Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SERPENTE EMPLUMADA
A SERPENTE EMPLUMADA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 

 

XIX
Dum momento para outro desapareceram da aldeia quase todos os soldados: havia rebelião em Colima. Tinham feito parar um comboio e matado os viajantes. Os generais Fulano e Sicrano declararam-se contra o Governo.
Sentia-se a agitação no ar, e toda a gente gozava esses arrepios de medo periódicos. À parte os arrepios, continuava tudo na mesma. A igreja permanecia fechada e muda. O relógio não funcionava. O tempo parecia abolido, os dias deslizavam sem o cômputo das horas, à velha moda doutras eras: dias sem medida, estranhos, singulares, do antigo mundo pagão.
Kate experimentava a sensação de uma sereia que tentasse nadar fora do seu elemento. Era arrastada por uma corrente surda que a levava para o silêncio antidiluviano onde as coisas se movem sem contacto. Como uma pessoa que prestes a afogar-se não vê senão as águas, assim Kate nada via além daquele mar sem fim.
Por isso se agarrava a tudo o que podia. Achando já intolerável a sua situação, chamou um velho carro Ford para que a levasse aos solavancos, porestradas abomináveis, até à fazenda de Jamiltepec.
Toda a região tinha esse aspecto abandonado que sempre mostra quando principiam as rebeliões. Dir-se-ia que lhe haviam aspirado o sopro da vida e que só restava o vácuo absoluto nesse país hostil.
Embora Jamiltepec não ficasse longe, uma vez fora da aldeia o motorista e o seu ajudante sentiram-se dominados pelo medo.
Há qualquer coisa de verdadeiramente misterioso no pavor dos Mexicanos. Assemelham-se a répteis de rabo cortado, contorcendo-se no chão sem se poderem levantar. Kate teve de impor a sua vontade contra essa estúpida fraqueza.
Chegaram, porém, sem dificuldade a Jamiltepec. O sítio apresentava-se calmo, normal. No pátio via-se um carro de bois vazio. Não estavam sentinelas, que tinham ido combater os rebeldes, mas andavam cá e lá alguns peóns com ar despreocupado. Era dia de fiesta, não havia muito trabalho a fazer. Nas casas dos peóns, as mulheres amassavam tortillas e preparavam molho de pimentão e tomate. Uma fiesta! Só o moinho de vento, que puxava a água do lago, girava rápido mas sem grande barulho.
Kate penetrou no pátio silencioso e logo dois mozos munidos de espingarda e cartucheira vieram falar em voz baixa com o motorista.
- Dona Carlota está? - indagou ela.
- No, señora. patrona não está aqui.
- E Don Ramon?
- Si señora, está.
Quando ela hesitava, um tanto nervosa, Ramon assomou à porta no seu ofuscante traje branco.
- Vim visitar-vos - disse Kate. - Se a minha presença o arrelia, posso voltar no mesmo carro.
- Pelo contrário, alegra-me que tenha aparecido aqui. Sentia-me desamparado, não sei porquê. Vamos até lá acima?
- Patrón! - disse o motorista em voz baixa. - Devo ficar? Ramon dirigiu-lhe algumas palavras. O homem pretendia que
tinha de estar em Sayula a determinada hora. Desculpas, é claro. Era evidente que ele se queria ir embora.
- É melhor deixá-lo ir - aconselhou Ramon, voltando-se para Kate. - Importa-se regressar de barco?
- Não quero incomodá-lo...
- Não incomoda nada. O homem que se vá embora e a senhora irá de barco quando lhe apetecer. Assim estaremos mais livres.
Kate pagou ao motorista, e o Ford, com um barulho de lata, deu a volta ao pátio e desapareceu tão depressa quanto possível através do zaguán.
Ramon deu qualquer ordem aos mozos que, obedientemente, se encaminharam para o portão.
- Porque tem aqui homens armados? - perguntou Kate.
- Receiam os bandidos. Sempre que há uma rebelião toda a gente teme os bandidos, e basta esse terror para que eles surjam.
- Mas donde vêm? - inquiriu Kate, entrando no pátio interior.
- Das aldeias - respondeu Ramon, fechando a pesada porta e trancando-a com as barras de ferro, que iam de lado a lado.
O pátio estava transformado numa espécie de prisão, pois se encontravam também fechados os portões do outro extremo. Através do gradeamento, Kate via o tanque onde floriam nenúfares. Mais além, o lago parecia quase espectral ao clarão do sol.
Depois de haver despachado uma criada para as dependências da cozinha, Ramon subiu a escada de pedra que conduzia ao terraço. Oh! Como a hacienda tinha um ar de coisa morta, esquecida, abandonada! Os próprios muros de pedra infundiam solidão.
- Mas de que aldeias vêm os bandidos? - insistiu Kate.
- De muitas e sobretudo de San Pablo e de Ahuajijic.
- Tão perto daqui!
- Até em Sayula existem - acrescentou Ramon. - Qualquer desses homens de chapéu grande que a senhora vê na plaza pode transformar-se em salteador quando o banditismo impera, e não é punido com muita severidade.
- Até custa a crer!
- Mas é verdade - retorquiu ele, sentando-se numa cadeira de baloiço, em frente de Kate, e sorrindo-lhe por cima da mesa de ónix.
Bateu palmas e apareceu o mozo Martin. Ramon deu-lhe uma ordem em voz baixa, a que o homem respondeu num murmúrio. Então, depois de curvar a cabeça num gesto de entendimento, o criado afastou-se, arrastando as huaraches no pavimento do terraço.
Ramon assumira o tom de voz sufocado peculiar naquela região, onde todos parecem ter medo de falar alto. Não era costume dele, e Kate, reparando nisso, sentiu certo desagrado.
Através das mangueiras espessas, cujos frutos mudavam de cor como um bolo que a pouco e pouco aloira no forno, a irlandesa contemplava o lago amarelado e crespo. Na outra banda, as montanhas apresentavam-se escuras, e sobre elas pesava uma nuvem tenebrosa, da qual rompeu bruscamente um relâmpago.
- Que fim levou Don Cipriano? - perguntou Kate.
- Don Cipriano está agora muito "general Viedma". Persegue os rebeldes no estado de Colima.
- São difíceis de capturar?
- Julgo que não. Mas Cipriano aprecia essa caça. É zapoteca, como a maioria dos seus soldados, e gosta de perseguir os que não são montanheses.
- Admirei-me de ele não estar presente quando levaram as imagens - disse Kate. - Muita coragem teve, Don Ramon, para agir daquele modo!
- Acha? Pois olhe que é menos difícil destruir seja o que for do que pôr a bater um pulso novo.
- Em todo o caso, é necessário destruir primeiro.
- Sim, é claro, mas de nada serve fazê-lo enquanto não se sente agitar-se outra coisa dentro de nós.
- E sente-o?
- Decerto! E a senhora?
- Talvez... - respondeu Kate, hesitante.
- Pois eu sinto algo de novo dentro de mim - tornou Ramon, sorrindo perante a hesitação dela. - Porque não se junta a nós? acrescentou.
- Como? Casando com Don Cipriano?
- Não é indispensável casar... seja com quem for.
- Que tenciona fazer agora? - indagou Kate.
- Eu? Reabrir a igreja e lá instalar Quetzalcoatl. Mas não quero deuses solitários. Tem de haver vários, para estarem acompanhados e satisfeitos.
- São necessários os deuses?
- Certamente. Precisamos de manifestações. Kate guardou um silêncio constrangido.
- E também são necessárias as deusas. Eis outro dilema - declarou ele.
- Quanto eu detestaria ser uma deusa destas criaturas.
- Destes macacos? - ajuntou Ramon, sorrindo.
- Sim...
Neste momento ele endireitou-se na cadeira, de ouvido à escuta. Soara um tiro. Kate ouvira-o também mas não lhe prestara atenção: tanto podia ser um estampido de motor de automóvel como de um gasolina.
Mas seguiu-se uma série de detonações.
Ramon pôs-se de pé rapidamente, como um gato, e foi fechar a porta de ferro da escada, na qual atravessou trancas pesadas.
- Não prefere ir para dentro daquele quarto? - perguntou o dono da casa, apontando a Kate um vão escuro. - Ali estaria bem. Só durante uns minutos, até eu voltar.
Quando acabava de proferir estas palavras, ouviu-se burburinho no pátio de trás e uma voz de homem, aflito, gritar: Patrón!
De cólera, dilataram-se as pupilas de Ramon. O rosto tornou-se-lhe pálido, esquisito. Olhava para a sua hóspeda sem a ver, com uma chama torva diante da vista; da algibeira das calças tirou um revólver de aço, de cano comprido.
Sempre sem a ver, passou apressado diante dela, seguiu em passos felinos pela varanda além, e saltou para a escada a fim de alcançar o terraço que cobria o edifício. Em todos os seus membros fremia a eterna paixão do ódio.
Kate manteve-se no limiar da porta, estarrecida. Dir-se-ia haver-se eclipsado, aos seus olhos, a luz do dia.
- Olá! Que querem? - disse a voz de Ramon vinda lá de cima, tão irada que, ouvida de longe, se assemelhava quase a um riso.
Como resposta, elevou-se um ruído confuso do pátio. Seguiram-se vários tiros. Depois um assobio forte, que rasgou o ar e a sobressaltou ainda mais. Cheia de terror, esperou. Viu então rebentar alto, sobre o lago, um foguete que se dissolveu numa chuva de lágrimas vermelhas. Um sinal de Ramon!
Incapaz de reentrar no quarto escuro, Kate ali ficou, como ferida de morte. Então, num ímpeto irreprimível, correu até à escada e subiu ao terraço superior. Pouco se importava morrer, contanto que morresse ao pé daquele homem. Não sozinha.
O terraço era de níveis diferentes. Kate avançou em pleno sol para o guarda-peito e já quase abrangia com a vista a porta do pátio quando qualquer coisa bateu no muro e lhe fez saltar fragmentos de estuque para a cara e cabelos.
Deu meia volta e voou como uma abelha para a escada. Esta desembocava num canto onde se erguia uma espécie de torreão, com bancos de pedra. Kate deixou-se cair num desses assentos, olhando com terror para o cotovelo da escada, estreita e ladeada de muros.
Estava quase paralisada de medo e comoção e, contudo, no fundo de si mesma havia calma. Inclinando-se e olhando para o terraço cintilante de sol, não podia crer na morte.
Lobrigou o vulto branco de Ramon no torreão do outro extremo. Este era aberto e pouco mais alto do que ele. Imóvel a um canto, Ramon olhava de lado para uma das seteiras. Por ali desfechou o revólver. Houve um grito abafado lá em baixo e uma descarga de tiros como resposta.
Ramon afastou-se da seteira e despiu o casaco branco para que este o não traísse. Na cintura tinha uma cartucheira. Contrastando com a brancura das calças, o torso parecia negro na sombra do torreão. De novo se aproximou da estreita abertura. Ergueu o revólver com precaução e desfechou um, dois, três tiros, lentamente, deliberadamente, sobressaltando Kate de cada vez. E outra descarga, vinda de baixo, fez voar pedaços de pedra e de estuque. Depois, o silêncio, longo silêncio. Kate, sentada, crispava as mãos sobre o peito.
As nuvens tinham desaparecido, o sol resplandecia. Na luz mais crua, as montanhas, ao longe, mostravam um velo fúmeo e aveludado.
