, especialmente ao pai de Steve, a quem admirava muito. Passara-se o tempo e, três anos antes, em virtude de aumentarem as exigências da próspera igreja e da congregação do Reverendo Randall, na medida em que as suas forças decresciam, Dr. Randall acabara por chamar para junto de si o jovem Carey, oferecendo-lhe um lugar de pastor adjunto, com um salário muito superior àquele que percebia em Illinois. Carey estava encarregado de realizar algumas das tarefas mais rotineiras e cansativas do sacerdote titular, procurando simultaneamente o desenvolvimento e expansão das obras sociais de assistência da Primeira Igreja Metodista junto aos desprotegidos da fortuna. Para além disso, fora-lhe prometido o lugar do velho sacerdote logo que este se aposentasse.

            Tom Carey aceitara a proposta sem olhar para trás, regressando à terra natal com a esposa e seis filhos. Parecia que chegara agora o momento de suceder ao reverendo Nathan Randall e Carey parecia possivelmente um homem demasiado novo para o cargo de ministro de Deus junto dos fiéis.

            Tom Carey tinha uma compleição de aspecto franzino, mas não obstante atlético, usando o forte cabelo cortado muito curto. O nariz era um tanto ou quanto largo de narinas abertas, um pouco simiesco, e a sua cor apresentava uma palidez peculiar. À parte tudo isso, era uma espécie de paradigma ambulatório para os jovens escoteiros americanos. Um homem, leal, sério, honesto, erudito, inteligente, socialmente cônscio dos seus deveres. Não falava com Deus a seu lado - com o Reverendo Dr. Randall a seu lado talvez, seguindo-lhe o exemplo, mas não com Deus. Desdenhava invocar as penas do fogo infernal e servir-se do enxofre. Era um homem comedido e atento.

            Tom Carey fez ouvir de novo a sua voz, mas num tom calmo, quase hesitante.

            -Mencionaste a fé cega do teu pai, Steve, a sua inabalável fé e o modo como o invejas. Estava precisamente pensando no caso... Pensando com meus botões se devia discutir o caso contigo. - Umedeceu os lábios com a ponta da língua. - Disseste que acabaste por enveredar pelo caminho da verdade dos fatos, da verdade nua e crua. Daí... que talvez não te importes de ouvir a verdade...

            Randall abrandou o passo e perguntou:

            -A verdade? A respeito de quê, Tom?

            - Da fé cega de teu pai. Sabes muito bem como o tenho acompanhado de muito perto nestes últimos anos. Pois bem, para ser honesto, detectei uma transformação gradual no modo dele ver as coisas. Da última vez que estiveste em Oak City talvez não tenhas notado, mas de resto a mutação ainda estava também no início. Teu pai nunca perdeu seu potencial de fé, nem pensar nisso, mas eu diria que nestes últimos tempos, é possível que os acontecimentos mundiais e o comportamento dos homens acentuaram a tendência para produzir algum abalo nessa sua fé... aliás uma coisa mínima.

            Aquela seria a última coisa que Randall esperaria ouvir e não pôde esconder seu espanto.

            - Mas um abalo na sua fé em quê? Não se trata com certeza da sua fé em Deus e no Filho de Deus! Portanto um declínio da sua fé em quê?

            - É difícil ser mais explícito. Eu diria... não precisamente uma perda de fé em Nosso Senhor... mas sim na verdade literal dos cânones do Novo Testamento, no dogma da Igreja, no aspecto relevante do ministério de Cristo na Terra, relativamente, aos problemas do mundo de hoje, na possibilidade de aplicar os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo nesta época dominada pela ciência e de vertiginosas transformações.

            -Tom, tu estás dizendo que meu pai perdeu a fé no Verbo, não é isso? Ou pelo menos parte da sua fé?

            -É uma suspeita que se radicou em mim recentemente.

            Randall sentiu-se angustiado.

            -Se for verdade, é terrível... tremendo. Significará que ele sabe perfeitamente que a sua vida nada vale, pouco mais é do que um montão de cinzas frias.

            - Steve, é possível que ainda não chegou nesse ponto. Talvez, nem compreenda profunda e intimamente a inquietação que o perturba. Vou tentar simplificar: servindo-se da sabedoria tradicional, o teu pai estava resolvendo a infinidade de novos problemas do homem do século XX neste microcosmos desta nossa sociedade. E não só o método deixara de funcionar plenamente, como cada vez mais pessoas voltavam as costas à mensagem. Penso que nestes últimos anos começou sentir-se frustrado, confuso, parcialmente vencido até na sua boa luta e, finalmente, bastante desencorajado e impaciente. Penso igualmente que o Dr. Oppenheimer, por muito árido e privado de imaginação que por vezes aparenta, já percebeu de alguma coisa. Ontem ao meio-dia, depois de teu pai ter o colapso e ser internado no hospital, o Dr. Oppenheimer tomava uma xícara de café, num momento de descanso, e eu fui até ele. Estávamos somente os dois. Lancei-me em pensamentos tentando determinar se o colapso de teu pai não foi devido a uma sobrecarga de trabalho. Ora o médico olhou para mim e disse: «Os acidentes cerebrais deste tipo não são produzidos por excesso de trabalho, advêm da frustração.» Necessitarei de dizer mais?

            Randall abanou a cabeça negativamente.

            - Não, isso diz muito. O que mais me preocupa agora é que ele sem... essa muleta inquebrável, garantida por toda a vida... sem essa fé cega...   Sim, como é que poderá agora recompor-se?

            -É possível que a recuperação fortaleça sua fé. Volto a repetir: os fundamentos da sua fé continuam dentro dele, fortes. Acontece apenas que agora existem algumas brechas nas velhas e sólidas muralhas, brechas superficiais que poderão ser rapidamente fechadas.

            Ao longe descortinavam-se já os contornos do Hotel Ritz de Oak City. Randall tirou do bolso o cachimbo que encheu.

            -E quanto a ti, Tom? Existem algumas brechas visíveis?

            - Na minha fé no Supremo Ser, não. Nem na fé no Seu Filho amado. Algo muito diferente. - Passou a mão pelo queixo, e escolhendo cuidadosamente as suas palavras, prosseguiu: -O que... bem... aquilo que me perturba são os representantes, os mensageiros do Salvador. Eles compram e vendem o que representa o materialismo no seu todo. Como é que se pode estabelecer na terra o reino dos céus quando os que possuem a chave do reino idolatram a riqueza, o êxito, o poder?            O que também é desolador, os nossos eclesiásticos falharam redondamente na interpretação, na modernização, na utilização pura e simples de uma fé nascida em tempos recuados. Têm uma percepção deficiente, quase nula, da evolução social, de um mundo de comunicações instantâneas, de um mundo inquieto com a perspectiva da bomba de hidrogênio, de um mundo que está enviando homens para o espaço. Neste novo mundo em que o Cosmos se converte num fenômeno e num fato visto pela televisão, em que a morte se transforma numa certeza biológica, parece-me difícil que uma criatura consiga manter a fé num céu amorfo.   Muitíssimos adultos sendo educados dentro dessa realidade e para ela. E tu representas até o que há de incongruente, que um indivíduo aceite já uma fé cega, que exige a crença no Messias e nos milagres. A maioria dos jovens de hoje são demasiado céticos e independentes para encarar com respeito uma religião mítica, antiquada, narcotizante. Aqueles entre esses jovens que sentem o apelo pelo sobrenatural voltam-se com muito mais boa vontade para o encanto que a astrologia representa, para a feitiçaria como uma fonte primitiva de interesse ou absorvem-se nos meandros mais excitantes das filosofias orientais. Quanto aos idealistas e sonhadores encontram narcóticos mais poderosos nos entorpecentes, rejeitando o materialismo das comunidades urbanas em favor da comuna pura e simples.

            -Mas, Tom, em anos recentes houve um dramático renascer de interesse pela religião no seio da juventude. Milhares de seguidores de Jesus, fenômenos de Jesus, voltando para a velha e familiar figura paternalista, têm voltado para suas idéias a respeito do amor e da fraternidade universal. Eu tenho-os visto, observado todas as óperas rock, todas as comédias musicais, tenho ouvido todos os discos, lido livros, jornais, cartazes, anúncios em que Cristo é celebrado até à loucura e saciedade. Não te parece que tal espetáculo promete?

            Carey esboçou um sorriso constrangido.

            - Em parte... em parte... numa pequena parte. Sabes, não acredito muito nesse renascimento. Julgo que é como se a juventude - parte dela - andasse entusiasmada com a descoberta de um novo caminho, mas, receio bem, de um caminho demasiado curto. Sim, porque é um caminho retrógrado e porque procura a paz numa antigüidade nostálgica. Em vez disso, deviam compreender que essa antigüidade deve ser remodelada, modernizada e transportada para o presente. Não, o caminho deles nada tem vendo com uma fé a longo prazo. O Cristo deles é um... Beatle, um... Che Guevara, e, além do mais, usa chapéu alto. Não, Steve, precisamos de um Cristo mais durável e de uma Igreja melhor. Qualquer renovação teria um poder estável e em aumento, prosperar e ser significativa, mas só em ligação com a Igreja estabelecida.

            -E porque não? -perguntou Randall.

            - Porque a Igreja estabelecida não tem relações com tais pessoas, ou melhor, com a maioria das pessoas do nosso tempo. A Igreja está pura e simplesmente ficando para trás, perdendo a confiança dos homens e nos homens. A rigidez da Igreja cristã, a sua lentidão em reconhecer e acompanhar os mais imediatos problemas terrenos também a mim me desanima profundamente. Confesso o meu pecado. Surpreendo-me a mim mesmo duvidando daquilo que estou vendendo.

            -E julgas que poderá haver alguma espécie de esperança, seja ela qual for, Tom?

            -Um ligeiro vislumbre de esperança. Mas, pode ser muito tarde. Penso que a sobrevivência do Cristianismo organizado reside na expansão mundial da reforma ou no chamado movimento clandestino da Igreja em todo o mundo. O futuro da religião ortodoxa, talvez, dependa da ascensão ao poder de um eclesiástico como o reverendo Maertin de Vroome-um protestante revolucionário de Amsterdã...

            - Sim, já ouvir falar nele.

            - Um ministro como de Vroome não está agrilhoado ao passado. Crê que o Verbo, a Palavra deve ser relida, revista, rejuvenescida e divulgada de novo. Crê que devemos acabar com o fato de continuarmos dando ênfase à idéia de que Cristo foi outrora não somente uma realidade, mas também o Filho de Deus, o Messias. Pensa que esse Jesus, além das superstições a respeito dos milagres e Ascensão, os acontecimentos depois da Ressurreição, destrói a eficácia do Novo Testamento e limita a Igreja na sua atividade. De Vroome insiste que a única coisa deveras importante nos Evangelhos é a básica sabedoria de Cristo. Filho de Deus ou do Homem, ou simplesmente mito, isso não interessa, o que conta é a mensagem que deixou ou que Lhe é atribuída e que deve ser arrancada do pó do século I da nossa era, revitalizada e aplicada na prática ao século XX, em termos perfeitamente adaptados ao século XX.

            -E como será possível fazer-se isso?-perguntou Randall.

            -Não tenho bem certeza - admitiu Carey com simplicidade. - Mas de Vroome acha que é possível chegar-se a tal resultado. Parece-me que vem seguindo o caminho de Dietrich Bonhoeffer, o qual, não obstante ser conservador, pretendeu colocar a Igreja no mundo das realidades, tentando dar-lhe um programa de ação humanística e desenvolvimento social. De Vroome diz que a Palavra, em tempos modernos, na linguagem e realização modernas deve ser levada ao mundo dos «guetos» e dos palácios, levada às Nações Unidas, até aos complexos nucleares, até às prisões; tem de ser descentralizada da hierarquia de todas as igrejas Cristãs, descer até aos púlpitos da terra até às congregações das massas de milhões de pessoas. Uma vez isso feito, o Verbo funcionará, viverão a religião e a fé e a civilização sobreviverá. Sem essa revolução eclesiástica, de Vroome antevê a morte da religião, da fé e, finalmente, da humanidade. Pode ser que tenha razão. Mas ele representa apenas uma minoria e pequena, ao passo que a Instituição - o Conselho Mundial das Igrejas de Genebra e a Igreja Católica representada pelo Vaticano -resiste a todas as modificações drásticas, tentando impedir ele e outros rebeldes de levarem a sua avante e continuando a manter o status quo. Os homens da Igreja sentem-se mais seguros no século I. Mas, os fiéis não. Eis onde se encontra o busílis. Eis a razão porque o teu pai observou cada vez mais lugares vagos nas igrejas, tal como observo agora. Numa década as coisas poderão precipitar-se e subverter-nos e qualquer dia talvez me encontre pregando com a igreja vazia.

            - Tom... nada há que possas fazer?

            - Dentro do sistema, provavelmente não. Fora do sistema, talvez... mas eu também estou demasiado... demasiado condicionado pelos velhos processos e sou demasiado tímido para me tornar um radical. Para mim, para muita gente, que pensa que a religião estagnou e está bolorenta, só existe uma possibilidade, e eu mantenho-me pensando nela. Mantenho-me pensando abandonar a Igreja. Por vezes julgo que seria muito mais útil se desistisse do púlpito e se dedicasse antes ao ensino secular ou a obras e reforma social. Sinto que poderia realmente identificar-me com as necessidades humanas, tal como elas são, e podia eventualmente até tropeçar com quaisquer soluções humanas de momento. Não sei. Não sei na verdade que fazer.

            Comovido, Randall disse:

            -Tom, espero que não desistas, pelo menos por enquanto. Egoisticamente, receio que isso servisse para despedaçar o coração de meu pai.

            Carey encolheu os ombros desalentado.

            - Steve, poderá alguém despedaçar um coração que provavelmente já está despedaçado? Não ligues no que digo. Se chegasse a admitir seriamente a possibilidade de me retirar, só o faria depois de saber que o teu pai estava em perfeitas condições de suportar o golpe.

            Detiveram-se num cruzamento de ruas. Carey continuou falando:

            - Se a Igreja não se pode reformar, então haverá apenas uma coisa que a poderá salvar: um milagre. Tal como os judeus, ao tempo do nascimento de Cristo, aguardavam um Messias para os salvar da opressão e domínio dos romanos, e ignoraram um Cristo que falhou em salvá-los para vir meramente morrer numa cruz, até mesmo incapaz de salvar a Si próprio, também nós precisamos de um autêntico Messias. Se um Cristo, ou o Cristo, pudesse aparecer de novo e reiterar a Sua mensagem -uma mensagem que não foi ouvida quando a apresentou pela primeira vez na Judéia...

            -A que mensagem te referes, Tom?

            -Tende fé. Sede misericordiosos. Dois conceitos novos no primeiro século da nossa era e que deviam ser renovados no vigésimo século. Se Cristo regressasse à terra com essa mensagem... bem, acho que os governos e as pessoas olhariam uns para os outros e desatariam a fazer algo de positivo e significativo a respeito da escravidão, pobreza, miséria, materialismo, injustiça, tirania e papão nuclear. A Segunda Vinda, ou algum sinal dela, poderia restaurar a esperança e salvar o mundo. Mas, como já disse, o caso seria um milagre. E quem é que acredita em milagres na era da ciência computadorizada, da televisão, dos foguetes para a Lua?... Eis o teu hotel, Steve. Desculpa ter abusado dos teus ouvidos para isto. Obrigado por me teres escutado. Para mim foi uma terapêutica, e tu és um dos poucos agnósticos em que sou capaz de confiar. Até logo à noite.

            Tom Carey desaparecera e com ele fora-se a exuberância de Randall quanto à sobrevivência do pai. Sentiu-se desamparado, mais ainda ao lembrar-se do almoço que combinara com a filha. Judy era outra das pessoas perdidas, sem fé, com pesadelos em vez de sonhos e que, provavelmente, precisaria de mais do que um simples pai para a salvar. Também a sua filha Judy necessitava de um milagre. Mas quem é que poderia fazer um milagre numa tal era de pressas?

 

            Estavam há mais de meia hora no café semi-vazio existente embaixo do Hotel Ritz de Oak City.

            Logo que chegara ao hotel, Randall telefonara para os aposentos de Bárbara e fora Judy quem respondera dizendo que estava preparada para o almoço. Esperara por ela no café e ela desculpara-se do atraso, mas andara à procura de um restaurante vegetariano que servisse alimentos não adulterados. Amigos dela haviam-na arrastado para esse tipo de comida e ela gostara: germe de trigo, soja, pudins de alfafa, legumes, mel... Tal como já esperava, em Oak City não encontrara nenhum restaurante com esse tipo de comidas saudáveis, porém, achava que algumas refeições de alimentos contaminados não a iriam destruir.

            Entretanto, Randall acabara de comer o seu prego e entretinha-se vendo a filha mastigando o último pedaço de sanduíche de ovo e alface, acompanhada por limonada. Aos olhos dele, Judy era uma perfeita beleza. A sua pele não tinha uma mancha e os olhos radiantes dela, o pequeno nariz arrebitado, os lábios carnudos faziam com que parecesse uma criatura absolutamente virginal, isenta de maculados contatos com a vida. No entanto, a sua compleição física bem moldada e cheia de maturidade, metida dentro de uma blusa muito cingida ao busto e de calças de zuarte muito apertadas, contradiziam a impressão inicial da adolescência imaculada. Impossível acreditar que aquele ser jovem, aquela moça de quinze anos, aquela pura natureza de criança que se recusava corromper seu corpo com comidas envenenadas por aditivos ou conservantes, emulsionadores ou pesticidas, alimentasse o corpo e o cérebro por via hipodérmica intravenosa com uma droga violenta e perversa. Pretendia discutir o caso com ela.

            Na meia hora decorrida após o encontro, em que retribuíra, apressadamente, o abraço do pai, mas, não lhe retribuíra o beijo; Judy estava, curiosamente, distraída, nervosa, distante. A conversa entre os dois carecera de continuidade. Ela tagarelara a respeito dos purificadores efeitos dos alimentos orgânicos e daí passara para a sua descoberta das obras de Alan Watts; a seguir, certamente, para ser agradável, contara como apreciava o seu excêntrico professor de francês do novo colégio.

            A certa altura, esgotada aquela conversa sem possibilidades de comunicação, Judy perguntara-lhe como andava em seu trabalho. Sabendo que a filha não estava, realmente, interessada no caso, pouco lhe contara do seu ofício, descrevendo, principalmente, um grupo de rock-The Spare Tires – o qual sua agência fazia publicidade e promoção. Tivera na pontinha da língua contar-lhe seu encontro com Jim McLoughlin e o trabalho efetuado pelo Instituto Raker, porque sentira que o caso a intrigaria e lhe daria, como pai, mais mérito aos olhos da filha, todavia, no último instante resolveu calar-se. Calara-se sobre o assunto, porque lembrou de repente, que estava prestes a rejeitar o trabalho de McLoughlin e a obra a favor do Instituto Raker, sem que tivesse qualquer maneira de justificar essa rejeição a Judy.

            Judy afastou o prato e limpou os lábios no guardanapo de papel.

            -E agora, que espécie de sobremesa? - perguntou com um entusiasmo fingido.

            -Bem que gostaria -respondeu Judy-, entretanto, comendo desta maneira nunca mais caberia nas calças novas que comprei. Porém, se quiser posso comer mousse de chocolate.

            Tentou lembrar se era mousse de chocolate, que aos domingos de manhã costumava comer com Judy, no café, quando ela tinha uns nove ou dez anos. Todavia, por mais esforços que fizesse não conseguiu lembrar.

            Ela remexia sua bolsa. Ao ouvir as palavras do pai levantou a cabeça circunspecta.

            -Estava pensando, precisamente nisso - disse, inclinando-se para o balcão a fim de encomendar a sobremesa à garçonete. Sentou-se bem em frente da filha e pensou que chegara o

momento capital. Desejava aquele almoço a sós não apenas para vê-la, mas, também para sondar os sentimentos dela a respeito da decisão da mãe em divorciar-se dele, para casar novamente. Era difícil falar agora no assunto, os riscos que correria seriam grandes, porém, se evitasse tal conversa, talvez, não teria outra oportunidade. Tinha que encontrar uma maneira. E depois havia também aquela inacreditável coisa da droga. Também isso.

            Ainda não decorrera uma hora do momento em que dissera a Tom Carey que cada vez se manifestava mais interessado na verdade. De modo que tinha que saber a verdade, embora o preço pudesse ser elevado.

            -Judy, creio que ainda não conversamos a respeito do teu novo colégio, e...

            Ele remexia na bolsa. Ao ouvir as palavras do pai levantou a cabeça circunspecta.

            Randall prosseguiu.

            -...e desejava saber o que aconteceu lá. Ouvi dizer que te expulsaram por causa de narcóticos.

            -Sabia que a mãe lhe iria encher os ouvidos. Se houvesse nas redondezas um Muro das Lamentações, a mãe encostaria nele para vomitar tudo também.

            -Bem, queres falar a respeito do caso?

            -O que é que há para dizer? Aconteceu que fui caçada. A maior parte deles nunca são caçados. Os barrigas de bicho do conselho escolar tiveram medo que eu contaminasse os outros... que piada... eu corrompendo-os... Nove décimos deles estão nas últimas, completamente viciados. Aí, então, o conselho escolar disse-me para sair do colégio, mesmo sendo a melhor aluna da minha turma.

            Randall esforçou-se por eliminar da voz a típica entoação do pai severo, sempre pronto   a censurar.

            -Mas porque é que te envolveste em entorpecentes perigosos, Judy? Era uma coisa     assim tão importante?

            - Não foi nada assim muito importante. Talvez, uma experiência acidental. Uma experiência puramente pessoal, nada mais. Tive curiosidade de experimentar as minhas faculdades perceptíveis. Compreende?... Iluminar o espírito. Alguns dos outros não conseguem manejar a coisa. Senti que podia. Teria dado um pontapé naquilo se não fosse todo aquele alarido e a droga forte.

            Randall hesitou. O terreno tornava-se cada vez mais escorregadio e perigoso. Todavia, decidiu continuar.

            - E que me dizes desse Dr. Burke com quem te tratas? Como vai isso?

            Pôde quase ver as defesas dela erguerem-se.

            -Não sei que dizer, exceto que é um tipo fixo. É suficiente?

            -Não. Nada me diz se conseguiste melhoras com o seu tratamento.

            - Se é à droga que se refere, a mãe diria que ele me reduziu a velocidade para os cinqüenta quilômetros por hora. - Fitou o pai por um momento e perdeu todo o ar petulante. -Se quer saber em que condições estou... pois posso dizer-lhe que estou limpa.

            - Agrada-me ouvir isso.

            Finalmente a empregada trouxe os mousses de chocolate. Judy provou a sobremesa e com um ar aparentemente despreocupado, declarou que estava deliciosa.

            Randall não desistiu do assunto.

            -Ouve, esse Dr. Burke... Bem, gostas dele como pessoa? - perguntou o mais inócuo que lhe foi possível.

            Os olhos de Judy pareceram iluminar-se.

            - Do velho Arthur? Oh, é uma tara. Isto é, aquela barba que ele usa é o suficiente para dar fim de uma pessoa. Não compreendo metade das coisas que ele diz, mas posso garantir que sempre tenta. É um tipo direito.

            Randall sentiu-se magoado, traído.

            -Já sabes que a tua mãe quer casar com ele?

            -Será a melhor coisa para ela. Julgo que ele passa metade do tempo montado nela. -De repente levantou os olhos da taça de mousse, viu a expressão do pai e procurou emendar: -Eu não queria... Lamento se o pai...

            - Não tem importância - disse ele seco. - Acontece, só que não estava acostumado ouvir da tua boca essa espécie de linguagem.

            - Bem... lamento muito... desculpe-me. Eu... eu sei que eles querem casar.

Ainda não estava tudo esclarecido. Subsistia a principal interrogação.

            -Sobretudo, o que me interessa é o que tu pensas a respeito do caso. Como é que te sentes por tua mãe querer casar com esse Dr. Burke?

            -Pelo menos a mãe deixaria de andar sempre atrás de mim.

            - E isso é tudo o que tu sentes, Judy?

            Ela mostrou uma expressão intrigada.

            -Que mais queria que eu dissesse?

            Ele sabia que a pergunta era fútil. O grande perigo desaparecera.

            - Judy, que pensarias tu se eu colocasse obstáculo ao casamento da tua mãe com Burke?

            A sobrancelha dela ergueu-se.

            - Ora... é uma pergunta um tanto quanto... isto é, qual deverá ser minha resposta? Ou por outra, porque é que o pai havia de opor-se? O pai e a mãe estão separados há dez milhões de anos. Não sabia que, assim ou assado, se preocupasse mais com ela.

            -Mesmo não me preocupando com ela, Judy, preocupo-me contigo. És tu a minha principal preocupação em tudo que aconteça.

            -Eu... - era incapaz de encontrar palavras, e parecia ao mesmo tempo perturbada e satisfeita.

            - Sinto-me muito contente.

            - Falas como se não soubesses aquilo que significas para mim.

            -Julgo que sei, mas... como... dizer mal vejo o pai, e é como se... o pai estivesse muito longe... e conheci muitas pessoas.

            Randall fez um gesto de assentimento com a cabeça.

            - Compreendo, Judy. Queria apenas que soubesses aquilo que sinto. O problema que a tua mãe e eu temos é o nosso problema, não o teu, e nós resolveremos. Acredita que só tenho uma aspiração... ver-te feliz.

            - Serei feliz - disse ela rapidamente, ao mesmo tempo que agarrava a bolsa. - Agora tenho que ir embora. Obrigada pelo almoço e...

            -Porquê essa pressa toda?

            - A mãe fazem as malas. Agora que o avô está melhor, ela quer que voltemos para São Francisco. Conseguimos um avião que parte de Chicago daqui a poucas horas. Ela não quer que eu esteja muito tempo afastada do Arthur... isto é... do médico - psiquiatra.

            -Tem razão.

            Judy levantou-se.

            - Bem... adeus - disse ela desajeitada -, e... sim... mais uma vez obrigada pelo almoço... e sinto-me contente do avô estar melhor.

            Incapaz de falar, Randall olhou para a filha. Abstrato, estendendo a mão para a conta, limitou-se dizendo:

            -Sim, adeus, Judy.

            Nada mais sucedeu. Judy afastou-se em direção da porta, enquanto Randall, como que num súbito estado de torpor, contava distraído o troco. De repente, viu, olhando de lado, a filha parar, voltar-se, e correr para ele velozmente.

            Judy inclinou-se, enquanto ele erguia a cabeça confuso.

            - Haja o que houver, pai, - disse ela com voz quase sumida, - será sempre o meu pai. -             Inclinou-se mais, com o longo e sedoso cabelo a roçar-lhe pela cara, e deu-lhe um beijo

no rosto.

            A mão de Randall elevou-se para lhe fazer uma festa, sentindo-se comovido.

            -Haja o que houver, querida, -murmurou, - serás sempre minha pequena. Amo-te.

            Ela endireitou-se, com os olhos úmidos de lágrimas.

            -Também eu te amo, pai. Sempre te amei.

            Caminhou alguns passos recuando, depois voltou-se e correu para a saída, desaparecendo.

            Randall ainda ficou sentado durante mais uns cinco minutos. Finalmente, acendendo o cachimbo, saiu lentamente do café e subiu as escadas para a sala de espera do hotel. Não sabia bem se queria regressar ao seu quarto ou se queria ir dar mais uma volta. Nessa altura ouviu que pronunciavam o seu nome.

            Encaminhou-se para o balcão da recepção.

            -Senhor Randall - chamou de novo o recepcionista, mantendo na mão o telefone. -Estava quase mandando alguém procurá-lo Uma senhora chamada Wanda Smith, do seu escritório de Nova York, pretende falar-lhe. Diz que tem urgência. Use a cabine privativa no extremo da sala de espera, se desejar. Mandarei a telefonista transferir para lá a chamada.

            Randall estava dentro da cabine, à espera, e ao ouvir a voz da secretária, perguntou:

            -De que se trata, Wanda? Disseram-me que queria falar com urgência.

            -Exatamente. Fizeram uma chamada urgente pra cá... mas, antes de mais nada toda a gente do escritório está ansiosa por saber como está o seu pai.

            Randall adorava aquela moça negra que há cerca de três anos era sua devotada secretária e confidente. Quando a admitira como empregada, Wanda empenhava-se num curso de dicção desejando ser uma artista de teatro; perdendo assim, seu arrastado e cantante sotaque sulista, substituindo-o pela entoação teatral, mas, gostava tanto do seu trabalho na firma Randall Associates que desistira do palco. Afinal, nunca perdera de todo aquele simpático sotaque do sul, que na sua voz era simplesmente encantador. Do mesmo modo, nunca perdera os seus hábitos de independência. Tal fato era, às vezes, exasperante, tal como acontecia naquele momento pelo telefone. Primeiro tinha que saber tudo a respeito de seu pai e de si próprio, antes de tratar dos assuntos profissionais. Conhecia-a muito bem e sabia que não podia levá-la por outro caminho, nem modificar-lhe o feitio. Todavia, sabia também que não desejava que ela fosse diferente.

Assim, relatou-lhe minuciosamente suas visitas ao hospital na noite anterior e nessa manhã.

            Nesse momento, com muitos minutos já passados, ainda encerrado na cabine estreita, acabava de colocar as novidades em dia.

            -E é tudo, Wanda. A não ser que aconteça qualquer imprevisto, o pai superou a crise. Há-de recuperar, mas não sei até onde.

            - Sinto-me feliz por isso. Quer que eu dê essas notícias a mais alguém?

            - Penso que é melhor, ainda não tive tempo de telefonar pra ninguém. Faça uma ligação para o apartamento da Darlene e conte-lhe. Conte também... -Tentou coordenar idéias: havia o Joe Hawkins, o seu assistente, e Thad Crawford, o seu feiticeiro em matéria de Direito. Eles gostariam de saber. -... penso que deve informar o Joe e o Thad. Ah, é verdade, diga ao Thad que tratarei do caso de Towery e das Cosmos logo que retorne. Diga-lhe que volto daqui dois ou três dias. Depois mando avisar.

            - Não me esquecerei de transmitir o seu recado... Com exceção de que espero que volte para Nova York amanhã. Foi por isso que fiz esta chamada.

            Pensou que Wanda estava, finalmente, pronta pra falar de negócios.

            -Amanhã? Está bem, boneca, despeje o saco.

            -Recebi duas mensagens urgentes. Pelo menos as pessoas interessadas que me entregaram essas mensagens consideraram-nas urgentes. De forma nenhuma o sobrecarregaria com tais coisas se seu pai ainda estivesse num estado de saúde crítico. Agora que sei que está melhor repasso-as.

            -Estou à espera, Wanda.

            -Uma delas é mais uma vez de George L. Wheeler. - lembra-se dele? - o editor de livros religiosos de quem lhe falei ontem quando o senhor estava no aeroporto. Quando eu disse a Wheeler que tentava contatar consigo, ele insistiu que o fizesse imediatamente. Boss, teve tempo de pensar no caso?

            -Para ser franco, não.

            - Bem, se dispuser de tempo, talvez valha a pensando. As credenciais dele são das melhores. Já procedi algumas averiguações por sua conta. Repare bem. Dun and Bradstreet, Who's Who in America, Publishers' Weekly. A Editora Missão é número um no setor de publicação da Bíblia. Bem à frente de Zondervan, World, Harper e Row, Oxford, Cambridge, Regnery e todo o resto. Wheeler tem tudo bem fechado nas mãos, cofre, ações e Bíblia. Patrocinou a viagem do Reverendo Zachery à Austrália, e foi recentemente recebido na Casa Branca a fim de lhe darem uma espécie de galardão referente a não sei quê. É casado há trinta anos com uma dessas aristocratas de Boston. Tem dois filhos e, segundo o Who's Who, cinqüenta e sete anos de idade. Há cerca de vinte anos herdou a Editora Missão do pai - tem um edifício-sede aqui em Nova York e sucursais em Hashville, Chicago, Dallas, Seatle.

            - Ok, Wanda, já chega. Então ele voltou a telefonar. Desta vez disse exatamente o que pretende?

            -Quer vê-lo amanhã de manhã, o mais cedo que o senhor puder. Mostrou-se muito teimoso, de tal maneira que acabei por lhe dizer onde é que o patrão estava e o foi fazer. Mostrou-se compreensivo, mas não deixou de repetir que se torna vital que vá encontrar-se com ele amanhã de manhã. Frisou-me que lhe dissesse que voaria para Nova York de propósito para a reunião, que o que tem pra tratar consigo estará finalizado cerca do meio-dia e que depois poderá voltar para Oak City para acompanhar a evolução da doença de seu pai. Informei-o daquilo que o patrão me transmitiu ontem... disse-lhe que ia tentar localizá-lo, mas que não podia garantir que tivesse êxito.

            -Wanda, a propósito dessa reunião... Wheeler sempre lhe disse daquilo que se trata?

            - Bem, abriu-se mais um pouco a respeito quer que faça a publicidade de um novo tipo de Bíblia...

            - Só isso, hem - interrompeu Randall com voz azeda. Que grande negócio. As bíblias são todas iguais. Afinal quem raio precisa dessa coisa.

            Do outro lado da linha estabeleceu-se um breve silêncio, depois ouviu-se de novo a voz de Wanda:

            -Boss, penso que talvez o senhor precise. - O tom de Wanda mudou rapidamente. -Acabo de passar em revista as notas que tomei. Wheeler forneceu-me mais alguns pormenores, poucos. Pretende a sua representação promotora durante um ano completo. Disse que havia grande soma de dinheiro em causa, muito mais do que qualquer outro empresário desde sempre lhe pagou. Acrescentou que o caso também lhe traria um prestígio considerável. Disse ainda que pretende que o patrão vá à Europa por um mês ou dois, com todas as despesas pagas, e que achará a viagem fascinante. O único senão é que terá que partir quase imediatamente.

            -Para que é que um editor americano de bíblias precisa de um homem de relações públicas na Europa?

            -Isso também pensei. Tentei descobrir, mas ele fechou-se. Nem sequer me disse para que parte da Europa. Mas, Joe Hawkins e eu discutimos o assunto, e o Joe concordou comigo. Considerando os abalos que o boss tem sofrido ultimamente, parece-me conveniente que aproveite a oportunidade para dar uma volta.

            -Apregoar a Bíblia... julga que será uma mudança para não desperdiçar? - retorquiu, mal humorado, Randall. - Boneca, cresci juntamente com a Bíblia, e ainda a noite passada deparei-me ela. Acho que não será nenhum prazer voltar a uma coisa que foi o prato principal da minha vida adolescente.

            -Todos nós temos um palpite de que não se trata da mesma velha Bíblia, que é algo muito diferente - persistiu Wanda. - George L. Wheeler insistiu em que não deixasse de lhe dar esta pista com relação aquilo que o projeto se refere.

            -Que pista?

            - Mateus 28:7 do Novo Testamento. - Fez uma pausa. Vejo que já não se lembra, com tudo aquilo que passou em tão pouco tempo. Recorde-se daquela passagem de São Mateus que ontem li e que diz: «Ide, pois, imediatamente, e dizei aos seus discípulos que já ressuscitou dos mortos. E eis que ele vai adiante de vós para a Galiléia; ali o vereis...> E Wheeler voltou a recomendar-me para não me esquecer de lhe dizer que terá a missão de manejar a Segunda Ressurreição.

            Randall lembrou-se. O caso veio à idéia. As enigmáticas palavras de Wheeler pretendendo que Randall fizesse a publicidade da Segunda Ressurreição. Tal como da primeira vez, Randall sentiu-se intrigado: Que diabo queria Wheeler dizer com aquilo?

            Randall passara uma boa parte da sua vida procurando libertar-se dos efeitos da Primeira Ressurreição. Para que queria uma Segunda - fosse qual fosse o seu significado?

            No entanto, tinha presente ainda a imagem de seu pai nessa mesma manhã, ainda mal consciente, com aqueles olhos de piedade. Como o pai ficaria contente se o soubesse envolvido na promoção do Livro dos Livros e integrado em obras de bem! Que força isso não daria ao pai! E ainda havia mais uma coisa; que salvação para uma consciência intranqüila seria tal projeto, para uma consciência que ainda se sentia envergonhada por ter vendido outra boa obra, o Instituto Raker, em favor do ganho egoísta oferecido pelas Empresas Cosmos...

            Hesitava. Não tinha estômago para fazer publicidade de coisa tão disparatada. Com todos os problemas que o consumiam, nunca conseguiria devotar-se em promover perante o mundo uma coisa atualmente tão despropositada como a Bíblia, ainda que fosse uma nova Bíblia. Achou-se pois dizendo ao telefone:

            -Lamento Wanda, mas a verdade é que não consigo descortinar qualquer razão prática para perder o meu tempo nesse encontro de amanhã de manhã com Wheeler. É melhor fazer uma chamada para ele e explicar-lhe...

            - Boss - interrompeu Wanda - eu posso fornecer-lhe uma boa e prática razão para o encontro. Uma razão mais do que substancial. E isso leva-me falar-lhe da segunda mensagem que recebi para lhe entregar. Logo a seguir ao telefonema de Wheeler, houve outro, feito por Ogden Towery III das Empresas Cosmos.

            - Ahan?

            -O Sr. Towery queria que o patrão soubesse que George L. Wheeler é um dos íntimos amigos dele e que ele, Towery, havia recomendado pessoalmente a nossa firma a Wheeler. Disse-me que lhe entregasse imediatamente o seguinte recado: que o negócio da nova Bíblia da Editora Missão é justamente um daqueles de que gostaria que o patrão se encarregasse, que o fato de aceitá-lo constituiria para ele um favor pessoal. Boss, a maneira como ele falou deu a entender que o caso é também importantíssimo para ele. - Wanda fez uma pausa.

            - Será na verdade uma razão substancial e prática para que amanhã de manhã se encontre com Wheeler?

            - Sim. É a única razão que faz sentido - disse Randall lentamente. - Muito bem, julgo que não tenho possibilidades de escolha. Telefone para George L. Wheeler e diga-lhe que me encontrarei amanhã com ele no seu escritório às onze horas.

            Ao desligar o telefone, odiou-se mais do que nunca. Era a segunda vez em dois dias que permitia que Towery impusesse a vontade dele. Mas, seria também a última. Depois de encontrar-se com Wheeler, depois de arrumado o negócio com Towery, nunca mais permitiria que alguém o dominasse. Talvez valesse a pena agüentar aquelas humilhações, entrar naqueles processos de chantagens para alcançar sua liberdade futura.

            Saiu da cabine. Procurou coordenar as idéias. Bárbara e Judy partiriam. Notificaria seu advogado para contestar a ação de divórcio. Nenhum pai emprestado tiraria sua menina, impediria tal maquinação. Em relação ao resto do dia, decidiu que jantaria com a mãe, com Clare e com o Tio Herman. Depois do jantar veriam o pai no hospital e falariam mais uma vez com o Dr. Oppenheimer. Se o boletim fosse favorável, e estava convencido de que seria, tomaria nessa mesma noite, em Chicago, o último avião e iria ao encontro...Que raio é que Wheeler tinha dito?... ah... da Segunda Ressurreição.

            Fez especulações sobre o chamado projeto secreto que lhe seria revelado na Editora Missão. Procurou lembrar-se da espécie de santo e senha que lhe fora fornecido por Wheeler. Sim, isso mesmo:

            «Ide, pois, imediatamente, e dizei aos seus discípulos que já ressuscitou dos mortos.»

            Mas, afinal, o que significaria aquilo? Não interessava. O dono das Empresas Cosmos disse que era importante. Pois bem, era importante, pronto. Além disso, sentia pela primeira vez uma vaga curiosidade. Sim, estava interessado em qualquer coisa, que prometesse... Ressurreição.

 

            Sentado ali na ampla mesa de sólido carvalho, que ocupava o centro da sala de conferências no terceiro andar da Editora Missão, Steve Randall sentia-se incapaz de se concentrar no assunto que trataria.

            Pela larga janela panorâmica que ficava em frente, escutava lá embaixo, em Park Avenue, o ruído do trânsito que chegava atenuado. Os seus olhos não se despregavam do velho relógio de parede em estilo americano colonial. Eram onze e quarenta e cinco. Significava que falavam há mais de meia hora - ou mais exatamente, que ele ouvia. Durante todo esse tempo nada escutara que o tivesse excitado.

            Fingindo estar atento, Randall, furtivamente, avaliava o resto da sala de conferências. Todo o conjunto se parecia mais com a sala de estar de um apartamento, modificada, do que com o centro de um complexo de escritórios de grande empresa. As paredes estavam revestidas com painéis de bom gosto. O carpete era de uma cor sóbria bem escura, talvez um café com leite, com predominância do café. Ao longo da parte inferior de uma das paredes havia uma estante, prateleiras cheia de volumes da Bíblia ricamente encadernados e de outros livros sobre religião, a maior parte publicados pela Editora Missão, pelo menos segundo Randall pensava. Num canto, exibiam-se num escrínio envidraçado vários crucifixos, medalhões e outros artigos religiosos. Não muito longe da vitrine, em cima de uma mesinha, achava-se uma cafeteira, sobre uma bandeja própria para o conservar quente.

            Randall comparecera sozinho àquela reunião, ao passo que George L. Wheeler, presidente da Misson House, contava com assessoria de cinco dos seus empregados consultores. Mesmo a sua frente estava uma das mais antigas secretárias de Wheeler, uma mulher cuja presença destilava tanta bondade e cujo maneira de ser era tão piedosa, como se fosse uma legítima representante do Exército de Salvação, que obrigava uma pessoa sentindo-se indigna e pecadora. A secretária estava ocupada tomando notas estenográficas, raramente levantando a cabeça do seu caderno.

            Ao lado da secretária encontrava-se outra mulher, mais nova e muito mais interessante. Randall lembrou-se do nome dela: Miss Naomi Dunn, assistente administrativa de Wheeler. Tinha o cabelo castanho liso bem penteado para trás e severamente apanhado. A pele do rosto tinha uma tonalidade pálida, os olhos eram acinzentados, nariz reto, boca de lábios finos. O seu todo, expresso no olhar, era o de uma pessoa dedicada e fanática, daquele tipo que parece acusar as pessoas que não exibam vestes eclesiásticas ou que não sejam de qualquer maneira uns leigos devotos e úteis, de modo que o tipo marcado pelo seu franzir de sobrancelhas se sentia imediatamente frívolo e intimidado por não passar de um cidadão secular sem quaisquer ligações religiosas. Usava óculos grossos aros de tartaruga, e prestava atenção a cada sílaba pronunciada por Wheeler como se este pronunciasse um Sermão da Montanha. Nem uma única vez ainda olhou de frente para Randall.

            Os três outros empregados da Editora Missão sentados em volta da mesa eram pessoas relativamente jovens. Um editor, um designer das produções da casa e um diretor de vendas. Impossível distinguir uns dos outros. Todos eles com o mesmo cabelo curto e bem penteado à moda conservadora, todos de barba bem feita, todos com fisionomia séria, afável, abatida. Tinham também em comum os mesmos sorrisos de serafins estereotipados, e nenhum deles se atrevia a pronunciar a mais simples palavra durante o longo discurso do patrão.

Cerca de um metro ao lado de Randall estava sentado o volumoso George L. Wheeler, com os lábios ainda em movimento como um ruminante ou como um peixe.

Era aquele o poderoso amigo íntimo de Towery, o gigante das edições americanas da Bíblia. Randall examinava-o agora com mais atenção.

            Wheeler era um homem de arcabouço impressionante, talvez com uns noventa quilos maciços, com o cabelo em processo gradual de desaparecimento, enormes entradas, e de tufos mesclados brancos na parte posterior do crânio. Tinha uma cara de lua cheia, com duas circunferências menores no meio daquela circunferência maior: os óculos. O nariz bulboso, tinha a particularidade de sempre mexer, como o de um coelho, enquanto falava. Outro dos seus hábitos mais notórios era de, inconscientemente, coçar a cabeça, coçar atrás de uma orelha, por baixo do nariz e debaixo do braço, num dos sovacos, aliás gestos tão naturais como o velho hábito de Randall em estar quase sempre afastando uma mecha de cabelo da testa, quando não tinha cabelo nenhum caindo em seus olhos.

            Wheeler usava um terno caríssimo e só sua gravata revelava o diretor de uma sociedade comercial, o vendedor. Era uma gravata de cetim, com brilho metálico, uma daquelas gravatas que são normalmente usadas por vendedor que bate de porta-em-porta, do homem que tenta impingir a todo o custo às pobres donas de casa nem que seja uma lata de banha de cobra.

            Randall parou de prestar atenção em que Wheeler dizia, não só porque as suas palavras até então ainda não haviam despertado nele nada de especial, como porque o seu modo de falar, monocórdio e monótono, não suscitava de imediato interesse. Discursava como alguém que não está interessado, nem habituado conversando, mas apenas interessado em ditar, em impor palavras aos outros. A sua voz, cansativa...que é que fazia lembrar?... Bem, a sua voz fazia lembrar a contínua ruminação audível de um dromedário.

            Houve um movimento em volta da mesa e Randall deu fé que Wheeler fez um sinal a Naomi Dunn. Esta levantou-se prontamente, dirigindo-se para a mesinha onde estava a cafeteira. Disposto a acolher qualquer mutação no ambiente, Randall pôs-se a observá-la. Anteriormente não tivera oportunidade para lhe ver as pernas. Eram bem feitas. Ao mesmo tempo sua maneira de caminhar, meneando bem o traseiro, era provocadora. Quando se encaminhou para ele, transportando a cafeteira, Randall pôde ver que possuía uns seios pequenos, apetitosos como duas maçãs maduras, bem apertadas, dentro do sutiã que se vislumbrava debaixo da blusa leve de linho.

            Estava ligeiramente inclinada para ele.

            -Sr. Randall, quer mais café?

            -Meia xícara só, por favor.

            Ela serviu-o, depois encheu a xícara de Wheeler e deu a volta à mesa para servir os outros. Randall imaginou como seria ela na cama. Geralmente as mulheres trintonas, e aquela estaria a meio caminho dos quarenta, com um ar de virtuosas solteironas, são umas taras na cama. No entanto, duvidava disso. Aquela parecia-lhe imponente, uma mulher por completo devotada à sua carreira. Repentinamente, achou até impossível imaginá-la despida, precisamente como era impossível imaginar Darlene vestida.

            Na noite anterior voltara a Nova York, onde chegara por volta da uma da madrugada. No aeroporto esperava-o seu Rolls-Royce com o respectivo motorista privativo. No caminho para o centro da cidade, manifestara a esperança de que Darlene estivesse bem pregada no sono. Sentia-se totalmente esgotado pelos acontecimentos dos últimos dois dias, a crise no hospital, o contato com a mulher e a filha, o encontro com a família e os amigos do pai, sentindo cada vez mais o agudo desejo de se atirar para cima da cama, fechar os olhos e dormir. Mas, chegando no apartamento encontrara Darlene bem acordada, perfumada como uma rosa e deitada na cama dele, completamente nua por baixo dos macios lençóis. Por isso, o sono fora pouco. Em vez de se entregar nos braços de Morfeu como planejara, aturou a conversa dela a respeito de lhe ter sentido muito a falta, sentira nas partes inferiores do corpo as brincadeiras das suas mãos, depois as pernas, como serpentes a enroscar-se, o despertar conseqüente da sua virilidade, o penetrá-la, as acrobacias de gueixa daquele corpo macio, elástico e jovem, e a ejaculação final que acabara por deixá-lo espremido, vazio, como morto.

            Nessa manhã, cedo, depois de um banho apressado, nervosamente alerta pela curiosidade sobre o caso de Wheeler e pela promessa de comparecer na reunião marcada, acabara chegando ao edifício da Editora Missão com todos os seus sentidos bem despertos. Pois bem, até então, para compensar toda a sua excitação e pressa, tudo o que ouvira naquela sala não passara de uma seca exposição no setor da publicação de livros especializados e de um sonolento monólogo rotineiro sobre o novo projeto.

            Os passados quarenta e cinco minutos haviam-se esgotado num zum-zum capaz de fazer bocejar um morto, numa constante falação sobre coisas áridas. Cinco editores - Wheeler nos Estados Unidos, e outros destacados especialistas em publicação da Bíblia na Grã-Bretanha, França, Alemanha e Itália - concentravam seus esforços para darem ao público uma nova Bíblia internacional... não, não a Bíblia completa, mas somente um Novo Testamento. Esse Novo Testamento seria traduzido de novo e conteria informações exclusivas, nunca até então dadas a lume, trava-se de uma descoberta arqueológica ainda não revelada. Seria o Novo Testamento definitivo, o mais perfeito na história do Cristianismo, e, ao ser publicado, não só tornaria obsoleta a Versão do Novo Testamento do Rei Jacob, como também ultrapassaria e tornaria obsoleta a Versão Revista conhecida pelo público, a Nova Bíblia Inglesa, a chamada Bíblia de Jerusalém e todas as outras Bíblias conhecidas.

