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VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
CONTINUA
VI
No tempo de Porfirio Diaz, as costas do lago começaram a tornar-se na Riviera do México. Orilla ia ser Nice, ou pelo menos o Menton do país. Rebentaram, porém, mais revoluções e, em 1911, Don Porfirio fugiu para França, levando no bolso, segundo constava, trinta milhões de pesos de ouro. Mas nada nos obriga a acreditar nas afirmações dos seus inimigos.
Durante as revoluções que se seguiram, Orilla, que principiara a ser o paraíso de Inverno para os Americanos, recaiu no estado bárbaro e as construções ficaram por concluir. Em 1921, houve novo impulso, embora débil.
O terreno pertencia a uma família germano-mexicana, também possuidora de uma fazenda adjacente. Comprara a propriedade à Companhia dos Hotéis Americanos, a qual iniciara a exploração das margens do lago e falira no decurso das revoluções.
Os proprietários germano-mexicanos não eram populares entre os nativos. Aliás, nessa época, nem um anjo do céu seria popular... Entretanto, em 1921, o hotel reabriu discretamente, com um gerente americano.
Nos fins do ano, José, filho do proprietário, instalou-se na ala nova com a mulher e a sua prole. José era um pouco néscio, como são quase todos os estrangeiros depois de passarem uma geração no México. Tendo em vista certo negócio, foi ao banco de Guadalajara e voltou com um milhar de pesos de ouro - muito secretamente, segundo julgava.
Era uma noite de Inverno, mas branca de luar, e todos já haviam recolhido ao quarto quando apareceram dois homens no pátio e chamaram por José. Sem desconfiar de nada, este deixou a mulher e os filhos e desceu para atender os recém-vindos. Decorrido um instante, chamou pelo gerente, que desceu também, convencido de que se tratava de qualquer assunto respeitante ao hotel. Quando transpunha a porta, sentiu-se agarrado por dois indivíduos que lhe ordenaram:
- Não faça barulho!
- Que significa isto? - perguntou Bell, que tinha construído Orilla e passado vinte anos no lago. Reparou então que outros dois homens seguravam José.
- Acompanhem-nos - disseram.
Eram cinco mexicanos, índios ou mestiços - e os dois cativos, de chinelas e em mangas de camisa. Dirigiram-se para o escritório, situado na parte antiga da casa.
- Que querem? - inquiriu Bell.
- O dinheiro.
- Ah, está bem! - redarguiu o americano. No cofre forte só existiam alguns pesos. Abriu-o, mostrou o que havia e deu-lhes o dinheiro.
- Agora passem para cá o resto - disseram os homens.
- Não há mais nada - replicou o gerente com toda a sinceridade, pois José não lhe falara dos mil pesos.
Os cinco bandidos começaram a vasculhar o escritório. Encontraram uma pilha de mantas vermelhas, de que se apropriaram, e algumas garrafas de vinho tinto, que beberam.
- Queremos o dinheiro.
- Não posso dar o que não existe - respondeu o gerente.
- Muito bem! - exclamaram os homens, e puxaram das suas terríveis facas mexicanas.
Aterrado, José apresentou-lhes a mala com os mil pesos. O dinheiro foi envolvido na ponta duma manta.
- Agora, venham connosco.
- Para onde? - indagou o gerente, que principiava a estar assustado.
- Só até à colina, onde os deixaremos, para que não tenham ensejo de telefonar para Ixtlahuacan antes de estarmos longe - informaram os índios.
Lá fora estava um frio glacial. Só com as calças e a camisa em cima do corpo, o americano tiritava.
- Deixem-me ir vestir um casaco - pediu.
- Abafe-se com esta manta - replicou um índio alto.
Foi o que ele fez e, sempre agarrado por dois homens, seguiu José, que também ia prisioneiro. Saíram pela cancela, atravessaram a estrada poeirenta e subiram a vertente escarpada da colina, onde os cactos erguiam as suas folhas, semelhantes a mãos com dedos ameaçadores. A encosta íngreme e pedregosa tornava a marcha difícil.
José, que apesar dos seus vinte e oito anos era gordo, protestava à maneira débil dos mexicanos abastados.