Tudo era silêncio. Na sombra, Ramon não se movia, encostado à parede e olhando para baixo. Kate calculou que ele, daquele ponto, dominasse os portões do pátio.
Bruscamente, porém, mudou de táctica. com o revólver na mão, abaixou-se e correu como um gato bravo. O sol brilhava-lhe nas costas nuas, enquanto ele atravessava o terraço para alcançar o torreão fronteiro.
Este ficava mais próximo do de Kate que, sentada no banco de pedra ao alto da escada, olhava estática, como a imagem da eternidade. Ramon encostou-se à parede, elevou o revólver diante da seteira e descarregou-o três, quatro, cinco vezes. Em baixo, ouviu-se uma voz gritar "Ai, ai, ai!" como um animal ferido. Outra voz soou, dando ordens. Ramon pôs um joelho em terra e tornou a carregar a arma. Então riscou um fósforo e outra vez Kate quase pulou de medo quando um foguete subiu furiosamente no céu, explodiu como um tiro de canhão e tombou em bolas vermelhas que flutuaram no ar como se retardando o momento da sua morte.
Kate suspirou, pensando o que significaria tudo aquilo. A morte rondava, bem o sabia, mas uma morte estranha, fútil por assim dizer. Só aquele barulho dos tiros! E apesar do seu desejo, nada podia ver do que se passava no pátio.
Ramon continuava no seu posto, unido à parede, olhando para baixo, de cabeça inclinada, sem fazer um movimento. Ouviam-se detonações e o silvo de balas, e ele sempre sem se mexer. Kate não conseguia distinguir o rosto; apenas parte do dorso, os ombros maciços e dourados, a cabeça escura levemente pendida, a cartucheira tombando-lhe sobre os rins, por cima do linho branco das calças. Calado, numa concentração vigilante, quase a personificação do silêncio. Então, com diabólica rapidez de movimentos, mudou de posição e visou.
Dir-se-ia ignorar a presença de Kate, e até a sua existência. E assim era preferível, sem dúvida. Ela continuava sentada, esperando. Esperando, esperando, sob aquele sol de eternidade, e, no fundo de si mesma, qualquer coisa em suspenso. Alguém viria da aldeia. Aquilo havia de terminar. Devia ter um fim.
Entretanto, sobressaltava-se de cada vez que ele fazia fogo, e observava-o. Parecia-lhe ainda ouvi-lo dizer: "Precisamos de manifestações." Ah! como ela detestava o barulho dos tiros!
De súbito, soltou um grito lancinante e, de um salto, saiu do seu refúgio: acabava de ver uma cabeça escura emergindo do cotovelo da escada.
Antes que ela soubesse o que era, Ramon passou à sua frente veloz como um gato e os dois homens embateram um no outro no momento em que o desconhecido surgia da escada. Rolaram ambos por terra, ouviu-se um tiro. Debatiam-se braços e pernas.
O revólver de Ramon caíra ao chão, mas de novo partiu um tiro dos dois homens enrodilhados. Sem se perceber donde manava, apareceu uma vermelhidão de sangue que tingiu o fato branco enquanto os homens lutavam no chão.
Eram ambos corpolentos e naquela ocasião pareciam enormes. Ramon agarrava o punho do bandido, imobilizando a mão que segurava a arma. E este, com um tom lívido na face escura e olhos arregalados, apertava entre os dentes brancos o braço nu de Ramon e mostrava as gengivas vermelhas, ao mesmo tempo que, com a mão livre, procurava a sua faca.
Kate custava-lhe a crer que fosse dum ente racional aquele rosto lívido e aquela boca arreganhada. com o braço, Ramon apertava a cintura do homem, que largou o revólvere e em seguida se pôs a tactear o cimento em busca da arma de Ramon. Corria-lhe sangue das gengivas. No entanto, parecia possuído duma cega subconsciência, como se fosse um demónio e não um ser humano.
A mão dele estava quase a alcançar o revólver de Ramon. Horrorizada, Kate correu, levantou do cimento escaldante e fugiu. Quando o bandido fez um esforço violento sob o corpo de Ramon, ela ergueu o revólver. Odiava aquele demónio como nunca odiara na sua vida. Contudo, não se atreveu a desfechar.
Ramon gritou-lhe qualquer coisa, olhando-a de relance. Ela estava incapaz de compreender, mas correu para o outro lado a fim de poder disparar sobre o homem sem ferir Ramon. Entretanto, com uma tremenda contorção de corpo, o bandido soergueu o adversário e puxou da faca que tinha no cinto.
Kate soltou um grito. Oh, quanto gostaria de fazer fogo! Viu a lâmina cravar-se de esguelha nas costas de Ramon. No mesmo instante, ouviu barulho na escada: outro homem pulava do torreão para o terraço. Kate entesou o pulso e disparou sem olhar, num súbito momento de lucidez. A cabeça escura veio sobre ela, que recuou horrorizada e premiu novamente o gatilho. Falhou o alvo, mas viu sangue entre os cabelos negros daquela cabeça. O homem tombou no chão, soergueu os quadris num movimento convulsivo e no rosto estampou-se-lhe o ricto da morte.
Desviando o olhar desse horror para enfrentar outro horror, Kate viu Ramon, lívido, com o sangue a escorrer-lhe nas costas e no braço, segurando o bandido pelos cabelos e dando-lhe punhaladas na garganta. O sangue esguichava como um repuxo vermelho. Ouviu-se um som estranho, semelhante ao dum sifão de água gasosada, e, numa derradeira convulsão, o homem lançou Ramon por terra, que ali ficou contorcido, a olhar fixamente para aquele rosto crispado em que a ferocidade parecia gravada.
Então, ainda agarrado ao cabelo da sua vítima, ergueu os olhos com ar cauteloso. O outro homem, o de Kate, levantava-se lentamente, sobre os joelhos. Apresentava a fisionomia mais espantosa que se poderia imaginar; crânio alto e bicudo, donde deslizavam fios de sangue para a testa estreita, franzida, e ao longo das sobrancelhas pretas que encimavam os olhos torvos e petrificados numa expressão de ódio - último clarão da consciência humana.
Rosto fino, alongado, que seria belo sem aquele olhar mau e sem os compridos dentes brancos que apareciam sob o bigode ralo.
Ramon largou os cabelos do bandido, cuja cabeça tombou de lado, e soergueu-se, ficando agachado no chão. O outro, de joelhos, tinha já uma faca na mão enclavinhada. Ambos se quedaram, imóveis, enfrentando-se em silêncio.
Passou como que um brilho de manha nos olhos do homem, que se endireitou, pronto a levantar-se num pulo e a atacá-lo.
Quando ele ia arremessar-se, a faca de Ramon atravessou os ares como um pássaro vermelho. E com a lâmina voou o sangue que pingava da mão de Ramon, borrifando Kate que, de revólver em punho, presenciava a cena.
O homem tornou a cair de joelhos e ficou um momento como que em oração, com o cabo rubro da faca, espetada no abdómen.
sobressaindo-lhe na brancura das calças. Depois inclinou-se lentamente, e de novo voltou a cara para baixo.
Ramon continuava agachado, com as pupilas cintilando de atenta vigilância. Pôs-se então de pé, passou tranquilamente por cima das manchas de sangue no cimento e, apanhando a faca do bandido, enterrou-lha no pescoço. O homem nem estremeceu.
Virou-se Ramon para observar o outro assaltante: esse estava bem morto. Olhou em seguida para Kate, que, junto da escada, segurava ainda o revólver. A fronte dele parecia a dum adolescente, pura, primitiva, os olhos mostravam uma expressão de inocência. Uma beleza estranha, prístina, a beleza que decerto tinham os homens nos primeiros tempos da humanidade.
- Estão ambos mortos? - perguntou Kate, aterrada.
- Creo que si - respondeu ele em espanhol.
Depois dum último relance, apanhou o revólver caído no cimento e, ao fazer isso, notou que tinha a mão direita rubra de sangue que lhe escorria pelo braço. Limpou-a no casaco do cadáver. Mas as calças, sobre os rins, também estavam empapadas de sangue e colavam-se-lhe aos quadris, molhadas e vermelhas.
Do segundo homem partiam ainda rumores esquisitos, gorgolejantes, sons puramente físicos. O primeiro jazia de papo para o ar, com a cara tombada numa poça de sangue.
- Atenção à escada! - disse Ramon a Kate. Baixando-se, correu ao torreão e olhou furtivamente para fora.
Voltou em seguida, com as mesmas cautelas, e, depois de arrastar até à borda do terraço o cadáver mais próximo, ergueu-o de modo que a cabeça pendesse fora do rebordo. Nem o menor som se ouvia. Então Ramon levantou-se e espreitou para baixo. Nenhum rumor, nenhum sinal de vida.
Largou o cadáver, que se desmoronou, e, dirigindo-se para o lado de Kate, olhou para o fundo da escada.
- Atingiu de raspão o homem com a sua primeira bala; só o aturdiu, creio eu - disse ele.
- Haverá mais? - perguntou Kate, tremendo.
- Julgo que se foram todos embora.
Mostrava-se pálido, quase branco, com a sua fronte de adolescente, lisa, pura e serena.
- Está muito ferido?
- Eu? Não. - E com o dedo tacteou nas costas a ferida que continuava a sangrar.
A tarde avançava para o crepúsculo de ouro e de chumbo.
Ramon voltou-se para contemplar outra vez a face hedionda do primeiro morto.
- Conhece-o? - indagou a irlandesa. Ele abanou a cabeça.
- Não, que eu saiba. - E acrescentou. - Ainda bem que morreu! Ainda bem que os matámos a ambos.
- Ui! Não, é horrível - disse ela estremecendo.
- Ainda bem para mim que você estava aqui e que os liquidámos de sociedade! Ainda bem que morreram.
Doiradas as montanhas a pesada e sumptuosa luz crepuscular que se espalhava sob as nuvens. Ouviu-se uma buzina de automóvel.
Ramon encaminhou-se silencioso para o guarda-peito, com o sangue a encharcar-lhe mais e mais as calças, até que se colaram às coxas quando ele se debruçou. Uma luz amarela, de tons opulentos, banhava o terraço, donde se exalava o cheiro do sangue.
- Vem aí um carro - participou.
Kate seguiu, amedrontada, através do terraço.
Viu as colinas e as vertentes mergulhadas numa claridade oirescente. As choças dospeóns e as folhas lúridas das bananeiras recortavam-se fantasmagóricas. As árvores verde-doiradas erguiam-se firmes, com os seus ramos sombreados. Longe, na estrada, via-se uma nuvem de pó e o brilho dos vidros dum automóvel que descrevia a curva.
- Espere aqui - disse Ramon - enquanto eu vou lá abaixo.
- Porque é que os seus peóns não vieram socorrê-lo? - perguntou Kate.
- Nunca o fazem. A não ser que estejam armados de propósito para isso.
Partiu, tendo antes agarrado na camisa, que vestiu enquanto andava. No mesmo instante o sangue a atravessou. Desceu a escada, e Kate ficou a ouvir-lhe os passos. O pátio, em baixo, estava sombrio e deserto, não contando com dois cadáveres, ambos de vestes brancas, um perto do zaguán, outro encostado a uma coluna do alpendre.
O carro veio buzinando pela alameda e penetrou no zaguán. Abarrotava de soldados, uns dentro do veículo, outros de pé no estribo.
