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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SERPENTE EMPLUMADA
A SERPENTE EMPLUMADA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 

XVII
Na opinião geral, o presidente da República tinha utilizado a sua vassoura nova com excesso de zelo, e essa limpeza provocou uma rebelião. Não muito importante, mas o suficiente para justificar banditismo, roubos e terror nas aldeias.
Ramon estava decidido a manter-se afastado da política, mas já os Cavaleiros de Cortez e certo partido "negro" se preparavam para o atacar. Do alto do púlpito, os sacerdotes começavam a acusá-lo de Anticristo devorado pela ambição. Contudo, ele pouca coisa tinha a recear, com Cipriano a seu lado e, por consequência, todo o exército de Oeste.
Mas era possível que Cipriano fosse mandado para longe, a fim de defender o Governo.
- Acima de tudo - declarou Ramon - empenho-me em estar afastado da política. Não quero que me empurrem para este ou aquele partido. Se é para me deixar contaminar, mais vale abandonar tudo. A Igreja impele-me para os socialistas, e os socialistas trair-me-ão na primeira oportunidade. Não se trata de mim. Trata-se do espírito novo. O meio mais seguro de o aniquilar (e pode-se aniquilá-lo como a tudo o que vive) é associá-lo a um partido político, seja qual for.
- Porque não vais falar com o bispo? - lembrou Cipriano. Eu vou também. Para alguma coisa há-de servir ser comandante da divisão de Oeste.
- Sim - disse Ramon lentamente. - Hei-de avistar-me com Jiménez. Já tinha pensado nisso. Tenciono recorrer a tudo o que está ao meu alcance. Montes estará a nosso lado porque detesta a Igreja e não admite nada do que lhe cheire a ditadura exercida do exterior. Vê a possibilidade de uma Igreja Nacional. Não me interessam Igrejas nacionais, mas acho que temos de falar linguagem do povo. Sabes que os padres proibiram a leitura dos hinos
- E que te importa? - volveu Cipriano. - Hoje em dia só há perversidade neste povo. Agora é que eles hão-de ler.
- Provavelmente. Mas farei vista grossa. Deixarei expandir-se a minha nova "lenda", como a classificam, desenvolver-se enquanto a terra está húmida... Contudo, precisamos de vigiar todos os rebentos que apresentem interesse.
- Ramon! - exclamou Cipriano. - Se conseguisses transformar todo o México no país de Quetzalcoatl?
- Eu serei o "primeiro homem de Quetzalcoatl". Não sei mais nada.
- E não te importarás com o resto do mundo?
Ramon sorriu. Já ele vislumbrava nos olhos de Cipriano a chama da Guerra Santa.
- Gostaria de ser - disse ele - um dos iniciados da terra. E um dos iniciadores. Cada país com o seu Salvador, ou um Salvador para cada povo. Os primeiros de cada povo formariam aristocracia natural do mundo. Precisamos de uma aristocracia, mas natural, não artificial. De certa maneira o mundo necessita de ser organicamente unido: ser o mundo do homem. Unidade concreta e não abstracta. Ligas, alianças, programas internacionais. Ah, Cipriano, isto é como um flagelo internacional. As folhas de uma grande árvore não podem pender nos ramos de outra árvore, por maior que seja. As raças da terra são como árvores, não devem misturar-se nem confundir-se. Têm de estar no seu terreno, como árvores que são. Ou então sobrepõem-se, enovelam-se as raízes e a luta será mortífera. Só as flores é que podem unir-se, e as flores de cada raça constituem a sua aristocracia natural. Que o espírito do mundo voe de flor em flor, qual um colibri, e fertilize a planta. Apenas os aristocratas naturais conseguem elevar-se acima da sua nação, mas não além da sua raça. Apenas os aristocratas do mundo podem ser internacionais, cosmopolitas, cósmicos. Sempre assim foi. Os povos não são capazes disso, como as folhas da mangueira não são capazes de se prenderem aos troncos do pinheiro. Assim, se eu quero que os mexicanos decorem o nome de Quetzalcoatl é porque desejo que falem a linguagem do seu próprio sangue. Pudesse o mundo teutónico tornar ao espírito de Thor e de Wotan e da árvore Igdrasil! Pudessem os povos druídicos compreender que o seu mistério reside no visco e que eles mesmos são os Thuatas de Danaan, vivos embora submersos! E que um novo Hermes voltasse ao Mediterrâneo, um novo Astarot à Tunísia! E Mitra regressasse à Pérsia, e Brama, poderoso, à índia, e à China o mais velho dos dragões! Então eu, Cipriano, eu, primeiro homem de Quetzalcoatl, contigo, primeiro homem de Huitzilopochtli, e talvez tua mulher, primeira dama de Itzpapalotl, talvez nós lográssemos conhecer, com a nossa alma pura, os outros grandes aristocratas do mundo, o primeiro homem de Wotan, a primeira mulher de Freya, o primeiro senhor de Hermes e a primeira dama de Astarte, o mais bem-nascido de Brama e o filho do Magno Dragão. Digo-te eu, Cipriano, que a terra inteira rejubilaria quando os primeiros senhores do Ocidente encontrassem os primeiros senhores do Sul e do Oriente, no Vale do Espírito. Ah, a terra tem vales do Espírito, que não são cidades de comércio e indústria. O mistério é um só, porém os homens podem vê-lo diferentemente. O cardo, o hibisco, a genciana são flores da árvore da vida, mas vivem separadas no mundo. E assim deve ser. Eu sou hibisco, tu és a flor da iúca, a tua Caterina é o junquilho bravo, e a minha Carlota é um amor-perfeito branco. Quatro apenas, nós quatro, e contudo formamos um ramalhete curioso. Os homens e as mulheres não são mercadoria manufacturada, para servirem de objecto de trocas; mas a árvore da vida é una, sabemo-lo quando as almas desabrocham na floração final. Não nos trocamos, não o queremos. Todavia, quando a nossa alma se abre na floração final então as flores comungam entre si o mesmo mistério, para além do conhecimento das folhas, dos ramos e das raízes. Algo de transcendente.
Mas não é isto que importa por enquanto. O que tenho a fazer agora é lutar para abrir caminho no México, e tu deves tentar o mesmo. Façamos isso.
Ramon dirigiu-se para as oficinas onde os seus homens trabalhavam, sob a sua chefia, e Cipriano absorveu-se na correspondência e planos militares que tinha entre mãos.
Ambos foram interrompidos pelo barulho de uma lancha motorizada que entrava na baía. Nela vinha Kate, escoltada por Juana.
Ao seu encontro partiu Ramon, vestido de branco, com o chapeirão onde estava embutido o olho de turquesa de Quetzalcoatl e de faixa azul e preta. Kate trajava também de branco, chapéu verde e xaile de seda amarelo-pálido.
- Estou contente por voltar aqui - declarou ela, estendendo-lhe a mão. Jamiltepec tornou-se para mim uma espécie de Meca. Todo o meu ser aspira a este sítio.
- Então porque não vem mais vezes? Ser-me-ia muito agradável vê-la sempre por cá.
- Receio ser intrusa.
- De modo nenhum. E, se quisesse, podia ser-nos muito útil.
- Hum... Não acredito em grandes empreendimentos, que me assustam. Será talvez porque, no fundo, antipatizo com as massas, seja lá onde for. Temo que isto implique desdém pelos povos. Não gosto que me toquem nem gosto de lhes tocar. Como havia eu de fazer parte de uma espécie de... Exército de Salvação?
Don Ramon soltou uma risada.
- Comigo dá-se o mesmo. Desprezo as grandes massas populares. Mas aqui é o meu próprio povo.
- Eu, desde pequena, fui assim. Conta-se que tinha quatro anos... os meus pais ofereceram um jantar de cerimónia... e disseram à criada que me trouxesse à sala, para dar as boas-noites. Suponho que foram todos muito amáveis comigo, mas eu apenas respondi: "São macacos! São macacos!" Imagine o êxito desta cena! E o pior é que sinto agora o mesmo que sentia em criança. Para mim as pessoas não passam de macacos a fazerem as suas habilidades.
- Até as que lhe são mais chegadas?
Kate hesitou, mas acabou por confessar contra vontade:
- Sim, creio que sim. Os meus dois maridos, mesmo o segundo, pareciam-me um tanto... simiescos, tão obstinados nos seus pequenos ridículos. Quando Joachim estava a morrer, senti por ele uma espécie de repulsa. Perguntava a mim mesma: "A que macaco enfermiço consagrei tanto do meu ser?" Não acha isto horrível da minha parte?
- Acho. Mas julgo que todos experimentamos esse sentimento, de vez em quando... ou que experimentaríamos se o ousássemos. São fases do espírito.
- Chego a pensar que os seres humanos só me inspiram este sentimento. Gosto da terra, do céu, e do mistério do além. Mas as
: pessoas... considero-as a todas macacos.
Ramon percebeu que ela era sincera.
- Puras monas! - murmurou em espanhol. - Y lo que hacen, puras monerias. - Então acrescentou: - Tem filhos?
- Tenho, do meu primeiro marido.
- E eles... Monas y no mas?
- Não! - respondeu Kate, de testa franzida, como se descontente consigo mesma. - Só em parte.
- Isso é mau - volveu Ramon, meneando a cabeça. - Mas, afinal, que são para mim os meus filhos senão macaquinhos? E a mãe... a mãe... Ah, não, señora Caterina! Isto não serve de nada. Devemos ser capazes de nos libertarmos dos outros. Se me chego muito para uma roseira, os espinhos ferem-me. Temos de ver as pessoas como se vêem as árvores duma paisagem. De certa maneira, a humanidade domina-a, domina as suas faculdades conscientes. Por isso a detesta e deseja escapar-se-lhe. Mas só existe uma evasão possível: alcançar, para além dos outros, uma vida maior.
- É o que eu faço! - exclamou Kate. - Nunca fiz outra coisa. Quando vivia com o Joachim, absolutamente só numa casita isolada, sem criados e sem me dar com ninguém, tive sempre a sensação dessa vida maior e era livre e feliz.
- E ele? Era livre e feliz também?
- Era-o, na realidade. Mas aí é que intervinham as tais macaqueações de que lhe falei. Não se permitia ser feliz. Insistia em convidar gente e em criar assim motivos de tortura.
- Então porque não se deixou estar inteiramente só na sua casinha isolada, sem ele? Porque viaja e convive com as pessoas?
Vexada, Kate não respondeu. Sabia que não podia viver sozinha. Acabrunhava-a o vazio à sua volta. Precisava de um homem a seu lado para preencher esse vazio e mantê-la em equilíbrio. No entanto, mesmo quando o tinha presente, no fundo desprezava-o como se despreza um cão ou um gato. Entre ela e a humanidade havia esse laço subtil de antagonismo irredutível.
Era por natureza generosa e deixava aos outros a sua liberdade. Os servos afeiçoavam-se-lhe e todos que travavam conhecimento com ela a achavam encantadora e a admiravam. Pressentia-se nessa mulher um fluxo de vida ardente e certa alegria de viver.
Entretanto, sob isso tudo, jazia a aversão irreprimível, quase repugnância pelos outros. Sim era mais do que desagrado, chegava a ser repulsa. Fosse o que fosse, aquele sentimento dominava-a sempre ao fim de algum tempo. A mãe, o pai, as irmãs, o primeiro marido, até as crianças, que ela adorava, e Joachim, a quem dedicara tanto amor, mesmo estes, após curto convívio, principiavam a enchê-la de repulsa e Kate aspirava a ficar de novo só, e esquecida. Mas não seria um esquecimento definitivo, a menos que ela o provocasse de vez.
Assim era Kate. Até mergulhar no torvo esquecimento da morte, jamais conseguiria fugir a essa profunda, insondável repugnância pelos seres humanos. Os contactos breves podiam ser agradáveis e até emocionantes; mas os prolongados ou muito íntimos, originavam sempre rápidos ou demorados impulsos de violenta repulsa.
Kate e Ramon haviam-se sentado num banco do jardim, sob um loendro repleto de flores brancas. O rosto dele estava impassível, sereno. Nessa calma, um tanto constrangido, Ramon compreendia o estado em que se achava Kate e comparava-o com o seu, achando-o semelhante. O puro contacto pessoal, a simples aproximação dos seres enchia-o, também a ele, de aversão. Carlota aborrecia-o, Kate
aborrecia-o igualmente. Às vezes, o próprio Cipriano o entediava.
Isto, porém, acontecia quando se encontravam no campo meramente pessoal. Eis o inconveniente: sentia-se maçado deles e com
asco de si próprio.
Tinha de os encontrar noutro plano, onde o contacto fosse diferente, intangível, distante, sem intimidade. O seu espírito estava bem longe dali. A alma não deve ligar-se a ninguém, mas voltar-se para Deus, seja de que maneira for.
com Cipriano sentia-se mais em segurança. Quando, depois duma ausência, ambos se abraçavam, faziam-no sem renunciar à sua respectiva solidão. Como a Estrela da Manhã.
As mulheres, porém, não admitiam isto. Queriam intimidade, e a intimidade engendra o tédio. Carlota desejava estar perpétua e intimamente identificada com Ramon; por isso o odiava e a tudo o que ela supunha afastá-lo dessa comunhão. Era um horror, e ele tinha consciência do facto.
Os homens e as mulheres deviam saber que jamais se podem unir absolutamente neste mundo. No beijo mais ardente, na carícia mais terna, há um pequeno abismo que, por muito estreito que seja, não deixa de existir. Têm de se inclinar perante esse fosso e submeter-se reverentes. Mesmo que uma esposa represente para o marido mais do que a sua própria vida, ele é ele e ela é ela, e o abismo nunca se há-de fechar. Qualquer tentativa para o fazer constitui violação e um pecado contra o Espírito Santo.
O que adquirimos do Além, adquirimo-lo sós. O decisivo "eu sou" vem de muito longe, da Estrela da Manhã. Quanto ao resto, o que em nós é parte do poderoso Cosmos, podemos compartilhá-lo com o ente amado. Mas a alma, jamais.
Ramon debatera-se desesperadamente antes de descobrir o caminho para se evadir de si mesmo e se transportar à própria essência do ser e da existência a que ele chamava Estrela da Manhã - visto que no mundo é necessário dar um nome a tudo. Evadir-se, através da alma, atingir a Estrela da Manhã e ali, somente ali, encontrar o seu semelhante...
No entanto, ainda conhecia o malogro, e o malogro contínuo. Perante Carlota, falhava em absoluto. Esta reivindicava-o, e ele opunha-lhe uma resistência surda. Quando estava de tronco nu, com a mulher presente, nunca deixava de ter consciência dessa nudez, precisamente porque ela parecia considerá-lo propriedade sua.
Se os homens se encontram na essência de todas as coisas, não estão nus nem vestidos; na transfiguração acham-se completos, ninguém os vê em pormenor. A perfeita força final tem também o poder da inocência.
Sentado no banco ao lado de Kate, Ramon sentia-se dominado pela tristeza. O seu terceiro hino era cheio de sarcasmo e de cólera. Carlota quase conseguira amargurar-lhe a alma. No México, certos facciosos haviam-se apoderado da sua ideia, tornando-a ridícula. Tinham invadido uma das igrejas da cidade, derrubado todas as imagens sagradas e posto no lugar delas os grotescos Judas de papelão que inundam o México nos dias da Páscoa. Isto, é claro, provocara grande escândalo. Cipriano, por seu lado, de cada vez que se ausentava por algum tempo, voltava a ser o inevitável general mexicano, fascinado pela oportunidade de realizar as suas ambições pessoais e impor a sua própria vontade. E por fim vinha Kate, com a sua aversão pelas pessoas e o desejo de fazer explodir o mundo.
Ramon sentia o espírito deprimido, os membros pesavam-lhe como chumbo.
Só uma coisa um homem desejava realmente fazer no decurso de toda a sua vida: encontrar o caminho que o conduzirá ao seu Deus, à sua Estrela da Manhã, a fim de ali estar, sozinho; e, mais tarde, acolher na Estrela da Manhã o amigo da sua alma e regozijar-se com a mulher que percorreu com ele o longo caminho.
