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XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
CONTINUA
XXI
Kate voltou para a sua casa de Sayula e Cipriano para o seu posto de comando na cidade.
- Não queres vir comigo? - perguntou ele. - Podíamos casar civilmente e vivermos juntos.
- Não - respondeu Kate. - Casei contigo perante Quetzalcoatl, e só no mundo dele serei tua esposa. Se a estrela surgir entre nós, contemplá-la-emos na companhia um do outro.
Reflectiram-se sentimentos antagónicos nos olhos sombrios de Cipriano, o qual não admitia que o contrariassem. Mas logo reassumiu o ar enérgico e distante.
- Está bem. É preferível assim.
E foi-se embora sem olhar para trás.
Kate regressou a casa, às criadas e à sua cadeira de balouço. Vivia em grande paz interior, quase sem pensar e sem preocupações do futuro. O que devia acontecer, aconteceria.
Já não temia as noites quando estava fechada sozinha às escuras, mas receava um pouco os dias. E evitava, evitava ao máximo todo o contacto.
Certa manhã, abriu a janela do quarto e olhou para o lago. O Sol nascera e nas colinas da outra banda viam-se como que borrões de sombra. Na praia, uma mulher despejava água duma cabaça sobre um porco imóvel. O grupinho destacava-se do fundo amarelo-pálido do lago.
Mas era impossível conservar-se em sossego na janela que deitava para a rua. Apareceu um velho, vindo não sei donde, oferecendo-lhe por dez centavos uma folha cheia de charules, peixinhos semelhantes a lascas de vidro. Em seguida, uma rapariga desdobrou a ponta do xaile esfarrapado e, com expressão suplicante, apresentou-lhe três ovos. Depois foi uma velha, com a lamúria de uma história triste. Kate fugiu da janela e dos importunos.
No mesmo instante retiniu no ar o som que sempre lhe fazia parar o coração: o toque rápido dos tambores. Ouvira esse mesmo som, vindo de um templo, no crepúsculo tropical de Ceilão.
Ouvira-o na orla das florestas do Norte, quando os peles-vermelhas dançavam de roda da fogueira. Som que desperta ecos antigos na alma de cada homem, o latejar do mundo primitivo.
Eram dois tambores tocando em dissonância. A pouco e pouco, diminuiu o rufo, entrando num ritmo estranho, desigual, até que por fim só houve a repetição lenta e contínua dum único tom, pesado, monótono, como um pingo enorme de sombra tombando na manhã clara.
A evocação do passado causa sempre medo mas quando é para dominar o presente chega a ser coisa diabólica.
Kate sentia verdadeiro terror ao ouvir aquele som, que parecia vibrar-lhe no diafragma e provocar-lhe náuseas.
Aproximou-se da janela. Do outro lado da rua elevava-se um muro por cima do qual o sol dourava a copa das laranjeiras. Atrás do pomar viam-se três palmeiras de troncos esguios, e na ponta das folhas mais altas assomavam as torres geminadas da igreja. Kate muitas vezes reparara nas duas cruzes gregas de ferro forjado, que pareciam pousadas no tufo de palmas.
Notou imediatamente a substituição das cruzes pelo símbolo de Quetzalcoatl: cintilava à luz o oiro da serpente, e as asas abertas da ave recortavam-se escuras no interior do círculo.
De novo se acelerou o rufo dos tambores, com aquele ritmo desigual e estranho que a princípio não dá a impressão de ritmo mas que, em seguida, parece conter um apelo sinistro e actua directamente no sangue, sem defesa. Kate sentia as mãos a tremer de medo. Quase ouvia o palpitar do coração de Cipriano, seu marido perante Quetzalcoatl.
- Escute, niña! Escute! - exclamou a voz assustada de Juana. na varanda.
Kate foi ter com ela. Ezequiel enrolara a esteira e estava a puxar as calças. Era domingo, e nesse dia ficava deitado até depois do nascer do Sol. Tinha os cabelos em desalinho e olhos ainda ensonados, mas no seu silêncio um pouco distante e na atitude da cabeça levemente inclinada Kate percebeu a secreta satisfação que ele tinha com o som bárbaro dos tambores.
- Aquilo é na igreja! - disse Juana.
O olhar de Kate cruzou por acaso com o da mulher. Em geral aquela esquecia-se que Juana era doutra raça. Passavam-se dias sem se lembrar disso, até que notava aquele olhar sombrio, e estremecendo, perguntava a si mesma: "Odiar-me-á esta criatura?"
No clarão que atravessou as pupilas negras de Juana, Kate distinguiu receio, triunfo e uma desconfiança lenta, selvagem. Qualquer coisa de inumano.
- Que significará? - perguntou Kate.
- Significa que não tocarão mais os sinos, niña. Retiraram-nos, e batem o tambor na igreja. Escute! Escute!
O rufo continuava, acelerado.
Kate e Juana encaminharam-se para a janela aberta.
- Olhe, niña! O Olho do Outro! Já não há cruzes. O Olho do Outro! Brilha como o sol! Que lindo!
- Isso quer dizer - interveio Ezequiel com a sua voz de adolescente onde já se notavam entoações graves -, quer dizer que é o tempo de Quetzalcoatl. O templo do nosso deus, o deus dos Mexicanos.
Era, evidentemente, fervoroso adepto de Quetzalcoatl.
- Imagine-se! - murmurou Juana. Tornou a erguer a vista para Kate.
- Ah, como luzem os olhos da niña! - exclamou em tom de triunfo, ao descobrir nos olhos claros da irlandesa cintilações de espanto e terror.
De repente, surgiu diante da janela um homem de serape branca orlada de azul e preto, o qual entregou a Kate um bilhete que rezava assim:
"Venha à igreja quando ouvir o tambor mais forte, por volta das sete horas."
Como assinatura, trazia o símbolo de Quetzalcoatl.
- Está bem - disse Kate. - Lá irei ter.
Eram já sete menos um quarto. Ouvia-se Juana varrer a varanda. Kate envergou um vestido branco, pôs um chapéu amarelo e um colar comprido de topázios com reflexos de oiro e lilás.
A terra estava molhada da chuva, as folhas destilavam frescura, e muitas delas, mortas, juncavam o chão.
- Já vai sair. niña Espere, espere pelo café! Avia-te, Concha!
Soou o rumor de pés nus a correrem, e as pequenas entraram, trazendo a xícara, o prato e os pãezinhos doces: a mãe seguia-as, coxeando, com a cafeteira.
Ezequiel vinha pela alameda. Tirou o chapéu e dirigiu-se para os lados da cozinha.
- Diz o meu Ezequiel... - começou Juana, logo de entrada. Subitamente, uma pancada de tambor pareceu abrir buracos no
ar, deixando uma fenda à sua passagem: tum... tum... tum. Era o apelo, lento mas irresistível. Kate abandonou logo o café.
- vou à igreja - disse.
- Sim, niña. Diz o meu Ezequiel que... Também vou. niña. E Juana desapareceu para ir buscar o seu rebozo preto.
O homem de sarape branca esperava-as à porta. Tirou o chapéu, num cumprimento rápido, e foi atrás de Kate e de Juana.
- Vem a seguir-nos! - murmurou Juana. Kate cingiu aos ombros o seu xaile amarelo.
Era uma manhã de domingo e o casco escuro dos barcos de vela formava uma nódoa sombria na orla do lago. Mas a praia encontrava-se deserta. Enquanto o tambor se fazia ouvir, lento e forte, os retardatários corriam para a igreja.
Havia diante do adro grande ajuntamento, homens de serapes escuras ou de mantas escarlates sobre os ombros, mulheres com seus rebozos azuis. Do alto do campanário tombava a nota sempre igual do tambor. Kate sentia o coração a latejar-lhe nos lábios.
Mantinham uma passagem aberta entre a multidão duas fileiras de homens de Huitzilopochtli armados de espingardas.
- Passe! - disse a Kate o seu guardião.
E Kate avançou lentamente no caminho ladeado de serapes vermelhas e pretas, sob o olhar espantado dos homens. Seguia-a o enviado de Quetzalcoatl, mas Juana fora rechaçada para longe.
Kate olhava para os pés, embaraçada. Depois, ergueu as pálpebras.
À entrada do adro estava uma figura espaventosa de serape com espirais brancas, vermelhas e pretas que se enrolavam e subiam até aos ombros: e sobre estes, o rosto de Cipriano. calmo, soberbo, com a sua barbicha preta e sobrancelhas arqueadas.
Atrás dele, estendia-se até à porta fechada da igreja uma dupla fila de guardas de Quetzalcoatl, de mantas brancas orladas de azul e preto.
- Que devo fazer? - perguntou Kate a Cipriano.
- Deixa-te estar uns momentos aqui ao meu lado.