- Don Ramon! Don Ramon! - chamou o oficial, saltando do automóvel. - Don Ramon! - Batia com o punho na porta do pátio interior.
Porque é que Ramon não vinha abrir? Onde estava? Kate debruçou-se no peitoril e gritou, num guincho de ave silvestre:
- Viene! Viene Don Ramon! él viene!
Os soldados olharam todos para cima. Kate recuou e logo, tomada de pânico, correu para a escada e desceu ao terraço interior. Havia sangue nos últimos degraus, uma poça de sangue, e no terraço, perto das cadeiras de baloiço, jaziam dois homens noutra poça vermelha.
Um deles era Ramon! Kate ficou por um momento como se inconsciente, e depois avançou. Alagado no sangue das suas feridas, Ramon rodeava com o braço o corpo do outro homem que sangrava também. Este abriu os olhos, e, em voz rouca e sumida, proferiu:
- Patrón!
Era Martin, o mozo de Ramon. Enteiriçou-se e expirou entre os braços do amo, que, ao querer levantá-lo, fizera jorrar mais sangue dos seus próprios ferimentos e perdera os sentidos. Parecia morto, mas Kate sentiu-lhe um débil bater de pulso.
Como louca, correu pela escada abaixo e debateu-se contra as barras de ferro que mantinham as portas fechadas, gritando sem cessar:
- Depressa! Acudam a Don Ramon! Ele está a morrer! Acudam!
Do lado da cozinha apareceu uma mulher e um garoto com ar apavorado, e abriu-se a porta precisamente na ocasião em que seis cavaleiros entraram a galope no pátio. O oficial saltou do cavalo e subiu a escada a correr, de revólver em punho e esporas cintilantes. Quando Kate subiu por sua vez, encontrou aquele a contemplar, imóvel, o corpo de Ramon.
- Está morto? - perguntou, estupefacto, olhando para Kate.
- Não, apenas desmaiado.
Os oficiais levantaram Ramon e estenderam-no no terraço. Então, rapidamente, despiram-lhe a camisa. Da ferida das costas corria um sangue espesso.
- Temos de estancar o sangue - disse o tenente. - Onde está Pablo?
Logo soaram gritos, chamando pelo Pablo.
Kate entrou num quarto de dormir em busca de água, e arrancou da cama um lençol de linho. Pablo era médico militar. Kate entregou-lhe a bacia de água e a toalha, e rasgou o lençol em tiras.
Ramon jazia por terra, nu e ensanguentado. Odia declinava.
- Preciso de luz! - declarou o médico, rapaz bastante novo. com mãos habilidosas, lavou os ferimentos e examinou-os de perto.
- Não é grave - disse por fim.
Kate, que já preparara ligaduras e compressas, agachou-se para as passar ao médico. A criada pousou no chão um candeeiro de quebra-luz branco, ao lado do doutor. Este levantou-o para observar outra vez a ferida.
- Não, não é grave - repetiu.
Então ergueu a vista para os soldados imóveis que contemplavam a cena com as faces trigueiras iluminadas pela chama do candeeiro.
- Tu! - disse ele, com um gesto.
Logo o tenente pegou na luz e a segurou acima do corpo inerte. com o auxílio de Kate, o médico tratou de estancar o sangue e ligar a ferida, e Kate, enquanto tocava na pele macia de Ramon, dizia consigo mesma: "Imaginar que é ele, este corpo silencioso! E que era ele quem esfaqueava a garganta do bandido! E que eram seus aqueles olhos longínquos e sua aquela expressão de inocência primitiva! O homem que me conhece, onde está? É um destes muitos homens, nada mais! Oh, Deus! Devolvei-lhe a alma, reenviai-a para este corpo sangrento! Que a sua alma volte, senão o mundo enregelar-me-á e a muitos outros!"
O médico acabou de fazer o penso de emergência, examinou a ferida do braço e lavou rapidamente o sangue que maculava a cintura, as nádegas e as pernas.
- Temos de o deitar na cama - disse. - Levante-lhe a cabeça.
Kate ergueu imediatamente a cabeça pesada e frouxa. Os olhos estavam entreabertos. O médico quis separar os lábios unidos, sob o fino bigodinho preto. Mas os dentes estavam firmemente cerrados.
Abanou a cabeça.
- Traga um colchão - ordenou.
De repente o vento começou a rugir, a chama do candeeiro pulou com um longo jacto fumarento, dentro da chaminé de vidro. Voaram folhas no terraço, ergueram-se nuvens de pó e um relâmpago fulgurou do céu. O corpo de Ramon jazia nu, imóvel, sob a luz palpitante e débil. A ligadura já estava manchada de sangue.
E outra vez Kate compreendeu a que ponto o corpo é a chama da alma, subindo e descendo consoante a mecha invisível do espírito se purifica ou se carboniza. E agora a alma, como um pavio, parecia gasta e o corpo era uma chama a extinguir-se.
"Reanimai a sua alma, ó Deus!" implorava Kate.
Tudo o que via desse corpo desnudo era a terrível ausência do espírito. E tudo o que ela queria era que o espírito voltasse e os olhos se reabrissem.
Instalaram o ferido numa cama, e fecharam as portas contra o vento e a chuva. O médico friccionou-lhe a testa e as mãos com conhaque e Ramon abriu enfim os olhos. A alma regressara mas ainda não se manifestava.
Por momentos Ramon esteve de olhos abertos sem ver nem se mexer. Depois fez um leve movimento.
- Que aconteceu? - perguntou.
- Esteja sossegado, Don Ramon - aconselhou o médico, que tinha mãos morenas e finas mais delicadas do que as duma mulher.
- Perdeu muito sangue. Conserve-se quieto.
- Que é de Martin?
- Está lá fora.
- Como se encontra?
- Morreu.
Os olhos não pestanejaram. A voz continuou:
- Foi pena não os matarmos todos. Temos de os liquidar. Onde está a señora inglesa?
- Aqui mesmo.
Olhou para Kate e pareceu retomar maior consciência.
- Obrigado por me salvar a vida - disse-lhe. cerrando as pálpebras. E acrescentou: - Afaste o candeeiro.
Os soldados chamavam o tenente, batendo na vidraça. Entrou um homenzinho escuro, enxugando a cara molhada da chuva e alisando os cabelos espessos.
- Há mais dois mortos no eirado - anunciou o oficial.
O tenente levantou-se e saiu atrás do homem. Kate seguiu-os até ao terraço. Na obscuridade do anoitecer a chuva caía a potes. De cima vinha descendo uma lanterna: atravessou o terraço e chegou à escada. Alumiava dois soldados que, debaixo de água, transportavam um cadáver e, na peugada destes, desciam outros dois trazendo mais um morto. As huaraches dos militares chapinhavam no pavimento molhado. O lúgubre cortejo desceu os degraus.
Kate ficou onde estava, ao escuro, enquanto a chuva continuava a cair. Sentia-se pouco à vontade naquela casa cheia de homens. Foi à cozinha, onde um garoto abanava o fogareiro e a criada esmagava tomates para fazer um molho.
- Ay, señora! - clamou ela. - Cinco homens mortos e o patrón ferido mortalmente. Ay! Ay!
- Sete mortos - corrigiu o pequeno. - Há dois na azotea.
- Sete homens, sete!
Kate sentou-se numa cadeira, aturdida, incapaz de escutar outra coisa além da chuva. Incapaz de sentir fosse o que fosse. Entraram dois ou três peóns, embrulhados até ao nariz nos seus mantos. E ainda duas mulheres. Estas traziam masu e começaram a fazer tortillas. Conversavam todos em voz baixa e rápida no dialecto do país. que Kate não podia seguir.
Por fim a chuva diminuiu, e adivinhava-se que não tardaria a acabar. Soava um barulho de água. que corria, jorrava, saltava e caía na cisterna. E Kate dizia consigo: "A chuva vai lavar o sangue do terraço e levá-lo para os canos. Haverá sangue na água."
Olhou para o vestido manchado. Tinha frio. Levantou-se para subir outra vez aos quartos daquela casa escura, vazia e sem dono.
- Ah. señora! Vai para cima? Anda. Daniel, pega na lanterna e alumia a señora.
O rapaz acendeu a vela da lanterna e Kate dirigiu-se ao terraço. No aposento onde estava Ramon brilhava uma luz. Kate foi à sala buscar o chapéu e o xaile castanho. Ouvindo-a, o tenente acorreu, amável e respeitoso.
- Não quer entrar? - perguntou, conservando aberta a porta do quarto em que Ramon jazia na cama: o quarto de hóspedes.
Ela entrou. Ramon descansava de lado, com o bigode apertado contra a almofada. Era ele outra vez.
- Isto é um ambiente muito desagradável para si, señora Caterina - disse ele. - Quer regressar à sua casa? O tenente levá-la-á de automóvel.
- Não há nada que eu possa fazer aqui?
- Ah, não! Não fique! É muito penoso para si. Em breve estarei apto a levantar-me e a ir pessoalmente agradecer tudo o que fez por mim.
Fixava-a no fundo dos olhos. E ela percebeu que a alma lhe voltara, que ele a via e dava fé da sua presença, embora sempre daquela forma longínqua que lhe era peculiar.
Kate desceu com o moço tenente.
- Que caso horrível este! Não eram ladrões, señora! - declarou ele, com vivacidade. - Não vieram para roubar, mas sim para assassinar Don Ramon. Simplesmente para o assassinar. E sem a sua presença, señora, tê-lo-iam conseguido. Ah, imagine! Don Ramon é o homem de maior valor do México. Não há ninguém como ele no mundo inteiro. Pessoalmente não tem inimigos. Não, señora, nenhum! Sabe de quem partiu isto? Dos clérigos e dos Cavaleiros de Cortez.
- Tem a certeza? - perguntou Kate.
- Absoluta - bradou o tenente, cheio de indignação. - Ora veja: sete mortos. Dois foram os mozos que estavam de guarda à porta. Outro foi o próprio criado de Don Ramon. o seu fiel Martin. Jamais Don Ramon perdoará essa morte. Além disso, outros dois na azotea, e mais dois no pátio, liquidados por Don Ramon. E também um homem ferido por Martin, que caiu e quebrou uma perna, e por essa razão ficou em nosso poder. Venha vê-los, señora.
Desceram ao pátio alagado. Debaixo dos alpendres haviam acendido fogueiras, de roda das quais se estendiam soldados epeóns enrolados nas suas mantas. No lado do pátio os cavalos batiam com as patas no chão e sacudiam os arreios. Chegava um garoto com tortillas num guardanapo. Os homenzinhos de rosto moreno, agachados como animais, polvilharam-nas de sal e devoraram-nas com os seus dentes brancos e fortes.
Kate viu os bois enormes deitados no telheiro, as carroças enfileiradas e, num canto, alguns burros a comerem luzerna.
O oficial marchava ao lado da irlandesa, com as esporas a cintilarem ao clarão das fogueiras. Dirigiu-se ao automóvel enlameado que estava no meio do pátio e depois aproximou-se do seu cavalo. Dum coldre da sela tirou então uma lâmpada eléctrica, e em seguida conduziu Kate ao alpendre do fundo.
