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Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
CONTINUA
Certa manhã, Kate acordou com quarenta anos. Não ocultou o facto a si mesma mas escondeu-o dos outros.
Uma coisa séria, realmente. Quarenta anos! Era transpor a linha de demarcação. Dum lado, a juventude, a espontaneidade e a alegria. Do outro, algo de muito diferente: reserva, responsabilidade, um vago distanciamento do prazer.
Era viúva, e encontrava-se agora muito sozinha. Como casara nova, tinha dois filhos já crescidos: um rapaz de vinte e um anos, e uma rapariga de dezanove. Ambos viviam a maior parte do tempo com o pai, de quem ela se divorciara dez anos antes para desposar James Joachim Leslie. Este falecera, e assim terminou a primeira fase da existência de Kate.
Subiu ao terraço do hotel. A manhã estava linda e, sob o céu azul e distante, avistava-se Popocatepetl, tal um gigante de barrete de neve guarnecido com um penacho de fumo.
Ixtaccihuatl, a Mulher Branca, brilhava e parecia muito próxima; a outra montanha, Popocatepetl, ficava mais longe e, na sombra, o seu cone perfeito iluminava-se aqui e ali com a cintilação da neve. Ali estavam os dois monstros, de vigia a esse berço sangrento da humanidade que é o Vale do México. Imponentes, as montanhas coroadas de branco dir-se-iam emitir uma espécie de ribombo, muito profundo para ser audível mas que no entanto fazia vibrar o sangue, um som de terror. Não havia nem exaltação nem êxtase, como nos cimos gelados da Europa; antes um peso que dobrava os ombros, que oprimia a terra, e um murmúrio semelhante ao rosnar de dois leões atentos.
À superfície, a Cidade do México podia ser boa, com os seus arredores povoados de vivendas, suas belas avenidas, os seus milhares de automóveis, as suas partidas de ténis e de bridge. O sol brilhava todos os dias, e as árvores decoravam-se de flores luxuriantes. Era uma festa permanente.
Assim parecia, até que nos encontrássemos sozinhos, enfrentando a cidade. Então o murmúrio soava como o grito surdo de um jaguar furioso que a noite manchasse de preto. Sentia-se o espírito oprimido pela força colossal do dragão asteca. O dragão dos Toltecas enrolava-se-nos à volta, sufocava-nos a alma, e a claridade do sol obscurecia-se com baforadas de sangue, de um sangue enraivecido e impotente, onde as flores pareciam mergulhar as raízes. O ambiente era cruel, destrutivo.
Kate compreendia muito bem o mexicano que lhe dissera: El grito mexicano es siempre el Grito del Ódio. Como observara Don Ramon, as famosas revoluções principiavam com vivas mas acabavam sempre Muera! Morte a este, morte àquele: morte, morte, morte, insistente como os sacrifícios astecas, algo de horrendo e de macabro.
Por que motivo fora ela para esse planalto da morte? Sendo mulher, sofria mais ainda que os homens, e os homens, ao cabo, não deixavam de sucumbir. Outrora o México elaborara um ritual de morte; ao presente, a morte aí continuava, sórdida e vulgar, já sem a grandeza do seu próprio mistério.
Sentou-se no peitoril do terraço. A rua, em baixo, era como um abismo negro, mas em volta havia o panorama desigual dos telhados, em que se estendiam fios telefónicos, cortados pela brusca depressão dos pátios escuros e floridos.
Precisamente por trás dela patenteava-se a igreja enorme e antiga; a sua cúpula assemelhava-se a um animal agachado, e nas torres redondas brilhavam telhas brancas e amarelas de encontro ao azul intenso do céu. Nos terraços, iam e vinham mulheres indígenas, de saias compridas, pondo roupa a secar nas cordas ou estendendo-a no chão. Empoleiravam-se galinhas aqui e ali. Às vezes, pairando, aves enormes arrastavam a sombra atrás de si. Não muito longe ficava a catedral com as suas torres pardas, e o som dos sinos, de tão brando, tornava-se quase inaudível no ar.
Podia ter sido tudo tão alegre - allegro, allegretto! - naquela atmosfera clara, sobre aqueles terraços antigos! Mas não. Sentia-se sempre o sussurro oculto, essa negra fatalidade rastejando como uma serpente.
Não valia a pena, a Kate, interrogar-se sobre as razões que a levaram acolá. Quer na Inglaterra ou na Irlanda, na Europa, ela teria escutado o Consummatum est do seu próprio espírito. Acabara-se, numa espécie de agonia. No entanto, este continente, carregado de sombras mortais, parecia-lhe superior às suas forças. Tinha quarenta anos. Findara a primeira metade da sua vida. As páginas risonhas, com as suas flores, os seus idílios, acabavam nos passos da cruz que conduzem ao túmulo. Faltava-lhe agora voltar a folha, e o verso apresentava-se torvo, torvo e vazio.
A primeira metade da existência fora escrita no sedoso e branco velino da esperança, com letras capitais iluminadas sobre fundo de oiro. Mas o brilho empalidecera de um passo da cruz para outro, e a derradeira estação figurava a sepultura.
Voltava a última página clara, surgia em sua frente a primeira página escura. Como seria possível escreverem papel tão sombrio?
Desceu ao interior da casa, porque havia prometido ir ver os frescos da Universidade. Owen, Villiers e o moço mexicano estavam à sua espera. E partiram através das ruas agitadas, onde corriam velozes os automóveis e as camionetas e onde os indígenas, de fato de algodão branco, sandálias e chapéu enorme, se atardavam como fantasmas entre a gente da burguesia, senhoras novas vestidas de crepe-da-china cor-de-rosa e de saltos altos e homens de sapatos rasos e palhinhas americanos. Contínua azáfama sob o fulgor do sol.
Atravessando a larga praça, sem sombra, da catedral, em que se encurralavam os veículos, e deslizando por várias artérias do centro, Kate demorava-se a observar as coisas espalhadas no chão e destinadas à venda: brinquedos, cabaças pintadas com uma espécie de laca, as últimas novidades da Alemanha, e grande profusão de frutas e de flores. Os nativos acocoravam-se ao lado das suas mercadorias, silenciosos - belas figuras de homem de olhar vago e falas doces, a moverem com os dedos sensíveis e trigueiros os objectos que haviam amorosamente feito e pintado. Às vezes soltavam um apelo suave e desanimado: estranhas vozes meigas e profundas, embora másculas. Ou então eram mulheres, pequenas e vivas, que olhavam num relance breve das pupilas negras e falavam em voz rápida e cariciosa. Havia um homem que empilhava laranjas em lindas pirâmides, depois de ter esfregado cada fruto, vagarosamente, com um lenço. Quanta ternura nesse sangue forte, no gorjear de pássaro das mulheres! E ao mesmo tempo a roupa enxovalhada, e o pouco asseio do corpo, e os piolhos, e sempre aquele olhar profundo e sombrio, tão atraente e tão assustador...
Kate já vira os vendedores de fruta, italianos, que poliam com vigor as suas laranjas na manga do casaco e arranjavam também pirâmides de duzentas ou trezentas cada uma. Estranho labor de seres varonis, fortes e belos. Mas dir-se-ia que eles preferem estas tarefas pueris.
A Universidade- era um edifício de estilo espanhol construído expressamente para aquele fim, havendo sido a decoração confiada a artistas jovens. Desde as revoluções que a autoridade e tradição jamais foram tão relegadas como no campo da ciência e da arte mexicana. A ciência e arte são o desporto da mocidade. Avante, rapazes!
E os rapazes avançaram. No entanto, o único artista de valor já não era rapaz e fizera longo aprendizado na Europa.
Kate vira reproduções dalguns frescos de Ribera. Agora apreciava os originais nos claustros da Universidade. Eram interessantes; o homem sabia do seu ofício.
Mas a inspiração provinha do ódio latente no artista. Em muitas pinturas de índios notava-se a sua simpatia por estes, mas sempre num aspecto idealista e social. Nunca o impulso espontâneo que vem do sangue. Esses índios constituíam o símbolo do socialismo moderno, figuras patéticas das vítimas da indústria actual e do capitalismo. Eis o que representavam: símbolos da cansada literatura socialista e anarquista.
Kate lembrou-se do homem que ela vira meia hora antes a polir laranjas: a-sua beleza característica, certa intensidade física, o forte poder do sangue, e um abandono, uma profunda descrença fatal e demoníaca. Não o poderiam salvar nem toda a liberdade, nem todo o progresso, nem, numa palavra, todo o socialismo do Mundo. Pelo contrário, tudo concorreria para a sua perda.
Nos corredores da Universidade circulavam raparigas de cabelos curtos e camisolas masculinas, de queixo erguido e esse ardor deliberado que é típico da juventude de hoje. Muito conscientes da sua juventude e do seu ardor. E muito americanas. Cruzavam-se com elas professores amáveis, novos e aparentemente inofensivos.
Os artistas estavam a trabalhar nos frescos e apresentaram-nos a Kate e a Owen. Eram homens, ou melhor, rapazes, cuja única preocupação parecia ser o desejo de épater lê bourgeois. E Kate sentia-se tão farta de épateurs como de burgueses. Uns e outros enchiam-na de tédio.
O grupo passou da Universidade para o velho convento jesuíta, agora utilizado como liceu. Aí existiam mais frescos.
Eram doutro pintor. Composições tão grosseiras e tão feias que chegavam a ser repelentes. Tinham sido pintadas com o intuito de impressionar, mas talvez esse mesmo propósito as impedisse de atingir o fim em vista. Caricaturas do Capitalista e do Padre, da Mulher Rica e de Mamon, representadas em tamanho natural e nas cores mais berrantes, ornamentavam os claustros desse casarão antigo onde se educa a gente moça. Para alguém com um pouco de bom senso aquilo significava um ultraje.
- é extraordinário! - exclamou Owen.
Sentia-se, na verdade, horrorizado, mas, da mesma forma que na corrida de touros, experimentava certo prazer doentio. Parecia-lhe uma ideia insólita aquela de ornamentar assim os edifícios públicos.
O rapaz mexicano que os acompanhava era professor da Universidade. Teria vinte e sete ou vinte e oito anos, escrevia versos
- inevitavelmente sentimentais -, ocupara um cargo governamental e até fora já deputado. Agora aspirava a ir para Nova Iorque. Havia nele um não sei quê de puro, afável e corajoso que não desagradava a Kate. Ria com sinceridade e não era nada estúpido. Isto enquanto não debatia as ideias fixas do socialismo, da política, da pátria, porque então as suas opiniões surgiam como bonecos duma caixa de molas e tornavam-se enfadonhas.
- Ah, não! - confessou Kate diante das caricaturas. - É feio de mais. Nem chega a atingir o seu propósito.
- Mas pretendem mesmo ser feias, estas pinturas - replicou o moço Garcia. - E têm de sê-lo, não é verdade? O capitalismo já por si é feio, e Mamon é horrendo, assim como o sacerdote que estende a mão para se apoderar do dinheiro dos pobres índios. Não acha?
E soltou neste momento um riso antipático.
- No entanto - volveu Kate - isto é excessivamente intencional. Chega a ser deturpação. Não tem nada de arte.
- Não a acha verdadeira? - perguntou Garcia, designando a figura horrível duma mulher gorda de vestido curto, ancas e seios protuberantes, que ia andando sobre a cara dos pobres. - Não está parecida?
- Parecida com quem? - redarguiu Kate. - Aquilo aborrece-me. É preciso não exagerar.
- Não no México - asseverou o professor, enquanto uma onda de sangue lhe ruborizava as faces cheias. - No México não se pode deixar de ser exagerado. As coisas correm mal. Talvez isso seja possível nos outros países. Mas aqui é tudo tão mau que não se consegue ser humano. Temos de ser mexicanos, pura e simplesmente. Não há outra solução. Torna-se forçoso detestar o capitalista, aliás ninguém poderia viver. Nenhum de nós. Mexicano e humano são coisas contraditórias. Deve haver um socialista mexicano e um capitalista mexicano e odiarem-se um ao outro. Que se há-de fazer? Detestamos o capitalista porque ele arruina o país e o povo.
- E quanto - atalhou Kate - aos doze milhões de pobres, índios na maior parte, de que fala Montes? Por mais que façam, não os enriquecerão a todos. E eles nem compreendem as próprias palavras "capital" e "socialismo". São o verdadeiro México e ninguém os menciona senão para os apresentar como um casus belli. Humanamente não existem para vós outros.
- Humanamente nem podem existir, porque são muito ignorantes - declarou Garcia. - Mas, depois de destruirmos todos os capitalistas, então...
- Encontrareis quem por sua vez vos destrua - concluiu Kate. - Não, não gosto disto; não representais o México, nem sequer sois realmente mexicanos. Não passais de semiespanhóis com ideias europeizadas; quereis manter as vossas teorias e nada mais. Não tendes nenhuma compaixão. Falta-vos a bondade.
O rapaz escutava, arregalando os olhos e empalidecendo. Por fim encolheu os ombros e estendeu as mãos num falso gesto meridional.
- Será crível? - redarguiu irónico e impertinente. - Deve estar muito bem informada. Em geral os estrangeiros sabem tudo a respeito do México.
E terminou com um risinho cacarejado.
- Sei o que sinto - afirmou Kate. - E agora desejo um táxi a fim de ir para casa. Não quero ver mais pinturas feias e idiotas.
Voltou ao hotel dominada por um acesso de raiva. Estava espantada consigo mesma, ela que de costume era tão bem-humorada e acomodatícia. Havia, porém, naquela terra qualquer coisa que a irritava e a punha fora de si.