Não era coisa fácil afrontar todas aquelas caras sombrias de olhos cintilantes. No fim de contas, ela não passava duma gringuita. Era um sacrifício que lhe impunham? Inclinou a cabeça sob o chapéu amarelo e contemplou o colar de topázios que brilhava sobre o vestido branco. Fora Joachim que lho dera. Mandara-o fazer de propósito para ela, na Cornualha. Tão remoto tudo isso! Noutro mundo, noutra vida. noutra época! Agora, estava condenada a tomar parte naqueles estranhos rituais.
Cessou de bater o tambor grande, e, bruscamente, os dois mais pequenos fizeram ouvir um rufo como uma saraivada e calaram-se também de súbito.
Em voz baixa, surda, contida, os guardas de Quetzalcoatl começaram a declamar em uníssono:
- Oye! Oye! Oye! Oye!
Abriu-se a portinha inserida no portão imponente da igreja e Don Ramon apareceu de calças brancas e a serape de Quetzalcoatl. Pôs-se à frente da dupla fila de guardas e esperou que se fizesse silêncio. Então ergueu o braço direito e proferiu em voz forte, dirigindo-se à multidão:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
Os guardas de Quetzalcoatl voltaram-se para a assistência e, levantando igualmente o braço direito, repetiram:
- O que é o Senhor de todos jamais saberemos!
E como um eco, os homens de Huitzilopochtli pronunciaram a mesma frase.
Recaiu o silêncio, durante o qual Kate só teve consciência duma floresta de olhos negros cintilantes.
Mas os seus filhos vão e vêm.
Vêm de trás da Estrela da Manhã;
E para lá voltam, ao deixar o mundo dos homens.
Era outra vez a voz solene de Ramon. Kate olhou para ele. Estava pálido mas com ar impassível, e parecia exercer poder magnético na multidão, arrancando-a da complacência vulgar.
E Quetzalcoatl veio. Encontra-se aqui. é o vosso senhor.
O seu olhar dir-se-ia desprovido de expressão enquanto enfrentava todas aquelas pupilas negras; era como se visse apenas à sua frente o coração das trevas em que vivia e actuava o mistério da sua divindade.
Os que me seguem têm de atravessaras montanhas do céu,
E passar na mansão dos astros durante a noite.
Só me encontrarão na Estrela da Manhã.
Mas os que não querem seguir-me não devem olhar.
Porque se olharem perderão a vista.
Ramon calou-se e, por momentos, contemplou o seu público. Então desceu o braço e voltou-se. Escancararam-se as portas da igreja, deixando ver o interior escuro. Entrou ele sozinho, enquanto um tambor soava no fundo do templo.
A guarda de Huitzilopochtli avançou lentamente no adro, tomando o lugar da de Quetzalcoatl, que penetrou na igreja. Cipriano permaneceu onde estava, e a sua voz ergueu-se, concisa, marcial:
- Escutai-me, ó povo! Podeis entrar na casa de Quetzalcoatl. Os homens ficarão à esquerda e à direita, descalços, e de pé. Ninguém ajoelhará diante do novo deus. As mulheres juntar-se-ão no centro, de cara tapada. Podem sentar-se no chão. Mas os homens devem conservar-se de pé. E agora, venha quem a isso se atrever.
Kate entrou com Cipriano no templo.
Apresentava aspecto diferente, com o pavimento de ladrilhos pretos e as paredes listadas de cor. Ao longo da nave central estavam duas filas de homens de Quetzalcoatl, todos de branco.
- Por aqui - disse um deles em voz baixa, indicando o meio da ala.
E Kate, sozinha e intimidada, foi andando sobre o chão negro e polido, de rosto velado pelo xaile amarelo. As colunas da nave, verde-escuras, pareciam árvores elevando-se até às alturas do tecto azul. As paredes estavam cobertas de listas verticais pretas e brancas, encarnadas, amarelas e verdes, e as janelas tinham vitrais azuis, escarlates e negros, onde cintilavam pontos luminosos.
Kate aproximou-se do antigo altar. Ao fundo brilhava uma luz azulada, diante da qual se erguia certa forma escura, estranho bloco de linhas confusas. Era a figura dum homem nu esculpido grosseiramente em madeira. No braço direito erguido empoleirava-se uma águia de asas abertas, cuja parte superior brilhava como ouro à claridade da lâmpada. De roda da perna esquerda enroscava-se uma serpente também dourada, com a cabeça na mão do homem, perto da coxa. A cara do ídolo era preta.
Estátua enorme, como um pilar, e um tanto assustadora sob a luz azulada.
A seus pés encontrava-se uma ara de pedra onde ardiam ramos de ocote. E ao lado, numa espécie de trono, estava Ramon sentado.
O povo começava a afluir. Kate ouviu o rumor dos pés descalços sobre os ladrilhos. Os homens desfilavam lentamente, as mulheres quase corriam a sentar-se no chão e a velar o rosto. Kate agachou-se também.
Junto dos degraus postou-se uma ala de homens de Quetzalcoatl, tal uma barreira com abertura ao meio. E nessa abertura enquadravam-se o altar e Ramon.
Este levantou-se e ergueu o braço num gesto semelhante ao da estátua. O manto deslizou-lhe do ombro, deixando ver a ilharga nua e a faixa azul.
- Que todos os homens saúdem Quetzalcoatl! - ordenou em voz clara.
Os guardas de Huitzilopochtli espalharam-se entre a assistência masculina, pondo de pé os que estavam ajoelhados e obrigando todos a levantarem o braço, com a palma virada para cima, de cabeça erguida e corpo erecto, na atitude do ídolo.
De volta do maciço baixo e sombrio que formavam as mulheres agachadas, era uma floresta de seres aprumados, fortes, animados de paixão inexplicável. Uma floresta de punhos trigueiros e de mãos com a palma para o ar, de roda da qual parecia vibrar a parede raiada de cores.
De novo se fez ouvir a voz solene de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo!
Filho da Estrela da Manhã, e filho das profundezas insondáveis.
Ninguém conhece o meu pai, nem eu próprio.
Meu pai é o abismo no fundo dos abismos, e de lá me enviou
Manda a águia do silêncio, com as asas abertas,
Pousar-me na cabeça, no peito e no pescoço.
Manda a serpente do poder subir-me dos pés até aos rins,
E a força brota em mim como a água das fontes quentes.
Mas o centro brilha. Como a Estrela da Manhã brilha entre o dia e a noite.
Assim brilha a minha alma - estrela única.
Eu vos digo que o dia não seria radioso,
Nem a noite seria profunda.
Sem as estrelas da manhã e da tarde de volta das quais vão girando.
A Noite e o Dia giram à minha volta, porque sou a estrela intermediária.
Entre o ventre e o peito tendes uma estrela.
Se não a tendes,
É porque sois como cabaças cheias de pó e de vento.
Quando andais, a estrela anda convosco, entre o vosso peito e as entranhas.
Quando dormis, ela brilha docemente.
Quando dizeis a verdade, cintila nos vossos lábios.
Quando ergueis as mãos, cheios de coragem, fulgura nas vossas palmas.
Quando vos voltais para a esposa como se voltam os homens dignos desse nome,
A Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde brilham ao mesmo tempo.
Porque o homem é a Estrela da Manhã
E a mulher é a Estrela da Tarde.
Não sois apenas homens.
A estrela do Além está dentro de vós.
Mas já vistes um defunto, e como a estrela se extinguiu nele?
Assim a estrela vos deixará como uma mulher deixa o marido quando o fogo deste já não a aquece.
Se disserdes: não tenho estrela, não sou nenhuma estrela,
Ela deixar-vos-á e ficareis como uma romã pendente da árvore da Vida
à espera que os ratos das trevas vos venham roer as entranhas.
Se a estrela cintilar dentro de vós,
Os ratos não ousarão aproximar-se.
Sou Quetzalcoatl, da Estrela da Manhã,
Sou Quetzalcoatl vivo.
E vós deveis ser os homens da Estrela da Manhã
E não romãs com o âmago comido pelos ratos. Sou o Quetzalcoatl da águia e da serpente, Da terra e do ar, Da Estrela da Manhã. Sou o senhor das duas vias.
Soou o tambor, e os Homens de Quetzalcoatl despiam as serapes. Ramon fez o mesmo, e todos ficaram de torso nu. Os que se encontravam nos degraus do altar avançaram um a um e acenderam velas verdes. Enfileiraram-se então de cada lado do coro, com as velas erguidas, iluminando o rosto de pau e os olhos de jade da estátua.
- O homem tomará o vinho do espírito e o sangue do coração, o óleo do seio e a semente dos rins, e tudo isso oferecerá à Estrela da Manhã - disse Ramon, dirigindo-se à assistência.
Aproximaram-se quatro homens. Um colocou-lhe na cabeça a coroa azul ornada com uma águia, outro cingiu-lhe o peito com uma faixa vermelha, o terceiro passou-lhe uma faixa amarela de roda da cintura, o quarto uma faixa branca em volta dos rins. Então apoiaram na testa de Ramon uma taça de vidro cheia de água límpida, outra no peito com um líquido vermelho, outra de líquido amarelo sobre o ventre, e outra, ainda nos rins, contendo qualquer coisa preta. Em seguida todos ergueram as taças para a luz e despejaram-nas num recipiente de prata que Ramon segurava entre as duas mãos.