Ali, dardejou a luz sobre os sete cadáveres, estendidos lado a lado. Os dois que tinham trazido do terraço estavam encharcados. Lá se encontrava a vítima de Ramon, com o largo peito descoberto e a cara escura e diabólica pendida para uma banda; era homem forte, espadaúdo. A outra, a de Kate, jazia estirada e rígida. Martin, atingido com uma punhalada sob a clavícula, parecia olhar espantado para o tecto do barracão. Havia ainda dois peóns e dois homens de botas pretas, calças cinzentas e casaco azul. Todos inertes, mortos e um tanto ridículos. Talvez sejam os fatos que tornam os defuntos grotescos, e a ideia sempre presente de que esses corpos estão vazios de alma.
- Repare! - disse o tenente, tocando com a biqueira da bota num dos cadáveres. - Este é um motorista de Sayula. Aquele é um barqueiro também de Sayula. Esses dois são peóns de San Pablo. Este aqui... - o oficial bateu com o pé num corpo - este não conhecemos. - Era a vítima de Ramon. - Aquele lá adiante
- continuou o tenente apontando para o homem de crânio bicudo que Kate alvejara - é de Ahuajijic. é casado com uma mulher que vive agora com um dos peóns deste sítio. Está a ver, señora? O motorista e o barqueiro eram agentes dos Cavaleiros de Cortez. e os dois peóns de San Pablo eram todos clericais. Não vinham para roubar mas para assassinar, o que não impede que despojassem a casa depois de matar Don Ramon.
Kate contemplou os defuntos. Três deles tinham certa beleza, em especial o barqueiro, com o seu rosto fino enquadrado de barba preta. Mas estavam mortos, com a ironia da morte estampada na face. Mortos, vazios. E talvez enquanto vivos já houvesse uma espécie de vacuidade nesses corpos magníficos.
De repente, Kate desejou estar junto de homens que não fossem tão belos como aqueles indígenas. A sua própria beleza pareceu-lhe de súbito repulsiva; beleza sombria de seres incompletos, meio evoluídos, com qualquer coisa de répteis. E aquilo arrepiou-a.
A alma! Se ao menos a alma no homem, na mulher, lhe falasse: se não fosse sempre aquele materialismo estranho e perverso de animais contorcidos! Se tivessem alma, e os corpos fossem gestos da alma! Se pudéssemos esquecer os corpos e as acções para ficar só em presença de espíritos fortes!
Atravessou o pátio coberto de excrementos de cavalo e dirigiu-se para o automóvel. O tenente designava os soldados que deviam ficar. Os cavaleiros ficariam.
Umpeón, montado num cavalo ruço, chegou a trote ao zaguán. Fora a Sayula buscar medicamentos e levar um recado ao jefe.
Por fim o carro, com soldados no estribo, saiu lentamente do pátio. O tenente sentara-se ao lado de Kate. e parou o veículo mais uma vez defronte da granja, sob as árvores, para dizer qualquer coisa a dois soldados que estavam de plantão.
Sempre devagar continuou a marcha debaixo das árvores molhadas, na lama que esparrinhava das rodas, até à estrada nacional onde havia cabanas de peóns. Diante dalgumas delas viam-se mulheres frigindo tortillas ao calor de fogueiras. Uma das mulheres dirigia-se para casa empunhando um tição a fim de acender o seu lume. Vários jornaleiros, de fato branco enxovalhado, acocoravam-se junto dos muros. Quando o automóvel incidiu a luz dos faróis no caminho, os porcos que por ali andavam à solta começaram a grunhir, e apareceram rostos de pessoas deslumbrados pelo clarão.
Havia uma cabana com larga abertura na parede negra, e através desta via-se lá dentro um velho sentado. O carro parou porque o tenente quis falar aos jornaleiros. Estes aproximaram-se, apreensivos, de olhar cintilante. Pareciam muito embaraçados, e responderam humildemente às perguntas.
Entretanto Kate observava um rapaz a comprar qualquer bebida por um centavo e um bocado de corda por três centavos na tal abertura da parede negra, que. afinal, era uma venda.
O automóvel continuou, com os seus faróis iluminando fantasticamente as sebes de cactos, mescinites e paios blancos, assim como as poças de água na estrada. O andamento do carro era bastante vagaroso.

XX
Kate escondeu-se em casa, acabrunhada. Não queria falar com ninguém. Nem suportava a tagarelice de Juana. Pareciam ter-se quebrado de repente todos os fios que a ligavam à humanidade. Não sentia o mínimo interesse pelas pequeninas coisas humanas. Dir-se-ia haver cegado dum momento para outro. Não via as pessoas; eram apenas indivíduos que faziam barulho, folhas rodopiando nas trevas. E ela encontrava-se sozinha debaixo das árvores.
A mulher dos ovos pedia seis centavos por cada um.
- E eu teimei que não pagávamos mais de cinco - comentava Juana, prosseguindo o seu relato.
- Sim - dizia Kate. Tanto lhe fazia comprá-los a cinco ou a cinquenta, ou não os comprar.
Nada lhe importava, nem sequer a vida. E não havia meio de escapar a esse total desinteresse. Sentia-se indiferente perante tudo, até perante a morte.
- niña! niña! Está aqui o homem das sandálias. Que bonitas ele lhas fez. niña! Ora vejam as huaraches mexicanas que a niña vai usar!
Kate experimentou-as; o homem pedia um preço exorbitante. Olhou-o com os seus olhos vagos, indiferentes. Mas era preciso viver neste mundo, e por isso deu ao sapateiro menos do que a soma pedida, embora mais do que ele teria aceitado.
Voltou a sentar-se no quarto imerso em penumbra. Ah, se ninguém lhe falasse, se a deixassem sozinha! Porque o seu espírito partira, fora para o centro dalgum deserto, e chegava a ser intolerável o esforço que ela fazia para estabelecer contacto aparente com as outras pessoas.
Nunca estivera tão solitária, tão inerte, tão desprovida de desejos. Nunca passara os dias em tal ociosidade, cega e inconsciente.
Às vezes, para fugir aos que a rodeavam, ia para debaixo de uma árvore, à beira do lago. E aí, sem dar por isso, deixava o sol queimar-lhe os pés e a cara. Juana soltava gritos a sua chegada. Os pés cobriram-se de empolas, as faces ficaram rubras, tumefactas. mas era como se tudo isso acontecesse numa casca vazia. Ela continuava indiferente, apática.
Todavia, no fundo de si mesma elevava-se de quando em quando uma pequenina chama. Diminuía, parecia extinguir-se e tornava a surgir.
Ramon acendera, ateara essa chamazinha. A sua alma! A sua alma mais profunda! Kate queria viver da vida dessa alma, não da sua própria vida.
Quando tornasse a encontrar Ramon e Cipriano reanimar-se-ia a chama agora vacilante. Mas agora Kate sentia-se fraca, tão fraca como uma moribunda. Não havia nada a fazer senão conformar-se e esperar. Esperar com alma quase morta e mãos e coração pesados de inércia e indiferença.
Ramon perdera muito sangue. Mas também ela se sentia exangue, depauperada, como se lhe corresse só água nas veias.
Tinha de esperar, esperar, até que viesse sangue novo fortificá-la.
Um dia, estando a baloiçar-se na sua cadeira da sala, com um vestido leve de algodão e a cara rubra e um tanto inchada, viu Cipriano passar diante da janela. Deteve-se à porta da varanda, grave, e belo no seu uniforme.
- Entre! - disse Kate com esforço.
Sentia as pálpebras ardentes. Cipriano fitava-a com aqueles seus olhos negros que tanta coisa continham e que ela não chegava a compreender. E Kate não conseguiu sustentar o seu olhar.
- Dominou todos os rebeldes? - perguntou-lhe.
- Por enquanto - respondeu o general. Parecia espreitar, espreitar qualquer coisa.
- E não ficou ferido?
- Não, não fiquei.
Kate olhava para os longes através da porta, não sabendo que dizer.
- Estive ontem em Jamiltepec - continuou Cipriano.
- Como vai Don Ramon?
- Muito melhor.
- Já está curado?
- Inteiramente, não; mas começa a dar os seus passeios.
- É extraordinário como as pessoas se restabelecem depressa.
- Sim, morremos com facilidade, mas também com facilidade voltamos à vida.
- E você? Combateu os rebeldes, ou eles renderam-se sem luta?
- Houve um ou dois combates, mas de pouca monta.
- Morreram muitos homens?
- Alguns. Uma centena, talvez. Nunca se pode saber ao certo.
- Fez um gesto vago com a mão e acrescentou com súbito ar grave:
- A señora é que teve em Jamiltepec um combate penoso, não é verdade?
- Não durou muito tempo, mas foi horrível.
- Acredito que fosse... Ah, se eu adivinhasse! Bem disse a Ramon que seria conveniente ficar lá meia dúzia de soldados. Respondeu que não era necessário... Mas nesta terra nunca se sabe o que pode acontecer, hem?
- niña! niña! - chamou Juana do terraço. - Don António diz que quer falar consigo.
- Ele que venha amanhã.
- Já aqui está! - exclamou Juana, aflita. E desapareceu. Don António era o senhorio de Kate, e. por conseguinte, muito
mais importante para Juana do que a própria niña.
Kate inclinou-se na cadeira e lobrigou a figura corpulenta do senhorio, no passeio em frente da janela; ao vê-la, tirou o gorro de pano e cumprimentou-a. Um gorro de pano! Kate sabia que Don António era fascista e que os reaccionários Cavaleiros de Cortez tinham por ele grande consideração.
Correspondeu com frieza ao cumprimento.
O homem tornou a saudá-la, com o seu barrete de pano.
Kate não lhe dirigiu uma única palavra.
Ali permaneceu ele, ora apoiado num pé, ora noutro, até que se encaminhou para os lados da cozinha. Daí a instantes voltava, mas fez de conta que não via Kate nem o general Viedma através da porta.
Cipriano seguiu com o olhar a figura volumosa de Don António.
- É o meu senhorio - explicou Kate. - Naturalmente deseja saber se renovo o contrato por mais três meses.
- Ramon quis que eu viesse cá não só para ter notícias suas como para lhe pedir que fosse a Jamiltepec. Quer ir agora comigo? Tenho o carro à porta.
- Devo ir? - retorquiu Kate, constrangida.
- Se quiser... Ramon disse que só fosse no caso de lhe apetecer, pois talvez lhe custasse voltar a Jamiltepec... tão pouco tempo depois de...
Era extraordinário, aquele Cipriano. Expunha as coisas como se tratasse de meros factos desprovidos de qualquer emoção. Não representava nada para ele a circunstância de ser ou não penoso a Kate voltar a Jamiltepec.
- Felizmente que se encontrava lá naquele dia - prosseguiu ele. - Podiam tê-lo matado, e decerto o fariam. Sim. com toda a certeza. Que horror, hem?
- Podiam matar-me também - observou ela.
- Sem dúvida.
Na verdade, era um homem estranho. com uma camada de verniz mundano à superfície e, por baixo, sabe Deus que profundezas de lava. Falava, com ar meio alheado, sob esse verniz, com palavras breves e rápidas, e sempre hesitante, insistindo no seu "hem?" Dir-se-ia não ser ele quem falava.
- Que faria se matassem Ramon? - perguntou Kate. curiosa. - Eu? - Ergueu o olhar onde se notava a chama sombria do
receio. O vulcão despertava. - Se o matassem? - Fitou-a daquele modo feroz que ela a custo suportava.
