Biblio VT
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
CONTINUA
Era Domingo de Pascoela, e a última corrida da temporada na Cidade do México. Para essa ocasião tinham vindo especialmente quatro touros de Espanha, considerados mais fogosos do que os mexicanos. Talvez, como dizia Owen, a falta de poder do animal indígena fosse devida à altitude ou então à atmosfera desse continente ocidental.
Apesar de socialista ferrenho e de não ser partidário de touradas, Owen propôs a Kate:
- Como nunca assistimos a nenhuma, devíamos ir a esta.
- Sim, também acho - concordou ela.
- É a nossa derradeira oportunidade - acrescentou Owen. Correu a comprar os bilhetes, e Kate acompanhou-o. Quando
esta chegou à rua, sentiu-se deprimida, como se, dentro de si, estivesse alguém a rabujar e a opor-se. Nem um nem outro falava espanhol, de modo que reinou alguma confusão na bilheteira antes de certo indivíduo antipático se aproximar para se entender com eles em americano.
Seria natural adquirirem bilhetes de "sombra", mas queriam economizar e Owen declarou que preferia ficar no meio do povo. E assim, apesar da resistência do homem e dos espectadores da cena, compraram lugares reservados de "sol".
A corrida realizava-se na tarde de domingo. Todos os eléctricos e os horríveis ónibus Ford exibiam o letreiro Torero e se dirigiam para Chapultec. Kate, de súbito, teve a vaga impressão de que não queria ir.
- Não me seduz muito a ideia de presenciar a tourada - disse a Owen.
- Porque não? Em princípio, não me agradam touradas, mas nunca vimos nenhuma e devemos ir a esta.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_SERPENTE_EMPLUMADA.jpg
Owen era americano, Kate irlandesa. Para ele, o facto de nunca ter visto significava obrigação de ver. Raciocínio mais americano do que irlandês, mas que forçou Kate a submeter-se.
Villiers, esse estava entusiasmado com a perspectiva. Também americano, nunca assistira a um espectáculo daqueles e, sendo mais novo, maior razão tinha para querer ir.
Meteram-se num táxi Ford e abalaram. O carro seguiu ao longo das ruas asfaltadas ou calcetadas, largas e melancólicas na sua solidão dominical. As construções de pedra no México exalam uma tristeza austera muito peculiar.
O táxi parou numa rua lateral, sob a enorme armação de ferro do estádio. Agachados ao comprido do passeio, viam-se homens de aspecto sórdido a vender pulque, fruta, bolos e toda a espécie de frituras. Chegavam automóveis em correria doida, faziam travagem brusca e partiam sem mais demora. Nas imediações da porta rondavam soldados de farda de cotim desbotado, entre cor-de-rosa e castanho. Dominava tudo a carcaça metálica e feia da praça de touros.
Kate experimentou a sensação de penetrar numa cadeia. Muito nervoso, Owen agitava-se na entrada correspondente aos seus bilhetes. No fundo, pouco lhe interessava a tourada. Mas, sendo americano, desde o momento que se tratava de um espectáculo, devia forçosamente vê-lo. Isso era "viver".
O homem que à porta recebia os bilhetes especou-se em frente de Owen e, pondo as duas mãos no peito deste, começou a tacteá-lo. Owen estremeceu e, por um instante, ficou varado de espanto. O sujeito afastou-se. Kate continuou petrificada.
Então Owen assumiu uma expressão sorridente, enquanto o porteiro lhes indicava com um aceno que podiam passar.
- Aquilo foi para verificar se não levamos armas de fogo - explicou ele.
Mas Kate ainda não se refizera do horror que sentira à ideia de que poderia ser apalpada também.
De um túnel desembocaram na galeria do anfiteatro de ferro e cimento. Veio um tipo com ar de salteador averiguar nos talões dos bilhetes quais eram os lugares. Convidou-os a descer, com um gesto de cabeça, e em seguida retirou-se. Kate sentiu-se apanhada numa ratoeira... ou numa gaiola de tamanho descomunal, cheia de escaravelhos.
Desceram os degraus até chegar à terceira bancada, a contar de baixo. Era essa fila a que lhes competia. Tinham de se sentar em cima do cimento, com um varão de ferro a separá-los do vizinho: estavam no lugar reservado do "sol".
Kate instalou-se cautelosamente entre os dois varões de ferro e relanceou em volta um olhar vago.
- É muito curioso - comentou.
Como quase toda a gente desta época, tinha vontade de se sentir contente.
- Muito curioso - corroborou Owen, cujo desejo de estar satisfeito chegava a ser mania. - Não te parece, Bud?
- Sim, talvez - respondeu Williers, sem se comprometer muito.
Mas Villiers tinha pouco mais de vinte anos, ao passo que Owen já fizera quarenta. A geração nova considera a sua felicidade de maneira mais prática. Sem dúvida que Villiers procurava sensações diferentes, mas não ia declarar-se impressionado antes de realmente o estar. Kate e Owen (Kate já orçava também pelos quarenta) mostravam entusiasmo antecipado por mera questão de cortesia para com o sumo realizador de espectáculos: a Providência.
- Se experimentássemos proteger os nossos ossos? - sugeriu Owen. E, com toda a meticulosidade, dobrou o impermeável e estendeu-o sobre o cimento, de modo a que ele e Kate pudessem sentar-se nesse coxim improvisado.
Começaram a observar tudo. Ainda era cedo. No lado oposto, um grupo aqui outro ali mosqueava as bancadas em declive. O redondel estava deserto, com a areia alisada. Em volta, na barreira, sobressaíam grandes cartazes: anúncios de chapéus, que representavam um janota de palhinhas; anúncios de oculistas, que exibiam óculos resplandecentes e de aros vistosos.
- Onde é que fica, afinal, o lado da "sombra"? - perguntou Owen, torcendo o pescoço para ver.
No topo do anfiteatro, perto do céu, havia camarotes de cimento. Esses eram os lugares da "sombra", só ocupados por gente de certa importância.
- Não gostava nada de me encarrapitar lá em cima, tão longe
- disse Kate.
- Nem eu - ajuntou Owen. - Aqui está-se muito melhor, ao sol, que aliás não parece disposto a incomodar-nos.
O céu encoberto fazia já prever a estação das chuvas.
Eram quase três horas e a multidão invadia a praça; no entanto, as bancadas não se enchiam. Como as primeiras filas eram reservadas, o povo acumulava-se mais acima, e as pessoas da categoria do nosso trio achavam-se mais ou menos isoladas.
Constituíam a assistência, na sua maioria, cidadãos corpulentos de fato preto muito justo e chapelinho de palha e alguns camponeses de face tisnada e chapéu de abas largas. Os homens trajados de negro deviam ser caixeiros ou operários. Alguns tinham trazido a família, mulheres vestidas de azul, coroadas de trapos castanhos, e de rosto tão empoado que mais parecia malvaísco branco.
Principiaram a divertir-se. O jogo consistia em arrancar o chapéu de palha duma cabeça desconhecida e atirá-lo para a rampa de seres humanos, onde alguém que fosse ágil o apanhava no ar e o arremessava noutra direcção. Os gritos de alegria quase se transformaram em clamor quando sete chapéus passaram ao mesmo tempo, como meteoros, por cima da cabeça dos espectadores.
- Ora vejam como eles se divertem! - exclamou Owen. Que engraçado!
- Não acho graça nenhuma! - protestou Kate, com o alter ego a manifestar-se, apesar da sua vontade de estar contente. Detesto gente ordinária.
Como socialista, Owen discordou; como homem feliz, ficou desconcertado. Porque o seu verdadeiro eu - tanto quanto nele subsistia - não detestava menos do que Kate a vulgaridade.
- Não deixa de ter piada! - insistiu, tentando reunir o seu riso ao do povo. - Olhem para aquilo.
- Pode ter muita graça, mas alegro-me por não ser o meu chapéu que anda ali em bolandas - opinou Villiers.
- Oh, jogo é jogo! - redarguiu Owen com ar magnânimo. Mas já não se sentia muito seguro. Usava nesse dia um vasto chapéu de palha regional, bastante visível no relativo isolamento das bancadas inferiores. Depois de alguma hesitação, tirou-o e pô-lo nos joelhos. Por infelicidade, no crânio queimado do sol avultava a calvície.
Atrás dele, em nível mais elevado, concentravam-se os espectadores dos lugares não reservados, e já começavam a lançar projécteis. Bumba! Veio uma laranja, destinada à careca de Owen, e atingiu-o no ombro. O americano dardejou à sua volta um olhar tão indignado como inútil através dos óculos de aros de tartaruga.
- No seu caso, deixava-me ficar de chapéu - aconselhou Villiers com a sua voz fria.
- Sim, talvez seja mais prudente - respondeu Owen com indolência fingida, cobrindo de novo a cabeça.
Daí a pouco uma casca de banana batia no elegante panamá de Villiers. Este circunvagou um olhar duro e glacial, qual um pássaro desejoso de dar bicadas mas pronto a fugir à primeira ameaça.
- Que gente detestável! - exclamou Kate.
Surgiu nova diversão com a entrada dos músicos, que sobraçavam os instrumentos. Eram três bandas. A principal subiu e instalou-se à direita, no espaço destinado às autoridades e que se encontrava vazio. Os componentes dessa banda usavam uniforme cinzento-escuro guarnecido de cor-de-rosa, e Kate, ao vê-los, ficou mais tranquila, sentindo-se na Itália e não na Cidade do México. Outra corporação de músicos, estes de fato amarelo, foi postar-se no lado oposto ao do grupo de Owen, e a terceira fanfarra desfilou para a esquerda, na parte menos guarnecida do anfiteatro. Os jornais haviam anunciado a comparência do presidente. Ora hoje em dia os presidentes são raros nas touradas mexicanas.
Eram três horas, e a multidão descobriu outro divertimento. Porque as bandas, que já deviam estar a tocar, continuavam impassíveis, sem fazer soar uma única nota.
- La musica! La musica! - gritavam os espectadores com toda a sua força e autoridade. Constituíam o povo, as revoluções tinham sido as suas revoluções e haviam vencido em todas. As bandas eram deles, estavam ali para os entreter.
Mas tratava-se de bandas militares e fora o exército quem ganhara as revoluções. Por isso estas lhe pertenciam e os músicos achavam-se presentes apenas para a sua própria glória.
Musica pagada toca mal tono.
Como num espasmo, elevava-se e apaziguava-se o clamor insolente da turba. La musica! La musica! Os brados tornavam-se brutais e violentos; Kate jamais os esqueceria. Contudo, as bandas patenteavam a maior indiferença. A pouco e pouco os gritos tornaram-se num berro só - o berro desse povo degenerado como é o da Cidade do México.
Por fim, quando muito bem lhes apeteceu, os músicos fardados de cinzento e cor-de-rosa atacaram uma das suas marchas - viva, marcial.
- Muito bem - murmurou Owen, aplaudindo. - Muitíssimo bem. É a primeira vez que oiço no México uma boa filarmónica.
A marcha era tão bonita como breve. Mal havia começado já estava no seu termo. Os executantes tiraram da boca os instrumentos com gesto decidido. Tinham tocado só para dizer que tinham tocado, e o menos possível.
Musica pagada toca mal tono.
Seguiu-se um intervalo até que outra charanga se fez ouvir por seu turno. Já passava das três e meia.
De súbito, como se obedecessem a um sinal, as pessoas acumuladas nos lugares não reservados invadiram os lugares reservados. Foi como se rebentasse um dique, e a populaça de fato preto domingueiro despejou-se sobre o nosso trio atónito e assustado. Em dois minutos tudo se arrumou. Sem empuxões nem encontrões. Cada qual evitava quanto possível tocar em alguém. Não é conveniente dar cotoveladas no vizinho quando ele tem um revólver no bolso e uma faca à cintura. As primeiras filas encheram-se num ápice.
Kate via-se agora no meio do povo. Mas, felizmente, o seu lugar era por cima duma das estreitas passagens que circulam derredor da arena, e assim, ao menos, ninguém viria sentar-se-lhe entre os joelhos.
Andavam homens cá e lá nesse corredor apertado, saltando sobre os pés alheios, esforçando-se por se reunir aos amigos mas sem ousar pedir que lhes dessem espaço. Na mesma fila de Owen, com dois bancos de permeio, estava um bolchevista polaco que aquele já conhecia. O homem inclinou-se para o mexicano que se encontrava junto de Owen e perguntou-lhe se não se importava trocar o seu lugar pelo dele.
- Importo-me - respondeu o mexicano. - Quero ficar onde estou.
- Muy bien, señor, muy bien - disse o polaco.
Não havia maneira de principiar o espectáculo e os homens continuavam a vaguear como cães vadios na coxia em frente de Kate. Começaram a aproveitar-se do rebordo em que o nosso grupo apoiava os pés, e não tardou que um indivíduo gordo se instalasse entre os joelhos de Owen.
- Espero que não venham sentar-se em cima dos meus pés - observou Kate, inquieta.
- Não consentiremos - declarou Villiers com ar resoluto. Porque não enxota daí esse tipo, Owen? Enxote-o ! - E Villiers lançou um olhar furioso ao mexicano refestelado entre as pernas de Owen.
Este corou e teve um riso amarelo. Não sabia como enxotar pessoas. O mexicano relanceou a vista pelos três estrangeiros descontentes.
Momentos depois, dispunha-se outro homem corpulento, de fato escuro, a ocupar o espaço entre os pés de Villiers. Mas o americano foi mais rápido do que ele. Uniu as pernas de repente e o outro viu-se desconfortavelmente sentado sobre um par de botas, sentindo ao mesmo tempo apoiarem-se-lhe nos ombros mãos firmes que diligenciavam repeli-lo.
- Não! - protestou Villiers em bom americano. - Esse lugar é para os meus pés. Saia daí! - E continuou, com muita calma e muita decisão, a empurrar as costas do mexicano.
Soergueu-se este e dirigiu a Villiers um olhar homicida. Exerciam contra a sua pessoa ofensas corporais, que só podiam ser retribuídas com a morte; mas a fisionomia do americano mostrava uma expressão tão fria, tão distante (só os olhos é que fulguravam) que o homem ficou desconcertado. Nas pupilas de Kate transparecia um desespero tipicamente irlandês.
O sujeito pareceu debater-se contra o complexO de inferioridade peculiar aos cidadãos mexicanos e acabou por se justificar em espanhol, balbuciando que se sentara ali só por um instante, enquanto não conseguia juntar-se aos amigos... E, com a mão, indicou um degrau mais abaixo. Villiers não entendeu patavina, mas insistiu como se houvesse percebido:
- Não me interessam as razões. Esse lugar é para os meus pés, e não consinto que o ocupe.
Oh, país da liberdade! Oh, terra da gente livre! Qual dos dois adversários venceria nessa luta? O homem gordo tinha o direito de se sentar entre os pés do rapaz? Ou Villiers era senhor de conservar esse espaço para seu uso?
Existem muitos géneros de complexos de inferioridade, e o cidadão do México possui um, bastante acentuado, que o torna mais agressivo quando o provocam. Por esse motivo, o intruso desabou com toda a força o seu avantajado posterior sobre os pés de Villiers e este viu-se obrigado a arrancá-los de baixo daquela massa esmagadora. As faces do rapaz empalideceram e os olhos denotaram um brilho de pura raiva democrática. Repeliu com mais energia os ombros conpactos, dizendo:
- Vá-se embora. Não tem o direito de estar aí!
Bem assente no lugar conquistado, o mexicano deixava-se empurrar, sem fazer caso nenhum.
- Que insolência! - exclamou Kate em voz bem alta. - Que insolência!
Dardejou o olhar indignado às costas maciças envoltas num casaco de péssimo corte, que se diria haver sido feito de má vontade por qualquer costureira. Como a gola dum casaco podia ter assim o aspecto de coisa arranjada em casa, e en famille!
A cara magra de Villiers mantinha a expressão abstracta que lhe dava certo ar cadavérico. E ele reunia toda a sua força de vontade americana, a águia glabra do Norte eriçava as penas: aquele indivíduo não devia sentar-se ali. No entanto, como expulsá-lo?
O rapaz parecia subjugado pelo desejo de aniquilar esse escaravelho atrevido, e Kate veio auxiliá-lo com toda a sua malícia irlandesa.
- Não lhe pergunta quem é o seu alfaiate? - disse ela, petulante de ironia.
Villiers olhou para o casaco do mexicano e franziu o nariz.
- Não deve ser nenhum. Naturalmente foi ele próprio que fez o fato.
- Provavelmente - volveu Kate com um riso venenoso.
Era de mais. O homem levantou-se e foi-se embora com ar um tanto enleado.
- Vitória! - bradou Kate. - Não podes fazer o mesmo, Owen?
Owen exibiu um riso contrafeito e olhou para o sujeito repimpado entre os seus joelhos como se olhasse para um cão raivoso.
- Por enquanto não, infelizmente - respondeu com um sorriso forçado, desviando a vista do mexicano que fazia dele uma espécie de cadeira de encosto.
Soou um clamor. Acabavam de aparecer dois cavaleiros de traje vistoso e lança na mão. Deram a volta à arena e postaram-se como sentinelas de cada lado do túnel donde haviam surgido.
Avançaram quatro toureiros de fato muito justo, bordado de prata. O grupo dividiu-se e eles marcharam com galhardia em direcções opostas, dois a dois, em torno do redondel, até chegarem à frente do sector reservado às autoridades, onde fizeram um cumprimento.
com que então era aquilo uma tourada! Kate sentia já um arrepio de nojo.
Nos lugares destinados ao elemento oficial não estava quase ninguém, e não se via ali uma única beldade de pente de tartaruga e mantilha de renda. Só gente de aspecto vulgar, burgueses desprovidos de gosto e alguns oficiais fardados. O presidente não viera.
Nenhum colorido, nada de fascinante. Meia dúzia de indivíduos banalíssimos numa extensão de cimento armado e, em baixo, quatro seres grotescos de fato muito cingido ao corpo. Os eleitos, e os heróis... De nádegas bem fornidas, trancinha na cabeça e cara rapada, esses preciosos toureiros pareciam eunucos ou mulheres mascaradas.
Desvaneciam-se as últimas ilusões de Kate acerca de touradas. Eram aqueles os ídolos do público? Os valorosos toureiros? Tão valorosos como qualquer ajudante de magarefe...
Da assistência elevou-se um "Ah!" de satisfação. Irrompera na arena um touro pardo de longos chifres recurvos. Corria às cegas como se houvesse emergido da escuridão, julgando decerto que se encontrava finalmente livre. Estacou ao perceber que se enganara; não estava em liberdade, mas cercado por algo de muito estranho.
Avançou um toureiro e desdobrou a capa cor-de-rosa, como se fosse um leque, a pouca distância do focinho do touro, o qual, depois dum pinote, arremeteu sem grande ímpeto contra a mancha rósea. O homem fez voltear a capa por cima da cabeça do animal e este, muito digno, foi andando em torno da pista, procurando uma saída.
Notando a pouca altura da vedação de madeira, achou que faria bem em transpô-la e assim se encontrou na passagem que circundava o redondel e onde se haviam postado vários moços.
com a maior ligeireza todos eles saltaram por cima da trincheira e vieram cair na arena.
O touro seguiu por aquele corredor até topar com uma abertura que o conduziu de novo à pista.
Mais um salto, e o bando de moços retomou o seu lugar atrás da barreira, onde todos ficaram a observar o espectáculo.
O animal trotava hesitante e já de certa maneira irritado.
Os toureiros ondulavam as capas, e o touro não se decidia por nenhuma até que se virou para um dos cavaleiros, imóveis e de lança na mão.
com um arrepio de medo, Kate reparou, nesse instante, que o cavalo tinha os olhos tapados com um pano preto. Aquele, e o do outro picador.
O touro avançava desconfiado para o equídeo, um pobre sendeiro que não se mexeria até ao dia de Juízo Final se alguém o não impelisse.
Oh, espectros de D. Quixote! Oh, quatro cavaleiros espanhóis do Apocalipse! Era sem dúvida um de vós, esse picador que levou o seu rocinante a enfrentar o touro e cravou neste último a ponta da comprida lança. Como se sentisse a ferroada dum vespão, o touro baixou a cabeça num movimento repentino e espetou as hastes no abdómen do cavalo - que logo tombou com o cavaleiro, tal uma estátua equestre que se desmorona.
O homem libertou-se da montada e fugiu sem largar a lança. Aturdido, sem perceber nada do que se passava, o infeliz animal tentava erguer-se. E o touro, com um fio de sangue negro a escorrer-lhe da espádua, olhava em volta com ar igualmente espantado.
Mas. além de a ferida lhe doer, viu a cena deveras singular dum cavalo meio sentado no chão diligenciando levantar-se, e sentiu o cheiro do sangue e das entranhas.
Por isso. como se não soubesse bem o que devia fazer, baixou de novo a cabeça e enterrou os chifres aguçados no ventre do rocim, movendo-os lá dentro para um lado e outro com uma espécie de vaga satisfação.
Nunca em toda a sua vida Kate fora tão apanhada de surpresa. Conservava ainda a esperança de assistir a um espectáculo da valentia, e dava consigo a observar um touro que, de espáduas ensanguentadas, sujava as hastes no ventre rasgado dum cavalo velho!
Quase se deixava vencer pela comoção nervosa. Viera ali contemplar actos de bravura e afinal pagara para ver aquilo! Cobardia humana, bestialidade, cheiro a sangue, baforadas nauseabundas de intestinos rebentados... Virou a cara para outro lado.
Quando tornou a olhar, o cavalo andava em volta da arena, com uma bola de tripas pendente da barriga a bater de encontro às patas no movimento automático dos passos.
E mais uma vez Kate ia perdendo os sentidos. Ouviu confusamente os aplausos da multidão exultante. O polaco, que Owen lhe apresentara, inclinou-se para ela e disse-lhe num inglês horrível:
- É a vida que a senhora está a ver! Já tem alguma coisa a contar nas suas cartas para Inglaterra.
Kate olhou com aversão para aquele rosto desagradável e desejou que Owen lhe não apresentasse indivíduos tão sórdidos.
Em seguida poisou a vista em Owen. Parecia um garoto que se sente enjoado mas que teima em observar bem o açougue que o proibiram de ver.
Quanto a Villiers, tinha os olhos fixos na arena, sem nenhuma espécie de enjoo. Colhia as suas impressões friamente, cientificamente, mas de forma intensa.
E Kate sentiu um ímpeto de ódio contra esse americanismo sempre ávido de sensações novas... e tão pouco sensível.
- Porque é que o cavalo não foge do touro? - perguntou, indignada.
Owen pigarreou antes de responder.
- Não vês que tem um pano a vendar-lhe os olhos?
- Mas não pressente o touro?
- Penso que não... Costumam trazer para aqui cavalos velhos, a fim de acabar com eles. Bem sei que é horroroso, mas faz parte do jogo.
Como Kate detestava frases desse género! "Fazer parte do jogo..." Que significava isso, em suma? Sentia-se humilhada, esmagada pela impressão de indecência e cobardia daqueles animais de duas pernas. Todo o espectáculo de bravura exalava um bafo de poltronaria que ultrajava a sua cultura e o seu orgulho natural.
Os moços haviam limpado a arena e espalhado mais areia. Os toureiros provocavam o touro, agitando as capas ridículas, e o cornúpeto, com a ferida da espádua a sangrar, corria dum pano para outro.
Pela primeira vez, Kate achou os touros desprovidos de inteligência. Sempre tivera medo desses animais, medo temperado pelo respeito que lhe inspirava o monstro do masdeísmo. E agora verificava como eram estúpidos, apesar dos longos chifres e da sua força de macho vigoroso. Cegamente, estupidamente, arremetia contra as capas, e de cada vez os toureiros se desviavam com meneios que mais os faziam assemelhar a mulheres nutridas. Talvez aquilo exigisse habilidade e coragem, mas parecia grotesco.
O touro obstinava-se em enfiar as hastes no trapo só porque via esse trapo ondular.
- Atira-te aos homens, idiota! - exclamou Kate em voz irritada. - Atira-te aos homens e não às capas!
- É um facto curioso, mas nunca o fazem - observou Villiers, com interesse frio e científico. - Há quem diga que os toureiros não se atrevem a enfrentar vacas porque estas se arremessariam a eles e não às capas. Se os touros procedessem assim não haveria touradas, não é verdade?
Kate estava maçada. Enchiam-na de tédio as piruetas e a destreza dos toureiros. Nem sentiu nenhuma admiração quando um dos bandarilheiros se ergueu em bicos de pés (atitude que ainda mais lhe evidenciava o traseiro anafado) e cravou no cachaço do touro dois dardos de ponta acerada guarnecidos de fitas. Uma das farpas caiu, e o touro desatou a correr com a outra a baloiçar-se na ferida. Agora, sentia realmente desejo de fugir. Voltou a transpor a barreira, e, como antes, saltaram para a arena os homens que ali se encontravam. Percorreu o corredor circular, pulou outra vez para o redondel, e os moços tornaram para a trincheira. Depois de dar a volta à pista, sem fazer caso dos toureiros, o animal galgou de novo a barreira, obrigando os homens a mais uma manobra.
Kate começava a divertir-se, vendo os mexicanos aos pulos dum lado para o outro a fim de se porem em segurança.
O touro encontrava-se agora na arena e corria de capa para capa. Preparava-se um bandarilheiro para lhe meter mais duas farpas, mas, entretanto, avançou altivamente outro picador sobre o seu rocinante de olhos vendados. Sem ligar importância a nenhum deles, o touro afastou-se com o ar deliberado de quem vai buscar qualquer coisa e, estacando, pôs-se a escavar o chão. Vendo um toureiro aproximar-se e agitar a capa, alçou o rabo e investiu... contra o pano, é claro. com graciosidade feminina, o toureiro rodou sobre si mesmo e desviou-se para outro lado. Que perfeição!
à força de correr de uma banda para outra, o touro encontrou-se perto do destemido picador. E o destemido picador fez avançar o corcel idoso, inclinou-se para a frente e espetou a ponta da lança no dorso do inimigo. Este olhou para cima, irritado. Que diabo lhe queriam?
Viu o cavalo e o cavaleiro. O cavalo estava tão tranquilo como se se encontrasse atrelado a uma carroça de leiteiro esperando com paciência que o dono distribuísse o leite. Devia experimentar muito estranha sensação quando o touro, com um pulinho semelhante ao dum cão, baixou a cabeça e lhe enfiou os cornos no ventre, deitando-o por terra com o cavaleiro como quem derruba um manequim.
Olhando com certo espanto para aquela miscelânea de homem e de cavalo que se debatia no chão, a pouca distância, o touro aproximou-se a fim de investigar o caso. O cavaleiro pôde libertar-se da montada e fugir, enquanto os capinhas acorriam a desviar a atenção do animal. E o touro afastou-se caracolando, para se arrojar sobre os trapos de seda.
Entretanto um moço conseguira pôr o cavalo de pé e conduziu-o para a saída ao longo da passagem atrás da vedação. O pobre sendeiro caminhava a custo, vagarosamente. Depois de tanto correr de capa cor-de-rosa para capa vermelha sem nunca atingir nenhuma, o touro ficou exasperado. Mais uma vez transpôs a trincheira e partiu à desfilada na direcção em que seguia o cavalo extropiado.
Kate adivinhou o que ia acontecer. Antes que ela tivesse tempo de voltar a cabeça, o touro arremetera contra o cavalo, o homem escapulira-se, e aquele infeliz animal estava com o quarto traseiro levantado de forma absurda por uma das hastes do touro, enterrada profundamente entre as pernas. O cavalo tombou, mas o posterior continuou alçado pelo chifre, que não parava de rasgar a carne. Espalhou-se um montão de tripas. E um cheiro nauseabundo. E ouviram-se os gritos da multidão satisfeita e divertida.
Essa linda cena desenrolava-se no lado da praça onde Kate se encontrava, e não muito longe dela. Na sua maioria os assistentes estavam de pé e esticavam o pescoço para não perderem nada do delicioso espectáculo.
Kate sentiu que, se continuasse a olhar, teria um ataque de nervos. Já não podia mais.
Relanceou a vista por Owen, que parecia um colegial quando comete uma acção que não deve.
- Vou-me embora - declarou, levantando-se.
- Vais-te embora? - repetiu Owen admirado e desgostoso, erguendo para ela a face congestionada.
Mas já Kate lhe voltava costas e se dirigia rapidamente para a saída.
Owen foi-lhe no encalço, ofegante, indeciso.
- Vais-te embora de facto? - conseguiu dizer-lhe quando a alcançou à entrada do corredor abobadado.
- Preciso de sair daqui. Não venhas comigo. Fica.
- Achas que fique? - volveu ele, hesitante.
Esta cena provocara certa hostilidade entre a assistência. Partir no meio duma tourada representa um insulto à nação.
- Fica. Eu vou tomar o eléctrico - respondeu Kate em voz apressada.
- Não será necessário que te acompanhe? Sentes-te bem?
- Perfeitamente. Até logo. Não posso mais com este fedor. Owen voltou-se, tal Orfeu olhando de novo para os Infernos, e encaminhou-se para o seu lugar.
Não era coisa fácil, pois muita gente se havia levantado e obstruía a passagem. Depois duns pingos sem importância, a chuva desencadeara-se e caía a potes. A assistência corria a abrigar-se na entrada do túnel, mas Owen, indiferente a tudo, conseguiu atingir o seu lugar e aí se sentou, envolto no impermeável e com a chuva a alagar-lhe a cabeça calva. Tal como Kate, parecia-lhe que ia ter um ataque de nervos, porém continuava persuadido de que tudo aquilo era "viver". Estava ali a assistir à VIDA, e que mais pode desejar um americano?
"É como se toda esta gente se deleitasse a contemplar alguém com diarreia", dizia Kate consigo mesma, na sua maneira de pensar irlandesa.
Achava-se sob o pórtico de cimento, com a populaça apinhada atrás dela. Via a chuva cair e, para além da cortina de água, os portões de madeira que abriam para a rua. Oh, quem lhe dera estar lá fora, livre, enfim!
Mas a chuva era tropical. Os soldadinhos de farda rósea comprimiam-se na porta para se defenderem da borrasca. Não a deixariam sair? Que horror!
Hesitava, perante aquele dilúvio. Correria para fora se a não retivesse a ideia do aspecto que ofereceria o seu vestido de gaze colado ao corpo e a pingar água.
No outro extremo do túnel a multidão agitava-se tal um mar encapelado; arrancada à contemplação do seu desporto favorito, toda aquela gente se esforçava por não perder nada do espectáculo. Por isso, graças a Deus, se mantinha aglomerada no sítio mais próximo do redondel. Kate aproximou-se da saída, pronta a escapulir-se dum momento para outro.
A chuva caía a cântaros.
Tão afastada da turba quanto possível, Kate ia esperando sempre. O rosto dela apresentava esse ar vago peculiar às mulheres prestes a sucumbirem a uma crise nervosa. Não conseguia expulsar dos olhos a visão do cavalo apoiado sobre o pescoço torcido, com os quartos traseiros levantados e o chifre do touro a vasculhar-lhe as entranhas num movimento lento e compassado. Tão passivo e grotesco... E os intestinos a resvalarem para o chão...
Mas novo horror lhe provocou a multidão que se ia alastrando no corredor abobadado, - em grande parte formada por homens rudes vestidos à moda da cidade, mestiços de uma terra de mestiços. Dois deles urinavam de encontro à parede. Um pai trouxera bondosamente os seus meninos à corrida e debruçava-se para os miúdos numa atitude de ternura untuosa. Eram crianças macilentas, a mais velha das quais teria dez anos, aperaltadas nos seus trajes domingueiros. Bem precisavam da benevolência paternal, pois estavam oprimidas, esmagadas, aturdidas pela barbaridade do espectáculo. Nelas, ao menos, não havia o gosto inato das touradas; nunca seria senão um hábito adquirido. Viam-se ali outros meninos, e mamãs gordas vestidas de cetim preto e de gola ensebada e suja do pó de arroz. Essas matronas tinham nos olhos uma expressão de contentamento, de prazer quase sexual que fazia contraste desagradável com os corpos indolentes e obesos.
Kate tremia na sua roupa leve, pois a chuva tornara-se glacial. Através das cordas de água via os portões gradeados do recinto, os soldados minúsculos encolhidos na sua farda de cotim desbotado, e uma nesga da rua sórdida onde agora deslizavam rios barrentos. Os vendedores haviam-se refugiado todos nas arcadas ou nas lojas de pulque, uma das quais exibia esta tabuleta: A Ver que Sale.
Mais do que qualquer outra coisa assustava-a a sensação repulsiva da terra. Visitara muitas cidades do mundo, mas o México possuía uma espécie de fealdade oculta, algo de depravado que, em compensação, fazia Nápoles parecer a própria Inocência. Kate tinha medo, medo de se ver tocada pelo que quer que fosse naquela cidade e de ficar contaminada pela sua depravação.
Vinha através da turba um oficial fardado, trazendo aos ombros uma capa de tom azul-claro. Era baixo, moreno, de mosca à Napoleão iII. Desviou as pessoas que bloqueavam a entrada do túnel e abriu caminho tranquilamente, deliberadamente, com esses gestos lentos peculiares aos índios. Afastando com a mão enluvada os que lhe barravam a passagem e murmurando de modo quase imperceptível a frase Con permisso, parecia manter-se a uma distância infinita de todo o contacto. Devia ser homem corajoso, pois se arriscava a que algum malandrim lhe desfechasse um tiro por causa do uniforme. Mas aquela gente conhecia-o; Kate percebeu isso pelo sorriso de satisfação que perpassou nas caras e pelas exclamações: "General Viedma! Don Cipriano!"
Dirigiu-se para Kate e saudou-a com alguma timidez.
- Sou o general Viedma. Deseja ir-se embora? Permita que lhe arranje um automóvel - disse ele num inglês bastante puro, que não se adequava ao rosto moreno nem ao tom de voz suave.
Os seus olhos negros e vivos tinham um brilho fixo, que a irlandesa achava fatigante suportar, e erguiam-se nos cantos, sob o arco das sobrancelhas pretas, o que lhe dava uma estranha expressão de desprendimento. Ò seu ar de segurança devia ser apenas superficial e esconder um fundo de timidez selvática e de desconfiança em si mesmo.
- Fico-lhe muito agradecida - respondeu Kate.
Ele fez sinal a um dos soldados que estavam à entrada.
- Mandarei conduzi-la a casa no carro dum amigo meu - declarou. - Será melhor do que ir num táxi. Não gosta de touradas?
- Não! Acho uma coisa horrorosa! - redarguiu Kate. - Mas porque não hei-de ir num táxi amarelo? São os melhores, creio eu.
- O homem já foi buscar o carro... A senhora é inglesa?
- Irlandesa.
- Ah, irlandesa! - repetiu o general esboçando um sorriso.
- Fala inglês muitíssimo bem.
- Não admira. Fui educado na Inglaterra. Vivi lá sete anos.
- Sim? O meu apelido é Leslie.
- Conheci em Oxford um rapaz chamado James Leslie. Morreu na guerra.
- Bem sei. Era irmão de meu marido.
- Oh! Que coincidência!
- Como este mundo é pequeno! - comentou Kate.
- Muito pequeno. Seguiu-se uma pausa.
- E os senhores que estão consigo são...
- Americanos - informou Kate.
- Ah, americanos!
- O mais velho é meu primo, Owen Rhys.
- Owen Rhys! Sim, sim, parece-me que li nos jornais a notícia da vossa chegada... em visita ao México.
Falava em voz calma, um tanto abafada, e tão depressa olhava para a sua interlocutora como relanceava a vista derredor, qual uma pessoa que receia qualquer emboscada. Mas sob a afabilidade aparente a fisionomia revelava certa hostilidade surda. Procurava salvaguardar a reputação do seu país.
- Notícia que não primava pela cortesia - observou Kate. Julgo que lhes desagradou o facto de nos alojarmos no Hotel San Remo, por ser modesto e pouco conhecido. Mas nenhum de nós é rico, e preferimos aquele aos outros hotéis.
- Onde fica situado?
- Na Avenida del Peru. Não quer ir lá visitar-nos e travar conhecimento com meu primo e com o senhor Thompson?
- Muito obrigado. Raras vezes saio, mas irei, já que a isso me autoriza, e talvez que depois se sintam dispostos a visitarem-me por seu turno, em casa do meu amigo Señor Ramon Carrasco.
- com todo o gosto.
- Muito bem. E quando poderei encontrá-la? Kate indicou a hora, e acrescentou:
- Não se admire do hotel. É pequeno, e está cheio de italianos. Experimentámos vários dos grandes hotéis, mas a impressão foi pavorosa. Não suporto aquela atmosfera de desregramento, nem a petulância dos criados. Talvez falte conforto no meu San Remo, mas é simpático, humano, não se lhe nota nada de torpe. Como a Itália que sempre conheci, decente e com uma pontinha de generosidade. Tenho a sensação de que a Cidade do México é depravada, viciosa...
- Os hotéis são maus, de facto - concordou o general. - É pena, mas os estrangeiros fazem os mexicanos piores do que são na realidade, e o México, ou qualquer coisa que nele existe, torna os estrangeiros piores do que são no seu país.
Falava com certa amargura.
- Talvez devêssemos renunciar a vir aqui - disse Kate.
- Talvez - respondeu ele, encolhendo os ombros - mas não o creio...
Recaiu em silêncio um tanto constrangido. Era singular como fluíam nele sentimentos diversos - cólera, desconfiança, orgulho e novamente cólera - em ondas sucessivas e um tudo-nada ingénuas.
- Chove menos - notou Kate. - Quando chegará o carro?
- Já ali está à espera.
- Nesse caso, despeço-me.
O general inspeccionou o céu.
- Ainda chove bastante, e o seu vestido é fino. Convém que leve a minha capa.
- Oh! - protestou Kate. - Mas é uma distância de dois metros!
- Pois sim, mas a chuva molha. Ou espera que ela abrande ou consente que eu lhe empreste isto.
com gesto rápido, tirou a capa e apresentou-lha. Kate voltou-se quase maquinalmente, deixou que ele a pusesse nos ombros e então, cingindo-a ao corpo, correu para a saída como se fugisse. Viedma seguiu-a em passo ligeiro, correspondendo rapidamente à continência pouco aprumada do soldado.
Em frente do portão estava um Fiat não muito novo, com um motorista de casaco de xadrez vermelho e preto. O homem abriu a portinhola e Kate, depois de entrar no carro, devolveu a capa ao seu dono, que a deixou negligentemente no braço.
- Até à vista - disse ela. - E muitíssimo obrigada. Encontrar-nos-emos naterça-feira, não é verdade? Cubra-se, por favor.
- Sim, na terça-feira. Hotel San Remo, Avenida del Peru - acrescentou o general dirigindo-se ao motorista. Voltou-se para Kate: - Vai para o hotel?
-? vou - respondeu a interpelada, e no mesmo instante mudou de ideias. - Não, diga-lhe que me leve à pastelaria Sanborn, onde poderei sentar-me num canto e beber uma xícara de chá.
- Para se restabelecer da tourada? - volveu ele com um sorriso fugaz. - Gonzales, conduz esta senhora à pastelaria Sanborn.
Fez um cumprimento e fechou a portinhola. O automóvel partiu.
Kate recostou-se com um suspiro de alívio. Alívio por ter saído enfim daquele local de horrores, alívio até por se afastar desse homem amável. Amabilíssimo. Mas a verdade é que não se sentia bem na sua presença. Emanava dele essa tal fatalidade sombria particularmente mexicana, que tanto a acabrunhava. A calma, a segurança quase agressiva e, ao mesmo tempo, nervosismo e incerteza... Um ar de profunda melancolia, e o sorriso pronto, ingénuo, quase infantil... Aquelas pupilas cintilantes como jóias negras, sempre alerta, esperando talvez um sinal de compreensão e simpatia... Mais uma vez teve a sensação de que o México estava marcado como uma paragem inevitável no caminho que o Destino lhe traçara.
Algo de tão opressivo como os anéis duma cobra de que fosse difícil libertar-se.
Ficou contente por se encontrar no seu canto habitual da pastelaria, num ambiente cosmopolita, tomando chá, comendo pastéis de morango e tentando esquecer.
Owen regressou ao hotel cerca das seis e meia, cansado, excitado, e um tanto confuso por haver deixado Kate partir sozinha. Agora, depois de findo o espectáculo, sentia-se vagamente aborrecido.
- Como te correu a tarde? - perguntou logo que a viu, com o ar comprometido de uma criança que sabe ter procedido mal.
- Optimamente. Estive a tomar chá na Sanborn e a comer uns pastelinhos deliciosos.
- Então é porque não te sentias tão mal disposta como me pareceu! - exclamou ele, rindo, aliviado. - Ainda bem. Fiquei cheio de remorsos por não ter saído contigo. Pensei em tudo o que pode acontecer no México... até na hipótese de um motorista te conduzir para qualquer sítio isolado com o intuito de roubar... Mas eu sabia que te livrarias dos apuros. Oh, que tarde aflitiva! Chuva, pessoas a atirarem-me coisas à cabeça... e os cavalos... Nem sei como ainda estou vivo! - E riu-se, fatigado e nervoso, esfregando a mão no estômago e arregalando os olhos.
- Não ficaste encharcado? - indagou Kate.
- Até aos ossos! Mas já estou quase enxuto. O meu impermeável é uma porcaria inútil, não sei porque não compro outro melhor. Oh, que mau bocado passei! A chuva a tamborilar-me na cabeça, a multidão a bombardear-me com laranjas... E eu roído pelo remorso de não te haver acompanhado... Mas era a única tourada a que jamais assistiria. Saí antes do fim. Bud não quis vir comigo, e suponho que ainda lá está.
- Aquilo continuou a ser tão horroroso como no princípio?
- Não, não... o começo foi o pior... Ah, houve mais dois cavalos mortos. E cinco touros. Uma verdadeira carnificina. Mas os toureiros fizeram alguns passes bonitos. Um deles deixou-se ficar imóvel com a capa, enquanto o touro arremetia...
Kate interrompeu-o.
- Se eu tivesse a certeza que o touro furava de lado a lado um desses toureiros, de boa vontade ia ver outra corrida. Uf! Como eu os detesto! Quanto mais avanço em idade maior aversão sinto pela espécie humana. Os touros são muito mais simpáticos.
- Realmente... - concordou Owen, mas sem grande convicção. - Em todo o caso, aquilo requer habilidade e audácia.
- Ora, ora! - redarguiu Kate. - Audácia, munidos de lanças, farpas e capas, e sabendo de antemão o que o bicho vai fazer! É apenas uma exibição de tortura de animais, e de homens pretensiosos a quererem demonstrar que sabem ferir um touro. Fazem-me lembrar as crianças maldosas que arrancam as asas e as patas às moscas. Mas estes não são crianças, são uns degenerados. Quem me dera ser touro só por cinco minutos! Degenerados! Não posso dar-lhes outro nome.
- Sim, não deixas de ter razão - disse Owen com riso forçado.
- Chamar àquilo bravura! Nesse caso, dou graças a Deus por ser mulher e capaz de conhecer a cobardia e a vileza quando as vejo.
Owen tornou a rir-se sem vontade.
- Vai mudar de roupa - aconselhou Kate. - Senão, morres.
- Sim, é o mais prudente. Já me sinto meio morto... Então, até ao jantar. Baterei à tua porta daqui a meia hora.
Kate sentou-se e tentou coser, mas as mãos tremiam-lhe. Não podia afastar do espírito a visão da arena.
Endireitou-se e suspirou. Sentia-se também irritada contra Owen. Muito bondoso, muito simpático, mas deixara-se contaminar pela doença moderna: a tolerância. Tolerava tudo, até os factos que o revoltavam. Chamava a isso Vida! Devia ter a impressão de que vivera nessa tarde. Quanto a ela, a impressão que tinha era de haver ingerido qualquer coisa que a envenenara. Seria isso viver?
Ah, homens, homens! Todos eles possuíam essa leve podridão de alma, estranha perversidade que os induzia a aceitar tudo como fazendo parte da vida, mesmo as cenas mais repelentes. A vida! E que era a vida? Um piolho de pernas para o ar e a dar pontapés? Uf!
Por volta das sete horas, Villiers bateu à porta. Vinha nervoso, esfalfado, tal um pássaro que encheu o papo esgaravatando num monte de estrume.
- Oh, foi extraordinário! - exclamou logo de entrada. Espantoso! Mataram sete touros.
- E vitelos não, infelizmente - disse Kate de novo irritada.
Villiers ficou um momento desconcertado. Depois, riu-se. A fúria de Kate era para ele mais um divertimento sensacional.
- Vitelos, não; guardaram-nos para os engordar. Mas vários cavalos, depois de você partir...
- Não quero ouvir descrições - volveu Kate friamente. Villiers riu-se; sentia-se um tanto heróico. No fim de contas,
uma pessoa deve ter ânimo para ver sangue e entranhas dilaceradas sem se comover, e até com certa curiosidade. Juvenil herói! Mas estava pálido, olheirento, como depois de uma orgia.
- E não lhe interessa saber o que fiz em seguida? - perguntou, assumindo ar modesto. - Fui ao hotel onde está alojado o toureiro principal e tive oportunidade de o ver reclinado na cama, vestido dos pés à cabeça e a fumar charuto. Parecia uma Vénus máscula, com aquele fato justo ao corpo... Engraçadíssimo!
- Quem o levou lá? - inquiriu Kate.
- O polaco... lembra-se dele? e um espanhol que falava inglês. Valeu a pena ir, só para ver o bandarilheiro a repousar no leito com o seu traje de gala e rodeado por uma chusma de admiradores que faziam comentários sobre a tourada. Era uma vozearia...
- A chuva não o molhou? - interrompeu-o Kate.
- A mim? Não. Estou absolutamente seco. Tinha o sobretudo para me proteger. O pior foi a cabeça. As minhas pobres madeixas colavam-se-me à cara, pareciam riscos escuros na pele. - E Villiers passou a mão pelos cabelos ralos com jovialidade fictícia. Owen ainda não chegou?
- Está a mudar de fato.
- Nesse caso vou até lá acima. Calculo que se aproxima a hora do jantar... Oh, já passa! - A esta descoberta, Villiers mostrou-se satisfeito como se recebesse uma dádiva. - A propósito, como é que se governou sozinha esta tarde? - disse, detendo-se à porta. - Foi pouco louvável da nossa parte não a termos acompanhado.
- Que ideia! Vocês estavam com vontade de ficar. E creio que posso bem tomar conta de mim.
- Sim; talvez... - Riu-se e acrescentou: - Mas devia ver todos aqueles indivíduos reunidos no quarto, a discutir e a gesticular, enquanto o toureiro os ouvia reclinado no leito, tal uma Vénus escutando os seus apaixonados.
- Ainda bem que não vi - redarguiu Kate. Villiers soltou uma risadinha e desapareceu.
Kate sentou-se, trémula de cólera, indignada. Amoral! Como podia alguém ser amoral ou imoral quando a própria alma se revolta! Como podia ser como esses americanos que se deleitavam com as coisas mais horrorosas! Nesse momento, tanto Owen como Villiers lhe pareciam semelhantes às aves que se alimentam de carne putrefacta.
Por outro lado, percebia que ambos a detestavam. Tudo decorria bem enquanto os acompanhava, mas desde o momento que tomasse posição contra eles odiavam-na automaticamente pelo simples facto de ser mulher. Inspirava-lhes aversão a sua feminilidade.
E isso no México, com toda aquela sordidez latente, custava-lhe deveras a suportar.
Dedicava amizade a Owen, mas como lhe seria possível respeitá-lo? Tão vazio, sempre à espera de sensações novas que o enchessem! Havia nele o medo desesperado, e bem americano, de não ter vivido realmente, de lhe haver escapado qualquer coisa, e essa impressão fazia-o correr para todos os ajuntamentos de povo que lobrigava na rua. E então, atirando para longe toda a sua poesia e filosofia juntamente com a ponta do cigarro, aí ficava de pescoço estendido, esforçando-se por ver. Fosse o que fosse, tinha de ver. Não queria perder nada. Depois de olhar intensamente para qualquer velha andrajosa atropelada por um carro e que jazia no chão coberta de sangue, voltava junto de Kate, pálido, enjoado, nervoso, e no entanto satisfeito porque presenciara a cena. Aquilo fazia parte da Vida!
"Dou graças a Deus por não ser Argos! - dizia Kate. - Há momentos em que chego a pensar que dois olhos até são de mais. Eu não me comprazo na contemplação de acidentes da rua..."
Ao jantar, tentaram conversar de assuntos mais agradáveis do que touradas. Villiers apresentava-se impecável no traje e nas maneiras, no entanto Kate percebeu que no fundo se ria dela por não haver suportado as cenas dessa tarde. Ele estava com olheiras, mas "vivera".
A explosão produziu-se à sobremesa, quando entraram o polaco e o espanhol que falava inglês. O polaco tinha um aspecto sujo e doentio. Kate ouviu-o dizer a Owen, o qual se levantara com uma afabilidade automática:
- Lembrámo-nos de vir jantar aqui. Então como vai isso?
Kate sentiu-se arrepiada. Um instante depois, aquela mesma voz, que falava tantas línguas de modo tão vulgar, dirigia-se-lhecom a maior familiaridade:
- Ah, senhora Leslie, perdeu a melhor parte da tourada! Não viu o mais divertido. Imagine que...
A cólera invadiu Kate. De olhos fulgurantes, a irlandesa ergueu-se da cadeira e fitou o homem postado atrás dela:
- Muito obrigada, mas não preciso de descrições. Não quero que fale comigo. Tenho pouca vontade de o conhecer.
Tornou a sentar-se e tirou um tabaibo do fruteiro.
O polaco mudou de cor, ficou mudo por um momento.
- Está bem! - exclamou por fim, virando-se para o espanhol que falava inglês.
- Até logo - disse Owen apressadamente, e voltou para o seu lugar junto de Kate.
Os dois recém-vindos instalaram-se noutra mesa. Kate comeu em silêncio o fruto do cacto e esperou pelo café. Já não estava irritada, recuperara toda a calma. O próprio Villiers escondia sob uma aparência de impassibilidade o prazer de uma nova sensação.
Servido o café, Kate olhou para os dois homens da outra mesa e em seguida para os seus dois companheiros.
- Estou farta de canalha - declarou.
Após o jantar, Kate recolheu ao quarto. Não conseguiu dormir em toda a noite, sentindo os rumores da Cidade do México, depois o silêncio, e em seguida esse terror vago e estranho que não raras vezes surge na escuridão das noites mexicanas. No fundo, detestava aquela terra. Inspirava-lhe medo. Em pleno dia tinha certo encanto, mas à noite vinha à superfície toda a sua hediondez escondida.
De manhã, Owen participou que também não pregara olho.
- Pois eu nunca dormi tão bem desde que cheguei ao México - acudiu Villiers, com o ar triunfante duma ave que descobriu um belo petisco na estrumeira.
- Ora vejam o frágil e moço esteta! - comentou Owen em voz cavernosa.
- A sua fragilidade e o seu esteticismo são para mim maus sinais - disse Kate.
- E a sua juventude também - acrescentou Owen com um risinho abafado.
Villiers, porém, limitou-se a emitir um grunhido de satisfação. A criada de quarto veio anunciar que alguém desejava falar com a senhora Leslie ao telefone. Era a única pessoa que Kate conhecia na cidade e em todo o Distrito Federal: a senhora Norris, viúva de um embaixador inglês que desempenhara essas funções no México trinta anos atrás. Possuía uma casa imponente na aldeia de Tlacolula.
"Sim, sou eu. Como tem passado? Oiça, senhora Leslie, não quer vir hoje tomar chá comigo e ver o meu jardim? Espero a visita de dois amigos, qualquer deles mexicanos: Don Ramon Carrasco e o general Viedma. São muito simpáticos, e Don Ramon é um letrado distinto. Asseguro-lhe que constituem excepção entre os mexicanos. Não quer vir com o seu primo? Dar-me-ia grande prazer..."
Kate lembrou-se do general. Era sensivelmente mais baixo do que ela. Erecto, ágil, com qualquer coisa de pássaro, olhos oblíquos, sobrancelhas arqueadas, barba à Napoleão iII. Rosto com algo de chinês, sem que pertencesse ao tipo asiático. Homem de ar ausente e no entanto vigilante, verdadeiro índio, falando o inglês de Oxford numa voz baixa e musical, de entoações extraordinariamente suaves. Mas aqueles olhos negros, inumanos!
Até esse instante, Kate não conseguira evocar a sua imagem. Agora via-o com toda a clareza. Era índio, pura e simplesmente. Sabia que no México existiam mais generais que soldados. NoPulIman que a trouxera de El Paso vinham três generais. Dois eram mais ou menos educados, e o terceiro, com tipo de camponês índio, viajava com uma mestiça de cabelos encarapinhados que parecia haver caído dentro dum saco de farinha, de tal maneira tinha as faces caiadas de pó-de-arroz e a gola do vestido salpicada de branco. Nem esse general nem a mulher haviam jamais entrado numPulIman. No entanto, o homem era mais esperto do que ela. Seguiu Owen à sala de fumo e pôs-se a observar com os seus olhinhos perspicazes como tudo funcionava. Depressa compreendeu, e ficou apto a servir-se do lavatório como qualquer pessoa. Mas a pobre da mestiça, quando desejou ir à retrete das senhoras, extraviou-se no corredor e gemeu em voz alta: No sé adonde! No sé adonde! - até que o general mandou um criado acompanhá-la.
Kate condoeu-se ao ver o general e a mulher pagarem quinze pesos por uma refeição de galinha, espargos e doce, no vagão-restaurante, quando, na estação, poderiam obter coisa melhor e mais mexicana apenas por um peso e meio cada um. E o povo descalço vociferava na plataforma, enquanto o general, que era da sua igualha, chupava pomposamente os seus espargos do outro lado da vidraça. Mas é assim que eles salvam o povo no México, e em qualquer outra parte. Alguns indivíduos tenazes lutam por sair da ralé e salvarem-se a si próprios. Quem paga os espargos, o doce e o pó-de-arroz ninguém o pergunta porque já todos sabem.
E isto aplica-se em especial aos generais mexicanos, classe que por via de regra se deve evitar o mais possível.
Kate não ignorava estes factos e, portanto, pouco lhe interessavam mexicanos de altas patentes. Há muitas coisas no mundo a que desejaríamos fugir como dos piolhos que fervilham na multidão pouco limpa.
Como já fosse tarde, Owen e Kate tomaram um táxi para os levar a Tlacolula. Percorreram um longo caminho através dos arrabaldes mais asquerosos da cidade e depois seguiram pela estrada que ia ter ao vale. Brilhava o sol de Abril, mas cumulavam-se nuvens por cima do local onde deviam estar situados os vulcões. O vale estendia até essas colinas sombrias o seu leito árido, seco - excepto nos pontos onde haviam levado água para regar alguma cultura. O solo tinha aspecto estranho, velho e enegrecido. As árvores, muito altas, mostravam-se quase desguarnecidas de folhagem. Os edifícios ou eram novos e exóticos como o Country Club ou meio arruinados, com o estuque a desfazer-se.
com velocidade de comboio deslizavam carros eléctricos amarelos em direcção a Xochimilco ou Tlalpam. A estrada de asfalto seguia ao longo dos carris e nela corriam incríveis autocarros Ford, desmantelados, cheios de indígenas de pele muito escura, com fatos de algodão enxovalhado e grandes chapéus de palha. Na berma poeirenta do caminho, sob as árvores, iam burricos carregados de enormes fardos, conduzidos por homens de rosto bronzeado e pernas trigueiras ao léu. Era uma corrente tripla: eléctricos barulhentos, automóveis a chocalhar e indivíduos de aparência extravagante com burros pela arreata.
Aqui e ali brotavam flores, pondo uma nota clorida nas casas em ruínas. Lavavam trapos num riacho mulheres de braços morenos e fortes. Um homem a cavalo atravessou a estrada na direcção dos rebanhos que pastavam no prado. Mais além, verdejavam campos de milho. E os pilares que marcam as condutas de água desfilavam um a um...
O automóvel passou no largo arborizado de Tlacolula onde vários indígenas, acocorados no chão, vendiam bolos ou fruta; em seguida entrou numa rua ladeada de muros altos, parando finalmente defronte de um portão gradeado, através do qual se via uma casa amarela e cor-de-rosa saliente no fundo de ciprestes escuros.
Já lá estacionavam dois carros, o que significava a presença doutros visitantes. Owen bateu na sólida porta de fortaleza. Ouviram-se cães a ladrar, até que veio abrir o portão um criado de bigodinho preto.
O pátio interior, quadrado e sombrio, tinha a guarnecê-lo vasos de flores encarnadas e brancas, mas era soturno, como se desprovido de vida desde muitos séculos. Dir-se-ia predominar ali uma força inanimada, incapaz de se consumir, de se libertar e decompor. Havia um tanque de pedra com água imóvel, embora límpida, e as arcadas vermelhas e amarelas, meio imersas na sombra, circundavam o pátio com uma espécie de ameaça bélica. Casa de Conquistadores, solene e maciça, com o seu jardim que dali se entrevia e os seus ciprestes astecas de extraordinária altura. E o silêncio mortal, semelhante à lava negra, porosa e absorvente, silêncio somente perturbado pelo rumor dos eléctricos que passavam atrás do muro espesso.
Kate subiu a escada de pedra e transpôs as portas do terraço. A senhora Norris avançava ao encontro dos convidados.
- Ainda bem que veio, minha cara amiga. Devia telefonar-lhe mais cedo, mas andei atrapalhada por causa do meu coração! O médico bastante insistiu para eu ir viver num sítio menos alto. Respondi-lhe: "Não tenho paciência para isso. Se pretende curar-me, cure-me a dois mil e trezentos metros de altitude, ou então confesse já a sua incompetência." É ridículo isto de mudar de altitude, ora para cima, ora para baixo. Há anos que resido aqui, e recuso-me a ser expedida para Cuernavaca ou para qualquer outro local que me desagrade. E você como tem passado, minha cara amiga?
A própria senhora Norris lembrava um Conquistador, com o seu vestido de seda preta, o xailinho de casimira orlado de franjas e as jóias de esmalte negro. Tinha a tez levemente parda, nariz bicudo, voz lenta e metálica que soava com musicalidade muito peculiar. Dedicava-se à arqueologia, e estudara tanto os vestígios astecas que a sua pele acabara por adquirir um pouco o tom acinzentado das rochas de lava; e dir-se-ia que à força de observar os ídolos astecas o seu rosto de olhos proeminentes e nariz aguçado contraíra a expressão irónica daqueles. Muito culta, inteligente e voluntariosa, passava a vida debruçada sobre as pedras áridas de épocas primitivas, conservando ao mesmo tempo uma noção clara da humanidade e uma visão dos seus semelhantes um tanto fantasista mas cheia de humor.
Desde o primeiro instante, Kate admirara-a pelo seu isolamento e coragem. O mundo compõem-se de uma massa de gente e de raros indivíduos. A senhora Morris era um destes. É certo que representava o seu papel na sociedade, mas isso significava um número extra naquela existência solitária.
- Entrem, entrem! - disse ela, depois de haver retido Kate e Owen no terraço, ornamentado de ídolos negros, cestos indígenas, escudos e frechas.
Já se encontravam visitas na sala anexa ao terraço: um sujeito de barbas brancas e uma dama de cabelos grisalhos trajada de crepe-da-china preto e com o inevitável chapéu desse género de mulheres: uma espécie de tricórnio de cetim guarnecido de penas. Tinha cara infantil, olhos azulados e sotaque americano.
- O juiz Burlap e a esposa.
O terceiro visitante era um homem novo, mui correcto, o major Law, adido militar americano.
As três pessoas olharam para os recém-vindos com atenção e desconfiança. Podiam ser suspeitos... Na verdade, há tanta gente de moral duvidosa no México que, se chega alguém à capital sem ser anunciado, os outros partem sempre do princípio que usa um nome suposto e que vem com maus intuitos.
- Estão há muito tempo no México? - perguntou o juiz. Começara o inquérito policial.
- Não! - respondeu Owen em voz bem soante. - Há cerca de duas semanas.
- São americanos?
- Eu sou. A senhora Leslie é inglesa, ou melhor, irlandesa.
- Já foi ao clube?
- Não - informou Owen. - Os clubes americanos não são muito do meu agrado. Contudo, Garfield Spence forneceu-me uma carta de apresentação.
- Quem? Garfield Spence? - O juiz deu um pulo como se sentisse uma ferroada. - Mas esse homem é bolchevista! Até já foi à Rússia!
- Eu não desgostaria de ir também à Rússia - declarou Owen. - Deve ser o país mais interessante da actualidade.
- Não me disse que havia apreciado muito a China, senhor Rhys? - atalhou a voz clara e musical da senhora Norris.
- Apreciei muitíssimo - confirmou Owen.
- Certamente trouxe de lá belas colecções. Qual era a sua "mania"?
- Talvez o jade.
- Ah, o jade! São adoráveis as paisagens que eles esculpem no jade!
- E a pedra em si! O que me seduzia era a pedra, a sua cor, a sua qualidade... Que maravilha!
- Sim é uma beleza! Diga-me cá, senhora Leslie, o que tem feito desde a última vez que a vi?
, - Fomos a uma tourada, que detestámos - respondeu Kate.
- Eu, pelo menos, detestei. Estivemos sentados nos lugares do "sol", perto da arena, e era uma coisa horrível.
- Acredito. Nunca vi uma tourada no México. Só em Espanha, onde os espectáculos são cheios de colorido. Já assistiu a alguma corrida de touros, major?
- Assisti a várias.
- Sim? Então está muito dentro do assunto. E tem gostado do México, senhora Leslie?
- Nem por isso - respondeu Kate. - Acho-lhe qualquer coisa de perverso.
- De facto... -concordou a senhora Norris. - Ah se conhecesse o México doutros tempos! Era bem diferente antes da revolução. Quais são as últimas notícias, major?
- Mais ou menos as mesmas. Corre o boato de que o exército impedirá o novo presidente de entrar em funções. Mas não se pode ter a certeza.
- Na minha opinião, seria de toda a conveniência deixá-lo em paz - interveio Owen com certo calor. - Parece honesto, e, só porque é do Partido Trabalhista, querem pô-lo fora.
- Oh, senhor Rhys, todos eles fazem lindas promessas antes de agir. Se procedessem como dizem, o México transformava-se num paraíso.
- Em vez de ser um inferno - acrescentou o juiz.
Entrou na sala um casal. Eram ambos americanos, e foram apresentados com o nome de senhor e senhora Henry. O marido tinha aspecto juvenil e cheio de vida.
- Estávamos a falar do novo presidente - disse a senhora Norris.
- Ah sim! - volveu em tom jovial o senhor Henry. - Vim há pouco de Orizaba. Sabem o que se lia em todas as paredes? "Hosana! Hosana! Viva o Jesus Cristo de México, Sócrates Tomás Montes!"
- Parece incrível! - exclamou a dona da casa.
- Hosana! Hosana pelo novo presidente trabalhista! Acho isto magnífico - comentou Henry.
O juiz bateu com a bengala no chão, num acesso de cólera impotente.
- Quando passei por Vera Cruz - disse o major - colaram-me nas malas a seguinte inscrição: La degenerada media clasa será regenerada por mi, Montes.
- Pobre Montes! - exclamou Kate. - Parece que já planeou todo o seu trabalho.
- com efeito! - proferiu a senhora Norris. - Coitado, oxalá assuma o poder e governe com pulso firme este país! Mas não tenho muita esperança.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Kate sentiu esse desespero amargo que experimentam todos os que conhecem bem o México. Desespero amargo e inútil.
- Como é que um homem do Partido Trabalhista, embora culto, pode governar com firmeza o país? - observou o magistrado, cheio de azedume. - Pois se foi eleito aos gritos de "Abaixo a força!" - E o velho tornou a bater com a bengala no chão.
Era outra característica dos habitantes da cidade: um estado de irritação intensa, se bem que às vezes contida, e que chegava quase a ser furiosa.
- Mas não é possível que ele mude um pouco de ideias depois de estar no poder? - perguntou a dona da casa. - Já tem acontecido a tantos presidentes!
- É mesmo provável - disse o moço Henry. - Andará tão ocupado com a salvação de Sócrates Tomás Montes que não disporá de muito tempo para salvar o México.
- Sendo indivíduo perigoso, tornar-se-á num patife - declarou o juiz.
- Pelo que sei dele - interveio Owen - acredito que é sincero e admiro-o.
- Achei engraçado que fosse acolhido em Nova Iorque pela banda dos varredores da rua - disse Kate. - Mandaram a banda
dos varredores recebê-lo ao desembarque.
- Não há dúvida de que o Partido Trabalhista é que escolheu
essa banda - redarguiu o major.
- Um presidente ser recebido pela charanga dos varredores! - tornou Kate. - Até custa a crer.
- No entanto, é assim - replicou o major. - E está certo como símbolo: o trabalhista acolhido pelos trabalhadores.
- O último boato - disse Henry - é que o exército passará todo para o partido do general Angulo no dia 23 deste mês, uma semana antes do início do mandato presidencial.
- Mas como será isso possível, se Montes é tão popular? - observou Kate.
- Popular o Montes! - exclamaram todos em coro. E o juiz acudiu:
-É o homem mais impopular de todo o México. - Não no Partido Trabalhista - protestou Owen. - O Partido Trabalhista! - O juiz parecia um gato assanhado. - Mas não existe semelhante coisa. O que é o Partido Trabalhista no México? Meia dúzia de operários duma ou doutra fábrica, em especial no estado de Vera Cruz. Partido Trabalhista! Já deu tudo o que tinha a dar. Conhecemo-lo bem.
- Isso é verdade - concordou Henry. - Os trabalhistas tentaram tudo o que é possível. Quando eu estava em Orizaba, foram ao Hotel Francia para fuzilar todos os gringos e gachupines. O gerente teve a coragem de lhes fazer uma alocução, e eles seguiram para outro hotel; aí, quando o respectivo gerente apareceu a fim de lhes falar, mataram-no antes que tivesse tempo de proferir uma palavra. É muito estranho, realmente. Se temos de nos apresentar na Câmara Municipal e aparecemos lá com um fato decente, deixam-nos esperar horas seguidas sentados num banco de pau. Mas se surge um varredor ou qualquer indivíduo de calças de cotim ensebadas, então é logo: Buenos dias! Señor! Pase usted! Quiere usted algo? Enquanto nós continuamos ali à espera que nos atendam! É muito estranho.
De irritação, o juiz tremia como se o tomasse um ataque de gota. O grupo calou-se, dominado por essa impressão de fatalidade e desesperança que invade todos os que falam a sério do México. O próprio Owen se conservou silencioso. Também ele passara por Vera Cruz, e ficara espantado quando os carregadores lhe exigiram vinte pesos pelo transporte das malas desde o barco ao comboio. Vinte pesos, o equivalente a dez dólares por dez minutos de trabalho! Mas como Owen tivesse visto darem ordem de prisão ao viajante que o precedia e levarem-no para uma cadeia do México simplesmente porque se recusara a pagar semelhante quantia, a "tarifa legal", achou melhor não dizer nada e satisfazer a importância.
- Um destes dias entrei no Museu Nacional - prosseguiu o major tranquilamente. - Na sala do pátio, onde estão as pedras. Era uma manhã fria, com nortada. Achava-me ali há dez minutos quando alguém me bateu no ombro. Voltei-me e dei com um rústico aperaltado. You "spik" English? Respondi: Yes. Então ele mandou-me tirar o chapéu. Devia tirar o chapéu. Mas porquê? perguntei, e afastei-me para observar os ídolos e as outras peças, a mais feia colecção do Mundo, em meu entender. O homem aproximou-se de novo, desta vez acompanhado do guarda, que tinha, é claro, o boné na cabeça. Começaram a arengar, explicando que era um Museu Nacional e que eu devia descobrir-me perante os monumentos nacionais. Imaginem, descobrir-me perante aquelas pedras imundas! Ri-lhes na cara, enterrei o chapéu até às orelhas e vim-me embora. São absolutamente idiotas estes mexicanos quando lhes dá para o nacionalismo.
- É verdade! - apoiou Henry. - Quando se esquecem da pátria, do México e de tudo o mais, chegam a ser simpáticos. Mas quando se arvoram em nacionalistas... Um sujeito de Mixcoatl contou-me uma história engraçada. Mixcoatl fica na principal das ligações com o Sul e existe ali uma delegação do Partido Trabalhista. Se os indígenas descem dos seus montes bravios, os engajadores do partido não deixam de inquirir: "Então, senhores, não têm nada a contar-nos acerca da sua terra natal? Nenhuma reclamação a fazer?" Os interpelados, naturalmente começam a queixar-se deste e daquele, e o secretário interrompe-os: "Esperem um instante, cavalheiros. Deixem-me telefonar ao governador para lhe dizer tudo isso." Vai ao aparelho, toca, toca... "Ah, é do Palácio? O senhor governador está? Informe-o de que o señor Fulano lhe deseja falar." O índio fica boquiaberto. Aquilo parece milagroso! "Ah, é o senhor governador? bom dia. Como passou? Pode dispensar-me uns minutos? Muito obrigado. Estão aqui uns cavalheiros que vêm de Apaxtle, da montanha. São José Garcia, Jesus Querido... Querem pô-lo ao corrente disto e daquilo. Sim, sim, perfeitamente. Vai providenciar para que se lhes faça justiça e se reponha tudo nos devidos termos? Muitíssimo obrigado. Em nome destes cavalheiros da aldeia de Apaxtle mil agradecimentos!" Os índios pasmam como se o céu se abrisse e lhes aparecesse a Virgem de Guadalupe. Ora o que se passou na realidade? O telefone é simulado, não comunica com coisa nenhuma. Bem imaginado, não acham? Assim é o México.
A esta revelação seguiu-se o silêncio fatal em casos semelhantes.
- Oh! - exclamou Kate -, que patifaria! Mais vale que deixem os índios em paz.
- O México - observou a senhora Morris - não se assemelha a mais nenhum país do Mundo.
Falava, no entanto, com uma voz em que se podia notar certo receio misturado de desânimo.
- Dir-se-ia que desejam trair seja o que for - retorquiu Kate.
- Parece que adoram a fealdade, que pretendem realçar o hediondo. Têm prazer nisso, prazer em conspurcar tudo. É esquisito!
- Também acho - concordou a senhora Norris.
- Realmente - acudiu o juiz - eles procuram transformar o país inteiro em matéria criminal. Não apreciam mais nada. Pouco se importam com a honestidade, a honra, a higiene. Só tratam de acumular mentiras e delitos. O que chamam aqui liberdade é apenas a liberdade de cometer crimes. Eis o que representa o Partido Trabalhista, eis o que eles todos representam. Liberdade de matar, nada mais!
- Admira-me - disse Kate - que os estrangeiros permaneçam cá.
- Criaram os seus interesses - explicou o juiz.
- Contudo, as pessoas dignas já se foram embora - contraveio a senhora Norris. - Quase todas as que tinham para onde ir. Só algumas que se habituaram à terra e a conhecem bem, só essas ficam, por uma espécie de teimosia. Mas sabemos que não há nada a esperar! Sempre que isto muda é para pior. Ah, cá temos Don Ramon e Don Cipriano. Muito gosto em vê-los. Permitam que lhes apresente...
Don Ramon Carrasco era homem de belo semblante, alto e forte. Já não muito novo, usava bigode preto e farto e tinha olhos grandes, de expressão altiva, sob as sobrancelhas traçadas a primor. o general vinha à paisana e parecia mais pequeno ao lado do seu companheiro, embora fosse bem proporcionado e muito vivo.
- Vamos tomar chá - propôs a dona da casa. O major deu qualquer desculpa e despediu-se.
A senhora Norris cingiu o xaile aos ombros e conduziu os convidados, através de um vestíbulo escuro, a um terraço onde as trepadeiras floridas cobriam com profusão os muros baixos. Havia campânulas rubras, aveludadas, como sangue coagulado, cachos de rosas brancas, e tufos de buganvílias de um vermelho de púrpura.
- Que lindo efeito! - exclamou Kate. - E aquelas árvores, ao fundo...
Mas dominava-a uma espécie de terror.
- Sim, é bonito - concordou a senhora Norris, com a satisfação inerente aos proprietários. - Dá-me muito trabalho separá-las umas das outras. - E, sempre de xaile aos ombros, aproximou-se das buganvílias e afastou-as das campainhas rubras arranjando espaço para as rosas brancas.
Owen observou:
- Acho interessante os dois tons de encarnado, juntos.
- Sim? - volveu maquinalmente a senhora Norris, sem fazer grande caso da observação.
O céu por cima deles estava azul, mas no horizonte flutuava uma névoa espessa cor de pérola. As nuvens tinham desaparecido.
- Nunca se vê Popocatepetl nem Ixtaccihuatl - disse Kate, descoroçoada.
- Não nesta época. Mas repare além, atrás das árvores; distingue-se Ajusco.
Kate olhou para a montanha sombria através das árvores escuras e frondosas.
Na varanda do terraço havia objectos astecas, facas de aparência vítrea, ídolos de lava preta acocorados e ameaçadores, e uma estranha bengala de pedra, muito grossa, que Owen levantou; só o tocar-lhe suscitava a ideia de uma arma assassina.
Kate voltou-se para o general que estava perto dela com ar inexpressivo mas atento.
- As coisas astecas causam-me certa opressão...
- São realmente opressivas - respondeu ele, no seu inglês requintado, que no entanto se assemelhava um pouco à fala de um papagaio.
- Não se lhes vislumbra a mínima esperança.
- Talvez os aborígenes nunca a solicitassem - replicou o general, exprimindo-se como um autómato.
- Não é a esperança que nos ajuda a viver? - volveu Kate.
- A si, talvez. Mas não aos astecas nem aos índios desta época.
Falava como se absorto noutros pensamentos, não prestando muita atenção ao que ouvia, nem sequer ao que replicava.
- Que lhes resta então, se não têm esperança? - perguntou Kate.
- Qualquer outra força, talvez - redarquiu ele evasivamente.
- Gostaria de lhes incutir esperança. Se a possuíssem, não seriam tão tristes, e mostrar-se-iam mais limpos...
- Sem dúvida que lhes faria bem - anuiu, sorrindo vagamente. - Mas creio que não são assim tão tristes. Riem muito, até parecem alegres.
- Não - contrapôs Kate. - Oprimem-me, qual se me pesassem no coração. Tornam-me nervosa, fazem-me vontade de me ir embora.
- Do México?
- Sim. Gostaria de ir e nunca, nunca mais voltar. É tão deprimente, tão horrível...
- Experimente ficar mais um tempo. Talvez mude de opinião. Ou talvez não mude... - concluiu de modo incerto.
Kate sentiu que havia nesse homem qualquer coisa que o impelia para ela: uma espécie de anseio, vindo do próprio coração. Como se o coração de Don Cipriano emitisse raios torvos de súplica, de desejo. E isso, que era independente das palavras que proferia, causava-lhe algum susto.
- Tudo a oprime, no México? - acrescentou ele, um tanto receoso mas com uma pontinha de ironia, voltando para Kate um rosto ingénuo e perturbado, em que se notava o peso da idade e das canseiras.
- Quase tudo! Tudo me estarrece. Até os olhos desses homens de chapeirão, a quem chamam peóns. Os seus olhos não se fixam em nada, os desses belos rapazes, que parecem ausentes debaixo dos seus grandes chapéus. Olhos sem centro, sem pupilas; apenas um buraco negro, tal o meio dum sorvedouro.
E, com os seus olhos cinzentos, perplexos, ela fixou os do homenzinho que estava à sua frente - oblíquos, pretos, vigilantes, calculistas. Don Cipriano tinha a expressão constrangida, intrigada, de uma criança. E ao mesmo tempo algo de obstinado e amadurecido, de uma maturidade diabólica, erguendo-se diante dela numa atitude inumana.
- Quer dizer que não somos realmente uma nação, que não temos nada de original senão o assassínio e a morte - comentou ele, de forma conclusiva.
Surpreendida com esta interpretação, Kate replicou:
- Não sei. Disse-lhe apenas a impressão que me produzia.
- É muito perspicaz, senhora Leslie... - Assim falou a voz calma e trocista de alguém que estava atrás de Kate: Don Ramon. E está tudo certo. Quando um mexicano dá um Viva, acaba sempre com um Muera! Quando diz Viva, já tem na ideia a morte de Fulano ou Sicrano. De cada vez que penso nas revoluções mexicanas vejo um esqueleto, à frente da multidão, empunhando uma bandeira preta com Viva la Muerte em grandes letras brancas. Não Viva Cristo Rey, mas Viva Muerte Reina! Vamos! Viva!
Kate voltou-se. Cintilavam os olhos castanhos de Don Ramon, um sorriso sardónico ocultava-se-lhe debaixo do bigode. Instantaneamente, Kate e ele, europeus na essência, se compreenderam um ao outro. Don Ramon ergueu o braço ao último Viva. - Mas não me apetece gritar Viva la Muerte! - disse Kate.
- Só quando for verdadeiramente mexicana - replicou ele, para a arreliar.
- Nunca o poderei ser - declarou Kate com tanta prontidão que o fez rir.
- Estou a ver que proferir Viva la Muerte é pôr o dedo na ferida - disse a senhora Norris, imperturbável. - Mas não vêm tomar chá? Venham.
Foi à frente, tal um Conquistador, com o seu xailinho preto e os cabelos brancos bem alisados, voltando-se para verificar através das lunetas se os outros a seguiam.
- Cá vamos nós - disse Don Ramon em espanhol. Soberbo no seu fato preto, ia atrás dela no terraço estreito, precedendo Kate e o empertigado Don Cipriano, também vestido de preto, o qual se obstinava em estar sempre ao lado da irlandesa.
- Devo chamar-lhe general ou Don Cipriano? - inquiriu Kate, virando-se para ele.
Iluminou-lhe a cara um sorriso rápido, se bem que os olhos se conservassem sérios. Estes fitavam-na, sombrios, penetrantes.
- Como quiser - respondeu o interpelado. - Bem sabe que general é título depreciado no México. Fiquemos em Don Cipriano.
- Eu também prefiro - redarguiu ela. O homem pareceu satisfeito.
A mesa de chá, redonda, ostentava um serviço de prata. Debaixo do bule, igualmente de prata, luzia uma pequenina chama. Viam-se ramos de loendros alvos e cor-de-rosa. De luvas brancas, o criado distribuía as xícaras. A senhora Morris encheu-as com a sua mão, e com a sua mão cortou largas fatias de bolo.
Don Ramon sentou-se à direita da dona da casa, o juiz à esquerda, e Kate ficou entre este e Henry. Todos os convidados se mostravam um tanto nervosos, excepto Don Ramon e o juiz. A senhora Norris nunca punha as visitas muito à vontade: sempre lhes dava a impressão de estarem cativas e de ser ela a carcereira. Fazia-o assim por gosto e presidia à mesa imponentemente com o seu ar ao mesmo tempo de rainha e de arqueóloga. Notava-se que Don Ramon a distinguia bastante e que ele era, por seu turno, a pessoa mais importante da reunião. Quanto a Cipriano, mantinha-se calado e obediente, e de certo modo distante, embora revelasse grande à-vontade e profundo conhecimento das boas maneiras. De vez em quando relanceava Kate.
Ela era uma bonita mulher, de beleza pouco convencional, e plenamente desabrochada; na semana seguinte atingiria os quarenta anos. Habituada a frequentar meios muito diferentes, observava as pessoas com o prazer desinteressado de quem lê as páginas de um romance. Jamais fazia parte de uma sociedade, fosse qual fosse: era muito irlandesa, muito sensata para isso.
- Pois claro que ninguém vive sem esperança - dizia a senhora Norris a Don Ramon. - Nem que seja só a esperança de possuir um real para comprar um litro de pulque.
- Ah, senhora Norris! - replicou ele, na sua voz profunda de violoncelo. - Se o pulque representa a suprema felicidade!
- Então somos afortunados, visto podermos adquirir esse paraíso em troca de um tostão.
- Eis un bon mot, señora mia - retorquiu Don Ramon, rindo-se e bebendo o chá.
- Não querem experimentar estes bolinhos regionais? - perguntou a anfitriã aos seus convivas. - São de sésamo, e feitos pela minha cozinheira, que fica muito desvanecida nos seus sentimentos nacionalistas quando lhe apreciam a obra. Prove um, senhora Leslie.
- vou provar. Devemos dizer "abre-te, sésamo"?
- Se quiserem...
- Deseja um? - E Kate apresentou os bolos ao juiz Burlap.
- Não - respondeu ele. virando a cara como se lhe oferecessem uma travessa de mexicanos e deixando Kate com o prato suspenso.
A senhora Norris interveio:
- O juiz Burlap tem medo dos grãos de sésamo, prefere não abrir a caverna. - E passou o prato a Cipriano, que observava com os seus olhos negros e cintilantes os modos indelicados do velho.
- Viu noExcelsior o artigo de Willis Rice Hope? - inquiriu o juiz de súbito, interpelando a dona da casa.
- Vi, e achei muito acertado.
- O mais acertado que se tem escrito acerca dessas leis agrícolas. Rice Hope veio falar comigo e contei-lhe algumas coisas, mas ele diz tudo no artigo, sem omitir o mínimo pormenor.
- Realmente... - volveu a senhora Norris, com certa frieza. - Pena é que o dizer tudo não remedeie nada.
- Mas o mal provém de afirmações erradas - retorquiu o juiz. - Indivíduos como esse tal Garfield Spence vêm para aqui fazer discursos verdadeiramente criminosos. A cidade está cheia de socialistas e de sinverguenzas de Nova Iorque.