"Porque sem o espírito que o deus desconhecido entorna na minha cabeça, sem o fogo que ele põe no meu coração, sem a força com que me enche o peito e sem a centelha com que me atinge os rins, eu não existo, nada sou.
E se não misturo o vinho do meu espírito e o sangue do meu coração, a força do meu peito e o poder dos meus rins para os oferecer à Estrela da Manhã, atraiçoo o corpo e a alma, o espírito e o meu deus, que é desconhecido.
O homem é quádruplo, mas a estrela é una. E um homem não é senão uma estrela."
Moveu lentamente a taça de prata entre as mãos a fim de misturar os diferentes líquidos. Depois, de costas para o público, ergueu-a como se a oferecesse à estátua e, num gesto rápido, lançou o conteúdo no lume que ardia sobre a ara.
Houve uma espécie de explosão, e irrompeu uma chama azul, seguida doutra amarela e de fumo avermelhado. A cara dos homens que rodeavam o altar revestia-se sucessivamente daquelas três cores. Voltando-se para a assistência, Ramon elevou a mão.
- Saudai Quetzalcoatl! - bradou uma voz. E os homens começavam a levantar os braços quando outra voz se fez ouvir, num gemido de angústia:
- Não! Não! Não!
Partia do grupo de mulheres, que olharam em volta, aterradas, e viram uma criatura vestida de preto, ajoelhada no chão, de rosto erguido e mãos estendidas para a Madona ausente.
- Não! Não! Senhor! Senhor! Jesus! Virgem Santíssima! Impedi-o! Impedi-o!
A voz, que se elevara, voltou a ser um gemido, as mãos brancas crisparam-se sobre o peito, e a mulher de preto avançou de joelhos para os degraus do altar, através da turba feminina, que se comprimia para a deixar passar. E de joelhos seguiu sempre, de cabeça baixa e murmurando orações.
Kate sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pela forma da cabeça inclinada sob a mantilha preta, reconhecera Carlota.
Toda a assistência parecia petrificada de terror.
- Jesus Redentor! Santíssima Virgem! - implorava Carlota. Pareceu decorrer tempo infinito antes que ela atingisse o altar.
Ramon continuava imóvel diante da estátua de Quetzalcoatl, com o braço alçado.
Carlota arrastou-se sobre os degraus e ergueu ao céu as alvas mãos e a face de brancura radiosa, sobrenatural.
- Senhor! Senhor! - exclamou ela numa voz estática que arrepiou Kate. - Jesus! Jesus! Jesus!
E durante todo este tempo, Ramon, o Quetzalcoatl vivo, conservava-se diante do altar, com o braço levantado, fixando na mulher ajoelhada os olhos impassíveis.
Um tremor agitou o corpo de Carlota que, de olhos ao alto, elevou a voz cheia de dor e de súplica:
- Perdoai-lhe, Senhor! Deus de amor, perdoai-lhe que ele não sabe o que faz. Não o deixeis continuar, meu Jesus, Cristo Redentor! Apiedai-vos dele, ó Pai misericordioso! Arrebatai-lhe a vida, mas que a sua alma não morra!
A voz ganhara força e soava clara e terrível.
- Deus Todo-Poderoso, tirai-lhe a vida e salvai-lhe a alma!
No silêncio que se seguiu a este grito as mãos dela pareciam tremular como chamas de morte.
- A Omnipotência está comigo - proferiu Ramon em tom sereno, tal se se dirigisse a Carlota.
Ficou ela de mãos postas, absolutamente imóvel; as faces tinham uma palidez mística, que o vestido preto acentuava. E Ramon, sempre de braço levantado, olhava-a com ar abstracto e sobrancelhas um tanto encrespadas.
Uma convulsão sacudiu o corpo de Carlota. Mas de novo se endireitou e estendeu as mãos unidas com mais fervor ainda. Tomada, porém, doutra convulsão, caiu sobre os degraus do altar.
Kate levantou-se num pulo e correu para ela: estava rígida, com um pouco de espuma na comissura dos lábios, os olhos vítreos e fixos.
Ramon deixara tombar o braço e as mãos pendiam-lhe ao longo das coxas. Mas não se lhe notava a mínima comoção. Viu o olhar consternado que Kate lhe lançou e logo, com a rapidez dum relâmpago, as suas pupilas negras procuraram Cipriano e voltaram a pousar-se em Carlota. Nem um músculo se movia no rosto impassível daquele homem e Kate compreendeu que o seu coração estava bem morto no que respeitava à mulher. Recordou-se do que ele um dia lhe dissera: Entre mim e Carlota não há estrela. Que terrível verdade!
Cipriano aproximou-se rapidamente, despiu a sumptuosa serape e cobriu o pobre corpo rígido, que ele ergueu com facilidade e transportou através do templo, entre as filas de mulheres. Kate seguiu-o. E quando ia a sair para o sol deslumbrante, ouviu a voz grave e lenta de Ramon:
Sou o Quetzalcoatl vivo.
Nu, saí do abismo,
Desse lugar a que chamo meu pai,
E nu percorri longo caminho.
Das profundezas do céu vim como uma águia, Das entranhas da terra vim como uma serpente. São minhas as raízes, na senda escura da serpente.
E meus são os ramos, nas sendas do céu e da águia. Os pés dos homens e as mãos das mulheres conhecem-me bem. Os seus joelhos e as suas coxas, os seus rins e entranhas, a sua força e a sua semente vivem do meu fogo.
Porque sou Quetzalcoatl, a serpente de penas. Águia do ar, afloro com as asas a vossa visão. Arejo-vos o peito com o meu sopro. Construo-vos nos ossos o meu ninho de paz. Sou Quetzalcoatl, o deus das duas sendas.
Kate retardou o passo para ouvir o hino até ao fim. Cipriano demorou-se também à porta, com a sua estranha carga: uma mulher sem sentidos envolta numa serape de cores vivas.
Caminharam rapidamente sob as árvores até ao hotel próximo, e aí deitaram Carlota na cama. Já um soldado fora em busca do médico; mandaram também chamar o padre.
Kate instalou-se junto do leito, onde Carlota jazia, soltando gemidos e sons inarticulados. Diante da igreja um tambor começara a tocar, num ritmo bárbaro e complicado. Kate foi à janela e olhou. O povo saía do templo.
Então, do alto das torres, um coro de vozes masculinas se elevou no ar como uma águia negra. Da janela, Kate via os cantores lá em cima e a multidão que enxameava o adro.
Cipriano reapareceu.
- Estão a cantar as "Boas-vindas a Quetzalcoatl" - explicou ele.
- Como é a letra? - inquiriu Kate.
- Hei-de dar-te um folheto com o cântico.
Ao lado de Kate, dominava-a com o sortilégio da sua presença, e ela debatia-se debilmente como se estivesse a afogar-se. Quando se sentia em segurança, desejava submergir-se mas, perante o perigo, lutava por retomar pé.
Ouvindo como que um som de choro, Kate correu para junto de Carlota.
- Onde é que estou? - perguntou a doente, com as faces de palidez mortal.
- Está na cama, a descansar. Não se aflija.
- Que me aconteceu? - tornou Carlota.
- Penso que seria uma leve insolação - respondeu Kate. - Apanhou sol e fez-lhe mal.
Carlota fechou os olhos.
Então, de repente, rufaram de novo os tambores; lá fora, à luz ofuscante, a vida parecia rolar em vagas poderosas.
Carlota sobressaltou-se e reabriu os olhos.
- Que é aquele barulho?
- É uma fiesta - informou Kate.
- Ramon matou-me e perdeu a sua alma - disse Carlota. É um assassino, e um dos condenados às penas eternas. O homem com quem casei, um assassino e um condenado!
Era evidente que já não ouvia o tambor.
Cipriano não pôde suportar aquela voz e aproximou-se da cama.
- Dona Carlota! - exclamou, fitando os olhos que já nada viam. - Não expire com palavras erróneas nos lábios. a senhora é que se matou a si mesma. Nunca casou verdadeiramente com Ramon. Foi mulher dele à sua maneira.
- Ah, nunca casei com Ramon... - repetiu a moribunda. Como poderia ser sua mulher? Julgava tê-lo desposado... Ainda bem que não. Que felicidade!
- Sente-se feliz! - bradou Cipriano, irritado contra a própria sombra daquela mulher. - Sente-se feliz porque nunca derramou o vinho do seu corpo na taça da mistura! E, contudo, noutros tempos, bebeu o vinho do corpo dele e o seu óleo apaziguou-a! Ao passo que a senhora só lhe deu a água da caridade. Pois digo-lhe que a água da caridade amarga na boca e acaba por extinguir o fogo do peito e das entranhas. Foi caritativa mas inexorável para o homem a quem chama seu. Queria extinguir o fogo que o anima, e afinal apagou a sua própria chama.