- Teria muita pena?
- Eu? - repetiu, e a sombra da desconfiança transpareceu-lhe nas pupilas negras.
- Sentiria grande desgosto?
- Para mim - declarou Cipriano. com a mão espalmada sobre os botões do dólman - para mim Ramon é mais do que a vida. Mais do que a vida. - A ferocidade do olhar dissolveu-se numa expressão vaga. quase de cego. tal se perdido no vazio do cosmos onde nenhuma visão subsiste.
- Mais do que tudo?
- Sim - confirmou, maquinalmente, com um gesto de cabeça. - Então, de súbito, fixou-a e disse: - Salvou-lhe a vida...
Esta última frase implicava uma conclusão, a qual Kate todavia não compreendeu.
Foi mudar de vestido e partiram para Jamiltepec. Cipriano, sentado junto dela, causava-lhe certo mal-estar. Impunha-lhe a sua presença física, a presença desse corpo pequeno mas forte e dominante, atravessado por obscuras correntes e tempestades do desejo. O seu alcance era na verdade bastante limitado. Grande parte daquela natureza ficava densa e inerte, limitada como o é a de um lagarto ou duma cobra. Mas dentro dessa natureza ele possuía um estranho poder. Kate quase via as torvas emanações desse poder que Cipriano irradiava, pesada e sombria vibração do sangue que a chegava a fascinar.
Sentados a par no automóvel, silenciosos, oscilando no caminho cheio de covas, ela podia sentir-lhe o latejar do sangue ardente e a força de vontade que circulava nesse sangue. Via os céus escurecerem de novo e o símbolo fálico erguendo-se no zénite como uma nuvem em turbilhão; o antigo e supremo mistério fálico. Via-se a si mesma na eterna penumbra; um céu por cima do Sol, uma terra por baixo daquele, onde as árvores e as criaturas crescem em trevas; e o homem avançando em largas passadas, desnudo, escuro, quase invisível, até que, levado por uma força indomável, se elevava nos céus como uma coluna para traspassar o próprio zénite.
O mistério do mundo primitivo! Kate sentia-o agora com toda a sua furiosa magnificência. Compreendia finalmente a expressão dos olhos de Cipriano. Até já aceitava a ideia de casar com esse homem. No mundo tenebroso em que os homens nada vêem e os ventos de fúria irrompem da terra, Cipriano ainda era uma potência. Desde que se penetrasse no seu mistério, viam-se as coisas de maneira diversa, e ele tornava-se num macho vivo e poderoso. A pequenez e os limites deixavam de existir. Nos seus olhos negros e cintilantes a força era ilimitada, e dir-se-ia que dele, do seu sangue, podia jorrar aquele pilar de nuvens que ondulava como uma serpente e subia até atingir o zénite, enquanto a terra, em baixo, se ia entenebrecendo. Aquelas mãos pequenas, aquele tufo de pêlos negros pendente do queixo, a linha oblíqua dos olhos, o arco das sobrancelhas, o crânio alto de índio com os seus cabelos pretos, tudo isto se afigurava a Kate símbolos doutro mistério, o mistério diluído na penumbra do mundo primitivo, onde as formas diminutas assumem proporções gigantescas e um rosto como o de Cipriano é o rosto dum deus e dum demónio, o rosto imortal de Pa. Mistério pretérito mas que não deixou de existir nem jamais deixará.
Em silêncio, Cipriano subjugava-a com o poder de Pa. e ela sentia-se sucumbir. Mais uma vez se tornava no macho dominador, intangível, parecendo subitamente grande, cobrindo o céu, provocando trevas com a sua própria tenebrosidade. E Kate inclinava-se, em perfeita submissão.
O antigo mistério fálico, o mistério de Pa. Cipriano, sempre inflexível, envolvia-se nessa penumbra primitiva. Kate compreendia agora a influência que ele tinha sobre os soldados. Possuía o antigo dom do poder demoníaco.
Jamais requestaria uma mulher, isso era evidente. Quando a voz do sangue se impunha, jorrava desse homem a aura sinistra, como de uma nuvem carregada de electricidade, elevando-se tal um remoinho ao crepúsculo, enorme coluna flexível balançando-se entre o céu e a terra.
Ah, e que mistério de profunda submissão da parte dela! Submissão absoluta, qual a da terra sob o céu.
E que casamento! Terrível, com a finalidade da morte, ou mais do que a morte. Os braços do sombrio Pa. E a tremenda e quase ininteligível voz da nuvem.
Podia agora imaginar o que seria o seu enlace com Cipriano. A passividade da terra na penumbra, vida sem vida, o mistério tangível da passividade. Ah, que abandono! Que abandono de tantas coisas que ela desejava abandonar!
Cipriano pousou a mão no joelho de Kate, e, a esse calor suave e pesado, a alma fundiu-se-lhe como o metal à acção do fogo.
- En poço tiempo, verdad? - disse ele, fitando-a com o ar de autoridade que o poder concede.
Kate olhou-o, calada. Perdera o uso da palavra e quedava-se muda no reino sombrio de Pa. Só repetia para si mesma: "Meu noivo demoníaco!"
O carro parou. Tinham chegado a Jamiltepec. Cipriano olhou-a outra vez e abriu a portinhola como se contra vontade. Então Kate reparou no seu uniforme, na figurinha fardada que ela esquecera por completo. Esquecera tudo, para só ver o semblante do deus-demónio: as sobrancelhas arqueadas, os olhos um pouco oblíquos, a barbicha de bode do eterno Pa.
Encontraram Ramon no terraço, estendido numa cadeira de repouso. Estava trajado de branco, e de faces muito pálidas.
Notou logo a mudança operada em Kate. Esta tinha o ar de
quem desperta da morte e renasce com uma doçura mais terna e vulnerável do que a de uma criança.
Olhou para Cipriano. O rosto dele parecia mais escuro que de costume, com aquela expressão altiva e distante do selvagem. Ramon conhecia-a bem. - Está melhor? - perguntou Kate.
- Quase bom - respondeu ele com suavidade. - E a señora, como tem passado?
- Muito bem.
- Sinceramente?
- Creio que sim. Sinto-me desamparada desde aquele dia, de espírito, é claro, mas quanto ao resto vou bem. E o seu ferimento? Cicatriza sem complicações?
- Sim, e depressa.
- Que horrível coisa são as balas e as facas!
- Quando falham o alvo...
Enquanto Ramon falava, fitando-a, Kate experimentava a vaga sensação de acordar dum desmaio. Os olhos dele, a sua voz pareciam-lhe cheios de bondade. Bondade? Achou estranha esta palavra, e teve de fazer um esforço para compreender o seu significado.
Não existia bondade em Cipriano. O deus-demónio Pa era anterior a esse sentimento. E precisaria ela de bondade? Não sabia. Estava completamente entorpecida.
- Tenho andado a pensar no meu regresso a Inglaterra - disse Kate.
- Outra vez? - replicou Ramon, esboçando um sorriso. - É para fugir das balas e das facas?
- Sim, quero ir-me embora. - Kate suspirou profundamente.
- Não vá. Na Inglaterra não encontrará nada.
- Mas poderei continuar aqui?
- Será capaz de o evitar?
- Quem me dera saber o que hei-de fazer.
- Desponta dentro de si qualquer coisa, e todas as suas decisões se dissipam como fundo. Deixe correr o marfim.
- Acha que é possível uma pessoa abandonar-se ao acaso, como se não tivesse alma?
- Às vezes é preferível.
Houve uma pausa. Cipriano mantinha-se afastado da conversa, perdido num mundo vago, longínquo e hostil.
- Tenho pensado em si. e perguntado a mim mesma se isso valerá a pena - prosseguiu Kate, olhando para Ramon.
- O quê?
- Isso que anda a fazer: tentar a mudança de religião deste povo. Se é que tem alguma, para que possa mudar. Não me parece que seja dado à religião. É apenas supersticioso. Não compreendo homens e mulheres que se arrastam de joelhos na igreja ou estão de mãos postas durante horas seguidas. Há nisso não sei quê de estúpido, de falso. Não adoram um Deus, mas um poder mesquinho e perverso. Tenho perguntado a mim mesma se vale a pena você consagrar-se a eles e expor-se aos seus ataques. Seria horrível se o matassem. Já o vi uma vez com todo o aspecto de morto.
- Mas agora vê-me bem vivo - replicou Ramon, sorrindo. Seguiu-se pesado silêncio.
- Parece-me que Don Cipriano os conhece melhor que ninguém. Ele deve saber se isso poderá ou não servir para alguma coisa - prosseguiu Kate.
- E que diz o nosso amigo?
- Digo que sou o servo de Ramon - retorquiu Cipriano. Kate olhou para ele e duvidou das suas palavras. Aquele Pa
dominador não podia obedecer a ninguém e muito menos dedicar-se ao serviço da humanidade. Só via a glória, o mistério sombrio da glória consumada: e ele próprio, como uma tempestade de glória.
- Tenho a impressão que vão descoroçoá-lo.
- É possível. Contudo não me deixarei desanimar. Só dei o primeiro passo na via da mudança, mas cê riest que le premier pás qui coute. Porque não se nos reúne? Sempre é melhor do que estar parada e ociosa.
Kate não respondeu. Contemplava as mangueiras e o lago, dominada pela recordação daquela tarde de tragédia.
- Como é que os dois homens... os bandidos... conseguiram alcançar o terraço? - perguntou ela.
- Graças a uma rapariga, que Carlota trouxe da Cuna do México para se ocupar de trabalhos de costura e ensinar as mulheres dos peóns a coser e a fazer diversas coisas. O quarto dela era ali adiante, no fim da ala do terraço. - E, com o dedo, Ramon designou o extremo oposto àquele em que se encontravam os seus aposentos. - Andou metida com um dos peóns, uma espécie de segundo capataz, chamado Guillermo. Ora Guillermo tinha mulher e quatro filhos, mas veio perguntar-me se não podia largar aquela e ficar com Maruca, a referida costureira. Respondi-lhe que não. que se deixasse estar com a família. E recambiei Maruca para a cidade,
Mas a rapariga recebera noções superficiais de educação e achava que podia agir conforme entendia. Escreveu a Guillermo, o qual correu a reunir-se-lhe, abandonando a mulher e os filhos. Então esta passou a viver com outro peón, o ferreiro, que era viúvo e parecia ser bom partido. Um dia, Guillermo apareceu aqui e perguntou-me se podia voltar. Disse-lhe que sim, mas sem Maruca. Respondeu-me que já não se importava com a rapariga, que só queria tornar para Jamiltepec. A mulher estava disposta a retomar a vida em comum, e o ferreiro disposto a deixá-la partir. Está bem, podes voltar, disse eu a Guillermo. Mas perdeste o teu lugar de capataz e vais trabalhar como simples jornaleiro. Mostrava-se muito satisfeito com a sua situação. Pouco depois Maruca veio estabelecer-se em Sayula, pretendendo ganhar a vida como costureira, e reapoderou-se de Guillermo. Segundo parece, os Cavaleiros de Cortez prometeram, secretamente, uma recompensa choruda ao homem que lhes levasse a minha cabeça. A rapariga convenceu Guillermo, Guillermo convenceu os dois peóns de San Pablo e de Ahujijic, e outro qualquer se encarregou do resto. O quarto, que Maruca ocupava aqui, fica situado perto da escada do terraço e tem uma janela de rótulas que deita para o lado das árvores em frente dum enorme loureiro-da-índia. Quando a rapariga morava aqui, conseguiu, subindo acima de uma mesa, desprender as rótulas, de maneira que Guillermo, saltando dum ramo para o peitoril da janela, pudesse entrar dentro do quarto. Era coisa arriscada, mas a carácter com o feitio aventureiro do homem. Ao que parece, ele e os seus dois acólitos queriam cortar-me a cabeça e saquear a casa antes da chegada dos outros. Por isso o primeiro, aquele que eu matei, trepou à árvore, afastou a rótula da janela com uma vara comprida, e penetrou no quarto. Daí, subiu ao terraço. Martin, o meu fiel Martin, que estava de sentinela na outra escada, pronto a actuar se tentassem fazer saltar a porta de ferro, ouviu o barulho na janela, acorreu e chegou precisamente na ocasião em que o segundo bandido... aquele que a senhora atingiu com um tiro... se agachava no peitoril a fim de pular para o quarto. A janela era pequena e muito alta. Antes que Martin pudesse sequer esboçar um gesto, o homem caiu sobre ele e deu-lhe duas facadas. Depois, apoderou-se-lhe do punhal e subiu a escada. Ao chegar lá acima, apanhou o tiro de revólver na cabeça. Martin, que jazia por terra, viu então as mãos de terceiro assaltante agarradas à janela, e em seguida lobrigou a cara de Guillermo. Teve alento para se pôr de pé e dar uma valente cutilada nas mãos de Guillermo, que logo caiu, estatelando-se nas rochas. Quando desci do terraço encontrei Martin estendido diante da porta desse quarto. Entraram por aqui, disse-me ele, e Guillermo fazia parte do bando. Guillermo quebrou o fémur com a sua queda nas rochas, e foi aí que os soldados o encontraram. Confessou tudo. mostrando-se arrependido e pedindo que eu lhe perdoasse. Está agora na enfermaria da cadeia.
