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XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
CONTINUA
XXIII
A cerimónia de Huitzilopochtli realizou-se à noite no adro da igreja. Semelhantes a leopardos com as suas serapes listadas de negro, vermelho e amarelo, os guardas de Huitzilopochtli empunhavam archotes de ocote. No meio do largo haviam preparado uma fogueira.
Nos antigos campanários cintilavam lumes e desde o pôr do Sol que o tambor rufava, pesado e sinistro.
Ao mesmo tempo, de quatro pontos diferentes, estoiraram foguetes, derramando no céu um chuveiro de cores.
Abriram-se as portas da igreja e Cipriano apareceu com o seu manto escarlate e três penas verdes de papagaio espetadas na cabeça. Trazia na mão um facho, com que acendeu a fogueira. Em seguida, pegando em quatro paus inflamados, arremessou-os a quatro homens vestidos apenas com uma tanga preta. Apanharam os archotes pelo ar e correram a acender as outras fogueiras preparadas nos quatro cantos do velho adro.
Os guardas haviam entretanto despido a serape e a camisa, e estavam nus da cintura para cima. A um sinal do tambor, começaram a dança, fazendo rodopiar os seus archotes. No meio do lago, Cipriano lançava de contínuo os paus inflamados que retirava da fogueira.
Quando se desembaraçou do manto, viram-lhe o corpo pintado de listas horizontais encarnadas e pretas; da boca partia-lhe um risco verde, e dos olhos um traço amarelo.
Elevavam-se labaredas das cinco fogueiras, o tambor soava sem cessar, os homens de Huitzilopochtli dançavam como demónios. Entretanto a multidão mantinha o eterno silêncio índio, com os olhos a cintilarem ao clarão das chamas. A pouco e pouco estas diminuíram, e a fachada branca do templo, que também dançava ao reflexo das labaredas, principiou a tomar um tom azulado, até se confundir com a noite; a base parecia cor-de-rosa entre as sombras negras que bailavam de roda das fogueiras quase extintas.
De súbito, parou a dança, os homens envolveram-se nas serapes e sentaram-se no chão. Aqui e ali, tremulavam brandões assentes em tripés. Reinou silêncio por alguns minutos, e então o tambor fez-se ouvir novamente e os homens entoaram em voz clara e forte o primeiro canto de Huitzilopochtli:
Eu sou Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
Eu sou Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
Eu sou Huitzilopochtli, com uma folha de erva entre os dentes.
Sou Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a minha vermelhidão tinge o negrume da noite.
De sentinela junto do fogo Espero, atrás dos homens.
No silêncio da minha noite.
Os cactos aguçam os espinhos.
com as suas raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila com o meu sol.
Tomai cuidado com ela!
Tomai cuidado comigo!
Quem contraria a minha chama-serpente
É mordido e deve morrer.
Sou o sono e o despertar
Da fúria na virilidade dos homens.
Sou o salto e o frémito
Do fogo que se reanima.
Acabou o canto, houve uma pausa, e em seguida todos os homens de Huitzilopochtli entoaram em coro os mesmos versos, mudando o eu para. ele.
Ele é Huitzilopochtli, O rubro Huitzilopochtli, O sangue vermelho.
É o Huitzilopochtli Amarelo de sol, Sol no sangue.
É o Huitzilopochtli, sentado na sombra,
E a sua vermelhidão tinge o negrume da noite.
Está de sentinela junto do fogo E espera, atrás dos homens.
No silêncio da sua noite
Os cactos aguçam os espinhos.
com as raízes a erva procura outro sol.
Mais funda que as raízes da mangueira,
Bem no centro da Terra,
A serpente amarela cintila de sol.
Ó homens tomai cuidado! Tomai cuidado com ela e com o sol. Não contrarieis os seus raios. Quem for mordido, morrerá...
Haviam-se apagado todas as fogueiras e só tremulavam as tochas nos tripés, alumiando o cenário com a sua luz vacilante. A guarda afastou-se para junto dos muros, de baioneta calada, enquanto o tambor soava em pancadas lentas.
O adro era agora um espaço vazio onde se extinguiam os montes de brasas e os brandões de ocote. Via-se um estrado erguido junto da parede branca da igreja.
Abriam-se em silêncio os portões do templo e Cipriano avançou, empunhando um ramo de folhas pretas, ou de penas, e, na cabeça, um tufo de plumas escarlates, negras na extremidade. Subiu ao estrado e aí ficou de pé, de frente para a multidão, com a luz de um archote a iluminar-lhe a cara e as plumas, que se elevavam como chamas que partissem da nuca. "
Atrás dele vinha uma estranha procissão: umpeón de fato branco ladeado por dois homens de Huitzilopochtli, e outro peón prisioneiro, e mais outro... Ao todo cinco. O quinto, que era alto e coxeava, tinha uma cruz preta pintada no casaco branco. Na cauda do cortejo vinha uma mulher, também entre dois guardas, com os cabelos soltos sobre a túnica vermelha.
Subiram todos para o estrado; os prisioneiros foram dispostos em fila, com os guardas atrás: tanto a mulher como o coxo ficaram um tanto à parte.