- Quem está a falar? - perguntou a sombra de Carlota.
- Eu, Cipriano Viedma.
- O vinho e o óleo! O óleo, o vinho e o pão... - murmurou ela em voz doce. - São os sacramentos, o corpo e a bênção de Deus. Onde está o padre? Quero confessar-me, e receber os sacramentos, e obter a paz do Senhor.
- O padre há-de vir... Mas como quer a senhora receber sacramentos se não fez a mistura no cálice a que Ramon chama a taça da estrela?
- Ramon, com a sua alma perdida! - murmurou Carlota. O pai dos meus filhos! O esposo da minha carne! Ah, não! Antes quero invocar a Virgem Santíssima e morrer.
- Pois invoque-a e morra! - disse Cipriano, cada vez mais brutal.
- Meus filhos... - sussurrou ela.
- É bom que tenha de os deixar. Também lhes roubou o seu óleo e o seu vinho, ó mãe chorosa, esposa impecável e justa! Roubou o calor do sol e a seiva da vida, e não soube dar em troca senão água límpida. Ah, morra, pois! Morra e desapareça para sempre!
Dona Carlota recaíra no estado de inconsciência; a sua própria sombra recusava-se a ouvir tais dislates. Cipriano lançou sobre os ombros a serape flamejante, tapando com ela a cara e, só com os olhos luzidios à mostra, saiu do quarto como se envolvido pelas chamas do Inferno.
Kate ficou junto de Carlota. Lá fora, continuavam os rufos e o cântico em louvor de Quetzalcoatl. Sob as árvores ela viu os homens seminus dançarem de roda do tambor e em seguida interpretarem uma dança religiosa, comemorando o regresso de Quetzalcoatl. Era a antiga dança dos índios, que simboliza a absorção das forças profundas da terra. Era a própria dança desse povo: dos Astecas, dos Zapotecas e dos Huicholes, idêntica na sua essência - a dança indígena da América - silenciosa, absorta, surdo calcar de pés, corpo afundando-se devagarinho, mas com todo o seu peso sobre o lombo da terra, tal um galo fecundando a fêmea.
E Kate dizia consigo, escutando os tambores e os cânticos e observando os corpos flexíveis e belos que dançavam: "Sim, para aqueles tudo é mais fácil. Mas os brancos, de raça dominadora, que fazem neste momento?"
De tarde realizou-se a grandiosa dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl." Kate viu apenas uma parte, diante da igreja.
Os tambores tocavam sem descanso.
Kate soube mais tarde que um cortejo de mulheres, transportando à cabeça cestos cheios de pão e de fruta, tinha descido à praia e carregado os barcos. Depois, os dançarinos haviam-se metido nesses barcos e ido a remos até à ilha.
Aí, fizeram uma festa e ensinaram a dança das "Boas-vindas a Quetzalcoatl", que doravante executariam todos os anos na mesma data.
O médico veio a toda a pressa, e o padre apareceu pouco depois. Nem um nem outro puderam fazer nada. Voltaram de tarde, e Kate saiu e vagueou na praia quase deserta, vendo ao longe a chusma de barcos que se aproximava da ilha e sentindo que a vida era mais terrível do que a morte. Morrendo, acaba-se tudo. Mas vivendo não se acaba nada e não se podem evitar as responsabilidades.
Tornou para o quarto da enferma e, com o auxílio duma criada, despiu a pobre Carlota e envergou-lhe uma camisa de noite. Veio outro médico da cidade; mas Carlota estava a morrer e Kate ficou de novo sozinha com ela.
E os homens, que andavam a fazer?
Tão ocupados se encontravam com a vida que a deixavam ali sozinha a ocupar-se da morte?
Só ao anoitecer ela ouviu de novo os tambores e o canto bárbaro, quase guerreiro.
Cipriano voltou cheirando a sol e a suor. Olhou de relance para o leito, onde jazia a mulher inconsciente, e para os frascos de remédios.
- Que disseram os médicos? - perguntou.
- Que talvez escape.
- Não escapa, não. Vai morrer - volveu ele, levando Kate para a janela. - Olha, vê o que estão a cantar - acrescentou, dando-lhe um papel com a letra das "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
Não estamos perdidos. Não estamos abandonados. Quetzalcoatl veio! Nada mais queremos. Quetzalcoatl veio!
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Ele ama a sombra das árvores.
Somos como árvores altas e sussurrantes.
Quetzalcoatl está entre as árvores.
Sobre a minha cabeça a sua águia silenciosa
Ateia uma chama.
A serpente beija-me o calcanhar.
Como um vulcão os meus quadris se agitam, A garganta enche-se-me de fogo. No meu cabelo afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios. E, cintilando, diz-nos sem falar: olhai!
Ah, Quetzalcoatl!
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas.
Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
Faze de mim um homem.
Kate ia lendo enquanto lá fora cantavam. Aquele estranho povo silencioso recuperara finalmente a voz. Era como se houvessem removido uma pedra de cima deles todos, e, pela primeira vez, Kate ouvia-lhes a voz, grave, selvática, exprimindo exultação e ameaça.
Nu, subiu para a nossa barca. Quetzalcoatl veio!
Notava-se um tom de alegria e desafio no timbre dos homens. Depois elevou-se uma voz de mulher, quase tão clara como um astro:
No meu cabelo se afunda o azul do dia. A Estrela surgiu entre os dois prodígios...
Era estranho ver como aquela gente acabara por abrir o seu coração. Haviam afastado a pedra que os sufocava e nascia um mundo novo. Kate sentia medo.
Escurecera. Imersa no seu sonho, descansava a mão no joelho de Cipriano. E ele, inclinando-se, apoiou a sua na face de Kate.
- Hoje - disse, baixinho - hoje completámo-nos.
Kate procurou a mão dele. Estava tudo tão escuro! Mas, no fundo de si mesma, que doce calor de vida!
Derrama sobre mim o óleo da Estrela...
Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas, envoltos pela sombra da noite. Lá fora, continuavam a cantar e a dançar de roda do tambor. Nos antigos campanários flamejavam lumes, iluminando vultos brancos. E no adro, onde ardia uma fogueira, dois homens de Huitzilopochtli, seminus e coroados de penas vermelhas, dançavam a dança das espadas, soltando gritos de guerra.
Ramon apareceu por fim, com o seu fato branco. Tirou o chapeirão e, de pé, contemplou Carlota. Nenhum rumor saía da garganta da moribunda. Ramon fechou os olhos por um momento e afastou-se sem dizer palavra.
Dirigiu-se para a janela, onde Cipriano, ainda segurando na mão de Kate, mantinha o seu silêncio impenetrável, mas vivo, que exprimia muito mais do que todos os discursos.
Dali, Ramon via as fogueiras no adro e na praia, os vultos claros dos peóns e das mulheres de rebozo preto e saias rodadas; via os dançarinos seminus, rodeados pela multidão, as serapes encarnadas de Huitzilopochtli e as azuis e brancas de Quetzalcoatl, garotos a correr, homens cantando em círculo de roda do tambor.
- Na vida é que reside o mistério - disse Ramon. - Em comparação, a morte pouco tem de misteriosa.
Bateram à porta. O médico viera mais uma vez, trazendo uma enfermeira; esta atravessou o quarto em passos subtis e inclinou-se sobre a doente.
Cipriano e Kate partiram para Jamiltepec. Foram de barco pelo lago sombrio, afastando-se das fogueiras e do barulho. Kate sentia o desejo de que se estendesse sobre ela a escuridão profunda e viva, essas trevas onde Cipriano podia mergulhá-la.
Entorna o sono negro e belo no fundo das minhas entranhas. Derrama sobre mim o óleo da Estrela.
E Cipriano, junto dela no barco, sentia o sol interior nascer dentro de si e espalhar-se-lhe por todo o corpo; e sentia a misteriosa flor da feminilidade de Kate abrir-se lentamente, tal uma anémona-do-mar que se abre debaixo de água com voluptuosa doçura. Desvanecera-se a dureza da vontade e a suave anémona das suas profundezas desabrochava para ele, imersa sob as correntes.
Ramon ainda ficou no hotel, refugiado no impenetrável santuário do seu silêncio. Carlota continuou inconsciente. Houve uma junta médica, sem nenhum resultado. A pobre criatura morreu ao romper da manhã, antes de os filhos terem tempo de chegar da cidade; expirou no momento em que uma barca se afastava da praia e os seus passageiros começaram a cantar o hino de "Boas-vindas a Quetzalcoatl".
XXII
Sepultaram Dona Carlota em Sayula, e Kate, apesar de ser mulher, foi ao enterro. Don Ramon ia atrás do caixão, com o traje branco e a insígnia de Quetzalcoatl no chapéu de abas largas. Acompanhavam-no os filhos, assim como vários desconhecidos vestidos de preto.
Os pequenos pareciam deveras estranhos nos seus fatos de luto, de calças curtas e joelhos nus. Ambos tinham cara redonda e pele morena clara. Pedro, o primogénito, assemelhava-se a Don Ramon, mas os seus cabelos eram menos escuros que os do pai. O mais novo, Cipriano, tinha os cabelos encaracolados e os grandes olhos castanhos da mãe.
Vieram de Guadalajara com a tia e deviam regressar à cidade sem mais demora. No seu testamento, Dona Carlota nomeou dois tutores para substituírem o pai, declarando que este aceitaria a decisão. E os seus bens consideráveis deixou-os aos filhos em fideicomisso. Mas um dos fideicomissários era Ramon.
No seu quarto do hotel sobranceiro ao lago, Ramon sentou-se em frente dos dois pequenos no canapé de verga.
- Que vão vocês fazer? - perguntou-lhes. - Regressar à cidade com a tia Margarita e voltar para o colégio dos Estados Unidos?
Os filhos mantinham um silêncio de amuo.
- Sim, senhor - disse por fim o Ciprianito, e os cabelos castanho-claros pareciam eriçar-se de indignação. - Era o que a mãe queria que fizéssemos, e obedeceremos à sua vontade.
- Muito bem! - redarguiu Ramon tranquilamente. - Mas lembrem-se que sou seu pai e que a minha porta, os meus braços e o meu coração estarão sempre abertos para os receber, quando vierem.
O mais velho remexeu os pés, atrapalhado, e murmurou sem erguer os olhos:
- Não podemos vir, papá.
- Porque não?
O pequeno fitou-o com ar de desafio.
- O papá não anda a dizer a toda a gente que é o Quetzalcoatl vivo?
- Pois ando.
- Mas o nosso pai chama-se Ramon Carrasco.
- Isso também é verdade.
- Não somos filhos do Quetzalcoatl - declarou Pedro em tom solene. - Somos Carrasco y de Lara.
- Qualquer deles é bom nome.
- Nunca poderemos gostar de si, papá! - exclamou Ciprianito, de olhos flamejantes. - Matou a nossa mãe.
- Não digas isso! - protestou Ramon. - A mãe é que quis morrer.
- Ela gostava muito do papá, muito, muito! - bradou Cipriano, com os olhos já rasos de água. - Rezava sempre por si... Desatou a chorar.
- E eu, meu filho?
- O papá detestava-a, e matou-a! Oh, mamã! Oh, mamã, mamã! Quero a minha mãe! - carpia o pequeno.
- Anda cá - disse Ramon, estendendo as mãos.
- Não! - gritou Cipriano, batendo o pé e com os olhos a faiscar através das lágrimas. - Não, não!
O mais velho pendia a cabeça e chorava também. De testa franzida, já um tanto aflito, Ramon olhava para um lado e outro como se procurasse uma saída. Mas depressa recuperou o sangue-frio.
- Oiçam, filhos. Por enquanto são apenas crianças, mas depois de crescidos saberão que um homem deve ser um homem. Quando a sua alma lhe diz que faça determinada coisa, ele tem de a fazer. A nossa obrigação é escutar a alma e ser-lhe fiel.
- Je m'en fiche de ton ame, mon père! - A nova explosão de Cipriano foi em francês, língua em que ele muitas vezes falava com a mãe.
- A sua alma é diferente da da mamã? - perguntou o mais velho.
- Sabe-se lá! - respondeu Ramon. - Pelo menos compreendo-a de maneira diferente.
- A mamã rezava sempre pela alma do papá.
- E eu, a meu modo, rezo pela sua. Se ela voltar até mim, recebê-la-ei no meu coração.
- A alma da mamã vai direita para o céu - declarou Cipriano.
- Talvez o céu da alma dos mortos seja o coração dos vivos.
- Não percebo o que está a dizer...
- É muito possível - volveu Ramon - que mesmo agora o céu da vossa mãe esteja no meu coração.
Os dois rapazinhos olharam-no espantados.
- Não acredito - replicou Cipriano.
- Ou no teu - continuou Ramon. - Tens um lugar no teu coração para a alma da tua mãe?
Ciprianito abriu mais os olhos, sobressaltado.
- A alma da minha mãe entrou já no Paraíso porque ela era uma santa - disse em tom categórico.
- Qual Paraíso?
- O único que existe. Onde Deus está.
- E onde é que isso fica? Houve uma pausa.
- No céu - respondeu por fim Ciprianito.
- É muito distante, e muito vago. Olha, filho, o coração dos seres vivos é que é o verdadeiro centro do céu. E aí a alma dos mortos vem descansar, no próprio centro, onde o sangue flui e reflui.
Seguiu-se novo silêncio.
- Vai continuar a dizer que é Quetzalcoatl vivo? - perguntou Cipriano.
- Certamente. E quando vocês forem mais crescidos talvez se voltem para mim e o digam também.
- Nunca! Matou a nossa mãe e nós odiamo-lo. Depois de crescidos devíamos era matá-lo...
- Eia, que palavreado! Porque é que só dás ouvidos às conversas dos criados e pessoas desse género? Não são teus inferiores, visto que és meu filho e filho de tua mãe? Porque há-de a tua boca adoptar a linguagem dos que te são inferiores? Não há lugar para discursos dos homens corajosos? Não me matarás, nem o teu irmão, porque não o permitirei, ainda que o desejassem. Mas não o desejam. E acaba com isso, que já não quero ouvir mais disparates... Seria melhor falarmos em inglês ou em francês. O castelhano é uma língua que se presta muito a frases brutais.
Ramon levantou-se e, aproximando-se da janela, olhou para o lago. Era meio-dia. Soavam gongos no templo, lembrando aos homens que deviam por um momento olhar para o Sol e recolher-se em breve oração.
O Sol subiu a colina, o dia vai descer a encosta. Entre a manhã e a tarde estou eu e a minha alma. A minha alma embebe-se de sol e de força, Enche-se de doçura como um favo de mel. É o instante de plenitude, É o remate da manhã.
Ramon voltou-se e repetiu aos filhos o versículo do Meio-Dia. Os pequenos escutaram-no em silêncio constrangido.
- Porque estão confusos? Se eu falasse a respeito das botas novas de vocês, ou de dinheiro, sentir-se-iam muito à vontade. Mas como falo do Sol e da alma, ficam embaraçados. Realmente, acho melhor regressarem ao colégio da América e aprenderem a ser homens de negócio. E digam a toda a gente: "Oh, não, não temos pai! A nossa mãe morreu, mas pai nunca tivemos. Somos filhos duma conceição imaculada, e daremos excelentes comerciantes."
- Eu serei padre - declarou Ciprianito.
- E eu médico - acrescentou Pedro.
- Muito bem! Mas do serei ao sou ainda vai grande distância, e daqui até lá podem mudar de ideias. Venham ter comigo quando lhes apetecer. São meus filhos, apesar de tudo, e eu recebê-los-ei sempre de braços abertos. Chega-te cá, Pedro, e tu também, Cipriano.
Os pequenos não se atreveram a desobedecer-lhe; a força de Ramon era muito maior do que a deles.
Tomou nos braços o filho mais velho e acariciou-lhe a cabeça.
- És o meu primogénito, e eu sou o teu pai, que se intitula o Quetzalcoatl vivo. Quando te perguntarem se o teu pai é aquele que se proclama o Quetzalcoatl vivo, responde que sim. E se perguntarem o que pensas de semelhante progenitor diz que não tens ainda idade para o compreender, e que sem compreenderes não podes julgar. Serás capaz de dizer isto, Pedro? - e Ramon afagava o pequeno com uma ternura que o sobressaltava.
- Sim, papá, responderei com essas palavras - murmurou o rapazinho com ar aliviado.
- Muito bem - volveu Ramon, pousando a mão na cabeça do filho como se o abençoasse.
Voltou-se então para o mais novo:
- Anda cá, para eu acariciar esses cabelos revoltos.
- Se gosto de si não posso gostar da mamã.
- Tens um coração assim tão pequenino?
- Não quero aproximar-me do papá.
- Pois não te aproximes, e vem só quando te apetecer.
- Não acredito que goste de mim.
- Quando és teimoso não gosto. Mas quando a tua personalidade vem ao cimo e és bravo e destemido, sem ser insolente, tornas-te adorável.
- A mamã gostava sempre de mim.
- Reconhecia-se em ti. Eu não me reconheço. Tu és tu. Se fores amável, posso querer-te bem. Se não fores, não posso. O moinho não anda quando o vento não sopra.
Os pequenos foram-se embora. Ramon, no cais, vendo-os partir assim vestidos de luto sentiu o coração confranger-se-lhe.
"Pobres diabos! - dizia ele consigo. - Nada mais posso fazer do que guardar a minha alma como um castelo, para lhes servir de fortaleza quando um dia precisarem disso... se é que chegarão a precisar."