- E Maruca? - perguntou Kate.
- Prenderam-na, é claro.
- Há sempre um traidor - comentou a irlandesa, tristemente.
- Esperemos que haja também sempre uma Caterina para me salvar.
- Mas tenciona prosseguir com essa história de Quetzalcoatl?
- Como posso desistir? É o meu métier. Porque não me auxilia?
- De que maneira?
- Verá. Em breve há-de ouvir de novo os tambores. Dentro de pouco tempo surgirá o primeiro dia de Quetzalcoatl. Cipriano vai aparecer em cena, de serape vermelha, e Huitzilopochtli partilhará com Quetzalcoatl o olimpo mexicano. Nessa altura precisarei de uma deusa.
- Don Cipriano... o deus Huitzilopochtli? - exclamou Kate, estupefacta.
- O Primeiro Homem de Huitzilopochtli, como eu sou o Primeiro Homem de Quetzalcoatl.
- E consente nisso? - perguntou ela ao general. - Aquele horrível Huitzipolochtli!
- Sim, señora - respondeu Cipriano com um subtil sorriso de altivez; o selvagem oculto reaparecia.
- Não o velho Huitzilopochtli, mas o novo - esclareceu Ramon. - E tem de haver uma deusa; esposa ou virgem, a deusa é necessária. Porque não há-de ser a señora a Primeira Mulher de... digamos Itzpapalotl, que é um nome tão bem-soante?
- Eu? - exclamou Kate. - Morria de vergonha!
- Morria de vergonha! - repetiu Ramon, rindo. - Porquê, señora Caterina? É uma coisa necessária. Precisamos de manifestações. Devemos voltar à visão do cosmos vivo. O antigo deus Pa subsiste em nós, e não o repeliremos. A sangue-frio ou num ímpeto fogoso temos de efectuar a mudança. O meu eu mais novo, como o eu mais primitivo, aceita a lei de Pa, sempre viva em minha alma. Quando alguém, depois de esquadrinhar a alma, chega a uma conclusão, acabam-se todas as hesitações. Devo agir. Não há outra coisa a dizer. Sou o Primeiro Homem de Quetzalcoatl. Sou o próprio Quetzalcoatl, se assim prefere, uma manifestação e um ser humano. Aceito esta dupla entidade, integro-a numa só e crio o seu destino. Posso proceder doutra maneira?
Kate calava-se. A perda de sangue parecera ter rejuvenescido Ramon e de novo ele se deixava arrastar para além do alcance dos sentimentos humanos. Extraordinário imperativo categórico! Kate compreendia agora o poder que ele tinha sobre Cipriano, poder que jazia nesse imperativo aceito na sua alma, verdadeira mensagem do Além.
Kate assistia a tudo aquilo como uma criança que olha através de um gradeamento, meio curiosa, meio assustada.
Ah, a alma! Ora cintilava ora desaparecia, revestindo-se de formas sempre diferentes. Kate chegara a pensar que ela e Ramon haviam penetrado na alma um do outro, e eis que via agora um homem pálido e distante, de espírito iluminado pela mensagem do Além; longe, infinitamente longe de qualquer mulher.
Quanto a Cipriano, esse abriu-lhe um mundo novo, um mundo de penumbra onde se entrevia a face de Pa, o deus-demónio que jamais perece e surge das trevas para regressar à espécie humana. Mundo de sombra e de êxtases tenebrosos, com o vento fálico "soprando na escuridão.
Cipriano tinha de ir a Jaramay, cidade situada no extremo do lago, próxima do estado de Colima. Faria o trajecto em lancha de gasolina, com a escolta de dois soldados. Não quereria Kate acompanhá-lo?
Esperou em silêncio pela sua resposta.
Ela aceitou. Sentia-se desesperada. Não queria ver-se obrigada a voltar para casa, a sua casa vazia e morta.
Era um desses curtos períodos em que a chuva está iminente, o ar electrizado, silencioso. Kate, nesses dias, tinha a impressão de que entre a violência vulcânica subjacente e a violência eléctrica da atmosfera, os homens andavam, torvos e irreconhecíveis, como demónios de outro planeta.
Parecia fresca a aragem, vinda do ocidente, mas era uma corrente de electricidade que lhe queimava a cara, os olhos e a raiz do cabelo. Quando Kate acordou de noite e puxou os lençóis, quase viu chispas na ponta dos dedos.
O lago estava com um aspecto leitoso sob o capacete de nuvens. Imóveis e enroscados debaixo do toldo do barco, os soldados pareciam escuros como lava e enxofre, e cheios de oculta electricidade demoníaca. Como salamandras. O barqueiro que ia ao leme era quase tão belo como o homem que ela matara. Mas este tinha olhos cinzentos, com reflexos de prata.
Sentado em frente de Kate, Cipriano mantinha-se silencioso. Tirara o dólman, e o pescoço emergia da camisa branca, alto e negro. Kate via bem como o sangue dele era diferente do seu - escuro qual sangue de lagarto entre rochas escaldantes.
Aquele homem queria inundá-la com a corrente sombria do seu sangue. Conservava-se em absoluta imobilidade, tão ausente, e contudo parecia sempre, sempre na expectativa.
Kate estava deitada debaixo do toldo, ao calor e à luz ofuscante, sem olhar para fora. O vento fazia crepitar a lona.
Se navegaram muito ou pouco tempo ela não o sabia, mas aproximavam-se da extremidade do lago, onde a praia formava uma curva. Para além dos seixos viam-se salgueiros e a casa de um rancho. Ao fundo estendiam-se campos de milho ainda tenro, com as suas folhas ondulando ao vento como flâmulas verdes. Mas tudo perdia a nitidez na claridade intensa.
Na água, cada vez menos profunda, flutuavam aves aquáticas como pedaços de cortiça. O motor parou, e o barco ficou oscilando a uns vinte metros da praia.
Os soldados descalçaram as huaraches, arregaçaram as calças e entraram na água. O barqueiro fez o mesmo e impeliu a lancha para diante. Esta, porém, não avançou muito, e o homem escorou-a com um pedregulho. Então fixou em Kate os olhos claros e perguntou-lhe se queria que a transportasse aos ombros até à praia.
- Não, não - respondeu ela. - Irei por meu pé.
E, apressadamente, tirou os sapatos e as meias e meteu-se na água, erguendo a saia de seda listada. O barqueiro riu-se, assim como os soldados. A água estava tépida. De cabeça pendida, Kate foi andando sobre os calhaus lodosos. Cipriano olhava-a, com a silenciosa paciência dos da sua raça, e só quando a viu na praia é que desembarcou aos ombros do barqueiro.
Sentaram-se em pedras debaixo dos salgueiros. O lago estendia-se pálido e irreal, desvanecia-se ao longe entre montanhas áridas. Alinhavam-se canoas negras, firmes, de mastros imóveis. E as aves, boiando como rolhas, ora apareciam ora desapareciam naquele ponto onde o lago acaba e o mundo parece terminar também.
Uma mulher avançava sobre os calhaus, com o cântaro ao ombro. Ouvindo barulho, Kate olhou e viu um grupo de pescadores em conciliábulo, sentados à sombra duma árvore. Cumprimentaram-na humildemente, mas nos seus olhos pretos transparecia a dureza e arrogância primitiva.
Cipriano mandara os soldados em busca de cavalos. Estava muito calor para andar a pé.
Conservaram-se calados por largo tempo, até que ele perguntou a Kate em tom calmo:
- Porque não hei-de ser o Huitzilopochtli vivo?
- Sente que o é? - replicou ela, sobressaltada.
- Sinto.
Olhava-a com ar de desafio, e a sua voz baixa, sussurrante, tirava as forças a Kate, arrebatava-lhe toda a vontade. Calaram-se de novo.
Os soldados voltaram com um cavalo árabe para Cipriano e um burro para Kate, onde ela podia sentar-se de lado. Cipriano ajudou-a a subir para a sela, um soldado pegou na arreata do burro, e puseram-se a caminho, para lá dos festões de redes de pesca pendentes de varas.
Debaixo de sol e na poeira cinzenta, seguiram pela estrada larga e deserta, ladeada de cabanas negras.
Jaramay parecia um forno de lava. Calor abrasador, casas em ruínas, ruas de lajes quebradas e carcomidas pelo sol, um cão guiando um cego ao longo dos muros enegrecidos, no passeio desmantelado, algumas cabras - e uma indizível desolação.
Chegaram à plaza onde se encontrava a igreja e meia dúzia de palmeiras eriçadas. Por toda a parte o vazio e os estragos do sol. Passou um homem a cavalo, de espingarda a tiracolo e rosto sombreado pelo chapéu de abas largas. Cavalo e cavaleiro tinham extraordinária elegância naquele cenário de ruínas.
Cipriano apeou-se defronte dum grande edifício a cuja porta estavam alguns soldados.
Perante a autoridade que dele emanava, ojefe mostrou-se cheiode atenções. Era homem gordo, de fato branco enxovalhado.
Cipriano pediu um quarto em que sua "esposa" pudesse descansar. Kate estava pálida, sem forças. Submetia-se à vontade do companheiro.
Aceitou ele um quarto de chão de tijolos, com enorme cama de latão e duas cadeiras. O aposento, no seu asseio e escassez de mobília, dava uma sensação de frescura no meio daquele calor.
- O sol tornou-a pálida. Deite-se, para repousar um pouco. vou fechar as janelas - disse Cipriano.