            Essa última versão das Escritas Cristãs - Randall tentou lembrar-se do exato nome e, embora com esforço, conseguiu esse Novo Testamento Internacional, como Wheeler lhe chamara, em processo de preparação há seis anos. Só a edição americana, a cargo de Wheeler, importaria pelo menos em 2 500 000 dólares, distribuídos pelo custo da tradução, composição tipográfica, três diferentes tipos de impressão, provas, papel de tipo especial, capas em marroquino; tendo também em conta os gastos com a publicidade e promoção que em breve seu papel importantíssimo desempenharia. Quando a firma Thomas Nelson & Sons, em 1952, lançara a Nova Versão Modelo, só em publicidade gastara 500 000 dólares. Ora Wheeler, com aquele Novo Testamento Internacional, planejava despender o dobro dessa quantia.

            Os primeiros exemplares do Novo Testamento Internacional - exemplares destinados aos críticos de obras religiosas, a ministros, teólogos, sacerdotes, personalidades que normalmente fazem a opinião pública e para chefes de Estado (incluindo o Presidente dos Estados Unidos da América) - estavam produzidos, em processo de impressão tipográfica em Mainz, Alemanha. Presentemente, depois de seis anos de labor em sigilo absoluto, chegara o momento da etapa final - a montagem de uma gigantesca campanha publicitária, baseada em notícias nuas e cruas de impacto, em vez de ser a costumeira, publicidade que garantiria o êxito no empreendimento do Novo Testamento Internacional. Dado que essa Bíblia seria publicada em fins de junho ou princípios de Agosto, restavam somente dois meses, mais ou menos, para estruturar a campanha promocional. Cada um dos editores internacionais da obra, contribuía com um serviço especializado e todos eles concordavam que o associado americano se encarregasse das relações públicas, tanto mais que se admitia em regra geral serem os americanos uns autênticos peritos no manejo da publicidade.

            -Agora, Sr. Randall-dizia nesse momento George L. Wheeler, e Randall, embora com dificuldade, tentou prestar mais uma vez atenção às palavras do editor da Bíblia - antes de entrarmos nesta sala, mencionei-lhe as nossas condições, os maiores honorários para publicidade desde sempre oferecidos neste particular setor, conforme creio, o senhor indicou que a quantia era perfeitamente satisfatória. Posto isso, pretendo-o em nosso quartel-general europeu durante dois meses, com a colaboração de um pessoal perfeitamente selecionado que lá temos, trabalhando para a criação da fórmula publicitária que utilizaremos, com as necessárias modificações, nos cinco países editores. Quando essa fórmula estiver pronta, voltará para Nova York e utilizará a sua firma, Randall Associates, para se concentrar então somente na edição americana, tal como os editores europeus utilizarão nessa altura os seus próprios agentes de publicidade para trabalharem a partir da planificação geral estabelecida por si. Mas o tempo, como já disse, é um fator importante no caso. Será necessário colocar, imediatamente, seus assuntos em ordem, partindo comigo para a Europa o mais cedo possível. De hoje a uma semana, na sexta-feira, sete de Junho, o transatlântico France parte com destino à Southampton. Necessitamos de todo o tempo a bordo, cinco dias de viagem, para que fique a par de tudo aquilo que o espera, para lhe falarmos de todos os aspectos do caso. Conversaremos mais detalhadamente no navio, Sr. Randall. Tem algumas perguntas fazendo?

            Randall endireitou-se na cadeira, mexeu no cachimbo com tabaco, e fitou firmemente o editor, dizendo:

            -Só uma pergunta, Sr. Wheeler, só uma pergunta essencial.

            -Pois bem, faça o favor.

            Randall sentiu que todos os olhares convergiam para ele, mas tinha que despejar o saco e saber com o que podia contar.

            -Julgo que já existem por toda a parte bastantes versões da Bíblia. Porquê nesse caso o grande interesse em publicar mais uma versão?

            Wheeler emitiu uma das suas habituais fungadelas, dando que fazer ao nariz de batata, coçou a cabeça e disse:

            -Pensava que já o tinha esclarecido suficientemente a respeito do assunto. Mas permita-me que recapitule. A Bíblia é a revelação de Nosso Senhor. Todavia, não deve permitir-se que se torne um espécime antiquado. Deve ser mantida viva e atual para cada nova geração. São requeridas traduções atualizadas porque as línguas contemporâneas estão em constante mutação, velhas palavras precisam de novos significados e explicações, e as massas estão constantemente introduzindo novas palavras na linguagem. Além disso, a arqueologia está constantemente, realizando novas e espantosas descobertas de antigos papiros, pergaminhos, cerâmicas, pedras gravadas, coisas que emprestam novos significados para a compreensão das Escrituras Gregas existentes e que projetam nova luz sobre os primeiros tempos do cristianismo. A medida que as descobertas e a cultura nos aproximam mais dos evangelhos originalmente escritos no século I, é necessário acompanhar esse saber com novas traduções e anotações para uma constante atualização e maior exatidão das nossas versões do Novo Testamento. A legibilidade, evidentemente, constitui também um outro fator de peso. Muitas pessoas possuem várias Bíblias ou compram vários exemplares para oferecerem. Desse modo somos alentados a produzir versões diferentes de um Novo Testamento por querermos melhorar o aspecto tipográfico, a ortografia, o formato, os comentários ou a encadernação.

            -Para obterem mais vendas-disse Randall.

            Wheeler ajeitou mais confortável seu corpanzil.

            -E porque não? Deve compreender que embora crendo no Livro Santo, estamos também no ramo altamente competitivo de o promovermos e vendermos. Sim, claro que existem novas versões publicadas de modo à obtenção de novas vendas, de maneira que possamos continuar dentro do ramo.

            -Bastante justo-disse Randall. -Contudo ainda não me sinto completamente satisfeito com a sua resposta à minha pergunta. Talvez a falta seja minha. É possível que não tenha explanado a minha pergunta com clareza. Ora se me permite volto à vaca fria: Porque razão o senhor gasta uma fortuna para publicar este Novo Testamento Internacional? Que razão preponderante e específica determina a publicação desse Novo Testamento tão dispendioso? O motivo pelo qual apóia essa publicação é oferecer meramente ao público uma tradução melhor, o de apresentar novas informações concordantes ou o de concentração de referências? Por que sua firma inventou um novo tipo melhor de impressão ou uma capa mais estética? Se na verdade forem estes os motivos ou um motivo para publicação de uma nova Bíblia, digo já com toda a franqueza que não vejo nada vendável. Não entendo ao menos qual será o meu papel no caso, tal como não vislumbro sequer o porquê de tanto tempo de esforços no meio da maior segregação de informações. Porque diabo haveria alguém de se preocupar a respeito de mais outra edição do Novo Testamento, especialmente em tempos como os que atravessamos, com todo um aumento de tumultos, perturbações e mutações? O senhor mencionou que a publicação dessa Bíblia seria vendida como um novo impacto, sem ser meramente pelos meios normais do anúncio na imprensa e por outros órgãos de informação convencionais. Pois lamento muito, Sr. Wheeler, mas até agora ainda não ouvi um único fato que me leve à conclusão dessa novidade, desse impacto salientado. Devo ser honesto, não gaste seu dinheiro em vão. Nada posso fazer pelo senhor ou por este seu Novo Testamento, baseado naquilo que me contou. Não precisa de mim para nada, e eu não preciso também desse gênero de assunto. De modo que sou obrigado dizendo-lhe... que tenho que recusar a sua oferta.

            Na sala fez-se um silêncio pesaroso. Randall nem se incomodou em procurar ver qual a reação de Naomi Dunn e dos outros. Estava certo que todos sentiam-se horrorizados com aquele ato de lesa-majestade. Pois bem, que fossem para o inferno.

            George L. Wheele mexeu-se desconfortável na cadeira, coçando-se desesperadamente.

            - Sr. Randall, disseram-me... isto é, Ogden Towery assegurou-me... que o senhor tomaria conta deste assunto.

            -Ele não tinha qualquer direito de lhe dizer isso.

            - Mas eu compreendi que ele... as Empresas COSMOS... são donas da sua firma.

            -Ainda não - replicou Randall com azedume.-Mas seja como for o problema não está nisso. Só me encarrego dos casos segundo os seus méritos. Talvez, nem sempre fui capaz de proceder desta maneira. Talvez em certas ocasiões tomei conta de assuntos só por me darem lucros. Mas isso acabou. A partir de agora aceito apenas assuntos que valham o meu tempo e o meu esforço, que mereçam a minha devoção, e o fato é que não encontrei nada disso, nenhuma motivação naquilo que o senhor me contou.

            Começara a afastar a cadeira, pronto para levantar e ir embora, quando Wheeler estendeu o braço e obstou aos seus movimentos.

            -Sr. Randall, só mais um minuto. Eu... bem, não lhe contei... na verdade não lhe contei tudo.

            -E porquê?

            -Porque jurei guardar segredo, um segredo que está bem oculto durante seis anos, com exceção das pessoas que trabalham no próprio projeto. Não estou em posição de lhe revelar a verdade a não ser em certas condições. Suponhamos que eu explicasse tudo e depois o senhor recusasse tomar conta do caso. Só depois de concordar em juntar-se a nós posso revelar a verdade completa.

            Randall abanou a cabeça negativamente.

            -Não, sou de opinião contrária. Até saber a verdade não concordo em ocupar-me do caso.

            Durante um momento, Wheeler olhou para Randall sustendo a respiração, depois expirou ruidosamente pelo nariz.

            -É a sua última palavra, Sr. Randall?

            -Sim, mantenho essa absoluta condição. Wheeler fez um desalentado gesto de concessão.

            -Muito bem.

            Voltou a cabeça para Naomi Dunn, ergueu um dedo, e ela, com um rápido fechar de olhos, mostrou que tinha compreendido. Imediatamente tocou no ombro da velha secretária, fez um sinal aos três homens ajudantes da firma, e eis aquelas cinco figuras de pé.

            Wheeler pareceu ignorar a partida dos seus ajudantes, mas esperou até ouvir a porta da sala fechar-se para então encarar Randall.

            -Muito bem, Sr. Randall. Agora estamos sozinhos. Decidi correr o risco. Vou procurar explicar-lhe.

            Tanto a sua anterior pose como a sua voz se modificaram, como diferente é o dia da noite. Randall notou perfeitamente a mudança. Deixara de existir a imponente figura do comerciante cheio de segurança, do estilizado monstro sagrado das Bíblias, do guardião do Livro dos Livros. Naquele momento era apenas o negociante, o homem de vendas, o empresário descido à arena dos assuntos mais comezinhos para colocar da melhor maneira o seu produto. O remoer de palavras como o mexer dos lábios de um dromedário também acabara. A voz era agora suave, persuasiva, mais controlada, vibrante, e a linguagem mais direta.

            -Disse-lhe que nosso projeto é mantido em segredo há seis anos. Com certeza está perguntando porquê?

            - Não, foi uma pergunta que não me preocupou até o momento. Pensei que jogasse um jogo complicado comigo, que fosse um jogo de editor para conferir importância a uma coisa afinal rotineira e banal.

            - Estava enganado - disse Wheeler terminantemente. Redondamente enganado. Mantivemos o segredo por sabermos que estávamos sentados em cima de um barril de dinamite, é como quem diz: estávamos na posse da mais tremenda história de todos os tempos. Creia, Sr. Randall, que não estou sendo extravagante, que não sou desmedido nas minhas afirmações

            Era a primeira vez que Randall sentia reacender-se, aquela curiosidade que o movera ao acordar. Aguardou o que seguiria.

            Wheeler prosseguiu:

            - Se a verdade transpirasse estaríamos arruinados e perderíamos um enorme investimento feito, ou pelo menos prejudicar-nos-ia gravemente. A imprensa anda à nossa volta, mas sem saber a verdade. As igrejas em todo o mundo suspeitam, mas, nem sequer têm a mais leve sugestão do que é na realidade. E temos inimigos, sôfregos de saberem antecipadamente ao dia marcado para a publicação aquilo que só nós conhecemos, de modo distorcido a deturparem o conteúdo do Novo Testamento Internacional e destruí-lo. Por isso, juramos segredo, e os nossos ajudantes, os que trabalham conosco por toda a Europa juraram também calar-se. Quando lhe revelar a verdade, será a primeira pessoa fora do projeto não sujeita a tal compromisso, a primeira pessoa fora da nossa alçada que saberá os fatos essenciais.

            Randall tirou o cachimbo da boca.

            -Mas porquê eu? Porquê arriscarem-se comigo?

            - Primeiramente porque desejamos que trabalhe conosco, porque o senhor será o último elo necessário para assegurar o nosso êxito. Em segundo lugar, depois de pesar as probabilidades, julgo que sei o suficiente a seu respeito para acreditar que é uma pessoa de confiança.

            -Acabamos de nos conhecer. O que pode o senhor saber a meu respeito?

            -Sei muita coisa a seu respeito, Randall. Sei que é filho de um clérigo do Médio-Oeste, um homem bom com uma boa família. Sei que o senhor se revolta contra a religião ortodoxa, e que é um agnóstico. Sei que é casado e que tem uma filha ainda adolescente, e que vive afastado da sua mulher e filha. Sei onde vive e como vive. Sei que é um homem com muitas amiguinhas e que presentemente vive com uma delas. Sei que por vezes bebe demasiadamente, mas que não é um alcoólico inveterado. Sei...

            Randall franziu o cenho e interrompeu.

            - Sr. Wheeler, afinal, descreve uma pessoa com quem corre riscos.

            -Pelo contrário-disse Wheeler rapidamente. -Tenho certeza que é de confiança porque acontece que sei mais uma coisa a seu respeito. Sei muito bem que apesar da sua grande intimidade com mulheres, não obstante, o fato de beber bastante, quase como imposição social, jamais discutiu os seus negócios privados com pessoas estranhas, nem nunca traiu um cliente.

O senhor trata dos maiores negócios deste país e sempre retribuindo a confiança dos assuntos que lhe confiaram com o mais completo segredo e discrição. Sei que o senhor mantém sempre uma orientação sólida a tal respeito. Sempre manteve em compartimentos diferentes sua vida pessoal e a sua vida profissional. Mais ainda, nunca houve um cliente seu que lamentou a confiança depositada. Eis a razão substancial porque decidi confiar na sua hombridade também.

            Randall sentiu-se mais aborrecido do que lisonjeado.

            -Não estou acostumado que metam o nariz nos meus assuntos particulares, Sr. Wheeler.

            O editor inclinou a cabeça apologético.

            -Em circunstâncias normais, talvez, considerasse isso como impróprio e injustificado, mas esta particular e peculiar circunstância constitui uma rara exceção à regra. Com certeza compreende, perfeitamente, quando um gigantesco monopólio se prepara para comprar qualquer firma fora da sua esfera de influência, possivelmente por uma quantia de dois milhões de dólares, especialmente, quando o cartel pretende comprar talento administrativo e criador, tem por obrigação ver as coisas muito bem antes de decidir fazer a transação.

            - Towery -murmurou Randall.

            -É o meu mais íntimo amigo. Ele quis tranqüilizar-me, se eu fosse forçado a ir tão longe como estou indo agora. Eu esperava não confiar tanto em si... Mas, caso seja necessário, como é tinha que estar perfeitamente tranqüilo. Agora prossigo o jogo, arriscar a parada. Não entrarei em pormenores, Sr. Randall dir-lhe-ei apenas o que for indispensável.

            Olhou para ele especulativo e perguntou:

            - Sr. Randall, diga-me com exatidão que espécie de negócio interessaria na verdade, merecer o seu envolvimento, obriga-lo a comprometer-se?

            -Não tenho bem certeza. Sinto-me fatigado pelo trabalho, de modo que...

            A voz esmoreceu repentinamente, e logo a seguir disse simplesmente:

            -Bom, em qualquer coisa que todo o mundo quisesse conhecer, comprar, devido ao intrínseco e genuíno valor do produto.

            Wheeler reagiu com um sorriso de satisfação.

            -Excelente. Pois posso dizer-lhe que temos ao nosso alcance a maior história de todos os tempos. Avisei-o antecipadamente que ao pronunciar-me assim de modo nenhum pretendia exagero, e não estou exagerando. Bem, a maior história de todos os tempos merecer o seu envolvimento?

            Mas não esperou pela resposta, prosseguindo:

            -Alguns anos antes, sondaram os mais destacados jornalistas do país por uma conhecida firma de inquéritos à opinião pública. Especularam sobre que história, no domínio da possibilidade científica ou para além dela, seria a maior história deste século. Houve muitas e variadas respostas. Alguns jornalistas votaram pela descoberta da cura do câncer, outros mostraram-se favoráveis a um tratamento que habilitasse seres humanos a viverem até aos cem anos de idade. Outros pronunciaram-se sobre a descida na terra de criaturas pertencentes a outro planeta, ou a espécie humana chegando em outro planeta e encontrando vida civilizada nele. Alguns votaram no dia em que fossem proclamados como uma realidade os Estados Unidos do Mundo. Mas, sabe aquilo que a maioria dos jornalistas votou como a possível maior história do nosso tempo? Votaram no Segundo Advento.

            -No Segundo Advento? - inquiriu Randall, confuso.

            -Sim, a Segunda Vinda de Cristo à Terra. Se Cristo voltasse à Terra em pessoa, em carne e osso, se Ele provasse a Ressurreição uma realidade amanhã... se Ele viesse amanhã para o meio de nós... isso, segundo esses últimos jornalistas votaram, seria sem dúvida a mais espantosa e maior história do nosso tempo.

            Steve Randall, sentiu um princípio de arrepio pelo corpo.

            -Que o senhor está tentando dizer, Wheeler?

            -Meu amigo, digo-lhe que isso já aconteceu. Não literalmente, mas de maneira figurativa. Deparou-se-nos, estamos na posse da maior história do nosso tempo.

            Randall, vagarosamente, inclinou-se para trás na cadeira, apoiando-se bem contra o espaldar.

            - Continue.

            - Escute - disse Wheeler com urgência na voz. - Há seis anos, um dos mais respeitados arqueólogos italianos, o professor Augusto Monti, da Universidade de Roma, procedia escavações perto de Ostia Antica - as ruínas da velha cidade de Ostia, o grande porto romano de comércio marítimo do século I que servia essencialmente Roma, a capital do império. Após anos de pesquisas, o professor Monti esperava encontrar algo que nos levasse mais perto da verdade sobre a história do Salvador apresentada no Novo Testamento. Então, devido à perseverança do gênio ou a mera sorte, encontrou aquilo que tinha esperança de encontrar. Encontrou a verdade, a verdade final.

            Randall sentia-se estranhamente tonto.

            - Qual... é a verdade final?

            - Numa escavação a grande profundidade o professor Monti descobriu as ruínas de uma antiga Vila romana, que seria a residência de um rico mercador do século I, e foi nas esfareladas paredes do escritório onde o dono tinha os seus rolos de papiros e os códigos, que o professor Monti realizou a sua incrível descoberta. Teólogos e eruditos do passado sempre declararam que seria improvável, impossível mesmo, que uma tal descoberta pudesse ser feita no úmido clima italiano ou, para ser mais exato, que tal descoberta pudesse ser feita em qualquer outra parte. Aconteceu essa descoberta, que foi objeto de verificações por todos os meios e testes científicos mais abalizados a nosso dispor. Ora o professor Monti tropeçou praticamente com um bloco de antiga pedra romana, na verdade a base de granito de uma estátua que fora partida, escavada por dentro, e depois de colada de novo por meio de resina. Dentro do buraco, sobreviveu mais de nove séculos, dois documentos. O menor, em más condições de preservação, consistia em cinco fragmentos de pergaminho do gênero daqueles que os romanos utilizavam para escrita no século I. Acertados os fragmentos mostraram um breve relatório oficial escrito em grego pelo capitão da guarda em Jerusalém, do governador da Judéia Pôncio Pilatos, um tal capitão Petrônio, relatório dirigido ao comandante da Guarda Pretoriana em Roma, um tal Lúcio Élio Sejano, que governava o império em nome do imperador Tibério Cesar. O documento maior, mais preservado, consistia em 24 fragmentos, razoavelmente extensos, de papiro cobertos de uma escrita em aramaico. Aparentemente, o texto foi ditado em Jerusalém pelo chefe judeu da futura igreja cristã pouco antes da sua execução em 62 D.C.

            A excitação de Randall aumentou, debruçou-se sobre a mesa, tenso.

            - Diga-me... o que é que... estava escrito nesses documentos? Os olhos de Wheeler brilhavam.

            - A maior história do nosso tempo, uma história capaz de deslumbrar todo o mundo cristão, uma história capaz de causar um renascimento na religião, uma renovação da fé. Os papiros encontrados, estão agora em nossa posse, são a perdida fonte dos Evangelhos Sinópticos, o chamado documento Q, o quinto, mas, na verdade o primeiro e o evangelho mais original

- o Evangelho Segundo Jacob - escrito por Jacob, o justo, irmão mais novo de Jesus, dando conhecimento da vida do verdadeiro Jesus Cristo, do Cristo real, tal como Ele andou pela terra como um homem entre os homens, ser humano, tanto como o Messias, no primeiro século da nossa Era. E nós estamos na posse desses documentos, de tudo o que eles contêm.

            Wheeler esperou pela reação de Randall, mas este estava completamente paralisado.

            - Quando ler as traduções dos manuscritos, ficará ainda mais aturdido - prosseguiu Wheeler com fervor. - O conteúdo deixa qualquer pessoa completamente louca. Sabemos agora com verdade onde Jesus nasceu, onde Ele estudou, como se desenvolveu, como Ele rezou junto da sepultura do pai após a morte de José, o que fez para conseguir a Sua subsistência antes da Sua profissão de fé, os pormenores dos Seus perdidos anos entre os doze e os trinta, tudo, tudo. Jesus existiu, e se essa fantástica fonte Cristã, a mais antiga desde sempre conhecida, não fosse suficiente, se fosse considerada suspeita por ser escrita por um judeu transformado em cristão, então nesse caso teríamos a corroboração do sacerdócio de Nosso Senhor, a Sua existência e Crucificação por intermédio de uma fonte não-cristã, uma fonte pagã, por intermédio de um soldado romano num relato feito na Palestina ocupado e dirigido ao seu superior hierárquico, um relato a respeito desse revoltoso, desse chamado Messias, tudo contido no Pergaminho de Petrônio. Mas, nem mesmo isso é o melhor da história, Sr. Randall. Agüentei a melhor parte para o fim. Esta parte é a mais notável.

            Randall continuava boquiaberto, incapaz de pronunciar palavra.

            - Ouça isto! - recomeçou o editor em voz trêmula. - Jesus não morreu na Cruz em Jerusalém em 30 D.C. - Wheeler fez uma pausa, a sublinhar o que ia seguir. - Ele sobreviveu ainda mais dezenove anos.

            - Viveu mais... - murmurou Randall, quase pra você mesmo.

            - Petrônio relatou aos seus superiores que Jesus foi crucificado, declarado morto e retirado da Cruz para o devido enterro. Mas, Jacob, o justo, conseguiu saber que seu irmão não havia expirado na Cruz, que Jesus estava vivo. Se Ele tinha sobrevivido graças ao auxílio de Deus ou à habilidade de um médico, Jacob não o soube dizer. Diz apenas que Jesus se recompôs e continuou, clandestinamente, a Sua pregação na Palestina, em outras províncias e que apareceu finalmente e exerceu o seu ministério de pregador em Roma - em Roma - no nono ano do reinado do imperador Cláudio César, em 49 D.C., numa altura em que Jesus devia ter cinqüenta e quatro anos de idade. E só nessa ocasião ocorreu a verdadeira Ressurreição e a Ascensão. Compreende o que digo? Imagina as implicações de tal achado?

            Steve Randall balançou ligeiramente na cadeira, demasiado abalado para compreender a revelação na sua totalidade.

            - Será... poderá isso ser verdade? Não posso acreditar. Deve haver qualquer engano. Tem certeza absoluta?

            - Temos certeza absoluta. Todos os fragmentos de cada um dos documentos foram autenticados sem restar a mais ligeira dúvida. Conhecemos a verdade, possuímos finalmente o Verbo. É essa Palavra que daremos ao mundo através o Novo Testamento Internacional. Faremos ressurgir para a humanidade o verdadeiro Jesus Cristo, o real Salvador que outrora viveu na Terra e continua vivendo dentro de nós e em nós. Eis a razão porque demos ao nosso projeto secreto em Amsterdã o nome do código que ele tem. Steve, poderá crer na Segunda Ressurreição?

            Randall fechou os olhos. Por detrás deles passaram, como projetadas numa tela interior, imagens tanto do seu passado recente como do presente. Visualizou as imagens humanas que passavam em sucessão nesse catavento responderem ao mais sensacional achado em dezenove centenas de anos. Viu-as eletrizadas e inflamadas com uma fé renovada no sentido da vida. Seu pai. Sua mãe. Sua irmã Clare. Tom Carey. E acima de todos, ele próprio. Viu aqueles cuja fé havia aberto brechas ou se despedaçara e aqueles que, como ele mesmo, já não tinham fé nenhuma e estavam perdidos. E viu, dando maior foco àquele catavento giratório de desespero, movimentando a manivela, Aquele que há tanto tempo era um mito, aquela imensa figura quimérica, envolvida num conto de fadas. O Filho de Deus, Jesus Nazareno, seria finalmente conhecido pelo homem. O Evangelho de São Jacob faria reviver a mensagem de amor e paz do Salvador e sanaria e confortaria a Sua família humana.

            Inconcebível, inacreditável. De todas as maravilhas que Randall havia visto e ouvido durante a sua vida, nem uma só, nenhuma poderia se aproximar daquela em prodígio. Boas Novas na Terra.

            Seria aquilo possível?

            O que é que Wheeler lhe perguntara? Ah, sim. Acredita neste projeto, nesta Ressurreição Dois?

            - Não sei - respondeu lentamente. - Sei que é algo... uma coisa em que gostaria muito de acreditar, se ainda pudesse crer em alguma coisa.

            - Randall, está disposto tentando?

            - A tentar o quê? A vender a Palavra?

            Randall considerou a pergunta, e levantou-se cheio de firmeza.

            -Escute, se Ele está aqui para nos salvar, penso que eu estou aqui para ser salvo. Quando é que começamos?

 

            De certo modo, cada sonho, sempre que ele sonhara naquela semana e meia passada, parecia ter Jesus misturado. Naquele momento, acabado de emergir do sono, quando ainda lutava para abrir os olhos, o sonho que havia vivido ou que lhe embelezava o sono, ao despertar da consciência, mantinha-se ainda vívido no «écran» da sua memória...

            Os discípulos viram Jesus caminhando sobre o mar e ficaram perturbados, dizendo, «É um espírito». Imediatamente Jesus se dirigiu a eles. «Tende bom ânimo, sou eu, não temais». E Steve Randall respondeu-lhe e disse: «Senhor, se és, Tu, manda-me ir Contigo por cima das águas». E Ele disse: «Vem.». E Steve saiu do barco, caminhando sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, quando viu o forte vento, teve medo. Começando a afundar-se, gritou: «Pai, salva-me». E logo o Reverendo Nathan Randall lhe estendeu a mão, segurando-o e dizendo-lhe: «Homem de pouca fé, porque é que duvidaste?» E Steve Randall estava salvo, e tinha fé.

Um sonho louco, cheio de misturas, que ainda o oprimia. Estava finalmente acordado, abriu os olhos, para ver que o que lhe oprimia a respiração era o macio peito de Darlene, o seio esquerdo dela, desnudado, estava comprimido contra os seus lábios. Ela estava debruçada para a cama, por cima dele, com a parte superior da pulôver cor-de-rosa, transparente, completamente aberta e um dos seus seios a roçar-lhe pela boca.

            Randall acordara já em muitos lugares estranhos e de muitas maneiras inusitadas, mas nunca acordou a bordo de um barco em pleno Oceano Atlântico e devido ao macio toque de um seio de mulher. Continuava ainda sobre as águas, mas de repente Jesus Cristo e o Reverendo Nathan tinham-se eclipsado.

            Darlene fez-lhe uma careta risonha.

            -Bom, és forçado admitir que não há maneira melhor de acordar, não é verdade? Diz-me o nome de um paxá que seja mais bem tratado do que tu.

            Sabia que era mais um dos fogosos jogos de amor de Darlene. Não tinha disposição para semelhante coisa àquela hora, mas sabia também que eram aquelas as ações de choque que Darlene lançava no mercado, as únicas mercadorias que podia oferecer, de modo que resolveu ser gentil, dando-lhe a resposta adequada. Beijou-lhe o seio suavemente, em volta do rosado mamilo até que ele começou a endurecer, para subitamente lhe ser retirado dos lábios.

            - Steve, és mal comportado - disse ela com fingida severidade. -Não entremos agora em brincadeiras perigosas. Só pretendia que tu acordasses sorrindo. -Inclinou a cabeça e pôs um dedo na face, como que a avaliá-lo. - Mas tu estás uma verdadeira «brasa». - Curvou-se e introduziu a mão por entre os lençóis, fazendo deslizar os dedos entre as pernas dele. Acariciou-o durante um momento, para retirar depois a mão num movimento rápido. - Eh, lá! Não perdes tempo, hem?

            Randall levantou os braços para a atrair a si, mas ela livrou-se do amplexo e afastou-se.

            - Temos que nos comportar bem, querido. Já encomendei ao garçon o que queremos para o café. Deve chegar dentro de um ou dois minutos.

            -Seria melhor que fosse dentro de meia hora ou uma hora -resmungou Randall.

            - Deixa-te disso. Vai tomar o teu banho de chuveiro e veste-te.

            Darlene encaminhou-se para a pequena sala de estar, adjacente, do pequeno apartamento que foi reservado no Convés superior do France, ao mesmo tempo que dizia:

            -L'Atlantique, como sabes, o jornal que se publica a bordo, diz que será projetado um filme em inglês das coisas mais importantes para ver em Londres. É no Canal 8-A. Não quero perder o filme.

            Darlene deliciava-se com a televisão em circuito fechado que existia a bordo e que exibia filmes durante todo o dia, não se poupando gozar nenhum dos luxos que a viagem lhe proporcionava.

            Randall lançou um olhar para o camarote de luxo até fixar na vigia, ainda tapada pela cortina escura, e gritou:

            - Darlene, que tal está o tempo?

            Ela respondeu do quarto ao lado.

            -O sol está vindo cá para fora. O mar parece um espelho.

            Semi erguido sobre os cotovelos, Randall passou uma revista ao camarote. Um quarto funcional com camas duplas e entre as camas uma comprida cômoda de armações metálicas com quatro gavetas. Em cima da cômoda via-se um telefone branco perto da sua cama e um abajur na mesinha de cabeceira, com o quebra-luz em branco, ao lado da cama de Darlene. Espalhadas por cima da grande cadeira de braços, estavam as roupas interiores dela um frívolo sutiã e umas calcinhas rendadas. Junto aos pés da cama, onde estava estirado, destacava-se uma cadeira almofadada em veludo cor de laranja em frente do grande espelho do toucador.

            Escutou os sons das trepidantes máquinas do navio, e o marulho das águas abrindo e fechando em torno do transatlântico. Mas, logo a seguir ouviu o arranhar da televisão de circuito-fechado no quarto ao lado, com o falar monótono de um comentador, voz que lhe chegava num zumbido arrepiante.

            Randall deixou cair de novo a cabeça na almofada e tentou juntar as peças do que ocorrera até àquele quinto dia de travessia de Nova York para Southampton.

            Quando concordara em tornar-se diretor de publicidade do Novo Testamento Internacional e do projeto conhecido como Ressurreição Dois, não tivera a intenção de englobar Darlene Nicholson na viagem. Pretendera seguir sozinho com Wheeler, concentrando-se sobre o ambiente que devia absorver e sobre o trabalho que acordara em fazer. Darlene era demasiado frívola, demasiado hedonista, para uma viagem ligada a um empreendimento tão delicado. Não que lhe exigisse todo o seu tempo, mas porque o desviaria daquilo que se propunha com a sua conversa inócua, mas, contínua e com a sua sexualidade sempre presente. Certamente que Wheeler e a sua gente, todos aqueles especialistas e peritos, eruditos e teólogos, ligados ao projeto da Ressurreição Dois e que operavam em Amsterdã, não teriam nada de comum com uma moça como Darlene. Randall imaginava que ela estaria em relação a tal companhia e ambiente como uma corista ou uma dama de strip-tease largada de pára-quedas numa quermesse católica para angariar donativos destinados a obras sociais.

            Não era que Darlene tivesse aspecto ordinário, mas, era um tanto ou quanto espalhafatosa, exuberante e por vezes inoportuna. Na verdade era atraente demais e transpirava sexualidade por todos os poros. Era alta, com aquela figura elegantemente magra que é própria dos modelos, com exceção dos seios, bem firmes, desenvolvidos, em forma de pera e que se salientavam sempre nos apertados vestidos e blusas de generoso decote que sempre usava, ou então, naqueles pulôveres esticados que ela colecionava às dúzias. O cabelo loiro caia-lhe como uma auréola sobre os ombros, os olhos azuis, as faces formando duas reentrâncias cavadas junto aos maxilares, a pele sedosa como a de um pêssego, a boca pequena e de lábios cheios. Caminhava de uma maneira deslizante, de modo que todas as partes componentes do seu corpo - seios, ancas, nádegas e parte superior das pernas - se deslocavam de modo a obrigar os homens a voltarem a cabeça para admirar. Tinha as pernas mais esculturais e compridas que Randall desde sempre vira numa moça. Fora da cama era uma criatura irrequieta, imprestável, pateta, frívola e esvoaçante. Na cama era um doce, infatigável, inventiva, proporcionava prazer, engraçada. Randall acabara por concluir que toda a inteligência dela estava concentrada na vagina.

            Darlene havia-lhe dado aquilo que ele precisava quando a encontrara, mas não era a companheira que ele desejaria para a excitante e emocional jornada no seio da fé em que estava prestes aventurar-se, a embarcar.

            Tinha-lhe oferecido todas as alternativas possíveis. Uma vez que não estaria no estrangeiro mais do que um mês ou dois, e que estaria demasiado ocupado para lhe poder dar atenção durante todo esse tempo, pedira-lhe para que ela fosse para Kansas City, visitar os pais, família, amigos e amigas do liceu. Pagar-lhe-ia todas as passagens e despesas e quando ele regressasse estariam juntos em Nova York. Ela não quis. Sugerira-lhe uma viagem a Las Vegas e Los Angeles, ou um mês de férias nas ilhas Havai, ou ainda, seis semanas de viagem turística pela América do Sul. Mas ela respondera-lhe que não a todas as sugestões e ofertas. Fora: «não, não e não, Steve, quero estar contigo. Juro-te que me mato se não me deixares ir contigo».

De modo que, Randall suspirara, rendera-se e acabara por levá-la sob o disfarce de ser sua secretária. Sabia muito bem que não conseguiria enganar, mas finalmente acabara por não se ralar. Pensando bem, as vantagens eram até muitas. Bem... uma delas pelo menos: odiava ir para a cama só. Normalmente, depois de se ter encharcado de álcool, começava sempre sentindo pena de si mesmo. Ora Darlene era uma diversão maravilhosa. Na noite passada esteve em seu melhor, tudo a deslizar, tudo em movimento, mãos, pernas, ancas e traseiro, e quando por fim ejaculara fora como que uma explosão.

            Na semana anterior ao embarque, com exceção de decidir levar Darlene, poucas outras decisões pessoais tomou, porém, de qualquer forma estivera quotidianamente ocupado desde manhã à noite, ou mais propriamente dito, desde que amanhecia até à meia-noite, absorvido a pôr em ordem as coisas relativas à sua firma bem como assuntos de natureza pessoal. Depois da impressionante revelação de Wheeler a respeito da descoberta em Ostia Antica, que pela primeira vez estabelecia irrefutável historicidade de Cristo, a curiosidade tomara conta do seu ser e ficara impaciente por saber todos os pormenores sobre o achado secreto. Wheeler, todavia, despistou, dissera-lhe que haveria muitas horas vagas para detalhadas informações durante a travessia do Atlântico, e que em Amsterdã esperavam os pormenores completos sobre o trabalho. Randall teria gostado de contar a Wanda, Joe Hawkins e ao seu pessoal o que havia a respeito do empreendimento a que estava ligado, mas prometera a Wheeler manter segredo até que os primeiros exemplares do Novo Testamento Internacional fossem impressos e até que a junta de editores permitisse a revelação. Acima de toda a gente, Randall gostaria de ser informado do caso seu pai e Tom Carey, prevendo o que as suas novas, como um verdadeiro abalo de terra, poderiam fazer por eles. Mas, jurara guardar segredo, e guardá-lo-ia.

            Telefonara todos os dias para Oak City, falando com a mãe ou com Clare, e haviam-no tranqüilizado de que o pai, embora parcialmente paralisado, estava gradualmente ganhando forças em recuperação. Telefonara uma vez para São Francisco. Com dificuldade, conseguira explicar a Judy que os planos para a ter consigo em Nova York durante duas semanas nas férias de Verão seriam adiados. Dissera-lhe que se deslocava ao estrangeiro para tratar de um caso especial da sua profissão, mas prometera-lhe que de qualquer forma, passariam algum tempo juntos no Outono. Pedira depois à filha para chamar a mãe ao telefone. Queria saber se Bárbara mudara de opinião sobre o processo de divórcio. Bárbara respondera-lhe calmamente que não. Na semana seguinte iria consultar um advogado especializado em divórcios. Randall respondera-lhe friamente que estava muito bem, que nesse caso daria as devidas instruções a Thad Crawford para contestar a ação.

            Na manhã seguinte, Randall reunira-se com Crawford pondo-o ao par da situação. Thad procurara dissuadi-lo de contestar a ação, dando-lhe uma perspectiva dos contras. Mas quando Randall se mostrara obstinado e sem mostras de ceder à razão, embora relutante começara a tomar as suas notas para inevitável comparecimento no tribunal e concordara em apresentar a contestação. Durante a febril semana houve várias conferências com Crawford e com os dois advogados de Ogden Towery de modo a chegarem num acordo sobre certos pontos ainda por não resolvido sobre à tomada de posição das Empresas Cosmos na firma publicitária Randall.        Pesaroso, Randall fez um telefonema para Jim McLoughlin em Washington, combinando um encontro. Sem dúvida que Jim merecia uma explicação pessoal sobre a razão porque não aceitaria a tarefa do Instituto Raker. Jim não compreenderia decerto, mas o esforço merecia ser feito. Infelizmente, McLoughlin estava ainda ausente, algures, em missão altamente confidencial e ninguém o encontrava. Não estava em Washington durante muitos meses. Randall deixou recado para Jim telefonar a Thad Crawford. Não havia outro processo. McLoughlin saberia as más notícias da pior maneira.

            Quando o dia do embarque chegara, Randall dera-o por muito bem-vindo.

            Naquele momento, deitado na cama do seu camarote de luxo, Randall voltou-se para a direita. Perto do telefone estava um monte de recordações e lembranças colecionadas por Darlene durante a travessia. Randall estendeu o braço e agarrou no maço de programas que marcavam todos os eventos desde que estavam a bordo. Eram cinco daqueles folhetos de quatro páginas, as duas últimas em francês. Quatro dos folhetos representavam as atividades a bordo durante os últimos quatro dias, e o quinto delineava o programa dos acontecimentos do dia que acabara de despontar. Na manhã seguinte acabavam-se os programas visto que chegariam ao romper do dia a Southampton.

            Espalhando os programas, como se fossem um naipe de cartas, Randall pôde ver quão pouco representavam na verdade das suas atividades pessoais durante a travessia. Todavia, cada um deles lhe despertava uma recordação especial. Até então havido sido uma excelente viagem, tanto repousante como intelectualmente estimulante. Com exceção de uma desconfortável experiência no primeiro dia, pouco depois da entrada a bordo, quando o navio já estava partindo, podia dizer-se que a viagem correra às mil maravilhas.

            O primeiro dia. Estudou o programa impresso, as palavras S.S. FRANCE, ilustrado com desenhos da Estátua da Liberdade, da Torre Eiffel e do navio.

 

   Programa do dia :

   Sexta-feira, 07 de junho

   Adiantar 15 minutos os relógios às 18 horas

   14 horas Partida de Nova York

   16 horas Chá Com Música

   Sala Fontainebleau, Convés Varanda a Meia-Nau.

                                  

            Pôs o programa de lado, começando rememorar aquilo que lembrava dos seus Events du 7our (programa do dia) pessoais, recordações que de novo vinham à mente em rajadas, em rápidos clarões.

            Depois de subir a estreita escada para a primeira classe, seguindo atrás de Darlene, com ela, imediatamente, atraindo atenções dos outros passageiros masculinos e oficiais de bordo (um sutiã, generosamente, diminuto por baixo de uma blusa transparente, uma mini-saia, muito mini, de seda, meias pretas e botas pretas de cano alto), dirigindo-se para uma pequena festa de despedida oferecida por George L. Wheeler numa sala privativa perto da entrada para o teatro de bordo e que dava para a varanda do Convés Varanda.

            A esposa de Wheeler estava em férias com os filhos, na sua residência de Verão no Canadá, de modo que era mais uma despedida profissional e de negócios do que social. A sala privativa estava repleta de homens serafins e doces senhoras do Exército de Salvação pertencentes à Editora Missão. No entanto, viam-se novos rostos que Randall não vislumbrara anteriormente, caras definitivamente professorais ou do tipo teológico, na maioria fazendo-se acompanhar por sólidas esposas de meia-idade. Entrando na sala com Darlene pelo braço, aceitando as taças de champagne oferecidas por garçons impecáveis nos seus uniformes brancos, mas, rejeitando os hors-d'oeuvres, ao mesmo tempo que apresentava sua «secretária» a todas as pessoas que conhecia, Randall notou a presença de Naomi Dunn, não muito afastada do exuberante Wheeler.

            Randall começou indo em direção à Naomi quando Wheeler o detectou e se levantou de um pulo para lhe apertar calorosamente a mão, exclamando:

            - O começo de uma viagem para fazer história, Steve, para fazer história!

            E voltando a sua atenção para Darlene:

            - É então esta bonita jovem a... sua secretária de quem tanto me falou, não é verdade?

            Nervosamente, Randall procedeu às apresentações. O editor mostrava-se positivamente intrigado com Darlene, de quem sabia a existência através o relatório de Towery.

            -Vai-se envolver em trabalho de Deus, Miss Nicholson. Dando a sua colaboração ao Sr. Randall, realizará um serviço a favor da humanidade. Penso que ainda não conhece nenhuma das pessoas que aqui se encontram... Steve, importa-se que eu apresente esta encantadora senhora às pessoas presentes?

            Wheeler afastara-se com Darlene e Randall encontrou-se, momentaneamente, a sós com Naomi Durin. Ela estava calada, tensa, constrangida, encostada numa tapeçaria que pendia da parede, a beberricar a sua taça de champagne.

            - Viva, Naomi... posso tratá-la por Naomi?

            - Porque não? Vamos trabalhar os dois muito intimamente.

            - Espero que sim. Foi excelente vir despedir-se. Ela sorriu.

            - Lamento, mas não vim me despedir. Vou viajar consigo e com o Sr. Wheeler.

            Randall não pôde ocultar a sua surpresa.

            -O George não disse nada. Sinto-me encantado.

            -O Sr. Wheeler nunca viaja para muito longe sem mim. Sou a memória dele, a sua enciclopédia e o seu fichário sempre à mão para efeitos do Novo Testamento. O Sr. Wheeler sabe tudo o que se saberá a respeito do ofício de editor, mas, logo que se chega ao básico ambiente bíblico, confia em mim. Vou ser a sua mentora durante a maior parte desta viagem.

            - Sinto-me contente, muito contente -disse Randall.

            Com um ar de vago divertimento, Naomi examinou-lhe o rosto.

            - Sente-se na verdade? - Olhou para além dele. - julgo melhor começar circulando por aí. A lição Número Um começa amanhã à tarde.

            Cinco minutos depois, Wheeler agarrava Randall pelo cotovelo arrastando-o para um canto da sala, sussurrando-lhe ao ouvido:

            - Duas personalidades que deve conhecer. Extremamente importantes para o nosso futuro. Conhecem o nosso segredo e, evidentemente, apóiam-no. Fazem na verdade parte integrante do projeto. Sem eles estaríamos pouco menos do que impotentes. O Dr. Stonehill, da Sociedade Bíblica Americana, e o Dr. Evans, do Conselho Nacional de Igrejas.

            O Dr. Stonehill, era um tipo calvo, melancólico, frívolo e pomposo. Era enamorado pelas estatísticas, que disse a Randall:

            -Praticamente todas as igrejas nos Estados Unidos apóiam o nosso trabalho e contribuem para o nosso orçamento. O nosso negócio principal é a distribuição de Bíblias. Todos os anos fornecemos às igrejas membros exemplares das Sagradas Escrituras que são impressas sem notas ou comentários. Publicamos Bíblias, ou extratos bíblicos, em doze línguas diferentes. Recentemente, num só ano, juntamente com a Sociedade Bíblica Unida, distribuímos 150 000 000 de exemplares das Sagradas Escrituras por todo o mundo. Num só ano, pense bem. Sentimo-nos orgulhosos de tal feito.

            Parecia um pavão de irisadas penas em leque, abertas, como se fosse pessoalmente responsável por aqueles 150 000 000 de Bíblias. Randall não sabia o que dizer, e limitou-se a murmurar:

            - Impressionante.

            O Sr. Stonchill prosseguiu:

            - Existe uma razão para essa aceitação universal. A Bíblia é um livro para todos os homens e para todas as épocas. Talvez, isso se deva à Bíblia, como disse o Papa Gregório, um arroio onde o lobo e o cordeiro podem beber juntos. Gregório, do século VI, como saberá.

            Randall sabia. A cabeça andava-lhe já à roda. Em estilo ponderoso, o Dr. Stonehill continuou:

            - Com a descoberta, o Novo Testamento engrandecer-se-á e a distribuição da nossa Sociedade aumentará dez vezes, segundo prevejo. Até o presente, existem 7 959 versículos do Novo Testamento. Todavia, acrescentando... nem mesmo me atrevo ainda a mencionar o último evangelho pelo seu nome... mas, com essa adição aos versículos canônicos, o entusiasmo por Nosso Senhor não conhecerá limites. A Versão do Rei Jacob, como sabe, põe na boca de Jesus 36450 palavras. Mas agora, agora...

            Agora, Randall apenas queria ser salvo daquele tormento. Minutos depois, invocando estar com sede, procurou um oásis qualquer, mas em breve se encontrou de novo agarrado por Wheeler e levado a presença do Dr. Evans, diretor do Conselho Nacional de Igrejas.

            O Dr. Evans era um pouco melhor. Era apenas calvo, não tão sombrio, e falava com um ardor controlado. Era mais simpático e o que dizia era mais intrigante para Randall do que as estatísticas do Dr. Stonehill, especialmente naquele ambiente de confusão.

            -O Conselho Nacional de Igrejas é a agência oficial para trinta e três comissões eclesiásticas- Protestantes, Ortodoxas Orientais e uma Católica-nos Estados Unidos. Nenhum novo empreendimento bíblico será, totalmente, bem sucedido sem o nosso completo apoio. Desde o princípio que estamos representados no projeto do Sr. Wheeler, e sentimo-nos imensamente contentes pelo professor Monti ter feito a descoberta arqueológica mais significativa na história do Cristianismo. Não existe paralelo para esse achado. A importância da descoberta desse quinto evangelho excede de longe as descobertas dos Documentos do Mar Morto, em Israel e dos papiros de Nag Hamadi, no Egito. Não podemos imaginar a total importância dessa descoberta.

            -O que quer dizer a total importância? -perguntou Randall. - Evidentemente, para já, prova que Jesus existiu na realidade.

            - Não se trata disso - disse o Dr. Evans. - Afinal de contas, somente uma pequena escola de cépticos, principalmente na Alemanha, tem negado desde sempre que houvesse uma pessoa tal como Jesus. Na verdade, a maioria dos eruditos da Bíblia jamais se sentiram profundamente perturbados a respeito da historicidade de Jesus. Sempre acreditamos que a vida de Nosso Senhor estava tão bem estabelecida como as vidas de Sócrates, Platão e Alexandre, o Grande. Os assírios e os persas deixaram-nos muito menos informações a respeito dos seus famosos chefes e, todavia, nós nunca pusemos dúvidas em que existiram. Quanto a Jesus, lembramos sempre a nós próprios que a área das suas atividades foi relativamente confinada, que o total do seu ministério foi extremamente breve, curto, que os Seus seguidores foram acima de tudo gente simples. Não poderíamos esperar templos erguidos, nem estátuas feitas para honrarem uma Pessoa que muita gente considerou como um mero evangelista rural, Uma Pessoa injustamente classificada por Shelley de demagogo provinciano. Mesmo a morte de Jesus, no contexto do Seu tempo, foi de pouca importância.

            Era coisa que nem sequer passara pela cabeça a Randall.

            - Pensa realmente que foi ignorada?

            -Quando ocorreu? Claro que sim. Do ponto de vista do Império Romano, o julgamento de Jesus em Jerusalém não passou de um distúrbio local sem qualquer projeção, aliás, igual a centenas as quais os romanos já estavam habituados. Mesmo o relato de Petrônio sobre o caso-embora hoje para nós assuma um valor incalculável -não passou de mais um outro relatório de rotina do ano 30 D.C. De fato, Sr. Randall, a maior parte dos estudiosos da Bíblipensandoam sempre que foi surpreendente e afortunado ter-se escrito alguma coisa a respeito de Jesus através de pessoas que coligiram informações daqueles que O conheceram. Podemos, no entanto, encontrar esses testemunhos nos evangelhos. Os tribunais dependem, habitualmente, do depoimento de testemunhas para apuração dos fatos. Os evangelhos fornecem-nos essas provas. Desde sempre que os eruditos compreenderam a razão dos pormenores escassos a respeito de Jesus uma vez que dependeram de relatos orais das testemunhas -mais tarde, exarados pelos autores dos evangelhos - que de nenhum modo demonstravam interesse na biografia de Cristo mas sim, no Seu aspecto sob o ponto de vista messiânico. Os seguidores de Jesus não sentiram necessidade de registrarem os eventos para a história porque para eles a história estava perto do seu tempo. Não manifestaram interesse em descreverem o aspecto físico de Jesus porque queriam antes falar daquilo que Ele disse e fez. Nem por sombra conceberam a necessidade de preservarem a descrição do aspecto físico ou da vida de Jesus, dado que aguardavam o seu imediato regresso «sustentado pelas nuvens do céu». Mas, os leigos, o povo comum, jamais compreenderam que assim fosse e por isso, cada vez em maior número, surgiram os cépticos e incrédulos. Para a gente do nosso tempo, educada no conceito da biografia e da história, Jesus tornou-se um ser irreal, a figura de ficção de um conto popular, tal como Hércules ou Paul Bunyan.

            -E agora, com a nova Bíblia, pensa que essas dúvidas se dissiparão?

            -Para sempre-disse firmemente o Dr. Evans.-Com o advento da nova Bíblia cessará o ceticismo. Jesus, o Messias será totalmente aceito. A prova será tão forte como se Ele fosse preservado para a posteridade em fotografia ou num filme. Sabendo que Jesus teve um irmão que se antecipou a todas as dúvidas pelo cuidado de registrar em primeira mão, fatos a respeito da vida d'Ele, sabendo que sobreviveram fragmentos do manuscrito que contêm um relato da Sua Ascensão por uma testemunha ocular, o mundo ficará arrebatado e restaurar-se-á em toda a parte uma crença sem mancha. Sim, Sr. Randall, aquilo que o nosso caro Sr. Wheeler e os seus colegas estão prestes a publicar e oferecer ao mundo não só afastará para sempre a descrença como também inspirará um milênio de fé e esperança entre os homens. Os seres humanos têm desejado durante séculos acreditar num Redentor. Finalmente, estão agora a caminho dessa total aspiração. Sr. Randall, sem dúvida que está envolvido num acontecimento memorável. Todos nós estamos. É para esse empreendimento sem paralelo que eu lhe desejo boa viagem.

            Completamente estonteado, ainda incapaz de absorver as implicações do achado, Randall procurou alívio temporário numa taça de champagne e buscou depois a realidade simples na pessoa de Darlene Nicholson.

            Investigando, localizou-a perto da porta. Um oficial de bordo acabara de se aproximar dela para lhe dizer qualquer coisa. Ela fez um sinal com a cabeça, e apressadamente seguiu o oficial da marinha mercante francesa para fora da sala. Curioso a respeito da súbita partida de Darlene, Randall tirou da bandeja de um garçon que passava mais uma taça de louro e espumoso líqüido, e, molhando os lábios, decidiu saber para onde ela foi.

Abrindo caminho pela multidão apinhada na sala, achou-se no Convés, coberto perto de um dos elevadores. Marlene não estava à vista daquele lado. Viu se a encontrava na sala de estar principal, ao dar a volta a uma escada, viu-a encostada a uma das janelas escancaradas da varanda do Convés Varanda. Mas, não estava sozinha, encontrava-se em grande conversa com um jovem mais ou menos da idade dela. Darlene tinha vinte e um anos, e o moço teria quando muito mais dois ou três. Um terno um tanto largo, de tecido de linho, não lhe ocultava por completo a compleição física bem desenvolvida. Era um homem de cabelo muito loiro, cortado curtíssimo, de feições bem desenhadas e marcantes que terminavam num maxilar quadrado. Parecia estar pedindo, insistentemente, algo a Darlene.

            Nessa altura, por uma descrição que Darlene em certa ocasião lhe fizera, tentando provocar ciúmes, Randall reconheceu o moço. Era Roy Ingram, antigo namorado dela em Katisas City. Era um contabilista, ou pelo menos preparava-se para o ser. Antes de Randall ter tempo para quaisquer especulações sobre a presença do rapaz naquele lugar, Darlene dera fé da sua presença, acenara-lhe com a mão, e caminhava em sua direção, seguida pelo jovem.

            Randall procurou um meio de se escapar à apresentação, mas era demasiado tarde. Os dois estavam já perto dele. Darlene tinha agora uma gardênia pregada na blusa, uma gardênia daquelas artificiais, que Randall julgava que já não se fabricassem.

            O sorriso dela era de satisfação, ao fazer as apresentações.

            -Roy, este é o meu patrão, Sr. Steve Randall..., este é Roy Ingram, um amigo meu de... Kansas City.

            Randall apertou a mão do rapaz.

            - Miss Nicholson já me falou de si.

            Roy Ingram estava evidentemente embaraçado.

            - Muito prazer em conhecê-lo, senhor. Darlene escreveu-me a respeito do trabalho na sua firma, e disse-me também que partiria para a Europa com o senhor em missão de trabalho. Eu... pensei em vir por aqui para desejar... a Marlene uma boa viagem.

            -Foi muito amável e gentil da sua parte vir desde Kansas para lhe desejar boa viagem.

            Ingram corou e atalhou:

            - Bem, eu... eu também tinha uns assuntos a tratar em Nova York... mas, claro, obrigado... pelas suas palavras.

            - Vou deixá-los conversar à vontade - disse Randall. Tenho que voltar para a festa.

            Uma vez em segurança na sala privativa, Randall lembrou-se da primeira vez que ouvira falar de Roy Ingram. Fora na noite do dia em que conhecera Darlene Nicholson. Ela fora uma das muitas moças enviada por agência como candidata a um emprego de secretária. Randall encontrava-se nessa ocasião no escritório e ligara o telefone para que Wanda lhe levasse uns documentos. Wanda entrara e pela porta aberta, atrás dela, Randall vislumbrara Darlene sentada ao lado da secretária, com uma perna traçada.

            - Quem é ela? - perguntara, fazendo um sinal com a cabeça para a porta.

            -Uma das moças candidatas ao emprego. Tenho estado a espreme-Ia. Mas o emprego não será para ela.

            -Talvez se tenha candidatado ao emprego errado. Mande-a ter comigo Wanda, e nada de observações. Não se esqueça de fechar bem a porta.

            Depois as coisas foram fáceis. O nome dela era Darlene e deixara Kansas City dois meses antes porque a cidade provinciana lhe tolhia as suas potencialidades criadoras. Sempre desejara trabalhar para a televisão em Nova York. Surgiram promessas e perspectivas habituais, mas nada de aparecer nas telas do pequeno aparelho. Como tinha pouco dinheiro, pensara que gostaria de trabalhar para uma firma famosa que tratava com gente famosa, porque seria engraçado. Randall gostara das maneiras simples dela e, sobretudo, dos seus rijos seios e daquelas elegantes pernas. Servira-lhe uma bebida e mencionara ocasionalmente os nomes de alguns amigos e clientes, dizendo-lhe que se sentia impressionado com a sua personalidade e intelecto, tão impressionado que achava ser pura perda de tempo que ela trabalhasse num escritório que lhe ofuscaria os naturais talentos.

            Prometera procurar-lhe algo melhor e mais adequado. E, a propósito, estaria ela livre para jantar com ele?

            Depois do jantar, Darlene seguira-o até o apartamento. Fora nessa altura que lhe perguntara se tinha um namorado. Ela admitira que sim, um tal Roy, em Kansas City, mas contara que havia rompido com ele quando partira para Nova York, por ser muito criança e maçador.

            -E gostaria de ter aqui alguém que a estimasse? -perguntara-lhe.

            - Depende.

            - Uma pessoa que tomasse conta de si? - persistira.

            - Se eu gostasse dessa pessoa, porque não?

            - Gosta de mim?

            Darlene passara a noite com ele. No dia seguinte mudara-se para o seu apartamento. Randall sempre pensara ter feito um negócio justo. Darlene desejara luxo, ócio, conhecimento com pessoas notáveis e encantadoras, viver em lugares dispendiosos. Randall necessitara de uma companhia de mulher com um corpo jovem e sem qualquer envolvimento de tipo emocional, e obtivera o que pretendera. Sem dúvida, um negócio justíssimo. Todavia, naquele momento, depois de a ter visto com aquele rapaz leal e amigo, um moço da idade dela, sentia uma ponta de culpa.

            Alguns momentos depois, Darlene juntou-se a Randall na sala onde acontecia a festa de despedida. O barulho ali dentro parecia ainda maior. Ela tinha um ar satisfeito e continuava a usar a gardênia na blusa.

            -Já me vi livre de Roy. Tiveste ciúmes?

            Randall pensou que ela não passava de uma garota estúpida.

            - Que queria ele? - perguntou.

            - Queria que eu não embarcasse contigo. Queria que eu voltasse com ele para Karísas City. Quer casar comigo.

            - Que lhe respondeste?

            - Que queria ir viajar contigo. Já estás satisfeito, querido?

            O sentimento de culpabilidade dele aumentara. Nada tinha para oferecer àquela moça na sua vida errante. Apesar disso, ela estava rejeitando alguém, algo de permanente e decente na vida para continuar vivendo com ele no meio da frivolidade. Não era justo. Todavia, também não via nada de injusto na situação. Afinal de contas, meter o pênis no interior de uma mulher jovem que desejava essa introdução com toda a sua volúpia não era considerado um ato de corrupção. Se havia qualquer corrupção, estava em utilizar a sua imagem como uma figura de pai amadurecido, tanto quanto a sua riqueza e poderio, para se aproveitar da fraqueza neurótica dela. Ela merecia alguém jovem como ela, que lhe dispensasse todos os cuidados e a contemplasse com três filhos, com uma máquina de lavar e com um secador, para toda a vida. Merecia alguém como Roy Ingram. No entanto ela preferia uma viagem a bordo do France, aquela ruidosa festa de despedida e o luxo que acompanhava tudo aquilo. Pois muito bem, estava tudo certo para ele e não menos certo para ela. Para o diabo com a moralidade.

            Acabou por dizer:

            - Vamos, Darlene, o champagne é por conta da casa.

            Era tudo o que se conseguia lembrar do primeiro dia a bordo. A seguir, o segundo dia, um dia já no mar.

            Bem estendido na fofa cama do camarote de luxo, agarrou no segundo programa.

 

                                               Programa para hoje

 

                                               Sábado, 08 de junho

            De manhã das 07h30 às 09h30- Café salão de refeições Chambord

            10h00 Ginástica à beira da piscina, Convés “D”, com o instrutor

 

            Pôs o programa de lado e começou a reviver tudo o que se recordava do seu segundo dia a bordo.

            Wheeler e Naomi Dumi que possuíam quartos separados na suite de luxo chamada Normandia, situada no Convés principal do navio, desceram para se juntarem a Randall e Darlene, quando estes estavam prestes acabando de engolir o ligeiro café. Depois de ter prometido aos dois que começaria trabalhando com eles dentro de uma hora, Randall levara Darlene dando um passeio higiênico pelo Convés Varanda, fazendo com ela uma aposta, durante o passeio, sobre a distância que o France percorreria entre o meio-dia desse dia e a mesma hora do dia seguinte. A seguir, pelo elevador interno, dirigiram-se ao Convés «D», onde Randall usava um calção de banho e Darlene um dos biquíni mais reduzido que Randall jamais vira. Tomaram banho na luxuosa piscina durante meia hora. Finalmente Darlene iniciara a sua vagabundagem pela embarcação, para gastar seu tempo vendo filme, televisão, ou aprender um daqueles complicados jogos de bordo. Ela não revelava o mínimo interesse no trabalho de Randall, bocejava quando a conversa versava qualquer tema sério e a leitura nem lhe passava pela cabeça. Sentia-se feliz com qualquer atividade que fosse física e contentava-se absolutamente em conhecer pessoas famosas, se é que a bordo se encontravam algumas.

            Randall encaminhou-se para o Salon Monaco, uma sala segregada situada por trás da biblioteca e da sala de correspondência para os passageiros da classe de luxo. Quando entrou já lá se encontravam Wheeler, em mangas de camisa e de gravata aliviada, e Naomi Dulin, sentada a uma mesa, que tirava apontamentos de uma pasta em pele de jacaré.

            Sentaram-se os três. Enfronhado por completo no trabalho, Randall em breve esqueceu totalmente o palácio flutuante que o cercava. Gradualmente, sentiu-se impelido para um passado remoto, deslizando pelos corredores de muitos séculos, até uma época rude, antiga, primitiva e violenta situada na Palestina do século I, quando os judeus estavam sujeitos à ocupação romana.

            Wheeler iniciara a exposição, ao mesmo tempo que tirava o celofane e cortava a ponta de um «puro» havano, carruto cubano, comprado na tabacaria a bordo.

            - Steve, para que compreenda, integralmente, o valor da descoberta do professor Monti em Ostia Antica, tem que ter bem presente o pouco que sabíamos a respeito de Jesus Cristo até o achado dos documentos. Se você aceitar os quatro evangelhos como uma coisa dada por Deus, uma revelação divina; aceitar cada frase inserida, simplesmente, baseado na fé sentir-se-á nesse caso, naturalmente, satisfeito e considerará muito o que sabe acerca de Jesus. Mas, a maioria das pessoas há muito tempo recusa aceitar o tão pouco que se sabe do Salvador.

            «Não obstante, o que o Dr. Evans lhe disse na festa de despedida sobre a maior parte dos estudiosos da Bíblia acreditarem sempre na existência de Cristo, o fato é que entre os racionalistas religiosos e os historiadores seculares houve sempre menos confiança na possibilidade d'Ele ter existido. A partir do momento em que você exige algo comprovado, no qual verifique a história da vida de Jesus e não se contentar sobre o que normalmente se propaga, então surgem as dificuldades. Ernest Renan, recordou-nos que os fatos conhecidos a respeito de Jesus se resume em menos de uma página. Muitos eruditos vão até mais longe, argumentando que tais fatos pouco vão além de um parágrafo. Outros eruditos -Reimarus e Bauer na Alemanha, Pierson e Naber na Holanda - pronunciam-se em que nem uma só palavra pode dar testemunho a favor da existência de Jesus, porque Ele não passa de um mito. Todavia, nos últimos cem anos, pelo menos setenta mil das chamadas biografias foram escritas e publicadas a respeito de Jesus.

            -Mas como é possível? - perguntou Randall.-Em que foram baseadas essas biografias? Nos quatro evangelhos?

            - Exatamente - respondeu Wheeler. - Nos escritos dos quatro discípulos - Mateus, Marcos, Lucas e João - e em pouco mais. Ora esses quatro autores dos evangelhos não viveram com Jesus, não O observaram, não O viram em carne e osso. Limitaram-se a recolher tradições orais, alguns escritos da primitiva comunidade cristã e foi isso o que transcreveram para os papiros décadas depois da suposta morte de Jesus. Tudo isso se solidificou no cânone imutável, convertido em nosso Novo Testamento por volta do terceiro ou quarto século.

            George L. Wheeler expeliu uma nuvem de azulado fumo, procurou entre os papéis que Naomi colocara diante dele e recomeçou.

            -Se basearmos nossos conhecimentos da existência de Cristo e da Sua vida em testemunhos puramente cristãos, no testemunho dos evangelhos, o que teríamos? A história do Novo Testamento abrange um período que não vai além de uma centena de anos. Dos vinte e sete livros que compõem o Novo Testamento, somente quatro consideram na verdade, a vida que Jesus viveu, e esses quatro representam menos de quarenta e cinco por cento do total do Novo Testamento. Mas, o que nos dizem esses quatro livros sobre a Sua vida real?

            “Registram traços breves reduzidos, pormenores do primeiro e do décimo segundo ano da vida de Jesus e passam depois num salto para os últimos dois anos da sua existência terrestre, e é tudo o que noticiam. Na verdade não há notícia de nove décimos da sua vida. Muito pouco nos é dito sobre infância, juventude e maioridade. Não nos dizem, exatamente, onde é que Ele nasceu, onde estudou, qual era o seu mister. Não é dada qualquer descrição física d'Ele. Somente baseados em fontes cristãs, aquilo que sabemos de Jesus pode integrar-se por compressão num parágrafo... Naomi, leia a Steve aquilo que temos.”

            Randall voltou a atenção para Naomi Durin. As feições dela não deixavam transparecer qualquer emoção. Concentrava-se na folha de papel que estava à sua frente.

            -Com base nos escritores dos evangelhos, eis tudo o que se deduz - e começou lendo em voz alta: -Jesus nasceu perto do final do reinado de Herodes, o Grande em Nazaré, ou Belém. Foi levado, como medida de proteção, para o Egito. Provavelmente, passou a infância numa cidade da Galiléia chamada Nazaré. Há somente doze palavras consagradas à sua infância, declarando que Ele cresceu, adquirindo um espírito forte, cheio de sabedoria. Por volta dos doze anos, foi levado para Jerusalém onde se reuniu com os doutores do templo. Depois disso, um enorme vazio. Nem mais uma palavra de informação até Jesus ter cerca de trinta e dois anos. Aprendemos depois que foi batizado por João, o Batista, que foi enviado por Deus a fim de preparar o povo para o aparecimento do Messias. Uma vez batizado, Jesus retirou-se para o deserto onde passou quarenta dias em meditação.

            Randall interrompeu.

            - Quantos evangelhos registram essa estadia no deserto?

            - Foi registrada por Marcos, Mateus e Lucas, mas não por João - respondeu Naomi. Depois, concentrou-se de novo nos seus apontamentos, lendo: - Saindo do retiro no deserto, Jesus regressou à Galiléia para empreender Sua pregação. Realizou duas viagens em volta de Cafarnaum e numa terceira viagem atravessou o mar da Galiléia para pregar em Gadara e Nazaré. Mais tarde, seguiu para o norte, a fim de exercer o seu ministério em Tiro e Sídon. Voltou finalmente a Jerusalém. Retirou-se para um lugar fora da cidade e manteve-se em contato com os seus discípulos. Na véspera da Páscoa, entrou em Jerusalém pela última vez. Derrubou as bancas dos vendilhões do templo. Ensinou no templo. Procurou refúgio no Monte das Oliveiras. Com os doze discípulos, realizou a ceia na casa de um amigo. Foi preso no jardim de Getsêmane e considerado culpado de blasfêmia pelo conselho do Sinédrio. Compareceu depois perante Pôncio Pilatos, o governador Romano, para ser julgado, foi condenado à morte e crucificado no monte Gólgota.

            Naomi pousou na mesa a folha de papel. Lançou uma olhada para Wheeler.

            -Eis toda a história de Jesus homem, de acordo com os evangelhos, sem as parábolas, preceitos, milagres, possibilidades e dúvidas. Eis tudo o que milhões de cristãos conseguiram saber a respeito de Jesus, como pessoa humana, durante quase dois mil anos.

            Randall agitou-se na sua cadeira.

            -Devo admitir que foi muito pouco para se edificar uma igreja e insuficiente para provar que Jesus era o Filho de Deus.

            -Ou para manter por tanto tempo milhões de crentes- completou Wheeler. -E, recentemente, desde a investida dos racionalistas e do advento da idade da ciência, pouquíssimo para manter os fiéis satisfeitos.

            -Contudo, existem escritos a respeito de Cristo por não-cristãos - lembrou Randall.-Por exemplo, da autoria de Flavius Josephus e de alguns escribas romanos.

            - Sim, Steve, mas não são suficientes, pelo contrário. O testemunho cristão é relativamente pormenorizado em comparação com o testemunho dos não-cristãos. As nossas provas romanas falam da existência de cristãos, mas não fornecem qualquer descrição de Cristo. Contudo, presumimos que se o cristianismo era conhecido dos seus inimigos, deverá ter existido um Cristo. De fato temos duas fontes judaicas que falam de Cristo. - Wheeler colocou a ponta do seu charuto no cinzeiro. -Você mencionou Flavius Josephus, o pretenso padre e historiador judaico que tomou a cidadania romana. A sua vida abrangeu os anos 37 D.C. até cerca de 100 D.C. Caso acreditemos nos manuscritos existentes de sua autoria, teremos então uma positiva confirmação dos evangelhos. Flavius Josephus acabou de escrever as Antigüidades dos judeus em 93 D.C. Aparentemente mencionou Cristo em duas passagens... Naomi, tem essas passagens à mão?

            Naomi Durin localizou o que lhe era pedido, após uma breve busca entre a papelada.

            -A mais longa das duas passagens de Flavius Josephus diz: «Ali surgiu, por essa época, Jesus, um homem sábio, se é justo chamar-lhe um homem, porque na verdade praticou atos extraordinários, sendo um mestre de homens contentes por receberem a verdade, tendo atraído à sua doutrina muitos judeus e muitos homens da raça grega. Ele foi o Cristo. E quando Pilatos a instâncias dos homens mais sábios entre nós, o condenou sendo crucificado, aqueles que primeiro o amaram não cessaram de o fazer, porque no terceiro dia ele apareceu de novo, uma vez que os divinos profetas tinham profetizado isso mesmo e muitas outras maravilhas a respeito dele. E mesmo agora a tribo dos cristãos, assim chamados, ainda não se extinguiu.» Agora a segunda passagem, a mais curta, que...

            Wheeler levantou a mão.

            - Basta, Naomi, posso prosseguir agora. - Voltou-se para Randall. - Se foi na verdade Josephus quem escreveu tais palavras, constituiria sem dúvida a mais antiga referência a Jesus em documentos seculares. Infelizmente, não conheço um só erudito que acredite que Josephus escreveu tal passagem em sua totalidade. Tal como foi redigida, ninguém o considera autêntico, devido ser demasiado pró-cristã para ser escrita por um primitivo escritor judeu. É, simplesmente, difícil engolir seu conteúdo como fidedigno, sobretudo pouco crível que um historiador não-cristão se referisse a Jesus como «um homem sábio, se é justo chamar-lhe um homem» e declarando «Ele foi o Cristo.» Tais palavras foram mais tarde consideradas como uma interpolação feita por um escriba cristão durante a Idade Média, um escriba que tentava criar um Jesus histórico. Por outro lado, alguns dos nossos consultores da Ressurreição Dois - entre eles o Dr. Bernard Jeffries, com quem você se encontrará - estão convencidos que Josephus se referiu a Jesus duas vezes, mas, concordam também, que o que ele escreveu foi, evidentemente, pouco lisonjeiro e nada apologético, sendo emendado séculos depois por qualquer copista cristão piedoso que não gostou da passagem.

            - Por outras palavras, os eruditos pensam que Flavius Josephus só reconheceu a existência de Jesus, não é assim?

            - É. Mas, o caso é que tais pensamentos não passam de especulações, de modo que não é nenhuma prova. Preocupamo-nos a respeito de fatos históricos em documentos seculares. Outra fonte judaica sobre Jesus é o Talmude, que os escribas judeus começaram a redigir no século II. Ora, tais documentos rabínicos basearam-se em boatos, histórias passadas de boca em boca, e, é claro, desfavoráveis a Jesus. Registraram que Ele praticava magia e que acabou por ser enforcado sob acusações de heresia e de arrastar o povo por maus caminhos. Mais dignas de crédito, ainda, são as menções puramente pagãs ou romanas relacionadas a Cristo. A primeira foi...

            Coçou uma das hirsutas sobrancelhas tentando lembrar-se, e Naomi interveio rapidamente:

            -Foi de Thallus, na sua história em três volumes. Provavelmente, escrita em meados do primeiro século.

            -É verdade -prosseguiu Wheeler-a primeira foi de Thallus. Ele descreveu as trevas que pairou sobre a Palestina na altura em que Jesus morreu, atribuindo essa escuridão a um eclipse do sol, embora mais tarde, os autores cristãos tivessem insistido no fator milagre. A seguir foi Plínio, o Moço, quando governador da Bitínia, numa carta para o Imperador Trajano, por volta de 10 D.C.- ao falar de litígios na sua comunidade com a seita dos cristãos. Considerou o cristianismo uma rude superstição, mas, escreveu também que os seus partidários pareciam inofensivos, reunindo-se antes de raiar a manhã para cantarem «um hino a Cristo como a um deus». Depois foi Tácito, nos seus Anais escritos entre 110 e 120 D.C. O Imperador Nero, para se absolver de ter incendiado Roma, atirou a culpa em cima dos cristãos... Naomi, vejamos essa transcrição.

            Wheeler pegou nas duas folhas datilografadas que ela lhe estendeu, dizendo depois a Randall:

            -Quero que ouça, pelo menos uma parte, do que Tácito escreveu sobre os acontecimentos: «Nero pôs a culpa e infligiu as mais requintadas torturas numa classe odiada pelas suas abominações, a quem a população perseguia e a quem chamava cristãos.

Cristus, de cujo nome deriva a seita, sofreu a pena capital durante o reinado de Tibério às mãos de um dos nossos procuradores, Pôncio Pilatos, e das mais malévolas superstições, verificadas até à data, irrompeu não só na Judéia, a primeira fonte do mal, como se alargou até Roma ... »

            Wheeler levantou os olhos.

            -Finalmente, temos esse historiador mexeriqueiro, Suetônio que nas suas “Vidas dos Césares”, escrita entre 98 D.C. e 138 D.C., falando do Imperador Cláudio disse: «baniu de Roma todos os judeus, que estavam, constantemente, fazendo distúrbios a instigações de Crestus.» E eis tudo o que temos, Steve, as únicas menções não-cristãs de Cristus, Crestus ou Cristo, a maior parte, feitas entre meio século e mais de um século depois da suposta morte de Jesus. De modo que aquilo que herdamos da história judaica e romana é que, provavelmente, o agente catalisador dessa nova religião chamava-se “Cristo”. Se quiséssemos mais elementos, teríamos que depender de fontes extremamente suspeitas , ou seja, nomeadamente dos quatro autores dos evangelhos. Simplesmente, não possuímos uma biografia de Jesus Cristo objetiva e concreta escrita por um dos seus contemporâneos. Temos, somente um culto, cada vez mais difundido, convertido pelas suas crenças num possível Mito.

            -Mesmo assim - disse Randall - a falta de uma verdadeira informação biográfica não é forçosamente suspeita. Tal como o Dr. Evans frisou, o período da pregação de Jesus foi tão sem importância a Sua morte para os romanos, que nem sequer existiu qualquer razão para que o caso ficasse registrado,

            -De fato - concordou Wheeler.-Penso que Millar Burrows, o perito, a maior autoridade nos Pergaminhos do Mar Vermelho, ou dos Documentos do Mar Morto, considerou o caso da melhor forma. Sublinhou que se Jesus fosse um revolucionário com um milhares de adeptos, se tivesse lutado contra as legiões romanas e tentado estabelecer o Seu próprio reino, com certeza existiriam moedas gravadas e inscrições marcadas em pedras que registrassem Sua revolução e Seu subseqüente fracasso. Mas, disse Burrows, Jesus não passou de um pregador errante. Não escreveu livros, não construiu edifícios, nem organizou instituições. Deixou com toda a simplicidade a César o que era de César. Não procurou mais do que fundar na terra um reino dos Céus, esperando que alguns pobres pescadores levassem Sua mensagem à humanidade pela palavra oral. Como Burrows disse, o reinado de Herodes deixou o seu testemunho em colunas desmoronadas. O começo do Cristianismo não possui tais provas arqueológicas, dado que Jesus não deixou atrás de Si mais nenhum monumento, a não ser a Igreja Cristã.

            -E agora, quase de um dia para o outro, o mundo conhecerá o contrário - disse Randall com ar pensativo - O mundo saberá que a biografia de Jesus foi escrita por duas pessoas: Jacob e Petrônio. Duas pessoas que o conheceram em carne e osso. George, isso é um milagre.

            - É um milagre de sorte, por um feliz acaso - disse Wheeler - Jesus teve um irmão que foi bastante íntimo d'Ele, que O reverenciava, que se sentiu, suficientemente, impressionado por ele e pela Sua causa para se empenhar em escrever a vida de Jesus. O resultado disso, é que daqui a dois meses, o Evangelho Segundo Jacob cairá como uma bomba, como o ribombo de um trovão, sobre uma humanidade que de nada suspeita. Mas, como se Jacob não fosse suficiente, a luta pelo poder em Roma de 30 D.C., precisamente, na altura em que Jesus foi crucificado, fornece-nos a prova de Jesus como ser e fala-nos dos seus derradeiros dias em Jerusalém. E tudo isso nos é fornecido por uma fonte pagã imparcial.

            Randall acabou de acender o seu cachimbo.

            - George, ainda não me disse muito a respeito disso.

            - Terá a história completa nas próximas semanas. Por hora, resumindo, eis como o Pergaminho Petrônio, provavelmente, aconteceu. Como sabe, quando Jesus pregava na colônia romana da Palestina, o imperador era o velho e caduco Tibério. Por várias razões Tibério preferia viver afastado na paradisíaca ilha de Capri. Como seu representante em Roma, deixara na capital do Império, o prefeito da sua Guarda Pretoriana, o ambicioso Lúcio Élio Sejano. O Imperador Tibério governava através Sejano, mas, na verdade este era o homem que governava o Império Romano e que planejava derrubar Tibério e fazer-se aclamar imperador. Em todas as colônias e províncias de Roma, Sejano colocou, governadores que lhe eram leais e possuía uma rede de centuriões que lhe enviavam, regularmente, notícias sobre quaisquer deslealdades, deficiências ou revoltas nos territórios do Império. Foi Sejano quem colocou Pilatos na Palestina, e, ao que parece, os oficiais das legiões sob o governo de Pôncio Pilatos receberam ordens para lhe relatarem regularmente- por vezes secretamente -qualquer perturbação, julgamento ou execução, sem importar a sua dimensão, que tivessem lugar na província. Os relatórios eram enviados por correios para Roma e chegavam intactos às mãos de Sejano.

            Randall estava fascinado.

            -De modo que, quando Jesus foi submetido a julgamento e crucificado, ainda que fosse um caso mesquinho, houve um oficial romano que, rotineiramente, relatou o caso a Sejano em Roma, não é verdade?

            -Mais ou menos assim- respondeu Wheeler.-Ou o próprio Pilatos aprovou e enviou o relatório de rotina sobre o julgamento e morte de Jesus ao governador de Damasco, que por sua vez o fez seguir para Sejano em Roma, ou Pilatos não se importou em enviar nenhum relatório, mas, o centurião da sua guarda pessoal, que acompanhou Jesus ao Gólgota e fiscalizou a Sua crucificação, escreveu o relatório em nome de Pilatos e enviou-o por correio militar para Sejano. E esse comandante da guarda de Pôncio Pilatos chamava-se Petrônio. No entanto, e aqui é que está o interesse da coisa, Sejano, provavelmente, nunca viu tal relatório.

            -Nunca o viu? Que quer dizer? - admirou-se Randall.

            - De acordo com o documento, Jesus foi, presumivelmente, executado no sétimo dia dos Idos de Abril, no décimo sétimo ano do reinado de Tibério – por volta de 30 D.C. Muito bem. Assim que o relatório ficou pronto para seguir, chegaram boatos às colônias de que Sejano estava metido numa conspiração contra o imperador. Esse relatório sobre a crucificação de Jesus, juntamente com outros documentos, é quase certo que foi retido, até que a posição de Sejano fosse definida. Depois, em Cesaréia ou Damasco, devem ter decidido que as coisas estavam resolvidas em Roma e que Sejano mantivera o prestígio, continuando no poder. De modo que o relatório, com outros, seguiu o seu destino. Quando o emissário desembarcou do navio mercante no Porto de Ostia na Itália, o que deve ter acontecido no ano seguinte, isto é em 31 D.C. - logo que desembarcou soube por outros soldados e oficiais que Sejano, bem como todos os que com ele comunicassem, eram considerados suspeitos, pois na verdade estava em maus lençóis.

            -E era verdade?

            -Sem dúvida - garantiu Wheeler.-O Imperador Tibério César tivera conhecimento que Sejano tentava diminuir a sua autoridade e pensando apossar o trono e vai daí o Imperador mandou que Sejano fosse executado em Outubro de 31 D.C. Vendo no pé em que as coisas estavam, receoso de entregar os seus relatórios confidenciais a Sejano, correndo o risco de atrair sobre a sua cabeça a cólera de Tibério, o mensageiro deixou provavelmente os seus documentos, incluindo o processo e crucificação de Cristo, para salvaguarda, nas mãos de qualquer subalterno da Guarda Pretoriana ou até nas mãos de qualquer civil amigo, regressando à Palestina para continuar cumprindo os seus deveres.

            -Começo a imaginar aquilo que deve ter acontecido -disse Randall.

            - Nada sabemos com segurança - lembrou-lhe Wheeler -, mas podemos entrar em algumas conjecturas lógicas. O mais provável é que a pessoa a quem foi dado o relatório resolveu retê-lo depois da morte de Sejano. Em breve o documento foi posto de lado como ultrapassado, caindo no esquecimento. Depois da pessoa a quem o relatório fora confiado ter morrido, um parente pode tê-lo encontrado, alguém que fosse em segredo um cristão, e esse converso preservou-o juntamente com o documento escrito por Jacob. Uma outra teoria, mais simples, é que a pessoa a quem, originalmente, foi dado o relatório pelo mensageiro se convertesse ao cristianismo, tomando-se, naturalmente, os seus haveres mais caros o pergaminho Petrônio e o Evangelho Segundo Jacob. Seja como for, uma vez que os cristãos eram perseguidos, os documentos foram metidos na base oca da estátua e escondidos das autoridades. Com o passar das décadas e dos séculos essa base foi soterrada por detritos e acabou por se perder -até que o professor Monti as escavasse há seis anos atrás. Presentemente, os documentos foram-nos concedidos sob arrendamento e ainda são mantidos em segredo, mas, muito em breve serão tornados públicos e passarão sendo propriedade do mundo através das páginas do Novo Testamento Internacional.

            -Fantástico! -exclamou Randall, ao mesmo tempo que arrastava mais a sua cadeira para junto do editor. -Todavia, George, ainda não me revelou totalmente o segredo. O pouco que me disse em nosso primeiro encontro foi, no entanto, suficiente para que eu largasse tudo o mais para vir consigo. Agora gostaria de saber o que falta.

            Wheeler acenou como quem compreende.

            - Claro que será informado de tudo, mas não já, Steve. Espera-o em Amsterdã uma prova definitiva. Logo que chegarmos poderá ler o Evangelho Segundo Jacob e o material que constitui o pergaminho Petrônio. Prefiro não estragar a surpresa dessa primeira leitura citando trechos esparsos. Espero que não se importe.

            - Claro que me importo, mas posso esperar mais alguns dias. Pelo menos, diga-me... Qual era o aspecto físico de Jesus?

            - Não como da Vinci, Titoretto, Rafael, Vermeer, Veroneso ou Rembrandt O pintaram, posso assegurar-lhe. Não como a figura representada nesses quadros e cruzes que se compram em lojas religiosas de todo o mundo e que se encontram em centenas de milhões de lares do nosso planeta. Jacob, o irmão d'Ele, conheceu-o como um irmão, não como um ídolo martirizado servindo propósitos de sermões elegantes. - Wheeler sorriu. - Paciência, Steve...

            Randall interrompeu-o.

            -O que continua a obcecar-me é o que você me disse a respeito de Jesus ter sobrevivido à Crucificação. Será mera conjetura.

            -Não, absolutamente não - respondeu Wheeler com ênfase. - Jacob foi testemunha do fato de Jesus não ter morrido na cruz, de não ter ascendido ao céu - pelo menos não no ano

30 D.C. - todavia, sobreviveu para continuar o seu trabalho missionário. Jacob fornece provas concretas de testemunhas oculares sobre o fato de Jesus conseguir fugir são e salvo da Palestina...

            -E para onde Ele foi?

            - Para Cesaréia, Damasco, Antioquia, Chipre, eventualmente até para Roma, coração do Império.

            -Continuo achando difícil acreditar. Jesus em Roma, É incrível...

            - Steve, acreditará, deixará de ter dúvidas - disse Wheeler convicto. - Uma vez que tenha à frente dos seus olhos a prova autenticada, vai ver que deixará de formular perguntas.

            - E depois de Roma? - Perguntou Randall. - Quando em Roma Ele andaria pelos quarenta e quatro anos. Para onde é que se dirigiu depois? Quando e como é que Ele morreu?

            Abruptamente, Wheeler levantou o seu grande bojo da cadeira em que estava sentado.

            - Saberá as respostas em Amsterdã, na sede da Ressurreição Dois - prometeu-lhe Wheeler. O editor acenou para alguém que se encontrava no limiar. - Eis Miss Nicholson. Penso que é tempo de interrompermos para almoçar. A refeição foi anunciada a pouco.

            E decorrera assim o segundo dia a bordo, pelo menos aquilo que Randall recordava enquanto estava deitado na cama, naquele quinto dia do France a sulcar as águas do Atlântico.

Do quarto ao lado veio a voz de Darlene.

            - Steve, está levantado? Chegou o café! Levante-se.

            Ainda tinha três programas sobre os joelhos.

 

         PROGRAMA PARA HOJE

         DOMINGO, 9 DE junho

 

            O terceiro dia a bordo George L. Wheeler insistira em que fosse de repouso. Às 11 horas Wheeler, Darlene e Naomi assistiram um serviço religioso protestante realizado no teatro de bordo. Randall evitara acompanhá-los, assistindo à «Sua Lição de Francês» no salão Riviera. Almoçaram, com algum atraso, na sala de jantar Chambord, o gigantesco restaurante do navio. À tarde realizara-se uma partida de bridge, provaram vinhos e tomaram coquetéis no «Cabaret de l'Atlantique». Depois do jantar, na Sala Fontainebleau, seguira-se um baile e alguns jogos de salão.

                                              

 

         PROGRAMA PARA HOJE

         SEGUNDA-FEIRA, 10 DE junho

 

            O quarto dia a bordo. O dia anterior. Horas de perguntas e respostas reunido com Wheeler e Naomi sobre como foram preparadas as Bíblias anteriores, desde a Versão do Rei Jacob até à moderna Versão Modelo Revista, como documentação para uma compreensão sobre o modo como seria adaptado ao público o Novo Testamento Internacional. A verdadeira torrente de palavras tinha-o fatigado e à noite bebera demasiado vinho tinto e scotch no «jantar de Gala do Comandante».

 

         PROGRAMA PARA HOJE

         TERÇA-FEIRA, 11 DE junho

 

            Aquele dia que começara. Iria saber pela primeira vez qual a formação do Comando da Ressurreição Dois em Amsterdã e receber instruções sobre os consultores que, no dia seguinte, encontraria no Museu Britânico, em Londres, sobre o seu pessoal em Amsterdã e sobre outros consultores com quem poderia contatar para efeitos de publicidade em Paris, Frankfurt, e Mainz, e também em Roma. De novo a voz de Darlene.

            - Steve, os teus ovos estão esfriando! Afastou de si o programa do dia e saiu da cama.

            -Já vou, bonequinha! -gritou.

            Ia iniciar o seu último dia a bordo.

 

            Por volta do meio-dia, os três saíram para o ar livre e continuaram conversando. Quando pela última vez Randall vira Darlene, pouco tempo antes, ela estava jogando tênis de mesa no Convés Varanda com certo e untuoso húngaro. Nesse momento Randall estava sentado numa cadeira de lona no Convés superior, com Wheeler a seu lado e Naomi tremendo, embrulhada numa manta, na cadeira seguinte.

            Estavam no Atlântico Norte, perto da Inglaterra, e com exceção de uma certa ondulação provocada por um vento ponteiro, o mar podia considerar-se calmo. Por cima deles no céu densas nuvens negras que tinham ocultado o Sol. Esfriara um pouco. Randall olhou para o horizonte, hipnotizado pela longa esteira de espuma branca que o navio deixava atrás de si. Ociosamente, contemplou o mastro da bandeira entre os dois mastros e pensou porque não estaria hasteada a bandeira tricolor. Mas, lembrou-se imediatamente que a bandeira só era subida quando o navio aportava. Depois, devido a Wheeler ter reatado a sua conversa orientadora, Randall concentrou toda a sua atenção naquilo que o editor dizia.

            -De modo que tem pelo menos uma certa idéia da situação na nossa sede de Amsterdã. Nesta fase o problema que mais nos preocupa, e que eu desejo sublinhar, é o problema da segurança. Concentre-se mais uma vez nas nossas instalações. O Grande Hotel KrasnapoIsky fica situado, precisamente, na praça mais movimentada de Amsterdã, na Dam, mesmo em frente do palácio real. A Ressurreição Dois ocupa e controla dois andares completos dos cinco que constituem o KrasnapoIsky. Depois de termos renovado e ocupado esses dois andares, os cinco que dirigimos o projeto, cinco editores - o Dr. Emil Deichhardt, da Alemanha, o presidente do nosso conselho de Administração, Sir Trevor Young, da Inglaterra, Monsieur Charles Fontaine, da França, Signore Luigi Gayda, da Itália, e este seu garçon, George L. Wheeler, dos Estados Unidos -tivemos que transformar os nossos dois quintos do hotel numa fortaleza hermética contra as fugas de informação. Afinal, apesar dos nossos dois andares, o edifício continua sendo um hotel público, Steve. Pode crer, logo que entramos em total preparação e depois na produção do nosso Novo Testamento Internacional, passamos a dedicar grande parte do nosso tempo ao problema da segurança. Foi um trabalho formidável calcular a melhor forma de cobrir lacunas, eliminar todos os perigos possíveis e imaginários.

            - E como é que conseguiram resolver o problema? - perguntou Randall. - O Hotel KrasnapoIsky é absolutamente seguro?

            - Penso que sim. Espero que sim - respondeu Wheeler encolhendo os ombros.

            Naomi levantou-se um pouco da sua cadeira inclinou-se e disse para Randall:

            - Steve, acabará por saber que o Sr. Wheeler é excessivamente cauteloso e pessimista a respeito de tais assuntos. Eu posso contar-lhe em que pé estão as coisas porque observei as operações que tiveram lugar no KrasnapoIsky. Posso dizer-lhe que é à prova de fogo, uma autêntica fortaleza de segurança. O fato é que as obras de renovação e adaptação no hotel levaram vinte meses, e que ninguém de fora tem a mínima idéia das proporções daquilo que se passa no interior dessa fortaleza... Sr. Wheeler, deve falar a Steve no dispositivo de segurança - nem uma fuga de uma palavra para a imprensa ou o mais leve transpirar para a televisão, rádio ou outro meio de informação. Nem sequer um rumor, nesta fase, para o clero dissidente.

            - Absolutamente verdade - concordou Wheeler coçando o pescoço. -No entanto, com a aproximação destes últimos e cruciais meses, continuo preocupado. O sigilo torna-se mais importante do que nunca. Embora disponhamos a mais experiente força de segurança privativa desde sempre reunida guardas fardados e à paisana recrutados entre agentes que fizeram noutro tempo parte do FBI, da Scotland Yard, da Súreté, todo um grupo sob a chefia de um holandês, o inspetor Heldering, antigo dirigente da Interpol -eu continuo sentindo-me preocupado. Isto é, está circulando boatos a nosso respeito, está concentrando no exterior uma tremenda pressão, tanto por parte da imprensa como do clero dissidente, para saberem aquilo que estamos fazendo e com que contamos.

            Pela segunda vez o aparelho auditivo de Randall tinha captado a palavra clero dissidente.

            -O clero dissidente? - repetiu. - Pensava que todo o clero, sem exceção, queria cooperar conosco para manter o caso velado até à última hora. Os sacerdotes, como um todo de formação clerical, beneficiarão tanto quanto nós no aparecimento em público do Novo Testamento.

            Wheeler alongou os olhos para o mar, ficando pensativo durante alguns segundos.

            - Já ouviu falar do Reverendo Maertin de Vroome, o pastor da Westerkerk, essa gigantesca igreja em Amsterdã?

            - Sim, já ouvi alguma coisa a respeito dele - respondeu Randall, lembrando-se da sua conversa com Tom Carey em Oak City. -Um amigo meu de infância, na terra onde nasci, um sacerdote, é grande admirador desse de Vroome.

            -Bem, pois eu não sou um admirador de de Vroome, pelo contrário, mas, esses jovens turcos do clero que querem derrubar a igreja ortodoxa, convertê-la numa comuna destinada a trabalho social e para o diabo com a fé e com Cristo... são precisamente aqueles que apóiam de Vroome, que é o homem mais poderoso na Nederlands Hervomd Kerk-a Igreja Reformista Holandesa. E o nosso Dominee de Vroome-Dominee é o título adequado à sua dignidade religiosa-estende os seus tentáculos por toda a parte, subvertendo e minando o protestantismo em todo o mundo ocidental. Ora é ele que constitui precisamente a maior ameaça contra nós.

Randall sentiu-se fortemente intrigado.

            -Mas porque raio é que ele será uma ameaça para vocês... para um grupo de editores da Bíblia que procuram apresentar um Novo Testamento revisto?

            -Porquê? Porque de Vroome é um herético, um estudioso de formação crítica, influenciado por esse outro herético Rudolf Bultmann, o teólogo alemão. De Vroome é céptico a respeito dos acontecimentos apresentados pelos escritores dos evangelhos. Crê firmemente que o Novo Testamento deve ser desmistificado, expurgado dos mitos, limpo dos milagres - da transformação da água em vinho, do alimentar das multidões pela multiplicação dos pães e dos peixes, do ressuscitar de Lázaro, da Ressurreição e da Ascensão - antes de poder ter significado para o moderno homem científico. Acredita que nada se pode saber de um Jesus histórico, minimiza a existência de Jesus, sugere até que Jesus pode ser inventado como promoção para a nova mensagem do cristianismo e que por isso a única coisa de valor é a mensagem intrínseca, de por si, quando for transformada em algo de pertinente e racional para o homem moderno.

            - Pretende dizer-me que tudo aquilo em que de Vroome acredita é na mensagem de Cristo? - perguntou Randall. - Mas afinal que gostaria ele de fazer com essa mensagem?

            - Bem, com base da nossa interpretação pessoal do caso, de Vroome pretende uma igreja social e politizada, política, uma igreja interessada principalmente na nossa vida imediata sobre a terra, com exclusão do céu, de Cristo como Messias e dos mistérios da fé. Mas há mais. Mais que em breve ouvirá. Mas, de momento pode já avaliar como um anarquista da estatura de de Vroome encararia o Evangelho Segundo Jacob, o Pergaminho Petrônio, todo o Novo Testamento Internacional com a sua revelação de um Cristo real, palpável, se assim me posso exprimir. De Vroome consideraria imediatamente que a nossa revelação reforçaria a hierarquia tradicional da igreja e a sua ortodoxia, afastando os vacilantes clérigos e as congregações do radicalismo religioso, de volta ao sólido redil da velha igreja tradicional. O caso significaria o fim das ambições acalentadas por de Vroome e o acabar da revolução eclesiástica.

            -Mas então de Vroome sabe da Ressurreição Dois?