Nesses dias, Kate sentava-se muitas vezes à beira do lago nas primeiras horas da manhã. Entre os aguaceiros, o dia despontava claro e ela podia distinguir as menores saliências das altas colinas fronteiras; o desfiladeiro, por onde passava o rio em direcção a Tuliapan, aparecia tão nítido nos seus pormenores que ela tinha a impressão de o estar a seguir a pé. Os passarinhos vermelhos dir-se-iam ter a cor mais avivada com a lavagem da chuva, na luz matutina coaxavam as rãs.
Era como se o mundo estivesse de qualquer forma diferente, muito diferente. Nem repicar de sinos, nem badalar de horas - tinham retirado o relógio.
Em vez de tudo isso, tambores e gongos. Ao romper da manhã, o gongo abalava o ar. Depois, uma voz forte, do alto da torre, entoava o hino à aurora:
A escuridão afasta-se, o Sol transpõe a muralha. O dia está próximo.
Erguei a mão, dizei adeus e dai boas-vindas.
E então calai-vos.
Que as trevas vos deixem e a luz vos banhe,
Homens do crepúsculo.
Extinguia-se a voz e o tantã. E, na aurora, os homens que se haviam levantado permaneciam silenciosos, de braço erguido, enquanto as mulheres cobriam o rosto e pendiam a cabeça. Tudo se conservava imóvel no momento da transição.
Então vibrava um rufo de tambor quando os primeiros raios do Sol coroavam o cimo das montanhas. o dia começara. As criaturas do mundo começavam também a sua faina quotidiana.
Por volta das nove, novo rufo e a voz na torre bradava:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da manhã!
Ao meio-dia era o gongo, às três um toque rápido e o anúncio:
Meio caminho! Meio caminho na encosta da tarde!
E ao pôr do Sol:
Erguei a mão, dizei adeus, dai boas-vindas,
Homens do crepúsculo!
O Sol abaixa-se no pórtico.
Gritai-lhe: Obrigado! Obrigado!
E então calai-vos.
Pertenceis à noite.
E outra vez todos os homens erguiam a mão e as mulheres cobriam o rosto e baixavam a cabeça.
O mundo estava diferente, diferente. Os tambores pareciam deixar a atmosfera branda e vulnerável, como se fosse viva. E, acima de tudo, nenhum bater de metal em metal nos momentos de transição.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Deveras estranha essa mudança que se operava no mundo. O ar tinha um silêncio doce, aveludado. E já não havia horas, minutos. Aurora, meio-dia, pôr do Sol, metade da manhã, metade da tarde, eis o que marcava o dia. E o sistema era o mesmo durante a noite. Começaram a chamar os quatro períodos diurnos a hora do coelho, a do falcão, a do bútio e a do gamo. E aos da noite, a hora da rã, a do pirilampo, a do peixe e a do esquilo.
"Chegarei aí - escreveu Cipriano a Kate - quando o gamo estiver dando os últimos passos em direcção à floresta."
Isto significava um pouco depois das cinco.
Era como se de Ramon e de Cipriano, de Jamiltepec e da região do lago, um novo mundo se desdobrasse tão subtilmente como a penumbra desce e vela a claridade do dia. Era bem uma penumbra suave que se espalhava por toda a parte, até nas cidades. Porque mesmo aí já se viam as serapes azuis de Quetzalcoatl, e os tambores marcavam o tempo, misturando o seu som ao badalar dos sinos e ao barulho do tráfego. Na própria capital, quando o tambor grande tocava, paravam homens na rua e, de braço erguido, escutavam o canto do meio-dia, que eles sabiam de cor, esforçando-se por não ouvir nenhum bater de metal.
O metal para a resistência.
O tambor para os corações palpitantes.
Mas era um mundo de metal, um mundo de resistência.
Cheio de império sobre os seus soldados, se bem que despertasse ódios noutros oficiais, Cipriano queria que Montes declarasse: a religião de Quetzalcoatl é a religião do México. E depois secundaria a declaração com as suas tropas.
Ramon, porém, não concordava. A religião tinha de se propagar por si mesma, e não à força.
- Espera até que sejas proclamado o Huitzilopochtli vivo e os teus homens usem os mantos encarnados e pretos. Então talvez possamos celebrar o teu casamento solene com Caterina, e ela se torne uma mãe entre os deuses.
Nessa época, Ramon fazia todo o possível por não suscitar resistências e ódios. Escreveu cartas abertas ao clero, neste teor:
"Quem sou eu, para me considerarem inimigo da Igreja? Desejo uma Igreja única, com sede em Roma, se esta quiser.
Mas os diferentes povos devem ter salvadores diferentes, assim como têm idiomas diferentes. O mistério final é uno, embora as manifestações sejam múltiplas.
Deus deve aparecer no México vestido de serape e de huaraches, pois doutra forma deixa de ser o deus dos Mexicanos e eles não o reconhecem. Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações.
Os homens são fragmentos, estranhamente agrupados na sua fragmentação. O Deus invisível escureceu a face de uns, branqueou a doutros e dividiu-os em grupos; assim como o zopilote, o papagaio e o tordo são aves diferentes entre si. Mas o anjo dos zopilotes tem de ser um zopilote, e o anjo dos papagaios um papagaio. O primeiro deleitar-se-á com o cheiro de um cadáver, o outro com o cheiro dos frutos.
Os sacerdotes que vêm até mim não traem a sua fé nem o seu Deus. Modificam apenas o traje e a maneira de falar. Também o peón tem um grito especial para chamar os bois e outro para chamar os muares..."
Aos socialistas e agitadores, Ramon escreveu o seguinte:
"Que pretendeis? Que todos sejam como vós? Que todos os peóns do México usem o fato de corte americano e sapatos de verniz, que leiam nos jornais as últimas notícias e contem com o governo para se fazerem homens? Foi o governo que afirmou a vossa natureza humana para que espereis que a revele aos outros?
É tempo de esquecer. E tempo de pôr de parte o rancor e a piedade. Ninguém melhora por ser lastimado e o rancor só prejudica quem o sente.
Nada podemos fazer da vida senão vivê-la.
Procuremos, pois, a vida onde é possível achá-la. Depois de a acharmos ela própria resolverá os problemas. De cada vez que nos negamos à vida, para solucionar uma dificuldade, fazemos nascer dez onde antes existia só uma. A fim de resolvermos os problemas do povo, extraviamo-lo numa floresta de complicações.
A vida cria, molda e transforma o problema. Este existirá sempre, e há-de ser sempre diverso.
Por isso nos voltamos para a vida; trocamos o relógio pelo Sol e pelas estrelas, o metal pela membrana.
E assim esperamos que o problema desapareça, visto não podermos dar-lhe solução. Quando os homens procurarem a vida em primeiro lugar, já não procurarão terras nem ouro. A terra dormirá no seio dos deuses, como fazem os homens. E melhor será se voltar a vigorar o antigo regime comunal. Porque, na verdade, nenhum homem deve possuir terras.
Mas quando estamos enterrados num pântano não vale a pena tentar correr. Só podemos patinhar, e à custa de grandes esforços.
Procuremos a vida, e a vida trará a mudança.
Não ponhamos mãos ávidas sobre nada, mas estejamos prontos a resistir se mão brutal se abater sobre nós. Porque os rebentos da vida são tenros e mais vale dez mortes do que ver esses renovos arrancados e espezinhados pelos brutos deste mundo. Se for necessária a luta para proteger os raminhos da vida, lutemos como fazem os jaguares para salvar os filhos.
Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável. Combatamos pelos vulneráveis rebentos da vida, e não nos deixemos vencer."
Também Cipriano falava aos seus soldados em linguagem semelhante:
"Somos homens! Somos combatentes! Mas que podemos fazer? Marchar simplesmente para a morte? Não! Devemos marchar para a vida.
Os gringos estão cá. Deixemo-los estar, pois não podemos expulsá-los. Se vieram em paz, que fiquem em paz. Mas ainda não perdemos o México. Somos o sangue da América. Somos o sangue de Montezuma. De que me serve a mão? Só para manejar a alavanca da máquina?
A mão é para saudar o deus dos Mexicanos, erguida para o céu. É para apertar a mão de um homem corajoso. É para segurar numa espingarda. É para fazer nascer o trigo da terra. E de que me servem os joelhos?
Para me conservarem altivo e erecto.
Para marchar no meu caminho.
Os meus joelhos são os joelhos de um homem.
O nosso deus é Quetzalcoatl do céu azul, e o rubro Huitzilopochtli está de sentinela à porta.
Os nossos deuses detestam que os homens se ajoelhem. Por isso gritam: - Eia! De pé!
Que podemos então fazer?
Esperar!
Nu sob a minha roupa sou um homem como vós.
Sou alto? Alto e forte como os naturais de Tlascala?
Não. Sou baixo. Nasci no Sul.
E, no entanto, não sou o vosso general?
Porquê?
Porque sou eu general e vós apenas soldados?
Já vos explico.
Encontrei a outra força. Porque há duas forças. A dos bois e dos muares, do ferro, das máquinas, e das espingardas e dos homens que não conseguem alcançar a segunda força;
E há a segunda força, aquela de que necessitais. Todos podeis tê-la, grandes ou pequenos. É a força que nos vem do Sol. Podeis tê-la aqui! - Cipriano batia no peito. - E aqui! E aqui! - dizia ele tocando sucessivamente no ventre e nos rins. - É a força que nos vem do Sol."
Quando Cipriano se animava, os olhos cintilavam-lhe e dir-se-ia que se lhe eriçavam nos ombros e nas costas penas escuras e brilhantes como as de uma águia enfurecida. Os seus soldados tinham a impressão de que o viam provido de asas, como um deus antigo. E murmuravam, de olhos também a luzir:
"É o Cipriano! É ele! Somos seus filhos, somos os Ciprianitos."
"Somos homens! - gritava o general. - Mas existem duas espécies de homens: os que possuem a segunda força e os que não a possuem.
Quando os primeiros gringos vieram, perdemos a nossa segunda força. E os padres ensinaram-nos: Submetei-vos! Submetei-vos!
Os gringos conseguiram a segunda força!
De que maneira?
Roubaram-na. Conservaram-se muito quietos, como uma tarântula no seu buraco. Depois, quando nem o Sol, nem a Lua, nem as estrelas sabiam que ela ali estava, a tarântula mostrou-se, mordeu, inoculou o seu veneno e apoderou-se do segredo. E assim roubaram os segredos do ar e da água, e os segredos do fundo da terra. Tornaram-se senhores do metal, e fabricaram armas, máquinas, navios, comboios, telégrafos e rádios.
Porque o fizeram? E como o fizeram?
Porque, manhosamente, apanharam o segredo da segunda força que vem das regiões do Sol.
E nós tornámo-nos em escravos, porque perdêramos a segunda força e só possuímos a primeira. Agora estamos a recuperá-la. Achámos o caminho que conduz ao Sol e para além do Sol. Aí se encontrava Quetzalcoatl, e Don Ramon descobriu-o. Aí se encontra o rubro Huitzilopochtli, e eu descobri-o.
Quando ele vier, todos de vós, que a procurardes, achareis a segunda força. E depois de a terdes, onde a sentireis?
Não será aqui! - E Cipriano bateu na testa. - Não será na cabeça, onde os gringos astutos a possuem, nem nos livros onde eles a buscam.
Será aqui, aqui e aqui! - acrescentou, batendo no peito, no ventre e nos rins.
Não podemos alcançar a segunda força? Perdemo-la para sempre?
Afirmo que não! Quetzalcoatl está entre nós, e eu descobri o rubro Huitzilopochtli. A segunda força!
Pensai nela quando andardes ou estiverdes parados, quer trabalhando quer descansando.
Sede calmos, porque ela é assustadiça como pássaro numa árvore sombria.
Sede asseados, asseados no corpo e na roupa, pois ela é como uma estrela e não brilha na sujidade.
Sede bravos e não bebais até vos embriagardes, não vos mancheis tocando em mulheres de má vida, nem roubeis nada.
Porque o ébrio perde a segunda força, perde-a igualmente o homem que toca em mulheres indignas, e um ladrão é um cobarde, e Huitzilopochtli detesta cobardes.
Lutai por conquistar a segunda força! Depois de a possuirdes, os outros perdê-la-ão."
Cipriano esforçava-se com as suas tropas. O mal do exército é não ter nada que fazer. O general obrigou todos os soldados a cozinhar e a lavar a roupa, a limpar e a pintar as casernas, a cultivar hortaliças e a plantar árvores em toda a parte onde houvesse água. Ele próprio manifestava grande interesse por todos os seus trabalhos. Não lhe escapava à vista uma farda suja, uma huarache mal arranjada. Até quando os soldados cozinhavam, Cipriano andava a passear no meio deles.
- Dai-me qualquer coisa para comer! - dizia-lhes. - Dai-me uma enchilada.
Então elogiava o cozinheiro ou declarava que isso não estava bom.
Como todos os selvagens, gostavam de executar pequeninos trabalhos e, como a maioria dos Mexicanos, diligenciavam executá-los bem.
Cipriano estava decidido a impor disciplina nos seus soldados. A disciplina é o que mais escasseia no México, e no Mundo inteiro. Mas só importa a disciplina interior; a da máquina, a que vem do exterior, não prevalece.
Deu ordem para que os índios do Norte batessem os seus tambores e recomeçassem as antigas danças no pátio do quartel. A dança que possui um significado é já em si uma disciplina. Os índios do Norte conservaram o segredo da dança animista. Dançam para aumentar o seu poder sobre as forças vivas e potenciais da terra, o que exige intensa concentração e muita resistência.
Cipriano animava-os tanto quanto possível. Também ele aprendeu com entusiasmo a dança do escudo e das lanças, a dança do punhal, a da emboscada e da surpresa. Aprendeu-as nas aldeias do Norte e dançou-as no pátio do quartel, de roda de fogueiras, depois de fechados os portões.
Apenas com um pano preto a cingir-lhe os quadris, corpo besuntado de óleo e de terra vermelha, postava-se defronte de qualquer índio corpulento e com ele executava a dança do escudo, no meio de um círculo de soldados atentos. Na concentração rítmica e silenciosa desse duelo de subtileza e rapidez, batiam os pés incessantemente ao compasso do tambor, enquanto os corpos nus andavam de roda e se abaixavam e pulavam como panteras. E depois dechocarem os escudos, cada qual de lança erguida, afastavam-se de novo com um grito de alegria e desafio.
Conforme ia dançando, Cipriano sentia aumentar dentro de si a sua força. Quando tinha todos os seus membros reluzentes de suor e o espírito finalmente satisfeito, experimentava cansaço mas extraordinário poder. Envolvia-se, então na serape vermelha e preta e, entregando a lança e o escudo a outro oficial ou soldado para que combatesse, ia sentar-se no chão, junto da fogueira, e ali ficava a observar. Sabia que tinha o corpo cheio de energia e que o mistério sombrio da força passava para os seus soldados. Acolá permanecia silencioso, com os olhos de todos esses homens fitos no esplendor do seu ser imperturbável. A sua consciência parecia irradiar através da carne e dos ossos, para ir despertar a consciência dos outros. E como o instinto dos homens é proteger a própria cabeça, assim aqueles protegiam Cipriano, visto-o considerarem a parte mais preciosa de si mesmos. Na pessoa de Cipriano é que estava a sua supremacia.
- Não pertenço a mim mesmo - costumava ele dizer-lhes. Pertenço a Huitzilopochtli, e minha força vem de trás do Sol. - E vós sois meus, sois os meus soldados.
Incitava-os a dançar nus, apenas com a tanga preta, e a besuntarem-se de óleo e de terra vermelha.
- Este é o óleo das estrelas. Untai bem os membros e ficareis fortes como o céu constelado. Este é o sangue rubro dos vulcões. Esfregai-vos com ele, e tereis o poder do fogo do centro da terra.
A dança concentrada e silenciosa, que durava horas, dava-lhe ensejo a novos discursos:
- Se souberdes pisar a terra, dançando, calcai-a bem fundo, até lhe atingir as entranhas com os vossos pés. Assim alcançareis a segunda força. Arrancai-a da terra, arrancai-a de trás do Sol.
Realizava longas marchas através do campo e das montanhas, deslocando-se com facilidade e ligeireza. Gostava que os soldados acampassem ao ar livre, sem tendas, com uma sentinela para os guardar. Perseguia os bandidos, e, depois de os apanhar, despia-os e amarrava-os. Se o homem lhe parecia corajoso, fazia-o prestar juramento; se o achava cobarde e traiçoeiro, suprimia-o com uma punhalada no coração, declarando:
- Sou o rubro Huitzilopochtli!
Conseguira já uma pequena tropa que despojara do seu feio uniforme e vestira de branco, com faixa escarlate, cordões vermelhos nos tornozelos e belas serapes encarnadas e pretas sobre o ombro. Esses homens deviam apresentar-se sempre limpos. No decurso das marchas, paravam junto de um rio e todos tinham de tomar banho e lavar a sua roupa. Escuros e avermelhados, andavam nus por ali, enquanto a roupa secava ao sol. Em seguida continuavam a marcha, com o fato cintilando de alvura, espingarda a tiracolo, serape e mochila nas costas e, na cabeça, os chapeirões de palha ornados de vermelho.
- Têm de se mexer! - explicava Cipriano aos seus oficiais. - É necessário que eles aprendam a mover-se sem se fatigarem, que adquiram a antiga resistência. Não os quero indolentes. Durmam durante as horas de sono mas, depois de acordados, que trabalhem, marchem ou dancem.
Dividiu o regimento em pequenas companhias de cem homens, cada qual comandada por um centurião e um sargento.
- Aperfeiçoai a vossa centena de homens - repetia Cipriano - e eu aperfeiçoarei milhares e dezenas de milhares.