Chegaram por fim ao cimo do outeiro. Três homens levaram José, deixando Bell perto dum maciço de cactos. A Lua resplandecia num perfeito céu mexicano. Em baixo, o lago cintilava. A noite estava tão clara que se distinguiam as montanhas a trinta milhas de distância. Nem um som, nem um movimento! No sopé da colina, ficava dhacieneJa e as cabanas com os seus ocupantes adormecidos. Mas que auxílio podiam esperar desses entes?
José e os três homens haviam desaparecido atrás dum cacto enorme. O americano percebia o rumor das vozes, mas não as palavras. Os dois guardas afastavam-se um pouco para ouvir o que os outros diziam.
O americano, que conhecia a terra em que estava e o céu que o cobria, sentiu no ar o frémito da morte - como é frequente acontecer no México. E a estranha perversidade aborígene, nesse momento desperta nos cinco bandidos, comunicou-se ao sangue de Bell.
Afastando a manta escutou atentamente. E ouviu o barulho surdo duma faca cravando-se com volúpia num corpo humano, assim como a voz alterada de José. "Perdóneme!" gritou este, ao tombar no chão.
O americano não esperou mais. Deixando cair a manta, saltou para meio dos cactos e correu como um coelho pela encosta abaixo. Perseguiram-no tiros de pistola, mas os Mexicanos não costumam ter boa pontaria. Escaparam-se-lhe as chinelas de quarto, e o homem magro, ágil e descalço, chegou num ápice ao hotel.
Encontrou todos acordados e em alvoroço.
- Estão a matar José! - bradou; e precipitou-se para o telefone, esperando a todo o momento ser atacado pelos bandidos.
O telefone encontrava-se na sala de jantar, na parte velha da casa. Ninguém, todavia, respondeu.
No seu quartinho por cima da cozinha, a cozinheira gritava. Na ala nova, um pouco mais longe, a mulher de José gritava também. Apareceu um dos criados.
- Vê se consegues chamar a polícia de Ixtlahuacan - disse Bell. E correu para o outro lado da casa, a fim de ir buscar a espingarda e barricar as portas. A filha, órfã de mãe, chorava com a mulher de José.
O telefone continuou mudo. Ao romper da aurora, a cozinheira declarou que os bandidos não fariam mal a uma mulher e foi buscar os homens da fazenda. Depois de o Sol nascer, mandaram um deles chamar a polícia.
Encontraram o cadáver de José, traspassado de catorze facadas. Tiveram de transportar o americano para Ixtlahuacan, onde ficou de cama, enquanto duas mulheres indígenas lhe retiravam dos pés os espinhos de cacto.
Os salteadores escapuliram-se através dos pântanos. Meses depois identificaram-nos em Michoacan graças às mantas vermelhas, e um deles, apanhado pela polícia, traiu os restantes.
Depois disso, o hotel manteve-se fechado, e só reabriu três meses antes da chegada de Kate.
Villiers apareceu com outra história. No ano anterior, os camponeses haviam assassinado o feitor de uma das propriedades da outra banda do lago. Despojaram-no de toda a roupa e deixaram-no estirado de costas, nu, com os órgãos sexuais cortados e metidos na boca, o nariz fendido e as narinas pregadas nas faces com dois compridos espinhos de cacto.
- Não me digam mais nada! - exclamou Kate.
Sentia no próprio céu a ameaça dum destino horroroso, e escreveu a Don Ramon para lhe anunciar a sua intenção de regressar à Europa. É certo que não presenciara nada de terrível, além da corrida de touros. E vivera até bons momentos, como naquela vinda de barco. Achava beleza e mistério nos Mexicanos, mas não suportava a sensação de horror, esse mal-estar...
Sem dúvida que os jornaleiros eram pobres. Noutros tempos ganhavam por dia vinte cêntimos, e o preço elevara-se a cinquenta cêntimos, ou um peso. Mas antigamente trabalhavam todo o ano, ao passo que só os chamavam agora na altura das ceifas ou das semeaduras. Nem trabalho nem salário, e durante a longa estação seca não havia nada que fazer.
- No entanto - disse o gerente alemão, que dirigira uma plantação de borracha em Tabasco, outra de cana-de-açúcar no estado de Vera Cruz, e uma fazenda em Jalisco -, no entanto, não é uma questão de dinheiro o que se passa com os trabalhadores. Não são eles que começam. São os descontentes da Cidade do México, que põem obstáculos a tudo e assumem um ar piedoso para apanhar os pobres. O mal vem daí. Esses agitadores espalham-se por toda a parte e envenenam os jornaleiros. Revolução, socialismo, tudo isso é uma espécie de doença infecciosa, como a sífilis.
- Mas não há ninguém que se oponha? - observou Kate. Porque é que os hacendados não lutam contra esse estado de coisas, em vez de se encolherem ou fugirem?
Os olhos do alemão cintilaram.
- O hacendado Tão corajoso é o proprietário mexicano que enquanto um soldado lhe viola a mulher se conserva escondido debaixo da cama e retém a respiração para que não o descubram!
Kate, um tanto atrapalhada, desviou os olhos para outro lado.
- Todos desejam a intervenção dos Estados Unidos. Odeiam os Americanos, mas querem salvar o seu dinheiro e os seus bens imóveis. Eis a bravura desses homens! Pretendem que os Estados Unidos anexem o México, a pátria amada, com a única condição de conservarem a bandeira verde, branca e rubra, e a águia com a serpente nas garras, para salvar as aparências... e a honra.
Sempre a mesma violência e amargura! Kate já estava cansada de tudo aquilo. Maçavam-na as próprias palavras "Trabalhismo" e "Socialismo".
- Já ouviu falar dos adeptos de Quetzalcoatl? - perguntou ela.
- Quetzalcoatl! - exclamou o gerente, dando um estalido no final da palavra, à maneira dos índios. - Cá está outra invenção dos bolchevistas. Achando que o socialismo necessitava dum deus, andam a ver se o pescam no lago. Servir-lhes-á de publicidade na próxima revolução...
E o gerente foi-se embora, incapaz de suportar mais aquele assunto.
"Oh, meu Deus! - pensou Kate. - Realmente, deve ser difícil viver aqui!"
Mas queria outras informações acerca de Quetzalcoatl e, mais tarde, mostrou ao alemão o pucarinho de barro.
- Sabe que se encontram destes objectos no lago?
- Sim, é vulgar... Arremessavam-nos à água na época dos ídolos, e é muito provável que ainda os arremessem, para depois os pescarem e venderem aos turistas.
- Chamam a isto o vaso dos deuses.
- Outra invenção.
- O que o leva a pensar assim?
- Querem lançar uma ideia nova, e então arranjaram essa sociedade nas imediações do lago, a dos Homens de Quetzalcoatl, que passeiam cantando hinos. Um expediente dos socialistas nacionais.
- Que fazem os homens de Quetzalcoatl?
- Pelo que vejo, nada, senão falar de si mesmos e exaltar a sua própria importância.
- Mas qual é a finalidade?
- Não sei. Penso que não é nenhuma, mas ainda que exista não lhe dirão, pois a senhora é um gringo, ou melhor, uma gringuita. e aquilo é só para os mexicanos puros: para os señores e para os caballeros... Hoje em dia, cada trabalhador do campo é um caballero, cada operário é um señor... Suponho que querem para si um deus especial, para rematar a sua obra.
- Donde partiu essa história de Quetzalcoatl?
- De Sayula. Consta que Don Ramon é o instigador. Talvez queira suceder ao presidente ou talvez tenha aspirações ainda maiores e espere ser o primeiro faraó mexicano.
Ah, como Kate se sentia sufocada por tanta fealdade e cinismo! O seu desejo seria invocar também os deuses desconhecidos para que lhe repusessem um pouco de encanto na sua vida e a salvassem da esterilidade desse mundo corrompido.
Pensou de novo em regressar à Europa. Mas para quê, afinal? Só encontraria política,misticismo untuoso ou sórdido espiritualismo - e nenhum encanto. A nova geração podia ser muito atraente, muito interessante, mas não possuía nada de misterioso.
Não, não voltaria à Europa.
Nem aceitava o parecer do alemão acerca de Quetzalcoatl! No fim de contas, ele não passava de gerente de um hotel. Como podia ser bom juiz naquele caso? Ramon Carrasco e Don Cipriano, esses sim, eram homens com um ideal. Kate queria acreditar neles. Fosse no que fosse, menos nesse mundo vazio e estéril para o qual deslizava a sua existência.
Devia também despedir Villiers. Seria amável, simpático, mas Kate queria libertar-se dele. As pessoas como Villiers assemelhavam-se a uma roda dentada que invertesse a marcha natural das coisas. Tudo o que ele dizia e fazia lhe dava a sensação de desviar o verdadeiro curso da vida.
Ao menos, apesar do horror latente no México, aqueles homens de face escura faziam pensar na vastidão da vida e nas profundezas insondáveis da morte.
É certo que por vezes explodiam horrores desses indivíduos, mas alguma coisa tem de explodir quando se não é uma simples máquina.
"Não, não, não! - gritava ela no íntimo. - Ainda acredito na simpatia humana. Que eu não perca esta crença."
No entanto, resolveu afastar-se de todo aquele mecanismo de retrocesso. Villiers tinha de regressar aos Estados Unidos. Ela ficaria no seu próprio meio, longe das rodas dentadas... Queria estar só, esconder-se e não ser obrigada a falar.
Mas ao mesmo tempo desejava que essa simpatia humana fluísse dentro do seu ser. Fechar as portas de ferro contra o mundo mecânico, mas deixar que a penetrasse aquela energia solar, sentir a força da vida, do sol e das estrelas - como uma árvore imensa que segura o peso das suas folhas.
Kate pretendia uma velha casa espanhola com o seu pátio interior cheio de flores e água. Flores à sombra entre muros altos. Sim, voltar as costas ao mundo mecânico e contemplar apenas uma fonte e laranjeiras debaixo da abóbada celeste.
E assim, tendo apaziguado o coração, escreveu de novo a Don Ramon que ia a Sayula procurar casa. Mandou Villiers embora. E no dia seguinte, em companhia de um criado, meteu-se na lancha do hotel e partiu para a aldeia de Sayula.
Era uma viagem de trinta e cinco milhas sobre o lago, mas desde que embarcou sentiu-se tranquila. Sentada à ré, manobrava o barco um rapaz alto e de face escura. Kate instalou-se a meio, sobre coxins, e o criado empoleirou-se à proa.
Partiram antes de o Sol nascer, quando o lago estava inundado de luz estática. Deslizavam na água tufos de jacintos, com uma folha verde alçada à laia de vela e oscilando as suas flores de azul delicado.
"Dai-me o mistério e deixai o mundo viver outra vez em mim - gritou Kate à sua alma. - E livrai-me do automatismo dos homens."
O Sol nasceu e, no cimo das montanhas, derramou-se uma claridade alvacenta. O barco seguia junto à costa norte, dobrando o promontório onde se erguiam as vilas tão airosas vinte anos antes mas agora abandonadas. Tudo estava silencioso e imóvel. Aqui e ali, sobressaíam manchas claras na aridez das colinas. Eram homens de fato branco, a cavar a terra. Tão minúsculos que pareciam aves pousadas no solo.
Do outro lado do promontório lobrigavam-se as fontes de água quente, a igreja, a aldeia inacessível dos índios puros que não falam espanhol. No sopé da montanha abrupta viam-se algumas árvores verdejantes.
O motor trabalhava de contínuo; o homem da proa enroscara-se como uma serpente, embora se conservasse vigilante; a água emitia uma luz intensa - e Kate foi-se deixando dominar pelo torpor que invadia tudo.
Passaram perto da ilha e das ruínas da antiga fortaleza. Entre os rochedos escarpados e as ervas secas viam-se ainda restos de muros e a carcaça de uma igreja. Durante muitos anos, tinham defendido a ilha contra os Espanhóis. Mais tarde os Espanhóis utilizaram-na contra os índios e transformaram-na em colónia penal. Agora era uma terra de desolação, infestada de escorpiões. Apenas viviam ali dois ou três pescadores, que habitavam a enseada, com o seu rebanho de cabras espalhadas pelas rochas. E ainda um pobre homem encarregado pelo Governo de-fazer o boletim meteorológico.
Kate não quis desembarcar nesse local sinistro. Tirou do cabaz uma refeição leve e, depois de almoçar, recaiu na sonolência.
Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um "eu" completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos reunidos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres actuais são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências.
Seres inacabados, como insectos que se movem pressurosos e de súbito ganham asas, mas que no fim de contas são sempre larvas aladas. Um mundo cheio de bípedes imperfeitos que se alimentam e degradam o único mistério que lhes ficou: o sexo. Tecendo grande quantidade de frases, enterram-se no casulo das palavras e das ideias que entrelaçaram ao seu redor e na maior parte morrem inertes e oprimidos.
Criaturas inacabadas, raramente mais do que semi-responsáveis, agindo em enxames, como insectos.
Que pensamento horrível! E, como insectos, às ordens de uma vontade colectiva, para evitar a responsabilidade de completar, de aperfeiçoar o indivíduo. Estranho, fanático ódio de se realizar num "eu" mais puro. Mórbido fanatismo da não integração.
Na luz crepitante do lago, com o angustiante cenário de montanhas orladas de azul, Kate sentia-se como que prisioneira dentro dum esqueleto medonho. Experimentava um terror quase sobrenatural do homem agachado à proa, com as suas coxas lisas e a sua flexibilidade de cobra. Ser inacabado, propenso à desintegração e à morte. E o homem alto, atrás dela, ao leme, tinha uma estranha fosforescência nos olhos, sob as pestanas negras, como às vezes se nota nos índios. Belo sem dúvida que o era, e calmo, e de aspecto reservado, mas com um sorriso diabólico na face, sorriso meio escarninho de quem conhece o seu poder de destruir as coisas mais puras. Kate, no entanto, sentia a virilidade desses dois homens; não a molestariam, a não ser que lhes comunicasse o seu pensamento e, com a sua cobardia, os incitasse. Eram almas primitivas, não dominadas pelo mal, que podiam pender para qualquer lado.
Assim, no íntimo, ela rogava ao maior dos mistérios, o mais alto poder que pairava nas partículas do ar quente, rico, poderoso. Era como se erguesse as mãos e agarrasse a silenciosa força tranquila que errava por toda a parte, esperando. "Vem, pois", disse ela, num hausto longo e lento, dirigindo-se a calmo sopro da vida que flutuava irrevelado na atmosfera - esperando.
Enquanto o barco deslizava, Kate, deixando os dedos rasgar a água tépida do lago, sentia invadi-la mais uma vez a paz das coisas, um influxo estranho. Enchia-lhe a alma uma plenitude de fruto sazonado. E pensou: "Ah, como eu fiz mal em não haver-me voltado, há mais tempo, para estoutra presença, de não ter aspirado mais cedo este sopro de vida! Que loucura amedrontar-me com a vista destes dois homens!"
Fez então o que não ousara antes: ofereceu-lhes as laranjas e sanduíches que restavam no cesto. Ambos olharam, o que tinha pupilas negras, o que as tinha fosforescentes. E este último, que parecia mais astucioso, mas também mais prudente, foi como se lhe dissesse: "Somos seres vivos. Conhecemos o vosso sexo e vós conheceis o nosso. Não queremos intrometer-nos nesse mistério. Deixai-nos com a nossa honra inata, e damos-vos graças por isso."
Naquele olhar, tão vivo e orgulhoso, e na plácida expressão muchas gracias, Kate notou um certo grau de reconhecimento másculo, a alegria de quem conserva a sua honra e experimenta a comunhão da mercê. Talvez que fosse devido à natureza da palavra espanhola gracias.
O mesmo quanto ao homem das pupilas negras. Este era, porém, mais humilde; mas, enquanto ele descascava a laranja, deitando na água o invólucro doirado, Kate pôde observar a tranquilidade, a modéstia, a ternura que irradiava dele: algo de muito belo e intensamente varonil, difícil de encontrar num branco civilizado. Não procedia da alma, antes do sangue escuro, forte, inviolado.
E disse ela consigo mesma: "Afinal, sempre é bom estar aqui. É óptimo achar-me neste barco, no lago, com estes dois semibárbaros silenciosos. Eles podem receber o dom da graça e partilhá-lo comigo. Sinto-me contente por estar aqui. É melhor do que o amor, o amor que eu conheci com Joachim."
- Sayula! - exclamou o homem da proa, apontando para a frente.
Kate descobriu, ao longe, um sítio onde havia árvores verdes na margem plana e um edifício imponente.
- Que é aquela casa? - perguntou.
- A estação do caminho de ferro.
Não foi pequena a admiração que lhe causou ver ali uma construção recente, de tanta envergadura.
Fumegava um vaporzito junto duma ponta de madeira. Em direcção à margem seguiam barcos escuros, muito carregados. O vapor apitou e partiu lentamente para o meio do lago, descrevendo uma linha curva e aproximando-se depois da outra banda, onde se erguem as torres geminadas de Tuliapan.
Ultrapassaram o molhe, contornaram os baixios de que emergem salgueiros, e Sayula deparou-se ao olhar de Kate. Viam-se as torres esbeltas da igreja, o perfil de um obelisco que chegava acima das pimenteiras e, mais além, uma colina solitária, salpicada de arbustos secos, com aspecto de paisagem japonesa. Na distância, ficavam as montanhas do México, enrugadas, redondas nos flancos, guarnecidas de azul.
Era calmo, delicado, quase nipónico. Conforme se aproximava. Kate distinguia a praia, onde havia roupa estendida na areia; salgueiros com os seus velos verdes; pimenteiras altas; vivendas entre folhas e flores, com reposteiros pendentes de buganvília roxa, manchas rubras de cardeais, e uma ou outra palmeira sobressaindo no conjunto. O barco alcançou um cais de pedra, no qual avultava um anúncio de pneumáticos. Havia bancos, vegetais que surgiam na areia, uma barraca de bebidas, um passeio, e barcos varados na praia. Sob guarda-sóis largos sentavam-se mulheres, na água moviam-se banhistas. Defronte das vivendas desabrochavam flores vermelhas entre o verde-escuro das árvores.
"É bem bom - disse ela consigo. - Nem muito selvagem, nem muito civilizado. Isto não está em ruínas e todavia deixou de ser novo. Acha-se ligado ao mundo, mas o mundo apenas o marcou debilmente."
Seguiu para o hotel, conforme lhe aconselhara Don Ramon.
- Vem de Orilla? É a senhora Leslie? Don Ramon Carrasco escreveu-nos uma carta de recomendação.
Tinham-lhe arranjado uma casa. Kate pagou aos barqueiros e apertou-lhes a mão. Sentiu pena de se separar deles, e eles olharam-na com expressão de saudade no momento de se despedirem.
"Neste povo - pensou Kate - há qualquer coisa de generoso, de sensível. Anseia por ser capaz de respirar o Magno Sopro. E, no entanto, permanece infantil, desarmado. Mas também há nele um não sei quê de diabólico. Tenho a certeza de que anela pelo verdadeiro sopro vital, pela comunhão da força - mais do que outra qualquer gente da Terra."
Surpreendia-se consigo própria por usar desta linguagem. A sua fraqueza e o seu sentimento de devastação haviam sido enormes. Por isso aquele Outro Hálito suspenso no ar e o influxo sombrio e azulado da terra lhe tinham, de tão súbitos, dado uma impressão de realidade superior à chamada realidade. Realidade que se misturava a tudo, concreta, fremente, exasperante: suave universo de força, aveludado fluxo terreno, delicado mas supremo sopro vital disperso na atmosfera...
A casa era o que ela pretendia. Tratava-se de uma construção em forma de L, coberta de telhas e com pavimentos ladrilhados. Tinha larga varanda e um pátio, assim como, separada pelo muro espesso, uma densa plantação de mangueiras. Tudo isso a tornava alegre, sem falar dos loendros e cardeais. Ao rés-do-chão cheio de ervas abria-se um tanque pequeno. Os vasos que guarneciam a varanda estavam repletos de gerânios e de flores exóticas. No extremo do pátio depenicavam galinhas. Reinava silêncio debaixo das bananeiras imóveis.
Tinha finalmente a sua casa fresca e sombria, cujos quartos davam todos para a varanda. Daí via o Sol brilhante, as flores, a água tranquila, as bananeiras amareladas, o negro esplendor das mangueiras de sombra densa.
A casa incluía uma mexicana, Juana de sua graça, mãe de duas pequenas de cabeleira espessa e de dois rapazes. Essa família habitava uma barraca, nas traseiras da sala de jantar. Ali, meio oculto, encontrava-se um tanque, a cozinha microscópica e um compartimento onde todos dormiam no chão, em cima de esteiras. As galinhas espojavam-se naquele canto, e as bananeiras sussurravam ao menor sopro de vento.
Kate dispunha de quatro quartos para escolher. Preferiu o da janela de grades que dava para a rua mal calcetada e coberta de ervas. Fechou as portas e deitou-se, pensando: "Agora estou sozinha. Só me resta uma coisa a fazer: não me deixar apanhar pelas rodas denteadas e agarrar-me bem ao novo ideal oculto."
Sentia-se extenuada, incapaz de qualquer esforço. Acordou à hora do chá, mas como este não existisse em casa, Juana foi comprá-lo ao hotel.
Juana era mulher de quarenta anos, baixa, morena, de olhos negros, cabelo hirsuto e andar claudicante. Falava rapidamente, num espanhol um tanto confuso, acrescentando "n" a todas as palavras. Tudo nela parecia desalinhado, até a linguagem. Dizia masn, em vez de más.
- No, niña, no hay masn.
Tratava Kate por niña, à velha moda mexicana. É o tratamento mais honroso para uma senhora.
Juana ia ser uma espécie de provação para Kate. Viúva de antecedentes duvidosos, era uma criatura ardente, impetuosa, fortificada por certa indiferença e desleixo. O dono do hotel assegurou ser ela pessoa honesta, mas concedeu a Kate toda a liberdade de mudar de criada.
Estabeleceu-se uma pequena luta entre as duas mulheres. Juana era teimosa e atrevida; a vida não lhe fora favorável, e daí lhe resultara certa insolência, tão comum nos entes escorraçados.
No entanto, tinha acessos de paixão calorosa e a peculiar generosidade dos indígenas. Desde que não estivesse em oposição, mantinha-se honesta por indiferença e desprezo.
Contudo, vigiava cautelosamente o seu campo, com uns laivos de malícia nos olhos negros. E Kate tinha a impressão de que esse tratamento de niña implicava uma leve nota de ironia malevolente.
Mas não havia nada a fazer senão andar para a frente e confiar nessa mulher de rosto trigueiro.
No segundo dia, Kate teve a coragem de tirar da sala a mobília de junco, os quadros e umas estantes pequenas.
Se existe um instinto social mais terrível do que todos os outros instintos sociais do mundo, esse é o mexicano. No meio da sala coberta de tijolos vermelhos havia dois jogos de mobília: uma preta, composta de sofá de cana dobrada, com duas cadeiras de cada lado, e outra, em frente desta, mas de cor acastanhada. Dir-se-ia que os dois sofás e as oito cadeiras eram ocupadas por fantasmas, sentados diante uns dos outros, com'os joelhos defronte dos joelhos e os pés poisados no horrível tapete verde com rosas encarnadas. Aterrava-a o simples espectáculo desse conjunto.
Kate quebrou-lhe a simetria, e pôs as duas petizas, Maria e Concha, sob a vista irónica de Juana, a transportar a mobília castanha e as estantes de bambu para um dos quartos vazios. Juana observava com olhos cínicos, assistindo a tudo aquilo por dever de ofício. Mas, quando Kate abriu a mala e dela tirou dois tapetes de cores claras e dois xailes e outras coisas miúdas para tornar o ambiente mais humano, a criada soltou exclamações de entusiasmo:
- Que bonito! Que bonito, niña. Mire que bonito!
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