A senhora Norris ajustou a mola das lunetas.
- Felizmente, não aparecem em Tlacolula; por isso não precisamos de nos preocupar com eles. Deseja mais chá, senhor Henry?
- Sabe ler espanhol? - perguntou o juiz a Owen, o qual, com os seus óculos de tartaruga, parecia produzir no irascível compatriota o efeito que um trapo vermelho produz nos touros.
- Não - respondeu Owen como se desfechasse um tiro. A senhora Norris tornou a ajustar as lunetas.
- É um alívio encontrar alguém que não conhece o espanhol e que o confessa sem vergonha. Meu pai obrigou-nos a aprender quatro línguas antes de termos doze anos e nenhum de nós conseguiu jamais curar-se disso por completo. A propósito, Ainda se ressente quando anda, senhor juiz? Soube do que me aconteceu ao tornozelo?
- Soubemos, sim - exclamou a senhora Burlap, sentindo-se enfim em terreno seguro. - Tentei tudo para a visitar e ter notícias suas. Ficámos tão aflitos!
- Que sucedeu? - perguntou Kate.
- Escorreguei estupidamente numa casca de banana, na esquina de San Juan de Latran e de Madero, e estatelei-me no chão. Quando me levantei o meu primeiro gesto foi atirar a casca para a valeta. E talvez não acreditem, mas a súcia de mexi... - A senhora Norris emendou imediatamente: - A gente que ali se encontrava desatou a rir quando me viu proceder assim. Todos acharam muito engraçado.
- Naturalmente estavam à espera de ver o transeunte seguinte escorregar e cair - comentou o juiz.
- Ninguém veio em seu auxílio? - indagou Kate.
- Não, não! Nesta terra, quando se assiste a um acidente, nunca se acode à vítima. Bastaria alguém tocar-lhe para que o prendessem como responsável do desastre.
- É a lei - disse o juiz. - Ninguém lhe pode tocar antes da chegada da polícia, senão é detido por cumplicidade. Deixá-lo estirado no chão, a esvair-se em sangue, eis a ordem.
- É verdade? - perguntou Kate a Don Ramon.
- Sim, não se pode mexer num ferido.
- Que horror! - exclamou Kate.
- Há muitas coisas horrorosas neste país - replicou o juiz e a senhora terá a confirmação do que eu digo se se demorar aqui algum tempo. Quase morria por causa de uma casca de banana; estive deitado dias e dias num quarto escuro, entre a vida e a morte, e fiquei estropiado para sempre.
- Então magoou-se muito na queda! - observou Kate.
- Se me magoei? Quebrei a anca, nem mais nem menos. Fora realmente uma queda desastrosa, e o homem devia ter sofrido muito.
- Não se pode querer mal ao México por causa de uma casca de banana - interveio Owen. - Também eu escorreguei numa casca na Lexington Avenue, mas tive a sorte de cair sobre uma parte estofada...
- Sobre a cabeça? - disse Henry.
- Não, não foi bem aí - respondeu Owen, rindo. - No outro extremo.
- Temos de acrescentar as cascas de banana à lista dos perigos públicos - declarou o moço Henry. - Sou americano, e talvez ainda me torne bolchevista para salvar os meus pesos, de modo que estou no direito de repetir o que ouvi ontem um sujeito dizer: "No mundo actual só existem dois grandes flagelos, o americanismo e o bolchevismo; e o americanismo é o pior, porque se o bolchevismo nos destrói o lar, o negócio ou o cérebro, o americanismo destrói-nos a alma."
- Quem foi o sujeito? - rosnou o juiz.
- Não me lembro - respondeu Henry, malicioso.
- Gostaria de saber - proferiu lentamente a senhora Norris - o que pretendia ele significar com americanismo. - Não definiu a palavra. Culto do dólar suponho eu.
- Pelo que me foi dado observar até hoje - replicou a senhora Norris -, o culto do dólar é muito mais intenso nos países que não possuem dólares do que nos Estados Unidos.
A Kate afigurava-se que a mesa era um disco de aço ao qual todos eles estavam, como vítimas, presos e magnetizados.
- Onde é o seu jardim, senhora Norris? - perguntou ela.
com um suspiro de alívio, ergueram-se de tropel e foram para o terraço. O juiz coxeava, atrás, e Kate viu-se obrigada a afrouxar o passo a fim de o acompanhar.
Dali passaram ao terraço mais pequeno.
- Não acha esquisita a matéria de que isto é feito? - disse Kate, pegando numa das facas de pedra dos astecas, que estava na balaustrada. - Será uma espécie de jade?
- Jade! - resmungou o juiz. - O jade é verde e não preto. Trata-se mas é de obsidiana.
- O jade pode ser preto - insistiu Kate. - Possuo uma linda tartaruga preta, obra chinesa, feita dessa pedra.
- Não pode ser. O jade é verde-claro.
- Até existe branco! Tenho a certeza.
Calou-se o juiz por momentos, furioso. Depois replicou:
- O jade é verde-claro.
Owen, que tinha ouvidos apurados, escutara parte da conversa.
- Que dizias?
- Que há-de haver outros tons de jade, além do verde.
- Se há! Todas as cores possíveis e imagináveis: branco, azul, cor-de-rosa...
- E preto?
- Também. Até muito vulgar. Devias ver a minha colecção. A mais bela gama de coloridos! Jade só verde! Ah, ah, ah! - Ria alto, num riso teatral.
Alcançaram os degraus de pedra, gastos e polidos, tão polidos que pareciam dum negro brilhante.
- Dê-me o seu braço para me ajudar a descer - pediu o juiz ao moço Henry. - Esta escada é uma armadilha perigosa.
A senhora Norris ouviu a observação do magistrado mas não fez comentários. Limitou-se a aconchegar a mola das lunetas no nariz aguçado.
Em baixo, no corredor abobadado, Don Ramon e o general despediram-se. Os outros seguiram para o jardim.
Descia a tarde. Avultavam, de um lado, as árvores enormes e sombrias, e do outro a casa vermelha e amarela. Os cardeais exibiam flores escarlates de bocas abertas e línguas cerdosas. Algumas roseiras espalhavam pétalas inodoras no crepúsculo, e cravos isolados baloiçavam-se nas hastes débeis. De um arbusto denso pendiam as misteriosas trombetas brancas, grandes e silenciosas como fantasmas de som. E o perfume das daturas caía espesso e tranquilo nos passeios do jardim.
A senhora Burlap agarrara-se a Kate e, com o seu ar infantil, fazia-lhe um interrogatório em forma.
- Em que hotel se hospedaram? Kate informou-a.
- Não conheço. Onde é?
- Na Avenida del Peru. É um hotelzinho italiano.
- Tencionam demorar-se?
- Não sabemos ainda.
- O senhor Rhys é jornalista?
- Não. É poeta.
- Vive da poesia?
- Não pensa nisso...
Era uma espécie de serviço secreto de investigação a que estavam submetidos os estrangeiros suspeitos nessa capital de gente suspeita.
A senhora Norris parou junto de um arco todo coberto de florinhas brancas.
Já volteavam pirilampos, era quase noite.
- Então adeus, senhora Morris. Venha um destes dias almoçar connosco. Não direi à nossa casa, mas a qualquer sítio da cidade, que seja do seu agrado.
- Obrigada, muitíssimo obrigada. Havemos de combinar.
A senhora Norris estava numa atitude rígida, quase majestosa, de uma majestade asteca.
Por fim todos se despediram e os portões fecharam-se atrás dos convidados.
- Como é que vieram? - perguntou, impertinente, a senhora Burlap.
- Num velho táxi Ford... Mas onde se teria metido? - disse Kate perscrutando a obscuridade. Não via nenhum carro debaixo das árvores do lado oposto, onde ele devia estar.
- É esquisito - comentou Owen, desaparecendo na sombra da noite.
- Para que lado vão? - inquiriu a senhora Burlap.
- Para o Zócalo - respondeu Kate.
- Nós vamos de eléctrico, para a banda contrária.
O juiz saltitava ao longo do passeio como um gato sobre brasas. Do outro lado da estrada havia grupos de indígenas, de chapéus enormes e fatos de algodão branco. Tinham bebido pulque e o seu aspecto bem o revelava. Perto deles via-se outro grupo, este formado por peóns em traje citadino.
- Ei-los! - bradou o juiz, agitando a bengala num ímpeto vingativo. - Os dois géneros, acolá!
- Que géneros? - repetiu Kate, admirada.
- Os peóns e os obreros. Todos bêbados. - E voltou as costas à irlandesa, numa convulsão de puro ódio e de raiva frustrada.
Ao mesmo tempo distinguiram as luzes dum eléctrico que corria como um dragão na estrada tenebrosa, entre os muros altos e as árvores esguias.
- Cá está o nosso carro! - exclamou o juiz, apressando-se ao seu encontro, com a ajuda da bengala.
- Dirijam-se para o outro lado! - aconselhou a dama de cara de nené e tricórnio de cetim, começando também a agitar-se como se nadasse em seco.
O casal precipitou-se, manquejando, para o carro que vinha todo iluminado, e tomou lugar na primeira classe. Os indígenas amontoaram-se na segunda.
Partiu o tren sem que os Burlaps tivessem sequer dado boa-noite. Estavam aterrados com a ideia de travar conhecimento com alguém que não fosse do seu nível: alguém com quem não valesse a pena relacionarem-se.
- Que mulherzinha vulgar! - disse Kate em voz alta, depois de o eléctrico partir. - Que par tão mal-educado!
Estava um tanto assustada com os indígenas que esperavam do outro lado, de mais a mais por os saber um pouco ébrios. Mais forte, porém, que o seu medo era a simpatia que eles lhe inspiravam, esses homens silenciosos de face escura, com chapéu enorme de palha e camisa rústica de linho. Ao menos tinham sangue nas veias
- verdadeiras colunas de sangue negro. Ao passo que os outros, aquele azedo casal duma palidez repugnante...
Recordou-se da lenda contada pelos indígenas. Quando Deus criou os primeiros homens, fê-los de barro e pô-los no forno a cozer. Saíram pretos. Cozeram de mais, disse o Senhor. De maneira que arranjou outra fornada. Os desta vieram brancos. Cozeram pouco, comentou Ele. Assim, experimentou terceira vez. Ficaram de um castanho dourado. Estão na conta, declarou o Senhor.
O casal Burlap, aquela mulher de rosto de criança e aquele juiz coxo, não devia ter cozido o suficiente, até talvez saísse cru.
Kate olhou para as caras trigueiras iluminadas pelo lampião. Eram assustadoras. Dir-se-ia que a ameaçavam. Ela, porém, sentiu que essas ao menos estavam bem cozidas, duma cor satisfatória.
Reapareceu o táxi, com Owen debruçado à portinhola.
- Encontrei o homem numa pulqueria, mas julgo que não está inteiramente bêbado. Achas bem que nos arrisquemos? pulqueria chama-se La Flor de un Dia - concluiu Owen, com um riso forçado.
Kate, indecisa, olhou para o homem.
- Pois sim - respondeu.
O táxi partiu a uma velocidade diabólica.
- Dize-lhe que não vá tão depressa.
- Não sei como se traduz isso - retorquiu Owen. E gritou em inglês ao motorista: - Eia! Mais devagar! Não vá tão depressa!
- No presto. Troppo presto. Vá troppo presto! - acrescentou Kate.
O motorista relanceou-os com um olhar em que se notava a mais profunda incompreensão. E carregou no acelerador.
- Ainda vai com maior velocidade - disse Owen, rindo nervosamente.
- Deixá-lo! - volveu Kate, desalentada.
O homem conduzia como um louco, mas também com a sorte dos loucos. Não havia nada a fazer.
- Que horrível chá! - exclamou Owen.
- Horrível - confirmou Kate.
O melhor da literatura para todos os gostos e idades