- Escutai! - dizia. - Não se trata de sacrificar tropas nos campos de batalha. Os meus soldados não são carne de canhão nem estrume de trincheiras. Desviemo-nos dos canhões e ataquemos onde eles não existem. Sejamos rápidos, silenciosos, e adquiramos
a segunda força; nada mais é preciso. Não pretendemos uma frente de batalha, mas atacar no momento oportuno em mil pontos diferentes.
E insistia:
- Se alcançardes a força da Terra e do Sol, se conseguirdes o poder de Huitzilopochtli, ninguém vos vencerá.
Ramon induzia Cipriano a proclamar-se abertamente o Huitzilopochtli vivo. ;
- É tempo de o general Viedma ser absorvido pelo Huitzilopochtli, não te parece? - Talvez, se eu compreendo o que isso quer dizer.
Estavam ambos sentados em esteiras no quarto de Ramon, à
hora do calor que sempre precedia a chuva.
- Põe-te de pé! - ordenou Ramon. Cipriano levantou-se imediatamente, com a sua habitual ligeireza de movimentos. O outro aproximou-se rápido e pondo-se atrás dele, descansou-lhe a mão nos olhos. Imóvel, na sombra quente, Cipriano foi perdendo a pouco e pouco a consciência, arrastado por estranhas ondas concêntricas para um ponto onde, de repente, caiu num abismo sem fundo, semelhante ao sono.
- Cipriano! - A voz de Ramon parecia vir de muito longe.
- Que é?
- Encontras-te na escuridão?
- Queé?
- As trevas são vivas.
- São vivas.
- Onde estás?
- Não sei. Só vejo negrume.
Ramon cingiu então os olhos e a cabeça de Cipriano com uma tira de pele. Em seguida, apoiou uma das mãos no peito nu do amigo e outra entre as omoplatas.
- Cipriano!
- Que é?
- A sombra envolve-te o coração?
- Envolve.
Ramon sentia as palpitações no peito de Cipriano, enquanto neste se desenrolavam ondas de escuridão, em círculos cada vez maiores, provocando uma espécie de sono mais profundo.
- Está escuro?
- Está.
- Quem vive nas trevas?
- Eu.
Prendeu Ramon os braços de Cipriano ao longo dos quadris, rodeando-lhe o tronco com um cinto de pele. Feito isso, apoiou a mão no umbigo do homem e outra nos rins, fazendo pressão lenta mas poderosa.
- Cipriano!
- Que é?
A pergunta e a resposta pareciam soar muito ao longe, cada vez mais longe.
- A sombra desce?
- Não, meu senhor.
Ramon ajoelhou e, abraçando Cipriano pela cintura, encostou a cabeça na ilharga do companheiro. E este começou a ter a sensação de que o cérebro se diluía nas trevas, tal uma pérola em vinagre.
Outra vaga de sono o acometeu. Ele já não era mais do que um homem sem cérebro, correndo como vento sinistro na superfície de águas negras.
- Está perfeito?
- Está.
- Quem vive nas trevas? !
- Quem... Cipriano já não soube responder. Então Ramon apoiou a cabeça na anca do homem e, rodeando-o
com os braços, cobriu com as mãos as partes secretas daquele corpo.
- Cipriano!
- Que é?
- A escuridão é completa? Cipriano, porém, estava incapaz de responder. O último círculo
ia rodopiando à sua volta, mergulhava na água o vento que corria à superfície. Já nada existia de exprimível. Ramon ficou ajoelhado um momento, imóvel, com a cabeça, os braços e as mãos sobre o corpo do outro. Em seguida, passou-lhe uma tira de roda das ancas, segurando assim os punhos.
Cipriano mantinha-se direito, rígido. Também os seus joelhos foram envolvidos pelas mãos de Ramon, que depois os amarrou. Então este agarrou-lhe nos tornozelos, como se fosse o tronco dum arbusto que emergisse da terra, e, agachando-se, descansou a cabeça nos pés de Cipriano.
Decorridos momentos, ligou os artelhos do amigo e, com movimentos de sonâmbulo, pegou nele e deitou-o sobre uma pele de leão que se encontrava estendida no soalho. Cobriu-o com a serape vermelha de Huitzilopochtli e, por seu turno, estirou-se no chão, com os pés de Cipriano sobre o abdómen.
Os dois homens ficaram em inconsciência total, Cipriano no seio da criação imperturbada, Ramon num sono de morte.
Quanto tempo estiveram assim nunca o souberam. Ramon acordou de repente com um sobressalto dos pés de Cipriano. Sentou-se e ergueu a serape que lhe escondia a cara.
- Já é noite? - perguntou Cipriano.
- Quase.
Conservaram-se calados, enquanto Ramon desfazia as ligaduras, começando pela dos pés. Antes de tirar a venda dos olhos de Cipriano, foi fechar a janela, de modo a que o aposento ficasse na penumbra.
Liberto de tudo, Cipriano sentou-se, e, de súbito, tapou os olhos.
- Torna o quarto mais escuro! - pediu.
Ramon cerrou os postigos hermeticamente e, no meio de trevas, voltou a sentar-se na esteira junto de Cipriano, que tornara a adormecer. Passados instantes deixou-o sozinho.
Só o viu ao romper da manhã, quando ia banhar-se ao lago. Nadaram juntos, enquanto o sol despontava. A chuva arrefecera a água. Regressaram a casa e untaram-se com óleo.
Cipriano fitou Ramon com as suas pupilas negras que pareciam olhá-lo de grande distância.
- Fui longe - disse ele.
- Até onde não existe nada para além?
- Sim, até aí.
Passados momentos, Cipriano tornava a adormecer, embrulhado na sua manta.
Só acordou à tarde. Depois de almoçar, meteu-se num barco de remos e dirigiu-se a casa de Kate. Esta ficou espantada ao vê-lo chegar de fato branco e serape encarnada.
- vou proclamar-me o Huitzilopochtli vivo - declarou ele.
- Sim? E quando? - Kate quase tinha medo dos olhos inumanos daquele homem.
- Na próxima quinta-feira. A quinta-feira será o dia de Huitzilopochtli. Não queres sentar-te ao meu lado e ser minha esposa quando eu for deus?
- Mas tens a impressão de ser um deus? - perguntou Kate incrédula.
Cipriano lançou-lhe um olhar estranho.
- Fui lá e voltei, mas pertenço ao reino onde estive.
- Onde estiveste?
- No lugar em que não há além, em que as trevas se afundam na água, em que estar a dormir ou acordado equivale à mesma coisa.
- Nunca compreendi questões místicas. Causam-me certa aflição.
- É uma questão mística quando me aproximo de ti e te possuo?
- Claro que não. É física.
- Pois o mesmo se dá com o outro caso, embora ultrapasse esses limites. Não queres ser a esposa de Huitzilopochtli? - inquiriu ele novamente.
- Não tão cedo.
- Não tão cedo! - repetiu Cipriano. Houve uma pausa.
- Queres voltar comigo para Jamiltepec? - perguntou ele.
- Agora não.
- Porquê?
- Não sei... Tratas-me sempre como se eu não possuísse vida própria, mas possuo! - replicou Kate.
- Possuis? Quem ta deu? Onde a arranjaste?
- Não sei, mas tenho-a e quero vivê-la. Não posso deixar-me tragar.
- Porquê, Malintzi? - volveu Cipriano, tratando-a pela primeira vez por este nome singular, - Porque não podes?
- Porque não.
- Eu sou o Huitzilopochtli vivo e deixo-me tragar. Julgava que o mesmo sucederia contigo, Malintzi.
- Não, não inteiramente.
- Não, inteiramente, agora não, não tão cedo... Quantas vezes já disseste "não"! vou ter com Ramon.
- Pois vai. Só te importas com ele, com o vosso Quetzalcoatl vivo e Huitzilopochtli vivo! Eu sou apenas uma mulher.
- Não, Malintzi, és mais do que isso. És Malintzi.
- Não sou Malintzi nenhuma. Sou simplesmente Kate, uma mulher como as outras, e não acredito nessas histórias.
- Pois eu sou mais do que homem, Malintzi. Não vês?
- Não! Não vejo - respondeu Kate. - Porque havias de ser mais do que homem?
- Porque sou o Huitzilopochtli vivo. Então já não to disse...? Hoje a tua boca está cheia de pó, Malintzi.
Cipriano foi-se embora, deixando-a fremente de cólera, integrada na sua antiga personalidade e hostil àquele novo ambiente. E Kate teve saudades de Londres, de Paris, de Nova Iorque, e de gente civilizada.
"Oh! - disse consigo. - Quem me dera sair daqui e conviver com pessoas simples e humanas! Odeio o próprio nome de Quetzalcoatl e de Huitzilopochtli. Tanto Ramon como Cipriano são entes horrorosos. E querem-me associar ao seu bando, e obrigar-me a chamar Malintzi! Sou Kate Forrester. Nem Kate Leslie, nem Kate Tylor. Estou farta de nomes impostos pelos homens. Nasci Kate Forrester e Kate Forrester morrerei. Quero voltar para o meu país. Que nojo, ser chamada Malintzi!
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