Contudo, descobrir esse caminho, até à essência resplandecente de todas as coisas, é deveras difícil e exige que o homem guarde para si toda a sua força e coragem. Se envereda por ele sozinho, é tremendo; mas, se todas as mãos o agarram para o reter, se as mãos do amor o prendem pelas entranhas e as do ódio o seguram pelos cabelos, então o avanço torna-se quase impossível.
"Tento realizar o impossível - dizia Ramon consigo mesmo.
- Mais valia gozar o meu quinhão dos prazeres desta vida e renunciar ao prazer supremo. Ou então ir para um deserto e seguir sozinho o caminho para a Estrela, onde encontraria enfim a minha solidão e o que em mim existe de sagrado. O caminho dos anacoretas e dos homens que se refugiaram nos ermos, a fim de orar. Porque a minha alma tem sede de consumação e estou farto dessa coisa a que chamam vida. Vivo, desejo partir desta região onde "eu sou".
Sentados lado a lado no banco, Ramon e Kate esqueciam-se um do outro, ela absorta no passado, com a sua repulsa por tudo isso, ele pensando no futuro e tentando reanimar-se.
A meio desse silêncio, Cipriano assomou à varanda, olhou em volta, e quase se sobressaltou ao ver lá em baixo as duas figuras sentadas no banco debaixo dos loendros, juntas e no entanto tão longe uma da outra no seu mutismo.
Ao ouvir-lhe os passos, Ramon olhou para cima.
- Já lá vamos! - exclamou, pondo-se de pé e relanceando a vista por Kate. - Não lhe apetece um refresco? Tepache ou sumo de laranja? O que não temos é gelo.
- Gostaria de sumo de laranja com água - respondeu ela. Ramon chamou pelo criado e deu-lhe uma ordem. Cipriano estava trajado de branco como o amigo, mas a sua faixa era vermelha e estriada de negro, como uma serpente.
- Ouvi-a chegar, e já pensava que tivesse partido... - disse ele, olhando para Kate com certo ar de censura e de ressentimento.
- Ainda não - replicou ela.
Ramon riu-se e deixou-se cair numa cadeira.
- A señora Caterina acha-nos a todos semelhantes a macacos; mas talvez as nossas macaquices sejam o que mais divertido tem para ver, e por isso acedeu a demorar-se aqui mais algum tempo.
Como verdadeiro índio, Cipriano sentiu-se ferido no seu orgulho, e os pêlos da mosca pareceram erguer-se-lhe no queixo, num assomo de dignidade.
- Não é justo apresentar as coisas desse modo - observou Kate, rindo.
Os olhos pretos de Cipriano fitaram-na com hostilidade. Pensou que ela se ria à sua custa: e de certo modo asssim era, no fundo, lá muito no fundo da sua alma de mulher. Ria-se dele interiormente o que nenhum homem podia suportar, e muito menos um de pele escura.
- Não - repetiu Kate. -É que há outra coisa além disso.
- Ah, tome cuidado - acudiu Don Ramon. - Um pouco de piedade oferece os seus perigos.
- Qual piedade! - retorquiu ela, corando. - Que têm hoje contra mim, para se mostrarem antipáticos?
- Os macacos acabam sempre por ser antipáticos aos espectadores - sentenciou Don Ramon.
A irlandesa ergueu a vista e notou-lhe no olhar um relâmpago
de cólera.
- Vim - declarou - para que me falassem do panteão mexicano. Julguei compreender que podia ser admitida...
- Ah, bela ideia! - volveu, rindo, o dono da casa. - Um exemplar raro de mona que pretende fazer parte do jardim zoológico de Ramon. Vai ser excelente chamariz. Já houve lindas deusas no panteão asteca, posso-lhe eu afirmar.
- Continua a ser antipático!
- Ora, ora, señora mia. Falemos sinceramente. Todos somos macacos. Monos somos. Ihr seid ali Affen. Está a ver aquele bugio, o Cipriano. Teve a ideia simiesca de querer casar consigo. Aceite-o. O casamento não passa duma macaquice. Dê-lhe o sim. Deixá-la-á em liberdade quando estiverem saciados um do outro. É um general e um grande jefe. Se lhe agradar, a si, fá-la-á rainha-mona do México simiesco. E que podem fazer os macacos senão divertirem-se? Vamos! Embobemonos! Serei o sacerdote? Vamos! Vamos!
Saltou de súbito, com a violência de um vulcão, e desapareceu
correndo.
Cipriano olhou espantado para Kate, que empalidecera.
- Que lhe tinha dito? - inquiriu o general.
- Nada! - respondeu ela, pondo-se de pé. - É melhor ir-me
embora.
Chamaram por Juana. Alonso e Kate foram-se encaminhando
para o lago. Foi com certa dignidade ofendida que a irlandesa se sentou sob o toldo do barco. O sol estava furiosamente abrasador e o reflexo da água ofuscava-lhe a vista. Pôs então os óculos pretos, que lhe davam o ar de um monstro.
- Mucho calor, niña! Mucho calor! - repetia Juana, atrás
dela. A criada ingerira, evidentemente, bastante tepache.
Na água amarelada flutuavam jacintos aquáticos, com as folhas a fazer de velas. O lago estava cheio deles. As chuvas torrenciais tinham enchido o rio Lerma, arrastando consigo as terras marginais de Lírio e levando-as lentamente para toda a extensão do mar interior, onde se acumulavam ao longo da costa e acabavam por atravancar o rio Santiago, que tem a sua origem no lago.
Nesse dia Ramon escreveu o seu quarto hino, intitulado O que Quetzalcoatl Viu no México.
"Que estranhos rostos vejo no México! Brancos, amarelos, pretos, não são mexicanos! Donde vêm, e porquê?
Senhor, são estrangeiros, Não vêm de parte nenhuma, A ambição mantém-nos cá.
Que pretendem?
Pretendem ouro, a prata das montanhas, E o petróleo, o petróleo do litoral. Tiram o açúcar das longas canas, Apoderam-se do trigo dos planaltos, e do milho, E do café que cresce nas terras quentes, e até da borracha viscosa.
Constróem chaminés altas, que fumegam, E em edifícios enormes guardam as suas máquinas E fazem mover cabos de aço para baixo e para cima E as suas garras seguram miríades de fios.
E vós, mexicanos e peóns, que fazeis?
Trabalhamos com as suas máquinas, trabalhamos nos seus campos.
Eles dão-nos dinheiro feito de prata mexicana. São hábeis, esses homens.
Gostais deles, então?
Não gostamos, nem jamais gostaremos.
São medonhos, mas realizam coisas espantosas,
E a sua vontade é de ferro, como as máquinas.
Que havemos de fazer?
Vejo uns objectos escuros correndo através do campo.
São comboios, e camionetas, e automóveis. Que bom andar de comboio! diz o peón.
E diz também:
Que bom subir para uma camioneta e ser transportado por vinte
centavos!
Que bom passear nas grandes cidades, onde os carros deslizam
velozes e as luzes resplandecem!
Que bom seria recuperar tudo o que é nosso e se encontra em
poder dos estrangeiros!
Recuperar as nossas terras, o nosso dinheiro, o nosso petróleo, tornarmo-nos donos dos comboios, das fábricas e dos automóveis!
E divertirmo-nos com eles todo o tempo!
Que bom!
Oh, insensatos mexicanos e peóns!
Quem sois para possuirdes máquinas que não sabeis fabricar
mas apenas demolir?
Os que sabem criar é que são os senhores dessas máquinas.
Não vós, pobres idiotas.
Como atravessaram os mares do mundo os homens de rosto
branco ou amarelo?
Oh, insensatos, mexicanos e peóns de coração de argila!
Não fazeis outra coisa senão estar sentados a olhar, ou a beber aguardente e a discutir uns com os outros.
E depois acorreis como cães ao apelo dos senhores de face branca.
Oh, cães, oh, insensatos mexicanos e peóns! De coração liquefeito, joelhos vacilantes, De espírito inerte, incapazes de reagir, Para que servis senão para escravos?
Não mereceis um deus.
Olhai! O universo entrava nos seus dragões,
Os Dragões do Cosmos agitam-se despertados pela ira.
O dragão que dorme na alvura de neve do Setentrião
Move a cauda no seu sono; e o vento uiva nos penhascos em volta.
O espírito da morte glacial assobia aos ouvidos do mundo.
E eu digo-vos: não há mortos verdadeiramente mortos, nem sequer os vossos mortos.
Há mortos que dormem nas vagas da Estrela da Manhã e os seus membros repousam.
Há mortos que se amontoam no gelo do Norte, e tremem e batem os dentes.
E gritam de ódio.
Há mortos que rastejam nas entranhas ardentes da terra, e avivam a fornalha.
Há mortos postados debaixo das árvores e com os olhos de cinza espreitam as suas vítimas.
Há mortos que atacam o sol, como um enxame de moscas, para lhe sugar a vida.
Há mortos que estão sobre vós quando possuís a mulher que desposastes.
E se lhe insinuam no seio, e lutam à entrada dessa porta que abristes.
Rangem os dentes e odeiam aquele que ali penetrou para renascer da mulher.
Filhos de mortos vivos, de mortos que vivem e não repousam
Eu digo-vos: que a tristeza vos cubra. Morrereis todos.
E uma vez mortos não tereis repouso.
Não há mortos verdadeiramente mortos.
Depois de mortos vagueareis como cães
Procurando as imundícies da vida nas quelhas invisíveis do éter.
Os mortos que dominaram o fogo no fogo sobrevivem como salamandras.
Os mortos senhores da água são embalados nos mares cintilantes.
Os mortos das máquinas vão-se para longe, no movimento.
Os mortos que conquistaram a electricidade nela própria se tornam.
Mas os que nada venceram andam como cães sem dono nas ruas do Além
Procurando as imundícies da vida.
Quem domina as forças do mundo encontra nessas mesmas forças a sua casa da morte.
Mas vós que dominais, entre os dragões do Cosmos?
Há dragões de sol e de gelo, dragões de lua e de terra, dragões de águas salgadas, dragões de trovão.
Há o dragão cintilante de estrelas no espaço.
E no centro, como um olho que jamais pestaneja, o dragão da
Estrela da Manhã.
Conquistai! diz a Estrela. Transponde os dragões e vinde até
mim.
Mas porque sois inertes mandarei sobre vós os meus dragões.
Que vos esmagarão os ossos,
Que vos cuspirão em cima como a cães imundos.
E não encontrareis refúgio na morte.
Soltarei os dragões! O dragão branco do Norte,
Para que fustigue o ar com a sua cauda
E sobre vós sopre o seu hálito de gelo.
E direi ao dragão da fornalha central
Que retire dos vossos pés o seu calor, e eles adquirirão a frieza
da morte.
E direi ao dragão das águas que se volte contra vós
E espalhe a corrupção nos rios e nas chuvas.
Aguardo o dia final em que o dragão do trovão,
Sacudindo com raiva as redes de teia que sobre ele lançastes, trespassará os vossos ossos com agulhas eléctricas e vos coagulará o sangue com o seu veneno.
Esperai, esperai algum tempo! A pouco e pouco conhecereis
tudo o que vos digo."
Ramon envergou o traje citadino, fato preto, e foi em pessoa levar o hino ao tipógrafo. Antes de dobrarem a folha, estamparam em baixo o símbolo de Quetzalcoatl, a preto e vermelho, e o do dragão, em verde, negro e rubro.
Seis soldados das tropas de Cipriano levaram, de comboio, os maços de hinos: um para a capital, e os outros para Puebla e Jalapa, Torreon e Chihuahua, Sivaloa, Sonora, minas de Pachucha, Guanajuavo e região central. Cada soldado era portador duma centena de! folhetos, mas em cada terra havia um ou mais leitores de hinos designados especialmente para essa função, e alguns deles iam de aldeia em aldeia.
O povo tinha sede das coisas que ultrapassam o mundo dos homens. Estava farto das notícias dos jornais, farto de tudo o que se aprende com a educação. O espírito humano cansa-se da importunidade humana, dos factos humanos ou da invenção humana. Mesmo os que não se ocupavam dos hinos ansiavam por eles como os homens anseiam por se afogar em álcool e esquecer os aborrecimentos deste mundo.
Por toda a parte, em todas as cidades e aldeias se viam, à noite, chamazinhas a bruxulear, iluminando um círculo de homens que, de pé ou sentados, escutavam a voz surda do leitor.
Mais raramente, nalguma caza desviada, soava o rufo do tambor, parecendo sair do fundo dos séculos.
Distinguiam-se então dois homens de serapes brancas orladas de azul. Depois, todos entoavam os cânticos de Quetzalcoatl e, por vezes, dançavam numa roda, lentamente, martelando com os pés o ritmo antigo da América aborígene.
Porque as danças dos Astecas, dos Zapotecas e todas as raças de índios já submergidas são baseadas nesse passo pesado dos peles-vermelhas do Norte. Eles não o esquecem, jamais o esquecerão; está-lhes no sangue, e revivem-no com uma sensação de medo, alegria e alívio.
Por si mesmos, não se atreveriam a envolver-se no terrível encanto do passado. Mas nos cânticos e hinos de Quetzalcoatl falava uma voz nova, a voz e a autoridade dum amo e senhor, e embora fossem lentos em conceder a sua confiança, acolhiam a "velha novidade" com um misto de receio, prazer e consolação.
Os homens de Quetzalcoatl evitavam as feiras e as grandes aglomerações. Preferiam os locais sossegados.
Sentado no rebordo de uma fonte, um indivíduo de serape de barra azul começava a ler em voz alta. Isto bastava. Os transeuntes detinham-se a fim de o escutar. Ele lia até ao fim e depois declarava: "Terminei a leitura do quarto hino de Quetzalcoatl. Agora vou tornar a lê-lo."
Deste modo, por uma espécie de nota longínqua na voz e pela repetição lenta e monótona, aquilo ia-se infiltrando no espírito dos auditores.
Logo no princípio, produzia-se o escândalo dos Judas. Na Cidade do México, a Semana Santa parece ser consagrada ao traidor do Mestre. Por toda a parte se vêem bonecos quase de tamanho natural e de aparência grotesca. Em geral, representam o Judas sob o aspecto dum fazendeiro hispano-mexicano, com os seus bigodes acerados, barriga proeminente e calças cingidas à perna. O patrón tradicional. E sempre de faces rosadas e com o fato dos homens de raça branca; nunca o tipo moreno do indígena mexicano
Judas é a vítima e o herói da Semana Santa, tal como o esqueleto, o esqueleto a cavalo, é o ídolo da primeira semana de Novembro, por causa do Dia de Finados e o de Todos os Santos.
No Sábado Santo, cada qual pende o seu Judas na varanda da casa, pega lume ao cordel e de repente, no meio de gritos de alegria, rebenta a bomba escondida no corpo do boneco, que fica reduzido a migalhas. Toda a cidade ressoa com as explosões.
Produzira-se, pois, grande escândalo quando, numa igreja da Cidade do México, substituíram por esses Judas as imagens dos santos, e a Igreja começou a agitar-se.
No México, a Igreja deve agir com circunspecção porque não é popular e tem as unhas cortadas. Não é permitido tocarem os sinos mais de dez minutos. Os padres não têm licença para usarem fora do templo trajes eclesiásticos, além do hediondo casaco preto e volta branca dos pastores protestantes. Por isso aparecem o menos possível na rua e, por assim dizer, nunca nos locais mais concorridos.
Contudo, o sacerdote ainda conserva certa influência. São proibidas as procissões, mas não os sermões no púlpito nem os conselhos no confessionário. O presidente Montes não simpatizava com a Igreja e meditava na expulsão de todos os padres estrangeiros. O próprio arcebispo era italiano. Mas também era um lutador. Por sua ordem, todos os párocos proibiram os fiéis de escutar fosse o que fosse respeitante a Quetzalcoatl e recomendaram que não só rasgassem os folhetos que por acaso lhes viessem parar às mãos como impedissem a leitura dos hinos ou o entoar dos cânticos pagãos na sua paróquia.
No entanto Montes ordenara por seu turno à polícia e ao exército que protegessem os Homens de Quetzalcoatl - com essa protecção devida a todos os bons e leais cidadãos.