Correu as persianas, até o quarto ficar imerso em penumbra. Então, de repente, na sombra, tocou em Kate, acariciando-lhe a anca.
- Declarei que era minha esposa. É verdade, não é? -disse, na sua voz suave.
Ela estremeceu e pareceu-lhe que os membros se lhe derretiam como metal em fusão. Perdera a consciência de tudo, excepto da eternidade desse fogo a que se abandonava.
E Cipriano era o senhor do fogo. O Huitzipolochtli vivo, proclamara-se ele mesmo. O deus da chama, a salamandra.
Quando Kate entrou na sala contígua, encontrou Cipriano sentado à sua espera. Levantou-se, fixando-a com olhos cintilantes, e agarrou-lhe na mão para de novo a tocar.
- Quer vir comer ao restaurante? - perguntou.
Havia nele uma alegria que a assustava um pouco. A sua carícia na mão de Kate tinha uma doçura contida; as palavras que proferia não significavam nada, jamais significariam. Kate virou a cabeça, um tanto receosa com aquela alegria fulgurante e primitiva tão impessoal e fora do seu alcance.
Envolvendo-se no amplo xaile de seda amarela e munindo-se da sombrinha branca forrada de verde, saiu com Cipriano, saudada pelo jefe, pelo tenente e pelos soldados. Apertou a mão àqueles. Eram homens de carne e sangue que compreendiam a sua presença e a cumprimentavam respeitosamente, fixando nela as pupilas brilhantes. Então Kate percebeu o que era ser uma deusa à maneira doutros tempos, saudada pelo verdadeiro fogo dos olhos dos homens e não pelas palavras dos seus lábios.
Subtil como um gato, escondendo o rosto sob o chapéu verde e a sombrinha, conservando o busto oculto no xaile de brocado, atravessou a praça deserta ao lado de Cipriano. E os soldados, oficiais e funcionários da Jefatura, olhando-a fixamente, não viam a mulher mas o mistério voluptuoso e inacessível da consumação física do homem.
Comeram no antro sombrio dumafonda, dirigida por uma velha que tinha sangue espanhol nas veias. Cipriano era conciso e imperioso nas suas ordens, e a velha corria, azafamada e numa espécie de terror. Mas adivinhava-se-lhe o entusiasmo em servir semelhante cliente.
Kate sentia-se desnorteada, confundida no mistério da evasão de si mesma. Cipriano mal lhe falava, o que era óptimo. As palavras directas, sem o estranho véu de doçura que esse povo sabe pôr na voz, representavam para ela pancadas rudes. Ah, quanto magoavam as falas brutais! Já sofrera muito por causa disso.
Depois do almoço, foram ver as serapes que estavam a tecer para Ramon. Escoltados pelas duas ordenanças, atravessaram as ruas desertas e bateram a um portão.
Kate penetrou na frescura agradável do zaguán. O pátio sombreado era uma autêntica fábrica de tecelagem. Certo homem gordo e zarolho mandou um garoto trazer cadeiras, mas Kate vagueou por ali. encantada com o espectáculo.
No zaguán encontrava-se um montão de lã branca e sedosa, e no alpendre sombrio do pátio toda a gente trabalhava. Dois pequenos cardavam lã, munidos de pás cobertas de pontas de arame, donde retiravam velos finíssimos que iam colocando junto de duas raparigas que estavam a fiar, cada qual sentada ao pé da sua roda. Uma delas, linda moça de rosto oval que sorriu timidamente para Kate, desempenhava-se da tarefa com extraordinária habilidade. Chegava a ser prodigioso o modo como conseguia um fio de lã quase tão fino como linha de coser.
No extremo do pátio debruçavam-se dois homens sobre os teares, absortos e silenciosos. Um deles tecia uma serape de tom vermelho-vivo. Trabalho difícil. Do centro escarlate partiam ziguezagues negros e brancos até à barra dum preto retinto. Dava gosto ver a agilidade daqueles dedos morenos, arremessando a lançadeira, formando o fundo e o desenho, ajustando bem os fios com duas pancadas da travessa de madeira. Era negra a urdidura, esticada como cordas duma harpa, mas a trama era vermelha, e o pedaço já tecido apresentava inexcedível perfeição de cor.
- Para quem é a serape? - perguntou Kate a Cipriano. Para si?
- Sim, é para mim.
O outro tecelão ocupava-se dum manto branco com barras azuis e pretas.
À sombra do alpendre, as cores da lã brilhante tinham qualquer coisa de místico; o vermelho-cardeal, o branco puro e sedoso, o azul magnífico sobressaíam de encontro às paredes escuras.
O homem gordo e zarolho trouxe várias serapes que dois rapazes desdobraram. Havia uma branca com flores azuis em hastes negras e folhas verdes a formarem a orla; e na "boca", a abertura por onde se enfia a cabeça, via-se uma grinalda de florinhas com os tons do arco-íris.
- Gosto disto! - observou Kate. - A quem se destina?
- A Ramon. Azul, branco e preto são as cores de Quetzalcoatl. Mas ele só a usará no dia em que as flores se abrirem... quando conduzir a deusa que há-de vir.
Kate calou-se, assustada.
Havia duas serapes encarnadas com orla de losangos pretos.
- São suas?
- São para os mensageiros de Huitzilopochtli. Têm as minhas cores: vermelho e negro. Mas a que eu uso também tem branco, assim como a de Ramon é franjada de vermelho.
- Não sente medo? - perguntou Kate, olhando para ele, e pestanejando.
- Medo de quê?
- De assumir o papel de Huitzilopochtli.
- Sou o Huitzilopochtli vivo. Quando Ramon se atrever a proclamar-se o Quetzalcoatl vivo, também me proclamarei o Huitzilopochtli. Não acredita que eu o seja?
Kate observou-lhe o rosto escuro ornado de barbicha, as sobrancelhas arqueadas, os olhos um tanto oblíquos. Na sua expressão lia-se certa ternura por ela, mas ao mesmo tempo uma segurança em si mesmo que nada tinha de humana.
Desviou a cara. para que ele a não visse, e murmurou:
- Sim, acredito.
- E no dia das flores - prosseguiu Cipriano - aparecerá também, com um diadema na cabeça e a túnica verde e azul tecida especialmente para si.
Kate tapou o rosto.
- Vamos ver as lãs - ordenou ele. conduzindo-a através do pátio para a sombra onde pendiam de cordas meadas escarlates, azuis, amarelas, verdes e castanhas. Terá uma túnica verde sem mangas, e outra branca com flores azuis.
O verde era dum tom de maçã.
Debaixo do telheiro, duas mulheres debruçavam-se para recipientes de barro colocados sobre lume que ardia num buraco cavado no chão. Uma delas lançava à água ramos secos, como se fosse uma bruxa preparando um filtro. Viu os ramos subirem à superfície, rodopiarem na água fervente, e em seguida deitou lá dentro um pó branco.
- Ah, se Ramon é o centro dum mundo novo, novas flores desabrocharão à sua volta tapando o mundo velho. E a Primeira Flor será a Caterina.
Saíram do pátio. Os soldados tinham trazido o garanhão árabe para Cipriano e o burro para Kate, no qual ela se sentou de lado, como uma camponesa. Atravessaram a cidade deserta, quente e silenciosa, sob as árvores verdes que começavam a florir, e alcançaram a borda do lago. onde as redes de pesca se agitavam ao vento que fazia ondular o milho e encrespava a superfície da água.
A lancha de gasolina baloiçava próxima da margem, aquém das canoas imóveis. Pequeninas como pássaros, duas mulheres lavavam roupa, ajoelhadas nas pedras.
Kate saltou do burro na praia de seixos.
- Porque não vai montada nele até ao barco? - perguntou Cipriano.
Kate olhou para a lancha e imaginou o burro aos tropeções sobre os calhaus lodosos.
- Não, irei por meu pé - respondeu ela.
Cipriano fez avançar o seu cavalo preto. O animal fungou e entrou com passos delicados na água tépida. Então, a meio caminho, deteve-se e começou a dar patadas, como se estivesse em terra, salpicando o ventre e as patas traseiras.
Mas aquele manejo também respingou Cipriano, o qual puxando as rédeas, roçou as esporas no flanco da montada. o garanhão sobressaltou-se e, meio escorregando meio aos pinotes, avançou graciosamente com um rumor de chapinhadas. Cipriano acalmou-o, e o animal, curvando a cabeça negra para olhar o fundo pedregoso, aproximou-se da lancha, balançando a cauda e a garupa luzidia. Mas houve nova paragem e novo piafé.
- Oh que bonito! Que bonito parece batendo com as patas na água! - exclamou Kate da praia. - Porque será que ele faz isso?
Cipriano voltou-se na sela e riu-se, com o riso súbito dos índios.
- Naturalmente gosta de se molhar- replicou.
Um soldado agarrou na rédea do cavalo, e Cipriano, soerguendo-se num estribo, saltou para a lancha. Descalça e de calças arregaçadas, a ordenança deu um pulo para a sela e conduziu o animal para terra; mas o garanhão, voluntarioso, insistia em dar patadas na água com uma espécie de alegria ingénua e obstinada.
- Repare! Repare que bonito! - bradou Kate.
O soldado porém escarranchado na sela, erguia as pernas como um macaco e gritava ao cavalo. Por fim, a muito custo, conseguiu trazê-lo à praia.
Kate foi patinhando até ao barco. A água estava quente, e o vento soprava carregado de electricidade. Depois de enxugar os pés e as pernas com o lenço, Kate calçou as meias de seda clara e os sapatos castanhos.
Olhou para trás, contemplando a praia deserta, as redes diáfanas, e, mais além, os campos de milho e o caminho ladeado de árvores onde os soldados de Jaramay seguiam montados no burro e no cavalo preto. À direita havia um rancho: um amontoado de casas cobertas de telha, quintais divididos por sebes de canas, bananeiras e salgueiros. Na luz forte da tarde, o lençol de água perdia-se de vista entre montanhas irreais.
- Que lindo isto é! - observou Kate. - Quase apetece viver aqui.
- Ramon diz que fará deste lago o centro do novo mundo. Seremos os deuses do lago.
- Receio bem não ser mais do que uma simples mulher. Cipriano dirigiu-lhe um olhar rápido.
- Que quer dizer com isso de "simples mulher"? - retorquiu em voz severa.
Kate baixou a cabeça. Na verdade, que significava aquela frase? Uma simples mulher! E mais uma vez deixou o seu espírito pairar na região deliciosa onde tudo é possível, até a ilusão de que pertencemos ao número dos deuses.
O gasolina corria veloz sobre a água dourada. Sentados à proa para manter o equilíbrio, os soldados estavam com ar pasmado, estupefacto, que em geral assumem as pessoas invadidas pelo sono. E não tardou que adormecessem, enroscados no fundo do barco, muito chegados um ao outro.
Instalado junto de Kate, Cipriano olhava em frente, com rosto inexpressivo. O vento agitava-lhe o cabelo, soprava-lhe na barba.
O barqueiro ia à popa, alto e erecto, vigiando com olhos semi-inconscientes. O chapéu largo sombreava-lhe a cara, a tira que o prendia ao queixo era como um risco negro. Sentindo o olhar de Kate, fixou nela as pupilas claras por um breve momento. Mas foi como se não a visse.