            -Temos razões para crer que ele suspeita o que se está passando no Hotel KrasnapoIsky. De Vroome possui dezenas de espiões, mais espiões de que guardas de segurança nós temos. Só temos a certeza de que na presente data nada sabe a respeito dos pormenores da nossa descoberta. Se soubesse, teria já agido minando e destruindo os nossos esforços antes que pudéssemos fornecer ao mundo toda a nossa história e as provas de autenticidade que possuímos. Mas agora, a cada dia que passa, o jogo torna-se mais perigoso, dado que à medida que o Novo Testamento Internacional vai saindo das máquinas de impressão, começou a aumentar as páginas utilizáveis, e algumas delas podem muito bem acabar por cair nas mãos de Vroome antes da data fixada por nós para publicação. Se tal coisa acontecesse, sem dúvida que de Vroome nos poderia prejudicar, digamos mesmo até destruir por meio de antecipada propaganda de deturpação e deformação dos fatos. A mínima fuga para a imprensa ou para de Vroome pode representar a nossa perda. Estou dizendo-lhe isto tudo, Randall, porque logo que de Vroome saiba da sua existência e da sua posição junto de nós, você transformar-se-á num dos seus primaciais objetivos.

            Randall garantiu.

            -Ele nada conseguirá de mim. Ninguém será capaz de me arrancar seja o que for.

            - Apenas o queria avisar. Steve, terá de se manter em guarda cada minuto que passar. - Wheeler perdeu-se de novo em pensamentos. - Vamos lá ver se omiti alguma coisa daquilo que você saberá a respeito da Ressurreição Dois.

            Depois de ter ponderado cuidadosamente, seguiu-se mais uma hora de conversa sobre as informações que Wheeler omitira.

            O editor começou falando do círculo superior de personalidades mais diretamente responsáveis pelo Novo Testamento Internacional. Havia um arqueólogo italiano, o professor Augusto Monti, que fizera a sensacional descoberta. O professor Monti, ligado à Universidade de Roma, morava com a sua filha mais nova, Angela Monti, numa vila situada algures na Cidade Eterna. Depois havia o francês, o professor Henri Aubert, um cientista profundo e incomparável que tinha passado foros de autenticidade ao papiro e aos fragmentos de pergaminho na sua Repartição de Datas pelo Carbono 14 pertencente ao «Centre National des Recherches Scientifiques de Paris», casado com a encantadora Gabrielle, um casal cuja companhia era encantadora.

            A seguir, segundo Wheeler, situava-se Herr Karl Hennig, o conhecido impressor alemão, com o seu complexo tipográfico em Mainz e os escritórios administrativos em Frankfurt. Hennig, um celibatário, era um erudito sobre Gutenberg e um dos benfeitores do Museu Gutenberg situado nas vizinhanças do seu complexo tipográfico. Finalmente, chegou a vez do Dr. Bernard Jeffries, o idoso teólogo, crítico de textos bíblicos e perito em aramaico, diretor da «Honour Schoool of Teology» da Universidade de Oxford, bem como o seu jovem assistente e protegido, Dr. Florian Knight, que fizera investigações para o Dr. Jeffries no Museu Britânico. O Dr. Jeffries fora também o diretor da equipe internacional que havia traduzido o Evangelho Segundo Jacob.

Wheeler teve uma breve luta com a enorme massa do seu corpo para se levantar da cadeira de repouso.

            - Sinto-me exausto. Vou ver se durmo uma soneca antes de nos encontrarmos para jantar. É a última noite a bordo, por isso nada de smokíng. Olhe, Steve, o nosso Dr. Jeifries e Kníght serão os primeiros da nossa equipe com quem você se encontrará amanhã em Londres. Penso que Naomi poderá informá-lo sobre eles adequadamente -realizou quase uma volta de bailado para encarar Naomi Dunn.-Naomi, entrego nas suas mãos o nosso eminente publicitário. Prossigam.

            Randall seguiu com os olhos o editor até o perder de vista e depois os seus olhos encontraram-se com os de Naomi. Repentinamente, ela tirou o cobertor de cima de si e endireitou-se, fazendo um ligeiro movimento para se espreguiçar.

            -Mais um minuto aqui e ficaria transformada numa coluna de gelo. Se está tão necessitado como eu de uma bebida, ofereço-lhe a oportunidade de me pagar um copo.

            Randall levantou-se prontamente.

            -Da melhor vontade. Está convidada. Onde é que vamos? Prefere o bar do Salão Riviera?

            Ela abanou a cabeça negativamente.

            -Demasiado grande, com demasiada gente, com muita música estridente.-As suas feições normalmente rígidas suavizaram-se. - O bar do Atlantique é mais íntimo. - Tirou os grossos óculos de aros de tartaruga. - Você não gostará de algo que seja mais íntimo?

 

            Estavam os dois sentados a uma mesa do “Cabaret de l'Atlantique”, perto de uma minúscula pista de dança onde um solitário pianista francês estava tocando a obsedante canção parisiense «Mélancolie». Cada qual estava terminando o segundo Scotch-on-the-rocks e Randall começava sentindo-se descontraído.

            A medida em que iam falando de coisas vagas, Randall ia lançando os olhos pelo «Cabaret de l'Atlantique». Tornara-se o seu refúgio favorito a bordo do France. Estavam sentados entre os dois bares. O bar das bebidas era aquele em que se encontravam, isolado num recesso mais escuro do grande salão. Estavam três ou quatro passageiros sentados nos bancos junto ao balcão, e o elegante empregado, com uma figura que parecia saída de uma das personagens da «Comédie Française», estava identificando para um cliente as bandeiras mini-naturais que serviam de decoração à parede do bar. Por trás de Randall ficava o «snack» onde se serviam refeições e que formavam uma espécie de ferradura. O «snack» abria à meia-noite e tinha um típico chefe de cozinha francês que preparava a célebre sopa de cebola, cachorros quentes em pãezinhos compridos, especiais, e outras delícias de bom paladar e bom gosto.

            Ouviu a voz de Naomi.

            - Steve, chegaremos a Southampton às seis da manhã. Depois da verificação dos passaportes, desembarcaremos e iremos à alfândega por volta das oito. Não sei se o Sr. Wheeler terá um carro com motorista privativo para nos levar a Londres ou se iremos pelo trem de ligação com o bordo até à Estação de Vitória. Logo que cheguemos a Londres, iremos arranjar-lhe quarto no Hotel Dorchester. O Sr. Wheeler e eu só ficaremos em Londres o tempo suficiente para o levar ao Museu Britânico e para o apresentarmos ao Dr. Jeffries e ao Dr. Knight. Logo que você veja que pode tratar sozinho do caso, vamos embora. Partiremos direto para Amsterdã. Você pode ficar junto do Dr. Jeffries e do Dr. Knight para lhes fazer as perguntas que muito bem entender. Não se esqueça de gravar as conversas. Ficará nessa noite na capital inglesa para recolher o que lhe parecer no dia seguinte, antes de se deslocar na nossa cola para Amsterdã. Estou certa que achará deveras interessantes as conversações com aqueles dois cavalheiros.

            -Também espero que sim-disse Randall. As duas bebidas haviam contribuído para aliviar a tensão e dispô-lo excelentemente, e ele não queria perder aquela boa disposição. Fez sinal ao garçon e disse para Naomi:

            - Que tal mais uma dose?

            Ela correspondeu com um sinal aprobativo.

            - Far-lhe-ei companhia enquanto desejar.

            Randall pediu ao garçon para servir mais uma rodada e voltou concentrando sua atenção em Naomi.

            - Quanto a esses britânicos com quem me vou reunir, haverá alguma coisa que eu tenha de saber a respeito do ambiente deles e das exatas funções que têm na Ressurreição Dois?

            -Há. Tenho que o pôr a par dos fatos... antes que deslize para debaixo da mesa.

            -Você não parece...

            - Nunca aparento nada quando bebo - atalhou Naomi. Não, nunca apanhei um pileque. Mas hoje começo sentindo-me estonteada. Bom, seja como for, onde é que nós íamos? Ah, é verdade! Em primeiro lugar o Dr. Bernard Jeffries. É um dos mais destacados teólogos do mundo, um perito em línguas faladas na Palestina no primeiro século da nossa era... você sabe muito bem, o grego, utilizado pelos ocupantes romanos, o hebraico falado pelos palestinos judeus da sinagoga e o aramaico, uma forma do hebraico, falado pelo povo comum e que foi a língua falada por Jesus. Jeffries é um homem perto de setenta anos, completamente grisalho, de cabeça e rosto pequenos que usa um pince-nez, uma bengala de cana da índia e que, em suma, é uma pessoa encantadora. É um membro superior da Escola de Estudos Orientais da Universidade de Oxford. Para ser mais exata, ocupa a posição de Professor Regius de Hebreu, mas é também diretor da Magna Escola de Teologia. Em resumo, é o melhor em tal setor.

            -E o seu setor resume-se às línguas mortas?

            -Na verdade ultrapassa essa limitação, Steve. O Dr. Jeffries é mais do que um filólogo. É também um papirólogo e um erudito das Sagradas Escrituras e das religiões comparadas. Foi ele que chefiou a comissão internacional que traduziu Petrônio e Jacob. Ele próprio lhe falará a respeito do caso. No entanto, embora o Dr. Jeffries seja o elemento de maior destaque, não será tão importante nas investigações e promoção que você vai fazer como o seu protegido, o Dr. Florian Knight.

            Na mesa estava já a terceira rodada, e Randall elevou o seu copo e tocou ligeiramente o de Naomi, numa primeira prova.

            - Quanto ao Dr. Knight, trata-se de um caso muito diferente - recomeçou Naomi. -Ele é aquilo que em Oxford se chama um adjunto tutelar, um professor agregado. Isto é, faz - ou tem feito - a maior parte do serviço do Dr. Jeffries na Escola de Estudos Orientais, dar aulas e realizar outros serviços. Foi escolhido pelo próprio professor Jeffries para ser o seu sucessor. O Dr. Jeffries terá de se aposentar aos setenta anos e tornar-se-á professor emérito... e então, segundo pensamos, o Dr. Knight será nomeado catedrático por indicação régia. Seja como for, o caso é que o Dr. Knight é tão diferente do Dr. Jeffries como o dia é diferente da noite.

            -Em quê?

            -Aparência, temperamento, tudo. O Dr. Knight é um desses excêntricos e precoces gênios ingleses. Um homem muito novo para o cargo que ocupa. Tem talvez uns trinta e quatro anos ou menos. Cabelo cortado muito curto, uns olhos profundos enterrados nas órbitas, um nariz que parece o bico de uma águia, um lábio inferior proeminente, enormes orelhas, mãos finas e longas. Bom, é este o retrato do Dr. Florian Knight. Tem uma voz de cana rachada, uns modos secos e nervosos, mas uma autêntica maravilha a respeito das línguas e dialetos do Novo Testamento e um autêntico portento de cultura e sabedoria. Partindo desse ponto, aconteceu o seguinte: há dois anos o Dr. Jeffries precisou de uma pessoa que fizesse para ele umas investigações, destinadas tanto ao seu uso como ao uso da comissão de tradução da Ressurreição Dois. As investigações seriam feitas no Museu Britânico, onde existem códices primitivos, tesouros sem preço, do Novo Testamento. Conseguiu que Dr. Knight obtivesse uma licença sem vencimentos em Oxford, de modo a que se deslocasse para Londres e trabalhasse no museu como leitor...

            -Leitor? O que é isso?

            -É o que os ingleses chamam a um investigador de obras eruditas. O que interessa é que você vai conhecer amanhã o Dr. Knight e que ele seguirá consigo para Amsterdã onde será um dos seus principais consultores. Encontrará nele uma fonte valiosíssima para o material que irá utilizar destinado à preparação da sua campanha publicitária. Tenho certeza que trabalhará em perfeita harmonia com o homem. Ah, é verdade, existe apenas uma certa dificuldade. O Dr. Knight é quase surdo - o que é mau numa criatura tão jovem -e usa um aparelho auditivo coisa que o torna um pouco suscetível e por vezes irritável. Mas, penso que você se arranjará com ele da melhor forma. Conseguirá conquistá-lo. Julgo que você é bom nisso.

            Naomi levantou o copo vazio e lançou um olhar interrogativo a Randall.

            -Ok. Ainda posso agüentar mais um - respondeu Randall.

            Fez sinal na direção do bar até que foi visto pelo garçon e espetou dois dedos no ar. Depois olhou atentamente para Naomi. O cabelo castanho e alisado, apanhado em carrapicho, a pele morena, nariz reto, lábios finos continuavam dando um ar de severidade. Todavia, após três uísques, os seus olhos cinzentos estavam mais tolerantes e o seu aspecto pedante de religiosidade havia-se modificado. Avolumou-se a curiosidade que sentia a respeito dela. Naomi nada tinha revelado ainda a seu respeito, como mulher, depois de estarem quase cinco dias navegando em pleno Atlântico. Imaginou como é que ela seria.

            -Naomi, chega de assuntos profissionais. Não poderemos antes falar de qualquer outra coisa?

            -Como queira. De que prefere falar?

            -Em primeiro lugar, de mim e da maneira como a encaro. Lembra-se da última frase que pronunciou. Disse que estava certa que eu conseguiria conquistar o Dr. Knight. Frisou que eu era bom nisso. Bom, vamos lá, o que é que quis dizer. Foi um sarcasmo ou um elogio?

            Antes que ela pudesse responder chegou o garçon com os dois copos cheios e retirou os vazios. Logo que ele se foi embora, Naomi agarrou com ar pensativo na sua bebida. Depois levantou a cabeça e encarou Randall.

            - A primeira vez que o vi, não liguei muito. Aliás eu já estava com pé atrás antes de o conhecer. Puro preconceito, detesto gente da publicidade. Pertencem a um mundo falso de fabricação de quimeras. Enganam o público com passes de prestidigitação. Não tomam posição por nada de verdadeiro ou de honesto.

            -Na maior parte, isso é verdade.

            -Muito bem, você lá sabe. Sinceramente, parecia-me uma pessoa demasiado arrogante, inchado como um peru pelo vento do êxito, demasiado desinteressado nos seres humanos como tal. Senti-me irritada. Pareceu-me tão superior a nós como se não passássemos de um punhado de religiosos idiotas.

            Randall não pôde impedir esboçar um sorriso, dizendo:

            -É engraçado, a primeira vez que a vi senti logo que você não tinha gostado de mim... por ser um simples secular, um não devoto e não ter qualquer missão divina. -Fez uma pausa. Bem, ainda continua sentindo o mesmo a meu respeito?

            - Se sentisse não estaria aqui falando assim consigo - respondeu ela candidamente. -Viajar na sua companhia deu-me uma outra perspectiva da sua pessoa. De certa maneira, penso que você se sente envergonhado da sua profissão.

            - Sim, de certa maneira isso é também verdade.

            -E acabei por descobrir que você é mais vulnerável e mais sensitivo do que a princípio tinha imaginado. Quanto ao que eu disse de você ser capaz de conquistar o Dr. Knight, de ser bom nisso, foi um elogio. Você sabe ser encantador quando quer.

            -Obrigado. Vou beber consigo por essas palavras. Beberam devagar.

            - Naomi, há quanto tempo é que está com Wheeler na Editora Missão?

            -Há cinco anos.

            -Antes disso em que é que se ocupava?

            Ela manteve-se em silêncio durante algum tempo, depois olhou-o bem de frente.

            -Era freira, uma freira franciscana. Fui freira durante... dois anos. Chamavam-me Irmã Regina. Está surpreso? Randall estava mais do que surpreso, mas tentou não

deixar transparecer o que sentia. Sorveu longamente o seu uísque, sem parar de olhá-la, e teve consciência que em todas as suas recentes e surpreendentes fantasias de a figurar despida-devido a ela ser tão empertigada e com um andar tão ondulante e provocativo - sempre a imaginara vestindo um comprido hábito de freira antes de ela lhe aparecer nua. Não respondeu à pergunta dela. Pelo contrário, fez-lhe outra pergunta.

            - Porque abandonou essa vida?

            -Nada teve vendo com a minha fé. Sou tão religiosa como sempre fui... bem, quase tanto. Abandonei por não me sentir talhada para a rígida rotina e disciplina do convento. De fato, uma vez tomada a minha decisão - o que significou o envio de uma carta ao Papa rogando que me dispensasse dos votos e coisa que foi automaticamente concedida - pensei que a entrada no mundo secular seria fácil. Afinal de contas, não estava sozinha, não era a única. Existem cerca de um milhão e duzentas mil freiras espalhadas pelo mundo, e no mesmo ano em que abandonei a vida religiosa fui uma das sete mil que fizeram o mesmo. Mas, a reentrada no mundo secular foi crítica, difícil. Tinham deixado de existir para mim as regras ordenadas, o ramerrão. Nada mais de orações prescritas, atividades determinadas, horas certas de refeição, vestes da ordem, períodos de meditação e solidão. Via-me obrigada a pensar com a minha cabeça, preencher os meus dias de atividades próprias, cessar de me sentir despida vestindo vestidos curtos que aprendera vendo como simples coisas para despertar a voracidade nos homens. Antes de entrar para o convento, havia iniciado, na escola um curso de secretária assistente e pareceu-me que seria adequado enveredar por uma profissão idêntica, daí que julguei o emprego na Editora Missão conveniente. De modo que como vê...

            Foi interrompida por uma voz mimada que vinha do limiar da entrada para o «cabaret».

            -Ora até que enfim os encontro!

 

A voz de Darlene Nicholson, uma Darlene com um dos célebres pulôveres apertados que lhe faziam avolumar os empinados seios, com umas calças apertadinhas nas ancas que lhe revelavam todas as redondezas e que se dirigiu para eles com rapidez.

            - Tenho andado à tua procura por toda a parte - disse para Randall.

            - Ainda estás trabalhando ?

            - Quase acabando - respondeu Randall. - Senta-te junto. Queres uma bebida?

            - Não, obrigada, ainda estou de ressaca pela noite passada. Não te interrompi, pois não, querido? Estou surpresa por te ver bebendo depois de ontem.

            - Sinto-me perfeitamente bem...

            - Queria apenas dizer-te para onde vou - disse Darlene, procurando na bolsa o programa do dia. - Devem estar projetando aquele bonito filme de que nós gostamos tanto, aquele que vimos na Terceira Avenida, lembras-te? Aquele de uma moça que se apaixona por um homem casado, um homem que lhe diz ser viúvo.

            - Lembro-me muito bem -respondeu Randall com ar aborrecido.

            - Gostaria de vê-lo outra vez. - Examinou bem o programa. - Caramba! já está passando há quarenta e cinco minutos. Bem, ainda consigo ver o fim, que é afinal a melhor parte. Meteu o programa de qualquer maneira na mala, inclinou-se e plantou um beijo barulhento na boca de Randall. - Vê-mo-nos antes do jantar, quando mudarmos de roupa.

            Esperaram até Darlene desaparecer. Randall agarrou no seu copo e deu um olhar desconfortável a Naomi.

            - Naomi, o que é que estava dizendo?...

            -Não interessa. Já lhe disse o suficiente. -Engoliu o que restava do seu uísque e estudou Randall durante alguns segundos.

            - Talvez seja despropositado, mas sinto-me terrivelmente curiosa a respeito de uma coisa.

            - Pergunte.

            - Sinto-me curiosa em saber o que é que um homem... como você... vê numa moça como Darlene. - Antes que ele pudesse responder, Naomi prosseguiu: - Sei perfeitamente que ela não é sua secretária. Sei também que ela não dormiu no beliche que lhe foi destinado nem uma só noite. Presumo pois que é sua... Como é aquele velho termo?... Ah, sua amante... que é sua amante há já algum tempo.

            -Sim, precisamente isso. Estou separado de minha mulher há dois anos. Encontrei Darlene seis meses depois da separação. Ela vive comigo.

            -Compreendo. Naomi comprimiu os lábios. Sem o olhar, disse: -Não existe mais nada para além da atração sexual por uma mulher jovem, não é verdade?

            -É verdade. Só conseguimos diminuir a diferença entre as gerações na cama. Mas, bem... Darlene é uma moça decente e é bom ter alguém junto de nós.

            Naomi empurrou o copo para a ponta da mesa.

            -Ainda posso agüentar mais um.

            -Eu também. Esta noite vamos estar bem dispostos.

            -Já me sinto bem disposta.

            Fez novo sinal ao garçon, e logo a seguir os copos apareceram na mesa.

            Randall provou o scotch e, por cima do copo, fitou Naomi.

            - Queria... queria perguntar-lhe uma coisa de natureza pessoal. A respeito de ter saído do convento... a respeito de como se têm passado as coisas com os homens.

            - Porcamente - murmurou baixinho, mais pra você própria do que para ele.

            -O que eu queria dizer era...

            - Não quero falar dessas coisas - disse com decisão. - Estou cansada de falar. Vamos beber.

            Beberam em silêncio, e foi ela a primeira a esvaziar o copo.

            - Steve, mais um para enfrentar o caminho.

            Ele fez sinal ao garçon, e ainda mal tivera tempo de lançar a bebida pelas goelas abaixo já em cima da mesa estavam mais dois copos cheios de um líqüido âmbar.

            Naomi olhava para Randall, à medida em que ia bebendo, com os olhos ligeiramente menores. A certa altura disse:

            -Já ia esquecendo. Tenho algum material sobre a maneira como eles fizeram a tradução. Deve lê-lo antes de desembarcarmos. Está na minha cabine. É melhor irmos buscá-lo.

            -Pode ficar para amanhã - disse Randall.

            -Tem que ser agora. É importante.

            Bebeu a última parcela de uísque, afastou a cadeira e levantou-se, algo vacilante.

            Randall estava ao lado dela. Tentou dar-lhe o braço, mas, Naomi cerrou o cotovelo contra o corpo, rejeitando a ajuda e encaminhou-se com passo firme para a saída. Randall seguiu-a, sentindo-se tonto, mas, maravilhosamente bem.

            Entraram no elevador situado no Convés Varanda. Naomi Dunn agarrou-se ao corrimão de madeira que se estendia ao longo do corredor, à medida que avançava para a «Suite de Luxo Normandie».

            Tirou a chave da bolsa e os dois penetraram no primeiro dormitório. Era um quarto espaçoso, atraente, com uma iluminação débil, proveniente do abajur de parede. A cama, coberta com uma colcha cinzenta, era uma cama de verdade, não um simples leito improvisado. Parecia ter espelhos por toda a parte.

            - Bonito quarto - disse Randall. - Onde é que fica o quarto de George?

            Ela encarou-o, voltando-se bruscamente.

            - O que quer dizer com isso?

            - Quero dizer que ele também está alojado nesta «suite», não é verdade?

            -O meu quarto é privativo. Fechado. Ao lado fica uma grande sala-de-estar. O quarto de George fica do outro lado, a uma milha ou mais de distância. Costumamos utilizar a sala para trabalhar. - Tornou a voltar-se para a frente. - Vou-lhe dar as folhas de papel que interessam. - Encaminhou-se para uma mala colocada em cima de um suporte de metal. Abrindo-a, andou a vasculhar dentro, até que exibiu uma pasta de arquivo comum. - Aqui está. Sente-se e dê uma olhada pelo material enquanto vou ao banheiro. Desculpe.

            Randall olhou em volta indeciso e acabou por se sentar na borda da cama. Abriu a pasta. Eram maços de folhas de papel. Os três títulos, em letra maiúscula, referiam-se aos métodos de de tradução para as três diferentes Bíblias - A Versão do Rei Jacob, A Versão Modelo Revista e a Nova Bíblia Inglesa. As letras datilografadas começaram a ondular aos seus olhos. Tomou atenção aos sons que Naomi fazia no banheiro. Ouviu o ruído da água correndo de uma torneira e a descarga do vaso. Tentou afastar de si a visão dela com o pesado hábito de freira, com aquele sempre presente sorriso estereotipado de religiosidade e com o sempre presente rosário pendente da cintura.

            A porta do banheiro abriu-se e Naomi surgiu com o mesmo aspecto anterior exceto uma ligeira diferença: a descontração e suavidade tinham desaparecido do seu rosto e a expressão afetada voltara de novo sendo uma barreira proibida, um refúgio inviolável.

            Ela colocou-se bem na sua frente.

            -Então, qual é a sua opinião?

            Randall agitou a pasta de arquivo e colocou-a em seguida em cima da mesinha de cabeceira.

            -O material...

            -Não. O material não. Eu.

            Involuntariamente, as sobrancelhas dele arquearam-se, enquanto ela se aproximava mais e se sentava à beira da cama, a seu lado.

            -Você? -conseguiu articular.

            Ela contraiu o dorso, de forma a ficar com as costas voltadas para ele, dizendo com decisão:

            -Quer fazer o favor de me abrir o vestido?

            Randall encontrou o colchete escondido por baixo dos cabelos e desapertou-o. Depois encontrou o fecho e lentamente foi deslizando ao longo da curvatura das costas. O vestido de «nylon» estampado abriu-se como uma banana ao ser descascada e revelou-lhe a saliente coluna vertebral e uma carne ligeiramente trigueira. Naomi não tinha sutiã e ele também não divisou o elástico das calcinhas.

            Naomi continuava de costas voltadas para ele.

            - Isto perturba-o? - perguntou com um tremor na voz. Não tenho nada por baixo do vestido. Torceu de novo o dorso com rapidez e voltou-se de frente para ele, ao mesmo tempo que o vestido, solto, começava a escorregar pelos ombros. - Sente-se excitado?

            Randall estava espantado para sentir excitação. Começou a fitá-la com um ar confuso, perturbado, enquanto ela ia baixando a parte superior do vestido, desapertando os botões das mangas. Finalmente o vestido desvendou-lhe a carne nua até à cintura. Naomi atirou os ombros para trás e mostrou-lhe os dois pequenos, mas firmes seios, de mamilos eretos. As auréolas castanhas pareciam cobrir a maior parte da superfície daquelas pequenas colinas de carne.

            Foi então que Randall começou sentindo um desejo animal a percorrê-lo da cabeça aos pés.

            -O meu corpo excita-o? -perguntou ela por entre dentes. A mão de Naomi moveu-se com rapidez até pousar no meio das pernas dele e os dedos, suavemente, acariciaram-no. Randall sentiu o sexo crescer, aumentar de volume, depois a mão dela, firme em torno dele.

            - Adoro isto - murmurou ela ofegante. - Adoro isto. Faz-me a mesma coisa. Vamos, faz-me.

            Enlaçou-a com um dos braços, atraindo-a a si, enquanto a outra mão se insinuava por baixo da saia e lhe apalpava numa carícia a pele quente. Foi andando ao longo das coxas e os seus dedos por fim detiveram-se na parte superior do triângulo formado pelos pêlos do púbis

            - Naomi - murmurou - vamos...

            - Espera Steve, eu dispo-te.

            Despiu-se rapidamente com a ajuda dela. No momento em que se libertava das cuecas, atirando-as para longe com um pontapé, viu que ela tirou o vestido e que estava completamente nua por baixo daquele fino tecido. Encontraram-se repentinamente estendidos de lado na cama, frente a frente. Quando tentou atrair a si o corpo dela sentiu-a resistir, a afastar-se, com o traseiro arqueado.

            - Steve, o que é que costumas fazer com a Darlene? perguntou ela.

            -O que é que costumo fazer? Eu... queres saber o que faço... ora, está visto que me ponho em cima dela, que a penetro toda.

            - E não fazem mais nada?

            - Eu... tentei, mas... ela é um pouco suscetível... manifesta uma certa relutância...

            -Pois quero que saibas que não sou assim. -Está bem, queridinha. Agora o que interessa...

            - Steve, não quero fornicar, entendes? Mas aparte isso adoro tudo o que te apetecer.

            Randal aliviou um pouco o abraço em que a mantinha e olhou-a.

            - Que queres dizer com isso?

            -Olha, estou pronta. Não percamos tempo.

            Beijaram-se longa e freneticamente. Cada um deles tentava levar o outro ao máximo do prazer, usando para isso de todos os meios. Ela soltou de súbito um grito gutural e um arrepio contínuo percorreu-lhe o corpo. Foi um momento, após o que prosseguiu o que fazia. Foi a vez dele.

            -Não posso descansar enquanto não estiveres satisfeito respondeu ela.

            Randall permaneceu deitado, de barriga para o ar, sem se mexer. Sentiu a fria mão feminina agarrá-lo e de novo o contato dos lábios. Fechou os olhos e principiou a gemer, tentando furtar-se aquela carícia insistente, as mãos tentaram fixar-lhe a cabeça, impedindo o movimento de Naomi que parecia frenética.

            Estava completamente fora de si. Aquilo ia subindo como uma maré devoradora. Um arrepio ao longo da espinha.

            - Ohhhh! - gritou num arranque, ao sentir a explosão. Era como algo esvaziava-se, como um balão de repente rebentado. Envolveu-o uma sensação de total alívio. No auge do prazer, quase uma dor, o seu corpo ficara tenso, arqueado, como que formando um arco de uma ponte. Então Randall caiu na cama, afundando-se por completo naquela maciez, descontraído, sentindo uma paz deliciosa.

            Teve consciência de Naomi se levantar, de correr para o banheiro, ouviu o correr da água e sentiu os passos do seu regresso. Relutante, abriu os olhos. Ela tinha-se sentado à beira da cama. Continuava nua e segurava uma toalha. Os seus olhos encontraram-se com os dele. Continuava séria, mas a rigidez dos traços evaporara-se.

            Randall ficou sem saber que dizer para preencher aquele silêncio, mas arriscou:

            - Muito bem, seja como for, se pecamos não se tratou do pecado original... e foi agradabilíssimo.

            A súbita transformação que se operou em Naomi intrigou-o. A agradável expressão do seu rosto petrificou-se instantaneamente numa contração de desagrado.

            -Não me parece muito engraçado, Steve.

            -Naomi, deixes disso. Afinal que se passa contigo? Procurou atraí-la, mas ela fugiu-lhe, levantou-se da cama e ficou à espera, em silêncio, enquanto ele se dirigia para o banheiro.        Quando Randall voltou para se vestir, ela entrou para o banheiro outra vez. Antes de fechar a porta, hesitou.

            -Obrigado-disse ela.-O único favor que lhe peço é que se esqueça de tudo o que aconteceu. Encontramo-nos à hora do jantar.

            Cinco minutos depois, tendo acabado de se vestir, Randall saiu do camarote. Já no corredor, parou para acender o cachimbo e para refletir sobre aquela experiência.

            O resíduo do encontro sexual não fora afinal um sentimento de bem-estar. Pensou que não foi a natureza da relação que o perturbara. Já antes a praticara com outras mulheres. De fato, Randall sabia que se se tivesse envolvido com Naomi em relações sexuais de rotina, a relutância e desgosto do após-ato eram a mesma coisa.

            Imaginou se não se estaria flagelando sem razão. Mas não, havia uma razão. De certo modo, ao embarcar para aquela viagem a caminho da Ressurreição Dois, tentando ignorar quaisquer dúvidas que pudesse ter a respeito da verdade do projeto e do valor que ele pudesse ter, alimentara esperanças de que viesse a alterar o rumo da sua vida. As intenções foram as melhores. Aquela modificação seria um princípio, uma odisséia destinada a revelar-lhe o significado da sua vida, destinada a encontrar algo em que acreditar, fazendo com que se transformasse numa pessoa que deixasse de ter vergonha de si mesma.

            Todavia, em cima da cama daquela cabine que ficara atrás de si, abdicara uma vez mais das suas boas intenções. Mais uma vez realizara, como sempre com todas as outras mulheres, o jogo do sexo sem amor, contato de carne sem calor humano, libertação sem significado. Havia sido meramente um entrelaçar cínico de dois corpos nus que não pudera enriquecer nem o coração nem o espírito. Nem sequer podia fugir à culpa dizendo a si mesmo que fora seduzido. Freud, AdIer, Jung explicariam melhor as coisas, mas ele também sabia muito bem. Inconsciente ou subconscientemente andara preparando-se para chegar àquele resultado com Naomi desde o momento em que pusera os pés no Convés do bordo. Não a desejara por amor, mas porque ela lhe parecera tão distante, tão formal, tão inexpugnável, e um êxito constituíra uma promessa de grande excitação. Conseguira mais outra suja vitória para divertir a sua alma vazia de afeto. Havia transpirado desejo e ela, a devoradora fechada na sua concha, limitara-se a captar-lhe as vibrações.

            Tudo acabara já, mas o prazer ficara de pé tão desagradável como uma bebedeira com um uísque ordinário, que no dia seguinte só pode causar sensações dolorosas e de arrependimento.

            Mas, disse para com seus botões, quando se encaminhava para o elevador, embora de maneira errada a coisa não foi assim tão má. Aprendera uma lição. Ou melhor, o caso lembrava-lhe uma lição aprendida pouco tempo depois de ter ingressado no ofício da publicidade.

«Não existem santos, apenas pecadores. Da madeira torta de que o homem é feito, impossível conseguir fazer qualquer trabalho direito». A frase era de Emmanuel Kant.

            Naomi era afinal uma frágil mortal, um ser humano, com todas as fraquezas de que a carne é herdeira. Como ele próprio. Como toda a gente.

            A lição fora-lhe de novo lembrada. Não a esquecesse. A Ressurreição Dois não seria povoada por deuses e seus anjos gravitantes, tal como o Novo Testamento Internacional não poderia ocultar Jesus, o Filho do Homem. No fundo de todos aqueles beatos fingidos, bem no fundo de cada um deles, existia um bípede humano, um animal que tentava ficar de pé, que tentava evitar uma queda, afinal iminente a cada passo dado.

            Sentiu-se um pouco melhor.

            No dia seguinte, e nos outros que fossem decorrendo, não estaria confinado ao purgatório enquanto, eles permaneceriam no céu. Para falar a verdade, era simplesmente mais um deles, e todos sem exceção estariam juntos no mesmo inferno.

 

            O último jantar a bordo do Navio France estava quase terminando.

            A refeição que George. L. Wheeler encomendara antecipadamente, desde caviar aos crêpes Suzette, fora copiosa, mas Randall limitara-se a petiscar e sentia-se bem com a sua austeridade.

            Randall sentia nas costas o calor vindo do local onde os crêpes seriam preparados, e embora Darlene se manifestasse deliciada com uma sobremesa tão requintada, ele já não tinha estômago para aquilo. Depois do seu envolvimento sexual com Naomi conseguira tirar uma soneca no seu camarote, apesar do ruído rangido da televisão em circuito fechado que fazia as delícias de Darlene. Para ela tudo era delicioso. Depois tomara um bom banho de chuveiro e espantara um pouco a ressaca da grande absorção de uísques. Mas o seu interesse na comida era pouco ou nenhum.

            Olhou em volta da mesa, bem montada no extremo da luxuosa, brilhante e iluminada «Sala de jantar Chambord», com o seu teto onde o jogo de luzes e sombras fora estudado de maneira dando a ilusão de um céu onde boiavam estrelas. A sua esquerda, Darlene estava experimentando o bom humor de um jovem garçon ao falar-lhe com o seu terrível e complicado francês aprendido no liceu. À sua direita, com as mãos cruzadas, estava sentada Naomi Dunn, fria, reservada, falando apenas quando se dirigiam a ela. Tentou lembrar-se da sua nudez, do seu monte de vênus, do paroxismo dela quando no orgasmo. Mas, foi impossível, tão impossível como imaginar a violação de uma vestal. Na frente, a cadeira estava vazia.

            Cerca de quinze minutos antes, George L. Wheeler fora chamado pelo sistema de comunicação interno do navio, uma complicada rede de alto-falantes ligada a uma cabine de som central. Aguardava-o um telefonema recebido de Londres por essa outra maravilha que era a comunicação entre o bordo e terra.

            Afastando a cadeira e acabando de saborear a última gota de «Chateaubriand», Wheeler resmungara:

            -Quem diabo é que telefonará a uma hora tão inconveniente?

            Afastara-se, a caminho do Gabinete Central de Comunicações, cumprimentando, por entre as mesas, à direita e à esquerda, as pessoas com quem travara relações recentes a bordo.

            Quando Randall observava ocioso o chefe de mesa servindo Darlene um prato de crêpes bem enrolados, ouviu a voz de Naomi, que falava com o chefe de mesa.

            -O Sr. Wheeler vem já aí, pode servi-lo.

            Na verdade, o editor descia apressadamente a escada e abria caminho por entre as mesas sem olhar para os lados. A medida que se aproximava, Randall pôde ver perfeitamente que a sua disposição se alterara.

            Wheeler caiu na sua cadeira com um ar extremamente aborrecido.

            - Sorte danada - resmungou, agarrando no guardanapo. Instalou-se como devia.

            - Quem era, Sr. Wheeler? - perguntou Naomi.

            Wheeler pareceu só então ter dado pela presença dos outros à mesa.

            -O telefonema era do Dr. Jeffries, de Londres, parece que temos um problema.

            O chefe de mesa procurava nesse momento servir o doce a Wheeler, mas o editor fez-lhe um brusco sinal para parar.

            -Já perdi o apetite para isso. Prefiro um café.

            -Que espécie de problema? -perguntou Naomi.

            Wheeler pareceu não reparar na pergunta e dirigiu-se diretamente a Randall.

            -Devo dizer que o Dr. Jeffries estava em estado de grande agitação. Ele compreende o limite de tempo que nos é permitido para que você possa preparar a sua campanha publicitária. Sabe perfeitamente que não nos podemos dar ao luxo de derivações ou impedimentos que adiem ou prolonguem os nossos prazos. Se Florian Knight não está disponível quando precisamos dele, então bolas, estamos metidos em complicações.

            Não era o estilo de Wheeler falar com rodeios nem circunlóquios. Randall estava intrigado.

            -Porque é que o Dr. Knight não está disponível?

            -Desculpe, Steve. Eu devia ter explicado primeiro. O Dr. Jeffries. deslocou-se hoje de Oxford para se encontrar com Florian Knight no Museu Britânico. O propósito do Dr. Jeffries era informar Knight que fora destacado para ir conosco para Amsterdã e trabalhar na capital holandesa como um dos vossos consultores nos preparativos para a campanha publicitária da Ressurreição Dois. Dos seus muitos consultores, ele foi o mais valioso. Os conhecimentos do Dr. Knight sobre o Novo Testamento - não só por causa das línguas, como também pela sua vasta erudição bíblica sobre o primeiro século - são poderosos e de grande alcance. Pois bem, ao que parece eles discutiram o novo trabalho do Dr. Knight em Amsterdã e depois o Dr. Jeffries; combinou um encontro para jantar de modo conversando mais detalhadamente sobre as coisas, Há poucas horas, quando o Dr. Jeffries estava prestes a sair do seu clube para se encontrar com o assistente, recebeu um telefonema de uma jovem que é noiva do Dr. Knight. Foi-me apresentada certa ocasião. É Miss Valerie Hughes, uma jovem e brilhante senhora, muito inteligente. Bem, ela telefonou informando o Dr. Jeffries, por conta de Knight, que o jantar ficava sem efeito. O Dr. Knight adoecera repentinamente... parece que uma doença de gravidade, segundo o Dr. Jeffries percebeu, de modo que não se tratava de cancelar o jantar desta noite, como também não estava em condições de se reunir conosco amanhã, como o combinado.

            -Não me parece tão sério assim - disse Randall. - Se não der para falar amanhã com Kníght, talvez possa ainda...

            -O caso não está só na falta ao encontro de amanhã - interrompeu Wheeler. - O caso é que Valerie disse ao Dr. Jeffries que o noivo lhe mandara dizer que não se sentia capaz de trabalhar para o nosso projeto em Amsterdã num futuro previsível. Apenas isto. Nada mais. Bem, o Dr. Jeffries ficou demasiado confuso para continuar com o assunto. Limitou-se a perguntar quando é que podia falar com o seu protegido, mas Miss Valerie mostrou-se vaga e murmurou qualquer coisa como ter que discutir primeiro o caso com o médico assistente de Knight. Depois desligou. Uma coisa muito estranha e muito desconcertante. Se o Dr. Knight ficar fora do assunto, será sem dúvida um golpe severo para nós.

            -Sim - disse Randall arrastado,-na verdade parece muito estranho.

            Darlene, que não prestara atenção a uma conversa tão despida de interesse para ela, agitou o garfo dos crêpes Suzette na direção de Wheeler e disse:

            - Bom, se já não há ninguém para nos encontrarmos em Londres, nesse caso talvez possamos ir diretamente no barco até ao Havre.

            Wheeler olhou-a com firmeza.

            - Miss Nicholson, vamos encontrar-nos com uma pessoa em Londres, e não iremos até ao   Havre.

            Depois o editor voltou-se outra vez para Randall.

            -Marquei uma entrevista para nos encontrarmos amanhã às duas horas da tarde com o     Dr. Jeffries no Museu Britânico. Insistirei para que exerça sua autoridade de modo a que Florian Knight se junte ao trabalho do projeto logo que esteja melhor. É uma coisa vital para o nosso futuro imediato.

            Randall ficara pensativo. Foi num tom quase casual que falou, exprimindo os seus pensamentos:

            - George, não nos disse o que é que há com o Dr. Florian Knight. Qual é a doença dele?

            Wheeler ficou com um ar alarmado.

            -Por Deus, sabe que mais... O Dr. Jeffries não me disse nada sobre qualquer coisa de errado com o Knight. É uma boa pergunta para lhe fazermos amanhã, não é?

 

            No dia seguinte foram encontrar o céu de Londres enevoado e a cidade sombria, soturna, e esse fato não contribuiu para melhorar as disposições em que se encontravam ao serem conduzidos no Bentley S-3, com motorista, do Hotel Dorchester, em Park Lane, até ao majestoso Museu Britânico, em Bloomsbury. No lugar traseiro do carro seguiam os três-Randall, Wheeler e Naomi. Darlene resolvera ir num passeio, orientado, para turistas: Westminster, Piccadilly Circus, Torre de Londres, Palácio de Buckíngham.

            Ao chegarem junto das gigantescas colunas da fachada da porta de entrada principal do Museu, na Great Russel Stret, Randall recordara-se da sua única visita anterior ao histórico museu - uma visita feita juntamente com Bárbara, quando Judy era ainda pequena.

            Lembrara-se da grande esfera de uma sala de leitura, círculos de livros no meio de círculos de livros com a mesa principal ao centro, e as preciosidades nas salas adjacentes e nas galerias do andar superior. Lembrara-se do estímulo sentido por certas coisas em exposição - o mapa fidedigno, impresso em 1590, da viagem de Sir Francis Drake em volta do mundo; a primeira edição, em fólio, das peças de Shakespeare; o manuscrito original de Beowulf; os diários de bordo de Lord Horatio Nelson; os diários da Antártica do capitão Scott; o modelo, em faiança azulada, de um cavalo da dinastia T'ang; a Pedra de Rosetta, com os seus hieróglifos gravados em 196 A.C.

            Naquele momento, depois de terem sido acolhidos e cumprimentados pelo Dr. Jeffries, seguiam orientados pelo pavimento de mármore do saguão a caminho do escritório, no andar superior, pertencente à curadoria, onde o Dr. Florian Knight estivera trabalhando. O Dr. Jeffries parecia-se imenso com o retrato que Naomi traçara. Talvez um metro e setenta e cinco, peito metido para dentro, com um cabelo branco, deslavado, uma cabeça pequena, onde se incrustavam uns olhos remelentos, um nariz avermelhado de largas narinas, bigodes caídos para os cantos da boca, rosto marcado por rugas profundas, uma gravata com riscas, pince-nez oscilante e um terno azul necessitando ser passado a ferro.

            Enquanto o Dr. Jeffries, tendo ao lado Wheeler, e bem uns passos à sua frente e de Naomi, seguia pelo corredor, Randall pensou quando é que o editor resolveria, finalmente falar, no caso do Dr. Florian Knight. Nessa altura, como se Wheeler tivesse captado a sua mensagem por meios extrasensoriais de percepção, Randall ouviu o editor inquirir:

            -A propósito, professor, qual é a gravidade da doença do Dr. Knight? Ontem pelo telefone não me informou devidamente. O que é que se passa com ele?

            O Dr. Jeffries pareceu não ter ouvido a pergunta. Atrasou o passo e parou, perdido em pensamentos desconhecidos, para dar uma olhada para trás.

            -Ah... Sr.... Sr. Randall, há uma coisa que deve ver com os seus olhos, enquanto estivermos aqui no andar térreo. As nossas duas mais antecipadas preciosidades do Novo Testamento. O Código Sinaítico e o Código Alexandrino. Ummm.... ouvirá sim ouvirá com certeza, freqüentes menções aos dois documentos durante o seu trabalho. Se na verdade tem tempo disponível, sugiro este breve desvio.

            Antes que Randall pudesse responder, Wheeler antecipou-se-lhe:

            - Claro que sim, professor. Steve pretende ver tudo o que tenha valor para o seu trabalho. Vamos... Steve, venha aqui, junto de nós. Não tenha medo que a Naomi sabe bem o caminho.

            Randall foi juntar-se aos dois homens, precisamente na altura em que o Dr. Jeffries voltava subitamente à direita.

            -Temos que atravessar a Sala dos Manuscritos, estão numa outra sala reservada às nossas mais raras preciosidades, a Sala da Magna Carta - disse o Dr. Jeffries. - Como sabe, Sr. Randall, até... umm.. . até recentemente, isto é, até ao notabilíssimo achado da Ostia Antica, os nossos mais velhos fragmentos dos evangelhos era o Evangelho de S. João, pequeníssimo, em grego, encontrado num monte de lixo no Egito e escrito anteriormente ao ano 150 D.C., que se encontra presentemente na Biblioteca John Rylands em Manchester. Depois disso temos alguns papiros do Novo Testamento adquiridos por um tal A. Chester Beatty, um americano que reside em Londres, e o papiro adquirido por Martin Bodroer, um banqueiro suíço, que deve estar datado por volta do ano 200 D.C. Evidentemente, um fragmento, o Papiro Bodrner 2... - retardou o passo e brindou Randall com um sorriso divertido. - Mas são afinal coisas que não lhe interessam. Desculpe por ser horrivelmente pedante.

            - Estou aqui para aprender, Dr. Jeffries - lembrou Randall.

            - Unim... claro, e há de aprender. Alguns dos professores e eruditos mais jovens, como Floriam, servir-lhe-ão melhor para esse fim. No entanto, deixe-me que lhe diga isto. Com exceção dos fragmentos de Ostia Antica, o Evangelho de Jacob e o Pergaminho Petrônio-e preciso excetuá-los sempre, porque não existe nenhuma descoberta bíblica que se lhes possa comparar em importância - eu colocaria as descobertas bíblicas mais valiosas feitas nos últimos mil e novecentos anos da seguinte maneira.

            O Dr. Jeffries deteve-se à entrada da Sala dos Manuscritos, perdido nos seus pensamentos, cogitações, ao que parecia, sobre o valor comparativo dos achados dos manuscritos históricos.

            -Em primeiro lugar os quinhentos pergaminhos em pele de carneiro e os rolos de papiros descobertos em 1947 nas vizinhanças Khirbet Quinran, que são mais familiarmente conhecidos como os Documentos do Mar Morto. Em segundo lugar, o Codex Sinaiticus, encontrado na sua forma completa no Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai em 1859. Trata-se de um Novo Testamento copiado em grego no século quarto, precisamente o documento que está em nossa posse e que em breve lhe mostrarei. Em terceiro lugar por importância, os textos de Nag Hamadi descobertos em 1945 nas cercanias de Nag Hamadi no Alto Egito. Esse achado consiste em treze volumes de papiros, preservados em vasos de barro descobertos por camponeses que procediam as sondagens na terra para descobrirem humo que pudessem utilizar como fertilizante. Nesses escritos do século IV estão cento e quatro parábolas de Jesus, muitas delas nunca antes conhecidas até ser revelada essa biblioteca Copta. Em quarto lugar, o Codex Vaticanus, uma bíblia grega escrita por volta de 350 D.C., que se encontra na Biblioteca do Vaticano. Desconhece-se a sua origem. Em quinto, Codex Alexandrinus do Museu Britânico de que já falei, com texto escrito em grego, em velino, um pergaminho muito fino, antes do século V. Veio parar em Londres em 1628 na forma de um presente do Patriarca de Constantinopla ao Rei Carlos I.

            - Detesto ter de confessar a minha total ignorância, mas na verdade nem sequer sei o que significa a palavra Codex disse Randall.

            -Mas é sábio da sua parte pedir explicações -respondeu o Dr. Jeffries, com ar satisfeito.-A palavra Codex, ou Códice... ummm... tem raízes no latim caudex, que significa o tronco de uma árvore. Refere-se às antigas tábuas enceradas para escrita feitas, evidentemente, de madeira coberta por uma composição de cera onde as palavras eram gravadas. De fato o codex foi o princípio do livro tal como hoje o conhecemos. No tempo de Cristo, os escritos não cristãos eram traçados na sua maior parte em rolos de papiro ou pergaminho - o que era extremamente embaraçoso para o leitor. Pelo século II, o codex começou sendo adaptado. Os rolos de papiros foram cortados em páginas fixadas na parte esquerda. Tal como já disse, o começo do livro moderno. Vejamos pois, quantas... quantas importantes descobertas bíblicas mencionei eu como peças mais valiosas anteriores ao nosso achado de Ostia Antica?

            - Cinco, professor - respondeu Wheeler.

            - Obrigado, George... - e o Dr. Jeffries começou a andar vagarosamente. - Sr. Randall, devo ainda mencionar mais quatro, embora sem ordem particular. Seria imperdoável da minha parte não mencionar - especialmente como estudioso de textos e tradutor - os achados desse jovem pastor alemão e erudito da Bíblia, Adolf Deissman. Até Deissman, os tradutores dos Novos Testamentos Gregos, que notaram que o grego bíblico diferia do grego literário, supunham que fosse qualquer espécie de um grego puro e especial, um grego por assim dizer sagrado utilizado somente nos Novos Testamentos. Ora em 1895, depois de ter estudado e analisado os montes de antigos papiros gregos descobertos durante as centenas de anos anteriores - fragmentos ordinários pertencentes a velhas cartas com dois mil anos de existência, contas caseiras, contas relativas a negócios feitos, escrituras, arrendamentos, petições - Deissman pôde anunciar que esse grego coloquial falado normalmente, esse grego empregado na vida quotidiana pelo homem das ruas, que é chamado Koine, era o verdadeiro grego usado pelos escritores do Evangelho. É claro que a descoberta causou uma autêntica revolução nas traduções que se seguiram.

            O Dr. Jeffries lançou um novo olhar de lado a Randall para ver se ele assimilara.

            - Os outros três valiosíssimos achados incluem a descoberta do sepulcro de São Pedro num antigo cemitério situado a certa profundidade por baixo do Vaticano, presumindo-se que seja autêntico. Em todo o caso, a Drª Marguerita Guarducci decifrou uma inscrição em código gravada numa pedra encontrada por baixo da nave da basílica de São Pedro em Roma, e nessa inscrição -que data do ano 160 D.C. - lê-se: «Pedro está aqui sepultado». A seguir foi a descoberta em Israel, em 1962, de uma pedra angular pertencente a um edifício público utilizada para dedicar a estrutura ao Imperador Tibério antes de 37 D.C., um bloco com o nome de Pôncio Pilatos seguido pelas palavras prefectus Udea, o mesmo título que autenticamos no Pergaminho Petrônio. Depois, em 1968, num esquife de pedra encontrada em Giv'at ha-Nivtar, Jerusalém, um achado na verdade de grande alcance -o esqueleto de um homem chamado Yehohanan, com o nome inscrito em aramaico, com pregos de quinze centímetros espetados nos antebraços e nos artelhos. Esse esqueleto com dois mil anos constituiu a primeira prova física, desde sempre, vista de um homem que fora crucificado nos tempos palestinos do Novo Testamento. Havia histórias que nos diziam que o caso aconteceu. Os evangelhos contava-nos que Jesus fora crucificado, mas com a exumação dos restos mortais de Yehohanan, o conhecimento literário pôde ser finalmente confirmado sem a mínima sombra de dúvida.

            O Dr. Jeffries levantou as lunetas e apontou para a frente. -Cá estamos.

            Randall percebeu que já tinham passado pelos mostruários da Sala dos Manuscritos e que estavam junto à entrada de uma outra sala. No limiar, em letras colocadas num suporte móvel, indicava-se:

 

            Seção DE MANUSCRITOS

            SALA PARA ESTUDANTES

            CODEX SINAITICUS

            MAGNA CARTA

            MANUSCRITOS DE SHAKESPEARE

 

            O guarda à entrada, com um boné escuro, casaco cinzento e calças pretas, cumprimentou o Dr. Jeffries com afabilidade. Logo à direita estava uma longa vitrine de metal, com cortinas azuis cobrindo os vidros.

            O Dr. Jeffries guiou-os para a vitrine. Afastou uma das cortinas e murmurou:

            -O Códice Alexandrino... ummm, não, não precisamos de momento nos preocupar com este. É de menor importância. Com verdadeira ternura, afastou a segunda cortina, prendeu o pince-nez, no nariz, sorriu rasgado e apontou para o velho volume que se encontrava aberto dentro da vitrine, sobre uma pequena elevação coberta com um veludo vermelho.

            -Aqui têm. Um dos três mais importantes manuscritos da história bíblica. O Codex Sinaiticus.

            Steve Randall e Naomi aproximaram-se e observaram as amareladas páginas de fino pergaminho, cada uma delas com quatro estreitas colunas claramente manuscritas em grego.

            -Estão vendo uma parte do Evangelho de Lucas - disse o Dr. Jeffries. - Vejam a nota escrita neste cartão que está no canto.

            Randall leu a explicação datilografada no pequeno cartão. O Codex Sinaiticus estava aberto em Lucas 23 : 14. Na parte inferior da terceira coluna na página esquerda estavam os versículos que descreviam a agonia de Cristo no Monte das Oliveiras, versículos que muitas autoridades bíblicas primitivas desconheciam e que por isso não foram incluídos nas suas traduções.

            - No seu estado original, este manuscrito devia ter provavelmente 730 páginas - disse o Dr. Jeffries. Tudo o que resta são 390 folhas, das quais 242 consagradas aos Velho Testamento e 148 representando o Novo Testamento completo. O velino, como podem ver, é feito de pele de carneiro e de cabra. A escrita, toda em letras maiúsculas, pertence à mão perita de três copistas diferentes, e deve ser traçada antes de 350 D.C. - O Dr. Jeffries voltou-se para Randall. - Ora tudo isto que se salvou para a posteridade do Codex Sinaiticus faz parte de uma história verdadeiramente emocionante. Já ouviu falar em Constantino Tischendorf?

            Randall abanou a cabeça negativamente. Na verdade nunca ouvira aquele nome antes, mas sentia-se fortemente intrigado.

            - Em resumo, eis o nosso romance - começou o Dr. Jeffries, com evidente alívio por Randall não conhecer o nome citado. Tischendorf era um erudito alemão da Bíblia que costumava andar sempre pelo Médio Oriente à procura de velhos manuscritos. Numa dessas suas viagens, em Maio de 1844, resolveu subir ao Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai no Egito. Quando passava por um corredor do mosteiro reparou num grande cesto de papéis para o lixo cheio com aquilo que lhe pareceu serem montes esfarrapados de um manuscrito. Metendo o nariz no cesto, Tischendorf viu que eram folhas de pergaminho antigo. O conteúdo de dois outros cestos já queimados como lixo inútil, e aquele cesto estava prestes a seguir o caminho dos outros dois.

            Tischendorf persuadiu os frades a entregaram-lhe aqueles resíduos para exame. Procedendo a uma escolha, encontrou 129 folhas de um Velho Testamento escrito em grego. Os monges, nessa altura conscientes do valor daquele lixo precioso permitiram-lhe que ficasse com 43 páginas, que o alemão trouxe para a Europa e que ofereceu ao rei da Saxônia.

            -E essas páginas não fazem parte deste códice? -perguntou Randall.

            -Um momento - disse o Dr. Jeffries.-Nove anos mais tarde o alemão Tischendorf dirigiu-se ao mesmo Mosteiro para mais outra investigação. Os frades dessas vezes mostraram-se pouco ou nada cooperativos, mas Tischendorf não desistiu. Passaram-se mais seis anos e, em janeiro de 1859, o persistente alemão mais uma vez subiu ao Mosteiro. Mais cauteloso dessa vez, não solicitou aos frades para lhe mostrarem velhos manuscritos. Mas, na última noite passada no Monte Sinai, Tischendorf conversando com o Irmão ecônomo a respeito de Bíblias antigas. Para mostrar a sua erudição, aquele gabou-se de ter estudado numa das mais velhas Bíblias conhecidas. Acompanhando as palavras com gestos, o frade aproximou-se de uma prateleira ao lado da porta da sua cela, onde guardava suas xícaras de café, e tirou um embrulho envolvido num pano vermelho. Desembrulhou aquilo e, ante os olhos esbugalhados de Tischendorff estava o Codex Sinaticus, contendo o Novo Testamento mais antigo de que se tenha notícia.

            O Dr. Jeffries emitiu um pequeno riso que mais parecia uma fungadela.

            -Pode perfeitamente imaginar toda a gama de emoções que Tischendorf sentiu, estou certo que as mesmas sentidas por Colombo quando avistou terra do Novo Mundo. Depois de muitos meses de tenazes esforços, Tischendorf acabou por convencer os frades que deviam oferecer este códice ao patrono da sua igreja, que era nem mais nem menos do que o Czar da Rússia. O Codex Sinaiticus permaneceu na Rússia até à revolução de 1917 e ao advento de Lenin e Stalin. Os comunistas não tinham qualquer interesse na Bíblia. Para conseguirem dinheiro tentaram vender o Códice aos Estados Unidos, mas sem êxito. Em 1933, o Governo Inglês e o Museu Britânico conseguiram arranjar as cem mil libras necessárias para a compra do documento, e ele aqui está diante dos vossos olhos. Que história sensacional, hem?

            - Na verdade que história emocionante - concordou Randall.

            - Alonguei-me de propósito para que pudesse apreciar uma história ainda melhor e mais emocionante - prosseguiu o Dr. Jeffries - a história da escavação do Dr. Monti e a descoberta em Ostia Antica do Evangelho Segundo Jacob, um Novo Testamento mais antigo do que o Codex Sinaiticus quase trezentos anos, uma descoberta mais antiga do que os evangelhos canônicos ou sinópticos, possivelmente, cerca de meio século, um documento atribuído a uma pessoa da família de Cristo e uma testemunha ocular da maior parte da vida humana de Cristo. A partir de agora, Sr. Randall, talvez possa apreciar o estupendo presente que está prestes a anunciar ao mundo. E agora parece-me também melhor que subamos até ao gabinete do Dr. Knight no andar superior e que comecemos falando dos aspectos práticos da sua imediata missão. Sigam-me, se fazem favor.

            Com Wheeler e Naomi atrás, Steve Randall seguiu o Dr. Jeffries por dois lances de íngremes escadas, até que pararam diante de uma porta. Quando o Dr. Jeffries a abriu para dar passagem aos visitantes, anunciou:

            - O gabinete do ajudante de curador, utilizado pelo Dr. Florian Knight para seu estúdio.

            Era um cubículo onde trabalhava e vivia naquela cela quase monástica de estudioso. Do solo ao teto viam-se estantes repletas de livros. Papelada, volumes referenciados, embrulhos de documentos espalhados por duas mesinhas e pelo tapete. Havia reduzido espaço para a velha escrivaninha colocada perto da janela, para os fichários, hermeticamente fechados, para o sofá e para uma ou duas cadeiras.

            Arqueado após o passeio e a subida da escada, o Dr. Jeffries instalou-se na cadeira da secretária. George Wheeler e Naomi Durin tinham-se sentado no sofá. Randall arrastou uma cadeira para mais perto possível dos outros e sentou.

            -Ummm... talvez fosse melhor levá-los até à cantina do pessoal para tomarem chá - disse o Dr. Jeffries.

            - Não, não professor - respondeu Wheeler, com um sinal feito com a mão - estamos bem aqui.

            - Esplêndido - disse o Dr. Jeffries. - Penso que a natureza da nossa conversa se adaptará melhor em um ambiente privado. Para começar, digo que pouco mais sei a respeito do nosso... urnm... de Florian... do Dr. Florian Knight. O estranho comportamento dele e a inacessibilidade que o rodeia, aborrece-me e confunde-me. Ainda não fui capaz de contatar com ele, nem com a noiva, Miss Valerie Hughes, desde a chamada que fiz para o navio a noite passada. - Voltou-se para George Wheeler. Creio que me fez uma pergunta qualquer... esqueci-me o que foi... perdoe a minha distração... Lá embaixo fez-me uma pergunta sobre o Dr. Knight, não foi?

            Wheeler levantou-se do sofá e foi sentar-se numa cadeira mais perto da secretária.

            -É verdade, professor. Ontem à noite esqueci-me de lhe perguntar uma coisa. Que mal   súbito atacou Dr. Knight? O que aconteceu de errado com ele?

            O Dr. Jeffries cofiou nervosamente o bigode.

            -George, eu também gostaria de saber. Miss Hughes não foi clara e quase que não me deu oportunidade de lhe perguntar. Limitou-se dizendo que Florian foi obrigado a ir para a cama com uma febre altíssima. O médico que o visitou fez saber que devia acima de tudo arranjar, sem demora, um período de repouso.

            - Soa-me esgotamento nervoso - disse Wheeler. - Fez um sinal de cabeça na direção de Randall. - Steve, que pensa você do caso?

            Randall considerou como improvável a possibilidade, mas respondeu gravemente:

            -Bem, se foi um colapso nervoso com certeza que houve sinais anteriores, manifestações de certo modo visíveis que já se arrastassem há algum tempo. Talvez o Dr. Jeffries nos possa dizer alguma coisa a respeito do caso.-Olhou para o catedrático de Oxford.-Notou alguns sintomas estranhos no comportamento do Dr. Knight ou alguma falha no seu trabalho durante estes meses mais recentes?

            - Nada - respondeu sem titubear o Dr. Jeffries. - O Dr. Knight desempenhou todas as missões e trabalhos de que o encarreguei conscienciosamente, posso mesmo dizer com todo o brilhantismo. O Dr. Knight é um perito em grego, persa, árabe, hebraico... e claro, em aramaico, a língua sobre a qual temos trabalhado mais detidamente e com maior profundidade nos últimos tempos. Como leitor no museu, tudo o que fez foi impecável, precisamente aquilo que eu pretendia. Quero que compreendam bem, um jovem com as faculdades de percepção de Florian Knight não precisa traduzir o aramaico de um fragmento de papiro palavra por palavra. Habitualmente, lê o conteúdo correntemente, facilmente, naturalmente, como se fosse a sua língua natal, como se estivesse lendo o Times no café. De qualquer forma, o rendimento do Dr. Knight a verter aramaico, hebraico e grego para inglês destinado à nossa comissão de cinco catedráticos em Oxford foi sempre de alto nível, sempre tão exato quanto se poderia desejar.

            - Em resumo, ele não fez erros, especialmente no passado ano, não é isso? - insistiu Randall.

            O Dr. Jeffries olhou longamente para Randall antes de responder.

            - Meu caro senhor, os seres humanos são falíveis e o trabalho que realizam está sempre sujeito ao erro. Foram os erros do passado, bem como o novo conhecimento obtido através da arqueologia e dos nossos progressos na filologia, que possibilitaram aos eruditos fazerem novas traduções da Bíblia. É melhor explicar para compreenderem todas as rasteiras enfrentadas pelo Dr. Knight. Tomemos a palavra pim, que figura apenas uma vez na Bíblia. Aparece no Livro de Samuel. Os tradutores pensaram sempre que pim significasse ferramenta e por isso a consideraram como referindo-se a uma espécie de medida de peso como a palavra siclo, de modo que as últimas Bíblias já a inseriram com o seu sentido corrigido. Outro exemplo: as antigas Bíblias inglesas tinham sempre uma linha de carpinteiro. Recentemente, tradutores chegaram à conclusão de Isaías 7 : 14 que dizia: «Eis que uma virgem conceberá». Durante muitos anos a frase foi considerada como uma profecia do nascimento de Cristo. Então entraram em ação os tradutores da Versão Modelo Revista e modificaram a linha para: «Eis que uma mulher jovem conceberá». Traduziam do hebreu original e a palavra almah significa, segundo os textos, «mulher jovem». As Bíblias anteriores tinham traduções de textos gregos incorretos que haviam utilizado a palavra parthenos, que significa «virgem».

            - Maravilhoso material de promoção - exclamou Randall, apreciando.

            O Dr. Jeffries inclinou a cabeça e fez depois um gesto de moderação.

            -Mas, Sr. Randall, por outro lado os tradutores podem ir por vezes longe demais quando tentam modernizar, alterando incorretamente significados. Por exemplo: Paulo cita Nosso Senhor como tendo dito: «É mais abençoado dar do que receber». A frase foi sempre considerada como uma tradução perfeitamente literal do grego. No entanto, os tradutores da Nova Bíblia Inglesa mostraram-se tão ansiosos para colocarem a nova obra no seu idioma que alteraram por completo a citação de modo que se lê: «A felicidade está mais em dar do que em receber». Notem que não só é uma tradução fraca do ponto de vista literário, como modifica o significado. Reduz uma declaração firme a uma indolente reflexão perfeitamente casual. Sacrificou uma frase cheia de força numa frase onde a fraqueza é evidente. Além disso, existe uma diferença considerável entre o ser feliz e o ser abençoado. Mas, quanto ao Dr. Knight, nunca foi culpado de tais inovações. Pensando bem não posso assinalar a mínima falta no trabalho produzido pelo Dr. Knight. Vou ver se consigo explicar melhor...

            O Dr. Jeffries, pensativo, fez uma pausa, enquanto Randall aguardava o prosseguimento para ver se ocorreria qualquer indício que o ajudasse a solucionar o enigma da doença do Dr. Knight.

            -Na altura em que dirigi uma equipe de eminentes eruditos para a tradução inglesa no Novo Testamento Internacional, o Dr. Knight trabalhou na obra como investigador, tal como aqui no museu. Ele nunca deixou de ir até o mais fundo das coisas a fim de procurar significados ajustados para a linguagem, de acordo com o pensamento contemporâneo. A maior parte dos entendidos esquece-se que Cristo viveu e se movimentou entre camponeses. Os eruditos, com demasiada freqüência, olvidam a investigação em profundidade para um ajustamento das palavras, habitualmente, usadas pelos camponeses da Palestina do primeiro século. A nossa equipe traduziu umas palavras como «grãos de cereal», mas o Dr, Knight não se sentiu satisfeito. Investigou a linguagem corrente naqueles tempos, fez as suas comparações, e chegou à conclusão que os camponeses contemporâneos de Cristo diziam que o trigo, a aveia e a cevada tinham «olhos» não «grãos», provando-nos que «grãos de cereal» era incorreto. Contestou-nos também o uso da palavra gado. Provou que nos tempos bíblicos gado não significava, especificamente, a espécie vacum, bovina, mas, designava todos os animais em geral incluindo asnos, gatos, cães, cabras e camelos. Se tivéssemos utilizado a palavra gado na tradução como expressão de bovinos seria um erro de palmatória. O Dr. Knight salvou-nos da inexatidão.

            O Dr. Jeffries olhou para Wheeler e depois para Randall.

            - Cavalheiros, um cérebro sempre em estado de alerta não me parece muito candidato a um colapso nervoso.

            - Penso que devo concordar - concedeu Randall.

            -Pode estar certo quanto a essa parte -disse o Dr. Jeffries amigavelmente. - Mas por outro lado, se alguma vez um homem trabalhou em circunstâncias que pudessem ser um convite a um colapso nervoso, esse homem foi sem dúvida o Dr. Florian Knight.

            Randall arqueou as sobrancelhas surpreso.

            - E que circunstâncias foram essas?

            - Ora, em todos os longos meses que durou o trabalho, tal como agora, o pobre rapaz nunca soube precisamente naquilo em que estava trabalhando, dado que ninguém lhe fez a mais leve alusão. Lembre-se que juramos manter completo segredo. Embora o Dr. Knight bem como os nossos outros assistentes fossem tão de confiança como os professores titulares, o caso é que avisaram de que quanto menos pessoas soubessem do achado de Ostia Antica, melhor seria. De maneira que mantivemos o segredo tanto para Knight como para os outros.

            Randall sentiu-se desconfortável, perplexo, sem atinar em conjugar idéias.

            - Mas então como é que ele podia trabalhar sem lhe mostrarem os fragmentos recentemente descobertos?

            - Nunca lhe mostramos, nem a ninguém, todos os fragmentos. Entregamos ao Dr. Knight para trabalhar uns quantos conjuntos de peças mais cruciais, e aos outros diferentes peças ou versículos. Disse ao Dr. Knight que possuía alguns fragmentos de um Novo Testamento apócrifo, e que pensava escrever um livro sobre o caso. Fui obrigado a ocultar-lhe a verdade. Os pedaços de material que lhe entreguei eram tão incompletos, tão difíceis, tão confusos, que ele deve ter pensado para que raio seria um trabalho tão díspar. Todavia, foi suficientemente decente para nunca me fazer a mais leve pergunta.

            A perplexidade de Randall manifestou-se ainda mais na forma como mostrou o seu pasmo.

            - Dr. Jeffries, o senhor está dizendo que o seu investigador, o Dr. Florian Knight, não está a par do projeto Ressurreição Dois?

            -O que digo é que ele ignorava o projeto até...ontem à tarde. Quando me desloquei de Oxford para me reunir com ele, a fim de o preparar para se tornar seu consultor em Amsterdã, senti que ele estava finalmente em condições de saber toda a verdade, visto o projeto estar praticamente garantido. De fato, a Bíblia está sendo impressa, e para que Florian lhe pudesse ser útil tinha que lhe revelar tudo o que havia a respeito da descoberta do Professor Monti. Foi essa a razão porque me desloquei a este gabinete e lhe contei os fatos a respeito do Evangelho Segundo Jacob e sobre o Pergaminho Petrônio. Devo dizer que ele ficou como que esmagado.

            -Esmagado? De que maneira ... ?

            - Umm... espantado, atônito, será a palavra mais exata. Sim, espantando, sem poder proferir uma palavra, e finalmente extremamente excitado. Veja se pode compreender. Tem devotado toda a sua vida à Bíblia, ora uma revelação como a que lhe fiz... pode na verdade ser esmagadora.

            A curiosidade de Randall subiu de grau.

            - E foi então que ele adoeceu?

            -Como? Ah, não, não adoeceu na minha presença...

            - Mas depois de se terem despedido, ele foi para casa e depois adoeceu, não é verdade?

            Nova cofiadela de bigode pelo Dr. Jeffries.

            - Ora... sim, suponho que foi o que aconteceu. Devíamos reunir-nos de novo à noite para jantar. Eu queria debater em pormenor o trabalho dele como seu consultor. Foi quase à hora de jantar que recebi o obscuro telefonema feito pela noiva de Knight, Miss Hughes. Knight não podia jantar comigo. Não podia tomar conta da sua nova missão. O médico aconselhava-o a nem sequer pensar em aceitar o cargo. Além disso, Knight não podia receber ninguém durante uma ou duas semanas. - O Dr. Jeffries abanou a cabeça compungido. - Mau, muito mau. Desconcertante. Mas não interessa tentarmos saber mais pormenores. Não podemos continuar dependendo de Florian Knight. Mas que faremos então? Suponho que não temos outra alternativa, a não ser substitui-lo, -Voltou-se para Wheeler.-Tenho mais dois ou três leitores assistentes que trabalharam conosco. Jovens competentes e estáveis. Suponho que possamos mandar um para servir de consultor ao Sr. Randall. Espero que seja o melhor a fazer. Infelizmente, digo que nenhum deles estará à altura do Dr. Knight, que é um verdadeiro mágico na matéria.

            Wheeler levantou-se com um resmungo, e Naomi também se levantou do sofá, secundando o patrão.

            -Detesto ter de entrar nessa segunda escolha, professor - disse Wheeler. -Suponho que o caso seja inevitável, mas na verdade existe tanta coisa em jogo que é nosso dever coligirmos as melhores informações possíveis de modo a apresentarmos o nosso Novo Testamento Internacional da maneira mais estimulante. Bem, já tenho pouco tempo para apanhar o meu avião para Amsterdã. Porque é que não discute com Steve os possíveis substitutos para Knight? O Steve pode ficar em Londres, está hospedado no Dorchester. Talvez ele possa entrevistar os outros candidatos amanhã, escolhendo um.

            O Dr. Jeffries levantou-se para acompanhar o editor e Naomi até à porta.

            - Tivemos pouca sorte, mas posso garantir que farei o melhor que puder e souber para resolver esta ingrata situação - prometeu o Dr. Jeffries. - Tenham boa viagem. Em breve estarei também em Amsterdã.

            Wheeler suspirou.

            - Sim, tivemos pouca sorte com o Knight. Bom, que tudo corra melhor... E, Steve, não se esqueça de me telefonar amanhã. Avise-me de quando chegará à capital holandesa. Terá um carro à sua espera.

            - Obrigado, George.

            Randall estava em pé, à espera, quando o Dr. Jeffries voltou para o gabinete.

            - Ummm... este assunto da substituição... tenho que pensar bem no caso. Não será fácil conseguirmos o homem adequado. Deixe-me tratar do caso. Quero fazer algumas investigações. Amanhã de manhã, com a cabeça mais fresca, chegaremos a qualquer decisão. Está satisfeito?

            - Perfeitamente - disse Randall, apertando a mão do professor. Mas quando estavam já perto da porta, casualmente, perguntou-lhe: - A propósito, Dr. Jeffries, sabe por acaso onde mora a noiva do Dr. Kníght? Valerie Hughes, não é como se chama?

            -Lamento muito não poder informar, mas posso dizer-lhe que trabalha para a casa Sotheby & Cia. como saberá, é a famosa firma de leilões estabelecida em New Bond Sreet. Na verdade, recordo-me que Florian me disse certa vez que a conheceu pela primeira vez na Sotheby. Sabe, Knight costuma ir dar uma olhada, habitualmente, para ver se encontra quaisquer materiais bíblicos que valham a pena. Dentro da exigüidade do seu ordenado é um bom colecionador. Sim, a firma Sotheby foi o lugar onde ele travou conhecimento com a jovem Valerie.      O Dr. Jeffries abriu a porta do gabinete.

            - Sr. Randall, se andar para aí sem destino e quiser companhia ao jantar, ficarei muito honrado de poder acolhê-lo no meu clube.

            -Talvez aceite noutra ocasião, Dr. Jeffries. Mas de qualquer modo fico-lhe muito grato pelo convite. À tarde e à noite vou estar muito ocupado visitando umas pessoas conhecidas que estão aqui em Londres.

 

            Foi às quatro e meia da tarde que Randall chegou ao seu destino-New Bond Street.

Entre uma loja de antiquário e uma loja de venda de jornais e revistas, cuja tabuleta indicava ser a firma W. H. Smith & Son, situavam-se as duplas portas que levavam ao interior da mais antiga casa de leilões do mundo. Por cima da entrada, montada num suporte, estava a cabeça em basalto de uma deusa egípcia. Randall leu que a cabeça fora certa vez leiloada, mas como nunca encontrara comprador, os proprietários resolveram montá-la na fachada, empregando a peça como uma espécie de símbolo do negócio, uma marca registrada. Por baixo da deusa, uma tabuleta indicava que era ali a casa Sotheby & Co., e por baixo o endereço e o número de polícia das suas duas portas: 34 e 35.

            Randall entrou, atravessou o saguão de mosaicos, pisou o grande capacho com as letras-SOTHEBY 1844 - e atravessou a dupla porta envidraçada. Apoiado no lustroso corrimão de madeira, subiu a escadaria, coberta com uma passadeira verde, que levava à New Gallery.

            Lá em cima, as salas de exposição tinha muita gente, visitantes que formavam, essencialmente, uma população masculina. Vários cavalheiros se aglomeravam em volta de uma coleção de jóias e vários outros estudando alguns artigos armados de lupas. Viam-se guardas em uniformes azuis, com galões dourados girando por entre os visitantes que, com os seus catálogos verdes abertos, estudavam as telas que em breve seriam leiloadas. Um cavalheiro já idoso estava perto de uma vitrine expositora, aberta, examinando várias moedas raras.

            Randall perscrutou tudo muito bem para ver se avistava qualquer empregada, mas não avistou nem sombra de uma mulher. Começava pensando se o Dr. Jeffries não se enganou a respeito do emprego de Valerie Hughes, quando deu fé de que alguém se dirigia a ele.

            - Posso ser-lhe útil em alguma coisa, sir? - Quem lhe oferecia os seus serviços era um homem de meia idade, vestindo uma sobrecasaca cinzenta, que devia ser funcionário da firma. De fato, o homem acrescentou: - Sou um dos porteiros. Se houver qualquer coisa em particular que deseje ver...

            - Há alguém que eu gostaria de ver - respondeu Randall.

            - Miss Valerie Hughes será empregada aqui?

            O rosto do porteiro abriu-se num sorriso.

            - É, sim senhor. Miss Hughes encontra-se na Seção de Livros, um departamento que fica ao lado da Sala Principal de Leilões. Dá-me a honra de lhe poder servir de guia?

            Atravessaram uma sala de leilão adjacente, com as paredes cobertas por feltro vermelho e cheia de visitantes.

            - Qual é a posição de Miss Hughes na firma Sotheby's? - perguntou Randall.

            - Uma jovem muito inteligente. Durante algum tempo foi recepcionista no balcão da Seção de Livros. Quando alguém traz livros à firma para serem vendidos é atendido por uma recepcionista que, depois, convoca um dos nossos oito peritos da especialidade para estabelecerem o preço da peça ou do lote oferecido para venda. Evidentemente, Miss Hughes sabia tanto de livros como os nossos mais experientes entendidos. Ora logo que se declarou uma vaga, o chefe da seção promoveu-a a perito legal em matéria livreira. Sir, chegamos à Sala dos Livros.

            Tratava-se de uma sala ampla com bustos de Dickens, Shakespeare, Voltaire e outros imortais adornando os cimos das estantes, que, por sua vez, estavam cheias de lotes de obras, atados em maços, que em breve deviam ser postos à venda. No meio da sala via-se uma mesa em forma de U à qual se sentavam os principais compradores durante os leilões e no extremo da mesa, na parte aberta, ficava uma espécie de tribuna que servia para o leiloeiro. Ao lado da tribuna estava colocada uma secretária alta que era utilizada pelo funcionário que recebia o dinheiro dos compradores que cobriam os lances e que passava os recibos e registrava as vendas.

            Randall tomou consciência de dois homens de idade e de uma jovem que estavam ocupados tirando livros, talvez em preparativos para a elaboração de um novo catálogo.

            - Vou avisá-la - disse o porteiro. - Quem devo anunciar, sir?

            - Diga-lhe que me chamo Steve Randall, americano, e que sou um amigo do Dr. Knight.

            O porteiro, com as abas da pitoresca casaca a esvoaçarem, dirigiu-se a Valerie Hughes. Randall viu-o murmurar qualquer coisa para a jovem mulher e detectou o olhar intrigado que ela lhe lançou. Finalmente, Valerie, fez um gesto de compreensão com a cabeça, pôs de lado o livro de apontamentos e dirigiu-se para Randall. Com rapidez, Steve avançou ao seu encontro, encontrando-a no meio do caminho, junto da mesa em forma de U.

            Tratava-se de uma mulher relativamente baixa e meio gorda. Usava o cabelo cortado curto e liso, grandes óculos, um nariz aquilino, boca que formava uma linha horizontal e uma pele de imaculada.

            - Sr. Randall, não é? Estranho porque... eu... nunca ouvi o Dr. Knight mencionar o seu nome.

            -O Dr. Knight ouviu ontem pela primeira vez o meu nome pronunciado pelo Dr. Jeffries. Acabo precisamente de chegar de Nova York. Era a pessoa que encontraria com o Dr. Knight para trabalhar com ele em Amsterdã.

            - Oh... - disse ela levando a mão à boca. Pareceu ficar assustada. -Foi o Dr. Jeffries, que o enviou?

            -Não, o Dr. Jeffries não faz a mais leve idéia de que me encontro aqui. Soube onde era o seu emprego e vim por minha conta. Apresentei-me como um amigo do Dr. Knight, porque desejava ser amigo dele na verdade. Preciso da ajuda do Dr. Florian Knight. Na verdade necessito muito do auxílio dele. Pensei que se me encontrasse consigo, se lhe contasse aquilo que projeto fazer e quanto a assistência do Dr. Knight significará...

            - Sinto-me desolada, mas nada disso vale a pena - disse ela com um ar infeliz. - O Dr. Knight está muito doente.

            -Seja como for, ouça-me com atenção. Estou certo que ele lhe falou a respeito de... do projeto secreto... bem, julgo que não haverá mal em mencioná-lo pelo nome... Ressurreição Dois... Um nome que o Dr. Knight ouviu ontem mencionar pela primeira vez, não é exato?

            - Sim, ele contou-me um pouco... - disse ela hesitante.

            - Então ouça-me com atenção - murmurou Randall imperativo.

            Começou a relatar-lhe a profissão que exercia, explicando-lhe a razão porque Wheeler o englobava no projeto. Falou da chamada telefônica do Dr. Jeffries na noite passada para bordo do France. O desapontamento da reunião no Museu Britânico e a tristeza e confusão gerais devido ao Dr. Florian Knight não poder tomar conta do novo serviço em Amsterdã. Randall falou da maneira mais convincente, tentando conquistá-la para o seu lado, mostrando-se o mais amigável e simpático possível, concluindo:

            - Miss Hughes, se Florian Knight está realmente tão doente como assegurou ao Dr. Jeffries pelo telefone, nesse caso acredite, não a importunarei mais. Vamos, diga-me, o Dr. Knight está gravemente doente?

            Valerie Hughes fixou Randall e os olhos apareceram úmidos por baixo das grossas lentes.

            -Não, não está assim tão doente- respondeu vacilante.

            -Pode dizer-me o que aconteceu então?

            -Sr. Randall, acredite que não posso, não posso. Dei a minha palavra, e o Florian significa tudo para mim.

            - Não pensa que ele se interessaria pela Ressurreição Dois?

            - Sr. Randall, o que eu penso não conta. Se dependesse de mim, em menos de um minuto ele faria parte da obra, porque esse projeto é exatamente o trabalho mais conveniente para ele. É nessas coisas que é verdadeiramente bom, são elas que representam para ele mais do que tudo na vida. Ajudá-lo-ia muito assistir à conclusão da sua obra. Mas digo-lhe que é impossível convencê-lo do que mais lhe convém. -Mas pode tentar.

            Valerie extraiu um lenço do bolso e levou-o ao nariz.

            - Oh... não sei, não sei, não sei se me atrevo...

            - Deixe-me então tentar.

            - O senhor? - pareceu ficar atônita pela sugestão - Du... vido... duvido muito que ele o queira ver, a si ou seja a quem for.

            - Ele não quer ver o Dr. Jeffries. Talvez tenha as suas razões para isso. Mas eu sou diferente, sou uma pessoa que respeita o trabalho do Dr. Knight e que necessito muito dele, da sua cooperação.

            Por trás das grossas lentes, as pestanas dela tremeram, e, com voz hesitante, disse:

            - Suponho que não há nada a perder. Sem dúvida que quero que ele esteja com o senhor em Amsterdã, por amor dele, pelo seu bem. - Naquele rosto rechonchudo foi-se vincando um ar decidido. -Sim, julgo que na verdade vou tentar fazer com que o Florian o receba. Tem um lápis e papel?

            Randall tirou da carteira um cartão de visita e estendeu-lhe, juntamente com a sua caneta de ouro.

            Valerie rabiscou qualquer coisa no cartão e depois entregou-lhe, bem como a caneta.

            -Este é o endereço de Florian em Hampstead... Hampstead Hill Gardens, perto da Pond Street. Provavelmente será uma perda de tempo, mas, vá hoje ao apartamento dele às 8 horas da noite. Eu estarei lá. Se ele não quiser recebê-lo, tanto pior, mas saberá que eu tentei.

            - Mas talvez ele me receba.

            - Nada me faria mais feliz - disse Valerie Hughes. - Pode crer que ele é realmente uma pessoa encantadora, depois que a gente o conhece direito. Portanto, já sabe, fique de dedos cruzados até às oito. - Pela primeira vez esboçou um sorriso, embora amarelo - E que Deus nos proteja.

 

            Randall deixara Darlene irritada num cinema perto de Piccadilly, prosseguindo no mesmo táxi o trajeto aparentemente inacabável até Hampstead Hill Gardens.

            Da rua sombria, Steve Randall observou o prédio vitoriano, de três andares, com as suas torres e a sua complicada arquitetura, um prédio de tijolo vermelho. Resguardando a ornamentada porta estendia-se uma espécie de pátio de mau gosto. Ao subir a escada, Randall imaginou que a casa estaria dividida em cinco ou seis apartamentos modestos.

            O apartamento do Dr. Florian Knight ficava logo em frente ao patamar do primeiro andar. Incapaz de encontrar uma campainha, Randall bateu à porta, sem que obtivesse resposta. Voltou a bater mais vigorosamente. Finalmente, a porta abriu-se surgindo uma perturbada Valerie Hughes, de blusa, saia e sapatos de saltos baixos, fitando-o por trás das suas lentes convexas.

            - Deus protegeu-nos? - perguntou por brincadeira.

            - Sim, Florian consentiu em recebê-lo - disse quase num cochicho. - Mas por pouco tempo. Concede-lhe alguns minutos. Venha comigo.

            - Obrigado.

            Seguiu-a através da sala-de-estar de aspecto mofado, com o seu mobiliário usado, gasto, com montes de livros e pastas de arquivos em cima das cadeiras, até chegar a um quarto de dormir estreito, sombrio, apenas iluminado por um abajur colocado na mesa de cabeceira, ao lado da cama de ferro. Randall sentiu dificuldade em penetrar naquela obscuridade. A seu lado ouviu a voz de Valerie.

            - Florian, este é o senhor Steve Randall, que veio da América. Valerie afastou-se logo a seguir, para a sombra atrás de Randall, enquanto este conseguiu por fim divisar uma figura semi-deitada na cama, apoiada contra duas almofadas. Florian Knight parecia-se de fato com o retrato que Naomi traçara a bordo. Com a diferença de ter um ar mais esteta, mais excêntrico do que o Aubrey Beardsley mencionado por Naomi. Nesse momento bebericava o que Randall achou que fosse Xerez num copo de vinho.

            -Olá, Randall- cumprimentou o Dr. Knight com uma voz seca e algo arrogante. -Você encontrou uma boa advogada na Valerie. Foi apenas curiosidade para ver tal modelo de sinceridade que consenti em recebê-lo. Receio que o encontro seja francamente péssimo, mas seja como for, aqui está você.

            - Sinto-me encantado em consentir receber-me - retrucou Randall com decidida afabilidade.

            O Dr. Knight pousou o copo na mesa de cabeceira e apontou com uma mão flácida para uma cadeira situada aos pés da cama.

            - Pode sentar-se, caso não tome este gesto de hospitalidade como um convite para ficar aqui toda a vida. Julgo que não excederá cinco minutos bem contados, pra gente abordar todos os assuntos que você quiser.

            - Obrigado, Dr. Knight.

            Randall sentou-se na cadeira designada. Nesse momento, já mais habituado à luz, viu que o homem ainda jovem deitado na cama usava um aparelho auditivo auxiliar. Não se sentia muito seguro a respeito de como começar a conversa, sobre a maneira de penetrar a couraça de hostilidade do jovem professor universitário. Num tom ameno, quebrou o silêncio.

            - Fiquei penalizado ao ouvir dizer que o senhor estava doente. Espero que se sinta melhor.

            - Nunca estive doente. Foi uma mentira. Uma coisa para afastar o nosso vão e falso amigo, Dr. Jeffries. Quanto sentindo-me melhor... Posso dizer-lhe que não me sinto, que estou pior do que nunca.

            Randall percebeu que não havia tempo para cortesias, teria de ser o mais franco e direto possível.

            -Olhe, Dr. Knight, não faço a mais leve idéia porque é que o senhor se sente assim. Sou uma pessoa estranha ao serviço. Resumindo, posso dizer-lhe que me meti em algo que desconheço em absoluto. Mas seja o que for, espero que as coisas se resolvam, porque preciso de si. Foi-me dado pouquíssimo tempo para preparar a publicidade e promoção daquilo que parece ser uma nova e notável Bíblia. Embora seja filho de um clérigo, os meus conhecimentos sobre o Novo Testamento ou sobre a teologia são tão reduzidos e incompletos como os da maioria dos leigos. Preciso desesperadamente de auxílio, e avisaram-me logo de início que o senhor era a única pessoa que me daria a colaboração necessária. Por outro lado, penso também que seja qual for a reivindicação que tenha contra o Dr. Jeffries não é preciso que ela interfira no nosso trabalho em conjunto em Amsterdã.

            O Dr. Knight bateu as suas nervosas e flácidas mãos num aplauso fingido.

            - Lindo sermão, Randall. Mas, tenha certeza que não foi suficiente para me convencer. Juro-lhe que pode apostar à vontade, como nunca mais me comprometerei a qualquer coisa em que está envolvido um filho da mãe como o Dr. Jeffries. Não me venham com puxa-saquismos que não vale a pena. Nunca mais servirei de capacho a esse pomposo filho de puta.

            Randall viu perfeitamente que já não havia mais nada a perder, por isso perguntou rigidamente:

            - Mas afinal o que é que você tem contra o Dr. Jeffries?

            - Ah! diga antes o que é que eu não tenho contra esse suíno fétido e peçonhento! - O olhar do Dr. Knight ultrapassou Randall e dirigiu-se para o escuro. - Podemos encher-lhe os ouvidos, hem, Valerie? - Soergueu-se na cama com um grito de dor. - Meu querido camarada, eis o que eu tenho contra Jeffries. O Dr. Bernard Jeffries é um asqueroso e monumental mentiroso, que abusou de mim pela última vez.. Estou cansado de lhe servir de cabide, de ser sempre lançado para a sombra, enquanto ele se eleva cada vez mais à minha custa. Ele mentiu-me, Randall. Fez-me perder dois preciosos anos da minha vida. E nunca perdoarei a nenhum homem uma coisa dessas.

            - Mas o que foi? - insistiu Randall. - O que é que ele fez?

            -Fale mais alto, por amor de Deus - disse o Dr. Knight, apontando para o aparelho auditivo. - Não vê que sou surdo?

            - Desculpe - disse Randall, elevando a voz. - Tento descobrir o que é que o Dr. Jeffries lhe fez. Será porque ele só ontem lhe disse a verdade a respeito do trabalho de investigação que você fazia?

            -Randall, coloque-se no meu lugar, se é que pode. Bem sei que não será difícil para um americano abastado colocar-se no lugar de um teólogo mal pago e com um defeito físico. No entanto, ponha-se no meu lugar, se puder. - A voz tremia-lhe de ira e de desgosto. - Faz dois anos, Jeffries convenceu-me deixar minha confortável posição em Oxford para me deslocar a esta suja cidade poluída e viver neste bolorento apartamento a fim de trabalhar para uma obra que ele preparava e que seria um livro de impacto. Em troca, fez-me certas promessas, sem intenções de cumprir. Não obstante, eu confiei cegamente nele. Não hesitei, tornei-me seu escravo, sem me importar com isso. Adoro o campo do nosso trabalho de pesquisa, sempre o adorei e sempre hei de adorar. Pus na obra toda a minha garra, toda a minha devoção, todo o meu sangue, para saber ontem, de um momento para o outro, que tudo foi um logro. Para saber que esse homem em quem eu acreditava e tinha fé fora uma criatura que nunca acreditara em mim, que nunca tivera confiança em mim. Para me revelar pela primeira vez, que todo o meu trabalho, todo o meu esforço, não seria empregues naquilo em que eu pensava, mas sim na tradução de um novo evangelho, uma Nova Bíblia revolucionária. Tratou-me com tal desrespeito, com tal desprezo, mesmo... fez com que ficasse louco de raiva.

            - Posso perfeitamente compreender isso, Dr. Knight. No entanto, você próprio admitiu que gostou do trabalho, e já que estamos nesse campo, realizou na verdade uma grande obra, tal como o Dr. Jeffries admitiu sinceramente quando o louvou... sim, na verdade fez um excelente trabalho por uma causa importante.

            - Para que causa? - perguntou com sarcasmo o Dr. Knight. - Esse maldito papiro e os fragmentos de pergaminho achados em Ostia Antica? A revelação de um Jesus Cristo humano? Espera que eu acredite numa história dessas, só porque me foi contada pelo Dr. Jeffries?

            Randall franziu o cenho.

            - São coisas que foram autenticadas pelos mais destacados peritos tanto da Europa como do Médio Oriente. Com certeza estou pronto a aceitar...

            O Dr. Knight interrompeu-o bruscamente, cortante como uma faca:

            - Você não vê um palmo à frente do nariz nessa matéria. É um amador e pertence a lista de pagamentos deles. Você acredita naquilo que lhe disseram para acreditar.

            - Nada disso - disse Randall, o mais suavemente que lhe foi possível, controlando-se. - Nem por sombras. Acredito no projeto através das provas, pelo que vi e ouvi. Posso declarar-lhe que não tenho qualquer razão para duvidar ou depreciar a obra de Ressurreição Dois. Creio que não está insinuando que a descoberta...

            -Não estou insinuando nada - interrompeu o Dr. Knight com exceção disto: nenhum erudito sobre a Terra sabe mais a respeito do Jesus histórico, do seu tempo e da terra em que viveu do que eu... nem o Jeffries, nem o Sobrier, nem o Trautmann, nem o Riccardi. Estou declarando que mais ninguém estaria no primeiro plano desse projeto, que ninguém merecia mais do que eu tomar conta dele. Do que eu, percebe bem, do que eu: Florian Knight! Até que veja essa maldita descoberta com estes olhos que a terra há de comer, até que examine a meu contento, digo-lhe que não aceito a coisa. Até agora tudo o que me revelaram não passa de onda.

            -Nesse caso, venha comigo para Amsterdã e faça o seu teste, Dr. Knight-disse Randall.

            -Demasiado tarde - proferiu Dr. Knight - Demasiado tarde - caiu para trás, nas almofadas, fatigado e pálido. Sinto muito, Randall. Nada tenho contra si. No entanto, não me constrange, ser objeto de aluguel como consultor na Ressurreição Dois. Não sou nenhum destruidor de mim mesmo, nenhum masoquista. - Passou uma mão, tremendo, pela testa. - Valerie, estou outra vez transpirando. Sinto-me bestialmente fatigado...

            Valerie aproximou-se da cabeceira da cama.

            - Estás martirizando-se, Florian. Deves tomar outro sedativo e repousar um pouco. Vou ensinar o caminho ao Sr. Randall. Volto já.

            Agradecendo Florian Knight por conceder-lhe entrevista, embora sentindo grande relutância em partir sem conseguir seu objetivo, Randall seguiu Valerie para fora do quarto, atravessando a sala de estar até à porta.

            Desconsolado, atravessou o pequeno patamar, já descendo as escadas, quando percebeu que a moça ainda o acompanhava.

            - Espere por mim no Roebuck - murmurou ela apressadamente. -É o local onde vamos, o bar que fica na esquina com a Pond Street. Não esperará mais do que vinte minutos. Eu... eu penso que é melhor dizer-lhe uma coisa a respeito de Florian.

 

            Eram nove e quarenta e cinco e ainda esperava Valerie.

            Estava sentado no banco de madeira junto à parede, muito perto das portas de vidro da entrada. Embora não tivesse fome, encomendou uma empada de presunto e vitela, mais para matar o tempo do que a fome. Comeu um ovo cozido, um pouco de vitela e presunto do recheio e principalmente a parte da crosta da empada.

            Ociosamente, observava a mais jovem das duas mulheres que tomava conta do balcão do bar do Roebuck, entretido a vê-Ia encher uma caneca de cerveja, esperando que a espuma se dissipasse um pouco para, novamente, encher a caneca até às bordas. A cerveja parou nas mãos de um cliente solitário sentado num banco do balcão, um homem já de idade, com o tradicional traje londrino dos operários, o qual mastigava um pouco de salsicha espetado num palito.

            Randall interrogava-se outra vez sobre que raio pretendia dizer Valerie à saída, quando lhe cochichara: Penso que é melhor dizer-lhe uma coisa a respeito de Florian.

            O que ficou por ser dito?

            Pensava também porque diabo se demoraria tanto. Nesse momento as portas de vidro abriram-se e eis Valerie em frente dele. Randall levantou-se rapidamente, tomou-lhe o braço e acomodou-a no banco a seu lado.

            -Peço-lhe que me desculpe a demora. Tive que esperar que ele adormecesse.

            - Quer comer ou beber alguma coisa?

            -Talvez um chope pequeno, se me acompanhar.

            - Claro que sim. Mas prefiro uma caneca.

            Valerie chamou a garçonete que servia às mesas. -Duas Charrington! Uma grande e outra pequena! -Quero que me desculpe se fui perturbar o Dr. Knight disse Randall.

            - Oh, ele estava muito pior ontem à noite e hoje durante o dia, antes da sua visita. Fiquei satisfeita por lhe falar tão francamente. Ouvi tudo o que disseram e é por isso mesmo que lhe quero falar em particular.

            -Disse-me na escada que me revelaria uma coisa.

            -E quero.

            Esperaram até que a garçonete os serviu. A caneca de cerveja amarga colocou diante de Randall. Valerie já bebia sua dose mais reduzida. Finalmente, ela pousou o copo na mesa.