Não é em vão que o México é o México; contudo, já houvera sangue derramado de ambas as partes, e isso Ramon queria evitar, pois sentia que uma morte violenta se não apaga da alma dos homens com a facilidade com que desaparecem na lavagem as manchas de sangue no pavimento.
Eis porque, uma vez na cidade, pediu ao bispo de Oeste lhe concedesse uma entrevista, a ele e a Don Cipriano, e fixasse o local. O bispo, velho amigo e confessor de Carlota, conhecia bem Don Ramon. Respondeu que teria muito gosto em o receber e ao señor general no dia seguinte, se se dessem ao incómodo de ir a sua casa.
O prelado já não habitava o paço episcopal, que haviam transformado em edifício dos correios, mas possuía uma boa casa não longe da catedral e que lhe fora oferecida pelos fiéis.
Ramon e Cipriano encontraram o fanzino velho à sua espera numa biblioteca poeirenta e pouco interessante. Estava de sotaina preta, já muito usada, com botões de púrpura. Acolheu os visitantes com modos afáveis, e, embora o olhar revelasse desconfiança, representou bem o papel de velhote bonacheirão.
- Há quanto tempo o não vejo, Don Ramon! Como tem passado? Bem? Muito me alegra saber! - E batia no braço de Ramon como um tio afectuoso. - Grande honra em vê-lo nesta humilde casa, general! Ora façam favor de se sentar.
Instalaram-se em cadeiras de couro, na sala triste e poeirenta. O bispo contemplava com nervosismo os dedos magros e a bela ametista que num deles ostentava.
- Estou às vossas ordens, senhores - disse por fim, erguendo os olhos pequeninos e vivos. - Inteiramente à vossa disposição.
- Minha mulher encontra-se na cidade. Já lhe falou, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Já, meu filho.
-Nesse caso, monsenhor, deve estar ao facto das últimas novidades a meu respeito. com certeza Carlota disse tudo.
- Em parte, em parte! Na verdade, referiu-se a si, Don Ramon. Mas agora, graças a Deus, tem os filhos a seu lado para a distraírem. Regressaram à sua terra natal, e de boa saúde.
- Viu-os?
- Sim. Estimo-os muito, a ambos. São simpáticos e inteligentes como o pai, e, como ele, prometem ser de boa presença... Se lhe apetece fumar, general, não faça cerimónia.
Cipriano acendeu um cigarro. Aquele ambiente fazia-lhe lembrar a sua juventude e, embora divertido, sentia-se nervoso.
- Já sabe tudo o que pretendo fazer, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Tudo, não, meu filho, mas sei o bastante para não querer
mais informações. Ah! - suspirou o prelado. -É bem triste!
- Porque havemos de levar o caso para o lado da tristeza? No México somos índios na maioria. Os índios não compreendem o cristianismo, monsenhor, e a Igreja bem o sabe. O cristianismo é uma religião do espírito e necessita ser compreendido para ter alguma eficácia. Ora os índios são tão incapazes de o compreender como os coelhos dos montes.
- De acordo, meu filho. Mas podemos transmitir-lho. Os coelhos dos montes estão nas mãos de Deus.
- Não, é impossível. E, se não tiverem uma religião que os relacione com o universo, todos hão-de sucumbir. Só a religião lhes pode valer; de nada lhes servirá o socialismo, a instrução ou qualquer outra coisa.
- Diz muito bem, Don Ramon...
- Talvez os coelhos dos montes estejam nas mãos de Deus, monsenhor, mas estão à mercê dos homens. O mesmo sucede ao povo do México. Afunda-se cada vez mais em inércia, e a Igreja não consegue ajudá-lo porque não possui a chave que abre a alma mexicana.
- A alma mexicana não conhece a voz de Deus? - redarguiu
o bispo.'
- As ovelhas que apascenta devem conhecer a sua voz, monsenhor. Mas se for pregar às aves do lago, ou aos gamos da montanha, conhecê-la-ão? Deter-se-ão para a escutar?
- Quem sabe? Detiveram-se a escutar S. Francisco de Assis.
- Hoje é preciso falar aos mexicanos na sua própria linguagem, indicar-lhes a palavra que lhes abrirá a alma. Eu indico-a: Quetzalcoatl. Se estou em erro, que eu pereça! Mas não estou.
O bispo movia-se, inquieto. Não queria ouvir aquilo, não queria responder e nenhuma das coisas podia evitar.
- A sua Igreja é a Católica, monsenhor?
- Evidentemente.
- E a Igreja Católica significa igreja universal, igreja de todos?
- com certeza, meu filho.
- Então porque não a deixa ser realmente católica?... Porque chamá-la católica quando não é mais do que uma entre numerosas Igrejas e, ainda por cima, hostil a todas as outras? Porque não há-de ser a Igreja Católica verdadeiramente universal?
- É a Igreja Universal de Cristo, meu filho.
- Porque não também a Igreja Universal de Mafoma? No fim
de contas, Deus é só um, o mesmo para todos; os povos é que se exprimem em linguagem diferente e cada qual precisa de um profeta que lhe fale no seu idioma. A Igreja Universal de Cristo e Mafoma, de Buda, de Quetzalcoatl e de todos os outros... eis a verdadeira Igreja Católica, monsenhor!
- Fala de assuntos muito transcendentes! - observou o prelado, fazendo girar o seu anel.
- Não, qualquer pessoa entende! - replicou Ramon. - A
Igreja Católica é uma igreja de todas as religiões, um lar na terra para todos os profetas, uma árvore imensa sob a qual podem sentar-se e descansar todos os homens que reconhecem a vida mais elevada da alma. Não é assim, monsenhor?
- Meu filho, só conheço a Igreja de Cristo, apostólica e romana, de que sou humilde servo. Essas subtilezas de que me fala não as posso compreender.
- Venho pedir-lhe a paz, monsenhor. Não sou daqueles que
odeiam a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana, mas creio que ela não tem lugar no México. Quando não sinto o coração amargurado, ando cheio de gratidão por Cristo, Filho de Deus. A história dos Judas afligiu-me mais do que a si, monsenhor, assim como deveras me aflige sangue derramado.
- Não sou um inovador, meu filho, para provocar efusões de sangue.
- Oiça! vou retirar da igreja de Sayula as imagens de santos, com todo o respeito, e com todo o respeito as queimarei à beira do lago. Depois colocarei na igreja a imagem de Quetzalcoatl.
O bispo ergueu os olhos de súbito e, por uns momentos, ficou
sem dizer nada.
- Atreve-se a isso, Don Ramon? - replicou finalmente.
- Sim, e ninguém mo impedirá. Tenho a meu lado o general Viedma.
O prelado lançou um olhar furtivo a Cipriano.
- Certamente - confirmou este.
- Contudo, é ilegal - volveu o bispo, indignado.
- Que há de ilegal no México? - retorquiu Ramon. - Só é ilegal a fraqueza, e eu não serei fraco, monsenhor.
- Triste fortaleza! - comentou o velho, encolhendo os ombros.
Houve uma pausa.
- Venho pedir a paz - tornou Ramon. - Transmita ao arcebispo as minhas palavras; ele que diga aos cardeais e ao Papa que chegou o momento de haver uma Igreja para todos os homens. Que a árvore da Igreja estenda os seus ramos sobre toda a terra e abrigue à sua sombra os profetas que proclamam o seu conhecimento do Além.
- Considera-se um desses profetas, Don Ramon? - inquiriu
o bispo olhando-o cheio de compaixão.
- Considero-me. E falarei de Quetzalcoatl ao México e edificarei aqui o seu templo.
- Não. Conforme afirmou há pouco, invadirá os templos de Cristo e da Virgem Maria.
- Conhece as minhas intenções. Mas não quero contendas com a Igreja de Roma, nem derramamento de sangue, nem hostilidades... Não poderá compreender-me? Não deve a paz reinar entre os homens que se esforçam, cada qual por caminho diferente, por
atingir o mistério de Deus?
- Profanar de novo os altares! Introduzir ídolos nas igrejas, queimar a imagem de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, e querer paz? - exclamou o bispo, que nesse momento só aspirava a que o
deixassem.
- Sim, tudo isso, monsenhor.
- Que lhe posso dizer? É um homem bom, Don Ramon, dominado pela loucura do orgulho. Don Cipriano é um dos inúmeros generais mexicanos, e eu sou o velho bispo desta diocese, servo fiel da Santa Igreja, humilde filho do Santo Padre. Que posso fazer? Que posso responder? Leve-me para o cemitério e fuzile-me imediatamente, general!
- Não tenho essas ideias - replicou Cipriano.
- É como tudo isto acabará, com mortes - tornou o bispo.
- Mas porquê? - protestou Don Ramon. - Não é lógico o
que eu digo? Não me compreende?
- Meu filho, vivo da minha fé e dos deveres do sacerdócio, e o que eu compreendo é que se afasta para bem longe do caminho da Verdade.
- Adeus, monsenhor! - disse Ramon, pondo-se de pé bruscamente.
- Deus o acompanhe, meu filho - respondeu o prelado erguendo os dedos.
Cipriano fez tilintar as esporas e levou a mão ao punho da espada antes de se dirigir para a porta.
- Adiós, señor.
- Adiós, general - disse o bispo, dardejando-lhes um olhar de fúria que eles sentiram nas costas.
- O velho jesuíta não transmitirá aos outros o teu recado - comentou Cipriano quando iam a descer a escada. - O que ele quer é conservar o seu lugar e a sua influência... Já os conheço...
- Não sabia que os detestavas - retorquiu o amigo, rindo-se.
- Não vale a pena perderes mais fôlego com essa gente - disse Cipriano. - Segue o teu caminho e não te rales.
Foram a pé, atravessando o largo do edifício dos correios onde modernos escribas, sentados debaixo das arcadas, escreviam cartas à máquina para os analfabetos que esperavam, a troco dalguns centavos, ter as suas missivas em magnífico castelhano.
- Ouvi dizer - prosseguiu Cipriano - que os Cavaleiros de Cortez deram um banquete no decurso do qual juraram tirar a vida a ti e a mim. Mas parece-me que me assustariam mais os juramentos das damas católicas. Porque se um homem se detém para desabotoar as calças e urinar, os Cavaleiros de Cortez fogem a sete pés, julgando que lhes vão desfechar uma pistola. Por isso, não te preocupes nem tentes conciliar-te com eles. Se desconfiassem que os temes, tornar-se-iam insolentes. Mas seis soldados bastarão para meter na ordem toda essa escória.
Cipriano tinha aposentos no grande Palace da Plaza de Armas.
- Se me casar - disse ele, quando entravam no pátio, onde estavam soldados em posição de sentido -, se me casar arranjarei uma habitação na colónia. É mais recatado...
Cipriano, na cidade, chegava a ser cómico. Parecia inchado de orgulho e de autoridade arrogante quando ia a andar. Mas os seus olhos negros, luzindo por cima do nariz delgado e da barbicha de bode, não inspiravam riso. Dir-se-ia abrangerem tudo num relance. Tinha qualquer coisa de demoníaco, o general Viedma.

XVIII
Ramon falou com a mulher e os filhos na cidade, mas foi uma entrevista um tanto penosa. O mais velho dos rapazes sentia-se constrangido em presença do pai, enquanto o mais novo, Cipriano, que era delicado e bastante inteligente, mostrava o seu desagrado ao progenitor e assumia ares altivos.
- O papá sabe o que cantam por aí? - perguntou o pequeno.
- Não faço ideia - respondeu Ramon.
- Cantam... - O garoto hesitou e então, na sua voz clara e infantil, fez ouvir os seguintes versos com a música de La Cucaracha:
Don Ramon não fuma nem bebe, Dona Carlota bem o desejaria. Vai vestir-se com manto azul-celeste Que ele roubou à Virgem Maria.
- Não, isso não é verdade - disse Ramon, sorrindo. - O manto que eu uso tem uma serpente e um pássaro no meio. E ziguezagues pretos. E uma franja verde. Farias bem em ir comigo, para o ver.
- Não, papá, não vou.
- Porquê?
- Não quero meter-me nesse assunto que nos torna a todos ridículos.
- E não serás ridículo de fato à marinheiro e esse ar tão virtuoso? Mais valia que te vestisses de Menino Jesus.
- Oh, papá, essas coisas não se dizem!
- Serás obrigado a te confessares por ter mentido. Declaras que essas coisas não se dizem depois de mas ouvires dizer!
- Mas eu refiro-me às pessoas boas, às pessoas decentes.
- Isso! Agora chamas indecente a teu pai! Mais um pecado que terás de confessar.
O pequeno corou e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Seguiu-se um silêncio.
- Então vocês não querem ir a Jamiltepec? - perguntou Ramon aos filhos.
- Gostava de tomar banho no lago, e andar de barco - proferiu o mais velho lentamente. - Mas dizem que não pode ser.
- Porquê?
- Dizem que o pai se veste como os peóns - acrescentou o pequeno, a medo.
- É um traje bem bonito, mais do que o teu.
- E dizem também que o pai afirma ser o deus asteca Quetzalcoatl.
- Não, senhor. Só afirmo que o deus asteca vai voltar ao México.
- Mas isso não é verdade!
- Como é que sabes?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque nunca houve nenhum Quetzalcoatl, senão em ídolos.
- E as imagens dos santos?
- Isso é diferente. Os santos existiram, e estão no Céu.
- Pois Quetzalcoatl também está no Céu, e. encontrando-se lá, pode voltar à terra. Não me acreditas?
- Não, papá.
- Nesse caso, fica com a tua incredulidade - replicou o pai. rindo e levantando-se para se ir embora.
- Acho muito desagradável que façam cantigas ao papá e à mamã como fazem ao Pancho Villa - disse o filho mais novo. - É uma coisa que me dói.
- Fricciona com Vaporub o ponto dorido - redarguiu Ramon. - Uma fricção e isso passa.
- Como o papá é tão mau!
- E como tu és tão bom! Não é assim?
- Não sei. Só sei que o papá é mau.
- Oh! Oh! É isso que te ensinam no colégio?
- No próximo período vou mudar de nome - declarou Ciprianito. - Não quero usar mais o apelido Carrasco. Quando falarem do papá nos jornais hão-de se rir de nós.
- Oh! Oh! Eu é que me rio de ti neste momento, meu franganote! Que nome vais escolher então? Talvez Espina... Como sabes. Carrasco é uma planta brava dos mantagais de Espanha. Queres ser o espinhito do arbusto? Chama-te Espina. entonces, adiós, señor Espina Espinha!
- Adiós - respondeu o pequeno, rubro de cólera.
Ramon foi de automóvel até Sayula. Haviam aberto uma estrada, mas as chuvas tinham-na desnivelado, e o carro ia aos tombos, de cova em cova. A meio caminho jazia um camião de fundo para o ar.
Na planície deserta estagnavam já poças de água, e as flores cor-de-rosa e amarelas mostravam tufos de botões. Ao longe, as colinas tornavam-se numa massa verde opaca conforme as folhas revestiam as árvores e os arbustos invisíveis na distância. A terra renascia para a vida.
Chegado a Sayula, Ramon dirigiu-se a casa de Kate. Esta saíra, mas Concha correu a procurá-la na praia.
- Está cá Don Ramon! Está cá Don Ramon!
Kate regressou à pressa, com os sapatos cheios de areia. Achou Ramon fatigado, e sinistro naquele fato preto.
- Não o esperava - disse ela.
Empertigado na cadeira, de semblante sombrio, alisava sem cessar o bigode preto sobre os lábios cerrados.
- Viu alguém conhecido na cidade? - perguntou Kate.
- Don Cipriano, e minha mulher e meus filhos.
- Ah! Eles estão bem?
- De excelente saúde, creio eu. Kate riu-se, inesperadamente.
- Que ar tão zangado! Ainda é por causa dos macacos?
- Señora- disse Ramon. inclinando-se para a frente, de modo que uma melena lhe tombou para a testa - no reino dos monos não sei quem é príncipe, mas no dos loucos sou eu com certeza.
- Porquê?
E, como ele não respondesse, Kate ajuntou:
- Vale a pena ser príncipe, ainda que dos loucos. Ramon lançou-lhe um olhar furibundo, mas logo desatou a rir.
- Oh, señora mia! O nosso mal é querermos ser sempre bons.
- Sente-se arrependido?... - volveu Kate, em tom de gracejo.
- Sim, sou o rei dos loucos. Porque levantei essa história de Quetzalcoatl? Porquê? Serei capaz de me explicar?
- Porque lhe agrada, suponho.
Ramon reflectiu um instante, sem largar o bigode.
- Antes ser macaco do que idiota. E. contudo, oponho-me a que me considerem macaco. Carlota sim. pertence a essa raça, e os meus filhos não passam de macaquinhos vestidos à marinheiro. Eu sou um louco. E que diferença haverá entre um louco e um macaco?
- Quien sabe - disse Kate.
- Um quer ser bom, outro tem a certeza de que é bom. é o que me torna louco, a vontade de ser bom. Eles, tão seguros de serem bons, fazem de si mesmos uns macacos. Oh, quem me dera que o mundo explodisse como uma bomba!
- Não explodirá - asseverou Kate.
- Pois não...
Ramon endireitou-se na cadeira e mudou de assunto.
- Então, señora Caterina, sempre se decide a casar com o nosso general?
- Eu... eu... não sei - balbuciou Kate. - Mas não creio...
- Não lhe é simpático?
- é, sim, e acho até que irradia certo encanto. Mas não devemos arriscar-nos ao matrimónio com uma pessoa doutra raça, por muito simpática que seja, não lhe parece?
- Ah! - suspirou Ramon. - Só vale a pena o casamento quando haja verdadeira fusão, seja onde for.
- E eu sinto que não haverá - disse Kate. - Tenho a impressão que ele só pretende de mim uma coisa; e eu, por meu lado, talvez também só uma coisa pretenda dele. Mas nunca nos encontraríamos em verdadeira comunhão. Ele viria para obter o que deseja de mim, e eu teria de consentir... Ora não é apenas isso que eu quero. Quero um homem que me encontre a meio caminho...
Don Ramon pensou um pouco e em seguidameneou a cabeça.
- Tem razão. Mas nesse assunto nunca se sabe ao certo onde é o meio caminho... Uma mulher que deseja simplesmente que a tomem para depois se agarrar ao homem não passa de um parasita. E um homem que quer simplesmente tomar, sem nada conceder, é uma ave de rapina.
- Receio que seja esse o caso de Don Cipriano - murmurou Kate.
- É possível - disse Ramon. - Comigo ele não se mostra assim, mas talvez o fosse se não nos encontrássemos... a meio caminho... de uma espécie de crença física que está bem no centro do nosso ser e que reconhecemos um no outro. Não poderá isso existir entre a señora e ele?
- Desconfio que Don Cipriano não vê a necessidade de semelhante coisa, tratando-se de uma mulher. As mulheres têm pouca importância.
Ramon ficou silencioso.
- Talvez - disse por fim. - com uma mulher, o homem deseja sempre abandonar-se, quando, pelo contrário, devia agarrar-se à sua crença mais profunda... Porque se a crença de cada um coincide, se é física, só ali se podem encontrar. De nada serve um homem violentar uma mulher ou uma mulher violentar um homem. É pecado. O pecado existe, e está na origem. Homens e mulheres continuam a violentar-se mutuamente. Por muito absurdo que pareça não sou eu que desejo apoderar-me de Carlota, ela é que quereria possuir-me. Chega a ser estranho, quase vergonhoso, mas é a verdade. Ah, se conseguíssemos manter-nos fiéis à nossa alma e encontrar-nos nessa região serena! Não tenho grande consideração por mim mesmo. A mulher e eu falhámos um perante o outro, e é um malogro bem triste para guardar no íntimo do nosso ser.
Kate olhou-o com espanto e certo medo. Porquê aquela confissão? Estaria ele prestes a amá-la? Ramon fitava-a com uma expressão dolorosa nos olhos sombreados pelo desgosto, cólera e vexame.
- Lastimo bastante que Carlota e eu nos não entendamos - continuou ele. - Quem sou eu. para me atrever a falar de Quetzalcoatl quando tenho o coração roído pela ira que sinto contra a mulher que desposei e contra os filhos que ela me deu? Nunca as nossas almas se encontraram. A princípio amava-a, e ela gostava que eu a desejasse. Mas passado tempo não se é capaz de continuar a querer com ardor a posse da mesma mulher. Sente-se uma espécie de repulsa. O amor foi então da sua parte, e quiz conquistar-me à viva força. Depois cansou-se também. O pequeno mais velho é realmente meu filho, concebido pelo meu desejo, e o mais novo é filho dela concebido pelo seu desejo. Veja como tudo isto é lamentável! E agora, jamais poderemos encontrar-nos. Carlota volta-se para o seu Deus. e eu volto-me para o meu Quetzalcoatl. que ao menos não pode ser violentado.
- E estou certa que não fará dele um violador.
- Quem sabe? Se eu errar será nesse sentido. Mas, señora, Quetzalcoatl não é para mim senão o símbolo de uma perfeição acessível ao homem. O universo é um ninho de dragões em cujo centro está um mistério insondável da vida. Pouco importa que eu chame a esse mistério Estrela da Manhã. A existência do homem não se realiza no abstracto. O homem é uma criatura que, polegada a polegada, arranca a sua própria criação do antro dos dragões do Cosmos. Ou então perde-a a pouco e pouco, desfeita em migalhas. E estamos a perdê-la... Temos de a reconstituir, homens e mulheres, senão pereceremos todos.
- Mas... necessita duma mulher na sua vida? - perguntou Kate.
- Aspiro ao apaziguamento sensual do meu ser, señora. Não sou daqueles que acreditam na renúncia dos desejos do sangue. Sou homem sempre pronto a tomar esposas e concubinas, tal a sede de apaziguamento. Mas agora sei que é para mim inútil arrebatar uma mulher com o meu desejo ardente, por muito que ela me ame e queira despertar-me o desejo. Vinho, amor e canções... tudo acabou. Já nada disso existe.
- No entanto precisa de uma mulher a seu lado.
- Ah, señora! Se eu pudesse confiar em mim e confiar nela! Já não sou um adolescente, a quem se desculpam todos os erros. Tenho quarenta e dois anos e tenho o meu derradeiro... ou melhor, o meu primeiro grande esforço de homem. Espero morrer antes de cometer um erro crasso.
- E porque havia de o cometer?
- É muito fácil enganar-me. Muito fácil, por um lado, tornar-me arrogante; muito fácil, por outro, renunciar a mim próprio e fazer da minha vida uma espécie de sacrifício.
- Mas porque não procede como diz? Porque não se apoia no mais profundo do seu ser e não comunga com uma mulher, aí onde as duas almas coincidam no seu desejo mais forte? Nem sempre há-de haver aquele horrível desajustamento a que chama violentação.
- Que mulher podia eu possuir carnalmente sem me submeter à lenta degradação de violentar e ser violentado? Se casasse com uma espanhola ou com uma mexicana, abandonar-se-ia a mim para que eu a dominasse. Casando com uma anglo-saxónica ou uma branca de raça nórdica, ela quereria dominar-me com a sua vontade de todos os antigos demónios brancos. As primeiras são parasitas da nossa alma e sentimos fastio. As outras são vampiros. E entre as duas espécies não há nada.
- com certeza que existem mulheres diferentes dessas.
- Nesse caso, mostre-mas. São todas autoritárias, Carlotas ou... Caterinas. Estou certo de que dominou Joachim até à sua morte. Acredito que ele se prestasse a isso mais até do que a senhora desejaria. Não é apenas uma questão de sexo. Reside na vontade: vítimas e dominadores. As classes elevadas aspiram a ser vítimas das classes inferiores ou passarem por tal. Os políticos tentam tornar os povos em vítimas uns dos outros. A Igreja procura transformar as pessoas em seres humildes e torturados que só desejam ser vítimas. Ah, a terra é um lugar bem triste!
- Mas. se deseja ser diferente - disse Kate - há-de haver algumas outras pessoas como o senhor.
- É possível - replicou ele, acalmando-se. - É possível. Gostaria de me reprimir melhor. Reprimir-me, concentrar-me em mim próprio, onde eu esteja em paz. Na minha Estrela da Manhã. E agora já me envergonho de ter dito o que disse, señora Caterina.
- Porquê? - exclamou ela. E, pela primeira vez, veio-lhe à face o rubor da pena e da humilhação.
Ele notou-o logo e, por um momento, descansou a mão sobre a de Kate.
- Não, afinal não me envergonho. Estou aliviado.
Ao contacto dessa mão, a irlandesa corou ainda mais e ficou silenciosa. Ramon levantou-se rápido para se ir embora, de novo ansioso de se reencontrar na sua alma.
- Domingo vai plaza, de manhã, quando ouvir o tambor? perguntou Ramon.
- Para quê?
- Verá.
E, assim falando, desapareceu.
Havia muitos soldados na aldeia. Quando foi ao correio, Kate encontrou os homens de farda de algodão dispersos pelas imediações do quartel. Eram cerca de cinquenta, não como esses outros de chapéu desabado e grande estatura, mas pequeninos, vivos, sólidos como Cipriano: falavam baixo um estranho dialecto índio. Raras vezes se viam nas ruas, porque em geral se escondiam.
Os habitantes tinham ordem de recolher às dez horas da noite. Kate ouvia as patrulhas passar a cavalo, através da escuridão.
Dir-se-ia envolver o país uma atmosfera de excitação e mistério. O cura da paróquia, que era gordo e roçava pelos cinquenta anos, pregara no sábado à noite um sermão memorável contra Ramon e Quetzalcoatl, proibindo a menção deste nome execrando e predizendo castigos aos paroquianos que lessem os hinos ou os escutassem.
É claro que foi atacado quando saía da igreja e precisou de uma escolta de soldados para regressar a casa, onde chegou a salvamento. Mas a criada, uma velha que o servia há muito, ouviu as mulheres dizerem que, da próxima vez que o padre abrisse a boca para falar contra Quetzalcoatl. receberia umas poucas de facadas no abdómen. Deste modo ficou ele de portas adentro, fazendo-se substituir pelo coadjutor.
Quase toda a gente que chegava de barco, aos sábados, ia ouvir missa à igreja de Sayula, cujas portas ficavam abertas todo o dia. Os homens que iam para o lago ou que vinham de lá tiravam sempre o chapéu, num gesto humilde, quando passavam defronte do templo. Havia constantemente pessoas ajoelhadas ao longo das naves ou entre as bancadas, os homens muito direitos, com o chapéu no chão. a seu lado, as mulheres encapuchadas nos rebozos escuros, rezando numa espécie de abandono voluptuoso, de cotovelos apoiados ao banco.
No sábado à noite, a cintilação avermelhada de muitos círios iluminava o interior sombrio da igreja. Via-se como que um mar agitado de cabeças escuras, uma confusão de gente que vinha da praia e se dirigia ao mercado. Silêncio mas não bem de adoração, antes de pasmo diante daquele cintilar de luzes.
Não, não era veneração, talvez entorpecimento e abandono da alma flutuando sem governo. E era também para eles um luxo após a semana de sujidade e desleixo nas suas aldeias sórdidas de cabanas de colmo. Isso, porém, irritava Kate.
Domingo de manhã havia a primeira missa ao nascer do Sol, outra às sete horas, outra às nove e mais uma às onze. A orquestra de violinos e violoncelos executava velhas músicas de dança. Desde muito cedo que se notava uma compacta massa de peóns e mulheres, todos ajoelhados; bruxuleavam chamas fumegantes que espalhavam o cheiro da cera, elevavam-se rolos de incenso juntamente com o coro das vozes masculinas, sólidas, poderosas, impressionantes.
E os fiéis retiravam-se com uma sensação de torpor que, logo à entrada da feira, se transformava em ódio, esse velho ódio insondável, latente no coração do índio e sempre pronto a despertar quando o agita uma satisfação voluptuosa.
O interior da igreja parecia uma coisa morta, como aliás, todas as igrejas mexicanas, até a sumptuosa catedral de Puebla. Os templos italianos são quase todos no mesmo estilo, e no entanto paira neles uma sombra serena, a paz de antiga e misteriosa santidade, o silêncio. Mas tal não sucede no México. Exteriormente as igrejas possuem imponência. Por dentro, são vazias de sons e no entanto o silêncio não impera; simples e contudo vulgares, nuas, áridas, mais nuas do que uma escola ou uma sala de concertos deserta, mais desprovidas de mistério do que qualquer desses edifícios. Tem-se uma impressão de argamassa, de estuque, de lambuzadelas de cal azul ou cinzenta e de dourados superficiais com o odioso aspecto de purpurina e não de ouro puro. Enfim, nenhuma doçura, nenhum recolhimento.
Eis o interior da igreja de Sayula. onde Kate já entrara muitas vezes. Por fora era encantadora e enquadrava-se bem na paisagem, com as suas duas torres brancas elevando-se acima dos salgueiros verdes. Mas por dentro não havia nada senão o estuque branco com estrias azuis e cinzentas. As janelas, numerosas e altas, deixavam penetrar a luz como numa escola. Num dos transeptos estava Jesus sulcado de sangue, e à sua frente a Virgem Maria, vestida de cetim, olhava com ar admirado sob a redoma de vidro. Viam-se ali flores de papel, flores de pano e rendas prateadas que pareciam de zinco.
No entanto, a igreja era muito limpa, e muito frequentada.
Acabado o mês de Maria, retiraram as grinaldas de papel branco e azul, assim como os vasos de palmeiras das naves laterais. Deixaram de aparecer, à tarde, as rapariguinhas vestidas de branco, coroadas de flores e com ramalhetes na mão. É extraordinário como as antigas e enternecedoras cerimónias da Europa assumem no México aspecto vulgaríssimo e se transformam numa espécie de espectáculo popular.
No dia de Corpo de Deus a igreja encheu-se até à porta, e houve uma pequena procissão de crianças dentro do templo - visto a lei proibir desfiles religiosos na rua. Tudo aquilo constituía fiesta, um pretexto para não fazerem nada, para justificarem o seu desejo de inacção. A eterna indolência mexicana.
Decorriam as semanas, a multidão na igreja era sempre densa, mas essa mesma multidão, ao sair do templo, rodeava os Homens de Quetzalcoatl.
Durou isto até ao dia em que os oradores mais socialistas misturaram aos seus discursos um pouco de azedume anticlerical. Então ospeóns começaram a murmurar: Será El señor um gringo e a Santíssima uma gringuita?
O caso provocou admoestações da parte dos sacerdotes e por fim as ameaças do famoso sermão. A guerra estava declarada.
Toda a gente esperava ansiosa pelo sábado seguinte. Chegou o dia, a igreja conservou-se fechada, e fechada se manteve todo o domingo.
O povo na feira parecia consternado, já não sabia para onde ir. Mas à consternação juntava-se certa curiosidade. Talvez acontecesse algo de sensacional...
Já noutros tempos haviam sucedido coisas... No decurso das revoluções, muitas igrejas mexicanas tinham sido transformadas em escolas, salas de concerto ou cinemas. Vários conventos serviam agora de quartel. O mundo está sempre a modificar-se.
No sábado seguinte ao encerramento da igreja, havia uma grande feira, de excepcional importância. Viam-se ali homens a vender escudelas de pau envernizadas, mulheres com loiça de barro vidrado. E, como de costume, índios de sentinela às suas ameixas, abóboras ou mangas, amontoadas em pirâmide ao longo dos passeios.
Um mercado à cunha, e as portas da igreja fechadas, e os sinos calados. Até o relógio parara. É certo que parava de vez em quando, mas nunca estivera tanto tempo sem funcionar. Parecia uma imobilidade definitiva.
Nem missa, nem confissão, nem rolos de incenso... Só murmúrios sufocados, olhares furtivos e receosos. À beira do passeio, os vendedores pareciam ídolos astecas, hirtos, agachados no chão e com os joelhos quase ao nível dos ombros. Por toda a parte se viam soldados, em grupos de dois e de três. E señoras e señoritas, todas de mantilha preta, acorriam a ouvir missa, embora já soubessem que a igreja estava fechada.
Mas era domingo e alguma coisa ia acontecer nessa manhã.
Cerca das dez horas apareceu um barco e dele saltaram para terra vários homens de fato branco, dos quais um trazia o tambor. Abriram caminho entre a multidão que estacionava debaixo das árvores e dirigiram-se para a igreja.
Em frente das portas sempre fechadas, despiram o casaco e formaram círculo, todos de torso nu e faixa azul e preta a apertar-lhes a cintura.
Soou o tambor, em pancadas fortes, bem ritmadas, enquanto os homens se mantinham agrupados no adro, numa roda estranha de cabeças negras e lustrosas, espáduas bronzeadas e calças brancas. Continuou o toque de tambor, sempre igual, a que depois se juntou o som ácido de uma flauta de barro.
Todos os que se encontravam no largo da feira correram para a igreja. Mas estavam ali soldados para impedir que penetrassem no adro ou saltassem os muros baixos. De modo que a multidão ficou debaixo dos salgueiros e das pimenteiras, ou então ao sol, a presenciar os acontecimentos. Na sua maioria eram homens de grandes chapéus, mas também ali se encontravam pessoas da cidade, e algumas mulheres, entre as quais Kate, munida de sombrinha azul-escura. Diante de si tinha a massa compacta de gente, comprimindo-se em silêncio na sombra escassa das árvores; atrás, estacionavam automóveis e caminhetas.
Calou-se o tambor, calou-se a flauta. Ouvia-se o marulho do lago, tilintar de copos, vozes de motoristas que bebiam numa taberna e, dominando tudo, o silêncio ofegante da multidão. Vários soldados distribuíram folhetos pela assistência e uma voz máscula, bem timbrada, começou a cantar, acompanhada em surdina pelo tambor.
Durante o cântico, chegou outro barco, e os soldados afastaram a turba para deixar passar Ramon. na sua serape branca de orla azul e franjas vermelhas. Seguia-o um rapaz magro, vestido de sotaina, e mais seis homens de serapes escuras com a bordadura azul de Quetzalcoatl. Esta estranha procissão avançou através do povo até às grades do adro.
Quando eles se aproximavam, abriu-se o círculo de homens que rodeavam o tambor, desdobrando-se em forma de crescente. Ramon conservou-se de pé por trás do tambor e os seis indivíduos de serapes escuras separaram-se e foram postar-se a cada ponta do crescente. O mancebo magro vestido de sotaina permaneceu sozinho, à frente, encarando a multidão. Como ele erguesse uma das mãos,
Ramon tirou o chapéu e logo se descobriram todos os homens presentes.
Voltou-se o clérigo, dirigiu-se a Ramon e entregou-lhe a chave da igreja. Depois, esperou.
Ramon enfiou a chave em todas as portas do templo, escancarando-as. Subitamente ajoelharam os homens que estavam no primeiro plano: tinham visto aparecer o interior da igreja como uma caverna sombria, ao fundo da qual tremulava o clarão dos círios: dir-se-ia haver surgido a Sarça Ardente no meio das trevas misteriosas.
O resto do povo, estremecendo, caiu de joelhos. Só ficou de pé, aqui e ali, um operário, um motorista, um empregado do caminho de ferro.
De súbito, no fundo da sombra que todos os olhos perscrutavam, uma rajada apagou a Sarça Ardente e só ficou um ou outro círio aceso envolto num abismo de trevas.
Da multidão elevaram-se exclamações e murmúrios.
Então o tambor rufou baixinho e dois homens começaram a cantar um hino com possante voz de tenor que parecia entreabrir a terra. Eram indivíduos que Ramon e os seus partidários tinham encontrado em tabernas da Cidade do México. Os "tempos maus" haviam-nos reduzido a cantar nos antros da pior espécie, e agora elevavam a voz com toda a raiva demoníaca da sua desesperação.
O moço de sotaina entrou na igreja. Ramon seguiu-o e atrás dele foram todos os homens do semicírculo, em passos vagarosos. O sino badalou no silêncio de morte e calou-se daí a instantes.
Nas profundezas da nave soou um tambor, lento, distante e terrífico. com sobrepeliz ornada de rendas, o sacerdote apareceu no limiar. Trazia uma cruz, e hesitou antes de avançar para a claridade do exterior. O povo ajoelhado juntou as mãos.
Em direcção à porta tremulavam círios, vindos do fundo da igreja escura. Don Ramon emergiu da sombra, de torso nu e serape ao ombro, segurando a ponta dianteira do andor que sustinha a urna de vidro onde repousava Cristo morto - essa imagem de aspecto tão humano, que se venera na Semana Santa. Atrás, um homem trigueiro e alto, igualmente despido da cintura para cima, trazia ao ombro a outra extremidade do andor. A turba gemeu e benzeu-se. O Cristo morto parecia realmente morto quando transpôs a porta do templo. As mulheres e os homens ajoelhados ergueram o rosto, abriram os braços e assim ficaram em indizível êxtase, em que havia medo e súplica.
A seguir ao féretro vinha uma lenta procissão com os restantes andores. As estátuas avançavam oscilantes, transportadas por aqueles indivíduos de pele de bronze e, sob a luz crua do sol, chegaram por fim ao caminho que conduz ao lago.
- Puríssima! Puríssima! Não nos abandones! - gritavam as mulheres.
E alguns homens, tomados de estranha angústia, clamavam por seu turno:
- Senhor! Senhor! Senhor!
Agora, debaixo das árvores, o cortejo entrou na areia rugosa e surgiu em plena claridade, à beira de água. Corria uma brisa ligeira. As serapes dobradas baloiçavam nas espáduas luzentes, as imagens vacilavam levemente.
Junto do murinho da margem estava uma barca de vela, em comunicação com a terra através duma ponte de tábuas. Dois homens de branco, com as calças arregaçadas, ladearam o moço clérigo, cujas mangas largas ondulavam como bandeiras: ajudaram-no a embarcar, e ele, encaminhando-se para a proa, descansou ali a base da cruz. A barca era descoberta, sem nenhum toldo, mas tinham colocado lá -várias mesas para nelas poisar as imagens.
Ramon subiu devagar para bordo. Depositaram o caixão de vidro no seu suporte e os dois homens limparam a testa húmida de suor. A fim de se proteger do sol, Ramon cobriu-se com o manto e o chapéu. O barco baloiçava imperceptivelmente, embalado pelo vento de oeste. Batido do sol, o lago parecia uma coisa irreal.
Uma após outra, as imagens levantaram-se à popa, avultando de encontro ao azul do céu, e depois baixaram-se quando as puseram sobre as mesas. Era uma estranha colecção de estátuas de mau gosto e contudo essas efígies inspiravam certa compaixão, vendo-as assim agrupadas para a sua última viagem. Ao lado de cada uma viam-se os respectivos portadores, de chapéu e manta, segurando com mão firme nas varas do andor. Havia uma fila de soldados, na praia, e três gasolinas com militares esperavam junto da barca. a gente acorrera toda à beira de água, e muitas canoas de reinos, como peixes curiosos, rondavam a embarcação principal, sem todavia se atreverem a aproximar-se muito. Então, de pernas nuas, alguns marinheiros impeliram a barca para longe da margem, e aquela começou lentamente a mover-se nos baixios, afastando-se da praia e da multidão.
Dois outros marinheiros, rápidos, içaram a vela branca e quadrada. Depressa, mas pesada, ela subiu no ar e enfunou-se ao vento. No meio estava pintado o emblema de Quetzalcoatl, a serpente em círculo e a águia azul, no centro, em campo de oiro. À distância, parecia um olho enorme.
O vento soprava de oeste, porém a barca ia com rumo a sudeste, direita ao ilhéu dos Escorpiões, que se elevava como um vago montículo acima do lago ofuscante. Panda, a vela dir-se-ia olhar para trás com aquele seu grande olho arregalado, para a aldeia, para os salgueiros verdes, para a igreja branca e vazia e para a gente aglomerada na margem. Os gasolinas tornejavam a barca vagarosa, e as canoas seguiam-na de longe.
Na praia, o povo dispersava-se. Uns sentavam-se na areia, observando e esperando com uma paciência quase indiferente. A barca fez-se mais pequena, menos visível, e os barquinhos que a circundavam já não eram mais que pontos negros. A reverberação do lago fatigava os olhos.
Debaixo das árvores, em expectativa silenciosa, uma mulher comprou uma melancia, abriu-a batendo-a numa pedra e distribuiu pelos filhos os bocados cor-de-rosa. Uns homens polvilhavam de sal os pepinos que acabavam de comprar. A igreja estava completamente às escuras, pois não tinha outra luz senão a que entrava pela porta; e absolutamente vazia, pois fora despojada das suas imagens. Era já meio-dia e o calor apertava. A barca nesse momento costeava o ilhéu, onde vivia uma família de pescadores índios. Tinham algumas cabras e um pedaço de terreno cultivado de feijões e milho. À parte isso, era tudo rocha, com silvados'e lacraus.
Precedida pelas canoas, a barca contornou a costa para entrar na única enseada, onde já homens cor de bronze se banhavam entre os rochedos.
Arriaram a vela, a embarcação imobilizou-se e os seus tripulantes, saltando para a água, apearam as imagens e puseram-nas sobre as rochas, onde ficaram à espera dos seus portadores.
Formou-se de novo o cortejo e este, seguindo pela orla do ilhéu, passou diante das cabanas e alcançou os rochedos da outra margem, ocultos pelo matagal.
No lado fronteiro a Sayula era tudo pedra nua, árida e penosa para a marcha. À beira da água, numa depressão da rocha, tinham colocado pedregulhos de cada banda e, sobre eles, varões de ferro dispostos de modo a formar uma espécie de grelha. Por baixo estava uma pilha de lenha, pronta a arder. Perto, via-se outro molho suplementar.
Em cima daqueles varões pousaram as imagens - grupo patético contra o qual se apoiava a cruz. Era meio-dia, o calor e a luz envolviam tudo, mas já no horizonte se amontoavam nuvens.
Para além da reverberação da água, a aldeia parecia uma miragem, com as suas árvores e as torres brancas da igreja.
Os homens que tinham vindo nas canoas apinhavam-se nos rochedos do pequeno anfiteatro. Em silêncio, Ramon inflamou um punhado de caruma com o auxílio duma lente - e logo se elevaram chamazinhas como serpentes minúsculas. Então, com esse feixe de cobras rubras, pegou lume à pirâmide de lenha cuidadosamente disposta sob a grelha de ferro.
Crepitavam os ramos, e, entre baforadas de fumo branco, erguiam-se línguas de fogo no ar fremente. Num sopro de vento, as chamas altearam-se e a madeira resinosa começou a bramir. O vidro do féretro, estalando, parecia soltar gemidos de dor Por entre os varões de ferro. o lume enegrecia as imagens, consumia-lhes num ápice as túnicas e mantos de cetim.
Toda a gente se distanciou daquela árvore de lume que despedia centelhas até ao céu.
Só Ramon ficou onde estava, olhando em silêncio - até nada restar senão um braseiro e uma inextricável confusão de ferros meio fundidos.
Então, dum rochedo próximo, subiram foguetes no ar e explodiram com fragor, derramando uma chuva de oiro.
As pessoas aglomeradas na praia tinham visto o penacho de fumo e o clarão da fogueira. Ao ouvirem as detonações dos foguetes, olharam de novo, exclamando, aterradas:
- Señor! Señor! La Purísima! La Santísima!
Chamas, fumo e foguetes dissiparam-se como por milagre, deixando a atmosfera sempre límpida. com uma pá, deitaram as brasas numa cova funda.
A sudoeste, por cima das montanhas áridas, elevava-se uma nuvem semelhante a uma cauda branca - a cauda dum esquilo enorme que acabasse de desaparecer por trás dos píncaros. Foi-se desenrolando, desenrolando em direcção ao Sol, e quando a barca içou a vela para regressar à aldeia, já uma leve sombra pairava sobre o lago.
Só na extremidade baixa da ilha dos Escorpiões o ar quente ainda fremia.
Ramon voltou numa das lanchas de motor. A pouco e pouco o céu cobria-se de nuvens, preparando-se para chuva e trovoada. Não podendo atravessar o lago. a barca navegava para Tuliapan. As canoas apressavam-se em direcção à praia.
Chegaram antes de se desencadear o vento. Assim que desembarcou, Ramon foi fechar as portas da igreja.
A multidão dispersou-se sob as rajadas. Agitavam-se os rebolos, rodopiavam folhas, erguia-se poeira. Sayula estava sem Deus e, no íntimo, eles sentiam-se contentes.

CONTINUA

XVII
Na opinião geral, o presidente da República tinha utilizado a sua vassoura nova com excesso de zelo, e essa limpeza provocou uma rebelião. Não muito importante, mas o suficiente para justificar banditismo, roubos e terror nas aldeias.
Ramon estava decidido a manter-se afastado da política, mas já os Cavaleiros de Cortez e certo partido "negro" se preparavam para o atacar. Do alto do púlpito, os sacerdotes começavam a acusá-lo de Anticristo devorado pela ambição. Contudo, ele pouca coisa tinha a recear, com Cipriano a seu lado e, por consequência, todo o exército de Oeste.
Mas era possível que Cipriano fosse mandado para longe, a fim de defender o Governo.
- Acima de tudo - declarou Ramon - empenho-me em estar afastado da política. Não quero que me empurrem para este ou aquele partido. Se é para me deixar contaminar, mais vale abandonar tudo. A Igreja impele-me para os socialistas, e os socialistas trair-me-ão na primeira oportunidade. Não se trata de mim. Trata-se do espírito novo. O meio mais seguro de o aniquilar (e pode-se aniquilá-lo como a tudo o que vive) é associá-lo a um partido político, seja qual for.
- Porque não vais falar com o bispo? - lembrou Cipriano. Eu vou também. Para alguma coisa há-de servir ser comandante da divisão de Oeste.
- Sim - disse Ramon lentamente. - Hei-de avistar-me com Jiménez. Já tinha pensado nisso. Tenciono recorrer a tudo o que está ao meu alcance. Montes estará a nosso lado porque detesta a Igreja e não admite nada do que lhe cheire a ditadura exercida do exterior. Vê a possibilidade de uma Igreja Nacional. Não me interessam Igrejas nacionais, mas acho que temos de falar linguagem do povo. Sabes que os padres proibiram a leitura dos hinos
- E que te importa? - volveu Cipriano. - Hoje em dia só há perversidade neste povo. Agora é que eles hão-de ler.
- Provavelmente. Mas farei vista grossa. Deixarei expandir-se a minha nova "lenda", como a classificam, desenvolver-se enquanto a terra está húmida... Contudo, precisamos de vigiar todos os rebentos que apresentem interesse.
- Ramon! - exclamou Cipriano. - Se conseguisses transformar todo o México no país de Quetzalcoatl?
- Eu serei o "primeiro homem de Quetzalcoatl". Não sei mais nada.
- E não te importarás com o resto do mundo?
Ramon sorriu. Já ele vislumbrava nos olhos de Cipriano a chama da Guerra Santa.
- Gostaria de ser - disse ele - um dos iniciados da terra. E um dos iniciadores. Cada país com o seu Salvador, ou um Salvador para cada povo. Os primeiros de cada povo formariam aristocracia natural do mundo. Precisamos de uma aristocracia, mas natural, não artificial. De certa maneira o mundo necessita de ser organicamente unido: ser o mundo do homem. Unidade concreta e não abstracta. Ligas, alianças, programas internacionais. Ah, Cipriano, isto é como um flagelo internacional. As folhas de uma grande árvore não podem pender nos ramos de outra árvore, por maior que seja. As raças da terra são como árvores, não devem misturar-se nem confundir-se. Têm de estar no seu terreno, como árvores que são. Ou então sobrepõem-se, enovelam-se as raízes e a luta será mortífera. Só as flores é que podem unir-se, e as flores de cada raça constituem a sua aristocracia natural. Que o espírito do mundo voe de flor em flor, qual um colibri, e fertilize a planta. Apenas os aristocratas naturais conseguem elevar-se acima da sua nação, mas não além da sua raça. Apenas os aristocratas do mundo podem ser internacionais, cosmopolitas, cósmicos. Sempre assim foi. Os povos não são capazes disso, como as folhas da mangueira não são capazes de se prenderem aos troncos do pinheiro. Assim, se eu quero que os mexicanos decorem o nome de Quetzalcoatl é porque desejo que falem a linguagem do seu próprio sangue. Pudesse o mundo teutónico tornar ao espírito de Thor e de Wotan e da árvore Igdrasil! Pudessem os povos druídicos compreender que o seu mistério reside no visco e que eles mesmos são os Thuatas de Danaan, vivos embora submersos! E que um novo Hermes voltasse ao Mediterrâneo, um novo Astarot à Tunísia! E Mitra regressasse à Pérsia, e Brama, poderoso, à índia, e à China o mais velho dos dragões! Então eu, Cipriano, eu, primeiro homem de Quetzalcoatl, contigo, primeiro homem de Huitzilopochtli, e talvez tua mulher, primeira dama de Itzpapalotl, talvez nós lográssemos conhecer, com a nossa alma pura, os outros grandes aristocratas do mundo, o primeiro homem de Wotan, a primeira mulher de Freya, o primeiro senhor de Hermes e a primeira dama de Astarte, o mais bem-nascido de Brama e o filho do Magno Dragão. Digo-te eu, Cipriano, que a terra inteira rejubilaria quando os primeiros senhores do Ocidente encontrassem os primeiros senhores do Sul e do Oriente, no Vale do Espírito. Ah, a terra tem vales do Espírito, que não são cidades de comércio e indústria. O mistério é um só, porém os homens podem vê-lo diferentemente. O cardo, o hibisco, a genciana são flores da árvore da vida, mas vivem separadas no mundo. E assim deve ser. Eu sou hibisco, tu és a flor da iúca, a tua Caterina é o junquilho bravo, e a minha Carlota é um amor-perfeito branco. Quatro apenas, nós quatro, e contudo formamos um ramalhete curioso. Os homens e as mulheres não são mercadoria manufacturada, para servirem de objecto de trocas; mas a árvore da vida é una, sabemo-lo quando as almas desabrocham na floração final. Não nos trocamos, não o queremos. Todavia, quando a nossa alma se abre na floração final então as flores comungam entre si o mesmo mistério, para além do conhecimento das folhas, dos ramos e das raízes. Algo de transcendente.
Mas não é isto que importa por enquanto. O que tenho a fazer agora é lutar para abrir caminho no México, e tu deves tentar o mesmo. Façamos isso.
Ramon dirigiu-se para as oficinas onde os seus homens trabalhavam, sob a sua chefia, e Cipriano absorveu-se na correspondência e planos militares que tinha entre mãos.
Ambos foram interrompidos pelo barulho de uma lancha motorizada que entrava na baía. Nela vinha Kate, escoltada por Juana.
Ao seu encontro partiu Ramon, vestido de branco, com o chapeirão onde estava embutido o olho de turquesa de Quetzalcoatl e de faixa azul e preta. Kate trajava também de branco, chapéu verde e xaile de seda amarelo-pálido.
- Estou contente por voltar aqui - declarou ela, estendendo-lhe a mão. Jamiltepec tornou-se para mim uma espécie de Meca. Todo o meu ser aspira a este sítio.
- Então porque não vem mais vezes? Ser-me-ia muito agradável vê-la sempre por cá.
- Receio ser intrusa.
- De modo nenhum. E, se quisesse, podia ser-nos muito útil.
- Hum... Não acredito em grandes empreendimentos, que me assustam. Será talvez porque, no fundo, antipatizo com as massas, seja lá onde for. Temo que isto implique desdém pelos povos. Não gosto que me toquem nem gosto de lhes tocar. Como havia eu de fazer parte de uma espécie de... Exército de Salvação?
Don Ramon soltou uma risada.
- Comigo dá-se o mesmo. Desprezo as grandes massas populares. Mas aqui é o meu próprio povo.
- Eu, desde pequena, fui assim. Conta-se que tinha quatro anos... os meus pais ofereceram um jantar de cerimónia... e disseram à criada que me trouxesse à sala, para dar as boas-noites. Suponho que foram todos muito amáveis comigo, mas eu apenas respondi: "São macacos! São macacos!" Imagine o êxito desta cena! E o pior é que sinto agora o mesmo que sentia em criança. Para mim as pessoas não passam de macacos a fazerem as suas habilidades.
- Até as que lhe são mais chegadas?
Kate hesitou, mas acabou por confessar contra vontade:
- Sim, creio que sim. Os meus dois maridos, mesmo o segundo, pareciam-me um tanto... simiescos, tão obstinados nos seus pequenos ridículos. Quando Joachim estava a morrer, senti por ele uma espécie de repulsa. Perguntava a mim mesma: "A que macaco enfermiço consagrei tanto do meu ser?" Não acha isto horrível da minha parte?
- Acho. Mas julgo que todos experimentamos esse sentimento, de vez em quando... ou que experimentaríamos se o ousássemos. São fases do espírito.
- Chego a pensar que os seres humanos só me inspiram este sentimento. Gosto da terra, do céu, e do mistério do além. Mas as
: pessoas... considero-as a todas macacos.
Ramon percebeu que ela era sincera.
- Puras monas! - murmurou em espanhol. - Y lo que hacen, puras monerias. - Então acrescentou: - Tem filhos?
- Tenho, do meu primeiro marido.
- E eles... Monas y no mas?
- Não! - respondeu Kate, de testa franzida, como se descontente consigo mesma. - Só em parte.
- Isso é mau - volveu Ramon, meneando a cabeça. - Mas, afinal, que são para mim os meus filhos senão macaquinhos? E a mãe... a mãe... Ah, não, señora Caterina! Isto não serve de nada. Devemos ser capazes de nos libertarmos dos outros. Se me chego muito para uma roseira, os espinhos ferem-me. Temos de ver as pessoas como se vêem as árvores duma paisagem. De certa maneira, a humanidade domina-a, domina as suas faculdades conscientes. Por isso a detesta e deseja escapar-se-lhe. Mas só existe uma evasão possível: alcançar, para além dos outros, uma vida maior.
- É o que eu faço! - exclamou Kate. - Nunca fiz outra coisa. Quando vivia com o Joachim, absolutamente só numa casita isolada, sem criados e sem me dar com ninguém, tive sempre a sensação dessa vida maior e era livre e feliz.
- E ele? Era livre e feliz também?
- Era-o, na realidade. Mas aí é que intervinham as tais macaqueações de que lhe falei. Não se permitia ser feliz. Insistia em convidar gente e em criar assim motivos de tortura.
- Então porque não se deixou estar inteiramente só na sua casinha isolada, sem ele? Porque viaja e convive com as pessoas?
Vexada, Kate não respondeu. Sabia que não podia viver sozinha. Acabrunhava-a o vazio à sua volta. Precisava de um homem a seu lado para preencher esse vazio e mantê-la em equilíbrio. No entanto, mesmo quando o tinha presente, no fundo desprezava-o como se despreza um cão ou um gato. Entre ela e a humanidade havia esse laço subtil de antagonismo irredutível.
Era por natureza generosa e deixava aos outros a sua liberdade. Os servos afeiçoavam-se-lhe e todos que travavam conhecimento com ela a achavam encantadora e a admiravam. Pressentia-se nessa mulher um fluxo de vida ardente e certa alegria de viver.
Entretanto, sob isso tudo, jazia a aversão irreprimível, quase repugnância pelos outros. Sim era mais do que desagrado, chegava a ser repulsa. Fosse o que fosse, aquele sentimento dominava-a sempre ao fim de algum tempo. A mãe, o pai, as irmãs, o primeiro marido, até as crianças, que ela adorava, e Joachim, a quem dedicara tanto amor, mesmo estes, após curto convívio, principiavam a enchê-la de repulsa e Kate aspirava a ficar de novo só, e esquecida. Mas não seria um esquecimento definitivo, a menos que ela o provocasse de vez.
Assim era Kate. Até mergulhar no torvo esquecimento da morte, jamais conseguiria fugir a essa profunda, insondável repugnância pelos seres humanos. Os contactos breves podiam ser agradáveis e até emocionantes; mas os prolongados ou muito íntimos, originavam sempre rápidos ou demorados impulsos de violenta repulsa.
Kate e Ramon haviam-se sentado num banco do jardim, sob um loendro repleto de flores brancas. O rosto dele estava impassível, sereno. Nessa calma, um tanto constrangido, Ramon compreendia o estado em que se achava Kate e comparava-o com o seu, achando-o semelhante. O puro contacto pessoal, a simples aproximação dos seres enchia-o, também a ele, de aversão. Carlota aborrecia-o, Kate
aborrecia-o igualmente. Às vezes, o próprio Cipriano o entediava.
Isto, porém, acontecia quando se encontravam no campo meramente pessoal. Eis o inconveniente: sentia-se maçado deles e com
asco de si próprio.
Tinha de os encontrar noutro plano, onde o contacto fosse diferente, intangível, distante, sem intimidade. O seu espírito estava bem longe dali. A alma não deve ligar-se a ninguém, mas voltar-se para Deus, seja de que maneira for.
com Cipriano sentia-se mais em segurança. Quando, depois duma ausência, ambos se abraçavam, faziam-no sem renunciar à sua respectiva solidão. Como a Estrela da Manhã.
As mulheres, porém, não admitiam isto. Queriam intimidade, e a intimidade engendra o tédio. Carlota desejava estar perpétua e intimamente identificada com Ramon; por isso o odiava e a tudo o que ela supunha afastá-lo dessa comunhão. Era um horror, e ele tinha consciência do facto.
Os homens e as mulheres deviam saber que jamais se podem unir absolutamente neste mundo. No beijo mais ardente, na carícia mais terna, há um pequeno abismo que, por muito estreito que seja, não deixa de existir. Têm de se inclinar perante esse fosso e submeter-se reverentes. Mesmo que uma esposa represente para o marido mais do que a sua própria vida, ele é ele e ela é ela, e o abismo nunca se há-de fechar. Qualquer tentativa para o fazer constitui violação e um pecado contra o Espírito Santo.
O que adquirimos do Além, adquirimo-lo sós. O decisivo "eu sou" vem de muito longe, da Estrela da Manhã. Quanto ao resto, o que em nós é parte do poderoso Cosmos, podemos compartilhá-lo com o ente amado. Mas a alma, jamais.
Ramon debatera-se desesperadamente antes de descobrir o caminho para se evadir de si mesmo e se transportar à própria essência do ser e da existência a que ele chamava Estrela da Manhã - visto que no mundo é necessário dar um nome a tudo. Evadir-se, através da alma, atingir a Estrela da Manhã e ali, somente ali, encontrar o seu semelhante...
No entanto, ainda conhecia o malogro, e o malogro contínuo. Perante Carlota, falhava em absoluto. Esta reivindicava-o, e ele opunha-lhe uma resistência surda. Quando estava de tronco nu, com a mulher presente, nunca deixava de ter consciência dessa nudez, precisamente porque ela parecia considerá-lo propriedade sua.
Se os homens se encontram na essência de todas as coisas, não estão nus nem vestidos; na transfiguração acham-se completos, ninguém os vê em pormenor. A perfeita força final tem também o poder da inocência.
Sentado no banco ao lado de Kate, Ramon sentia-se dominado pela tristeza. O seu terceiro hino era cheio de sarcasmo e de cólera. Carlota quase conseguira amargurar-lhe a alma. No México, certos facciosos haviam-se apoderado da sua ideia, tornando-a ridícula. Tinham invadido uma das igrejas da cidade, derrubado todas as imagens sagradas e posto no lugar delas os grotescos Judas de papelão que inundam o México nos dias da Páscoa. Isto, é claro, provocara grande escândalo. Cipriano, por seu lado, de cada vez que se ausentava por algum tempo, voltava a ser o inevitável general mexicano, fascinado pela oportunidade de realizar as suas ambições pessoais e impor a sua própria vontade. E por fim vinha Kate, com a sua aversão pelas pessoas e o desejo de fazer explodir o mundo.
Ramon sentia o espírito deprimido, os membros pesavam-lhe como chumbo.
Só uma coisa um homem desejava realmente fazer no decurso de toda a sua vida: encontrar o caminho que o conduzirá ao seu Deus, à sua Estrela da Manhã, a fim de ali estar, sozinho; e, mais tarde, acolher na Estrela da Manhã o amigo da sua alma e regozijar-se com a mulher que percorreu com ele o longo caminho.
Contudo, descobrir esse caminho, até à essência resplandecente de todas as coisas, é deveras difícil e exige que o homem guarde para si toda a sua força e coragem. Se envereda por ele sozinho, é tremendo; mas, se todas as mãos o agarram para o reter, se as mãos do amor o prendem pelas entranhas e as do ódio o seguram pelos cabelos, então o avanço torna-se quase impossível.
"Tento realizar o impossível - dizia Ramon consigo mesmo.
- Mais valia gozar o meu quinhão dos prazeres desta vida e renunciar ao prazer supremo. Ou então ir para um deserto e seguir sozinho o caminho para a Estrela, onde encontraria enfim a minha solidão e o que em mim existe de sagrado. O caminho dos anacoretas e dos homens que se refugiaram nos ermos, a fim de orar. Porque a minha alma tem sede de consumação e estou farto dessa coisa a que chamam vida. Vivo, desejo partir desta região onde "eu sou".
Sentados lado a lado no banco, Ramon e Kate esqueciam-se um do outro, ela absorta no passado, com a sua repulsa por tudo isso, ele pensando no futuro e tentando reanimar-se.
A meio desse silêncio, Cipriano assomou à varanda, olhou em volta, e quase se sobressaltou ao ver lá em baixo as duas figuras sentadas no banco debaixo dos loendros, juntas e no entanto tão longe uma da outra no seu mutismo.
Ao ouvir-lhe os passos, Ramon olhou para cima.
- Já lá vamos! - exclamou, pondo-se de pé e relanceando a vista por Kate. - Não lhe apetece um refresco? Tepache ou sumo de laranja? O que não temos é gelo.
- Gostaria de sumo de laranja com água - respondeu ela. Ramon chamou pelo criado e deu-lhe uma ordem. Cipriano estava trajado de branco como o amigo, mas a sua faixa era vermelha e estriada de negro, como uma serpente.
- Ouvi-a chegar, e já pensava que tivesse partido... - disse ele, olhando para Kate com certo ar de censura e de ressentimento.
- Ainda não - replicou ela.
Ramon riu-se e deixou-se cair numa cadeira.
- A señora Caterina acha-nos a todos semelhantes a macacos; mas talvez as nossas macaquices sejam o que mais divertido tem para ver, e por isso acedeu a demorar-se aqui mais algum tempo.
Como verdadeiro índio, Cipriano sentiu-se ferido no seu orgulho, e os pêlos da mosca pareceram erguer-se-lhe no queixo, num assomo de dignidade.
- Não é justo apresentar as coisas desse modo - observou Kate, rindo.
Os olhos pretos de Cipriano fitaram-na com hostilidade. Pensou que ela se ria à sua custa: e de certo modo asssim era, no fundo, lá muito no fundo da sua alma de mulher. Ria-se dele interiormente o que nenhum homem podia suportar, e muito menos um de pele escura.
- Não - repetiu Kate. -É que há outra coisa além disso.
- Ah, tome cuidado - acudiu Don Ramon. - Um pouco de piedade oferece os seus perigos.
- Qual piedade! - retorquiu ela, corando. - Que têm hoje contra mim, para se mostrarem antipáticos?
- Os macacos acabam sempre por ser antipáticos aos espectadores - sentenciou Don Ramon.
A irlandesa ergueu a vista e notou-lhe no olhar um relâmpago
de cólera.
- Vim - declarou - para que me falassem do panteão mexicano. Julguei compreender que podia ser admitida...
- Ah, bela ideia! - volveu, rindo, o dono da casa. - Um exemplar raro de mona que pretende fazer parte do jardim zoológico de Ramon. Vai ser excelente chamariz. Já houve lindas deusas no panteão asteca, posso-lhe eu afirmar.
- Continua a ser antipático!