Voltando-se, Kate puxou o seu coxim para o fundo do barco e deixou-se escorregar para cima dele; Cipriano pôs-se de pé e forneceu-lhe outro coxim. E ali ficou deitada, de rosto coberto pelo xaile, ouvindo o barulho sempre igual do motor e o matraquear do toldo agitado pelas rajadas súbitas de vento. Erguiam-se ondas à popa, que embatiam no barco, impelindo-o para a frente e salpicando Kate com os seus borrifos.
Sob o xaile amarelo e rodeada pelo silêncio dos homens, acabou ela por adormecer.
Despertou no momento em que o motor parava, e sentou-se para olhar em volta. Encontravam-se perto da costa. Entre as árvores assomavam as torres brancas de San Pablo. O barqueiro abandonara o leme e inclinava-se para o motor.
- Que aconteceu? - perguntou Cipriano.
- Falta de gasolina, Excelência - respondeu o homem. Os soldados acordaram por seu turno. O vento amainara.
- Não tarda a chuva - declarou Cipriano.
- Chuva? - repetiu Kate.
- Sim. - E apontou com o dedo afilado e escuro, mas claro do lado de dentro, as nuvens negras que corriam sobre as montanhas e as que se amontoavam mais além. Soavam já trovões ao longe.
A lancha continuava ao sabor da corrente, sentia-se o cheiro de gasolina. O homem mexia no motor, que começou a trabalhar para daí a instantes se deter.
Então o barqueiro arregaçou as calças e, com espanto de Kate, saltou para o lago, embora ainda estivessem a cerca duma milha da praia.
A água nem lhe chegava aos joelhos. Encontravam-se num baixio.
Lentamente, foi empurrando o barco, chapinhando em silêncio.
- Que profundidade tem o lago mais adiante? - inquiriu Kate.
- Ali, señorita, onde estão aquelas aves de peito branco, tem oito metros e meio - informou o barqueiro.
- Devemos apressar-nos - disse Cipriano.
- Sim, Excelência.
O homem subiu para bordo, alçando a perna alta e bronzeada. O motor voltou a fazer-se ouvir, e a lancha recomeçou na sua corrida, açoitada pelo vento frio que se ia desencadeando.
Descreveram uma curva e logo surgiu o promontório com as mangueiras escuras e o último andar da casa de Jamiltepec erguendo-se acima das árvores. Kate via as palmeiras, a massa roxa das buganvílias, as cabanas dos peóns, e. mulheres a lavar ajoelhadas nas pedras à beira do lago.
Ramon apareceu, avançando lentamente para a enseada onde desembarcaram.
- Prepara-se chuva - disse ele.
- Chegámos a tempo - redarguiu Cipriano.
Ramon olhou para ambos e compreendeu. Imersa na sua nova ilusão, Kate riu-se baixinho.
- Há outra flor aberta no jardim de Quetzalcoatl - declarou Cipriano em espanhol.
- Sob o signo vermelho de Huitzilopochtli?
- si, señor - respondeu Cipriano. - Pêro una florecita tan zarca! Y abrio en mi sombra, amigo.
- Sois hombre de la alta fortuna.
- Verdad!
Eram cinco horas da tarde. O vento assobiava nas tolhas e? de repente, a chuva tombou como uma cortina branca, espessa, fumegante. O lago desapareceu.
- Tem de passar aqui a noite - disse Cipriano a Kate em tom suave.
- A chuva há-de acabar.
- Tem de ficar aqui - insistiu ele, numa voz que era como o murmúrio do vento.
Corando. Kate olhou para Ramon. Este parecia distante, como se a visse de muito, muito longe.
- A noiva de Huitzilopochtli - disse ele, com um leve sorriso.
- É preciso que nos cases, Quetzalcoatl - declarou Cipriano.
- É da sua vontade? - perguntou Ramon a Kate.
- Sim. Quero que nos case o senhor só.
- Ao pôr do sol.
Dizendo isto Ramon dirigiu-se para os seus aposentos. Cipriano mostrou a Kate o quarto que lhe era destinado e foi reunir-se ao amigo.
A chuva continuava a cair, rápida e impetuosa.
Ao fim da tarde, uma criada trouxe a Kate uma túnica sem mangas, espécie de camisa de linho branco com recortes na orla e flores azuis bordadas, de haste para cima. cada qual com duas folhas verdes. No meio das flores estava, em miniatura, a águia de Quetzalcoatl.
- O patrón pede que vista isto - disse a mulher, que trazia também um bilhete.
O bilhete era de Ramon e rezava assim:
"Envergue o vestido da noiva de Huitzilopochtli. Dispa toda a sua outra roupa, não conserve nada, nem o menor fio que venha do passado. O passado acabou, eis a penumbra da nova aurora."
Kate não sabia ao certo como vestir aquela túnica que não tinha mangas nem aberturas para os braços: havia simplesmente em cima uma bainha com cordão enfiado. Lembrou-se então da antiga moda índia, atou o cordão no ombro esquerdo, deixando os braços e parte do seio direito a descoberto. Compôs o franzido sobre o peito e suspirou. No fim de contas, aquilo não era mais do que uma camisa de noite com a orla bordada de flores de pedúnculo para o ar.
Descalço e trajado de branco, Ramon veio buscá-la e conduziu-a em silêncio pela escada que ia ter ao jardin. O zaguán estava escuro, a chuva continuava a cair mas com menos violência. A penumbra envolvia tudo.
Ramon despiu o casaco, pousou-o nos degraus, e em seguida, de torso nu, levou Kate para o jardim, sob aquele dilúvio. Cipriano veio ao encontro deles, vestido apenas com umas calças brancas e largas.
Ali permaneceram todos três com os pés nus sobre a terra que parecia evaporar-se em fumo alvacento. Num instante, ficaram encharcados.
Lentamente, Ramon proferiu em espanhol:
- Descalços na terra viva e de faces erguidas para a chuva viva, ao lusco-fusco, entre o dia e a noite, homem e mulher, na presença da estrela sempre cintilante, unem-se um ao outro para achar a perfeição. Levanta o rosto, Caterina, e diz: Este homem é a minha chuva do céu.
Kate ergueu a cara, de olhos fechados sob o aguaceiro:
- Este homem é a minha chuva do céu.
- Esta mulher representa para mim a terra. Diz isto, Cipriano - ordenou Ramon, dobrando um joelho e espalmando a mão no solo.
Cipriano imitou-lhe o gesto e repetiu:
- Esta mulher representa para mim a terra.
- Eu. mulher, beijo os pés e os calcanhares deste homem, porque serei para ele a força durante a longa penumbra da Estrela da Manhã.
Kate ajoelhou, beijou os pés e calcanhares de Cipriano e proferiu todas aquelas palavras.
- Eu, homem, beijo a testa e o peito desta mulher, porque serei para ela a paz e a prosperidade durante a longa penumbra da Estrela da Manhã.
Cipriano beijou Kate e pronunciou a fórmula. Então Ramon colocou a mão de Cipriano sobre os olhos molhados de Kate e a mão de Kate sobre os olhos molhados de Cipriano.
- Eu, mulher, na sombra desta mão que me cobre os olhos, suplico ao homem que venha ao meu encontro no coração da noite e que jamais me renegue - disse ela. - Mas que haja um lugar onde nos juntemos para sempre.
- Eu, homem, na sombra desta mão que me cobre os olhos, suplico à mulher que me receba no coração da noite, no lugar onde nos juntaremos para sempre.
- O homem trairá a mulher, a mulher trairá o homem, e a cada um deles será perdoado - continuou Ramon. - Mas se se encontraram como a chuva e a terra, entre o dia e a noite, na hora da Estrela; se o homem se uniu à mulher na sua carne e na estrela da esperança; se a mulher se uniu ao homem na sua carne e na estrela do desejo, de maneira que tenha sido um verdadeiro encontro, então nem um nem outro trairão o refúgio em que as vidas se unem como um astro sem poente. Porque a nenhum deles será perdoada a traição, nem de dia nem de noite, nem à hora da Estrela.
A chuva diminuía na escuridão da noite.
- Ide banhar-vos na água quente que nos dá a paz, e untai de óleo os vossos corpos, para obterdes a calma da Estrela da Manhã. Ungi até a planta dos pés e a raiz dos cabelos.
Kate voltou para o seu quarto, onde encontrou toalhas, um alguidar enorme cheio de água a fumegar e uma bonita tigelinha com óleo, junto dum pedaço de algodão em rama.
Tomou o banho quente, enxugou-se e friccionou todo o corpo com o óleo levemente perfumado e agradável à pele.
Em cima da cama estava a roupa que ela devia envergar. Kate vestiu outra "camisa" branca com flores de corola invertida e, sobre isso, uma túnica de lã verde tecida à mão, feita de duas peças, reunidas por uma costura nos lados e atadas no ombro esquerdo. Mais curta do que a saia de baixo, deixava ver a orla de flores azuis. E de cada banda tinha também uma flor bordada, igualmente azul, com duas folhas pretas. Era um traje estranho, primitivo, mas belo. Kate enfiou os pés em huaraches verdes e, à falta de cinto, amarrou uma fita de roda da cintura.
Um mozo bateu à porta para anunciar que o jantar estava pronto.
com um sorriso tímido, Kate entrou na sala.
Ramon e Cipriano esperavam-na em silêncio, ambos vestidos de branco. Cipriano tinha sobre o ombro a serape vermelha.
- Eis a esposa de Huitzilopochtli, fresca e radiosa - disse ele, vindo ao seu encontro. - Mas compete a Huitzilopochtli atar-lhe o cinto, e a ela calçar-lhe as sandálias, para que o esposo jamais a abandone.
Cingiu a cintura de Kate com uma faixa de lã branca de torres ameadas em campo negro e vermelho. E Kate baixou-se para calçar nos pés escuros e pequenos as huaraches escarlates com uma cruz preta nas biqueiras.
- Mais uma prenda - declarou Ramon.
Mandou Kate enfiar na cabeça de Cipriano um cordão azul donde pendia o símbolo de Quetzalcoatl, com a serpente de prata e a ave de turquesa. E Cipriano passou em volta do pescoço de Kate um cordão vermelho com o mesmo símbolo, mas de ouro e azeviche.
- Aí tendes o símbolo de Quetzalcoatl, a Estrela da Manhã - disse Ramon. - Lembrai-vos que o casamento é o terreno de encontro e que este é a estrela. Não havendo estrela não há a união verdadeira em que o homem e a mulher formam um todo. Se a união se efectua, aquele que trair essa estrela que cintila entre a obscuridade da mulher e a aurora do homem, entre a noite do homem e a manhã da mulher, aquele que a trair nunca terá perdão nem neste mundo nem no outro. Porque o homem é fraco e a mulher é fraca, e nenhum pode traçar a linha que o outro deve seguir, mas a estrela que se encontra entre dois entes, e que é o seu lugar de encontro, essa não deve ser traída. E não deve ser traída a estrela que reúne três pessoas. Nem a que brilha entre todos os homens e todas as mulheres. Todo aquele que atraiçoa um homem atraiçoa o seu semelhante, um fragmento da humanidade. Porque não havendo estrela entre dois homens ou entre esposo e esposa, não há nada. Mas se alguém trair a estrela que está entre ele e outro ser, atraiçoa tudo e tudo se perde para o traidor. Onde não existe estrela não existe nada, e por isso nada se perde.

 


                                      CONTINUA

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades