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IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
CONTINUA
IV
Owen tinha de regressar aos Estados Unidos, e perguntou a Cate se queria ficar no México.
A pergunta deixou-a hesitante. O país não era agradável para uma mulher sozinha. E ela batia as asas, num esforço de se libertar.
Sentia-se como um pássaro que se vê enroscado por uma cobra. A cobra era o México.
Deveras curiosa a influência deprimente dessa terra. Kate ouvira uma vez dizer a um velho americano que habitava ali há quarenta anos: "Nenhum homem que não possua espírito bastante forte deve estabelecer-se no México. Senão, desfaz-se moral e fisicamente, como já vi acontecer a centenas de moços americanos."
Abater. Eis o que aquele país pretendia sempre, com lenta insistência reptilária. Evitar que o espírito se elevasse. Despojá-lo de toda a impressão de liberdade.
Kate ouvia a voz profunda, calma e perigosa de Don Ramon negar a existência da liberdade.
- Liberdade é coisa que não existe. Os maiores libertadores são em geral escravos de uma ideia. As pessoas livres são escravas das convenções e da opinião pública e, mais ainda, escravas da máquina industrial. Não existe liberdade. O que acontece é mudarmos às vezes de jugo, ou podermos escolher o patrão.
- Em todo o caso, representa liberdade, ao menos para a massa do povo.
- Esses não escolhem. Aceitam uma nova forma de servidão, e nada mais. Vão de mal a pior.
- E você? Não é livre? - perguntou Kate.
- Eu? - Ele riu-se. - Passei muito tempo a tentar persuadir-me de que o era. Julgava poder agir conforme me apetecia, até que percebi que isso significava apenas correr dum lado para outro farejando como o cão em busca dum osso. Ninguém procede livremente. Todo o homem que escolhe um caminho é levado por qualquer destes três móbiles: o apetite (e classifico a ambição na categoria dos apetites), uma ideia ou uma inspiração.
- Sempre pensei que meu marido estivesse inspirado, no que respeitava à Irlanda... - disse Kate.
- E agora?
- Talvez tivesse ele posto o seu vinho em velhas garrafas que não puderam conservá-lo... Não! A liberdade é um odre rebentado. Não mantém o vinho da inspiração nem o ardor.
- E o México? - redarguiu Don Ramon. - O México é outra Irlanda. Repito: nenhum homem é senhor absoluto de si mesmo. Se tenho de servir, não servirei uma ideia gasta e rota como um odre velho; servirei o deus que me dá a coragem. Não há liberdade para o homem fora do deus da sua coragem. O México livre é um tirano, e o antigo México colonial e eclesiástico era outra espécie de despotismo. Quando algum de nós só tem a sua vontade a afirmar, isso é ainda tirania. O bolchevismo arvora-se em déspota, o capitalismo também. E a liberdade é simples mudança de algemas.
- Então que se deve fazer? - perguntou Kate. - Nada? No fundo, desejaria que realmente se não fizesse nada. Deixar os céus desabarem!
- Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido.
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião.
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias.
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso "encontrar Deus" no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e da vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal na superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça.
Don Ramon fez uma careta de repulsa.
- Para mim - redarguiu - isso é a parte mais enfadonha da vida. Pode ser divertido nos primeiros tempos: exercer a nossa vontade e resistir à dos outros que tentem impor-nos a sua. Mas, a certa altura, sentimos náuseas. A minha alma está nauseada e nada me resta esperar senão a morte. A menos que eu encontre outra coisa qualquer...
Kate ouvia-o em silêncio. Conhecia o caminho que ele percorrera, mas só até meio. Ainda se orgulhava da sua própria vontade. Exclamou:
- Oh, o mundo é repelente!
- A minha própria vontade ainda é mais repelente, no fim de contas. Tenho de resignar a função de ser deus da minha própria máquina; ou então, morrerei de repugnância por mim mesmo.
- Chega a ter graça...
- Diga antes que lhe parece esquisito - volveu Don Ramon, sardónico.
- E depois? - perguntou Kate, olhando-o com expressão de desafio.
O outro fitou-a com certo ar de ironia.
- E depois? - repetiu ele. - Pergunto eu agora: que mais há neste mundo além da vontade humana, do apetite humano, visto que as ideias e os ideais são apenas instrumentos da vontade e do apetite do homem?
- Não inteiramente - respondeu Kate. - Podem ser desinteressados.
- Acha? Se o apetite não for interesseiro, pelo menos é-o a vontade.
- E porque não? - volveu Kate. - É difícil sermos simples massas inertes.
- Mas enjoa-me. Procuro outra coisa.
- E que encontra?
- A minha condição de homem.
- Que significa isso? - Kate fez esta pergunta em tom de mofa.
- Se procurasse e descobrisse a sua condição de mulher saberia o que significa.
- Mas eu tenho a minha feminilidade!
- Quando encontrar a sua própria feminilidade - continuou ele com um vago sorriso - saberá então que não lhe pertence, que não pode fazer dela o que quiser. Não a teve voluntariamente. Vem-lhe de Deus. Para além de mim está Deus, que me dá a minha natureza humana e depois ma abandona. Nada mais possuo além da minha natureza humana. Deus concede-ma e deixa-me com ela.
Não querendo ouvir mais, Kate desviou a conversa para banalidades.
Para ela o problema era este: devia ou não ficar no México? No fundo, pouco se importava com a alma de Don Ramon, ou mesmo com a sua. Preocupava-a apenas o futuro imediato. Devia ficar no México?
México, terra de homens morenos, de fatos de algodão e grandes chapéus: camponeses, jornaleiros, índios, chamai-os como quiserdes. Meros indígenas.
Esses pálidos mexicanos da capital, políticos, artistas, negociantes, não a interessavam mais do que os fazendeiros e rancheiros, com as suas calças justas e a sua sensualidade mole, vítimas da própria indisciplina emocional. Para Kate, o México era ainda a massa silenciosa dos camponeses. E pensava nesses homens hirtos e calados, conduzindo filas de burros pelos caminhos rurais, na poeira ressequida dessa terra, ao longo de muros desmoronados, de casas em ruínas, de fazendas abandonadas - entre a infinita desolação deixada pelas revoluções. Para além das extensões de agaves, os cactos enormes e os aloés exibiam os tufos de folhas carnudas, cobrindo milhas e milhas de terreno no Vale do México, onde os cultivam para o fabrico dessa bebida fedorenta que se chama pulque. O Mediterrâneo tem o seu vinho de uvas pretas, a velha Europa a sua cerveja de malte, a China o ópio da papoula branca. Mas do solo mexicano brotam feixes de lâminas manchadas de escuro e, no extremo do monstro que floriu, um botão volumoso aponta para o céu. Então os homens cortam o rebento fálico e esmagam-no para dele extrair a seiva. Agua miel! Pulque!
Mas antes o pulque do que a aguardente branca destilada das piteiras: mescal, tequila; ou, nas terras baixas, a detestável aguardente de cana-de-açúcar.
O mexicano queima o estômago com essas bebidas e depois cauteriza a chaga com pimenta. Ingere esse fogo para extinguir outro fogo.
Campos de milho e de trigo. Campos mais altos e mais claros de cana-de-açúcar. E, no meio desses lençóis verdes, o eterno mexicano de fato branco, com o seu rosto moreno e as amplas calças adejando em volta dos tornozelos ou arregaçadas e deixando ver as pernas escuras e magníficas.
Sombrios e selváticos homens do Norte! E os do Vale do México, muitas vezes degenerados, com a cabeça enfiada nos ponchos.
E os de Tascala, espadaúdos, vigorosos, vendendo sorvetes, bolos e pãezinhos... E os índios pequeninos, ligeiros como aranhas, do sul de Oaxaca; os indígenas de estranho aspecto asiático da região de Vera Cruz; os belos homens de Jalisco, com a manta vermelha dobrada sobre o ombro...
Pertenciam a tribos diferentes, falavam uma língua diferente, e eram mais estrangeiros uns para os outros do que o são entre si os franceses, ingleses ou alemães. O México! Nem chega a ser o começo duma nação; daí provém o furor nacionalista dalguns mexicanos. Não é uma raça. Contudo, é um povo. Prevalece no todo algo de índio. Quer seja nos homens de fato-macaco da Cidade do México, ou nos de pernas esculturais e calças apertadas, ou nos camponeses de largas calças brancas, nota-se em todos qualquer coisa de comum: o porte erecto, a forma de andar, de pernas destacando-se do quadril, joelho levantado e passos curtos; os ombros deitados para trás, suportando com dignidade régia a manta dobrada; o modo airoso como equilibram o chapelão na cabeça. E quase todos são belos, com a sua pele escura e acetinada, cabelos negros e luzidios como uma soberba plumagem, grandes olhos brilhantes que nos fixam admirados... E o sorriso insinuante e repentino que apenas atinge os lábios...
Sim, no entanto ela devia lembrar-se também da quantidade de homens de aspecto insignificante, alguns imundos, que olhavam para as pessoas com fria hostilidade quando transitavam na rua em passos felinos. Homenzinhos venenosos, rígidos, glaciais, tão ameaçadores como os escorpiões.
E as faces verdadeiramente terríveis de certas criaturas da cidade, um tanto inchadas pela peçonha da tequila, e os olhos tenebrosos, imersos em pura maldade. Jamais ela vira como na Cidade do México rostos assim tão animalescos e depravados. O país causava-lhe uma estranha impressão de desespero e intrepidez. Jamais acabrunhado, resistindo sempre, esse povo vivia em esperança e sem tristeza, até por vezes alegre. Assemelhavam-se um pouco aos Irlandeses, mas iam mais longe. E conseguiam o que os Irlandeses, enfatuados, espectaculares, raras vezes conseguem: comover. Suscitavam em Kate um extraordinário sentimento de compaixão.
Ao mesmo tempo, ela temia-os. Abatiam-na, empurravam-na para as profundezas do nada.
As mulheres provocavam-lhe a mesma sensação. com as suas saias compridas, pés descalços, o xaile azul-escuro a que chamam rebozo a envolver-lhes a cabeça e os ombros, eram a imagem da submissão, da feminilidade primitiva do mundo, tão remota e tocante. Muitas mulheres ajoelhadas numa igreja, com a mancha clara das saias sobre o lajedo, cabeça e ombros cingidos pelo xaile; uma igreja cheia de mulheres embuçadas, ali reunidas em humilde prece de temor e bem-aventurança, eis um espectáculo que impressionava Kate. Dobrados como seres ainda não de todo evoluídos.
Os cabelos negros e oleosos, em que elas catam piolhos; o nené, só com os olhos à mostra, baloiçando como uma abóbora no xaile, suspenso do ombro da mãe; os pés e os tornozelos sujos; e aqueles olhos negros, brandos, suplicantes, e contudo um tanto insolentes. Qualquer coisa de oculto, como uma serpente escondida... Medo! Medo de não ser capaz de chegar ao inteiro desenvolvimento. E a inevitável desconfiança e insolência contra uma criação superior...
Kate receava mais as mulheres do que os homens. As mulheres eram pequenas e insidiosas, os homens eram grandes e temerários. Mas os olhos de uns e outros tinham ao centro esse abismo do mal e da insolência.
E às vezes ela perguntava a si mesma se a América não seria realmente a grande negação, em face da afirmação europeia, asiática e até africana. Se não seria a cuba enorme onde os homens dos continentes positivos se fundiam, não para uma nova criação mas para a homogeneidade da morte. Era o continente da ruína, e todos os seus habitantes os agentes da mística destruição. Destruir, destruir a alma, arrancar o germe criador, até tornar o homem num ser de reacções automáticas, mecânicas, com o único desejo de despojar de cada indivíduo toda a vida espontânea.
Talvez fosse isto, a América... O grande continente da morte, o continente que destrói o que os outros construíram. O continente que luta apenas por arrancar os olhos da face de Deus...
E todos que lá iam, europeus, africanos, japoneses, chineses, todas as cores e raças, eram os inúteis, os gastos, os já desprovidos da força de Deus; esses é que se dirigiam para a terra da negação onde a vontade humana se declara "livre" para demolir a alma do mundo. Não seria esse o motivo do êxodo para o Novo Mundo, êxodo de almas esgotadas que passam para as fileiras da democracia sem Deus, para a negação categórica que é o sopro vital do materialismo? E esse esforço negativo dos Americanos não acabaria por
despedaçar o alento do mundo?
De vez em quando, ocorria a Kate este pensamento. Ela própria, porque viera à América?
Porque secara a corrente da sua vida, e sabia que não podia fazê-la renascer na Europa.
Esses indígenas magníficos! Talvez fossem assim tão belos por serem adoradores da morte, adoradores de Moloch... O puro conhecimento da morte, a aceitação do nada é que lhes daria aquele ar despreocupado e altivo.
Os brancos tiveram uma alma e perderam-na; apagou-se neles o
fogo, e a sua vida começou a desenrolar-se em sentido inverso.
Aquela expressão vazia que se nota nos olhos de tantos brancos,
uma expressão de inutilidade... Mas os nativos de pele escura,
com a sua chamazinha de vida rodopiando em volta de uma órbita sombria, seriam ocos como tantos brancos? Estranha flama de coragem nos olhos negros dos mexicanos! Contudo não preenchiam o centro, o centro que é a alma do homem. Todos os esforços dos brancos para trazerem a alma da gente escura do México a um objectivo concludente nenhum resultado produziram além do colapso dos próprios brancos. Contra a corrente mansa do índio, o branco sucumbira, com o seu Deus e a sua energia. Tentando transformar o homem trigueiro e acomodá-lo à sua vida, o branco soçobrara no vácuo que ele queria preencher. Procurando salvar a alma do outro, perdera a sua e perdera-se a si próprio.
México! País abrupto, árido, selvagem, onde em cada sítio se erguem imponentes igrejas como se surgissem do nada. Paisagem torturada, guarnecida de templos com domos semelhantes a bolbos prestes a rebentar e campanários como rendilhados pagodes irreais. Templos grandiosos, elevando-se acima das choças de palha dos indígenas, como fantasmas à espera que os expulsem.
E as fazendas destroçadas, com as alamedas em ruínas que recordam o desaparecido esplendor...
E as cidades mexicanas, grandes e pequenas, que os espanhóis fundaram... As pedras vivem e morrem com o espírito dos construtores. Fenece no México o espírito espanhol, e até as pedras dos edifícios vão morrendo. Os nativos amontoam-se de novo no meio das praças e as construções espanholas adquirem um aspecto cada vez mais gasto e solitário.
Raça conquistada! Cortez vem com o seu tacão de ferro e a sua vontade de ferro. Mas uma raça conquistada (a não ser que lhe incutam novo ideal) suga lentamente o sangue dos conquistadores, no silêncio duma noite estranha e com uma obstinação sem esperança. Por isso, agora, a raça dos conquistadores no México é mole e desossada.
Kate não podia olhar para as pedras do Museu Nacional do México sem sentir medo e depressão. Cobras enroladas como excremento, serpentes de colmilhos e empenachadas como seres de pesadelo. E eis tudo.
As pirâmides maciças de San Juan Teotihuacan, a Casa de Quetzalcoatl rodeada pela serpente das serpentes, com as suas presas enormes hoje tão brancas e puras como nos séculos passados em que eram vivos os seus criadores. Ele não morreu, não está tão morto como as igrejas espanholas, esse dragão de horror do México.
Cholula, com o seu templo e altar! E essa mesma sensação de esmagamento, essa pressão exercida pela confrangedora pirâmide! Peso, abatimento... Do vasto mercado evola-se um fascínio doloroso e insistente.
Mitla, sob as colinas, no vale ressequido onde o vento ergue o pó e as almas mortas duma raça que se extinguiu em turbilhões pavorosos... Pátios esculpidos de Mitla, com as suas arestas vivas, o seu complicado sortilégio feito de pavor e repulsa... Oh, América, com a tua inexplicável falta de sedução, qual é pois a tua mensagem? É a faca do sacrifício, sempre vibrante, como se estivesses a mostrar a língua ao mundo inteiro?
América sem encantos! com a tua beleza dura e vingativa, tencionas espalhar eternamente a morte destruidora?
Enquanto fores vítima de ti mesma...
No entanto... No entanto... Oh, a voz suave dos seus naturais... Vozes de crianças, como pássaros sussurrando entre as árvores, na praça de Tehuacan! Oh, brandos contactos, docilidade... Quietação da morte, nos seus dedos sombrios? Música da presença mortal, nas suas vozes?
Kate voltou a pensar no que lhe dissera Don Ramon.
"O México oprime-nos com peso esmagador. Mas talvez seja uma coisa semelhante à força da gravitação, para que nos equilibremos nos pés... Talvez nos puxe como a terra puxa as raízes de uma árvore, para que fiquemos agarrados profundamente ao solo. Os homens ainda são parte da árvore da vida e as raízes mergulham no centro da terra. As folhas perdidas são expulsas pelo vento a que se chama liberdade; mas a árvore da vida deitou raízes profundas.
É possível que a senhora necessite de ser oprimida até que lance raízes na terra e possa depois beber a seiva e erguer as folhas para o céu.
Para mim, os homens do México são semelhantes a árvores, florestas que os brancos derrubaram quando da sua vinda. Mas as raízes ficaram profundas e vivas, e dão rebentos. Cada rebento desmorona "uma igreja espanhola ou uma fábrica americana; e em breve a floresta se levantará novamente para apagar os monumentos espanhóis da face da terra.
O mais importante de tudo são as raízes que atingem mais longe do que a destruição. As raízes da vida encontram-se lá. As florestas só esperam um sinal para surgirem da terra. É preciso que alguém dê a voz de comando."
Estranho tom profético o dessas palavras! Contudo, apesar do pressentimento fatídico que ela tinha no coração, Kate decidiu não se ir embora já. Ficaria mais algum tempo no México.
v
Owen partiu e Villiers demorou-se mais alguns dias para acompanhar Kate até ao lago. Se esta gostasse do sítio, e encontrasse casa para alugar, poderia aí ficar sozinha.
Conhecia bastante gente na Cidade do México e em Guadalajara para não se sentir isolada, mas ainda se retraía à ideia de viajar sem companhia naquele país.
Queria sair da cidade. O novo presidente assumira o poder sem escaramuças; no entanto, sentia-se nas classes baixas um espírito de revolta. Reapareciam os antigos e mesquinhos rancores, como reaparece um cão sarnento e raivoso que enxotássemos. Kate nada tinha de pretensiosa. Quer fosse homem ou mulher, não se preocupava com a sua classe social. Detestava, porém, os entes somíticos e sórdidos. Eram todos cheios de inveja e malícia. Ah, não, defendamo-nos do cão raivoso, que rosna e mostra os dentes amarelos.
Antes de partir, Kate tomou chá com Cipriano.
- Está de boas relações com o Governo? - perguntou ela.
- Defendo a lei e a constituição. Bem sabem que não intervenho em revoluções. Don Ramon é o meu chefe.
- De que maneira?
- Verá mais tarde.
Cipriano tinha um segredo que considerava importante e que guardava cuidadosamente. Mas olhava para Kate com olhos tão brilhantes que se via bem estar disposto a revelá-lo mais tarde ou mais cedo - o que o tornaria muito mais feliz. Observava-a, curioso, e atento, sob as pestanas negras. Kate era uma dessas irlandesas de formas maciças, cabelos castanhos, sedosos, e olhos da mesma cor, e de presença calma, um tanto alheada. O seu encanto residia precisamente nessa doce tranquilidade e na inacessibilidade involuntária. Era mais alta e mais forte do que Cipriano, o qual tinha a estatura dum rapazinho; mas este respirava energia, e as suas sobrancelhas pretas em arco sobre os olhos igualmente pretos davam-lhe uma expressão quase insolente.
Observava-a de contínuo com uma espécie de fascinação: o mesmo sortilégio que o envolvia na infância quando contemplava a imagem da Madona. Ela era o mistério e ele o adorador extasiado perante aquele mistério. Contudo, depois de haver ajoelhado em espírito, erguia-se tão senhor de si mesmo como antes, dominando a sua adoração. Cipriano, porém, possuía um poder magnético que a sua educação não fizera diminuir. Essa educação assemelhava-se a uma camada de óleo branco no escuro lago da sua consciência bárbara. Por esta razão, as coisas que ele dizia apresentavam pouco interesse; o interesse estava só na sua pessoa. À volta dele o ar tornava-se mais espesso, mais opulento. Às vezes, tal atmosfera pesava intoleravelmente sobre Kate, que fazia o possível por lhe escapar.
- Faz bom conceito de Don Ramon? - inquiriu ela.
- Sim senhora, é um homem inteligente - respondeu o general fitando-a com o seu olhar sombrio.
Que triviais pareciam aquelas palavras! Eis outra coisa desconcertante em Cipriano: o seu inglês tornava banal tudo quanto dizia, como se não exprimisse o que ele realmente desejava. Mal conseguia afastar o óleo branco da superfície.
- Dedica-lhe mais estima do que dedicava ao bispo? Perplexo, Cipriano encolheu os ombros.
- A mesma.
Depois olhou para longe com certa altivez, certa insolência.
- O caso é diferente - continuou - embora parecido nalguns pontos. Don Ramon conhece melhor o México, e a mim próprio também. O bispo Severn ignorava o que era o México autêntico, o que não admira, visto ser católico fervoroso. Mas Don Ramon... ah, esse conhece bem o México.
- E o que é o México autêntico?
- Pergunte-o a Don Ramon. Por mim, não conseguirei explicar.
Kate enveredou a conversa para a sua ida ao lago.
- Sim, deve ir. Há-de rostar. Vai primeiro a Orilla, não? Tome o comboio de Ixtlahuacan, e em Orilla encontrará um hotel que tem um alemão como gerente. Dali, siga de barco para Sayula. é questão de poucas horas. Em Sayula com facilidade achará casa para alugar.
Desejava que ela lhe obedecesse, e Kate compreendeu-o.
- A que distância fica de Sayula a fazenda de Don Ramon?
- É perto. Cerca de uma hora de barco. Ele está lá presentemente, e eu no começo do mês vou para Guadalajara com a minha divisão. Agora, há novo governador... Por isso, ficarei próximo também.
- Será muito agradável.
- Sinceramente? - inquiriu ele em tom brusco.
- Pois claro - replicou ela, cautelosa, olhando-o bem de frente. - Teria muita pena de não continuar a minha convivência consigo e com Don Ramon.
Notou em Cipriano um leve franzir da testa, o que lhe deu um ar altivo mas ao mesmo tempo ansioso.
- Gosta muito de Don Ramon? Quer conhecê-lo melhor? Sentia-se-lhe na voz estranha inquietação.
- Gosto. Hoje em dia, são tão raras as pessoas que nos infundem respeito... e um pouco de medo! Tenho certo medo de Don Ramon, e o maior respeito - concluiu Kate em tom de grande sinceridade.
- Muito bem, óptimo. Pode respeitá-lo mais do que a qualquer outro homem do mundo.
- Talvez... - retorquiu ela, olhando-o de novo fixamente.
- Sim, sim! - exclamou Cipriano, convicto. - com certeza. Mais tarde o verificará. E Don Ramon simpatiza consigo. Foi ele que me sugeriu que lhe pedisse para ir ao lago. Quando chegar a Say ula, escreva-lhe, e ele lhe indicará uma casa e tudo o mais.
- Parece-lhe? - disse ela, hesitante.
- Não tenha dúvida. Falo com toda a franqueza.
Que homenzinho curioso, com a sua estranha altivez impulsiva, qualquer coisa que havia dentro dele e lhe dava aquela inquietação. Depositava em Don Ramon uma fé quase infantil. E, no entanto, Kate suspeitava de que ele no recôndito da sua alma devia abrigar certo rancor contra o amigo.
A irlandesa tomou o comboio da noite para o Oeste, acompanhada de Villiers. A única carruagem Pullman ia repleta de gente que se dirigia para Guadalajara, Colima e outros pontos da costa. Seguiam ali três oficiais do Exército, um tanto acanhados na sua farda nova, mas vaidosos ao mesmo tempo. Relanceavam olhares em volta, convencidos de que os admirava, e logo se encolhiam nos seus assentos como se esquecidos de si mesmos. Havia ainda dois lavradores ou rancheiros de calças apertadas e chapéus largos como rodas, pespontadas de prata. Um era alto, de grande bigode, outro mais baixo e já grisalho. Ambos, porém, tinham a perna ágil e bem modelada dos mexicanos e a fisionomia apagada da raça. Estava lá também uma viúva envolta em crepes, com a sua criada. Os outros passageiros eram mexicanos da cidade que viajavam por negócio; notava-se-lhes o ar simultaneamente tímido e provocante, discreto e todavia cheio de importância.
O Pullman achava-se muito limpo, com os seus assentos de pelúcia verde. Apesar de cheio de gente, parecia vazio comparado com os dos Estados Unidos. Iam todos quietos, afáveis, cautelosos. Os lavradores dobraram esplêndidas mantas e colocaram-nas de molde a poderem instalar-se confortavelmente. Os oficiais fizeram o mesmo aos seus capotes e dispuseram em torno de si uma quantidade de embrulhos, além de caixas de chapéus, de cartão. Quanto aos homens de negócios, esses levavam bagagem da mais estranha espécie, entre a qual se viam sacos de tecido variegado.
Em toda aquela turba reinava o sentimento da circunspecção, do recolhimento, a que se unia uma impressão de receio. Já era coisa notável viajar num Pullman: tinha-se de ser discreto.
A tarde estava pardacenta. Aproximava-se, de facto, a época das chuvas. Redemoinhou o vento, caíram algumas gotas de água. O comboio afastava-se da região seca e poeirenta que cercava a cidade, tendo parado só por poucos minutos ao pé da rua principal da aldeia de Tacubaya. Kate observou os homens que estacionavam em grupos, segurando o chapéu contra o vento. Tinham a manta ao ombro, próximo dos olhos, a fim de se protegerem do pó. Mal se mexiam, semelhantes a espectros, com os olhos cintilando entre o cobertor e a aba do chapéu. Os burriqueiros corriam freneticamente no meio das nuvens de poeira, soltando gritos agudos para evitar que os animais se metessem entre as carruagens. Aqui e ali, por baixo das rodas, vagueavam cães. Envoltas nos seus xailes azuis, as mulheres ofereciam tonillas embrulhadas em panos para as conservarem quentes, ou pulque em jarros de barro, ou bocados de galinha temperada com um molho espesso e avermelhado. Vendiam também bananas, laranjas e pitangas. Quase ninguém lhes comprava a mercadoria, por causa da incomodidade do tempo; elas, então, com a cara meio tapada pelo xaile, ficavam a contemplar, imóveis, o comboio.
Era perto das seis horas. A terra estava inteiramente ressequida. Alguém ateava carvão em frente duma casa. Sob o vento, equilibrando os chapéus enormes, viam-se homens apressados. Às vezes parava um ou outro cavaleiro, de espingarda a tiracolo, para daí a instantes prosseguir a trote rápido, perdendo-se na distância.
O comboio continuava no mesmo ponto. Kate e Villiers apearam-se e puseram-se a ver as faúlhas que saltavam do brasido em que uma rapariguita fazia tortillas.
Além da primeira classe, o comboio tinha segunda e esta ia abarrotando de camponeses índios, empoleirados como frangos, com suas sacas, trouxas, garrafas, um ror de coisas indescritíveis. Havia uma mulher que sobraçava um pavão magnífico; pô-lo no chão e tentou debalde escondê-lo debaixo das saias volumosas. A ave recusou-se ao estratagema, e ela então levantou-o, colocou-o sobre os joelhos e olhou outra vez em roda, entre o amontoado de vasilhas, cestos, abóboras, melões, espingardas, trouxas e seres humanos.
À frente encontrava-se um vagão de aço, guardado por militares enfezados, de uniforme pouco limpo. No topo da carruagem encarrapitavam-se alguns soldados com as suas espingardas: as sentinelas.
E em todo o comboio, fervilhando de vida, pairava extraordinário sossego. Talvez a constante sensação de perigo torne as pessoas silenciosas, delicadas, comedidas nos gestos e na voz.
O comboio partiu finalmente. Se ficasse ali parado ninguém se surpreenderia muito. Quem sabia o que se encontrava mais além? Rebeldes, bandidos, pontes destruídas, qualquer coisa deste género...
Entretanto, o comboio seguia tranquilo ao longo do vale extenso e monótono. Das montanhas circundantes só se viam as mais próximas. Nalgumas cabanas de adobe luzia o clarão vermelho do lume. Feito do pó da lava, o adobe apresentava um tom cinzento-escuro deveras triste. Ao longe estendiam-se campos ressequidos, com uma ou outra mancha verde. Via-se uma propriedade em ruínas, cujas colunas já nada suportavam.
Estava a escurecer, a poeira rodopiava na sombra; o vale parecia envolto em trevas e melancolia.
Desatou a chover. O comboio ia a passar junto de uma fazenda: piteiras gigantescas traspassavam com seus espinhos a espessura da noite.
De repente, acenderam-se as luzes, e o criado do Pullman veio baixar os estores - não fosse a claridade das janelas atrair alguma bala da escuridão exterior.
Serviram uma magra refeição por preço exorbitante. Depois de tirar a mesa, o criado voltou com grande espalhafato para fazer as camas e abaixar os beliches superiores. Eram apenas oito horas e os passageiros olharam-no com ar contrariado. Mas de nada serviu: o mexicano de cara simiesca e o seu ajudante picado das bexigas insinuaram-se com a maior desfaçatez entre os assentos, introduziram a chave por cima da cabeça dos viajantes e desceram os beliches. E humildemente, como cães enxotados, aqueles saíram ao corredor e foram para a sala de fumo ou para os lavabos.
Às oito e meia, cada qual recolheu à cama tão discretamente quanto possível. Ali não havia o rebuliço nem a familiaridade própria dos Pullmans americanos. Como animais submissos, os mexicanos esconderam-se atrás da sua cortina de sarja verde.
Kate tinha horror àquela proximidade dos viajantes, que se diriam larvas metidas em casulos verdes. E acima de tudo, esse rumor íntimo de se enfiar entre os lençóis... Detestava despir-se no forno do beliche e bater com o cotovelo no estômago do criado, que abotoava as cortinas do lado exterior.
No entanto, depois de se deitar, apagar a luz e erguer o estore da janela, teve de confessar a si mesma que era melhor do que uma carruagem-cama da Europa - e talvez a solução mais acertada para quem tiver de passar a noite em caminho de ferro.
Ali, naquele planalto tão elevado, sucedia à chuva um vento muito frio. Nascera a Lua, o céu estava claro. Rochedos, cactos enormes, extensões de agaves. O comboio parou numa estaçãozinha da encosta. Envolvidos em mantas, viam-se homens segurando rubras lanternas foscas que não iluminavam caras mas apenas buracos escuros. Porquê tão longa demora? Teria acontecido alguma coisa?
Partiram, finalmente. Ao luar, Kate viu um despenhadeiro de rochas e cactos e, lá no fundo, as luzes de uma povoação. Deitada no seu beliche, sentia o comboio percorrer lentamente o caminho sinuoso da vertente escarpada. Depois, adormeceu.
Acordou numa estação que parecia um inferno silencioso, com faces escuras aproximando-se das janelas, olhos cintilando na meia luz, mulheres embuçadas correndo ao longo da carruagem e equilibrando numa das mãos tabuleiros de tâmaras e tortillas, homens trigueiros com frutas e doces - e todos numa ansiedade tão intensa como calada. Luziam pupilas na janela do Pullman, surgiam mãos de repente, apresentando qualquer coisa para vender. Amedrontada, Kate fechou a janela; a cortina não era bastante.
Estava muito escuro na plataforma da estação; mas, na cauda do comboio, distinguiam-se as luzes da terceira classe. Passou um homem a apregoar doces: Cajetas! Cajetas! Lei de Celaya!
Ei-la, pois, em segurança ali no interior do Pullman, sem fazer nada senão escutar a tosse de algum vizinho, por trás dos cortinados verdes, e sentir a presença levemente inquieta dos mexicanos nos seus beliches sombrios. De facto, toda a carruagem exalava uma inquietação contida, talvez o receio de um ataque inesperado.
Kate adormeceu para acordar depois numa estação bem iluminada, provavelmente Queretaro. As árvores enormes tomavam aspectos teatrais ao clarão da luz eléctrica. Opules! - murmuravam vozes de homens, baixinho. Se Owen também viesse com certeza que se levantaria para ir, mesmo de pijama, comprar opalas.
E assim, com sonos intermitentes, ao embalo da carruagem, ela pressentia as estações sucedendo-se na profunda noite do campo raso. Até que despertou sobressaltada no meio de um silêncio mortal. Tinha havido uma sacudidela forte, como se oPullman entrasse num desvio. Devia ser Irapuato, onde enveredavam para o Oeste.
Chegariam a Ixtlahuacan pouco depois das seis horas da manhã. Quando o criado a acordou o Sol ainda não se levantara. Paisagem árida, com moitas de arbustos donde pendiam vagens grossas. Ao longe, campos de trigo-mourisco, aqui verde, acolá maduro. Andavam homens a ceifar, de foice em punho. Céu brilhante, sombras azuladas sobre a terra... Encostas abrasadas, onde ficaram restolhos de milho. Mais adiante uma fazenda abandonada sobre a qual um cavaleiro, de manta aos ombros, conduzia vacas silenciosas, ovelhas, touros, cabras, cordeiros, tudo com ar espectral nessa alvorada, como um cortejo vacilante. Junto do caminho de ferro havia um canal extenso coberto de folhas largas, verdes e lustrosas, das quais emergiam cabeças roxas de um lírio, os jacintos aquáticos. O Sol ascendera no horizonte, avermelhado. Não tardou que resplandecesse a ofuscante e oirescente manhã mexicana.
Kate, vestida e pronta, estava sentada em frente de Villiers quando pararam em Ixtlahuacan. O criado levantou a bagagem. Apearam-se. Era a estação de um país desértico e era também um novo dia.
Na luz forte da manhã, sob um céu azul-turquesa, Kate observou a estação solitária, as linhas do caminho de ferro, os vagões de mercadorias ali parados. Tudo parecia desprovido de vida e como se doutra época. Um garoto agarrou nas malas e, atravessando a via férrea, correu para o pátio da estação, que, apesar de calcetado, estava coberto de ervas. A um lado, como relíquia, estacionava um velho carro eléctrico a que haviam atrelado duas mulas. Passavam homens silenciosos, envoltos em mantas escarlates.
- Ailomle? - perguntou o rapaz.
Kate, porém, quis primeiro verificar a sua bagagem. Encontrava-se toda ali.
- Hotel Orilla - disse ela.
O pequeno explicou que tinham de ir no eléctrico, de modo que lhe obedeceram. O condutor chicoteou as mulas, e o veículo, na luz pesada e imóvel da manhã, começou a descer uma rua cheia de covas, entre muros arruinados e casas de adobe, naquela peculiar desolação duma cidadezinha mexicana abandonada. Que estranha falta de vida! Tudo tão vazio... De quando em quando, passava um cavaleiro, e um ou outro homem de manta vermelha e chapéu de aba larga. Empoleirado num muar, um rapaz distribuía leite tirado de vasilhas suspensas de cada lado da montada. A rua era pedregosa, desnivelada, deserta. As pedras pareciam mortas e a cidade feita de pedra morta. Dir-se-ia que a vida humana despertava contra vontade, apesar do sol brilhante.
Por fim, chegaram ao largo, onde floriam belas árvores, umas rubras como brasas ardentes, outras de tom azulado, em volta de tanques de água leitosa. Esta água transbordava, e mulheres despenteadas, ainda com olhos de sono, saíam das portas decrépitas e atravessavam o passeio descalcetado para encherem as suas bilhas.
Parou o carro, e Kate e Villiers apearam-se. O rapaz encarregado da bagagem declarou-lhes então que deviam ir ao rio tomar um barco.
Obedecendo às indicações, seguiram pelos passeios desmantelados, onde a cada momento se arriscavam a deslocar um artelho ou quebrar uma perna. Por toda a parte a mesma indiferença e abandono, a mesma impressão de sujidade sob aquele céu radioso e no ar puro da manhã. Sujidade, decadência, ausência de vida...
Chegaram aos limites da povoação, atingindo uma ponte abaulada, sob a qual deslizavam águas barrentas. Perto da ponte estava um grupo de homens.
Cada qual queria alugar o seu barco. Kate pediu a lancha a vapor do hotel. Responderam-lhe que não havia nenhuma, o que a irlandesa não acreditou. Então um rapaz de pele muito escura e cabelos tombados na testa explicou que o hotel possuíra de facto uma lancha, mas que se estragara. A senhora tinha de ir em barco de remos. Em hora e meia ele a conduziria ao seu destino.
- Hora e meia? - volveu Kate.
- Sim, señorita.
- E eu que estou com tanta fome! - exclamou ela. - Quanto quer pelo transporte?
- Dois pesos - respondeu o barqueiro, estendendo dois dedos.
Kate concordou com o preço e o homem encaminhou-se para a sua canoa. Era aleijado, tinha os pés virados para dentro - e, contudo, que força e agilidade!
Desceram ao rio e em poucos instantes Kate e Villiers encontraram-se instalados no barco. Das margens tombavam salgueiros, dum verde tenro, até à água amarelada do rio estreito, encaixado entre ribas.
A canoa deslizou por baixo da ponte, ultrapassando um lanchão que continha vários renques de bancos. O barqueiro disse que ia para Yocotlan - e indicou com o dedo a direcção.
O estropiado remava com energia. Quando Kate lhe dirigia a palavra no seu mau espanhol, e que ele não compreendia, enrugava a testa com certa impaciência, mas quando ela ria a face do homem iluminava-se com um sorriso impregnado de compreensão e doçura. Pressentia-se nele um carácter honesto, franco e generoso. Havia beleza naqueles indivíduos, uma beleza ansiosa e grande força física. Porque é que o país a enchia de amargura?
A manhã estava ainda no começo. O ar azul envolvia o rio silencioso; e nas margens, agora despidas de árvores, corriam despreocupadamente galinhas-d'água, para trás e para diante...
Do rio estreito tinham passado para um bastante mais largo. Sob as pimenteiras-da-índia, na costa distante, mantinha-se a humidade e melancolia da noite já desaparecida.
O barqueiro remava contínua e compassadamente, cortava com esforço a água de aparência viscosa, só se detendo para limpar o suor da cara com um trapo que tinha no banco, a seu lado. A transpiração corria-lhe em fio pelas faces escuras, alagava-lhe o cabelo negro.
- Não há pressa - declarou Kate, sorrindo.
- Que diz a señorita?
- Não há pressa - repetiu ela.
O homem sorriu também, parou e, depois de respirar fundo, explicou que remava contra a corrente. Aquele rio fluía do lago, espesso e pesado. Enquanto ele descansava uns momentos, o barco começou a mover-se, e o barqueiro empunhou de novo os remos.
Avançavam com lentidão, no silêncio matutino, sobre a água amarelada onde flutuavam tufos de ervas. Viam-se nas margens salgueiros e pimenteiras de folhagem delicada. Para além, erguiam-se montes que se diriam de barro cozido. Recortavam-se no céu azul, sem vegetação, sem vida: só os cactos, de um verde quase negro, ostentavam as suas folhas espinhosas naquela aridez ocrácea. Ali estava o México, seco, luminoso, inundado de sol ofuscante, cruel e irreal.
Empoleirado na garupa dum burro, um homem conduzia para a beira de água cinco vacas magníficas, malhadas de preto e branco, que avançavam em passo vagaroso e, junto das pimenteiras, pareciam bocadinhos movediços de luz e de sombra.
A terra, o ar, o rio, tudo estava mudo na claridade da manhã, que ia dissipando como um sopro os restos do azul nocturno. Nenhum som, nenhum sinal de vida. A luz era mais forte do que a própria vida. Somente, lá no alto, alguns bútios descreviam círculos com as suas asas poeirentas, como tudo o que se vê no México.
- Não temos pressa! - tornou Kate a dizer ao barqueiro, o qual enxugava o suor mais uma vez. - Podemos ir mais devagar.
O homem esboçou um sorriso suplicante:
- Se a señorita fizesse o favor de se sentar à popa...
A princípio, Kate não compreendeu o pedido. O remador conduzira-os para a direita, onde o rio fazia um cotovelo, a fim de se desviar da corrente. Na margem esquerda, banhavam-se alguns homens: luziam ao sol os corpos nus e molhados, de uma bela cor castanha. Um deles, alto e forte, tinha a pele desse tom dourado
peculiar aos mexicanos-da cidade. Kate observava a cintilação daqueles corpos meio imersos na água.
Levantou-se a fim de passar para a ré do barco, onde Villiers se
encontrava. Nesse momento, viu a cabeça negra e os ombros brilhantes dum homem que vinha nadando em direcção ao barco. E enquanto ela se sentava, o banhista tomou pé, endireitou-se, e avançou para eles, patinhando, com o pano que lhe envolvia os rins a flutuar na água. Tinha a pele lisa, de uma cor soberba, e os músculos harmoniosos dos índios. Aproximava-se do barco, afastando o cabelo da testa.
O barqueiro olhava-o, sem manifestar surpresa, com um leve sorriso espelhado no rosto; um sorriso muito subtil, talvez de troça. Como se já esperasse por aquilo!
- Para onde ides? - perguntou o homem, com a água do rio a embater-lhe nas coxas vigorosas.
O remador esperou um momento, dando tempo a que os patrões respondessem; vendo, porém, que eles se conservavam calados, informou em voz baixa, como se contra vontade:
- Até Orilla.
O homem agarrou-se à popa do barco, enquanto o outro acariciava a água com os remos para manter a canoa direita.
- Sabeis a quem pertence o lago? - volveu o desconhecido, com insolência.
- Que diz? - replicou Kate, altivamente.
- Se sabeis a quem pertence o lago - repetiu o homem.
- De quem é?
- Dos antigos deuses do México - respondeu ele. - Quem passa no lago tem de pagar tributo a Quetzalcoatl.
Que estranha ousadia, mas tão mexicana!
- Como? - disse Kate.
- A senhora pode dar-me qualquer coisa.
- Mas porque lhe hei-de dar a si, se o tributo é a Quetzalcoatl? - redarguiu a irlandesa.
- Sou o enviado de Quetzalcoatl - declarou o homem com a maior calma.
- E se eu não lhe der nada?
Ele encolheu os ombros, estendeu a mão livre e cambaleou um pouco como se perdesse pé.
- Se quiser fazer do lago um inimigo... - replicou friamente, recuperando o equilíbrio. E pela primeira vez fitou Kate, mas já sem o ar de arrogância. Esboçou um gesto de adeus e impeliu o barco. - Não faz mal - acrescentou, meneando a cabeça e com um leve sorriso. - Esperaremos pelo raiar da Estrela de Alva.
O barqueiro começou a remar com energia.
De pé, dentro de água, o outro seguiu com a vista a canoa. O sol brilhava-lhe no tronco robusto, os olhos haviam assumido essa expressão alheada, fora da realidade, que era a verdadeira expressão de todos os indígenas. Também o remador, que virara a cabeça e observava o homem, tinha o ar abstracto, transfigurado, de quem se encontra suspenso entre as duas asas potentes da energia do mundo, Um olhar de extraordinária beleza, centro delicado do frémito da vida, tal o núcleo flutuando dentro duma célula.
- Que queria ele dizer com aquilo de "esperar pelo raiar da Estrela de Alva"? - inquiriu Kate.
O barqueiro sorriu lentamente.
- É um nome. - Parecia não saber mais nada, mas o simbolismo bastava-lhe para o consolar e amparar.
- Porque veio falar connosco? - tornou Kate.
- É um dos partidários do deus Quetzalcoatl, señorita.
- E você? Também é?
- Quem sabe? - redarguiu o homem. E ajuntou: - Penso
que sim. Somos muitos.
Fixava em Kate o olhar tão ausente e tão intenso, com um brilho
singular nas pupilas negras, que fez lembrar a Kate a estrela da
manhã, ou da tarde, suspensa entre a noite e o dia.
- A estrela de alva está nos vossos olhos - disse ela. E notou-lhe o sorriso de estranha beleza.
- A señorita compreende...
' O seu rosto voltou a ser uma máscara castanho-escura, como se feito de pedra translúcida. O homem remava agora com todo o seu
vigor. Mais adiante, o rio alargava-se, as margens desciam ao nível da água, formando baixios cobertos de juncos e de salgueiros.
Aquém destes, a vela branca duma barca parecia surgir da terra.
- Já nos encontramos perto do lago? - inquiriu Kate. O barqueiro limpou à pressa o suor da cara.
- Sim, señorita. Os barcos de vela estão à espera de vento para entrar no rio. Vamos passar pelo canal.
com um movimento de cabeça indicou a passagem estreita e tortuosa entre tufos de caniços. Kate lembrou-se do riozinho Anapo, envolto no mesmo mistério. O barqueiro, com uma espécie de tristeza e exaltação no rosto bronzeado, remava com quanta força tinha. Nadavam aves aquáticas no meio dos juncos, ou volteavam no ar azul. com gesto indolente, Villiers guiava o remador nos meandros do canal, ora para a direita, ora para a esquerda, para impedir que encalhassem.
Desde o momento que tivesse qualquer coisa de prático a fazer, Villiers sentia-se à vontade. Mais uma vez feria a nota americana do domínio mecânico...
Não compreendera nada do que se passara e, quando interrogou Kate, esta fingiu não o ouvir. Sentia certo mistério delicado no rio, no homem dentro de água, no barqueiro, e não queria ver quebrado o encanto com os pesados gracejos de Villiers. Estava farta do automatismo e verbosidade americana. Causavam-lhe náuseas.
- Bem constituído, aquele tipo que se agarrou ao barco! Que pretendia, afinal? - insistiu Villiers.
- Nada.
Passavam entre margens cor de barro, semeadas de pedras soltas, em direcção à claridade ofuscante do lago. Soprava de leste uma brisa leve que encrespava a superfície da água pouco profunda. Ao longe, deslizavam lentamente grandes velas brancas e, da outra banda, para além do lençol líquido, erguiam-se colinas de um azul muito claro mas de contornos nítidos.
- Agora é mais fácil - declarou o barqueiro. - Estamos fora da corrente.
Esboçou um sorriso, enquanto cortava com os remos a água ondulante e de aparência viscosa. Pela primeira vez Kate sentiu que descobrira o mistério dos indígenas, a estranha e enigmática doçura entre a Cila e a Caríbdis da violência; o corpo harmonioso e perfeito da ave que, no seu voo, agita e estende as asas de fogo; que remonta nos ares, entre o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões: macio, belo corpo de pássaro alando-se para sempre... o mistério da estrela vespertina brilhando no silêncio, entre o mergulho profundo do Sol e o vasto, efervescente refluir da noite; a magnificência da vigilante estrela matutina, que espia a transição da noite para a manhã...
Essa espécie de frágil, pura simpatia, sentiu-a Kate nascer entre ela e o barqueiro, entre ela e o homem que lhe falara de dentro da água. E não queria vê-la profanada pelos gracejos americanos de Villiers.
Ouviu-se um marulho brando. O remador afastou-se e dirigiu-se para onde estava uma canoa: esta encalhara, levada por um golpe de vento, e agora tinha de esperar que outra rajada a libertasse do baixio. Outro barco subia o canal, seguindo cautelosamente entre os bancos de areia. Vinha cheio de esteiras de palma, que é manufactura nativa, e conduziam-no com varas, para o desviar dos obstáculos, homens de peito nu e calças arregaçadas, equilibrando o sombrero com rápidas sacudidelas de cabeça.
Para além dos barcos viam-se aves estranhas semelhantes a pelicanos, imóveis sobre rochedos à flor da água.
Haviam atravessado uma enseada e aproximavam-se do hotel, edifício baixo e comprido sobranceiro ao lago e rodeado de bananeiras e pimenteiras. Por toda a parte as mesmas ribas áridas, a mesma secura implacável; e, sobre as colinas, a mancha escura dos cactos recortando-se no ar.
Lobrigava-se um cais em ruínas, onde se encontrava um homem de calças brancas e, mais adiante, um alpendre de barcos. Como pedaços de cortiça, flutuavam patos na água amarelada. O fundo era de calhaus. O barqueiro fez rodar a canoa, arregaçou as mangas e mergulhou o braço. com gesto rápido, apanhou qualquer coisa e, tornando a sentar-se, mostrou na palma da mão um vasinho de barro coberto de depósito calcário.
- Que é isso? - perguntou Kate.
- Vaso dos deuses - respondeu o remador. - Dos velhos deuses defuntos. Tome-o, señorita.
- Quero pagar-lhe.
- Não, señorita. É seu - volveu o homem, com aquela franqueza que às vezes se nota nos indígenas.
Era um púcaro pequenino, tosco e bojudo.
- Repare - tornou o barqueiro, virando o objecto de fundo para o ar. E Kate viu ali gravados os olhos e as orelhas fitas dum animal.
- Um gato! - exclamou ela. - É um gato.
- Ou um lobo da América. Um lobo!
- Deixe ver! - interveio Villiers. - Mas é muitíssimo interessante! Será realmente coisa antiga?
- Isto é antigo? - perguntou Kate.
- É do tempo dos velhos deuses - informou o barqueiro. E, com um sorriso, explicou: - Os deuses não comem muito arroz; só precisam de pucarinhos enquanto os seus ossos estão debaixo de água.
- Enquanto os seus ossos estão debaixo de água... - repetiu Kate. Compreendeu que ele se referia ao esqueleto dos deuses que não podem morrer.
Chegavam ao cais, ou melhor, ao montão de pedras e cimento que outrora fora um cais. O barqueiro saltou da canoa e manteve-a firme enquanto Villiers e Kate desembarcavam. Depois, agarrou nas malas e foi atrás deles.
Apareceu o homem de calças brancas seguido dum mozo. Era o gerente do hotel. Kate pagou ao barqueiro.
- Adiós, señorita - disse ele, sorrindo. - Que Quetzalcoatl a acompanhe.
- Sim! - exclamou Kate. - Adeus.
Subiram a ladeira entre bananeiras cujas folhas pendidas sussurravam na aragem. Das flores purpúreas pendiam os cachos ainda verdes.
O gerente, alemão, veio falar-lhes. Era homem de quarenta anos, com olhos azuis que pareciam opacos e pétreos por trás dos óculos. Adivinhava-se que vivia há muitos anos no México e em sítios isolados. O olhar, embora firme, revelava certo medo na alma
- não físico - e essa expressão de derrota característica do europeu que tem vivido durante muito tempo sujeito ao indomável espírito local. Mas a derrota era na alma, não na vontade.
Conduziu Kate ao seu quarto, na parte inacabada do edifício, e ordenou que lhe servissem o almoço. O hotel consistia numa velha casa rural com varanda (onde se encontrava a sala de jantar, cozinha e escritório) e numa ala de dois andares construída posteriormente, provida de bons quartos de banho e de quase todos os requisitos modernos, o que destoava do resto.
Essa ala estava por concluir havia mais de doze anos; tinham interrompido as obras quando da fuga de Porfirio Diaz e provavelmente nunca as terminariam.
Assim é o México. Não falando da capital, todas as construções modernas e pretensiosas estão ou a desmoronar-se ou inacabadas, com vigas enferrujadas à mostra.
Kate lavou as mãos e desceu para almoçar. Em frente da longa varanda os ramos das pimenteiras formavam como que uma cascata de luz verde. Cardeais de cabecinha erguida como botões de papoula entre as pontas róseas da árvore fechavam as asas castanhas sobre o fulgor rubro do corpo. Ao sol deslumbrante voava um bando de gansos em direcção à água barrenta, que fremia para além das pedras.
Era uma paisagem dura, estranha, com outeiros arredondados, maciços de cactos e o sulco poeirento duma estrada antiga. Sentia-se ali uma impressão de mistério e de impiedade, a petrificação do medo, uma destruição lenta e cruel.
Cheia de fome, Kate alegrou-se quando um mexicano de mangas arregaçadas e calças com remendos lhe trouxe os ovos e o café.
O homem, outro sobrevivente da época de Don Porfirio, era silencioso como todo o país, incluindo a água e as pedras. Só aquelas papoulas aladas davam uma nota de vida; e, contudo, pareciam aves sobrenaturais.
Como depressa se modifica a disposição de espírito! No barco, Kate lobrigara a soberba tranquilidade da estrela da manhã, o acerbo intermediário cintilando a sua quietude entre as energias do cosmos. Vira-a nos olhos pretos dos naturais, no corpo magnífico do homem que se aproximara do barco.
E agora aquele silêncio parecia-lhe cruel, implacável, vazio... O vazio intolerável das manhãs mexicanas. Kate sentia já o mal-estar que tortura as almas no país dos cactos.
Subiu ao quarto, parando na janela do corredor para observar os outeiros ressequidos que se elevavam atrás do hotel, com a massa verde-escura dos cactos sobressaindo na claridade crua. Em volta, deslizavam continuamente esquilos cinzentos, semelhantes a ratos... Sim, paisagem estranha, tão negra e sinistra ao clarão do sol!
Recolheu ao quarto para estar sozinha. Por baixo da sua janela, nos ladrilhos e rípios tombados da alvenaria inacabada, um peru branco, de um branco fosco, pavoneava-se com as suas fêmeas escuras. De vez em quando dilatava o monco cor-de-rosa e fazia ouvir os seus gluglus; ou então eriçava as penas como uma peónia e, silvando, desdobrava o leque metálico da cauda.
Para além do eterno frémito das águas amareladas e irreais, as montanhas perdiam o seu azul primitivo. Longes inconsistentes, erguendo-se na atmosfera seca, e no entanto impregnados de ameaça.
Kate tomou banho e depois foi sentar-se perto do desembarcadouro, à sombra do alpendre dos barcos. Por baixo dela. na água pouco profunda, mergulhavam patinhos brancos, levantando nuvens de poeira submarina. Aproximou-se uma canoa. Era um rapaz magro e de pernas musculosas quem vinha a remar. Correspondeu à saudação de Kate com a prontidão e alheamento peculiar dos índios, recolheu a canoa no alpendre e foi-se embora, pisando com os pés descalços o lodo das pedras e deixando no ar, atrás de si, uma sombra fria como quartzo.
Nenhum rumor, excepto o leve marulho da água e o grito ocasional do peru. Silêncio profundo, vazio, como se de vida refreada. Oh, vacuidade das manhãs mexicanas, por vezes ressonante da voz da ave!
E a extensão enorme da água, tremulando, tremulando até às montanhas perdidas na distância...
Perto, ali mesmo, bananeiras com as suas folhas dilaceradas, colinas áridas e cactos imóveis; à esquerda, uma fazenda e respectivas cabanas indígenas semelhantes a cubos feitos de lama. De tempos a tempos, montado num cavalinho, trotava na poeira da estrada um ranchero de calças justas e chapéu de grandes abas; ou, como fantasmas, passavam sem rumor camponeses escarranchados em burros, com o fato branco a flutuar.
Sempre algo de espectral. Todos os sons se abafavam, toda a vida se reprimia, tudo se continha. A terra, de tão seca, chegava a ser invisível, a água, viscosa, mal parecia água; suco linfático dos peixes, conforme já disse alguém.
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