- Ora, ora, señora mia. Falemos sinceramente. Todos somos macacos. Monos somos. Ihr seid ali Affen. Está a ver aquele bugio, o Cipriano. Teve a ideia simiesca de querer casar consigo. Aceite-o. O casamento não passa duma macaquice. Dê-lhe o sim. Deixá-la-á em liberdade quando estiverem saciados um do outro. É um general e um grande jefe. Se lhe agradar, a si, fá-la-á rainha-mona do México simiesco. E que podem fazer os macacos senão divertirem-se? Vamos! Embobemonos! Serei o sacerdote? Vamos! Vamos!
Saltou de súbito, com a violência de um vulcão, e desapareceu
correndo.
Cipriano olhou espantado para Kate, que empalidecera.
- Que lhe tinha dito? - inquiriu o general.
- Nada! - respondeu ela, pondo-se de pé. - É melhor ir-me
embora.
Chamaram por Juana. Alonso e Kate foram-se encaminhando
para o lago. Foi com certa dignidade ofendida que a irlandesa se sentou sob o toldo do barco. O sol estava furiosamente abrasador e o reflexo da água ofuscava-lhe a vista. Pôs então os óculos pretos, que lhe davam o ar de um monstro.
- Mucho calor, niña! Mucho calor! - repetia Juana, atrás
dela. A criada ingerira, evidentemente, bastante tepache.
Na água amarelada flutuavam jacintos aquáticos, com as folhas a fazer de velas. O lago estava cheio deles. As chuvas torrenciais tinham enchido o rio Lerma, arrastando consigo as terras marginais de Lírio e levando-as lentamente para toda a extensão do mar interior, onde se acumulavam ao longo da costa e acabavam por atravancar o rio Santiago, que tem a sua origem no lago.
Nesse dia Ramon escreveu o seu quarto hino, intitulado O que Quetzalcoatl Viu no México.
"Que estranhos rostos vejo no México! Brancos, amarelos, pretos, não são mexicanos! Donde vêm, e porquê?
Senhor, são estrangeiros, Não vêm de parte nenhuma, A ambição mantém-nos cá.
Que pretendem?
Pretendem ouro, a prata das montanhas, E o petróleo, o petróleo do litoral. Tiram o açúcar das longas canas, Apoderam-se do trigo dos planaltos, e do milho, E do café que cresce nas terras quentes, e até da borracha viscosa.
Constróem chaminés altas, que fumegam, E em edifícios enormes guardam as suas máquinas E fazem mover cabos de aço para baixo e para cima E as suas garras seguram miríades de fios.
E vós, mexicanos e peóns, que fazeis?
Trabalhamos com as suas máquinas, trabalhamos nos seus campos.
Eles dão-nos dinheiro feito de prata mexicana. São hábeis, esses homens.
Gostais deles, então?
Não gostamos, nem jamais gostaremos.
São medonhos, mas realizam coisas espantosas,
E a sua vontade é de ferro, como as máquinas.
Que havemos de fazer?
Vejo uns objectos escuros correndo através do campo.
São comboios, e camionetas, e automóveis. Que bom andar de comboio! diz o peón.
E diz também:
Que bom subir para uma camioneta e ser transportado por vinte
centavos!
Que bom passear nas grandes cidades, onde os carros deslizam
velozes e as luzes resplandecem!
Que bom seria recuperar tudo o que é nosso e se encontra em
poder dos estrangeiros!
Recuperar as nossas terras, o nosso dinheiro, o nosso petróleo, tornarmo-nos donos dos comboios, das fábricas e dos automóveis!
E divertirmo-nos com eles todo o tempo!
Que bom!
Oh, insensatos mexicanos e peóns!
Quem sois para possuirdes máquinas que não sabeis fabricar
mas apenas demolir?
Os que sabem criar é que são os senhores dessas máquinas.
Não vós, pobres idiotas.
Como atravessaram os mares do mundo os homens de rosto
branco ou amarelo?
Oh, insensatos, mexicanos e peóns de coração de argila!
Não fazeis outra coisa senão estar sentados a olhar, ou a beber aguardente e a discutir uns com os outros.
E depois acorreis como cães ao apelo dos senhores de face branca.
Oh, cães, oh, insensatos mexicanos e peóns! De coração liquefeito, joelhos vacilantes, De espírito inerte, incapazes de reagir, Para que servis senão para escravos?
Não mereceis um deus.
Olhai! O universo entrava nos seus dragões,
Os Dragões do Cosmos agitam-se despertados pela ira.
O dragão que dorme na alvura de neve do Setentrião
Move a cauda no seu sono; e o vento uiva nos penhascos em volta.
O espírito da morte glacial assobia aos ouvidos do mundo.
E eu digo-vos: não há mortos verdadeiramente mortos, nem sequer os vossos mortos.
Há mortos que dormem nas vagas da Estrela da Manhã e os seus membros repousam.
Há mortos que se amontoam no gelo do Norte, e tremem e batem os dentes.
E gritam de ódio.
Há mortos que rastejam nas entranhas ardentes da terra, e avivam a fornalha.
Há mortos postados debaixo das árvores e com os olhos de cinza espreitam as suas vítimas.
Há mortos que atacam o sol, como um enxame de moscas, para lhe sugar a vida.
Há mortos que estão sobre vós quando possuís a mulher que desposastes.
E se lhe insinuam no seio, e lutam à entrada dessa porta que abristes.
Rangem os dentes e odeiam aquele que ali penetrou para renascer da mulher.
Filhos de mortos vivos, de mortos que vivem e não repousam
Eu digo-vos: que a tristeza vos cubra. Morrereis todos.
E uma vez mortos não tereis repouso.
Não há mortos verdadeiramente mortos.
Depois de mortos vagueareis como cães
Procurando as imundícies da vida nas quelhas invisíveis do éter.
Os mortos que dominaram o fogo no fogo sobrevivem como salamandras.
Os mortos senhores da água são embalados nos mares cintilantes.
Os mortos das máquinas vão-se para longe, no movimento.
Os mortos que conquistaram a electricidade nela própria se tornam.
Mas os que nada venceram andam como cães sem dono nas ruas do Além
Procurando as imundícies da vida.
Quem domina as forças do mundo encontra nessas mesmas forças a sua casa da morte.
Mas vós que dominais, entre os dragões do Cosmos?
Há dragões de sol e de gelo, dragões de lua e de terra, dragões de águas salgadas, dragões de trovão.
Há o dragão cintilante de estrelas no espaço.
E no centro, como um olho que jamais pestaneja, o dragão da
Estrela da Manhã.
Conquistai! diz a Estrela. Transponde os dragões e vinde até
mim.
Mas porque sois inertes mandarei sobre vós os meus dragões.
Que vos esmagarão os ossos,
Que vos cuspirão em cima como a cães imundos.
E não encontrareis refúgio na morte.
Soltarei os dragões! O dragão branco do Norte,
Para que fustigue o ar com a sua cauda
E sobre vós sopre o seu hálito de gelo.
E direi ao dragão da fornalha central
Que retire dos vossos pés o seu calor, e eles adquirirão a frieza
da morte.
E direi ao dragão das águas que se volte contra vós
E espalhe a corrupção nos rios e nas chuvas.
Aguardo o dia final em que o dragão do trovão,
Sacudindo com raiva as redes de teia que sobre ele lançastes, trespassará os vossos ossos com agulhas eléctricas e vos coagulará o sangue com o seu veneno.
Esperai, esperai algum tempo! A pouco e pouco conhecereis
tudo o que vos digo."
Ramon envergou o traje citadino, fato preto, e foi em pessoa levar o hino ao tipógrafo. Antes de dobrarem a folha, estamparam em baixo o símbolo de Quetzalcoatl, a preto e vermelho, e o do dragão, em verde, negro e rubro.
Seis soldados das tropas de Cipriano levaram, de comboio, os maços de hinos: um para a capital, e os outros para Puebla e Jalapa, Torreon e Chihuahua, Sivaloa, Sonora, minas de Pachucha, Guanajuavo e região central. Cada soldado era portador duma centena de! folhetos, mas em cada terra havia um ou mais leitores de hinos designados especialmente para essa função, e alguns deles iam de aldeia em aldeia.
O povo tinha sede das coisas que ultrapassam o mundo dos homens. Estava farto das notícias dos jornais, farto de tudo o que se aprende com a educação. O espírito humano cansa-se da importunidade humana, dos factos humanos ou da invenção humana. Mesmo os que não se ocupavam dos hinos ansiavam por eles como os homens anseiam por se afogar em álcool e esquecer os aborrecimentos deste mundo.
Por toda a parte, em todas as cidades e aldeias se viam, à noite, chamazinhas a bruxulear, iluminando um círculo de homens que, de pé ou sentados, escutavam a voz surda do leitor.
Mais raramente, nalguma caza desviada, soava o rufo do tambor, parecendo sair do fundo dos séculos.
Distinguiam-se então dois homens de serapes brancas orladas de azul. Depois, todos entoavam os cânticos de Quetzalcoatl e, por vezes, dançavam numa roda, lentamente, martelando com os pés o ritmo antigo da América aborígene.
Porque as danças dos Astecas, dos Zapotecas e todas as raças de índios já submergidas são baseadas nesse passo pesado dos peles-vermelhas do Norte. Eles não o esquecem, jamais o esquecerão; está-lhes no sangue, e revivem-no com uma sensação de medo, alegria e alívio.
Por si mesmos, não se atreveriam a envolver-se no terrível encanto do passado. Mas nos cânticos e hinos de Quetzalcoatl falava uma voz nova, a voz e a autoridade dum amo e senhor, e embora fossem lentos em conceder a sua confiança, acolhiam a "velha novidade" com um misto de receio, prazer e consolação.
Os homens de Quetzalcoatl evitavam as feiras e as grandes aglomerações. Preferiam os locais sossegados.
Sentado no rebordo de uma fonte, um indivíduo de serape de barra azul começava a ler em voz alta. Isto bastava. Os transeuntes detinham-se a fim de o escutar. Ele lia até ao fim e depois declarava: "Terminei a leitura do quarto hino de Quetzalcoatl. Agora vou tornar a lê-lo."
Deste modo, por uma espécie de nota longínqua na voz e pela repetição lenta e monótona, aquilo ia-se infiltrando no espírito dos auditores.
Logo no princípio, produzia-se o escândalo dos Judas. Na Cidade do México, a Semana Santa parece ser consagrada ao traidor do Mestre. Por toda a parte se vêem bonecos quase de tamanho natural e de aparência grotesca. Em geral, representam o Judas sob o aspecto dum fazendeiro hispano-mexicano, com os seus bigodes acerados, barriga proeminente e calças cingidas à perna. O patrón tradicional. E sempre de faces rosadas e com o fato dos homens de raça branca; nunca o tipo moreno do indígena mexicano
Judas é a vítima e o herói da Semana Santa, tal como o esqueleto, o esqueleto a cavalo, é o ídolo da primeira semana de Novembro, por causa do Dia de Finados e o de Todos os Santos.
No Sábado Santo, cada qual pende o seu Judas na varanda da casa, pega lume ao cordel e de repente, no meio de gritos de alegria, rebenta a bomba escondida no corpo do boneco, que fica reduzido a migalhas. Toda a cidade ressoa com as explosões.
Produzira-se, pois, grande escândalo quando, numa igreja da Cidade do México, substituíram por esses Judas as imagens dos santos, e a Igreja começou a agitar-se.
No México, a Igreja deve agir com circunspecção porque não é popular e tem as unhas cortadas. Não é permitido tocarem os sinos mais de dez minutos. Os padres não têm licença para usarem fora do templo trajes eclesiásticos, além do hediondo casaco preto e volta branca dos pastores protestantes. Por isso aparecem o menos possível na rua e, por assim dizer, nunca nos locais mais concorridos.
Contudo, o sacerdote ainda conserva certa influência. São proibidas as procissões, mas não os sermões no púlpito nem os conselhos no confessionário. O presidente Montes não simpatizava com a Igreja e meditava na expulsão de todos os padres estrangeiros. O próprio arcebispo era italiano. Mas também era um lutador. Por sua ordem, todos os párocos proibiram os fiéis de escutar fosse o que fosse respeitante a Quetzalcoatl e recomendaram que não só rasgassem os folhetos que por acaso lhes viessem parar às mãos como impedissem a leitura dos hinos ou o entoar dos cânticos pagãos na sua paróquia.
No entanto Montes ordenara por seu turno à polícia e ao exército que protegessem os Homens de Quetzalcoatl - com essa protecção devida a todos os bons e leais cidadãos.
Não é em vão que o México é o México; contudo, já houvera sangue derramado de ambas as partes, e isso Ramon queria evitar, pois sentia que uma morte violenta se não apaga da alma dos homens com a facilidade com que desaparecem na lavagem as manchas de sangue no pavimento.
Eis porque, uma vez na cidade, pediu ao bispo de Oeste lhe concedesse uma entrevista, a ele e a Don Cipriano, e fixasse o local. O bispo, velho amigo e confessor de Carlota, conhecia bem Don Ramon. Respondeu que teria muito gosto em o receber e ao señor general no dia seguinte, se se dessem ao incómodo de ir a sua casa.
O prelado já não habitava o paço episcopal, que haviam transformado em edifício dos correios, mas possuía uma boa casa não longe da catedral e que lhe fora oferecida pelos fiéis.
Ramon e Cipriano encontraram o fanzino velho à sua espera numa biblioteca poeirenta e pouco interessante. Estava de sotaina preta, já muito usada, com botões de púrpura. Acolheu os visitantes com modos afáveis, e, embora o olhar revelasse desconfiança, representou bem o papel de velhote bonacheirão.
- Há quanto tempo o não vejo, Don Ramon! Como tem passado? Bem? Muito me alegra saber! - E batia no braço de Ramon como um tio afectuoso. - Grande honra em vê-lo nesta humilde casa, general! Ora façam favor de se sentar.
Instalaram-se em cadeiras de couro, na sala triste e poeirenta. O bispo contemplava com nervosismo os dedos magros e a bela ametista que num deles ostentava.
- Estou às vossas ordens, senhores - disse por fim, erguendo os olhos pequeninos e vivos. - Inteiramente à vossa disposição.
- Minha mulher encontra-se na cidade. Já lhe falou, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Já, meu filho.
-Nesse caso, monsenhor, deve estar ao facto das últimas novidades a meu respeito. com certeza Carlota disse tudo.
- Em parte, em parte! Na verdade, referiu-se a si, Don Ramon. Mas agora, graças a Deus, tem os filhos a seu lado para a distraírem. Regressaram à sua terra natal, e de boa saúde.
- Viu-os?
- Sim. Estimo-os muito, a ambos. São simpáticos e inteligentes como o pai, e, como ele, prometem ser de boa presença... Se lhe apetece fumar, general, não faça cerimónia.
Cipriano acendeu um cigarro. Aquele ambiente fazia-lhe lembrar a sua juventude e, embora divertido, sentia-se nervoso.
- Já sabe tudo o que pretendo fazer, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Tudo, não, meu filho, mas sei o bastante para não querer
mais informações. Ah! - suspirou o prelado. -É bem triste!
- Porque havemos de levar o caso para o lado da tristeza? No México somos índios na maioria. Os índios não compreendem o cristianismo, monsenhor, e a Igreja bem o sabe. O cristianismo é uma religião do espírito e necessita ser compreendido para ter alguma eficácia. Ora os índios são tão incapazes de o compreender como os coelhos dos montes.
- De acordo, meu filho. Mas podemos transmitir-lho. Os coelhos dos montes estão nas mãos de Deus.
- Não, é impossível. E, se não tiverem uma religião que os relacione com o universo, todos hão-de sucumbir. Só a religião lhes pode valer; de nada lhes servirá o socialismo, a instrução ou qualquer outra coisa.
- Diz muito bem, Don Ramon...
- Talvez os coelhos dos montes estejam nas mãos de Deus, monsenhor, mas estão à mercê dos homens. O mesmo sucede ao povo do México. Afunda-se cada vez mais em inércia, e a Igreja não consegue ajudá-lo porque não possui a chave que abre a alma mexicana.
- A alma mexicana não conhece a voz de Deus? - redarguiu
o bispo.'