O tambor calou-se e uma trombeta lançou por três vezes uma nota grave, longa, triunfante. Então os timbales fizeram ouvir um rufo semelhante a saraivada.
Cipriano levantou a mão e estabeleceu-se o silêncio. Como de costume, proferiu frases curtas e marciais.
O homem que é homem é mais do que homem. Nenhum homem é homem enquanto não for mais do que homem,
Enquanto não existir nele um poder Que não é seu.
O poder está em mim, vem de além do Sol
E do centro da Terra.
Sou Huitzilopochtli.
Sou escuro como as profundezas subterrâneas,
Amarelo como o lume que consome,
Branco como os ossos,
Vermelho como o sangue.
Mas toquei na mão de Quetzalcoatl
E entre os nossos dedos surgiu uma folha de erva.
Toquei na mão de Quetzalcoatl,
Sou o senhor das vigílias da noite
E o sonho da noite irrompe de mim como uma pluma encarnada.
Sou o guardião e o senhor do sonho. No sonho da noite eu vejo os cães pardos Que rastejam para devorar o sonho.
De noite solta-se a alma do cobarde, Igual a um sabujo com a boca cheia de raiva, Arrastando-se entre os que dormem e sonham envoltos nas minhas trevas.
De noite eu vejo os cães a saírem dos homens adormecidos. Que são cobardes, mentirosos, traidores e não têm sonhos, Vejo os cães a correrem para a colina dos sonhos onde os meus gamos pastam na escuridão.
Então pego no meu punhal e arremesso-o ao sabujo. E ei-lo que se enterra entre as costelas dum homem! Do homem que albergava o cão pardo.
Cautela, Cautela!
Cautela com os homens e mulheres que vos rodeiam! Não sabeis quantos deles albergam cães pardos. Homens que parecem inofensivos, mulheres de falas meigas, Talvez tenham um cão pardo dentro de si.
' Soaram os tambores e a voz do cantor elevou-se, clara e pura:
Quando dormes, sem o saberes, O cão pardo anda a rondar-te. Torces-te no sono, sentes a alma a doer. O cão devora-te as entranhas.
Chama então por Huitzilopochtli:
O cão assaltou-me na encruzilhada
Quando eu descia o caminho do sono
E atravessava a estrada da inquietação.
Afasta-o para longe, Huitzilopochtli!
E o Poderoso responde:
Persegue-o e mata-o no seu nicho sórdido.
Na estrada da inquietação
Persegue o sabujo até ao seu covil
Que é o coração do traidor,
Do ladrão e assassino de sonhos.
E ali mata-o com um só golpe. Gritando: - Isto é bem feito! Para que o teu sono não seja um cemitério Onde vagueiem cães impuros.
Depois duns instantes de silêncio, Cipriano fez sinal aos guardas para mandarem avançar o peón que tinha uma cruz preta marcada no peito e nas costas. O homem destacou-se do grupo, coxeando.
Cipriano: - Quem é este?
Os guardas: - É Guillermo, que foi servo de Don Ramon e o traiu.
Cipriano: - Por que motivo coxeia?
Os guardas: - Caiu da janela sobre as rochas.
Cipriano: - Quem o compeliu a trair o amo?
Os guardas: - A sua alma é um cão pardo, e uma mulher, cadela impura, incitou-o à traição.
Cipriano: - Que mulher?
Os guardas aproximaram-se com a prisioneira.
Os guardas: - Ei-la, senhor. Chama-se Maruca.
Cipriano: - Mataremos o cão e a fêmea, porque estão cheios de peçonha. Achais bem, homens de Huitzilopochtli?
Os guardas: - Muito bem, senhor.
Despiram o fato branco ao peón Guillermo, deixando-o nu, com um trapo cinzento de roda dos quadris e uma cruz pardaça pintada no peito. A mulher, que apresentava no corpo uma cruz do mesmo tom, ficou apenas com um saiote de lã cinzenta.
Cipriano: - Esses cães pardos não andarão mais no mundo. Enterrá-los-emos em cal viva, para que o corpo e a alma se destruam e nada reste deles. Amarrai-os com a corda que tem a sua cor e espalhai-lhes cinza na cabeça.
Os homens obedeceram rapidamente. Sem proferir palavra, os prisioneiros olhavam com pupilas cintilantes. Atrás de cada um deles estava um guarda. A um sinal de Cipriano, passaram uma tira cinzenta em volta do pescoço das duas vítimas e, com um esticão violento, estrangularam-nas. Em seguida, deram um nó apertado nas tiras de pano e deitaram no chão os corpos contorcidos. Cipriano voltou-se para a multidão:
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o hálito de Quetzalcoatl.
Rubro é o sangue de Huitzilopochtli.
Mas o cão pardo é a cinza do mundo.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Azul é o céu profundo e a água profunda.
Rubro é o sangue e o fogo.
Amarela é a chama.
O osso é branco e vivo.
O cabelo da noite é escuro sobre as nossas faces.
Mas os cães pardos estão entre as cinzas.
Os senhores da vida são os senhores da morte.
Virou-se novamente para os outros presos.
Cipriano: - Quem são estes quatro?
Guardas: - Os que vieram para matar Don Ramon.
Cipriano: - Quatro homens contra um?
Guardas: - Eram mais do que quatro, senhor.
Cipriano: - Quando são muitos contra um, que nome se lhes dá?
Guardas: - Cobardes, senhor.
Cipriano: - Sim, cobardes. Menos do que homens. E os que são menos do que homens não merecem a luz do Sol. Se os homens dignos desse nome querem viver têm de suprimir os outros, para que não se multipliquem. Àqueles compete o julgamento dos que são menos do que homens. Devem morrer?
Guardas: - Devem morrer, senhor.
Cipriano: - Contudo a minha mão tocou na de Quetzalcoatl, e entre as folhas pretas despontou uma verde, da cor de Malintzi.
Aproximou-se um homem que lhe despiu a serape, deixando-o nu da cintura para cima. Os guardas libertaram-se também dos mantos. Cipriano ergueu a mão que segurava um tufo de penas, ou de folhas pretas, e proferiu lentamente:
Huitzilopochtli dá a lâmina sombria da morte.
Aceitai-a com bravura.
Aceitai a morte corajosamente.
Transponde a fronteira reconhecendo o vosso erro,
Decididos a ir sempre avante até alcançar a estrela da manhã.
Quetzalcoatl indicar-vos-á o caminho.
Malintzi de vestido verde abrir-vos-á a porta.
Na fonte vos deitareis.
Se atingirdes a fonte e lá vos deitardes,
E se ela vos cobrir a face para sempre,
Para sempre ficareis apartados do vosso erro.
E o homem que em vós é mais do que homem
Despertará por fim do puro esquecimento
E, pondo-se de pé, olhará em volta,
De novo pronto a ser um homem.
Mas Huitzilopochtli tocou na mão de Quetzalcoatl
E uma folha verde brotou entre as negras.
A folha verde de Malintzi.
Que perdoa uma vez, uma vez somente.
Cipriano voltou-se para os quatro peóns e estendeu a mão que segurava nas quatro folhas. O primeiro olhou-as com ar de curiosidade.
- Não há nenhuma verde! - observou cepticamente.
- Nesse caso, recebe uma preta - replicou Cipriano, entregando-lha.
- Eu bem sabia! - exclamou o homem, atirando-a ao chão com o maior desprezo.
O segundo prisioneiro tirou uma folha negra e ficou a olhar para ela, como se o fascinasse.
O terceiro puxou duma, cuja extremidade inferior era verde.
- Ora vês? - disse Cipriano. - É a de Malintzi. - E entregou a última folha preta ao quarto homem.
- vou morrer? - perguntou este.
- Vais.
- Não quero morrer, patrón.
- Brincaste com a morte e ela voltou-se contra ti. Vendaram os olhos dos três peóns e despiram-lhes a camisa e as
calças. Cipriano muniu-se dum punhal afiado.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - pronunciou em voz bem alta.
E com três golpes rápidos e fortes apunhalou em pleno coração os homens de olhos tapados. Então ergueu o punhal vermelho e lançou-o a terra.
- Os senhores da vida são os senhores da morte - repetiu.
Os guardas levantaram os corpos ensanguentados, um por um, e transportaram-nos para o interior do templo. Ficou ali apenas o prisioneiro da folha verde.
- Põe-lhe na testa a folha de Malintzi - disse Cipriano porque Malintzi só perdoa uma vez.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, e levou o homem para o interior da igreja.
Cipriano entrou também, seguido pelos restantes guardas.
Decorridos momentos, os tambores ressoavam e a assistência masculina penetrou como uma vaga no templo. As mulheres não eram admitidas. Lá dentro, só se viam colgaduras negras e vermelhas. Num lado do coro erguia-se um novo ídolo: a estátua de Hutzilopochtli, sentado, talhada em lava preta. À sua volta ardiam doze velas encarnadas. A mão do ídolo segurava o ramo de folhas pretas e a seus pés estavam os cinco cadáveres.
No altar ardia uma fogueira diante da estátua de Quetzalcoatl. Ramon encontrava-se sentado no seu trono, vestido de azul e branco, as cores do deus. Junto dele havia outro trono, mas vazio. Rodeavam Ramon seis guardas de Quetzalcoatl, porém o lado de Huitzilopochtli não tinha ninguém senão os mortos.
Lá fora os tambores ribombavam num barulho ensurdecedor. Dentro soava apenas um, e docemente. Continuava a afluir o público masculino.
Uma flauta deu o sinal de fechar as portas. Calaram-se os tambores e das torres partiu de novo o coro selvático.
Então, pela nave central, em silêncio, avançou a procissão de Huitzilopochtli, desfile de homens nus e descalços, de tanga preta, com desenhos pintados na pele e penas escarlates na cabeça. Cipriano tinha a cara pintalgada, queixo branco, um risco verde partindo da boca, outro negro sobre o nariz, um amarelo vindo do canto dos olhos e outros rubros nas sobrancelhas. Da testa elevava-se uma pena verde e cingia-lhe a cabeça um diadema de plumas encarnadas. Da mesma cor tinha uma lista no peito, e outra amarela de roda da cintura. O resto do corpo estava cinzento.
Atrás dele vinha a sua guarda, de faces rubras, pretas e brancas, corpos tingidos como o de Cipriano, e uma pena escarlate alçando-se da nuca. Batia monotonamente o tambor de Huitzilopochtli.
Quando o Huitzilopochtli vivo se aproximava do altar, o Quetzalcoatl vivo levantou-se e veio ao seu encontro. Saudaram-se os dois, cada qual cobrindo os olhos por um momento com a mão esquerda e depois tocando-se com os dedos da mão direita.
De pé em frente da estátua de Huitzilopochtli, Cipriano mergulhou a mão numa taça de pedra e, soltando o grito de guerra do deus, ergueu a mão cor de sangue. A guarda repetiu o grito e rapidamente desfilou: um por um, os homens mergulharam a mão e retiraram-na molhada e rubra até ao punho. Os tambores vibraram frenéticos, mas, de súbito, calaram-se.
Ramon: - Porque tens a mão vermelha, Huitzilopochtli, meu irmão?
Cipriano: - É o sangue dos traidores, ó Quetzalcoatl!
Ramon: - Quem traíram?
Cipriano: - O sol dourado e o âmago das trevas, o coração dos homens e a esperança das mulheres. Enquanto viviam, não se podia ver a Estrela da Manhã.
Ramon: - Estão realmente mortos?
- Cipriano: - Sim, mortos, senhor.
Ramon: - O sangue deles correu?
Cipriano: - Correu de três, senhor; dois morreram como cães pardos, sem derramar sangue.
Ramon: - Dá-me o sangue dos três, irmão, para que eu o espalhe sobre o fogo.
Cipriano trouxe a taça de pedra e o ramalhete de folhas pretas do ídolo. Lentamente, Ramon aspergiu o lume com as folhas molhadas no sangue.
Ramon: - Trevas, bebei o sangue da expiação! Sol, tragai o sangue da expiação! Ergue-te, estrela da manhã, entre o mar aberto!
Devolveu a taça e as folhas a Cipriano que, por seu turno, as colocou junto do ídolo preto.
Ramon: - Tu, que tomaste a vida destes três, irmão, que vais fazer da alma deles?
Cipriano: - Dá-las a ti, senhor da estrela da manhã.
Ramon: - Sim, dá-mas, e eu, envolvendo-as no meu hálito, mandá-las-ei para a mais longa das viagens, até ao sono e seu remoto despertar.
Cipriano: - Senhor, dispõe dos dois caminhos.
Os guardas nus e pintalgados de Huitzilopochtli foram buscar os cadáveres dos três apunhalados, deitaram-nos em caixões vermelhos e depuseram-nos aos pés da estátua de Quetzalcoatl.
Ramon: - Assim a caminhada será longa, para além do Sol, até às portas da Estrela da Manhã. Se o Sol está irado, fere mais rápido que um jaguar, o zumbido do vento é como a águia enfurecida, e as águas da atmosfera deslizam coléricas como serpentes prateadas. ó três almas, reconciliai-vos agora com o Sol e o vento e as águas, e ide corajosamente envoltas no sopro de Quetzalcoatl qual se protegidas por uma capa. Não tenhais medo, não recueis, chegai ao fim da mais longa viagem e deixai que a fonte vos cubra. Deste modo, enfim, sereis todas renovadas.
Depois de falar aos mortos, Ramon lançou incenso no lume, donde logo se elevaram nuvens de fumo azulado. Em seguida, baloiçou um turíbulo sobre os cadáveres e cobriu-os com um pano azul. Então os guardas de Quetzalcoatl ergueram os caixões e a flauta soou.
- Saudai a Estrela da Manhã! - ordenou Ramon, virando-se para a luz atrás da estátua de Quetzalcoatl e alçando o braço direito no gesto ritual.
Todos os homens fizeram o mesmo, e o silêncio da Estrela da Manhã encheu o templo.
Às pancadas lentas do tambor, os guardas de Quetzalcoatl afastaram-se, levando os três defuntos tapados com um pano azul.
Elevou-se a voz do Huitzilopochtli vivo:
- A face de Quetzalcoatl não pode abaixar-se para contemplar os cães mortos. Para eles não há Estrela da Manhã. O fogo dos cadáveres consumi-los-á.
Seguiu-se um breve rufo de tambor. Ramon continuava voltado para a Estrela da Manhã. Os guardas de Huitzilopochtli levantaram os dois presos estrangulados e, depois de os deitarem num caixão e de o cobrirem com um pano cinzento, transportaram-nos para fora do templo.
Ouviu-se a trombeta de Huitzilopochtli.
Cipriano: - Os mortos seguem o seu caminho. Quetzalcoatl os ajude na mais longa viagem. Mas os cães dormirão em cal viva, que os consumirá.
Ramon deixou tombar o braço e voltou-se para a assistência. Os tambores de Quetzalcoatl misturaram os seus rufos em surdina às pancadas retumbantes dos tambores de Huitzilopochtli, e os homens começaram a cantar:
O rubro Huitzilopochtli
Divide a noite do dia.
Guarda a vida da morte e a morte da vida.
O rubro Huitzilopochtli
É o purificador.
O negro Huitzilopochtli
É a condenação.
O dourado Huitzilopochtli
É o fogo libertador.
O branco Huitzilopochtli É o osso lavado.
O verde Huitzilopochtli
É a folha de erva de Malintzi.
No princípio de cada estrofe, os homens de Huitzilopochtli batiam na palma da mão esquerda com o punho direito tinto de sangue, e uma pancada sonora de tambor acentuava o barulho. No canto final, esmoreceram os rufos como o ribombo dum trovão que se afasta, deixando o seu eco no coração de todos.
Ramon: - Porque tens a mão tão vermelha, Huitzilopochtli?
Cipriano: - É o sangue dos homens que morreram.
Ramon: - E vai ficar sempre vermelha?
Cipriano: - Até Malintzi trazer a sua taça de água.
A trombeta e a flauta ressoaram no templo. A guarda de Huitzilopochtli apagou as velas encarnadas, uma por uma, e a de Quetzalcoatl as velas azuis. O templo ficou apenas iluminado pela luz azulada atrás da estátua de Quetzalcoatl e pelo clarão rubro do brasido no altar.
Então Ramon recitou lentamente:
Os mortos partiram, o caminho é escuro.
Só há a Estrela da Manhã.
Branca no além da brancura.
Negra no além do negrume,
Para lá do dia descoberto,
Para lá do frémito da noite,
A luz que dois vasos alimentam,
Um de óleo preto, outro de óleo branco,
Essa luz cintila na porta.
Na porta que dá para o lugar oculto
Onde o Sopro se uniu às Fontes,
Onde os mortos estão vivos e os vivos estão mortos.
Que os homens cubram os olhos
Perante o invisível.
Que todos os homens se abismem no silêncio.
Calados, todos taparam os olhos com a mão, até que um gongo de prata lançou uma única nota e se acenderam as velas de Malintzi
em frente do altar.
A voz de Ramon elevou-se outra vez:
Como os círios verdes de Malintzi,
Como uma árvore de folhagem nova,
A chuva de sangue caiu e penetrou na terra.
Os mortos partiram para a longa viagem.
Huitzilopochtli lançou o seu manto negro
Àqueles que queriam dormir.
Quando a aragem azul de Quetzalcoatl
Embala docemente,
Quando cai a chuva de Malintzi
Fazendo nascer a verdura,
Contai as brasas de Huitzilopochtli
Que ardem no vosso coração,
E soprai para afastardes a cinza.
Porque os vivos vivem
E os mortos morrem,
Mas juntam-se os dedos de todos
Na Estrela da Manhã.
XXIV
Quando proibiram às mulheres a entrada no templo, Kate regressou a casa, triste e inquieta. Havia-a impressionado a execução dos prisioneiros. Sabia que Ramon e Cipriano agiam deliberadamente conforme a sua fé e consciência. E, como homens, talvez tivessem razão.
Mas não eram mais do que homens. Tudo parecia a Kate uma questão de vontade, pura e terrível. E no mais profundo da alma revoltava-se contra semelhante manifestação de vontade, embora de certa maneira a fascinasse. Para ela existia realmente em Cipriano e Ramon qualquer coisa sinistra que no entanto a seduzia. Obscuro, inquieto poder, quase paixão da vontade masculina! Estranha, tenebrosa beleza de tudo aquilo! E ela estava sob o sortilégio.
Ao mesmo tempo, recusava-se a uma submissão completa. Sentia-se fascinada, sim, mas não inteiramente. Num recanto da sua alma havia revolta, quase repugnância.
Sem dúvida que Cipriano e Ramon tinham razão no que respeitava a eles próprios, ao seu país e ao seu povo. Mas quanto a ela, que não pertencia ao México, nada tinha a ver com essa vontade terrível cujas asas pareciam escurecer o ar daquele continente americano. Sempre a vontade, a eterna vontade, sem remorso nem descanso. "Eis a América, todas as Américas", dizia Kate consigo mesma.
"Vontade absoluta."
Começava a compreender. No centro de todas as coisas, uma vontade poderosa estendia os seus raios e vibrações como tentáculos dum polvo descomunal. E na outra extremidade da vibração, os homens, erectos na força misteriosa, respondiam ao querer com outro querer, como deuses ou demónios.
Espantoso, sem dúvida, mas que papel representava a mulher nesse terrível intercâmbio de vontade? O da pedra macia na qual o homem afiava a faca da sua volição inquebrantável; o íman em que ele magnetizava a lâmina de aço e lhe conservava as moléculas vivas no fluido eléctrico.
Sim, espantoso. Era, como dizia Ramon, uma manifestação, manifestação da divindade, mas nada em Kate correspondia a um endeusamento voluntário.
Joachim fora o extremo oposto, deixando-se morrer pelopovo que nada aproveitara com o seu sacrifício. Desconhecera a sombria e magnífica ostentação da vontade que irrompe do solo vulcânico do México. Pertencia à casta dos que se oferecem em holocausto. Daí, toda a amargura de Kate. E daí, é claro, o sortilégio que encontrava em Cipriano. Amava-o quando o tinha a seu lado; nos seus braços, ficava absolutamente dominada pelo feitiço desse homem. Ela era o íman profundo e adormecido que o deixava resplandecente de orgulho inexorável. E a própria Kate extraía prazer infinito do amplexo, uma sensação de força passiva.
Contudo, não podia ser apenas isso, um elemento de simples reciprocidade. com certeza que havia mais alguma coisa, embora a natureza da mulher se encontrasse com a do homem; com certeza que ele e ela não representavam só duas correntes recíprocas que fizessem brilhar a Estrela da Manhã, como uma centelha despedida do vácuo: devia haver algo dentro de Kate, que significava a própria pessoa, a sua própria alma, a sua estrela.
Cipriano é que não admitia isto. Negava-se a ver essa luzinha cintilar no íntimo de Kate. Para ele, Kate era só a resposta ao seu apelo, a bainha da sua espada, nuvem para os seus relâmpagos, terra para a sua chuva, combustível para o seu fogo.
Sozinha, não existia, mas sim apenas como fêmea que se ligava ao macho.
Como ser individual, tinha pouca significação. Na sua qualidade de mulher livre, ele achava-a repulsiva, e até maléfica. Só possuía realidade quando o completava materialmente.
De certa maneira, isto era verdade. Kate bem o sabia. E, também, para ela, era verdade a inversa; sem ela lhe conceder a força, Cipriano não poderia realizar o poder viril que residia na sua pessoa; mas, com ela ou sem ela, o homem ultrapassava a craveira dos homens vulgares, devido à energia que nele se acumulava. Contudo, faltando-lhe a mulher, jamais se consideraria perfeito e acabado: ficaria apenas um instrumento. Estaria ciente de tudo isto? Talvez o soubesse de forma não muito clara. Mas esforçar-se-ia por conservá-la, a fim de que ela o preenchesse. Não a deixaria partir.
Mas essa estrelinha, a personalidade de Kate, ele jamais a distinguia? De modo nenhum. Se o próprio Cipriano nem via a sua! Todavia, como se considerava uma força sobre a face da terra, uma vontade corpórea, semelhante a um furacão, ela não seria mais, por conseguinte, do que o apoio do seu poder, o leito do seu repouso, a toca onde se escondia um império tão másculo.
E que mais? Para Cipriano não havia mais. A estrela! A Estrela da Manhã de D. Ramon era qualquer coisa que brotava de entre aqueles dois e pairava cintilante, estranho elemento formado de ambos mas que não significava nenhum, transição entre a noite do homem e o dia da mulher.
Seria, porém, assim? Kate não era nada em si mesma? E ele, isolado, malograda a sua virilidade, sem Kate também não era nada ou estava perto de o não ser. Talvez uma figueira que dilata os seus ramos e contudo nunca floresce. Seria isto certo, em relação a ambos? Que, sozinhos, pendiam para o não-ser? Que um e outro, separados, se aproximavam do vácuo? Que mergulhavam num crepúsculo baço, desprovidos do astro? E que juntos, em curiosa reciprocidade, esperavam sombriamente que nascesse, do meio deles, a Estrela da Manhã?
Dir-lhe-ia então, como Ramon dissera a Carlota: "Alma? Não, não possuis alma própria. Quando muito, terás metade de uma. Para a conseguir inteira é preciso o conjunto do homem e da mulher. A alma é a Estrela da Manhã que surge do meio de ambos. Uma pessoa só não tem alma."
Assim falara Ramon. E Kate compreendia que isto exprimia também os sentimentos de Cipriano, que não considerava Kate como um ente em si mesmo. Ainda que ele vivesse mil anos, jamais veria Kate como tal - mas unicamente o seu complemento, o seu equilíbrio, o seu paralelo no outro lado do céu.
- Deixa que entre nós apareça a Estrela da Manhã - aconselhava-lhe então. - Sozinha não és nada, e eu sou um homem manqué. Juntos, porém, somos as asas da manhã.
Seria, pois, um dever para Kate envergar o vestido verde de Malintzi e sentar-se no templo a par de Cipriano, como deusa que reconhece publicamente ser a metade daquele. Não havia, pois, estrela de alma isolada? Ou era tudo uma ilusão? Uma ilusão cada indivíduo? Os homens, todos os homens, não passavam, cada um por si, de um fragmento que não conhecia a Estrela da Manhã. O mesmo quanto às mulheres. Ela própria devia considerar-se sem estrela, fragmentária. Mesmo nas relações com Deus seria sempre fragmentária e amaldiçoada.
Estaria certo que a Estrela da Manhã constituía a única porta para o Além? Que a Estrela da Manhã se erguia entre dois, entre muitos, mas nunca de um só?
E que o homem não era senão uma vontade sinistra igual a uma seta, e a mulher o arco donde a frecha partia? O arco sem a seta não valia nada, a seta sem o arco não passava dum simples fardo inútil...
Pobre Kate! Custava-lhe ter de reflectir nestes assuntos. Significava uma submissão em que ela jamais consentira, a morte do seu ser individual, o abandono de tantas coisas que constituíam a base da sua vida. Porque sempre acreditara que tanto homens como mulheres só existiam enquanto indivíduos.
Agora, tinham de reconhecer que o indivíduo era uma ilusão e uma falsificação? Só havia individualidade no mundo mecânico, onde cada máquina é eficiente. No mundo vivo o indivíduo, assim como o ser perfeito, não pode existir. Somos apenas fragmentos, metades. Una, só a Estrela da Manhã, que surge entre duas ou muitas criaturas.
Lembrando-se novamente de Cipriano e das execuções, Kate tapou a cara com as mãos. Ser a bainha de semelhante lâmina? Que estrela de poder implacável se elevaria entre ela e esse homem? Ele. nu, de corpo pintalgado, a dançar e a gritar no meio dos soldados, e Kate invisível, apagada...
Enquanto se agitava nas suas dúvidas e atroz solidão, ouviu os tambores nas torres e o silvar de foguetes. Dirigiu-se à porta: no céu nocturno, por cima da igreja, pairava uma nuvem de fogo vermelho e azul, as cores de Huitzilopochtli e Quetzalcoatl. Estava a terminar a noite de Huitzilopochtli, O firmamento tornou-se de novo sombrio, e as estrelas reapareceram longínquas, muito para além do ponto onde estivera a nuvem.
Kate voltou para dentro de casa. As criadas tinham ido ver o fogo-de-artifício, e Ezequiel devia estar com os homens no templo.
Ouviu passos na alameda de saibro. Todo vestido de branco.
Cipriano apareceu subitamente no limiar. Num gesto rápido, tirou o chapéu. Cintilavam-lhe os olhos pretos, quase fulguravam, despedindo centelhas como ela nunca vira. Tinha ainda no rosto vestígios de pintura. Os olhos brilhantes davam-lhe uma expressão de riso, de riso infantil, deslumbrado.
- Malintzi! - disse-lhe ele, falando espanhol. - Vem! Põe o teu vestido verde. Não posso ser o Huitzilopochtli vivo sem uma noiva. Não posso, Malintzi.
Ficou de pé diante dela, estranhamente juvenil, vulnerável, ardente como uma chama. Ela compreendeu que ele seria sempre assim flamejante, com essa chama de juventude, nos momentos em que o fogo irradiava da sua pessoa. Agora, não havia vontade, era sensível como um adolescente. Atraía-a apenas com a flama da sua mocidade. Seria o desejo vivo e fogoso em primeiro lugar; a vontade viria subsidiariamente.
Kate estava tão habituada a combater pela sua independência contra os homens individualistas que por instantes se sentiu velha e indecisa. Desconcertava-a a estranha e cintilante vulnerabilidade de Cipriano, a nudez do seu desejo vivo. Só lidara com homens que, senhores de si mesmos, buscavam como indivíduos a realização dos seus propósitos.
- Onde queres que eu vá? - perguntou.
- Ao templo. Pertence-me esta noite. Sou Huitzilopochtli, mas não o posso ser sozinho - acrescentou com um sorriso rápido e ansioso, como se toda a sua carne latejasse numa chama delicada.
Kate envolveu-se num xaile de lã preta e acompanhou-o. Ele seguiu no passo breve e curto peculiar aos índios. A noite estava escura. Na praia, continuava o fogo-de-artifício e a multidão observava o espectáculo.
Entraram no adro da igreja pelas traseiras, utilizando a portinha reservada aos padres. Já os soldados, cobertos com os seus mantos, dormiam encostados à parede. Cipriano abriu a porta da sacristia e Kate penetrou nas trevas. O general acendeu uma vela.
- Os meus soldados sabem que eu vou passar aqui uma noite de vigília. E estarão de sentinela.
O interior do edifício encontrava-se inteiramente às escuras; só uma luz azulada ardia débil atrás da estátua de Quetzalcoatl.
Cipriano ergueu a sua vela à altura da imagem negra de Huitzilopochtli. Depois, voltou-se para Kate, de olhar coruscante.
- Sou Huitzilopochtli, Malintzi - murmurou no seu espanhol indianizado. - Mas não o posso ser sem ti. Fica comigo, Malintzi. Dize que és a esposa do Huitzilopochtli vivo.
- Sim - replicou ela - di-lo-ei.
Na face de Cipriano passaram lampejos convulsos de alegria e triunfo. Acendeu dois círios defronte de Huitzilopochtli e disse:
- Vem. Põe o teu vestido verde.
Levou-a para a sacristia, onde estavam muitas serapes dobradas, a taça de prata e outras alfaias da igreja, e ali a deixou para que ela envergasse o traje de Malintzi que já vestira quando Ramon os tinha casado.
Ao sair, encontrou Cipriano nu e pintalgado sobre uma pele de jaguar, perante o ídolo.
- Sou o Huitzilopochtli vivo - murmurou, numa espécie de êxtase. - E tu és Malintzi, a esposa de Huitzilopochtli.
Apagou-se-lhe da face o espasmo de exultação. com a mão esquerda pegou na de Kate e ficaram diante da luz azul.
- Cobre o rosto! - ordenou Cipriano.
Kate obedeceu e ele fez o mesmo com a dextra, num gesto de saudação.
- Agora, venera Quetzalcoatl.
Ergueu o braço e ela a mão esquerda, que era a saudação feminina.
- Venera Huitzilopochtli - continuou Cipriano, batendo com o punho direito na palma da mão esquerda. Esta era a saudação masculina.
Fê-la unir as mãos sobre o peito e em seguida levantá-las para o ídolo. Depois, colocou uma lamparina de barro aos pés de Huitzilopochtli. Do joelho direito da estátua tirou uma âmbula preta cheia de óleo, e Kate, por seu turno, tirou uma âmbula branca do joelho esquerdo.
- Agora enchamos juntos a lâmpada.
Cada qual deitou óleo no recipiente em forma de pires.
- Acendamos.
Pegou numa das velas, Kate na outra, e, inclinando-as, acenderam o pavio flutuante, que ardeu num bruxuleio azul e depois num clarão rosado.
- Apaga a vela - ordenou Cipriano. - Eis a nossa Estrela da Manhã.
O templo ficou quase às escuras, só com a gota de luz daquelas duas existências unidas, a oscilar entre os pés de Huitzilopochtli e a chamazinha azul da estátua de Quetzalcoatl.
Aos pés do altar, junto do trono do ídolo, encontrava-se mais uma cadeira. Cipriano disse a Kate:
- Senta-te no teu trono, Malintzi.
Sentaram-se lado a lado, de mão dada, em completo silêncio, de olhar perdido na obscuridade do templo. Cipriano havia disposto flores por trás da cadeira dela, espécie de lilases cujo perfume era como um sonho pesado a dominar dulçorosamente na escuridão.
Tão ingénuo, aquele homem! Não se parecia com Ramon, grave e circunspecto nos rituais. Cipriano, naquela noite, mostrava-se perante Kate de uma candidez infantil. Ela mal podia olhar para a luz pequenina, símbolo das duas existências unidas, sem sentir apertar-se-lhe o coração: ardia tão suave, tão calma, e ele parecia tão satisfeito com o seu símbolo! Que alegria infantil no rosto do homem, que expressão de puro reconhecimento!
"Meu Deus - pensou Kate. - Numerosas são as vias que nos
reconduzem à infância."
O ardor, a magnificência do início - eis o que Cipriano quisera dar ao seu casamento; o aroma forte e perturbante dessas flores invisíveis a que ospeóns chamam buenas de noche. Causava admiração vê-lo conceder ao matrimónio algo de ardente e virginal, muito diverso do amor preconcebido e egoísta dos outros homens. Cheio de candura, aproximava a sua chama da chama da mulher. Kate julgava regressar-lhe a sua própria infância ao ver-se ali no trono da deusa, rodeada de perfumes, observando a minúscula língua de fogo aos pés do ídolo e sentindo nos dedos a pressão branda dos dedos de Cipriano. E os anos pareciam assim afastar-se em largos círculos, cada vez para mais longe dela.
Ali estava, pois, como uma adolescente. O Huitzilopochtli vivo... Ah, com que facilidade ele interpretava o seu papel! E Kate... Kate era a sua mulher, a Malintzi do vestido verde.
Pueril, sem dúvida. Ela, na verdade, assemelhava-se a uma rapariguinha de catorze anos, ele a um rapazinho de quinze. Sempre que a chama o envolvesse, Cipriano aparentaria essa idade, mesmo quando já tivesse setenta anos.
Ei-lo, o seu marido. Aí, ao mesmo, não impunha a vontade. Envolto pela chama, já não era a vontade que o revestia. Deixá-lo ser general, ou algoz, ou o que quisesse: a chama das duas existências reunidas ardia pura e delicada.
Silencioso, sentado no trono, segurando a mão da mulher enquanto o tempo, em círculos largos, a abandonava, ele via-a tornar-se outra vez donzela, via-a fazer-se Malintzi, criatura virginal. Quando os seus olhares se encontravam, a chama vibrava em uníssono. Kate fechou os olhos e tudo recaiu nas trevas.
Mais tarde, ao voltar a abri-los, descobriu a flamazinha débil, e o ídolo negro, e ouviu uma voz, semelhante à dum mancebo, murmurando-lhe ao ouvido, extasiadamente: - Miel! Miel de Malintzi.
Então apertou o seu companheiro ao peito, num movimento convulsivo. A chama interior daquele homem era sempre virginal e concedia-lhe, a ela, de novo a virgindade. Sentiu nesse momento que as duas chamas se confundiam.
"De que outra maneira se poderia recomeçar - perguntou a si mesma - senão pelo encontro da própria virgindade? E, quando isto acontece, tem-se a impressão de estar entre os deuses. Ele é um deus e eu sou uma deusa. Como o poderei criticar?" Assim, quando se lembrava do general e dos seus soldados e das histórias de crueldade que a seu respeito referiam; quando evocava os três peóns indefesos e apunhalados, Kate tornava a reflectir: "Como o poderei criticar? É um dos deuses. Se se aproxima de mim, comunica-me a sua chama puríssima e eu volvo-me adolescente; entrego-lhe a flor da minha virgindade, e colho a sua. Deixa-me descuidosa como uma rapariga. Que me importa que mate este ou aquele? A sua chama é clara e juvenil. É o Huitzilopochtli vivo, eu sou Malintzi. Que me interessa o resto do que faz Cipriano Viedma? Ou mesmo o que faça ou deixe de fazer Kate Leslie?"
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