            -Deu fé de alguma coisa curiosa entre aquilo que Florian lhe disse?

            -Sim. Desde que me sentei aqui que penso em tudo o que ouvi. Ele falou das promessas feitas pelo Dr. Jeffries e que não cumpriu. Falou de não querer participar na Ressurreição Dois por não ser um indivíduo auto destruidor nem masoquista. Falou de se servirem dele, de não confiarem nele, todavia, não compreendo como é que tudo isso lhe despertou uma ira tão grande que resolveu abandonar tudo, por aquilo que parece ser apenas um pouco de vaidade ferida. Coordenando idéias, parece-me que deve haver muito mais do que vaidade ferida.

            -E tem toda razão - disse Valerie com simplicidade.- Há mais, muito mais do que isso e precisamente vim aqui para lhe revelar se me prometer guardar segredo.

            -Prometo.

            -Muito bem, tenho pouco tempo. Ainda preciso cuidar de Florian e ver se durmo um pouco. O que vou revelar é para o bem de Florian, por amor à sua sobrevivência. Estou convencida que não o estou traindo.

            - Dei-lhe já a minha palavra de honra. Esteja certa que esta conversa fica só entre nós.

            O rosto gorducho de Valerie tomou uma expressão solene e a sua voz adquiriu uma tonalidade nova.

            - Sr. Randall, Florian é mais surdo do que ele deixa perceber. O aparelho auditivo possibilita a comunicação com ele, mas não é verdadeiramente eficaz. Florian consegue desvencilhar-se porque aprendeu já há tempo lendo os movimentos dos lábios. Ele pode fazer tudo aquilo em que se meta. Creio sinceramente que ele é um gênio. Seja como for, tanto quanto me é acessível, sei que ambos os ouvidos médios de Florian sofreram grandes danos devido a uma infecção ocorrida na pré-adolescência. A única possibilidade de cura reside na cirurgia e transplantação... talvez numa longa série de operações: um processo cirúrgico que se chama timpanoplastia.

            -Mas poderá a sua audição melhorar completamente?

            - O otorrino de Florian pensa que sim, mas o processo cirúrgico e a possível série de operações e enxertos são coisas que exigem muito dinheiro. É na Suíça que se encontra um dos melhores cirurgiões na matéria. Ora acontece que tais despesas ultrapassam as poucas posses de Florian, tanto mais que é com dificuldade que ele consegue viver. Além disso, ainda auxilia a mãe, uma viúva, que vive em Manchester e que depende inteiramente do filho. Já me ofereci para o ajudar - com o pouco que tenho e posso - mas ele é demasiado orgulhoso para aceitar. O senhor viu como ele vive. Aquele apartamento de três divisões custa-lhe oito libras semanais. Precisa de um carro, seja de que marca e em que estado for, desde que ande, mas o dinheiro não lhe dá para isso. Por todo o seu brilhantismo, por ser um assistente de teologia e um preciosíssimo colaborador do Dr. Jeffries, consegue apenas auferir a miséria anual de três mil libras. Já pode imaginar até onde ele poderá ir com tal rendimento. Conseqüentemente, Florian decidiu ganhar mais dinheiro, valendo-se das suas aptidões. A surdez constitui também para ele um dos maiores problemas, não só devido às dificuldades que às vezes lhe causa e que são empecilhos ao seu trabalho, como também pelo efeito psicológico que nele exerce. A desvantagem irrita-o. De modo que o principal objetivo dele é ganhar dinheiro suficiente para se submeter às operações. Depois disso, ele... bem, gostaria de casar comigo e fundar uma família. Compreende?

            -Sim. Compreendo.

            -A sua grande esperança era que o Dr. Jeffries, seu superior hierárquico, se retirasse antes da sua aposentadoria oficial, setenta anos, o que daria a Florian uma possibilidade de ser professor titular da cadeira de Hebreu. Era uma esperança, mas há dois anos tornou-se uma promessa. Na verdade o Dr. Jeffries prometeu a Florian que se ele viesse para o Museu Britânico como leitor seria devidamente compensado, compensado com a aposentadoria antecipada do Dr. Jeffries e com a recomendação de Florian ser nomeado para o substituir na cátedra. A promoção significaria salário suficiente para Florian se tratar e casar. Com tais objetivos em mente, Florian sentiu-se encantado por se dedicar aos assuntos do Dr. Jeffries aqui em Londres. Não demorou muito tempo que Florian não começasse a ouvir uns zunzuns inquietantes - provenientes de uma fonte informativa responsável - de que o Dr. Jeffries mudara de idéia a respeito de se aposentar. A razão para tal era relacionada com uma ambição de caráter político. Segundo o que Florian ouviu, o nome do Dr. Jeffries cogitava-se como um dos principais candidatos à presidência do Conselho Mundial das Igrejas, com sede em Genebra. A fim de promover a sua candidatura o Dr. Jeffries manteria sua cátedra em Oxford tanto quanto pudesse.

            - Como uma fachada para impressionar?

            - Exatamente. O pobre Florian ficou desorientado. Mas como não verificou a veracidade daquilo que ouvira manteve viva a esperança de que o Dr. Jeffries se retiraria como lhe prometeu. No entanto, como medida de precaução e para não se sujeitar a uma coisa de caráter tão duvidoso, empreendeu outro plano para arranjar dinheiro. Ele sempre ambicionara escrever e publicar uma nova biografia de Jesus Cristo, baseada naquilo que atualmente se conhece de Jesus - a partir dos evangelhos, de fontes não-cristãs, a partir de especulações tecidas pelos teólogos - e também com base em deduções originais do próprio Florian. Nesse sentido, iniciou a obra há dois anos, trabalhando todas as manhãs e tardes para o Dr. Jeffries, empenhou-se numa escravidão e todas as noites até à meia-noite, labutando todos os feriados, quase todos os fins de semana, sacrificando até as férias. Mas fez suas investigações e escreveu o seu livro. Uma maravilha de obra que intitulou Cristo sem Enfeites. Há uns quantos meses, Florian mostrou uma parte do manuscrito a um dos principais editores ingleses, que ficou tremendamente impressionado. Concordou em assinar um contrato com Florian e dar-lhe uma grande quantia de adiantamento suficiente para operar, suficiente para nos permitir casar- contra a entrega completa da obra. Pois bem, Florian já acabou a obra e estava precisamente fazendo o trabalho de revisão final. Projetava entregar o manuscrito acabado no prazo de dois meses, assinar o contrato e preparava-se para começar a viver uma vida confortável ... ou antes, uma vida sem preocupações imediatas, sem dívidas... depois de uma eternidade como escravo. Nem lhe posso descrever como ele se sentia feliz. Até que ontem...

            - Quer dizer, quando o Dr. Jeffries lhe revelou ... ?

            - Sim, quando o Dr. Jeffries lhe revelou o segredo do achado em Ostia Antica. Quando lhe revelou a existência, em processo de impressão, da Nova Bíblia Internacional e todos os fatos até agora desconhecidos a respeito de Jesus Cristo, preparados para revelarem ao público. Para Florian foi como se lhe dessem uma pancada na cabeça com uma marreta. Ficou esmagado, em absoluto estado de choque. Toda a sua energia, até ao menor alento, por causa dos seus sonhos e esperanças, devotou ao Cristo sem Enfeites e agora, com a recente descoberta, com essa nova Bíblia, a preciosa biografia de Florian, escrita à custa de tanto sacrifício tornou-se obsoleta, impublicável sem significado. Mas o que mais o amargura ainda é que se lhe contassem as coisas dois anos atrás ele não teria gasto as suas energias nem posto as suas esperanças no livro. Pior ainda, pensa que o Dr. Jeffries, inconscientemente, o utilizou para ajudar nas pesquisas e para traduzir uma obra que é a destruidora da sua biografia de Cristo e que lhe põe abaixo o futuro como um castelo de cartas soprado por uma criança. Por tudo isto creio que avaliará bem aquilo que ontem aconteceu a Florian, compreender porque é que ele está doente, porque não queria ver ninguém, porque só com muita dificuldade consegui que o recebesse e porque se recusa, na sua amargura, a seguir como consultor para Amsterdã, não é verdade?

            Steve Randall, sem saber que responder, desolado, fixava a sua caneca de cerveja.

            -Foi uma coisa terrível, pavorosa - conseguiu finalmente murmurar. - Não sei dizer-lhe como me sinto angustiado e como lamento o caso, julgo que se uma coisa dessas me sucedesse, nem sei bem o que faria... talvez me suicidasse.

            - Florian tentou - disse Valerie. - Não...vou dizer-lhe como... mas afinal que diferença faz isso agora? Sim, ontem, depois de deixar Dr. Jeffries, voltou tão desesperado para o apartamento que engoliu uma dezena, talvez duas dezenas, de comprimidos para dormir, atirando-se para cima da cama disposto a morrer. Afortunadamente eu combinei encontrar-me com ele, para ver se o obrigava a comer qualquer coisa. Tenho uma chave. Entrei e dei com ele em cima da cama, inconsciente. Logo que vi o frasco vazio, telefonei para o médico da minha mãe - foi ele que me trouxe ao mundo - sabia bem que ele me auxiliaria. O médico correspondeu imediatamente à chamada e conseguiu salvar Florian. Graças a Deus. Florian esteve muito mal durante toda a noite, mas hoje começou já a recuperar.

            Impulsivamente, Randall estendeu a mão e colocou-a por cima da mão da jovem, numa carícia.

            -Valerie, não encontro palavras para lhe exprimir aquilo que sinto.

            Ela fez um gesto de compreensão, sorrindo timidamente.

            - Eu sei como se sente. O senhor é uma pessoa decente.

            - Peço desculpa de ter aborrecido esta noite o Dr. Knight. Não serei eu a censurá-lo por não querer nada com o nosso projeto.

            -Oh, mas é nisso que o senhor se engana - disse Valerie com repentina animação.- Se não visitasse Florian esta noite, eu não estaria aqui para lhe contar o que falarei a seguir. Julgo que é o momento próprio para que o Florian se distraia, se mantenha ocupado, se liberte pelo trabalho. Sinto que se torna necessário - absolutamente necessário - que ele faça parte da vossa Ressurreição Dois. Antes da sua visita, pensei que não haveria possibilidade, mas quando o senhor esclareceu o assunto, eu observava a expressão do rosto de Florian, a maneira como ele falava. Conheço todas as tonalidades e mutações da sua voz. Conheço-o tão intimamente que, seja lá o que diga, sei perfeitamente o que na verdade sente. Ouvi-o dizer que não rejeitava por completo a descoberta de Ostia Antica. Também o ouvi dizer que só acreditaria no achado se visse os documentos em primeira mão. Conheço Florian, e sei todos os sinais de quando ele se afunda e de quando começa a regressar à vida. E os sinais de há muito eram de regresso, de vontade de sobreviver. O que acontece é que estava ainda demasiado zangado, sentido, para admitir o seu desejo de participar na Ressurreição Dois.

            -Quer então dizer que...

            Valerie apresentou-lhe o seu raro sorriso, sempre com um cunho de tristeza.

            -Que Florian confia em mim completamente. Posso influenciá-lo fazendo quase tudo o que eu quiser. Bem, quero que ele esteja na Ressurreição Dois consigo. Acredito sinceramente que ele, sob aquela aparência de orgulho ofendido, deseja participar do trabalho. Verei se consigo fazer com que vá junto para Amsterdã, e estou quase certa em conseguir o que pretendo e o que é melhor para Florian. Não digo partir já, mas, dentro de uma semana. Ele precisa de uma semana para se recompor. Passada essa semana, o senhor tê-lo-á junto de si, amargurado, rezingando, resistente, inconformado, todavia, adorando cada momento de trabalho e realizando com toda a consciência e eficiência o que o senhor pretende. Ele irá para Amsterdã, dou-lhe minha palavra de honra. Obrigada pela sua paciência em aturar-me... e... pelo copo de cerveja na sua companhia. Tenho que correr.

            Foi só muito mais tarde - depois de encontrar um táxi em Hampstead, anotando na sua memória que não se esquecesse de telefonar ao Dr. Jeffries dizendo-lhe que já tinha o seu tradutor–consultor - que Randall desdobrou a edição vespertina do London Daily Courier.

            Na primeira página, a manchete em três colunas saltou-lhe aos olhos:

 

         MAERTIN DE VROOME REVELA

       SURPREENDENTE DESCOBERTA

         DE UM NOVO TESTAMENTO.

         CONDENA A NECESSIDADE

         DE OUTRA BÍBLIA.

         CONSIDERA O PROJETO

         «INÚTIL E IRRELEVANTE».

 

            A cidade de origem do telegrama era Amsterdã. Logo a seguir da data lia-se: «Exclusivo do nosso correspondente exclusivo, Cedric Plummer. Primeiro artigo de uma série de três».

            Todo aquele segredo e de repente aquela bomba - pensou Randall.

            Com o coração num ritmo acima do normal, à fraca luz do táxi, começou a percorrer o artigo.

            Plummer obtivera, em exclusivo, uma entrevista com o já popular revolucionário da igreja protestante, o Reverendo Maertin de Vroome, de Amsterdã. O augusto clérigo, um homem muito discutido no momento pelas suas idéias, declarara que conseguira obter, de fonte fidedigna no próprio seio do projeto, informação de estar em preparação a tradução de um Novo Testamento baseado numa recente descoberta arqueológica. O Novo Testamento seria apresentado ao público por um poderoso sindicato internacional de editores reconhecidamente especuladores e sempre em busca de grandes e fáceis lucros, editores que contavam com o apoio de ambiciosos elementos ortodoxos da periclitante igreja universal.

            O artigo citava as declarações do Reverendo de Vroome:

            -Não necessitamos de mais um Novo Testamento para tornar a religião pertinente neste mundo em mutação. Do que precisamos são reformas radicais na religião e no seio da própria igreja, modificações no clero bem como nas interpretações das Escrituras, para que a religião tenha significado e seja perceptível. Fé em tempos tão perturbados requer algo para além de novas Bíblias, de novas anotações, de novas traduções, ainda que baseadas em mais outra descoberta arqueológica, de modo que encontrem verdadeiros valores para a humanidade. A Fé requer uma nova casta de homens de Deus que trabalhem a favor do homem à face da terra. Resolvemo-nos ignorar ou boicotar tal continuado comercialismo da nossa crença. Decidamo-nos resistir a mais outro inútil e inoportuno Livro Sagrado e, em vez disso, tornemos pertinente a mensagem do simbólico Jesus familiar ao povo sofredor de todo o mundo.»

            E a entrevista continuava, com mais palavras sempre batendo a mesma tecla. Mas em parte alguma se inseria o mais ligeiro fato que tomasse como concreto. Nenhuma menção a Ostia Antica, nenhuma menção à Ressurreição Dois, nenhuma menção ao nome do Novo Testamento Internacional.

            O Reverendo Maertin de Vroome ouvira tão somente o primeiro rumor e aquela entrevista era o seu aviso inaugural aos membros da igreja oficial a trombetear-lhes que estava pronto para o combate.

            Randall dobrou o jornal. Afinal de contas, Wheeler não exagerara a necessidade de segurança. Com um poder como o que representava de Vroome, já em cima deles, o futuro do projeto correria extremo perigo. O próprio Randall, como um dos componentes do projeto, sentia-se ameaçado e desalentado.

            E logo a seguir um novo pensamento contribuiu para o enervar ainda mais.

            Acabava precisamente de se responsabilizar por levar para Amsterdã um jovem homem amargurado e ressentido que se chamava Florian Knight. Se Maertin de Vroome era um inimigo da Ressurreição Dois, nesse caso o clérigo revolucionário encontraria um grande aliado no Dr. Knight, um homem que odiava o projeto talvez por razões mais concretas e mais imediatamente perigosas.

            Por enquanto, de Vroome não penetrara ainda nas defesas internas da Ressurreição Dois, mas qualquer dia, com a presença do Dr. Knight em Amsterdã, o reformador religioso radical, talvez acabasse por encontrar o seu Cavalo de Tróia.

            Randall pensou o que faria.

            Decidiu que observaria e esperaria para ver se o Cavalo de Tróia destinava-se permanecer de entranhas vazias ou se se transformaria num transporte de elementos destruidores para aquilo que acabara por se lhe tornar a sua última esperança na terra.

 

            Do seu lugar, junto ao corredor do jato da K L M, Randall debruçou-se sobre Darlene a tempo de vislumbrar uma parcela, lá muito embaixo, de Amsterdã. A grande cidade holandesa assemelhava-se a uma bandeja de xadrez irregular, cinzento e ferruginoso, com os quadrados preenchidos por torres em espiral e edifícios achatados, marcado pelas linhas brilhantes e líqüidas dos velhos canais.

            Durante o período negro da sua vida, ainda com Bárbara, estivera em Amsterdã durante dois dias e observara o grande roteiro turístico impacientemente: a praça principal conhecida como a Dam, o centro comercial chamado Kalverstraat, a Casa de Rembrandt e os quadros de Van Gogh no Stedelijk Museum.

            Agora na sua poltrona de bordo, avaliava aquele regresso. O que o esperava lá embaixo prometia uma vida nova. Até mesmo a pendente ameaça implícita naquele jornal londrino que lera a noite passada, a entrevista feita por alguém chamado Plummer com o formidável Reverendo Maertin de Vroome, acrescentava um ar de acaso e incerteza, e também de estímulo, à sua visita à grande cidade dos Países Baixos. No âmbito daquele bandeja de xadrez que se avistava lá embaixo, movimentavam-se, uma contra a outra, duas forças antagônicas e secretas: as legiões ortodoxas da Ressurreição Dois, preparadas para salvarem e reforçarem a fé existente, contra um revolucionário chamado de Vroome, que pretendia assassinar Jesus Cristo tradicional e destruir uma igreja que existia desde o século I.

            Randall sentia-se intimamente divertido pela maneira simplista, preto e branco, com que alinhara de um lado os bons e do outro os maus, tal como impulsionar o produto de um seu anunciante contra os competidores, no mercado, ou preparar-se para fazer uma declaração de impacto à imprensa. Todavia, estava há muito tempo condicionado para se manter leal a um cliente, e essa lealdade continuava a sobrepor-se a tudo.

            Pensou se Wheeler e os outros leram a clamorosa entrevista de Plummer, e quais eram as suas reações perante a história que merecera as honras de primeira página. Pensou também se seria conveniente mencionar o escândalo quando se encontrasse com o dono da Editora Missão, que estaria à sua espera no Aeroporto Schiphol, com um carro preparado a fim de seguirem para a cidade. Acabou por decidir que tais pensamentos eram pura perda de tempo. Claro que sim, Wheeler e os outros deviam já ter conhecimento do artigo de Plummer.

            Cinco minutos depois, o avião aterrizou suavemente numa das pistas, rolou com lentidão até seu terminal. Randall e Darlene desceram a escada móvel. Dentro do trilho rolante, percorreram a distância abrangida, talvez por cinco campos de futebol e entraram na sala da alfândega. O sinal no vidro amarelo do computador eletrônico made in Italy, onde se lia SOLARI 5, orientou Randall para localizar a bagagem que acabava precisamente de chegar na correia transportadora. O oficial alfandegário holandês, devidamente uniformizado, aproximou-se, soando as suas botas nos mosaicos que cobriam o chão. Voltou para Randall e Darlene um rosto aberto, num sorriso simpático.

            - Americanos?

            Procedeu ao habitual e rotineiro questionário.

            - Ah, Sr. Randall, avisaram-me para o esperar. Por favor, sigam em frente.

            Seguindo o carregador, Darlene suspirou aliviada.

            - Estava com medo que eles descobrissem os pacotes de cigarros que trouxe como prevenção.

            Logo que chegaram ao saguão de entrada, Randall sentiu-se momentaneamente perdido. Parecia-lhe que estava metido dentro de uma pequena jaula de vidro rodeada por uma jaula maior. Darlene puxou-lhe pela manga do casaco desportivo.

            - Devemos cambiar dinheiro? - perguntou ela apontando para uma máquina automática de trocos.

            - Wheeler tratou disso - respondeu Randall, que lançando um olhar à volta de si, disse: «Mas onde diabo é que ele estará?

            Depois, vendo passar uma jovem aeromoça da K L M, de rosto fresco e sorridente, no seu uniforme azul e com luvas brancas, impecáveis, fez-lhe um sinal e perguntou:

            -Onde é que encontramos um amigo que está à nossa espera?

            A aeromoça guiou-os até à mais próxima das quatro gigantescas portas de vidro que atravessavam a parede também de vidro e levavam a uma área exterior.

            Wheeler, imenso, bojudo, fanfarrão, já dirigia-se para eles em grandes passadas.

            - Bem-vindos a Amsterdã! - gritou. Depois, num tom mais moderado, quase em segredo, disse para Randall: - Quero que conheça o presidente da nossa editora, o homem primeiro da Ressurreição Dois, o distinto editor religioso de Munique... ele insistiu em vir...

            Randall deu fé subitamente de outra presença que fazia com que Wheeler perdesse grande parte da sua imponência. Era um cavalheiro de aspecto digno que teria pelo menos um metro e noventa e dois de altura. O cavalheiro tirou o chapéu, descobrindo a cabeça com cabelos brancos, já ralos; uma cabeça parecida com uma bala de canhão. Usava óculos de grossos aros de tartaruga que lhe revelavam, atrás das lentes, uns olhos vivos. O nariz era pontudo e o seu sorriso descobria uns dentes largos, cobertos por uma película amarelecida.

            - O Dr. Emil Deichhardt - anunciou Wheeler, apresentando Steven Randall e Darlene Nicholson.

            O Dr. Deichhardt inclinou-se galantemente e fez o gesto simbólico de beijar a mão de Darlene, mal a tocando com os lábios, engolfando a seguir a mão de Randall dentro da imensa concha da sua destra, ao mesmo tempo que dizia num inglês gutural mas correto:

            - Estamos encantados de tê-lo conosco em Amsterdã, Sr. Randall. Consigo a nossa equipe está completa. A partir de agora estamos aptos a apresentar o nosso esforço de tantos anos a todo mundo da maneira mais eficaz possível. Sim, Sr. Randall, a sua reputação chegou-nos primeiro do que a sua presença física.

            Wheeler começou a impeli-los para fora do saguão, dizendo: -Não há tempo a perder. Vou levá-los direto ao Hotel Amstel, o melhor da cidade, onde se alojam bastantes dos componentes da nossa administração. Logo que você, Randall, desfaça a sua bagagem, queremos que se dirija ao nosso quartel-general. Queremos que tome posse das suas instalações, que conheça alguns dos mais importantes elementos do nosso pessoal. Depois disso - à uma hora, Emil? - você almoçará com os cinco editores do projeto e com os seus conselheiros teológicos... que estarão todos presentes, com exceção do Dr. Jeffries, que como sabe só chega daqui a alguns dias. Ah, é verdade, o seu telegrama foi quase uma bomba, dando-nos a certeza de recrutar Florian Knight. Mais tarde há de contar-me como é que conseguiu isso. Você é um vendedor nato, não é? Pronto, cá estamos. Está ali o carro.

            De fato lá estava o sólido Mercedes-Benz, junto a um enorme vaso de flores, esperando à entrada da pista suspensa. O motorista holandês tinha as duas portas escancaradas. Randall seguiu Darlene para a retaguarda, onde se lhes juntou o Dr. Deichhardt. Wheeler ocupou o lugar ao lado do motorista.

            Deixaram para trás a gigantesca torre de radar de controle do Schiphol, passaram por uma estátua moderna, em basalto negro, sem identificação, rolaram por um túnel com ótima iluminação e chegaram por fim à excelente auto-estrada para Amsterdã. Dentro do carro as conversas tinham um tom inconseqüente, a maior parte entre Wheeler e Deichhardt a respeito de planos editoriais, e uma vez ou outra, dirigia-se à Darlene a respeito do panorama, mas Randall mal lhes prestava atenção.

            Preferia poupar-se, conservar suas energias antes de ser absorvido pela novidade do lugar e pelas novas pessoas a conhecer naquele seu primeiro dia de Amsterdã. A corrida desde o aeroporto durou trinta minutos. O dia estava bom, quase quente e os campos e blocos de residências à beira da estrada estavam banhados de sol. Pouco antes de deixarem a auto-estrada, Randall avistou um complexo fabril com um grande anúncio a indicar MM, logo a seguir entraram nas movimentadas ruas da cidade e surgiram os sinais luminosos de trânsito e as placas indicativas dos locais onde lia JOHAN HUIZIGALAAN, POSTJESWEG MARNIXSTRAAT e numa esquina movimentada o nome ROZENGRACHT.

            Ouviu Deichhardt falar a Darlene:

            -A casa de Anne Frank fica perto. Este canal está mais alto em relação ao nível do mar 40 centímetros do que o aeroporto. Na verdade a maior parte da cidade está abaixo do nível do mar. Estes holandeses são realmente um povo muito trabalhador. Rozengracht... a radical gracht significa canal, e para sua informação straat e weg querem dizer rua... e plein, uma palavra que se lhe tornará familiar, quer dizer praça, ou se preferir plaza, tal como Thorbeckplein, que é simplesmente Praça Torbeck. Bitte, vê aquele bonde que vai à nossa frente? Vê a caixa vermelha na retaguarda?

            Randall olhou para a frente, observando o longo bonde bege que os atrasava na marcha.

            - Aquilo é um caixa de correio - continuou Deichhardt- Os cidadãos de Amsterdã depositam a correspondência naquelas caixas. Muito funcional, hem?

            O Mercedes virou e seguia agora ao longo da Prinsengracht, depois ao longo das margens do rio Amstel. Randall teve um vislumbre das embarcações com obras superiores em vidro para excursionistas que deslizavam pelos tranqüilos canais, a contínua corrente de trânsito dos holandeses montados nas suas bicicletas simples e motorizadas; e metidos nos seus carros compactos, na sua maioria DAF de fabricação nacional, Fiats ou Renaults. Randall sentiu-se como se viajasse num tanque. Observou os robustos prédios em tijolo passarem vertiginosamente. Parecia-lhe que nunca estivera naquela cidade.

            Passavam nesse momento por uma grande ponte, em velocidade moderada forçando o motorista dobrar à esquerda.

            - Chegamos finalmente - disse Wheeler, voltando-se para trás. -A residência exata é Professor TuIppIein, número Um. Eis o Amstel Hotel situado neste pequeno beco sem saída. Um dos mais excelentes estabelecimentos hoteleiros da Europa. Trata-se de um edifício do século dezenove. Muito elegante. Quando a Rainha Juliana e o Príncipe Bernardo celebraram as bodas de prata do seu casamento, com toda a nobreza do Velho Continente assistindo, o escolhido foi o Anistel. Temos uma surpresa para Randall. O Dr. Deichhardt e eu conseguimos-lhe as melhores instalações do hotel, o apartamento real, o mesmo que a rainha utiliza quando tem necessidade. Nós vivemos em quartos de garçons comparado com as suas esplêndidas salas.

            - Os meus agradecimentos, mas não precisava tanto disse Randall.

            - Bem, nós não somos assim tão altruístas, não é verdade, Emil? - disse Wheeler piscando o olho para o editor alemão. E depois para Randall: - O nosso sacrifício obedeceu a um princípio metódico. A partir deste momento só uma coisa conta, para além da importância e necessidade do mais absoluto segredo: os seus preparativos para a mais gigantesca campanha de promoção de toda a história. Esperamos que, a partir do momento em que as notícias forem liberadas, você receba em conferência de imprensa as centenas de representantes da imprensa internacional, da rádio e da televisão e para isso é preciso que sejam regiamente recebidos, recebidos como se fossem príncipes, sim, e você nesse momento será o soberano recebendo seus nobres suseranos, daí a necessidade de aposentos reais, que seduzirão os homens da informação e causar-lhes-ão uma impressão indelével. Eis o motivo porque ocupa a suite real, com as portas números 10, 11 e 12. Miss Nicholson tem um quarto adjacente. Além de tudo o mais a ter em consideração, esperamos que o ambiente lhe seja benéfico para a criação publicitária, de modo a que os começos recebam um impulso majestoso.

            -Farei o impossível -asseverou Randall.

            Com esta conversa pararam em frente aos imponentes degraus de pedra da escadaria frontal, com um pórtico apoiado sobre as colunas. O porteiro estava já segurando respeitosamente a porta traseira do veículo, que abriu, enquanto o motorista colocava a bagagem no passeio.

            Randall saiu do Mercedes e ajudou Darlene sair. Do lugar que ocupava à frente, Wheeler chamou Randall, que se debruçou na janela.

            -Steve, vocês já estão registrados. Pode dirigir-se à recepção para recolher sua correspondência que nós mandamos entregar aqui, mas não devem haver mensagens locais. Com exceção dos serviços alfandegários do aeroporto que foram alertados para verificarem as bagagens na sala VIP, mais ninguém sabe que você se encontra em Amsterdã. Fora da Ressurreição Dois e de algum pessoal do hotel, mais ninguém sabe ou saberá de sua ligação com nosso projeto. É um ponto vital. Se as coisas constarem, existem certos elementos que serão capazes de tudo... de tudo, repito... de se esconderem na sua suite, vigiarem por escuta o seu telefone, subornarem os garçons que atendem o serviço da suite...procurando saber exatamente quem você é e procurando obter o máximo de informações. Como nosso porta-voz, é o mais vulnerável de todo o nosso pessoal privativo. Não se esqueça das recomendações e passe palavra à sua... sua secretária...

            - Ela não sabe de nada - garantiu Randall. - Foi um ponto de precaução. A partir de agora serei o homem invisível.

            - Poderemos despachá-lo em quarenta e cinco minutos? inquiriu Wheeler. - Mandaremos o carro buscá-lo. Para sincronizarmos os movimentos, telefone-me logo que saia do seu quarto. Estarei à espera no saguão do KrasnopIsky para lhe servir de guia. Temos na verdade uma tarefa de arromba à nossa frente.

            Randall observou o Mercedes dando a volta na rua sem saída, cujo centro servia para estacionamento dos carros dos hóspedes, até que ele se perdeu de vista.

            Darlene, seguida pelos bagageiros, entrou, e Randall apressou-se seguindo-a.

            Parou por momentos à entrada do saguão para se inteirar daquilo que o cercava. Para além do carpete oriental que cobria parte do chão de mármore, via-se uma imponente escadaria com uma passadeira castanha que levava a um amplo patamar. Neste, em cada extremo, bifurcavam-se dois lances de degraus que conduziam a uma espécie de galeria que corria a toda a volta do saguão. A direita, os dois bagageiros estavam à espera com as malas, e perto deles num corredor de teto de abóbada, Darlene mirava uma vitrine expositora onde se viam malas de senhora. Logo à esquerda de Randall ficava o balcão da recepção. Ao lado ficava um outro balcão que servia para os hóspedes trocarem o seu dinheiro em florins e onde se enviavam telegramas.

            Randall aproximou-se da recepção, dizendo:

            -Chamo-me Steve Randall. Disseram-me que já estou registrado...

            O empregado baixou-lhe a cabeça numa vênia.

            -Sim, Sr. Randall, está tudo em ordem. Temos aqui a sua correspondência.

            Entregou a Randall um maço de pesados envelopes. Randall espionou-os um a um. Escritório, escritório, escritório, todos da firma Randall Associates de Nova York, de Wanda Smith, Joe Hawkins e um de Thad Crawford, mais pesado do que os outros. Com certeza a redação do contrato com as Empresas Cosmos.

            Começara a afastar-se, quando o empregado chamou:

            - Sr. Randall, esquecia-me de lhe entregar esta mensagem que estava no seu escaninho e que uma pessoa nos entregou...

            - Uma mensagem?

            Randall mostrou-se surpreso. Ainda lhe soavam aos ouvidos as palavras de Wheeler: não devem haver mensagens locais... ninguém sabe que você se encontra em Amsterdã.

            - Um cavalheiro entregou-nos a mensagem há cerca de uma hora. Está à espera do senhor no bar.

            E o empregado da recepção estendeu a Randall a mensagem, escrita num cartão de visita. Randall olhou surpreso para o floreado nome impresso no centro do cartão: CEDRIC PLUMMER, ESQ. No canto inferior esquerdo: LONDRES. No canto inferior direito, numa tinta púrpura, quase escura, uma palavra: Volte.

            Randall voltou o cartão. Na mesma tinta, numa escrita direta e fácil de ler, a mensagem:

«Caro Sr. Randall - Cumprimentos. Boa sorte com a Ressurreição Dois. Sei que eles o empregam como conselheiro em relações públicas. Agradeço-lhe o favor de se dirigir ao bar onde me encontro a fim de discutirmos um assunto urgente e de interesse mútuo. Plummer.»

            Plummer!

            Abalado, Randall meteu o cartão de visita no bolso. Lembrava-se perfeitamente da primeira página do London Daily Courier, com a entrevista do Reverendo Maertin de Vroome e a história dos boatos sobre a nova Bíblia em preparação. Primeira parte de um artigo que era: Exclusivo do correspondente do nosso jornal, Cedric Plummer. Amsterdã, 12 de Junho.

            Como diabo é que o tal Plummer sabia que ele chegaria nesse dia a Amsterdã? Mais ainda, na mensagem do jornalista continha algo que o artigo do jornal não mencionara, o nome de código Ressurreição Dois.

            Randall vangloriava-se de ser calmo, embora momentaneamente invadiu-se de pânico.

O seu instinto de sobrevivência aconselhava-o telefonar a Wheeler imediatamente, mas o editor ainda não estaria no seu quartel-general. O instinto seguinte foi recolher ao isolamento inexpugnável dos seus aposentos, mas ao mesmo tempo raciocinou que não poderia esconder-se para sempre.

            Principiou a acalmar-se. Sempre que se apresente um inimigo, o melhor é enfrentá-lo de uma vez para sempre e mostrar-se uma pessoa em todo o esplendor da sua força. Advertido antecipadamente, revestido de uma armadura de combate, preparou-se para o encontro. De resto sentia-se também curioso de poder ver o rosto do inimigo.

            Apressado encaminhou-se para o local onde estava Darlene.

            -Querida, tenho alguém à minha espera no bar. Assunto de negócios. Vai para o quarto e desfaz as malas. Não me demoro nada.

            Ela principiou protestando, mas logo depois cedeu e seguiu na cola dos bagageiros para o elevador.

            Randall dirigiu-se novamente ao recepcionista perguntando:

            -Onde é que fica o bar?

            O empregado indicou-lhe o lado esquerdo do saguão lá ao fundo, acrescentando:

            - A pessoa que o espera usa uma flor na lapela.

            Randall dirigiu-se para a porta do bar e entrou. Era uma espaçosa sala onde o vidro era predominante. Por uma das galerias envidraçadas via-se, num nível inferior, um restaurante ao ar livre, onde vários casais tomavam o café ao sol. Para além avistava-se uma parte do canal, por onde deslizava uma barcaça. O bar propriamente dito ficava num recesso da grande galeria envidraçada. Por cima do exótico balcão dispunha-se uma enorme prateleira, de ferro forjado em trança onde se alinhavam os vinhos mais raros, do outro lado pendia uma tapeçaria decorativa.           Randall começou procurando em volta da sala. O garçon, um bem humorado holandês, cantarolava baixinho ao mesmo tempo que limpava os copos.

            O bar estava apenas ocupado por duas pessoas. A mais próxima era um homem gordo, que bebia um sumo de laranja e consultava um roteiro. No extremo da sala, junto a uma janela, sentado numa cadeira de couro, encontrava-se um homem de aspecto juvenil, bem vestido, com uma flor na botoeira. O inimigo.

            Randall atravessou a sala.

            O inimigo era um metido a elegante.

            Cedric Plummer era um homem de cabelo ralo, fraco, preto, penteado para os lados, ocultando as grandes entradas e as falhas. Tinha uns olhos pequenos, como duas contas, sempre vivos, por cima de um nariz carnudo, pronunciado; rosto magro, chupado, ornamentado com uma barbicha terminada em ponta, à Van Dick. Tinha uma cor doentia, de um branco amarelado como uma ostra. Envergava um terno axadrezado, de corte conservador, impecável e uma gravata de cor ferrosa, onde brilhava um alfinete de ouro e brilhantes. Num dos dedos um enorme anel com uma volumosa turquesa. De modo nenhum o tipo de jornalista de roupas amarrotadas e ar permanentemente combativo da Fleet Street, segundo Randall avaliou.

            Percebendo a presença de Randall, o correspondente titular do Courier pousou o jornal que lia, descruzou as pernas e levantou-se num gesto de perfeita cortesia.

            - Sinto-me muito honrado, Sr. Randall - disse numa voz um tanto estridente, sorrindo automaticamente e mostrando uns dentes salientes. - Por favor sente-se, Sr. Randall. Permite-me que lhe ofereça uma bebida? Tome aquilo que desejar...

            - Não, muito obrigado - disse Randall seco, sentando-se em frente de Plummer. - Só tenho um minuto para o atender.. Acabo de chegar.

            - Sei isso muito bem. O que lhe pretendo dizer não demora mais de um minuto. Fique descansado. Leu o cartão que entreguei na recepção?

            - Li. Foi ele precisamente que me obrigou a vir aqui.

            -Claro que sim, claro que sim, meu caro senhor. Não se admire pelas coisas que sei. Sabia que o senhor chegava hoje, que ocupa o cargo de diretor das relações públicas e publicidade no Grande Hotel KrasnapoIsky, que trabalhará para a Ressurreição Dois... por isso a minha mensagem teve o condão de lhe excitar a curiosidade e estou encantado que assim seja.

            Randall começou a detestar o homem.

            -Muito bem. Mas afinal o que deseja?

            -A sua cooperação -disse Plummer.

            - Como?

            - Meu caro Sr. Randall, parece-me que deverá agora ser óbvio que apoio-me em excelentes e exatas fontes de informação. Não tive a mínima dificuldade em saber da sua escolha para este trabalho, nem da sua visita a Londres e muito menos da hora da sua chegada a Amsterdã. Quanto ao caso da Ressurreição Dois, pois bem, como primeira arma de impacto, temos a minha história em exclusivo ontem publicada no jornal. Com certeza que a leu.

            Randall continuou calado, rufando deliberadamente com os dedos no tampo da mesa, o mais calmo possível.

            - Muito bem, desempenhe o seu forte e estóico papel de americano silencioso - disse Plummer - mas ao menos seja prático. Considere bem que seria impossível publicar-se uma Bíblia completa - ou um Novo Testamento - , tendo duzentas e tantas pessoas envolvidas na sua produção sem que, mais tarde ou mais cedo, o segredo começasse transpirando. A verdade, meu caro, como o azeite, acaba sempre por aparecer à tona da água. As pessoas com quem ligo-me são perfeitamente familiares com os que entram e saem do vosso quartel-general da Dam. Sim, sei muito, um bom muito mesmo, a respeito do vosso projeto desde já...

            Randall afastou a cadeira da mesa.

            -Muito bem. Pois se já sabe do que se trata, então não há nenhuma necessidade de eu estar aqui ouvindo-o.

            -Um momento, Sr. Randall. Não façamos jogos complicados. Para lhe ser franco e por admissão espontânea, digo que, por enquanto, não estou informado de tudo. Mas estarei, saberei tudo muito antes do senhor preparar-se para apresentar oficialmente a história ao mundo. Quando souber o conteúdo da vossa Bíblia, nessa altura estarei plenamente ao par daquilo que pretendo. Posso garantir-lhe que no prazo de duas semanas saberei todos os pormenores, todos os fatos. Todavia, o caso é que faço parte de um negócio que é altamente competitivo. Tenho de ser o primeiro a ter a história completa exclusivamente. E terei. Entretanto, a sua cooperação pode poupar-me um montão de esforços, fazendo com que obtenha exclusividade alguns dias mais cedo. Compreenda bem o que pretendo, apenas quero a história. Logo que a tenha, mostrar-me-ei favorável à vossa Ressurreição Dois... isto é, se o senhor cooperar.

            -E se eu não cooperar?

            - Bem.... digamos que ficarei ressentido e que aquilo que escreverei ao mundo refletirá esse ressentimento - o tom da sua voz adquirira um modo maldoso. E quererá por acaso que as coisas se passem assim? Claro que não. Devo dizer-lhe, Sr. Randall, que estudei atentamente o ambiente que o tem cercado, o seu modo de vida, particular e profissional; especialmente, sua clientela com quem a sua firma de publicidade trabalha em anos mais recentes. Afigura-se-me que o senhor sempre se portou de maneira estritamente influenciada pelo negócio e sem qualquer mistura de sentimentos a respeito de pessoas ou organizações que representa. Parece-me que o senhor procedeu sempre sem inibições, sem problemas especiais, sobretudo, isento de moralidades ridículas. Se as pessoas pagam o senhor encarrega-se dos serviços. Um símbolo perfeito de poder e domínio, uma maneira admirável de levar a água ao seu moinho.

            - Fez uma pausa no discurso, para logo prosseguir. - Sr. Randall, eu... os meus associados e eu... preparamo-nos para pagar.

            Randall teve desejos de lhe dar um murro, de fazer desaparecer violentamente o sorriso afetado daquela cara macilenta, porém, conteve-se porque havia uma coisa que pretendia saber.

            -Preparou-se para me pagar. - repetiu Randall. - Pagar-me para quê? O que é que pretende?

            -Assim está melhor, muito melhor. Sabia que seria sensato. O que é que pretendo? Pretendo ver antecipadamente as provas, as páginas desse... Novo Testamento ultra-secreto. O senhor não terá obstáculos para as obter. Ninguém no KrasnapoIsky sofrerá por causa disso. O senhor continuará com a sua campanha, anunciando ao mundo a obra no momento oportuno. Pretendo apenas vencer aos meus competidores, nada mais. Estou pronto, e tenho plenos poderes, para falar de negócio consigo. Qual é a resposta, Sr. Randall.

            Randall levantou-se.

            -A minha resposta é... Mate-se, Sr. Plummer. Voltou-se e encaminhou-se com rapidez para a porta, mas não tão lentamente que não lhe chegasse aos ouvidos a voz estridente de Plummer:

            -Não me matarei, meu amigo, pelo menos, não antes de revelar ao mundo o projeto Ressurreição Dois... e estou certo de que conseguirei fazê-lo, absolutamente certo, tão certo como estou de que você e o vosso ridículo projeto é que estarão mortos... liqüidados dentro de quinze dias!

 

            Depois de arranjar para Darlene, não obstante as objeções dela, uma volta turística de carro por Amsterdã, durante o dia, e para a noite, uma romântica viagem pelos canais da cidade, Randall telefonara a George L. Wheeler dizendo que estava a caminho do KrasnopoIsky. Contara-lhe também o inesperado encontro com Plummer o que desencadeara uma avalanche de perguntas ansiosas por parte do editor. Depois de desligar, Randall descera e preparara-se para a sua primeira entrada no misterioso e protegido baluarte onde se elaborava a Ressurreição Dois.

            Naquele momento, atento, encostado a uma janela do lugar traseiro do Mercedes, quando desembocavam numa vasta praça, ouviu o corpulento motorista, um holandês de meia idade que se chamava Theo, dizer-lhe.

            -A Dam. A nossa praça principal e mais central. É a ela que afluem as principais ruas de Amsterdã, tal como os raios de uma roda encaixam-se num ponto central.

            Entre todos os pontos da cidade era aquele que Randall melhor se lembrava. Tinha uma exata memória do local devido à viagem anterior, memória que refrescara quando Darlene, quinze minutos antes lera a referência no roteiro oferecido pela K.L.M. No centro da praça estavam duas ilhas apinhadas de pessoas. Uma era o Monumento comemorativo da Libertação, o memorial dos holandeses aos seus compatriotas mortos na Segunda Guerra Mundial. Quando visitara o monumento, vários anos antes, os degraus abarrotavam-se de estudantes de todas as nacionalidades e de aspectos extravagantes, rapazes e moças que de dia se sentavam ali com ares de drogados e que à noite eram freqüentemente apanhados copulando no local, imerso em escuridão. Nessa manhã haviam tantos turistas como sempre enchendo os degraus, mas aqueles pareciam mais vivos, conversando animados uns com os outros ou entretidos lendo ao sol. Um pouco mais longe encontrava-se a segunda ilha da Dam, um retângulo liso de cimento como um jardim sem relva, com um realejo, um teatro de fantoches, um quiosque de venda de gelados, locais sempre cercados de crianças. Sentados nos bancos de madeira, dando de comer aos pombos ou descansando, viam-se numerosos velhotes.

            - À esquerda, o Koninklijk Paleis - disse Theo gutural, sem tirar a sua atenção do volante.

            Randall, obediente, inspecionou o maciço palácio real, que ocupava todo um lado da praça.

            - O nosso santuário, tal como a Abadia de Westminster para os ingleses - prosseguiu Theo. - Edificaram-na sobre terrenos pantanosos, por isso, assenta-se sobre treze mil estacas de madeira. A rainha não vive nele, vive fora da cidade, só utiliza o palácio para recepções oficiais e ocasiões de estado.

            - Terá uma sala do trono? - inquiriu Randall.

            - Sala do Trono? Troonkamer? Ik versta het niet. - Compreendeu então a pergunta. - Já, já, ik weet wat u zeqt. Natuurlijk, wij hebben het.

            - Theo, por favor, fale...

            - Perdoe, perdoe - atalhou rapidamente o motorista. - Sala do Trono... sim, claro que sim, temos uma... uma gigantesca sala de cerimônias, muito elegante.

            Randall tirou um livro de notas do bolso, com uma capa amarela, e rabiscou algumas palavras. Acabava de ter a sua primeira idéia de publicidade desde que chegara à Holanda. Tentaria discutir o caso com os patrões. Começava outra vez sentindo-se bem.

            - Em frente, a Bíjenkorf - anunciou Theo.

            Randall reconheceu o maior armazém de modas e outros artigos de Amsterdã, de Bijenkorf ou Colméia, um compacto edifício de seis andares sempre apinhado de clientes. Nesse mesmo momento via-se uma verdadeira torrente de gente que entrava e saía pelas portas metálicas rotativas.

            - Ali, logo ao lado do Bijenkorf, é para onde o senhor vai -disse Theo. O Kras.

            -O quê?

            - O Grande Hotel KrasnapoIsky, onde fica o quartel-general. Ninguém é capaz de pronunciar tal nome com facilidade, de modo que para nós é o Kras, encurtando. Foi um polaco, um alfaiate, A. W. KrasnapoIsky, que resolveu deixar a sua loja de alfaiate e, em 1865, abriu ali, na Warmaesstraat um café com vinho e coscorões à «la Mathilde», feitos pela sua cunhada. Depois de mandar fazer um salão de bilhares e depois um jardim de inverno, começou a comprar todas as casas em volta e foi acrescentando andares sobre andares até ser um hotel com uma centena de quartos. Hoje tem trezentos e vinte e cinco. O Kras. Olhe, ali está o Sr. Wheeler esperando-o.

            Na verdade, George L. Wheeler esperava debaixo de uma espécie de pátio envidraçado que se projetava sobre o passeio. Logo que Randall desceu do Mercedes, Wheeler precipitou-se para lhe apertar a mão.

            -É bom tê-lo aqui são e salvo. Peço desculpa por ser importunado por esse traste do Plummer. Não consigo entender como é que ele soube que você estava em Amsterdã.

            -Acho melhor sabermos como isso se tornou possível -disse Randall com ar lúgubre.

            - Sim, também me parece que é melhor investigarmos. Vamos hoje mesmo tratar disso. Mas eu bem o adverti que os nossos inimigos são astuciosos, não se poupam a gastos nem a esforços para nos destruir. Mas, seja como for, e nunca se esqueça disso, preparamos para todos os choques, prontos para os vencermos em toda a linha.-Fez um gesto por cima do ombro, para trás de si, com o polegar espetado e o resto da mão fechada. -Aqui está ele. O Kras. A nossa fortaleza durante mais de um mês, pelo menos, talvez dois.

            -Tem a aparência de um vulgar hotel de luxo.

            - Preferimos as coisas assim - afirmou Wheeler. - Alugamos uma pequena parte do andar térreo para reuniões de todo o pessoal, e os nossos empregados podem tomar as bebidas que quiserem e comerem aqui aquilo que lhes apetecer a preços reduzidos. Podem freqüentar o Bar Americano, o Pátio das Palmeiras e o Salão Branco para jantar. No entanto, a Ressurreição Dois está na verdade barricada lá em cima, no primeiro e segundo andares. Alugamos todas as dependências desses andares por completo, principalmente para assegurarmos o funcionamento do nosso sigilo. Para o trabalho de publicidade, Steve, destinamos para você e seu pessoal duas salas de conferências no primeiro andar. Para seu escritório privativo tem o Zaal F, com uma sala pegada destinada a secretaria. Você tem mais duas dependências-na verdade quartos de hóspedes do hotel, os quartos 204 e 205. Não os convertemos em escritórios. Destinam-se a locais onde poderá receber pessoas ou entrevistá-las em privativo. Além disso servem também para momentos de maior intimidade quando quiser estar sozinho ou até mesmo para fazer uma soneca. No entanto, duvido que, durante este mês, consiga arranjar tempo para uma soneca durante o serviço.

            - Também eu duvido - concordou Randall. - Bem, por onde começamos?

            -Por entrarmos -respondeu Wheeler, que agarrou no braço de Randall, mas sem mexer um pé do local onde estavam. -Mais uma coisa. Temos várias entradas na Warmoesstraat. Você pode usar qualquer uma. Pode, por exemplo, utilizar a porta principal do hotel que fica nas nossas costas. Se entrar por ela, haverá sempre a possibilidade, ao atravessar o saguão, que qualquer pessoa como Plummer salte de repente na Sala de Estar Princesa Beatrix, da Princesa Margriet Zalen ou do Bar Americano, atrasando-o ou abordando-o antes de conseguir entrar no elevador. Claro está, logo que ponha o pé fora do elevador será controlado pelos nossos guardas de segurança. Para ser franco, Steve, eu prefiro que alguém com cartão vermelho utilize outra entrada.

            - Cartão vermelho... que quer dizer com isso?

            -Daqui a pouco verá.

            Agarrou firmemente no braço de Randall e impeliu-o pela rua onde ficava o grande armazém de um lado e o hotel do outro. Chegaram junto de uma placa onde se lia: INGANG KLEINE ZALEN. A porta giratória era emoldurada por duas colunas de mármore verde-escuro.

            - Por aqui - disse Wheeler.

            Penetraram num estreito saguão ladeado à esquerda por uma sala de pequenas dimensões e à direita por uma sala mais ampla, ambas com as portas escancaradas. Um corpulento guarda, de cinto de cartucheira e revólver, com um ligeiro uniforme de cáqui, bloqueava o limiar da sala maior.

            - Em frente - disse Wheeler - é o corredor que conduz diretamente ao elevador. Muito bem, agora é melhor apresentar-lhe o inspetor Heldering. - Distraído, Wheeler saudou o guarda e disse-lhe: - Heldering está à nossa espera.

            O guarda deu um passo para o lado, e Wheeler empurrou Randall para dentro da repartição de segurança. Na sala encontravam-se seis pessoas. Duas mulheres jovens soberbas, desenvolvidas, atarefadas com os arquivos. Dois homens muito novos, à paisana, examinando um mapa debruçados sobre a mesa. Um homem já de certa idade, em mangas de camisa, que manobrava um pequeno painel com mesa telefônica e alavancas, encontrava-se sentado dentro de um semicírculo de equipamento eletrônico que incluía microfones, fileiras de botões e um complexo de televisão, cujas quatro telas pareciam detectar a atividade nas salas e corredores dos dois andares imediatamente superiores.

            Próximo, sentado numa mesa de pau-santo com guarnições metálicas, estava um homem robusto com o rosto austero de um burguês contemporâneo de Rembrandt, um homem que devia andar na casa dos cinqüenta anos, agarrado a um telefone. Em cima da mesa, numa placa metálica, figurava o nome que o identificava como inspetor J. Heldering.

            Logo que acabou a conversa telefônica, Heldering levantou-se do seu lugar e apertou a mão a Randall enquanto Wheeler fazia as apresentações.

            Quando os três homens finalmente se sentaram, o editor disse para Randall:

            - Penso que quererá combinar algumas entrevistas com o inspetor Heldering, Steve, logo que se instale. É um homem com quem contará, e a sua atuação aqui e na cidade é simplesmente fantástica. Depois de anunciarmos o nosso Novo Testamento Internacional, o público terá certamente curiosidade de saber como conseguimos manter as coisas ocultas durante tanto tempo.

            -Sim, com certeza que o público sentirá forte curiosidade - disse Randall -, isto é, se na verdade continuarmos a manter as coisas em segredo. - Sorriu para Heldering. - Peço-lhe que não se ofenda inspetor, mas...

            - Mas, o senhor sente-se preocupado e pensa que esse Plummer se infiltre, passe por nossas defesas - disse Heldering seco. - Não tenha receio.

            Randall ficou surpreso.

            - O Sr. Wheeler contou-lhe meu encontro com Plummer?

            - Nem uma palavra - respondeu Heldering. - Para ser mais exato eu nem sabia que o Sr. Wheeler foi informado do seu encontro com Plummer no bar do Hotel Amistel. De fato tinha um relatório quase completo para lhe entregar. Seja como for, o senhor portou-se admiravelmente. Segundo informaram-me disse-lhe que se matasse... e ele respondeu que antes disso assistiria primeiro à agonia e morte desse projeto.

            - Touché - disse Randall com um sorriso embaraçado. Mas como é que soube?

            O inspetor passou a mão pelo cabelo.

            -Não interessa como. Interessa que tentamos sempre saber o que a nossa gente faz. É possível que nem sempre tenhamos êxito... afinal de contas o Reverendo de Vroome soube alguma coisa a respeito do nosso trabalho... mas não há dúvida que tentamos, Sr. Randall, tentamos sempre.

            -Vejo agora que o senhor dará uma rica história - garantiu Randall.

            -E você, Steve, ainda não sabe da missa a metade - interpôs Wheeler.-O inspetor Heldering foi escolhido para fazer parte da Organização Internacional da Polícia Criminal, vulgo Interpol, quando a poderosa máquina foi reativada em Paris depois da guerra, em 1946. Ainda continuava no serviço da Interpol, onde até recebeu promoção para a posição de adjunto do secretário-geral da organização; quando conseguimos fazê-lo sair do seu esplêndido escritório em Saint-Cloud para que chefiasse a Ressurreição Dois.

            -Não foi uma decisão difícil de tomar - asseverou o inspetor Heldering. - Na Interpol eu realizava serviço para o homem, o que é importante. Mas com a Ressurreição Dois, o que é ainda mais importante, estou à serviço de Deus, protegendo a obra de Deus.

            Randall disse pra você mesmo que era estranho o serviço de Deus realizar-se com uma revólver no cinto, mas em voz alta limitou-se apontando:

            -Gostaria de saber mais coisas a respeito da Interpol. Na verdade sei tão pouco.

            -Na realidade há muito pouco para saber - informou Heldering. - Trata-se de uma organização policial com a participação de vinte países que se prestam assistência mútua na perseguição à criminosos internacionais. Eu estava incorporado na principal repartição da Interpol num dos subúrbios de Paris, todavia, existem sucursais espalhadas por mais de cem países. A sucursal nos Estados Unidos está em íntima ligação com o vosso Departamento de Tesouro, ao passo que na Inglaterra se encontra adstrito à Scotland Yard, etc....

            «Em Saint-Cloud temos um milhão de cadastros de criminosos em nossos arquivos. Cada cadastro engloba cerca de duzentas características essenciais de qualquer criminoso que procuremos; características como nacionalidade, raça, compleição, modos, vícios, tatuagens, deformidades, hábitos, etc. Em menor escala, introduzi o mesmo sistema de identificação na Ressurreição Dois. Os mesmos cadastros contêm tudo o que devemos saber a respeito de todas as pessoas empregadas aqui. Temos também cadastros a respeito dos elementos da imprensa de maior destaque, dos agitadores religiosos, extremistas, competidores, que podem, eventualmente, alimentar desejos e considerarem oportunidades para sabotarem os nossos esforços.

            -Deveras impressionante -concordou Randall.

            Heldering fez um gesto de agradecimento.

            - De fato, eu tinha que saber tudo o que fosse possível a seu respeito, Sr. Randall, antes de entregar-lhe o cartão de passe para ocupar seu cargo. O mais importante de tudo era conhecer as suas fraquezas - até que ponto bebe, os seus hábitos de tomar drogas, os tipos de mulher com quem coabitaria - bem como as vulnerabilidades - se seria permeável à chantagem no caso de saber que algo de mal poderia acontecer a sua filha Judy, ou se alguém revelasse informações pessoais a respeito de sua irmã Clare, ou se alguém aliciasse miss Darlene Nicholson com revelações de intimidades sexuais.

            Randall pensou que le grand frère – O BIG BROTHER (“1984” de George Orwell) - estava atento a tudo como um cão de guarda, em voz alta disse:

            -Vejo que nada é privado, nada é sagrado.

            -Apenas a Ressurreição Dois - respondeu o impassível Heldering.

            -Muito bem. E então obtive um A maiúsculo? - perguntou Randall sem o mais ligeiro vestígio de aborrecer-se.

            -Ainda não - respondeu Heldering com gravidade. Abriu uma gaveta da secretária e tirou um pequeno cartão. - Conseguiu ganhar um B, um cartão vermelho, Grau B, todavia, é ainda de alta prioridade, um grau extremamente elevado. Como pode ver...

            -Eu explico -interrompeu Wheeler - Com base no sistema da Interpol, o inspetor determinou cinco classificações de segurança para toda a gente que trabalha na Ressurreição Dois. O cartão vermelho, Grau A, significa acesso a todos os locais e só foi passado a mim, aos outros quatro editores e ao Sr. Groat, o curador. O cartão vermelho, Grau B, assegura acesso a todos os locais com exceção de uma área restrita. Cartões de outras cores são para os empregados com menos privilégios de acesso. De modo que, como pode verificar, o inspetor considera-o da melhor maneira possível, Steve. O seu cartão confere-lhe prioridade imediata aos principais dirigentes da Ressurreição Dois.

            Randall olhou para Heldering e perguntou:

            -E qual é essa área restrita que o Sr. Wheeler mencionou?

            -O cofre de segurança em aço que se encontra neste hotel. Do qual o Sr. Groat é o curador -respondeu o inspetor Heldering.

            -E o que é que se encontra no cofre?

            -O papiro original do Evangelho Segundo Jacob, escrito no ano 62 D.C. e as peças originais do Pergaminho Petrônio, escrito em 30 D.C., bem como, as nossas cinco traduções desses documentos. São objetos sem preço, que valem mais do que todas as jóias e ouro da terra. - O inspetor Heldering levantou-se da sua cadeira deu a volta à secretária e entregou a Randall o seu cartão de identificação.

            -Sr. Randall, aqui está o seu passe para a Ressurreição Dois. Autorizando-o entrar e sair livremente e começar o seu trabalho.

 

            Duas horas depois, quando Steve Randall, após visitar as instalações, regressou ao seu escritório privativo do primeiro andar, a Zaal F, instalou-se na sua cadeira de couro giratória enormemente estimulado e instruído a respeito das primeiras pessoas que conhecera na Ressurreição Dois.

            Depois de Wheeler lhe mostrar o escritório - uma escrivaninha de mogno em forma de L, máquina de escrever elétrica sueca, vários cadeirões dispostos pelo aposento, um grande arquivo à prova de fogo e com dispositivo de segurança, com filas de luzes fluorescentes indiretas instaladas no teto - Naomi Dunn aparecera como por encanto para o orientar nas primeiras visitas.

            Naomi fora designada para o apresentar aos eruditos, especialistas e peritos instalados no primeiro andar, homens que passaram aqueles anos preparando o Novo Testamento Internacional. Naquele momento, voltando das visitas feitas, Randall aguardava a chegada de George L. Wheeler. Dentro de vinte minutos o editor voltaria a fim de o escoltar à Zaal G, a sala de jantar privativa perto do saguão, onde era convidado para um almoço presidido pelo Dr. Deichhardt para conhecer o sindicato dos editores e os principais conselheiros, peritos em teologia, de cada um dos homens da junta editorial. Depois do almoço, Naomi voltaria para o conduzir ao segundo andar onde seria então apresentado aos membros do seu pessoal de relações públicas e onde levaria a efeito sua primeira reunião de promoção como preparativo para as ocupadas semanas que teriam imediatamente de enfrentar.

            Entretanto, seu pensamento concentrara-se nos eruditos que visitou nas últimas duas horas. Sabia que precisava do auxílio daqueles especialistas para montar a sua multifacetada campanha de publicidade do Novo Testamento Internacional. Sabia também, como seria difícil separar e lembrar aquelas caras estranhas, aquelas vozes, aqueles seres, seus especializados trabalhos e o montante infinito de intrigante sabedoria que acumulavam. Um dos bolsos do seu casaco desportivo continha um bloco de notas, com capa amarela, páginas cheias de garatujas e anotações só dele conhecidas que lançou às pressas sempre que saía de uma sala, onde conhecera um dos ocupantes, para se dirigir a outro cubículo com o seu eremita.

            Para fixar cada um dos especialistas como casos destacados e segundo a sua opinião, decidiu que faria uma espécie de ficha individual de cada um deles, conforme as impressões recebidas das personalidades em causa. Aquele início de um arquivo condensado do pessoal da Ressurreição Dois seria o seu ponto de referência oculto e manuseável e o orientador da sua memória.

            Randall fez deslizar os rodízios da cadeira até junto da máquina de escrever, meteu uma folha de papel no rolo, procurou entre as notas tomadas e desatou a martelar:

            13 de junho

            PERITOS RESIDENTES DA RESSURREIÇÃO DOIS

            RANS BOGARDUS - Tem cabelo loiro, comprido, olhos afundados e de longas pestanas, feições lisas, quase imberbe, voz efeminada. Bastante magro. Trabalhou como bibliotecário para a Netherlands Bíjbelgenootschap, o que traduzindo significa Sociedade Bíblica Holandesa. Ingressou na Ressurreição Dois desde o princípio como bibliotecário da sala de consultas, que é o Schrijfzaal, ou sala da correspondência, ou costumava ser. Sala atualmente recheada de livros, desde o chão ao teto todos eles cheios de anotações e marcas, referentes para consultas. Todos os manuscritos bíblicos importantes ou códices de edições fac-símiles, Bíblias impressas ou edições originais, disponíveis em todas as línguas mortas e vivas. Não gosto de Bogardus. Parece escorregadio como uma enguia. Mostra-se humilde e acomodado, mas, intimamente julga-se superior. Naomi diz que o seu cérebro trabalha como um computador. Pode encontrar com relativa facilidade e rapidez tudo o que se pretenda. As suas informações podem-nos ser comunicadas com enorme precisão. De modo que necessito dele e ligo-me a ele para funções de publicidade.

            REVERENDO VERNON ZACHERY-O grande pregador da Califórnia que encheu estádios em Nova Orleans, Liverpool, Estocolmo e Melbourne. Fundamentalista com voz retumbante e feições teatrais. Olhos hipnóticos. Fala com a autoridade de um neto de Deus. Amigo do Presidente dos E. U. A. - e de George L Wheeler. Sentou-me direto num dos sofás da Sala dos Consultores e, como se eu fosse algum índio do Amazonas ou um canibal, desatou a converter-me. Seja como for, é considerado como um valioso caixeiro-viajante para o Novo Testamento Internacional, e eu começo pensando em como será melhor começar a programá-lo.

            HARVERY UNDERWOOD - O homem das sondagens à opinião pública da América, cuja organização, Underwood Associates, tem sucursais por toda a Grã-Bretanha e Europa. Calmo, do tipo meditativo, homem positivo. Realiza uma sondagem privada sobre religião para a Ressurreição Dois e relacionado à atitude do público, hoje em dia, relativamente a esse problema. Foi também conservado como conselheiro, e contratado para estar à mão em Amsterdã uma semana por mês, até à publicação. Senti afinidades com ele, e tivemos uma conversa amigável num canto da Sala dos Consultores. Underwood fornecerá resultados das sondagens que utilizarei como linhas mestras para arrancar com os princípios de publicidade. Disse-me que as suas últimas sondagens mostraram que onde há dez anos havia 50 por cento de pessoas que freqüentavam a igreja, presentemente a freqüência baixou para 40 por cento da população. A perda de freqüência foi maior entre os católicos nos Estados Unidos, manifestando-se pela primeira vez. Sondagens mostram que luteranos, batistas do sul e mórmons registraram as maiores freqüências e audiências. Entre os protestantes, o maior declínio verificou-se entre os episcopais. Há um decênio havia 40 por cento de americanos sentindo que a religião perdia a sua influência. Hoje, são 80 por cento os que sentem desse modo. Underwood disse que sondagens em complexos universitários mostraram que 60 por cento dos estudantes sentem que a religião e a igreja não se revestem de qualquer importância para as suas vidas, ao passo que os outros 40 por cento dizem que ambas as coisas lhes são de enorme significado. Underzvood e eu concordamos que a publicação da nova Bíblia pode inverter as atuais tendências, salvando possivelmente a religião organizada

            ALBERT KREMER - Encontrei-o na porta ao lado, na repartição de revisão de provas. Estão lá quatro pessoas e Kremmer é o Revisor-Chefe. Segundo Naomi, o mais importante trabalho editorial na preparação de uma nova Bíblia, logo a seguir ao trabalho de tradução, é o trabalho da leitura e revisão de provas. Kremer baixinho, corcunda, delicado, doce, tímido, com olhos de hipertiroideo a brilharem por detrás de óculos de grossas lentes, é natural da Suíça, mais precisamente de Berna, descendente de uma longa linha de revisores de provas tipográficas de Bíblias e outras obras religiosas. Contou-me que a exatidão foi mania da família Kramer desde que um imigrante antepassado dos Kremer, ao rever uma nova versão da Bíblia do Rei Jacob em Londres, durante o reinado de Carlos I, por descuido não viu que os tipógrafos da Imprensa Nacional omitiram a palavra não do Sétimo Mandamento, de modo que no Êxodo 20:14 se lia «Cometerás adultério.» Quando essa edição apareceu em 1631, tornou-se conhecida como a Bíblia Imoral ou Bíblia Adúltera, sendo um objeto muito procurado por todos os alegres libertinos da época. O Arcebispo multou os impressores em 300 libras, revertendo o dinheiro da multa para que Oxford e Cambridge comprassem material de tipografia. Destruíram-se todo os exemplares da Bíblia Adúltera menos cinco. Todavia, a verdadeira responsabilidade e falta pertencera ao antepassado de Kremer, que a partir de então viveu uma vida obscura de desgraça, esmagado pela fatalidade até ao fim dos seus dias. Desde tal malogro imperdoável, os descendentes de Kremer fizeram da exatidão um verdadeiro culto. Kremer prometeu-me: «O senhor não encontrará um único erro no Novo Testamento Internacional.»

            PROFESSOR A. ISAACS -Encontrei-o na seção dividida em compartimentos da Terrazaal, também chamada Sala dos Convidados de Honra, onde os eruditos e teólogos visitantes realizam o seu trabalho. Disponível e à vista só se encontrava o Professor Isaacs, gozando uma licença da Universidade Hebraica de Israel. Trata-se de um perito em hebraico antigo, e altamente considerado pelos esforços na tradução dos Documentos do Mar Morto. Entre outras coisas, notou a falta de conhecimento dos refinados matizes hebraicos podiam transformar um ato normal num milagre. Na sua voz melíflua e cantante, o Professor Isaacs disse-me: «Vou-lhe dar um exemplo. A palavra hebraica al era sempre traduzida como sobre, de modo que as Escrituras dizem-nos que Jesus caminhou sobre as águas. Todavia, a palavra al tem também outro significado, que é perto. Daí que nas traduções lia-se também corretamente que Jesus caminhava perto da água, em resumo, que dava um passeio à borda do mar. Mas talvez os primitivos propagandistas cristãos procurassem deliberadamente um fazedor de milagres em vez de um simples e trivial andarilho.»

            Steve Randall parou de escrever à máquina, passou em revista as quatro páginas que datilografara e conferiu-as com o que rabiscara no bloco-notas amarelo. Os seus rabiscos recordaram-lhe quanto a reunião com tais peritos o inspirou. Na sua maioria mostravam-se homens de orientação capacitados de suas tarefas. Ao contrário de si, cada um daqueles homens parecia dedicar verdadeiro amor ao trabalho ao qual se devotaram e encontraram nele um significado para a sua existência.

            Prestes a considerar mais uma vez as suas notas, Randall foi interrompido por um ligeiro bater na porta. Em seguida abriu-se e George L. Wheeler meteu a cabeça pela abertura.

            - Steve, sinto-me encantado por vê-lo trabalhando. Muito bem, mas devo lembrar-lhe que é hora do almoço. Agora prepare-se para conhecer os grandes patrões.

 

            Os grandes patrões.

            Em volta da enorme mesa oval havia dez pessoas, e as falas eram uma mistura de inglês e francês. Ao passo que o seu francês falado era rústico, rudimentar, deficiente, cheio de erros, compreendia tudo, ou quase tudo o que se dizia naquele idioma. E aquilo que Randall ouvia era verdadeiramente fascinante.

            O almoço servido por dois garçons - principalmente constituído por sopa de tartaruga e filés de robalo com espargos - não impedira a conversação. Houvera conversas constantes, muita eletricidade verbal, antes e durante a refeição.

            Naquele momento serviriam a compota e o café, e Randall procurou distinguir cada um dos convivas dos seus vizinhos, identificando-os individualmente e gravando todas as características na caixa craniana. Sentado entre George Wheeler e o Dr. Emil Deichhardt, Randall observou mais uma vez atentamente os grandes patrões. Tal como Wheeler tinha a seu lado o Reverendo Vernon Zachery, cada editor à mesa, exceto um, tinha junto de si o seu conselheiro em teologia.

            Ao lado do Dr. Deichhardt encontrava-se o Dr. Gerhard Trautmann, um professor de teologia de Die Rheinische Friedrich Wilhelms-Universität em Bonn. Randall suspeitava, e divertia-se pela suspeita, que o Dr. Trautmann tinha o seu cabelo quase como um monge, de modo a parecer-se com Martin Lutero como é normalmente visto nas gravuras dos livros de texto que correm mundo. Na cadeira imediatamente a seguir de Trautmann estava Sir Trevor Young, editor inglês, um aristocrata cujos cinqüenta anos eram cheios de juventude, muito amigo de fazer comentários pomposos e relatos mirabolantes, cujo conselheiro teológico, o Dr. Jeffries, ainda se encontrava em Londres ou em Oxford.

            Os olhos de Randall continuaram pesquisando em volta da mesa. Havia Monsieur Charles Fontaine, o editor francês, um homem elegante, bem parecido, matreiro, dado ao gracejo e viciado no epigrama. Wheeler cochichou-me que Fontaine era também um homem muito rico, com uma esplêndida residência na Avenue Foch em Paris e com acesso político aos mais altos círculos do Palácio do Eliseu, Ao lado de Fontaine encontrava-se o seu conselheiro teológico, o professor Philippe Sobrier, da Faculdade de Teologia do CoIlége de France. Sobrier parecia apagado, retraído, feito de pau, mas escutando-o, Randall suspeitava que aquele rato de campo, possuía verdadeira presa de animal carnívoro quase vermelho no seu papel de filólogo.

            Depois lá estava no seu lugar o Signore Luigi Gayda, o editor italiano de Milão que se parecia flagrantemente com o Papa João XXIII. Também tinha uma papada com quatro queijos, e uns modos esfuziantes e grandiloqüentes, referindo-se com orgulho aos inúmeros periódicos que possuía em Itália, ao seu avião privativo, a jato, no qual visitava o seu império financeiro, e que mostrava sincera crença nos métodos americanos de negociar. Fora o Signore Gayda quem primeiramente ouvira falar da descoberta do Professor Monti em Ostia Antica e que passara a informação ao Dr. Deichardt em Munique, que, por seu turno, organizara o sindicato editorial da Bíblia. Finalmente havia o conselheiro teológico de Gayda, Monsenhor Carlo Riccardi, um clérigo de elevalo intelecto cujas funções finas cinzeladoras, nariz aquilino e batina severa lhe conferiam um ar formidável. Associado ao Pontifício Instituto Bíblico de Roma, estava presente na Ressurreição Dois para servir como representante oficioso do Vaticano.

            Com o olhar ainda dirigido para os dois italianos, ocorreu subitamente uma pergunta a Randall. Voltando-se para o editor italiano, inquiriu:

            - Signore Gayda, julgo que seja um editor católico. Pergunto pois como é que o senhor se encontra apoiando uma Bíblia protestante e como, de fato, espera vendê-la num país essencialmente católico como a Itália?

            O editor italiano empertigou-se surpreso e os múltiplos queijos estremeceram como geléia.

            -Mas é perfeitamente natural, Sr. Randall. Na Itália vivem muitas e respeitadas pessoas protestantes. Na verdade, as bíblias protestantes foram das primeiras publicadas na Itália. Como é que me arranjo? Mas porque não? Os editores católicos precisam de um imprimatur - ou seja, de uma sanção oficial da Igreja - para as suas bíblias, mas evidentemente que o Vaticano não interferirá com uma Bíblia protestante.

            - Caro Gaya, permite-me que eu explique a situação ao Sr. Randall?-A solicitação fizera por mera cortesia pela voz de Monsenhor Riccardi, que logo a seguir se voltou diretamente para Randall. - O que direi talvez esclareça a minha presença neste projeto. - Pareceu formulando conscientemente o que diria, para logo a seguir reatar o seu discurso: - Sr. Randall, saberá que existe pouquíssima diferença entre as versões da Bíblia católica e protestante, com exceção do Velho Testamento onde nós admitimos como sagrados e canônicos a maioria dos livros apócrifos, ao contrário dos nossos amigos protestantes. Por isso, os nossos textos bíblicos são amplamente os mesmos, sem diferentes sons harmônicos teológicos. De fato, existe na França uma Bíblia comum católico-protestante, como os meus amigos Monsieur Fontaine e Professor Sobrier podem corroborar, e dois dos nossos teólogos católicos colaboraram nessa edição com os protestantes franceses. Está admirado?

            -Na realidade estou -admitiu Randall.

            -Não se admire, até porque haverá mais cooperação do mesmo teor no futuro. Claro está que essa particular Bíblia francesa não terá o nosso imprimatur tal como sucederá à primeira edição deste Novo Testamento Internacional. Mas nós continuamos interessados nela, profundamente envolvidos. Porque...bem... creio bem que em última análise prepararemos a nossa própria edição do Novo Testamento Internacional, numa versão que será novamente traduzida para estar conforme as nossas doutrinas. Existe um ponto crítico em que diferimos dos nossos amigos protestantes.

            -E qual é esse ponto?

            - No parentesco entre Jacob o justo e Jesus, claro está -respondeu Monsenhor Riccardi. - Jacob refere-se a si mesmo como irmão de Jesus, tal como Mateus e Marcos se referiram a irmãos e a irmãos em Deus de Jesus. Os nossos amigos protestantes sugeriram que interpretemos irmão como significado de irmão de sangue, insinuando - não declarando em absoluto, mas implicando - que Jesus, Jacob e seus irmãos foram concebidos em resultado de uma união física entre Maria e José. Para os católicos tal parentesco físico é completamente impossível. Não pode haver ambigüidade. Como sabe, cremos na virgindade perpétua de Maria. Desde o tempo de Orígenes e dos primeiros padres da Igreja, os católicos mantêm que Jacob foi um meio irmão ou irmão consangüíneo de Jesus, filho de um anterior casamento de José, um meio irmão ou talvez um primo. Em resumo, nós mantemos que a Virgem Maria e José não tiveram relações conjugais. No entanto, chegar a uma interpretação aceitável não apresenta dificuldade, uma vez que a palavra irmão em aramaico e hebraico não tem significado preciso ou único, e pode significar meio irmão, cunhado, primo, parente afastado, tanto como irmão verdadeiro, filho do mesmo pai e da mesma mãe. Seja como for, publicaremos mais tarde uma versão católica do Novo Testamento Internacional. Sua Santidade está longe de não compreender ou ignorar as implicações profundas do Evangelho de Jacob e do seu valor intrínseco para a comunidade católica internacional.

            Satisfeito, Randall remeteu-se de novo ao seu papel de ouvinte atento, enquanto os outros prosseguiam com as suas conversas. Gradualmente, Randall começou a discernir com crescente interesse que a conversação estava dividida, separada. Durante um prolongado período, os teólogos -Reverendo Vernon Zachery, Professor Sobrier, Dr. Trautmann e Monsenhor Riccardi-embrenharam-se numa discussão sobre a necessidade de preservação da ortodoxia da Igreja.

            O Dr. Zachery sentia que um renascimento da religião, inspirado pela nova Bíblia, criaria uma oportunidade, que a Igreja organizada devia aproveitar para reforçar a sua posição de autoridade, insistindo:

            -Até agora, permitimo-nos ser moles, cedermos, entrarmos em compromisso com os males do radicalismo e da dissolução. A partir da publicação nada mais. Parou. Não mais moleza ou compromisso. O nosso rebanho precisa de disciplina, da autoridade da tradição. Devemos de novo impor a doutrina e o dogma. Oferecemos um Novo Testamento alargado e devemos ser categóricos a respeito da sua infalibilidade. Nos nossos sermões devemos reinterpretar a Ressurreição baseados em S. Jacob, tornando claro que se trata de um ato de Deus, uma encarnação, e devemos reivindicar a necessidade de amor fraternal, perdão para os pecadores e sublinhar a promessa de uma vida futura.

            O professor Sobrier concordou, mas de uma maneira menos bombástica.

            -Se me permitem a citação de um compatriota meu, o filósofo francês Jean-Marie Guyau: «Uma religião sem mito, sem dogma, sem culto, sem ritos não passa de uma coisa desvirtuada... Religião é uma sociologia concebida como explicação física, metafisica e moral de todas as coisas que existem.»

            Dr. Trautmann lançou na discussão as suas opiniões, ainda mais conservadoras.

            - Concordo que o cerimonial e ritual são de extrema importância. Mas creio que a igreja devia conceder alta prioridade à música e canto litúrgicos; que as citações da Bíblia durante os serviços religiosos devem ser feitas em Latim e não em qualquer língua moderna. Mantenho que isso, tal como a repetição dos mantras hindu e budistas, pode oferecer uma experiência mística, encorajar a meditação, levando os nossos fiéis, mais pelo sentimento do que pela razão, a uma comunhão com o Supremo Ser. Resumindo, embora o Evangelho Segundo Jacob ofereça um novo retrato de Nosso Senhor que os racionalistas podem perfeitamente aceitar, não devemos contudo permitir que Ele seja reduzido a uma figura histórica secular transitória... devemos sim lembrar aos nossos paroquianos que por intermédio d'Ele e da Sua Igreja, podem encontrar as respostas para o nosso Ser, para a nossa passagem por esta vida terrena; mistérios fundamentais.

            Randall pôde perceber que os editores, que escutavam atentamente, se mostravam relativamente pouco interessados. Monsieur Fontaine, o editor francês, interrompeu a troca de impressões entre os teólogos.

            -Meus senhores, se acaso os compreendi corretamente, esperam restaurar inteiramente os bastiões da velha Igreja. Mas se utilizarem o impulso que o Novo Testamento Internacional dará à religião para voltarem totalmente ao antigo tradicionalismo, creio que praticarão um grave erro. As facções ativistas da Igreja não ficarão satisfeitas e muito em breve se perderá o terreno que se ganhar. Claro que sim, restaurar a ortodoxia com a Verdade revelada, se assim o preferirem, mas apresentando-a com suavidade, pertinente.

            A discussão desenvolveu-se, de um para o outro lado, durante uns momentos, mas pouco depois os editores abandonaram a conversa, ficaram silenciosos, e os teólogos de novo se envolveram num discussão estritamente técnica. Desta vez sobre o valor do simbolismo dos recém-descobertos sermões de Cristo, tal como registrara o irmão, Jacob o justo.

            Durante alguns instantes, notou Randall, quase todos os editores ouviram os argumentos em silêncio, mas em breve essa atenção começou a desviar, afigurando-se crescentemente inquietos. Pareciam considerar os seus teólogos como rústicos crédulos procurando avaliar quantos anjos seriam capazes de caber na cabeça de um alfinete. Pouco a pouco, Deichhardt, Wheeler, Fontaine, Sir Trevor e Gayda desataram a monopolizar a conversa. As suas trocas de palavras referiam-se essencialmente ao aspecto de negócio, à faceta comercial, englobando os problemas de publicação e promoção dos seus grandes investimentos.

            Sir Trevor fez-se eco de uma certa preocupação:

            -Esta descoberta terá um efeito profundo nas igrejas, mas o que eu receio é que possa desencadear lutas entre algumas delas. A maioria das igrejas aceitará sem sombra de dúvida o nosso Novo Testamento, mas com outras pode ser diferente. Poderá levar toda uma geração para que a nossa Bíblia revista atinja o seu efeito total, pleno, e claro que o caso me preocupa, tanto mais que qualquer controvérsia poderá significar a bancarrota para todos nós. Precisamos de solidariedade. Devemos dominar por completo todas as facções da Igreja, antes que possa surgir qualquer oposição e causar complicações.

            O Dr. Deichhardt censurou, de forma amigável, Sir Trevor por ter receios a respeito de um êxito comercial na Grã-Bretanha.

            -O senhor, Trevor, tal como George Wheeler na América, não terão que superar os obstáculos que nos deparam na Alemanha. Os senhores podem dirigir-se diretamente ao público com os vossos anúncios e artigos postos circulando nas vossas centenas de semanários e mensários religiosos. Mas na Alemanha, nós deparamos com dois obstáculos profundamente           enraizados. Primeiro, a Bíblia Luterana, que é utilizada na maioria dos nossos onze estados. Segundo, a Bíblia Luterana é somente publicada pelos membros da nossa União de Sociedades Bíblicas. Para fazer com que esses editores aceitem o nosso Novo Testamento Internacional, devo pedir-lhes que desistam dos seus lucros. Para evitarmos complicações teremos que arranjar, possivelmente, qualquer forma de sociedade lucrativa para partilharmos com a União.

            -Emil, o senhor preocupa-se sem razão - respondeu Sir Trevor - Garanto-lhe que não terá a mais leve complicação na Alemanha. Mal o vosso público saiba do novo evangelho, da nova descoberta, clamará pelo Novo Testamento Internacional. Considerará que a Bíblia Luterana está ultrapassada, é incompleta e por isso obsoleta. A vossa União das Sociedades Bíblicas terá de distribuir e patrocinar a sua edição. Não se esqueça do que lhe digo. Logo que soem os tambores da publicidade - e para isso aqui temos o Sr. Randall - a exigência do público pelo nosso produto ultrapassará todo e qualquer obstáculo. São as igrejas dissidentes que me causam tanta ansiedade, não o aspecto do êxito de natureza comercial só por si.

            A seguir, Fontaine e Wheeler voltaram conversando do custo, preço, distribuição e publicidade.

            Acabando o seu café, Randall encostou-se ao espaldar da cadeira, fascinado. Naquele momento estava certo sobre o que detectara: uma rixa definida entre os teólogos e os editores. Os teólogos mostravam-se enfastiados com a conversa «dólar-libra-marco-franco-lira» dos editores, ao passo que estes se mostravam impacientes com a conversa fiada espiritual dos teólogos. Randall sentia uma percepção de um velho conflito que novamente desenvolvia. Tentou resumir perfeitamente a delineada diferença: pensou que os teólogos sentiam uma paixão genuína pelo Novo Testamento Internacional, com as palavras escritas pelo irmão de Jesus e pelo centurião que gravara os resultados do julgamento de Cristo. Percebia neles uma fé verdadeira, uma verdadeira crença, na recém-revelada Ressurreição do Cristo verdadeiro, real. Os editores, por outro lado, enquanto pagavam a quem lhes fizesse o serviço de explicação e promoção dessa Ressurreição; enquanto se empenhavam em patrocinar todas as potencialidades dos documentos para darem aos homens em todo o mundo uma nova fé e uma nova esperança; pareciam, principalmente, interessados nos lucros da operação. Eram tubarões da alta finança que se envolveram no comércio de produção da Bíblia; como poderiam envolverem-se na fabricação de carros, carnes enlatadas, ou no negócio do petróleo, que usariam a mesma linguagem.             Cisma insolúvel, inquietante, mas compreensível.

            O Dr. Deichhardt recomeçou falando das suas apreensões a respeito de um malogro comercial.

            - E não se esqueçam que na Alemanha se levanta um outro obstáculo acentuado, um obstáculo que também poderá ser um empecilho para os senhores. Somos o centro da reforma da igreja desde Lutero até Strauss e Bultmann. Agora somos um viveiro para o que prolifera nos canteiros da heresia, para o que se projeta para além da desmistificação dos mitos que enchem as histórias do evangelho, para o que vai mais além do mero ceticismo a respeito da existência de Nosso Senhor e da Sua mensagem. Somos um viveiro excepcionalmente virulento para o desenvolver do movimento revolucionário e radical de de Vroome. Esse demente não só é inimigo das nossas igrejas oficiais, como é também o inimigo declarado do nosso sagrado e colaborador esforço para resgatarmos, salvarmos a humanidade através do nosso Novo Testamento Internacional. Pensem bem, meus senhores, no que tenho que derrotar na Alemanha, nos obstáculos que tenho que ultrapassar.

            -De maneira nenhuma obstáculos mais formidáveis do que aqueles com os quais enfrentaremos em nossos países - insistiu Wheeler. - Os reformistas convertidos por de Vroome encontram-se espalhados por todo o lado. Porém, creio firmemente, que uma vez a nossa Bíblia lançada no mercado, entregue ao público, a verdade que contém e o seu poderoso impacto serão suficientes para pôr de rastos o movimento de de Vroome: e os seus conversos, varrendo esses heréticos da superfície da terra. A surpresa da nossa revelação fará com que se desorientem, esmagados, incapazes de reagirem e sem possibilidades de poderem desencadear represálias.

            Randall meteu a sua colherada.

            - Uma vez que o elemento surpresa deve ser a chave do nosso êxito, estarão na verdade os senhores convencidos de que fazem tudo o que é humanamente possível para ocultar do conhecimento do Reverendo Maertin de Vroome o conteúdo do Novo Testamento Internacional?

            Foi como se alguém tocasse numa corda sensível capaz de desencadear uma tempestade: imediatamente toda aquela gente desatou falando ao mesmo tempo, descrevendo medidas de proteção já realizadas e outras a levar a efeito para manter longe do conhecimento de de Vroome e dos seus fanáticos o segredo do Novo Testamento Internacional. Movimentam-se como um rebanho de lobos pela cidade e em especial pelas imediações da Dam.

            Pela vez primeira desde o início do almoço se mostravam unidos, como um só homem, na defesa da causa comum e da fé nela, aqueles editores visando o aspecto comercial e lucrativo do projeto e os conselheiros espirituais que nele depositavam todas as suas esperanças e crenças.

            Randall pensou que foi uma reação interessante: bastava levantar a sugestão de um medo comum entre os residentes da Torre de Babel que logo eles aprendiam falando uma linguagem comum.

 

            Agora sim era ainda melhor, muito melhor. Randall encontrava-se agora entre gente da sua espécie e começava sentindo-se adaptado, descontraído, confortável.

            Naomi levara-o à Sala 204 do Hotel KrasnapoIsky - um aposento ultramoderno, de brancas paredes, em estilo cubista, de mobílias pintadas a esmalte lacado, branco, abajur cromado, brilhantes, suspenso por cima de um sofá vermelho um receptáculo fluido e movente de arte cinética - e Naomi apresentá-lo-ia pela primeira vez aos seus assistentes em matéria de relações públicas.

            Randall, de copo na mão, conversava descontraído com Paddy O'Neal, um natural de Dublin com toda a aparência de um motorista de veículos pesados, um homem que estivera ao serviço de poderosas organizações publicitárias em Londres e Nova York. O'Neal manifestava uma irreverência alegremente gananciosa em relação à Bíblia.

            - Escreverei a respeito dela - prometeu a Randall – todavia, não espere que acredite nela, a não ser que haja uma gratificação apetitosa. Sou um homem admirador do velho Oscar Wilde. Recorda-se do que Oscar disse acerca da Crucificação de Jesus e do Cristianismo? «Uma coisa não se torna necessariamente verídica só porque um homem morre por ela.»

            Em seguida, Randall foi levado até junto de um homem refestelado numa cadeira. De perfil assemelhava-se a um ponto de interrogação, porém, quando se voltou, transpareceu-lhe na cara que era também uma resposta para todas as perguntas.

            -Elwin Alexander é o nosso cultivador de curiosidades - explicou Naomi.

            Randall, intrigado, perguntou:

            -Que pretende dizer com curiosidades?

            Naomi fez um sinal a Alexander.

            -Mostre-lhe o que é, Elwin.

            Alexander voltou-se para Randall, olhando-o com uma expressão cômica.

            -Quer realmente saber? Ok, mas depois não se queixe do cruel castigo que invocou sobre a sua própria cabeça. Aí vai um exemplo daquilo que costumo dar aos esfomeados editores e jornalistas para lhes servir de alimento nas suas colunas e jornais. - Inalou o ar profundamente e desatou falando como um vendedor de banha de cobra: - Sabia que o mais curto versículo do Novo Testamento em língua inglesa comporta apenas duas palavras: «Jesus chorou»? Que os apóstolos chamavam a Jesus Rabi, que significa Mestre? Que o Novo Testamento atribui a Cristo exatamente quarenta e sete milagres? Que o Velho Testamento não faz menção a uma cidade chamada Nazaré e que o Novo Testamento não menciona Cristo ter nascido num estábulo, adorado numa manjedoura ou ter morrido no Monte Calvário? Que Jesus, nos evangelhos, referiu a si mesmo como Filho do Homem oito vezes? E agora, Sr. Randall, já sabe o que é um cultivador de curiosidades?

            - Na verdade não sabia, mas agora já fiquei sabendo, Sr. Alexander - respondeu Randall com uma gargalhada.

            Seguiram-se depois mais apresentações, mais conversas animadas. Era aquela a sua gente, as pessoas que Randall mais apreciava e das quais obteria o máximo de informações destinadas ao seu trabalho. O indivíduo com aspecto tuberculoso, magro como um caniço e de voz aflautada era Lester Cunningham. Para fugir ao recrutamento obrigatório no exército dos Estados Unidos refugiara-se num seminário de teologia, Batista, no sul do país e o que fora um recurso acabara por se transformar em autêntica devoção. Lester trabalhara anteriormente como conselheiro publicitário para o Christian Bookseller, Christian Herald e Christianity Today. A alentada burguesa de Roterdã, tipo da autêntica donzela holandesa pesadona, com uma franjinha e sem pinturas era Helen Boer. Segundo a informação de Naomi, dos 325 000 000 de protestantes praticantes e não praticantes espalhados pelo mundo, nenhum saberia mais de religião do que Helen.

            O protestantismo era o seu comandante e os seus soldados eram Lutero, Melanchthon, Calvino, Wesley, Swendenborg, Schweitzer, Niebuhr. A jovem atraente, com o cabelo curto, olhos pretos como amoras, busto flexível como um junco, vestindo um elegante terno saia-casaco, era Jessica Taylor, filha de pais americanos, mas que garçonete em Portugal. A especialidade dela era a arqueologia bíblica, e antes de ingressar na Ressurreição Dois trabalhara nas escavações de Tell Dan, a norte do Mar da Galiléia, perto da fronteira com o Líbano.

            Finalmente Randall encontrou-se cara a cara com Oscar Eldund, um melancólico sueco de Estocolmo admitido no projeto para a realização da parte fotográfica. Se EdIund era a pessoa naquela sala com menos apresentação física, em contrapartida era também a de credenciais mais impressionantes e positivas. Tinha o cabelo cor de cenoura, olhos pronunciadamente estrábicos, cara marcada pela acne e uma Rolleiflex suspensa do pescoço por uma correia que parecia fazer parte integrante da sua anatomia. Durante muito tempo aluno de Steichen, era agora considerado como um dos melhores fotógrafos do mundo, um verdadeiro artista.

            Depois das apresentações preliminares, Randall disse a EdIund:

            -Através das suas fotografias dos papiros e pergaminhos originais, teremos que obter um máximo de cobertura da imprensa. A única coisa que me preocupa é a qualidade das reproduções. Que tal vai a coisa?

            - Excelentemente levando-se em consideração o material sobre que trabalhar - Oscar encolheu os ombros. - Muitos papiros e pergaminhos estão demasiado gastos, sumidos, quebradiços, após permanecerem sepultados por mais de mil e novecentos anos. Antes que alguém pudesse trabalhar com eles, os especialistas foram obrigados a umedecer os fragmentos até um ponto crítico, amolecê-los o suficiente para se manterem espalmados por baixo das placas de vidro, porém, não tão úmidos que corressem o perigo de liquefação. Claro está que o aramaico escrito por Jacob, ou por um seu copista requereram a utilização de fotografia a infravermelhos, o mesmo acontecendo com o pergaminho do centurião, de modo a poder puxar as palavras quase indistintas. Mas penso que gostará daquilo que vir.

            - Quantos jogos de fotografias fez?

            - Apenas três - respondeu EdIund. - Ordens severas. As três séries foram entregues ao Dr. Jeffries a fim de utilizarem-nas as equipes de tradutores, ainda que por vezes se autorizou que estes pudessem examinar fragmentos dos originais que estão guardados no cofre-forte. Logo que as traduções se completaram, os três jogos de fotografias voltaram para o KrasnapoIsky. Dois jogos destruíram e o terceiro, o único que existe, tem-no o senhor, Randall.

            - Em meu poder?

            - Sim, metido no arquivo à prova de fogo e de roubo que está no seu gabinete. Foram ontem metidas numa das pastas, juntamente com muitas outras fotografias publicitárias. Uma carga valiosa, Sr. Randall. Maneje-a com cuidado.

            -Sem dúvida - retrucou Randall  

            -É claro - acrescentou EdIund-que continuo a ter os meus negativos... acabo mesmo de os levar do cofre-forte para uma câmara-escura que construímos, de modo que estou pronto a produzir os jogos de fotografias para a imprensa em qualquer dia antes da Ressurreição Dois ser anunciada ao mundo. Para o caso de ter preocupações a respeito do caso, posso dizer-lhe que os negativos estão em local seguro. Essa minha câmara escura que aliás foi construída sob fiscalização do inspetor Heldering está excelentemente protegida dos intrusos, posso garantir-lhe. Estou preparado para começar logo que me dê sinal.

            - Excelente - disse Randall. - Essas fotografias produzirão um impacto tremendo... Bom, penso que será melhor começarmos a nossa primeira reunião geral para vermos em que pé estão as coisas.

            O pé em que as coisas estavam, como Randall se inteirou quase imediatamente, era na verdade desanimador.

            Anteriormente, o Dr. Deichhardt ordenou aos membros da seção para desenvolverem algumas idéias publicitárias, para tomarem notas sobre aqueles materiais fragmentados com que estavam familiarizados, mas sem lhes permitir que escrevessem histórias completas. A preocupação de Deichhardt era que quaisquer histórias antecipadas poderiam conter elementos que pusessem em perigo o segredo, o que significava que até então pouco se tivesse feito no capítulo publicitário. Significava também que no curto tempo de que dispunham haveria um fantástico monte de trabalho a realizar.

            Prosseguindo a reunião, Paddy O'Neal lançou no debate uma sugestão. Pensava que uma das coisas que se devia fazer imediatamente seria escrever entrevistas com as principais personalidades responsáveis pelo Novo Testamento Internacional. Sugeriu que se iniciasse esse trabalho com uma série de artigos dramáticos acerca do Professor Augusto Monti, de Roma, que trouxe à luz do dia o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrônio nas escavações arqueológicas de Ostia Antica. A seguir, poder-se-iam escrever vários artigos sobre o Professor Henri Aubert, o mago parisiense do radiocarbono, que autenticara a idade dos papiros e do pergaminho. Depois, podiam escrever-se uns artigos sobre o Dr. Bernard Jeffries, que supervisionara as três comissões de tradução dos documentos descobertos do aramaico e do grego para quatro línguas modernas (com o acréscimo da americanização da tradução inglesa), Finalmente, seriam oportunos alguns apontamentos sobre Herr Karl Hennig, que imprimia em Mainz várias edições da Bíblia, sem esquecer que Mainz era o exato lugar onde Johann Gutenberg inventara o primeiro tipo móvel de imprensa e conseguira o primeiro livro da história impresso mecanicamente.

            Concedendo que tais personalidades deviam ter prioridade, Randall pediu cópias dos arquivos de pesquisas do pessoal, de modo a examinar e estudar os materiais recolhidos nos próximos dias, dizendo:

            -Amanhã falarei a Deichhardt e a Wheeler para que nos concedam licença para começarmos a trabalhar com o material publicitário. Vou prometer-lhes que teremos o máximo de cuidados. Sei muito bem o risco que tais coisas envolvem, até por experiência pessoal, uma vez que esta manhã fui praticamente experimentado.

            E Randall contou resumidamente ao pessoal o que aconteceu com Cedric Plummer, que o tentara subornar. Imediatamente, Cunningham e Helen de Boer contaram que também foram incomodados. Logo a seguir à entrevista de Plummer com de Vroome, cada um deles recebera telefonemas anônimos ameaçadores, mas desligaram os aparelhos antes de conseguirem saber realmente o que pretendiam deles. E claro, contaram tudo ao gabinete de segurança do inspetor Heldering.

            - Ok - disse Randall. - Estou certo de que haverá mais coisas desse gênero. Mas temos que pensar que chegaremos a salvo até à publicação, mantendo intacto o nosso segredo. Passemos ao tópico seguinte da agenda: Como é que vamos apresentar ao público a história do Novo Testamento Internacional?

            Toda a gente naquela sala se mostrava de acordo que deveria ser convocada uma grande conferência de imprensa para os representantes dos jornais, da televisão e da rádio de todo o mundo.

            - Por conseguinte, estamos todos de acordo quanto à conferência de imprensa - rematou Randall. - No entanto, uma vez que isto é absolutamente, na minha opinião, a maior notícia da história dos tempos modernos e provavelmente de todos os tempos, penso que a conferência de imprensa deve ser a mais gigantesca e impressionante. Já tenho duas idéias principais. Gostaria que a declaração de abertura fosse feita no Real Palácio Holandês da Dam, e que fosse feita não apenas à imprensa como também transmitida direto para os telespectadores de todo o mundo via satélite. Que tal?

            O pessoal manifestou-se ruidosa e entusiasticamente unânime. Helen de Boer ofereceu-se espontaneamente para investigar discretamente a possibilidade de utilização do Palácio Real na declaração ao mundo. Lester Cunningham ofereceu-se para falar em confidencial, com os diretores do Consórcio Internacional de Comunicações por Satélite com a União Européia de Transmissões de modo a sondar as possibilidades de utilizarem satélites para retransmitirem as primeiras notícias sobre a Palavra aos setenta países membros da união.

            -Finalmente - disse Randall-, guardei para último lugar o debate para a nossa história número um, para a mais sensacional das histórias, a que mais nos interessa por ela derivar tudo o mais - refiro-me, evidentemente, à história sobre o Jesus Cristo completo, o verdadeiro Cristo, tal como revelado à humanidade no nosso Novo Testamento Internacional. Para a preparação e popularização da nossa história sobre o Cristo Ressuscitado terão inevitavelmente que ir os nossos melhores e maiores esforços conjuntos. Tenho que lhes confessar que apenas sei uns quantos pormenores a respeito do conteúdo da Nova Bíblia. Sei, por exemplo, que com base nessa Bíblia saberemos pela primeira vez qual o verdadeiro aspecto físico de Cristo. Por meio da palavra escrita de Jacob, o justo, irmão de Jesus, saberemos de tudo o que preenche aqueles anos da Sua vida que sempre ignoramos. Seremos também informados como Cristo sobreviveu à sua Crucificação e prosseguiu com o seu ministério, que se alargou mesmo até Roma, e como Ele morreu quando tinha cinqüenta e cinco anos de idade. Dado que só recentemente ingressei neste projeto, ainda não tive tempo para saber mais do que o que expus. Mas espero que um de vós tenha conseguido deitar uma olhada ao original do Evangelho Segundo Jacob e ao Pergaminho Petrônio, sabendo exatamente o que nesses documentos se contém pelas traduções feitas e podendo pois dizer como...

            Randall foi interrompido por um clamor de protestos de toda a gente que se encontrava na sala. Alguém se levantou para acrescentar em nome de todos:

            -Não, nada sabemos. Até agora não nos deixaram ler nenhum dos documentos.

            Mais uma vez a segurança amordaçava a dinâmica do trabalho de publicidade, privando-os de noções exatas sobre o material. Randall sentiu-se furioso.

            - Para o diabo com esta porcaria toda. Se é verdade que eles querem publicidade a respeito do novo Cristo, então têm que nos deixar conhecê-Lo. Bem, parece-me que o movimento seguinte está traçado de antemão. Vou ver se obtenho as páginas, em prova, dos documentos, para avaliar exatamente o material com o qual trabalharemos e para orientarmos os nossos esforços. Também lhes posso prometer que hei de conseguir ver as cópias dos documentos o mais cedo possível. Vamos adiar o nosso debate. Amanhã, quando eu tiver notícias para vocês, reataremos a discussão geral do assunto.

 

            De volta ao seu gabinete, Randall não repousou mais do que alguns minutos. Aturdido por ter conhecido tantas pessoas durante as passadas seis horas, sabia que ainda lhe restava uma importante tarefa pela frente.

            Mas, primeiramente, não convinha esquecer seu trabalho interno. Dirigiu-se ao enorme fichário à prova de fogo, abriu-o e procedeu o destravar da barra de segurança interior, sem o que os arquivos não podiam ser expostos. Abrindo a gaveta, localizou imediatamente, a pasta com as palavras

 

     FOTOGRAFIAS DOS PAPIROS

      E DO PERGAMINHO

       EXEMPLARES ÚNICOS

       CONSULTA PRIVADA

 

            Levou a pasta para a escrivaninha, agarrou sua mala de couro, já com um aspecto volumoso, e tirou lá de dentro outras pastas de arquivo com as informações a respeito de Monti, Aubert, Jeffries e Hennig que acabava de obter do pessoal da sua seção.

Olhando todo aquele material, pensou que só lhe faltava ali uma informação - a mais importante de todas - que teria que procurar obter o mais rapidamente possível.

            Sentou-se na sua cadeira giratória e estava prestes a telefonar, quando ouviu uma pancada na porta. Antes mesmo de dizer entre, já Naomi Durin estava no gabinete. Fechando a porta nas costas, a ex-freira ficou olhando para ele impassível, como se o estivesse examinando.

            - Tem o aspecto de quem acabou de sair da máquina de lavar roupa - disse Naomi, continuando a fitá-lo.

            - Diga antes uma máquina de lavagem de cérebro - corrigiu Randall -, um autêntico agitação que me arrastou girando ao encontro de cerca de 100 pessoas. Mas você saberá bem, pois, foi quem me arrastou para este caos. - Suspirou - mas que dia!

            -E é apenas o princípio - disse ela com indiferença, sem se deixar comover, ao mesmo tempo que arrastava uma cadeira para junto da escrivaninha, sentando-se na beirada para indicar que sua visita era breve e circunscrevia- se, estritamente, a assuntos de trabalho. - Reparei que toma sempre notas para onde quer que vá.

            -Nunca me conheci sem tomar notas - disse ele defensivo. -Em especial quando se trata de lidar, simultaneamente, com tantos nomes. Claro que tenho que ter um registro sobre as várias personalidades e sobre os assuntos que tratam.

            -Pois bem, considero ineficiente que uma pessoa de tanta projeção, realize um trabalho desse teor. Devia ter uma secretária para tomar conta dessas coisas. A falta foi minha. Deveria ver isso desde o primeiro momento em que fez a sua entrada na Ressurreição Dois. Temos que resolver o caso de uma secretária, antes do trabalho prosseguir. -Fez uma pausa. -Tem quaisquer preferências? Quero dizer, pensa utilizar os serviços de Darlene Nicholson? Pergunto isto porque se assim for o inspetor Heldering terá que...

            - Pare com isso, Naomi. Você conhece perfeitamente o problema.

            Ela encolheu os ombros.

            -Bom, tinha que ter certeza. Agora que já está formalmente instalado, aumentou a sua importância relativamente ao projeto. Queremos que se sinta plenamente satisfeito em todos os sentidos e que nada lhe falte. Precisa de uma secretária privada, entendida em publicações religiosas, uma secretária na qual possa confiar totalmente.

            Randall debruçou-se na escrivaninha e olhou firmemente para ela:

            -E que tal se fosse você, Naomi. Confio absolutamente. Somos relativamente íntimos.

            Naomi corou.

            -Receio que... que não seja possível. A minha devoção pertence por inteiro ao Sr. Wheeler.

            -Ao Sr. Wheeler? Compreendo. - Pensava que compreendia. Talvez o editor modelo americano pretendesse ter sempre uma ex-freira à mão para o que desse e viesse. - Ok, o que sugere então, Naomi?

            - Penso que precisa de alguém que esteja já a par do projeto. Tenho três moças que há mais de um ano estão conosco. Cada uma delas é habilitada para o trabalho. Todas elas foram submetidas às competentes investigações e foi-lhes concedido o cartão verde, o que significa um grau relativamente elevado, dado que as outras secretárias só têm cartões pretos. Pode entrevistar as três que lhe proponho antes de ir embora.

            - Não, muito obrigado. Estou demasiado fatigado. Além disso tenho ainda uma coisa para fazer. Aceito quem me recomendar. Pode recomendar-me uma?

            Naomi levantou-se e disse num tom cheio de vivacidade:

            - Na verdade posso perfeitamente recomendar-lhe uma das moças. Aliás, caso aceite o meu conselho, trouxe-a comigo. Está na recepção. Chama-se Lori Cook e é americana. Julgo que isso torna as coisas mais fáceis para o serviço. Há dois anos que ela vive no estrangeiro. É uma secretária bem dotada, a estenografia não tem segredos para ela e as habilitações são mais do que recomendáveis. Há um ano e dois meses trabalha neste andar. É fanaticamente devotada ao projeto... e à religião.

            - Oh?!

            Naomi olhou-o com atenção.

            - Que pretende? Alguém que seja crente, não é verdade? Ajuda muito. Quando uma empregada nossa sente que está trabalhando para Deus, o relógio para ela deixa de dar horas. - Fez uma breve pausa. - Só mais uma coisa: a moça tem um defeito físico. É coxa. Nem sequer lhe perguntei nada sobre a deficiência porque o seu quociente de trabalho é excelente e pode fazer tudo o que as outras fazem. Bom, tal como já disse, Lori possui tudo o que uma boa secretária deve ter, mas desde já, devo avisá-lo que... -esboçou um sorriso - ... sexualmente nem vale pena.

            Randall estremeceu.

            - Pensa na verdade que o sexo me interessa acima de tudo?

            - Só queria que estivesse a par das coisas. Julgo que será melhor recebê-la durante um minuto antes de resolver definitivamente.

            - Fico com ela. E posso recebê-la durante um minuto. Naomi dirigiu-se para a porta e abriu-a, chamando:

            - Lori, o Sr. Randall quer vê-la.

            Naomi fez uma rápida apresentação e depois despediu-se de Randall.

            - Entre, Miss Lori - convidou Randall. - Faça favor de se sentar.

            Evidentemente que Naomi falara verdade. Lori Cook seria tudo menos um objeto sexual. Parecia-se com um passarinho saltitante, um pequeno pardal de telhado. Coxeou até junto da escrivaninha, sentou-se nervosamente, alisou com a mão o cabelo crespo e, sentada na pontinha da cadeira, deixou cair as mãos, de dedos entrelaçados.

            - Miss Dunn considerou-a muito eficiente - principiou Randall. - Segundo sei, está trabalhando noutra seção. Qual a razão porque quer abandonar o trabalho que fazia para ser minha secretária?

            -Porque me disseram que é aqui, a partir de agora, todas as coisas essenciais vão ter lugar. Toda a gente diz que o êxito do Novo Testamento Internacional depende agora do senhor e do seu pessoal publicitário.

            -Essa gente exagera. De qualquer maneira seria sempre um êxito. Mas, nós poderemos dar uma ajuda. É muito importante pra você o êxito desta nova Bíblia?

            - Significa tudo para mim. Desconheço o que os documentos contêm na íntegra, mas pelo que ouvi, trata-se de algo incrivelmente miraculoso. Tremo de impaciência para ler a obra.

            - Também eu - disse Randall constrangido. - Qual é a fé que professa, Lori?

            - Era católica. Recentemente, afastei-me da Igreja e sigo os serviços presbiterianos.

            - Porquê?

            - Não tenho certeza. Julgo que procuro alguma coisa.

            -Disseram-me que está no estrangeiro já alguns anos. Sinto-me interessado em saber porque deixou os Estados Unidos, a terra onde nasceu.

            Randall reparou que as mãos de Lori crispavam no vestido. A sua voz fina, que mal se ouvia, tremia.

            - Saí de Bridgeport, Connecticut, faz dois anos. Depois do liceu pus-me trabalhando e consegui guardar dinheiro para viajar. Quando fiz vinte e dois anos pensei que devia viajar... de modo que comecei esta peregrinação.

            - Peregrinação?

            - Sim, para conseguir... vai-se rir de mim... um milagre. Bem vê... a minha perna. Sou coxa de nascença. Os médicos nunca puderam fazer nada... Pensei então que talvez Deus me ajudasse. Andei em peregrinação por todos os santuários de que ouvi falar. Fui aos grandes lugares onde já se verificou curas milagrosas. Em primeiro lugar, claro, fui a Lourdes. Uma vez que Nossa Senhora apareceu a Bernadette, orei para que também me aparecesse. Sabia que se deslocam a Lourdes por ano dois milhões de peregrinos, ocorrendo cerca de cinco mil curas num só ano, e a igreja declarou miraculosas cinqüenta e oito curas... cegueira, cancro, paralisia...

            Randall teve vontade de perguntar-lhe o que acontecera em Lourdes, mas ela estava tão embrenhada naquilo que contava que não a quis interromper.

            -Depois de Lourdes - dizia Lori Cook - fui ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima em Portugal, onde em 1917 três pastorinhos viram Virgem Maria aparecer sobre uma nuvem, envolta num halo mais brilhante do que a própria luz do Sol. A seguir visitei o santuário de Lisieux, na França; a Catedral de Turim, na Itália, onde se guarda o Santo Sudário; fui a Monte Allegre, à Capela de Sancta Sanctorum para orar junto ao retrato de Nosso Senhor na pintura do qual não intervieram mãos humanas, e foi lá que tentei subir os vinte e oito degraus sagrados de joelhos, mas não me deixaram. Dirigi-me ainda à Bélgica, a Beauring onde cinco crianças, em 1932, tiveram visões sagradas. Finalmente, desloquei-me a Walsingham, Inglaterra, onde se anunciaram curas. E depois... parei.

            Randall sentiu um nó na garganta que o estrangulava de emoção.

            - Parou... vai fazer um ano, não foi?

            -Sim. Julgo que Deus não ouviu as minhas preces em nenhum desses lugares. Bem vê a minha perna... continuo coxa.

            Randall, angustiado, recordou-se de um momento em que, durante umas férias grandes do liceu, lera pela primeira vez o livro Servidão Humana, de W. Somerset Maugham. Philip Carey, o herói do livro, nascera aleijado de um pé. Aos catorze anos Philip fora afetado por uma crise religiosa, convencendo-se que Deus tudo podia fazer e que a fé podia mover montanhas. Pensara que se a sua fé fosse grande, se rezasse muito, o Senhor curá-lo-ia do seu defeito. Desse modo, Philip enchera-se de fé, começara a orar extenuante e marcara uma data para o milagre. Na noite anterior à data do milagre, rezara as suas orações para agradar o Criador, depois fora para a cama e dormira com toda confiança. Acordara de manhã cheio de alegria e gratidão. Seu primeiro gesto foi meter a mão por baixo do lençol para ver se o pé já estava curado, mas fazer tal movimento seria como que duvidar da bondade de Deus. Sabia que o pé já estava bom. Mas, por fim, decidindo-se, encostou de leve os dedos do pé direito no esquerdo. Depois passou a mão por todo o pé. Desceu as escadas mancando...

            Ao ler aquela passagem, Randall também se tornara um cínico.

            E Lori Cook? Escutou-a. Ela dizia:

            -Nunca censurei Deus. Há tanta gente que reza a Nosso Senhor... pensei que talvez durante as minhas orações Ele estivesse demasiado ocupado. Continuo a ter fé. Estava para regressar a casa, há cerca de um ano, quando ouvi falar num projeto religioso que precisava de secretária. Um certo instinto ditou-me que fosse à Londres para me candidatar. Fui admitida e enviada para Amsterdã. Desde então estou na Ressurreição Dois, e nunca lamentei a minha decisão. Tudo aqui está envolvido em mistério, mas é excitante.. Realizo meu trabalho esperando para saber que boa obra executamos.

            Randall sentia-se ainda bastante comovido com a fé daquela moça simples.

            -Lori, não ficará desapontada. Ok, está admitida.

            Tornou-se mais do que evidente a genuína alegria da moça.

            -Obrigada, Sr. Randall. Estou... pronta para começar imediatamente, se tiver algum trabalho para mim.

            -Penso que de momento não tenho nenhum trabalho para lhe dar. Além disso, está quase na hora de irmos embora.

            -Bem, se não tem nada de especial para mim, ficarei ainda um pouco para mudar as coisas da minha antiga escrivaninha para a nova.

            Lori caminhou mancando para a porta, abriu-a, quando de repente Randall se lembrou de que havia uma coisa importante para resolver, quando Naomi o interrompera.

            - Lori, só um momento. Tem um assunto em que poderá me ajudar. Preciso imediatamente obter um exemplar do Novo Testamento Internacional em inglês. Penso Albert Kremer tem algumas provas na Sala de Revisão. Quer chamá-lo pelo telefone pra mim?

            Lori apressou-se a realizar o primeiro serviço em seu novo cargo, dirigindo-se para o telefone da recepção.

            Randall recostou-se na cadeira durante alguns instantes, depois pegou o fone quando ouviu o sinal de Lori.

            -Sinto muito, Sr. Randall – mas, o Sr. Kremer já saiu. Posso lhe fazer uma sugestão? O bibliotecário, o Sr. Hans Bogardus, possui um registro de todos os exemplares. Habitualmente, fica até muito tarde no escritório. Posso ligar para ele?

            Segundos depois Randall estava em comunicação com o bibliotecário.

            - Sr. Bogardus, aqui fala Steve Randall. Gostaria de ler um exemplar do Novo Testamento Internacional uma das cópias existentes. Preciso urgentemente ler a obra para...

            No outro extremo da linha ouviu uma voz afeminada dizendo:

            -Eu também gostaria de ter em meu poder o diamante Kohinoor, Sr. Randall.

            Irritado, Randall disse:

            -Disseram-me que o senhor possui um registro de todas as cópias produzidas.

            -Ninguém que tenha uma cópia consentiria que o senhor olhasse. Eu sou bibliotecário do projeto e ainda não me consentiram vislumbrar a obra sequer numa prova.

            -Pois bem, meu caro amigo, posso dizer-lhe que já me deram licença para ler um exemplar. O Sr. Wheeler disse-me que logo que chegasse em Amsterdã estaria à minha disposição uma cópia.

            -O Sr. Wheeler já foi embora. Se esperar até amanhã...

            - Quero uma cópia esta noite! - gritou Randall exasperado. A voz de Bogardus tornou-se mais séria, mais solícita.

            - Esta noite? - repetiu. - Pois bem, nesse caso só o Dr. Deichhardt pode ajudar. Existe uma cópia em inglês no cofre-forte lá embaixo, mas só o Dr. Deichhardt autoriza que a reprodução saia de lá. Por acaso, sei que o Dr. Deichhardt ainda está no seu gabinete.

            - Obrigado - disse Randall, desligando abruptamente. Levantou-se da cadeira e saiu do escritório. Lori colocava coisas na escrivaninha. Ao passar junto dela, mas sem se deter, Randall pediu:

            - Telefone já para o gabinete do Dr. Deichhardt, diga-lhe que estou a caminho para lhe falar, que não demoro mais de um minuto e o que tenho a dizer é muito importante.

            Largou em grandes passadas pelo corredor, pronto para o combate.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 3.6

            Vinte minutos depois, Randall estava instalado no lugar traseiro do grande Mercedes-Benz. Theo, o motorista, guiava o carro pela Dam, em meio a escuridão dos primeiros momentos do início da noite.

            Randall ganhara o combate.

            Embora com grande relutância, o Dr. Deichhardt acabara por concordar. Se os editores pretendiam uma boa publicidade a respeito do Novo Testamento Internacional, então seria melhor consentirem, que o diretor da publicidade do projeto, lesse a transcrição. Todavia, surgiram condições explícitas apensas ao empréstimo da Bíblia. Randall só poderia manter a cópia consigo por uma única noite, durante aquela fase do projeto. Devia ler a obra bem fechado em seu quarto. Não poderia tomar notas. De manhã voltaria a entregar a reprodução ao Dr. Deichhardt. Não devia revelar pra ninguém, nem mesmo aos outros membros do corpo de publicidade, aquilo que lera. Confinaria o uso do conteúdo da obra apenas ao delinear das idéias publicitárias, mantendo essas idéias bem fechadas no fichário de segurança existente no seu escritório.

            Dentro de duas semanas chegaria Herr Hennig a Amsterdã, deslocando-se propositadamente, de Mainz, com os exemplares completos e acabados da Bíblia. Nessa altura, e só nessa altura, é que Randall e os elementos da sua seção receberiam os respectivos exemplares. A partir desse momento Randall estaria livre para debater as idéias que extraísse da leitura dessa noite, uma leitura secreta, e nessa altura, seu pessoal poderia também começar livremente preparando a campanha de promoção.

            Randall concordara imediatamente com todas as condições propostas, jurando observar todas as precauções possíveis sem falhar em nenhum ponto. Depois da grande batalha, mal pudera conter a sua impaciência até surgir, finalmente, o curador dos documentos contidos no cofre-forte, com as páginas de prova da edição americana.

            Groat, o curador, era um homem baixinho, um holandês compacto, que se parecia com uma daquelas figuras irreais existentes no museu de figuras de cera de Mme. Tussaud. Exibia uma peruca lisa, muito mal adaptada. Tinha um bigode fino que lhe dava a aparência de um barbeiro, uns modos de burocrata subalterno sempre curvado aos superiores hierárquicos e usava um revólver de tipo estranho (Randall perguntara e soubera tratar-se de uma F.N. 7,6 de fabricação belga) preso embaixo do casaco preto, desabotoado. Groat entregara a Bíblia - as páginas das provas metidas entre duas placas de cartão, amarradas por uma fita azul de tal forma que destacava uma grande cruz - formalmente, solenemente a Randall como se lhe entregasse uma mensagem do Criador.

            Nesse momento, com a pasta onde se encontrava o Novo Testamento Internacional, as fotografias sobre o que fora descoberto em Ostia Antica, os papéis que o pessoal lhe entregara, colocada a seu lado no assento estofado, Randall, após um dia tão agitado na Ressurreição Dois, permitia-se finalmente instalar-se com máxima comodidade e gozar com alegria e descontração aquele interlúdio.

            Pela janela podia ver que saiam da Dam, entrando numa via pública bastante larga, ladeada de árvores, chamada estrada Rokin. Em breve Rokin desembocou em Mountplein e logo a seguir percorriam Reguliersbreestraat. Pouco depois Theo diminuiu a velocidade do carro ao penetrarem numa praça barulhenta e cheia de trânsito. Era a Rembrandtsplein, uma das praças mais populares da cidade, que os holandeses costumam chamar a Broadway de Amsterdã, onde se erguia o imponente Hotel Schiller, o Hof Van Holland com o seu terraço, e onde Randall podia observar uma enorme fila de jovens em frente da bilheteira do Teatro Rembrandtsplein.

            Uma vez deixada para trás a populosa praça, em volta deles a cidade tomou um ar calmo, silencioso. Com exceção da passagem de uns carros, o movimento era pouco, e a rua onde se encontravam parecia extremamente agradável. Randall debruçou-se à janela procurando, na obscuridade reinante, distinguir a placa com o nome da rua - pretendia qualquer dia dar um passeio pelo local - e finalmente conseguiu vislumbrar que se chamava Utrechtstraat.

            Naquele momento sentiu um súbito desejo de caminhar, poder estender as pernas, apanhar ar fresco. Ainda não tinha vontade de comer. Mesmo sentindo-se ávido para ler o conteúdo do Novo Testamento, que transportava na pasta, a sua inclinação para dar um passeio era tão forte que bem podia esperar mais um pouco para tomar contato com o Evangelho Segundo Jacob. A idéia de ter saído de um recinto fechado, o KrasnapoIsky, para entrar noutra clausura representada pelo Mercedes, ainda com a pouco simpática perspectiva de se ir encerrar mais uma vez noutro convento, o Amstel Hotel, tornava-se-lhe opressiva. Decidiu se dar ao luxo de fazer um ligeiro passeio a pé para respirar o ar fresco e puro da Holanda.

            -Estamos ainda muito longe do hotel, Theo?

            - Wij zijn niet ver van het hotel. Não muito longe, relativamente perto. Talvez a seis ou sete quarteirões de distância.

            - Ok. Pare ali na esquina, Theo. No cruzamento com o canal.

            O motorista voltou-se, surpreso, largando por momentos o volante.

            -O Sr, Randall quer que eu pare?

            -Sim, quero andar a pé o resto do caminho até ao hotel.

            - Sr. Randall, as instruções que tenho são para não o perder de vista um só momento até que esteja são e salvo no Amstel.

            - Sei muito bem as ordens que lhe deram, Theo. E não quero que deixe de as seguir. Não é preciso que me perca de vista, pode perfeitamente seguir-me até chegarmos ao hotel. Que tal, Theo?

            O motorista mostrou uma expressão de quem não está bem certo das coisas.

            - Mas...

            Randall abanou a cabeça. Que raio se passava com aqueles autômatos sempre cumprindo à risca as ordens dadas, absolutamente programados, inflexíveis.

            -Vejamos, Theo, ambos cumprimos as regras estabelecidas. Eu também não quero fugir a elas. Mas, você não me perderá de vista. É simples, quero esticar as pernas e é a primeira vez que posso dar um passeio, desde que cheguei à cidade. Preciso fazer exercício. Por isso, faça o favor de me deixar na esquina, e seguir-me à distância.

            Theo, com um suspiro, parou o motor e saiu do carro, preparando-se para abrir a porta a Randall mas este já estava no passeio com a pasta na mão.

            - Theo, basta que me diga aonde estou e que me oriente no bom caminho.

            Theo apontou para a esquerda ao longo do canal.

            -Pode caminhar a direita ao lado do canal, o Prinsengracht, até ao fim. Chegará depois ao Rio Amstel. Continua a direita por mais três quarteirões até à Sarphatistraat, depois atravessa a ponte à esquerda, entra numa rua chamada Professor TuIppIein onde se encontra o Hotel Amstel.     Tocarei a buzina se o senhor se enganar.

            - Obrigado, Theo.

            Randall ficou ali no mesmo lugar do passeio até Theo sentar-se de novo ao volante do Mercedes, depois, fazendo um ligeiro sinal com a mão ao motorista, começou a andar. Sentindo-se pela primeira vez livre desde a chegada, respirou profundamente aquele ar fresco e saudável, encheu os pulmões e expirou depois; agarrando bem a pasta, atravessou a rua e começou a caminhar ao longo da margem do canal Prinsen.

            Um minuto ou dois depois, deu uma olhada para trás. Cumprindo o seu dever, a uns cinqüenta metros, Theo seguia devagar com o Mercedes.

            Ok. Instruções. Regulamentos. Ordens. Entretanto o passeio decorria maravilhosamente e sentia-se reviver.

            Achava-se bem naquele lugar, descansado, cheio de paz depois de toda agitação do dia. A tensão principiara abandonar-lhe os músculos e já nem sentia o saltitar das fibras nervosas nos antebraços e aquela pontada, sinal de fadiga, nas costas. Na escuridão da noite viu que, entre os espaços, estavam estacionados alguns dos carros anões que observara durante o dia, em locais onde existiam parquímetros de estacionamento. Do outro lado da rua, um tanto sombrias na pouca luz da iluminação pública, erguiam-se uma série de velhas casas, com curtos degraus que levavam ao patamar de entrada; casas cujas janelas, na grande maioria, não tinham cortinas, nem estavam iluminadas e que, por detrás não manifestavam sinais de vida. Os bons burgueses de Amsterdã iam cedo para a cama, pensou Randall.

            Do outro lado, um pouco abaixo do nível da rua estreita, viam-se as águas paradas do canal. Podia ver barcos presos a pilares, ancorados, e algumas daquelas embarcações, de aspecto atraente, serviam de residência aos seus donos. Num desses barcos-casa, iluminado, pôde ver num relance por uma das janelas um garotinho com camisa de dormir. As luzes das embarcações prolongavam-se em círculos pela ligeira ondulação, como partículas de luz que se perdem algures.

            À medida que caminhava lentamente até o fim do canal Prinsen, Randall pensava nos acontecimentos do dia. Lembrou-se de Darlene, esperando que ela tivesse gozado as suas viagens turísticas pela cidade. Em retrospectiva voltou à reunião com o seu pessoal, pensando em toda aquela gente jovem e ativa; pensou no almoço com os poderosos editores e teólogos conselheiros, com tantos conflitos ocultos em seus propósitos comuns, e pensou também em Lori Cook. Pensar naquela moça, não sabia bem porquê, levava-o a recordar-se da filha, Judy, e de quanto desejaria naquele momento tê-la junto de si, sem se esquecer das perturbações que lhe causaria por causa do divórcio. Contudo, os perfis das pessoas mais ligadas à sua vida - Judy, Bárbara, Towery, McLoughlin, seu pai, mãe, Clare, Tom Carey - pareciam-lhe todos vagos e distantes naquela calma e perfumada noite.

            Parou por um momento, vendo um gato vadio miando, que de repente passou junto aos seus pés, e mal reatara a marcha quando as luzes intensamente brilhantes de um carro lhe bateram diretamente no rosto, ofuscando-o. Instintivamente levou as mãos aos olhos para os proteger, podendo então perceber a forma escura do veículo que subia na rua, em direção contrária ao rio, aproximando-se do lugar onde estava com incrível velocidade.

            Paralisado durante alguns segundos, olhando atônito para aquela sombra que se avolumava ao seu encontro como se o quisesse esmagar. Então o motorista não o via? Não via o Mercedes com Theo ao volante logo atrás? O monstro estava quase a atingi-lo quando as suas pernas regressaram à vida, desviou-se mais para dentro do passeio, mas as luzes amarelas ao máximo continuavam-lhe dirigidas, seguindo-o inexoravelmente. Observou depois que o carro não tinha qualquer intenção de se afastar e que procurava o seu corpo a uma velocidade cada vez maior. Em pânico, chegou mais para o lado do canal a fim de fugir do atropelamento, mas nessa altura tropeçou, as mãos se estenderam para o proteger da queda e deixaram cair a preciosa pasta.

            Caiu redondamente no chão. Um pouco contundido, respirando pesadamente, ficou ali no chão esperando que o carro passasse. Mas em vez disso ouviu o chiar dos pneus no cimento da rua. Deu uma volta sobre si mesmo para ver o compacto sedan derrapando de tal forma que o Mercedes em que seguia Theo foi obrigado fazer uma paragem de emergência.

            Da posição em que se encontrava, Randall distinguiu alguém, um homem com um boné, o condutor, saindo do sedan e escancarar a porta do lado do volante do Mercedes. Logo a seguir a sua atenção desviou-se para outra figura, um segundo homem, um vulto masculino, que saía do lugar traseiro do sedan. Era um homem estranho, sem cabelo, sem rosto - coisa grotesca e assustadora - um homem que tinha uma meia enfiada pela cabeça, vulto que se encaminhava rapidamente não para ele, mas, para alguma coisa que se encontrava caída no passeio alguns passos atrás.

            Nesse momento o coração de Randall deixou de bater e ele sentiu autêntico gelo percorrendo pelas veias.

            O objeto caído era a sua pasta.

            Todos os nervos do corpo lhe transmitiram um impulso vital, ordenando-lhe que se levantasse. Com dificuldade conseguiu pôr-se de joelhos e amparou-se ao poste de um sinal de estacionamento para manter o equilíbrio.

            A figura exótica e repelente, com o seu bizarro crânio coberto pela difusa transparência da meia de senhora, abaixou, apanhado a pasta e regressando ao carro de onde saíra um segundo antes.

            Os olhos de Randall procuraram seu protetor atrás do volante do Mercedes. Mas Theo não estava lá. Não estava à vista. O outro atacante, o motorista com o seu boné, estava de novo sentado ao volante do sedan negro, desbloqueando a rua em frente do Mercedes e guiando o carro pela rua abaixo, pela rua onde não se via viva alma. E o seu cúmplice, o homem da meia de «nylon» com a pasta, estava quase chegando junto dele.

            - Larga isso! - berrou Randall. - Polícia! Polícia!

            Atirou-se de cabeça baixa para a frente. O outro quase levara a mão ao puxador da porta quando Randall encurtou a distância que os separava atirando-se-lhe contra as pernas, que procurou agarrar. Sentiu entre as mãos os músculos e sentiu o homem debater-se um momento no ar antes de cair desamparado.

            Freneticamente, Randall abandonou o adversário, e levantou-se para agarrar de novo a sua pasta. Quando as suas mãos tocaram o couro macio sentiu que o agarravam por trás e uns dedos de ferro apertaram-se-lhe na garganta. Randall procurou libertar-se daquelas garras desesperadamente, sentindo faltar-lhe a respiração. Era uma luta surda, Randall fazia todos os esforços, com braços e pernas para acertar no homem que estava atrás, mas, ao mesmo tempo, tomando consciência do soar de um ruído insólito.

            Tratava-se sem dúvida de um apito, o som intenso de um apito que se aproximava cada vez mais.

            Ouviu uma voz urgente que vinha de dentro do sedan.

            -De politie... de politie komt! Ga in de auto! Wij moeten vlug weggaan!

            Repentinamente viu-se livre. Sem o peso atrás de si, pela natureza do próprio desequilíbrio, caiu de novo no chão. As garras já não lhe apertavam a garganta. Conseguindo pôr-se de joelhos, agarrou na pasta, apertando-a contra o peito. Ouviu a porta do sedan bater. O motor arrancou e os pneus rasparam o pavimento. Ainda combalido, olhou para trás. O carro, como um foguete, evaporou-se, engolido pela escuridão da noite.

            Com a cabeça tonta, Randall tentou erguer-se e não conseguiu. Depois, gradualmente, deu fé de que duas poderosas mãos o agarraram por baixo dos braços e que alguém o ajudava a levantar-se. Voltou-se para ver quem o ajudava. Tinha na cabeça um boné azul, que sombreava uma cara larga, de coradas maçãs. O forte e atlético corpo, vestindo um blusão e calças azuis-escuras, vendo-se-lhe um apito preso por um cordão, um crachá no peito, um bastão de borracha suspenso numa armação de couro e uma revólver, parecido com aquele que vira no curador Groat. Um policial. Era um cívico holandês. Outro policial, corria pela rua. Os agentes começaram a trocar rápidas palavras que Randall não compreendia.

            Acabara de se levantar completamente quando por fim avistou Theo, pálido, de respiração opressa, que apalpava a base do crânio e que falava com os policiais em holandês.

            Ao vê-lo, Theo gritou:

            -Sr. Randall! Sr. Randall! Está ferido?

            -Não. Theo. Sinto-me bem. Apenas um pouco tonto. E o que lhe aconteceu? Não consegui vê-lo...

            - Tentei ajudá-lo... tentei tirar o revólver do porta-luvas... mas antes de conseguir um dos assaltantes deu-me uma pancada na cabeça e desmaiei. Tem a pasta consigo?... Ah! ainda bem, ainda bem.

            Randall conseguiu finalmente dar fé de um Volkswagen branco, com uma farol de luz azul, giratória, no toldo e com a insígnia da polícia pintada na porta, parado junto ao Mercedes - um pigmeu junto de um gigante. Um dos policiais com divisas disse qualquer coisa.

            - Vraag hem wat voor een auto het was en hoe veel waren daar.

            O policial que ainda amparava Randall, perguntou a este num inglês corretíssimo:

            -O sargento quer saber de que marca era o carro e quantos eram os assaltantes.

            -Não vi a marca do carro. Talvez fosse um Renault. Pelo menos era um sedan pintado de preto. Os assaltantes eram dois. Um deles, com um boné, foi o que deu a pancada no meu motorista. Não lhe distingui as feições. Só vi bem aquele que me atacou. Tinha uma meia de seda enfiada na cabeça. Penso que era louco. Usava um pulôver de gola. Era um pouco mais baixo do que eu, mas bem constituído. Não consigo lembrar de mais nada... Talvez Theo, o meu motorista, possa dizer-lhes mais do que eu.

            O policial interrogou Theo detalhadamente, transmitindo depois as descrições em holandês. O sargento fez um sinal com a mão e a mancha branca do Volkswagen perdeu-se na escuridão da noite.

            Logo a seguir surgiram as formalidades necessárias, enquanto curiosos das casas vizinhas e vindos da ponte através do Rio Amstel se reuniam curiosamente à distância. Randall mostrou o seu passaporte. O primeiro policial tomou nota dos dados contidos no documento. Depois interrogou Randall, minuciosamente, sobre o ocorrido. Randall relatou exatamente tudo o que acontecera. Quando lhe foi perguntado porque se encontrava em Amsterdã, foi deliberadamente vago. Férias, algumas visitas a pessoas amigas, nada mais. Saberia a razão porque lhe tinham tentado fazer mal, porque o tinham assaltado? Não, não via qualquer razão especial. Além dos esfolados nos joelhos, tinha quaisquer outros ferimentos? Não, estava bem.

            Os policiais pareceram ficar satisfeitos. O que fazia as perguntas fechou o bloco-notas.

            Theo, rigidamente ao lado de Randall, disse com ar grave:

            - Sr. Randall, julgo que agora deixará que eu o leve de carro até o hotel, não é verdade?

            - Sim, julgo que deixarei que me leve - respondeu Randall, levemente divertido.

            Os curiosos dispersaram-se, enquanto Randall, com a pasta bem segura, ladeado pelos dois policiais, seguia Theo até ao Mercedes. Sentou-se na beira do assento, enquanto Theo lhe fechava respeitosamente a porta e instalava-se ao volante. O vidro da janela da retaguarda estava aberto, e o primeiro policial, com ar amigável, meteu a cabeça pelo buraco, dizendo:

            -Wij vragen excuus. Het spijt mij da u verschrikt bent. Het... - Parou e abanou a cabeça. - Esqueci-me e comecei falando holandês. Apresentava-lhe nossas desculpas pelo que aconteceu. Sinto muito que tivesse ficado incomodado e que o assustassem. Não há dúvida que se trata de uma tentativa de roubo de dois desordeiros. Afinal tudo o que pretendiam era a sua pasta.

            Randall sorriu. Só queriam a sua pasta. Ladrões sem importância.

            Mas o policial ainda não acabara.

            -Manter-nos-emos em contato com o senhor para identificar os ladrões, se os apanharmos.

            Randall quis dizer «vocês não os apanham nem que investiguem durante um milhão de anos», mas em vez disso disse simplesmente:

            -Muito obrigado. Agradeço-lhes muito.

            Theo ligou o carro e quando o policial se afastou para o lado, Randall pôde ver perfeitamente o crachá oval que o homem tinha no peito. O metal tinha gravado um livro, com uma espada por cima, com a ponta para o alto, como que protegendo o volume. Na parte inferior viam-se as palavras da insígnia: Vigilat ut quiescant. Pensou que a legenda significava: Eles vigiam para que os outros sintam-se seguros. A espada protegendo o livro.

            Sabia, todavia, que nunca mais voltaria a ter a certeza de estar em segurança.

            Pelo menos enquanto o livro tivesse que ser mantido em segredo.

 

            Tinha certeza que decorridos muitos anos, quando pensasse em sua vida retrospectivamente, se lembraria claramente das últimas duas horas daquela noite, daquela última hora passada na sala de estar da suite real do Hotel Amstel de Amsterdã. Sim, recordaria sempre aquela hora como se fosse um ponto de referência, um marco, o momento de virada no curso da sua pessoal, uma odisséia na terra. Tanto quanto a sua memória podia alcançar, chegou àquele lugar, àquele momento específico como um barco sem leme, mas sentia agora que já possuía algo que o guiava, um farol que o dirigia a qualquer rumo de existência, a vida que sempre desejaria viver.

            Entretanto, sentia que ainda havia mais qualquer coisa, uma coisa que não se podia tocar ou agarrar, mas que estava bem viva dentro de si, coisa tão tangível e real quanto os órgãos dentro do seu corpo.

            O que sentia no íntimo era uma sensação de paz. Também uma sensação de segurança. Acima de tudo uma sensação de finalidade, muito embora não estivesse certo qual fosse, mas que de qualquer maneira também não lhe interessava saber precisamente.

            De uma coisa tinha certeza. A sensação que o possuía totalmente nada tinha a ver com religião, pelo menos do ponto de vista ortodoxo. Continuava pensando como Goethe que os mistérios não significam necessariamente milagres. Não, não era religião que o avassalava, era antes uma crença, uma força difícil de definir. Era como se tivesse descoberto que o sentido da sua vida, e seu objetivo, não era mero vazio, nada e escuridão. Aquela nova fé que surgia na sua vida dizia-lhe que a sua existência, como a de todos os outros homens seus irmãos, foi garçonete por qualquer razão, para qualquer fim mais alto. Tornara-se consciente de uma continuidade, da sua ligação com o passado onde tinha, de certa maneira, vivido antes e de um futuro onde viveria, daí em diante partilhando a fé com mortais completamente desconhecidos mas que, tal como ele, eram penhores por toda a eternidade da perpetuação daquela realidade única.

            O que impregnava o seu ser, estava consciente, não podia ainda chamar-se verdadeira fé... isto é, uma fé resistente a tudo, superior a todas as dúvidas, uma fé cega num mestre divino invisível, um Ser Criador que fornecera seres humanos com motivação, para um fim e que era uma explicação para o inexplicável. Aquilo que o avassalara, e que mais facilmente lhe era perceptível, era o começo de uma crença, uma crença de que o seu ser sobre a terra tinha um significado, não apenas pra si próprio, mas também para aqueles que de qualquer forma estavam ligados a ele, para aqueles com quem cruzara, em quem tocara. Em resumo, sabia que não estava ali por acidente, ou acaso, e que por conseguinte não era um ser consumido, um desperdício, um número dançando no vazio até que chegasse a escuridão final.

            Recordou-se do pai lhe ter um dia citado o terrível e sufocante Santo Agostinho: Ele que nos criou sem a nossa ajuda não nos salvará sem o nosso consentimento. Com um velho remorso, Randall sabia que tais coisas não faziam parte da sua crença. Não concebia nada que fosse digno de seu consentimento para sua salvação. Tampouco acreditava, conforme o Livro dos Livros, que nos orientássemos pela fé, e não pela visão do caminho que trilhava. O seu ser pedia para ver o Caminho... e contudo, naquela noite, havia visto algo.

            Visto o quê? Não podia descrever. Talvez com o tempo fosse capaz de determinar, de explicar o que vira. Por hora, bastava a descoberta de uma crença no seu íntimo, aquela crença num desígnio, num objetivo humano, crença que era uma excitação, uma esperança, quase uma paixão.

            Fez um esforço para se libertar daquela introspecção do bicho da seda em seu casulo e tentou readaptar-se ao mundo mais prosaico que o cercava, seguindo todos os passos que o conduziram àquela jornada para a estranha terra da crença.

            Fazia duas horas que voltara à suite real que ocupava. Não ficou, um minuto sequer, detido no andar térreo do hotel. Ainda se sentia abalado pela sua experiência na rua. Naquela cidade aberta e segura, de pessoas francas e amigáveis, foi atacado, assaltado por dois estranhos, um deles mascarado. A polícia tratara o incidente como um crime sem importância, uma tentativa rotineira de roubo feita por dois ladrões, dois desordeiros. Mas ao atirar a pasta de couro para cima da imensa cama, Randall sabia que o assalto significava algo mais. O que ele transportava naquela pasta não era simplesmente um livro mas sim aquilo a que Heine chamara um Livro que continha o Sol nascente e o Sol posto, um Livro de promessa e realização, de nascimento e de morte, todo o drama da humanidade, amplo como o mundo, encerrando toda a sabedoria, sabia que era o Livro dos Livros, a Bíblia.

            No entanto, refletiu Randall, o Livro de Eleição de que Heine falara transformara-se, aos olhos de muitos leitores, num objeto cediço, obsoleto, sem relação com uma nova era, como um móvel antigo, relegado para o sótão poeirento da civilização. Mas, de repente, de um dia para o outro, por sorte, por acaso, fora impregnado de vida nova, de juventude, e o Livro - tal como o seu Herói - foi revitalizado. De novo, os seus patrocinadores prometeram que voltaria sendo o Livro dos Livros, o Livro por excelência, a BÍBLIA. Mas mais ainda, aquelas páginas possuíam o Santo e a Senha, a Chave, o Verbo, a Palavra, que anunciava uma fé apoiada no novo retrato de Jesus traçado por Jacob, uma nova verdade, justiça, bondade, amor, unidade e que, finalmente, a esperança eterna substituiria um mundo materialista, injusto, cínico, que cada vez descambava mais para o abismo e para o caos.

            Na rua, dois homens estavam prontos a feri-lo, mesmo a matá-lo, a fim de obterem a Palavra, o Santo e a Senha. Até aquela assustadora experiência, Randall pouca atenção prestara ao aviso de que se associou a um jogo perigoso. Mas não seria necessário avisá-lo outra vez. O seu convencimento fora absoluto. A partir daquela noite preparar-se-ia para o que desse e viesse.

            Chegara à suite ardendo em desejo de ler a Palavra, mas decidira-se esperando até acalmar por completo os nervos. Entrara na sala de estar. No meio do imponente e gigantesco aposento encontrava-se uma mesinha de café com uma bandeja cheio de copos, garrafas e um balde de gelo. A mesa estava rodeada por três poltronas forradas de amarelo e por um confortável sofá em pelúcia azul.

            Na bandeja estava uma nota escrita por Darlene num tom levemente irritado. Não gostara nada de estar sozinha todo o dia, mas a viagem de carro fora um êxito e reservara lugar no último passeio de barco pelos canais durante a noite, dado que a garçonete de quarto lhe dissera que quanto mais tarde mais romântico seria o passeio. Estaria de volta pela meia-noite.

            Randall serviu-se um scotch duplo com bastante cubos de gelo. Deu uma volta pela luxuosa sala de estar, sentou-se numa moderna escrivaninha com o tampo forrado de couro, estudou com atenção as três portas duplas em estilo francês que abriam para uma varanda com vista para o rio, e acabou com o scotch. Depois telefonou para o serviço de refeições aos quartos; encomendou uma salada, acompanhada por um filé e uma garrafa de vinho. A seguir entrou no banheiro e regalou-se com um chuveiro.

            Acabava precisamente de apertar o roupão de seda por cima do pijama de algodão, quando o garçon entrou empurrando um carrinho onde transportava o jantar. Conteve a vontade de ler o Novo Testamento Internacional enquanto comia, mas não se demorou muito engolindo a refeição e bebendo o saboroso vinho.

            Por fim, uma hora atrás, consumido pela expectativa, abrira a pasta, tirara para fora as brancas provas tipográficas, onde o tipo se encaixava no papel de largas margens e levara o livro para o sofá. Ajeitara as almofadas, recostara-se, descontraíra-se e começara examinando o livro.

            Na primeira página, por baixo do título, Novo Testamento Internacional, escrita a tinta a lembrança: PROVAS NÃO CORRIGIDAS. Mais abaixo, numa etiqueta colada na folha de papel estava uma nota datilografada apensa por Karl Hennig, K. Hennig Druckcrei, Mainz. Hennig avisava que o papel de provas era do tipo comum, mas que as duas impressões iniciais da Bíblia seriam do papel da melhor qualidade que se pudesse encontrar no mercado - a primeira impressão, uma edição limitada, destinada à imprensa e ao clero que seria chamada Edição Púlpito e feita em papel de luxo importado, e a segunda edição, aquela que seria posta à venda para o público em geral em papel velino. As páginas teriam vinte e cinco centímetros de comprimento por quinze de largura. Uma vez que a Bíblia seria utilizada acima de tudo por protestantes, muito embora estivesse também à disposição dos católicos, as anotações seriam mantidas ao mínimo e dispostas num suplemento especial no fim de cada livro.

            O conteúdo do Pergaminho Petrônio colocava-se como um apêndice entre o Evangelho Segundo Mateus e o Evangelho Segundo Marcos, e esse apêndice incluía anotações sobre a descoberta do pergaminho em Ostia Antica, sobre a sua autenticidade comprovada, sobre a sua tradução do grego e a relação que tinha com a história de Cristo.

            O recém descoberto livro da autoria do irmão de Jesus encaixava-se como parte dos evangelhos canônicos entre o Evangelho Segundo João e os Atos dos Apóstolos. O conteúdo de todo o Novo Testamento fora traduzido de novo em relação às últimas descobertas. Finalmente, um Velho Testamento Internacional seria publicado em volume separado, e seria também traduzido de novo para aproveitar as vantagens fornecidas pelo achado de Ostia Antica. A data experimental da publicação era 12 de julho.

            Na sua adolescência e juventude posterior, Randall lera o Novo Testamento, partes