E talvez, que pensava, os mexicanos brancos e os mestiços sofressem qualquer reacção especial no seu sangue, que os fazia andar sempre em estado de irritação contida, para a qual precisavam dum tubo-de escape. Tinham de passar a vida num jogo complicado para aguentar o fluxo e refluxo da maré.
Possivelmente o facto proviria do solo, do dragão do centro da terra: qualquer eflúvio, qualquer vibração contrária ao sangue e aos nervos dos seres humanos. Possivelmente o facto proviria dos vulcões. Ou talvez até da resistência muda, tenebrosa e reptilária desses nativos cujo sangue é em grande parte o velho sangue índio pesado e contumaz.
Quem sabe? Alguma coisa havia, e muito ponderosa, cismava Kate estirada sobre a cama, chocando a sua própria raiva. Nada então se poderia fazer?
Mas o moço Garcia era na verdade simpático. Veio de tarde e mandou o seu bilhete de visita. Aborrecida, Kate recebeu-o de má vontade.
- Aqui estou - declarou ele com a dignidade um tanto rígida dum embaixador - para lhe dizer que eu também não gosto daquelas caricaturas. Não as aprecio, não. E não me agrada que toda esta mocidade, rapazes e raparigas, as tenham continuamente diante de si. Entretanto creio também que não podemos evitá-lo, aqui no México. As pessoas são muito más, muito vorazes: só querem obter dinheiro. E, quanto ao resto, mantêm-se na maior indiferença. Por isso devemos odiá-las. Sim, é necessário. Mas repito: não gosto daquelas pinturas.
Segurava o chapéu nas duas mãos e encolhia os ombros, num conflito de sentimentos.
Kate riu-se de súbito, e ele imitou-a. Havia nele, porém, certa mágoa e confusão.
- Foi deveras amável em ter vindo comunicar-me a sua opinião - ripostou Kate, tornando-se mais afectuosa.
- Amável não - volveu ele, franzindo a testa. - Todavia não sei que faça. Talvez me julgue diferente do que sou, e não quero deixá-la com essa impressão.
Corou, atrapalhado. Manifestava uma franqueza ingénua desde que pretendia ser sincero. Se houvesse vindo representar um papel mais hipócrita, tê-lo-ia desempenhado melhor. Mas queria ser sincero...
- Bem sei - disse Kate, rindo - que pensa como eu, embora finja ser feroz e duro.
- Não! - replicou Garcia, de olhos repentinamente brilhantes.
- Também me considero feroz. Detesto os homens que se apoderam de tudo, absolutamente de tudo, no México: dinheiro e o resto... tudo! - Alongou os braços, num gesto expressivo. - Detesto-os porque assim devo fazer, mas também lastimo ter de odiar tanto. Sim, creio que lastimo.
Enrugou mais a testa. A face redonda, juvenil e fresca denunciou ressentimento e ódio igualmente sinceros.
Kate percebeu que ele, no íntimo, não lastimava nada. Apenas se alternavam dentro desse homem, como a sombra e o sol em dia de nebuloso, a vaga de doçura natural e a onda de ressentimento e ódio - em sucessões rápidas e inevitáveis. O que o tornava simpático era a sua simplicidade, apesar da complicação dos seus sentimentos; e o facto de os seus ódios não serem formulados contra este ou aquele mas terem um carácter impessoal.
Saiu para tomar chá com o professor. Enquanto estava ausente do hotel, chegou ali Don Ramon e deixou bilhetes com os cantos virados e um convite para que ela e Owen fossem jantar na sua companhia. Nesses bilhetes revelava-se uma delicadeza quase fora de moda.
Ao percorrer com os olhos o jornal, Kate descobriu uma informação curiosa. Lia espanhol sem muita dificuldade. O que a atrapalhava era a conversa, quando o italiano se metia de permeio e lhe provocava contínuas hesitações. Tinha consultado as páginas inglesas do Excelsior e do Universal em busca de notícias e só então, passando às páginas espanholas, é que viu a local subordinada a este título: "Voltam ao México os deuses da Antiguidade".
"Vai grande efervescência na aldeia de Sayula, Jalisco, nas margens do lago daquele nome, devido a um incidente mais ou menos cómico ocorrido ontem cerca do meio-dia. As mulheres que habitam nas proximidades do lago descem todos os dias, logo ao despontar do sol, para a beira de água, com as suas trouxas de roupa. Ajoelham nas pedras e, em grupinhos, como aves aquáticas, lavam a sua roupa suja nas águas tranquilas, descansando por vezes quando uma velha canoa passa com a sua única vela desfraldada. A cena quase se não modificou desde o tempo de Montezuma, quando os indígenas adoravam o espírito do lago e lhe atiravam imagens de barro cozido, as quais mais tarde a água restituía aos descendentes daqueles, para lhes recordar uma prática que eles, aliás, não esqueceram de todo.
Quando o sol atinge o seu máximo, as mulheres espalham as peças de roupa na areia e sobre as pedras e afastam-se para a sombra dos salgueiros que ali se ostentam graciosos e conservam a sua folhagem verde mesmo durante a estação mais quente do ano.
Ontem, enquanto repousavam do trabalho, aquelas mulheres humildes e supersticiosas ficaram pasmadas ao ver sair do lago um homem de grande estatura, que avançava nu para a margem. O rosto, afirmaram, era trigueiro e barbudo, mas o corpo resplandecia como ouro.
Como se indiferente aos olhares que o espiavam, ele continuou a andar sereno e majestoso, sempre em direcção à margem. Então deteve-se um instante e, escolhendo com a vista um desses pares de calças de algodão que usam os camponeses e que estava a corar ao sol, curvou-se, apanhou-o e começou a cobrir com ele a sua nudez.
A mulher, que via assim furtarem-lhe a roupa do marido, pôs-se de pé, interpelou o homem e chamou pelas suas companheiras. Então o desconhecido voltou para elas o rosto escuro e disse-lhes em voz calma: - Porque gritam? Estejam sossegadas. As calças serão restituídas. Os deuses vão voltar. Quetzalcoatl e Tlaloc, deuses antigos, tencionam reaparecer. Conservem-se tranquilas para que eles as não encontrem a vociferar e a queixar-se. Saí do lago para as prevenir de que os deuses regressam ao México.
Pouco conformada com este discurso, a mulher que perdera a peça de roupa estava perplexa e não dizia nada. O desconhecido apoderou-se então duma camisa, vestiu-a e desapareceu.
Daí a pouco aquelas criaturas de espírito simples enchiam-se de coragem para regressar às suas humildes casas. A história chegou assim aos ouvidos da Polícia, que logo tratou de procurar o ladrão.
Mas o caso não ficou por aqui. O marido da pobre lavadeira, ao voltar do seu trabalho no campo, chegou à entrada da aldeia ao pôr do Sol, certamente pensando apenas em cear e descansar. Das sombras de um muro em ruínas avançou um homem de manta negra sobre os ombros e perguntou-lhe: "Tens medo de vir comigo?" Pessoa animosa, o camponês respondeu prontamente: no señor e seguiu o desconhecido, transpondo a brecha do muro e, atravessando as moitas, penetrou num jardim deserto. Num quarto escuro subterrâneo ardia uma luz débil, evidenciando uma enorme bacia de ouro na qual quatro homens mais pequenos do que crianças deitavam água
perfumada. Ao camponês espantado ordenaram que se lavasse e vestisse roupa limpa, a fim de se aprontar para o regresso dos deuses. Sentou-se ele na bacia de ouro e lavou-se com sabonete, enquanto os anões o inundavam de água. "Isto - disseram - é o banho de Quetzalcoatl. O banho de fogo será depois." Deram-lhe roupa de algodão muito alvo, um chapéu novo com estrelas bordadas e sandálias de tiras brancas. Além disto, entregaram-lhe uma manta listada de azul e preto com flores no meio, e ainda duas moedas de prata. "Vai-te embora - disseram-lhe. - E quando te perguntarem onde arranjaste essa manta, responde que Quetzalcoatl ressuscitou." O pobre homem foi para casa cheio de medo, não fosse a Polícia acusá-lo de ter roubado aqueles objectos.
A aldeia está em alvoroço, e Don Ramon Carrasco, nosso eminente historiador e arqueólogo, cuja fazenda é situada nesses arredores, participou já a sua intenção de estudar a origem desta nova lenda. Entretanto, a Polícia segue com atenção o desenrolar dos factos, sem intervir por agora. A verdade é que estas pequenas fantasias criam diversão na corrente dos episódios habituais de banditismo, assassínio e ofensas corporais que costumamos relatar."
Kate magicava no que haveria por detrás daquilo, se seria mais do que uma história inventada. Todavia, das próprias palavras do jornal parecia irradiar uma luz estranha.
Apetecia-lhe ir a Sayula. Queria ver o lago onde os deuses tinham outrora vivido e donde haviam de emergir. Entre toda a amargura que o México lhe produzia no espírito, havia contudo uma estranha nota de mistério que suscitava esperança. Qualquer coisa que se aparentava com a magia.
Também a fascinava o nome de Quetzalcoatl. Já tinha lido referências a esse deus. Quetzal é o nome de um pássaro que vive entre a névoa das montanhas tropicais, e as penas da sua cauda constituem grande enlevo para os Astecas. Coatl é a serpente. Quetzalcoatl significa pois a serpente emplumada, tão hedionda como esse emblema de pedra do Museu Nacional, contorcida e eriçada de dentes e de penas.
Mas Quetzalcoatl, segundo Kate se lembrava vagamente, era uma espécie de deus de belo rosto barbudo; representava o vento, o sopro da vida, os olhos que vêem sem ser vistos, como as estrelas durante o dia. E Quetzalcoatl fora obrigado a deixar o México para mergulhar no banho profundo da vida. Estava velho. Retirara-se para o nascente, talvez para o mar. Ou talvez singrasse no céu, tal um meteoro lançado da cratera do vulcão Orizaba; e regressaria decerto como um pavão em voo nocturno, ou como uma ave-do-paraíso, de cauda cintilante qual a de um cometa. Quetzalcoatl! Quem sabe o que ele representava para os defuntos astecas e para os índios mais antigos que o tinham conhecido antes de aqueles o haverem endeusado às alturas do horror e da vingança?
Era uma confusão de significações contraditórias, Quetzalcoatl. Mas porque não havia de ser assim? O espírito irlandês de Kate estava saturado de significações concretas, de deuses com propósito fixo. Os deuses deviam ter cambiantes diversos, como o arco-íris. O homem criou os deuses à sua imagem, e os deuses envelhecem conforme os homens que os criaram. Mas as tempestades abalam o céu e as figuras divinas oscilam lá no alto, longínquas e irritadas. Os deuses morrem com os homens que os conceberam; contudo, a divindade ruge sempre, tal como o oceano, e o seu bramido é muito vasto para que se escute. Mar tempestuoso batendo de encontro às rochas vivas que são os homens e destruindo-as lentamente; ou o mar do ténue e etéreo plasma do mundo que banha os pés e os joelhos dos homens como a seiva terrestre banha as raízes das árvores. Todos devem renascer, até os próprios deuses.
Kate sabia-o, embora de maneira vaga e feminina. Tivera amores, os seus dois maridos. Tivera filhos.
Amara Joachim Leslie, o defunto marido, tanto quanto uma mulher pode amar um homem; isto é, até aos limites do amor humano. Depois compreendera que a afeição terrena tinha as suas fronteiras, que existia um Além. E, após o falecimento de Joachim, o espírito de Kate transpusera bem ou mal essas fronteiras. Já não aspirava ao amor de um homem, nem sequer ao amor dos filhos. Joachim entrara na eternidade da morte, ela entrara em certa eternidade da vida. Abandonara-a o desejo de companhia, de simpatia ou afeição humana. Algo de intangível mas infinitamente bendito substituíra aquele desejo: uma paz, uma serenidade que ultrapassava o entendimento.
Ao mesmo tempo, travava-se terrível combate entre ela e isso que Owen classificava de Vida: como a corrida de touros, o chá em casa da arqueóloga, os divertimentos, as manifestações hediondas da arte moderna. Envolvia-a ora com um ora com outro dos seus tentáculos essa coisa degenerada e possante a que davam o nome de Vida.
Quando Kate conseguia escapar e refugiar-se na sua verdadeira solidão, invadia-a uma paz de doçura sem igual. Bastava reflectir nisso para que se desvanecesse, de tão frágil e delicada. E, no entanto, era a única realidade.
Devemos nascer de novo. A troco de um combate com o polvo da vida, com o dragão da existência degenerada e incompleta temos de adquirir essa flor efémera que se desfolha ao menor contacto.
Não, ela já não desejava amor ou qualquer outra coisa para lhe preencher a vida. Tinha quarenta anos, e no lento alvorecer da maturidade, desabrochava a flor da sua alma. Acima de tudo, devia evitar qualquer proximidade. À sua volta desejava apenas o silêncio doutras almas, envolvendo-a como um perfume. A presença disso que jamais se exprime.
E no pavoroso estridor da morte que é o México, Kate julgava ler nos olhos negros dos índios aquilo que ela sentia. Parecia-lhe que Don Ramon e Don Cipriano haviam escutado o apelo mudo através de todo aquele tumulto.
Talvez fosse isso que a levara ao México, longe da Inglaterra, da mãe, dos filhos, de toda a gente: o desejo de estar só com a flor desabrochada da sua alma, no silêncio delicado e harmonioso que reside no âmago das coisas.
O que se chama Vida é um erro criado pelo nosso próprio espírito. Para quê insistir no erro?
Owen era o erro em pessoa, assim como Villiers. E a Cidade do México.
Kate resolveu sair, a fim de tentar libertar-se daquela obsessão.
Tinham prometido ir jantar a casa de Don Ramon. A mulher deste achava-se nos Estados Unidos, junto dos dois filhos, um dos quais adoecera, sem gravidade, no seu colégio da Califórnia. Mas a tia de Don Ramon faria as honras da casa.
Ficava situada em Tlalpam. Era Maio, o tempo estava quente, as chuvas não tinham ainda começado. O aguaceiro do dia da tourada fora puramente acidental.
- Não sei se envergue ou não fato de cerimónia - disse Owen. - Sinto-me vexado de cada vez que ponho essa fatiota.
- Então não a vistas - respondeu Kate, impaciente por ver Owen revoltar-se contra essas formalidades sociais e, por outro lado, transigir com tudo o resto.
Quanto a ela, enfiou um vestido muito simples de corpo de veludo preto e saia ampla de gaze com reflexos verdes, amarelos e pretos. No pescoço, um colar de jade e cristal.
Era um dom muito seu, esse de parecer uma deusa de Ossian, com certo eflúvio feminino e uma doçura que lhe emanava do próprio material do vestido. Todavia, nunca chegava a ser uma mulher janota.
- Vais vestida de grande gala! - exclamou Owen descoroçoado, endireitando o seu colarinho mole.
Tomaram o eléctrico que os levou para o bairro distante. A noite estava cheia de estrelas claras que pendiam sobre eles com brilho ameaçador. Em Tlalpam pesava o aroma das flores e a escuridão espessa cortada pela luz intermitente dos pirilampos. E sempre o perfume denso das flores que abrem à noite. Para Kate, havia sempre um leve bafo de sangue no odor de todas as flores tropicais: de sangue ou de suor.
Estava calor. Bateram ao portão de ferro, os cães ladraram, e um rapaz veio abrir cautelosamente e fechou depressa depois de eles terem entrado no jardim sombreado.
Don Ramon apresentou-se de jaquetão branco, assim como Don Cipriano. Mas havia outros convidados: o moço Garcia, outro de face pálida chamado Mirabal, e outro de mais idade que dava pelo nome de Toussaint. A única mulher era Dona Isabel, tia de Don Ramon. De vestido preto, com gola alta de renda negra e colar de pérolas de várias fieiras, tinha um ar de monja tímida e assustada perante todos aqueles homens. Mas para Kate mostrou-se acolhedora, afectuosa, falando inglês em voz sumida e plangente. Para essa alma de reclusa, aquele jantar constituía uma espécie de ritual e de ordálio ao mesmo tempo.
Ao seu receio misturava-se o júbilo. Dispensava a Ramon uma adoração religiosa. Era evidente que mal ouvia o que diziam; as palavras deslizavam-lhe à superfície da consciência sem jamais penetrarem. No fundo, tremia, amedrontada com a presença de tantos homens e com a grata responsabilidade de presidir à mesa em frente de Don Ramon.
A casa era uma vivenda ampla, mobilada com simplicidade.
- Vive sempre aqui? - perguntou Kate a Don Ramon. Nunca está na sua fazenda?
- Como sabe que tenho uma hacienda?
- Li num jornal... Perto de Sayula...
- Ah! - exclamou ele com o riso nos olhos. - Viu a notícia sobre o regresso dos deuses antigos.
- Vi. Não achou interessante?
- Achei.
- Gosto da palavra Quetzacoatl.
- Da palavra! - repetiu ele, sempre com um riso irónico nas pupilas negras.
- Que pensa do caso, senhora Leslie? - interveio o pálido Mirabal num estranho inglês de pronúncia francesa. - Não seria bom que os deuses voltassem ao México? Os nossos deuses?
Parecia esperar ansioso pela resposta, fitando Kate com os seus olhos azuis e de colher suspensa entre o prato e a boca.
- Não aqueles horrores astecas! - exclamou ela.
- Aqueles horrores astecas! Talvez não fossem tão horrorosos como isso, no fim de contas. Mas, se o eram, provinha do facto de os Astecas se encontrarem num beco sem saída, não vendo nada senão a morte. Não concorda?
- Não sei, não estou bem ao corrente - redarguiu Kate.
- Ninguém sabe ao certo. Mas se gosta da palavra Quetzalcoatl, não gostaria também que esse deus voltasse? Ah, o nome dos deuses!. São como sementes, cheios de mistério, de magia desconhecida. Huitzilopochtli, Tlaloc... Sinto prazer em pronunciar estes nomes. Repito-os como no Tibete repetem Muni padma Om. Creio na fertilidade dos sons. Itzpapalotl, a borboleta de ónix... Itzpapalotl! Só proferir esta palavra nos faz bem à alma. Itzpapalotl! Tezcatlipoca! Já eram velhos quando vieram os Espanhóis, precisavam de um novo banho de vida. Mas agora, rejuvenescidos, como devem ser belos! Compare com Jeová! Que falta de sonoridade, que escassez de vida! Já é um deus muito, muito velho, não acha? - Fitou Kate demoradamente e em seguida mergulhou a colher na sopa.
Kate dilatava os olhos, estupefacta com a eloquência do jovem Mirabal. Depois, riu-se.
- O que acho é tudo isso um tanto opressivo.
- Sim, evidentemente, mas é bom ser oprimido por qualquer coisa. Ah, que felicidade!
A derradeira palavra denotou um sotaque absolutamente francês, e o rapaz debruçou-se de novo sobre a sopa. Era magro e pálido e ardia de paixão intensa.
- Temos de fazer seja o que for pelo México - declarou Garcia erguendo para Kate os olhos negros e brilhantes, meio tímidos meio agressivos. - Se o não fizermos, o México desaparecerá. Diz a senhora que não gosta do socialismo. Também creio que não gosto. Não existe, porém, outra coisa além do socialismo. Tenhamo-lo, pois. Se não há nada melhor... Ou haverá?
- Por que razão desapareceria o México? - inquiriu Kate. Vejo crianças por toda a parte.
- É verdade. No entanto, o último censo de Porfirio Diaz apurara dezassete milhões de pessoas, ao passo que o do ano passado só acusou treze milhões. Talvez a conta esteja errada. Mas, se se tirar quatro milhões em cada vinte anos, daqui a sessenta anos não restará mexicano nenhum. Apenas estrangeiros, que não morrem...
- Oh, os números mentem tanto! - replicou Kate. - As estatísticas são sempre falíveis.
- É possível - observou Garcia - que dois e dois não somem quatro. Contudo, se a dois subtrairmos dois, não fica nada.
- Pensa que o México possa desaparecer? - perguntou ela a Don Ramon. - Quem sabe? É crível. Desaparecido ou americanizado.
- Compreendo perfeitamente o perigo da americanização - notou Owen. - Seria deveras sinistro. Mais valia então que desaparecesse.
Owen era tão americano que devia por força dizer coisas destas.
- Mas - atalhou Kate - os mexicanos parecem tão fortes!
- São fortes quando se trata de transportar cargas pesadas - esclareceu Don Ramon. - Todavia morrem facilmente. Comem tudo o que não devem comer, bebem o que lhes faz mal, e no fim de contas não lhes importa extinguirem-se. Têm inúmeros filhos e gostam muito deles; se, porém, algum parte deste mundo, os pais comentam: "Ai, vai-se tornar num anjinho!" Por isso, nessa ocasião, comem e divertem-se como numa festa. Às vezes chego a pensar que desejam a morte das crianças. São capazes de querer que o México inteiro se transfira ao Paraíso ou lá o que é que está para além da morte. Aí, deve ser tudo melhor.
Seguiu-se um silêncio.
- Sois tão pessimistas! - exclamou Kate, impressionada.
Dona Isabel dava ordens apressadas ao criado.
- Quem conhecer o México por dentro não pode deixar de ser pessimista - asseverou Júlio Toussaint, com ar sentencioso.
- E, apesar disso, dá-me a impressão de que o país é alegre - acudiu Owen. - Um país de gente alegre, irresponsável. Ou melhor: que podia ter alegria se fosse bem tratada e possuísse lares confortáveis e sentisse verdadeira liberdade. Por exemplo, se pudesse governar a sua vida e a da nação. Mas, estando na mão de intrusos, como já acontece há centenas de anos, a vida parece-lhe difícil de suportar. Naturalmente, pouco lhe importa viver ou morrer. Os mexicanos não se consideram livres. - Livres para quê? - perguntou Toussaint.
- Para tornar seu o México, e não serem tão pobres nem estarem à mercê dos estrangeiros.
- Estão à mercê de algo pior do que os estrangeiros - retorquiu Toussaint. - Deixe-me dizer-lhe: estão à mercê da sua própria natureza. E desta maneira: cinquenta por cento dos mexicanos são índios puros. Isto é, mais ou menos puros. Na outra metade entra um pequeno contingente de estrangeiros ou espanhóis. Resta, pois, a camada dominante, a dos mestiços, que têm sangue índio e sangue espanhol. Veja agora em volta desta mesa. Don Cipriano é um índio puro. Don Ramon é quase puro espanhol, mas o mais provável é girar-lhe nas veias sangue dos tlazcalans. O senhor Mirabal é meio francês meio espanhol. O senhor Garcia deve ter mistura de espanhol e índio. Eu próprio sou descendente de franceses, espanhóis, índios e austríacos. Pois muito bem. Quando se mistura sangue da mesma raça, a coisa pode sair certa. Os europeus são de origem ariana, a raça é a mesma. Mas quando se reúne sangue europeu e ameríndio, misturam-se duas raças diferentes e produz-se o mestiço. Ora o mestiço é uma calamidade. Porquê? Por não ser uma coisa nem outra e estar dividido em si mesmo. o sangue duma raça segreda-lhe uma coisa, o da outra raça diz-lhe coisa diversa. É um infeliz, um desesperado. Aqui tem o México. Os mexicanos de sangue misto são uns desesperados. E depois? Só existem duas soluções. Os estrangeiros e os outros deviam sair e deixar o país aos índios de raça pura. Mas já temos uma dificuldade: como distinguir os índios puros após tantas gerações? Doutro modo, os mestiços, que estão sempre no poder, continuarão a destruir o país até que os Americanos venham dos Estados Unidos e o inundem por completo. Ficaremos submergidos, como a Califórnia e o Novo México, pelo mar morto da raça branca. Mas deixem-me prosseguir. Creio que não estou no meio de puritanos e que me permitirão dizer que tudo depende do momento do coito. Na ocasião do coito, ou o espírito do pai se funde com o da mãe para criar um ser novo, dotado de alma, ou nada se funde senão o germe da criação. Considerem agora como se têm formado, desde séculos, os mexicanos de sangue misto. com que espírito? Que sucedeu no instante da fecundação? Respondam a isto e terão explicado o motivo pelo qual este México nos desespera e continuará a desesperar toda a gente até que se destrua a si mesmo. com que espírito os espanhóis e outros pais estrangeiros tiveram filhos das mulheres índias? Sim, com que espírito? Que espécie de coito? Nesse caso, que espécie de raça se podia esperar?
- E que espécie de espírito há entre mulheres e homens brancos? - perguntou Kate.
- Ao menos - redarguiu o didáctico Toussaint - o sangue é homogéneo, de forma que automaticamente garante a continuidade.
- Horroriza-me essa continuidade automática...
- Talvez, mas torna a vida possível. Sem o desenvolvimento na continuidade consciente é inevitável o caos. O caos provém da mistura de sangue.
- Além disso - insistiu Kate -, é natural que os índios amem as suas mulheres. Os homens parecem varonis e as mulheres amáveis e femininas.
- É provável que as crianças índias sejam de sangue puro, e aí temos a continuidade. Mas a consciência índia está submergida por essa água estagnada, esse mar morto que é o espírito dos brancos. Tome como exemplo um índio puro, Benito Juarez. Inunda a sua consciência de raça antiga com as ideias da gente branca, e daí resulta uma floresta de discursos, de leis novas, novas constituições e tudo o mais. Mas é uma vegetação súbita. Cresce à superfície como a erva ruim, mina a força do solo índio e apressa a sua perda. Não, minha senhora. Não há esperança para o México senão num milagre.
- Ah! - exclamou Mirabal, brandindo o copo de vinho. Não é extraordinário pensar que só há salvação num milagre? E que sejamos nós a fazê-lo? Nós, nós! Temos de realizar esse milagre! Bateu no peito, com um gesto enfático, e acrescentou: - Pois eu acho extraordinário! - E voltou a mastigar o seu bocado de peru.
- Vejam os mexicanos - disse Toussaint. - Tudo lhes é indiferente. Comem os alimentos tão apimentados que queimam as entranhas. E não chegam a alimentar-se. Vivem em casas de que se envergonharia um cão e onde tremem de frio. Mas não fazem nada para modificar esse estado de coisas. Podiam facilmente arranjar cama de palha de milho ou semelhante. Mas não o fazem. Não fazem nada. Enrolam-se numa velha manta e deitam-se sobre uma esteira colocada em cima da terra, muitas vezes húmida. E as noites no México são frias. Contudo dormem como cães, seja lá onde for. Cães? Os cães escolhem sítios secos e abrigados. Os mexicanos, não. É horrível, horrível! Como se quisessem castigar-se por estarem vivos!
- Então, porque têm tantos filhos? - inquiriu Kate.
- Porquê? Pela mesma razão de que tudo lhes é indiferente. Não se importam com coisíssima nenhuma, nem com o dinheiro! Nada, nada, nada! As mulheres proporcionam-lhe uns momentos de excitação, como a pimenta. Gostam de sentir a pimenta a arder-lhes no estômago e gostam igualmente de sentir o ardor sexual. Mas, passado isso, não se ralam mais. Tanto se lhes dá como se lhes deu. E isto é mau. Já lhes disse, desculpem-me a insistência, mas tudo depende do instante do coito. Nessa ocasião muitas coisas atingem o seu paroxismo: toda a esperança do homem, a sua honra, a sua fé, a sua crença na vida, na criação e em Deus, tudo pode existir no momento do coito. E isto há-de transmitir-se ao filho, para que o perpetue. Acreditem-me, pareço monomaníaco, porém é a verdade. É um facto irrecusável.
- Não duvido - declarou friamente Kate.
- Ah, não ponha em dúvida. Repare no México. As únicas pessoas conscientes são os mestiços, gente de sangue impuro, engendrada no meio da brutalidade, do egoísmo.
- Há quem deposite confiança no sangue misto...
- Sim? Palavra? Quem?
- Alguns dos vossos mentores. Dizem que o mestiço é melhor do que o índio.
- Melhor! O índio vive com a sua desesperança. O instante do coito é o desse sentimento no mais alto grau, quando ele próprio se lança no abismo do desespero.
O sangue europeu, austríaco, que se inflamara pouco antes, apaziguou-se e deixou Júlio Toussaint entregue à sua tristeza irremediável.
- É verdade - disse Mirabal, pensativo. - Os Mexicanos sempre se prostituem de uma forma ou doutra, e por isso nunca fazem nada. E os índios também nada podem fazer porque lhes falta a esperança seja no que for. Mas a hora mais soturna é a que precede o alvorecer. A nós compete preparar o milagre. O milagre é superior à própria influência do coito.
Pareceu, contudo, que ele dissera aquilo de maneira um tanto forçada.
O jantar acabava silencioso. Durante o redemoinho das conversas, dos discursos apaixonados, os criados tinham servido os pratos e os vinhos. Dona Isabel, completamente alheia ao que se dizia, observava e dirigia o pessoal com ansiedade, movendo nervosa as mãos cobertas de jóias antigas. Don Ramon escutava, atento ao bem-estar dos seus convivas, mas fazia-o na maior impassibilidade. Os seus grandes olhos castanhos pareciam insondáveis. Se tinha alguma coisa a notar formulava-a com acento irónico. Contudo o olhar abrigava um fogo tenaz, incompreensível.
Kate estava no meio de homens - não defronte da morte nem do sacrifício, mas perante a emanação da vida. Sentiu, pela primeira vez na sua existência, uma espécie de medo - o receio desses homens que ultrapassavam o seu conhecimento.
Cipriano, com as pestanas curtas baixadas sobre os olhos escuros, mirava o prato e só de tempos a tempos erguia a cabeça para deitar um relance rápido e cintilante sobre quem falava, Don Ramon ou Kate. O seu rosto estava impassível e profundamente sério, de uma seriedade quase infantil. As pestanas erguiam-se ligeiras, de modo estranho, o movimento das mãos era rápido e, quando ele manejava a faca, parecia ir cravá-la no corpo de um adversário. Os lábios vermelhos-escuros tinham qualquer coisa de tão selvático, quer para comer quer para falar, que a irlandesa sentiu parar-lhe o coração. Dir-se-ia haver nele uma intensidade e uma crueza de semi-selvagem. Vendo-o, Kate compreendia muito bem o poder que exercia a serpente sobre a imaginação asteca ou maia. Era algo de indefinido, de envolvente (e contudo vital) que dava a impressão de lhe circular nas veias o sangue dos répteis. Eis o que lembrava: o pesado fluxo de sangue dum réptil poderoso, o dragão do México. Por isso se retraía inconscientemente quando aqueles olhos pretos, grandes e luzidios pousavam nela por um momento. Não eram como os olhos de Don Ramon, mas negros quais jóias e que ninguém podia fixar sem uma sensação de medo. E o medo misturava-se à fascinação experimentada por Kate. Esta sentia-se como um pássaro quando fascinado por uma serpente.
Quase se admirava de Don Ramon não ter medo, pois reparara que, em geral, quando um índio olhava para um branco, ambos recuavam, afastando-se um do outro, deixando entre eles um largo espaço de terreno neutro. Mas Cipriano olhava para Ramon com ar de intimidade, tranquilamente, ousadamente, patenteando uma confiança quase insolente nesse homem.
Kate percebeu que Ramon tinha de pugnar bastante para se mostrar digno daquela confiança. Ele, porém, conservava no rosto um leve sorriso e baixava a bela cabeça de cabelos negros estriados de branco como se quisesse esconder a expressão.
- Crê que se possa provocar esse milagre? - inquiriu Kate.
- O milagre existe sempre - respondeu Don Ramon - para quem for capaz de estender a mão e o agarrar.
Terminou o jantar e os convivas sentaram-se na varanda, contemplando o jardim onde as luzes da casa tombavam de modo sobrenatural nas árvores floridas, nos tufos de iúcas e nos troncos torcidos dos loureiros-da-índia.
Cipriano instalou-se junto de Kate, a fumar um cigarro.
- É uma escuridão estranha, a do México - disse ela.
- Gosta disto? - perguntou Cipriano.
- Ainda não sei. E o senhor?
- Gosto muito. Creio que a minha hora preferida é a transição do dia para a noite. Sentimo-nos então mais livres, não lhe parece? Como as flores que exalam à noite o seu perfume e de dia, sob a luz solar, permanecem inodoras.
- Talvez as noites daqui me sobressaltem - observou Kate, rindo.
- E porque não? O cheiro das flores nas trevas pode amedrontá-la um pouco, mas é um medo agradável.
- Receio o medo - volveu Kate. Cipriano riu-se.
- O senhor fala um inglês muito puro - disse ela. - Quase todos os mexicanos falam inglês americanizado. Até o próprio Don Ramon.
Don Ramon estudou na Universidade de Colúmbia, e eu estive num colégio de Londres e depois em Oxford. Mandaram-me para lá...
- Quem o mandou?
- O meu padrinho. Era inglês: o bispo Severn, de Oaxaca. Nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
- Pessoa muito conhecida. Morreu há cerca de dez anos. Tinha bons haveres antes da revolução. Possuía uma fazenda enorme em Oaxaca e bela biblioteca, mas despojaram-no durante a revolução, e venderam o recheio da casa, ou destruíram-no. Naturalmente ignoravam o valor de tudo aquilo.
- Ele adoptara-o?
- Sim, de certa maneira. Meu pai era feitor da fazenda. Um dia, tinha eu poucos anos, corri para meu pai com qualquer coisa nas mãos, assim. - E Cipriano juntou as mãos formando uma taça.
- Não me lembro, contaram-me. Devia ser muito pequeno, teria três ou quatro anos. O que eu levava nas mãos era um escorpião amarelo, de tamanho reduzido mas muito venenoso.
Ergueu para Kate as palmas estreitas e escuras como para lhe mostrar o animal.
- O bispo estava a falar com meu pai e foi o primeiro a ver o que eu tinha. Ordenou-me imediatamente que pusesse o bicho no seu chapéu. Obedeci, é claro, e o escorpião não me mordeu. Se me mordesse, com certeza eu teria morrido. Mas eu não sabia disso, e suponho que o escorpião não teve interesse em atacar-me. O prelado, excelente pessoa e muito amigo de meu pai, tornou-se o meu protector. Mandou-me para um colégio e mais tarde para Inglaterra. Esperava que eu viesse a ser padre. Costumava dizer que o México poderia ter confiança quando possuísse bons sacerdotes indígenas.
- E terminou a frase com ar pensativo.
- Mas não quis ser padre, não é verdade? - observou Kate.
- Não - volveu ele, melancólico. - Não quis.
- De modo nenhum?
- De modo nenhum. Quando eu estava na Inglaterra tudo me parecia diferente do México. Até Deus era diferente, e a Virgem Maria. Achava-os tão mudados que nem os reconhecia. Apurei os meus conhecimentos e, por outro lado, perdi a fé. Habituara-me a acreditar que eram as imagens de Jesus, da Virgem e dos Santos que governavam o mundo. E o mundo afigurava-se-me tão estranho! Não lhe distinguia os malefícios porque ele me aparecia cheio de mistérios, quando eu era pequeno e vivia no México. Na Inglaterra, aprendi as leis da vida e umas noções de ciências. E então, ao saber por que motivo o Sol se levantava e se punha no horizonte e como funcionava na realidade a máquina do Universo, a minha personalidade modificou-se por completo.
- O bispo ficou desiludido?
- Um pouco, suponho. Mas perguntou-me se eu preferia ser militar, ao que respondi afirmativamente. Ao estalar a revolução regressei ao México. Tinha vinte e dois anos.
- Gostava do bispo?
- Muito. A revolução, no entanto, arrasou tudo. Eu achava que devia fazer a vontade ao meu protector, mas compreendia que o México já não era o México dos seus sonhos. O país transformara-se, e o bispo, muito inglês e belíssima pessoa, não o podia entender. Durante as escaramuças, tentei imitar o homem que me parecia o melhor de todos. Como vê, fiquei sempre meio padre meio soldado.
- Nunca se casou?
- Não, senhora. Nunca pude, porque me lembrava sempre do meu protector, a quem prometera seguir a religião... e o mais. Ao morrer, aconselhou-me a que me orientasse pela minha própria consciência e a não esquecer que o México e os índios todos estavam nas mãos de Deus. Fez-me jurar que jamais tomaria partido contra Deus. Morreu já muito velho, com setenta e cinco anos.
Kate compreendia a fascinação que essa personalidade tão forte e tão notável havia exercido no homem que estava à sua frente. Via-o esconder-se naquele curioso baluarte de castidade, talvez característica do selvagem; e ao mesmo tempo sentia que no peito dele se levantava um ardor intenso e varonil, acompanhado de estranha ferocidade masculina.
- O seu marido - perguntou Don Cipriano - era James Joachim Leslie, aquele famoso chefe irlandês? - E acrescentou logo:
- Não tiveram filhos?
- Não, nunca tive, apesar de haver desejado tanto ser mãe de um filho de Joachim. Do meu anterior casamento é que nasceram um filho e uma filha. Desse primeiro marido, advogado, divorciei-me por causa de Joachim Leslie.
- Gostou do anterior?
- Sim, gostei. Mas nunca foi um sentimento muito profundo.
Casei nova, e ele era bastante mais velho do que eu. Tinha-lhe amizade, e nunca compreendi que se pudesse dedicar mais do que amizade a um homem senão depois de conhecer o Joachim. Julgava que isso era tudo o que se podia sentir. Levei anos a perceber que uma mulher, pelo menos uma mulher do meu género, só pode amar um homem que seja bom cidadão, que lute para modificar o mundo, para o tornar mais livre e mais vivo. Os homens como o meu primeiro marido, bondosos, dignos de confiança e que trabalham para que o mundo se conserve no estado em que eles o encontraram, desiludem-nos terrivelmente duma maneira ou doutra. Sentimo-nos vendidas. É tudo uma questão de negócio, de transacções, e achamos isso tão mesquinho! A mulher que diverge do tipo corrente só pode amar o homem que combata por alguma coisa superior à existência quotidiana.
- E o seu marido lutou pela Irlanda?
- Sim, pela Irlanda e por um ideal que ele nunca chegou a definir bem. Perdeu a saúde e, quando estava perto de morrer, disse-me o seguinte: "Kate, é possível que eu te descoroçoasse. Talvez não houvesse ajudado realmente a Irlanda, mas não pude deixar de fazer o que fiz. Tenho a impressão de que te trouxe até às portas da vida e aí te abandonei. Kate, não fiques desiludida com a vida por minha causa. Não consegui nada, não atingi nenhum objectivo. Tenho a sensação de haver cometido um erro. Mas talvez que depois de morto eu possa fazer mais por ti do que soube fazê-lo enquanto vivo. Diz-me que nunca te sentirás desiludida!"
Seguiu-se uma pausa. A lembrança do defunto descia sobre Kate e despertava toda a sua dor.
- E não me sinto desiludida - continuou a viúva, em voz um pouco trémula. - Mas amava-o, e foi atroz vê-lo morrer com a impressão de que não tinha... não tinha...
Sem acabar a frase, escondeu o rosto nas mãos e entre os dedos correram-lhe lágrimas amargas.
Cipriano estava imóvel como uma estátua, mas emanava-lhe do peito essa ternura imensa, secreta e apaixonada de que só os índios são capazes. Talvez isso passasse, deixando-o de novo indiferente e fatalista; contudo, naquele momento, parecia envolvê-lo uma nuvem ardente de ternura viril. Olhava com uma espécie de pasmo para as mãos brancas e molhadas que velavam o rosto de Kate e para a esmeralda enorme que lhe ornava o dedo. Ò espanto, o mistério, o sortilégio que o invadiam quando, adolescente, ajoelhava diante da imagem de Santa Maria de la Soledad, voltavam a inundá-lo agora. Sentia-se em presença de uma deusa, de mãos brancas, misteriosa, irradiando um encanto lunar e a força intensa da dor.
Então Kate retirou as mãos da cara e, de cabeça baixa, procurou o lenço. Não o tinha, é claro. Cipriano emprestou-lhe o seu, cuidadosamente dobrado. Kate aceitou-o sem dizer palavra, limpou as faces e assoou-se.
- vou ver as flores - declarou em voz estrangulada.
E correu para o jardim, de lenço na mão. Cipriano pusera-se de pé e afastara a cadeira para a deixar passar; depois ficou uns momentos a olhar para o jardim, antes de voltar a sentar-se e acender um cigarro.
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