- As ovelhas que apascenta devem conhecer a sua voz, monsenhor. Mas se for pregar às aves do lago, ou aos gamos da montanha, conhecê-la-ão? Deter-se-ão para a escutar?
- Quem sabe? Detiveram-se a escutar S. Francisco de Assis.
- Hoje é preciso falar aos mexicanos na sua própria linguagem, indicar-lhes a palavra que lhes abrirá a alma. Eu indico-a: Quetzalcoatl. Se estou em erro, que eu pereça! Mas não estou.
O bispo movia-se, inquieto. Não queria ouvir aquilo, não queria responder e nenhuma das coisas podia evitar.
- A sua Igreja é a Católica, monsenhor?
- Evidentemente.
- E a Igreja Católica significa igreja universal, igreja de todos?
- com certeza, meu filho.
- Então porque não a deixa ser realmente católica?... Porque chamá-la católica quando não é mais do que uma entre numerosas Igrejas e, ainda por cima, hostil a todas as outras? Porque não há-de ser a Igreja Católica verdadeiramente universal?
- É a Igreja Universal de Cristo, meu filho.
- Porque não também a Igreja Universal de Mafoma? No fim
de contas, Deus é só um, o mesmo para todos; os povos é que se exprimem em linguagem diferente e cada qual precisa de um profeta que lhe fale no seu idioma. A Igreja Universal de Cristo e Mafoma, de Buda, de Quetzalcoatl e de todos os outros... eis a verdadeira Igreja Católica, monsenhor!
- Fala de assuntos muito transcendentes! - observou o prelado, fazendo girar o seu anel.
- Não, qualquer pessoa entende! - replicou Ramon. - A
Igreja Católica é uma igreja de todas as religiões, um lar na terra para todos os profetas, uma árvore imensa sob a qual podem sentar-se e descansar todos os homens que reconhecem a vida mais elevada da alma. Não é assim, monsenhor?
- Meu filho, só conheço a Igreja de Cristo, apostólica e romana, de que sou humilde servo. Essas subtilezas de que me fala não as posso compreender.
- Venho pedir-lhe a paz, monsenhor. Não sou daqueles que
odeiam a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana, mas creio que ela não tem lugar no México. Quando não sinto o coração amargurado, ando cheio de gratidão por Cristo, Filho de Deus. A história dos Judas afligiu-me mais do que a si, monsenhor, assim como deveras me aflige sangue derramado.
- Não sou um inovador, meu filho, para provocar efusões de sangue.
- Oiça! vou retirar da igreja de Sayula as imagens de santos, com todo o respeito, e com todo o respeito as queimarei à beira do lago. Depois colocarei na igreja a imagem de Quetzalcoatl.
O bispo ergueu os olhos de súbito e, por uns momentos, ficou
sem dizer nada.
- Atreve-se a isso, Don Ramon? - replicou finalmente.
- Sim, e ninguém mo impedirá. Tenho a meu lado o general Viedma.
O prelado lançou um olhar furtivo a Cipriano.
- Certamente - confirmou este.
- Contudo, é ilegal - volveu o bispo, indignado.
- Que há de ilegal no México? - retorquiu Ramon. - Só é ilegal a fraqueza, e eu não serei fraco, monsenhor.
- Triste fortaleza! - comentou o velho, encolhendo os ombros.
Houve uma pausa.
- Venho pedir a paz - tornou Ramon. - Transmita ao arcebispo as minhas palavras; ele que diga aos cardeais e ao Papa que chegou o momento de haver uma Igreja para todos os homens. Que a árvore da Igreja estenda os seus ramos sobre toda a terra e abrigue à sua sombra os profetas que proclamam o seu conhecimento do Além.
- Considera-se um desses profetas, Don Ramon? - inquiriu
o bispo olhando-o cheio de compaixão.
- Considero-me. E falarei de Quetzalcoatl ao México e edificarei aqui o seu templo.
- Não. Conforme afirmou há pouco, invadirá os templos de Cristo e da Virgem Maria.
- Conhece as minhas intenções. Mas não quero contendas com a Igreja de Roma, nem derramamento de sangue, nem hostilidades... Não poderá compreender-me? Não deve a paz reinar entre os homens que se esforçam, cada qual por caminho diferente, por
atingir o mistério de Deus?
- Profanar de novo os altares! Introduzir ídolos nas igrejas, queimar a imagem de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, e querer paz? - exclamou o bispo, que nesse momento só aspirava a que o
deixassem.
- Sim, tudo isso, monsenhor.
- Que lhe posso dizer? É um homem bom, Don Ramon, dominado pela loucura do orgulho. Don Cipriano é um dos inúmeros generais mexicanos, e eu sou o velho bispo desta diocese, servo fiel da Santa Igreja, humilde filho do Santo Padre. Que posso fazer? Que posso responder? Leve-me para o cemitério e fuzile-me imediatamente, general!
- Não tenho essas ideias - replicou Cipriano.
- É como tudo isto acabará, com mortes - tornou o bispo.
- Mas porquê? - protestou Don Ramon. - Não é lógico o
que eu digo? Não me compreende?
- Meu filho, vivo da minha fé e dos deveres do sacerdócio, e o que eu compreendo é que se afasta para bem longe do caminho da Verdade.
- Adeus, monsenhor! - disse Ramon, pondo-se de pé bruscamente.
- Deus o acompanhe, meu filho - respondeu o prelado erguendo os dedos.
Cipriano fez tilintar as esporas e levou a mão ao punho da espada antes de se dirigir para a porta.
- Adiós, señor.
- Adiós, general - disse o bispo, dardejando-lhes um olhar de fúria que eles sentiram nas costas.
- O velho jesuíta não transmitirá aos outros o teu recado - comentou Cipriano quando iam a descer a escada. - O que ele quer é conservar o seu lugar e a sua influência... Já os conheço...
- Não sabia que os detestavas - retorquiu o amigo, rindo-se.
- Não vale a pena perderes mais fôlego com essa gente - disse Cipriano. - Segue o teu caminho e não te rales.
Foram a pé, atravessando o largo do edifício dos correios onde modernos escribas, sentados debaixo das arcadas, escreviam cartas à máquina para os analfabetos que esperavam, a troco dalguns centavos, ter as suas missivas em magnífico castelhano.
- Ouvi dizer - prosseguiu Cipriano - que os Cavaleiros de Cortez deram um banquete no decurso do qual juraram tirar a vida a ti e a mim. Mas parece-me que me assustariam mais os juramentos das damas católicas. Porque se um homem se detém para desabotoar as calças e urinar, os Cavaleiros de Cortez fogem a sete pés, julgando que lhes vão desfechar uma pistola. Por isso, não te preocupes nem tentes conciliar-te com eles. Se desconfiassem que os temes, tornar-se-iam insolentes. Mas seis soldados bastarão para meter na ordem toda essa escória.
Cipriano tinha aposentos no grande Palace da Plaza de Armas.
- Se me casar - disse ele, quando entravam no pátio, onde estavam soldados em posição de sentido -, se me casar arranjarei uma habitação na colónia. É mais recatado...
Cipriano, na cidade, chegava a ser cómico. Parecia inchado de orgulho e de autoridade arrogante quando ia a andar. Mas os seus olhos negros, luzindo por cima do nariz delgado e da barbicha de bode, não inspiravam riso. Dir-se-ia abrangerem tudo num relance. Tinha qualquer coisa de demoníaco, o general Viedma.

XVIII
Ramon falou com a mulher e os filhos na cidade, mas foi uma entrevista um tanto penosa. O mais velho dos rapazes sentia-se constrangido em presença do pai, enquanto o mais novo, Cipriano, que era delicado e bastante inteligente, mostrava o seu desagrado ao progenitor e assumia ares altivos.
- O papá sabe o que cantam por aí? - perguntou o pequeno.
- Não faço ideia - respondeu Ramon.
- Cantam... - O garoto hesitou e então, na sua voz clara e infantil, fez ouvir os seguintes versos com a música de La Cucaracha:
Don Ramon não fuma nem bebe, Dona Carlota bem o desejaria. Vai vestir-se com manto azul-celeste Que ele roubou à Virgem Maria.
- Não, isso não é verdade - disse Ramon, sorrindo. - O manto que eu uso tem uma serpente e um pássaro no meio. E ziguezagues pretos. E uma franja verde. Farias bem em ir comigo, para o ver.
- Não, papá, não vou.
- Porquê?
- Não quero meter-me nesse assunto que nos torna a todos ridículos.
- E não serás ridículo de fato à marinheiro e esse ar tão virtuoso? Mais valia que te vestisses de Menino Jesus.
- Oh, papá, essas coisas não se dizem!
- Serás obrigado a te confessares por ter mentido. Declaras que essas coisas não se dizem depois de mas ouvires dizer!
- Mas eu refiro-me às pessoas boas, às pessoas decentes.
- Isso! Agora chamas indecente a teu pai! Mais um pecado que terás de confessar.
O pequeno corou e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Seguiu-se um silêncio.
- Então vocês não querem ir a Jamiltepec? - perguntou Ramon aos filhos.
- Gostava de tomar banho no lago, e andar de barco - proferiu o mais velho lentamente. - Mas dizem que não pode ser.
- Porquê?
- Dizem que o pai se veste como os peóns - acrescentou o pequeno, a medo.
- É um traje bem bonito, mais do que o teu.
- E dizem também que o pai afirma ser o deus asteca Quetzalcoatl.
- Não, senhor. Só afirmo que o deus asteca vai voltar ao México.
- Mas isso não é verdade!
- Como é que sabes?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque nunca houve nenhum Quetzalcoatl, senão em ídolos.
- E as imagens dos santos?
- Isso é diferente. Os santos existiram, e estão no Céu.
- Pois Quetzalcoatl também está no Céu, e. encontrando-se lá, pode voltar à terra. Não me acreditas?
- Não, papá.
- Nesse caso, fica com a tua incredulidade - replicou o pai. rindo e levantando-se para se ir embora.
- Acho muito desagradável que façam cantigas ao papá e à mamã como fazem ao Pancho Villa - disse o filho mais novo. - É uma coisa que me dói.
- Fricciona com Vaporub o ponto dorido - redarguiu Ramon. - Uma fricção e isso passa.
- Como o papá é tão mau!
- E como tu és tão bom! Não é assim?
- Não sei. Só sei que o papá é mau.
- Oh! Oh! É isso que te ensinam no colégio?
- No próximo período vou mudar de nome - declarou Ciprianito. - Não quero usar mais o apelido Carrasco. Quando falarem do papá nos jornais hão-de se rir de nós.
- Oh! Oh! Eu é que me rio de ti neste momento, meu franganote! Que nome vais escolher então? Talvez Espina... Como sabes. Carrasco é uma planta brava dos mantagais de Espanha. Queres ser o espinhito do arbusto? Chama-te Espina. entonces, adiós, señor Espina Espinha!
- Adiós - respondeu o pequeno, rubro de cólera.
Ramon foi de automóvel até Sayula. Haviam aberto uma estrada, mas as chuvas tinham-na desnivelado, e o carro ia aos tombos, de cova em cova. A meio caminho jazia um camião de fundo para o ar.
Na planície deserta estagnavam já poças de água, e as flores cor-de-rosa e amarelas mostravam tufos de botões. Ao longe, as colinas tornavam-se numa massa verde opaca conforme as folhas revestiam as árvores e os arbustos invisíveis na distância. A terra renascia para a vida.
Chegado a Sayula, Ramon dirigiu-se a casa de Kate. Esta saíra, mas Concha correu a procurá-la na praia.
- Está cá Don Ramon! Está cá Don Ramon!
Kate regressou à pressa, com os sapatos cheios de areia. Achou Ramon fatigado, e sinistro naquele fato preto.
- Não o esperava - disse ela.
Empertigado na cadeira, de semblante sombrio, alisava sem cessar o bigode preto sobre os lábios cerrados.
- Viu alguém conhecido na cidade? - perguntou Kate.
- Don Cipriano, e minha mulher e meus filhos.
- Ah! Eles estão bem?
- De excelente saúde, creio eu. Kate riu-se, inesperadamente.
- Que ar tão zangado! Ainda é por causa dos macacos?
- Señora- disse Ramon. inclinando-se para a frente, de modo que uma melena lhe tombou para a testa - no reino dos monos não sei quem é príncipe, mas no dos loucos sou eu com certeza.
- Porquê?
E, como ele não respondesse, Kate ajuntou:
- Vale a pena ser príncipe, ainda que dos loucos. Ramon lançou-lhe um olhar furibundo, mas logo desatou a rir.
- Oh, señora mia! O nosso mal é querermos ser sempre bons.
- Sente-se arrependido?... - volveu Kate, em tom de gracejo.
- Sim, sou o rei dos loucos. Porque levantei essa história de Quetzalcoatl? Porquê? Serei capaz de me explicar?
- Porque lhe agrada, suponho.
Ramon reflectiu um instante, sem largar o bigode.
- Antes ser macaco do que idiota. E. contudo, oponho-me a que me considerem macaco. Carlota sim. pertence a essa raça, e os meus filhos não passam de macaquinhos vestidos à marinheiro. Eu sou um louco. E que diferença haverá entre um louco e um macaco?
- Quien sabe - disse Kate.
- Um quer ser bom, outro tem a certeza de que é bom. é o que me torna louco, a vontade de ser bom. Eles, tão seguros de serem bons, fazem de si mesmos uns macacos. Oh, quem me dera que o mundo explodisse como uma bomba!
- Não explodirá - asseverou Kate.
- Pois não...
Ramon endireitou-se na cadeira e mudou de assunto.
- Então, señora Caterina, sempre se decide a casar com o nosso general?
- Eu... eu... não sei - balbuciou Kate. - Mas não creio...
- Não lhe é simpático?
- é, sim, e acho até que irradia certo encanto. Mas não devemos arriscar-nos ao matrimónio com uma pessoa doutra raça, por muito simpática que seja, não lhe parece?
- Ah! - suspirou Ramon. - Só vale a pena o casamento quando haja verdadeira fusão, seja onde for.
- E eu sinto que não haverá - disse Kate. - Tenho a impressão que ele só pretende de mim uma coisa; e eu, por meu lado, talvez também só uma coisa pretenda dele. Mas nunca nos encontraríamos em verdadeira comunhão. Ele viria para obter o que deseja de mim, e eu teria de consentir... Ora não é apenas isso que eu quero. Quero um homem que me encontre a meio caminho...
Don Ramon pensou um pouco e em seguidameneou a cabeça.
- Tem razão. Mas nesse assunto nunca se sabe ao certo onde é o meio caminho... Uma mulher que deseja simplesmente que a tomem para depois se agarrar ao homem não passa de um parasita. E um homem que quer simplesmente tomar, sem nada conceder, é uma ave de rapina.
- Receio que seja esse o caso de Don Cipriano - murmurou Kate.
- É possível - disse Ramon. - Comigo ele não se mostra assim, mas talvez o fosse se não nos encontrássemos... a meio caminho... de uma espécie de crença física que está bem no centro do nosso ser e que reconhecemos um no outro. Não poderá isso existir entre a señora e ele?
- Desconfio que Don Cipriano não vê a necessidade de semelhante coisa, tratando-se de uma mulher. As mulheres têm pouca importância.
Ramon ficou silencioso.
- Talvez - disse por fim. - com uma mulher, o homem deseja sempre abandonar-se, quando, pelo contrário, devia agarrar-se à sua crença mais profunda... Porque se a crença de cada um coincide, se é física, só ali se podem encontrar. De nada serve um homem violentar uma mulher ou uma mulher violentar um homem. É pecado. O pecado existe, e está na origem. Homens e mulheres continuam a violentar-se mutuamente. Por muito absurdo que pareça não sou eu que desejo apoderar-me de Carlota, ela é que quereria possuir-me. Chega a ser estranho, quase vergonhoso, mas é a verdade. Ah, se conseguíssemos manter-nos fiéis à nossa alma e encontrar-nos nessa região serena! Não tenho grande consideração por mim mesmo. A mulher e eu falhámos um perante o outro, e é um malogro bem triste para guardar no íntimo do nosso ser.
Kate olhou-o com espanto e certo medo. Porquê aquela confissão? Estaria ele prestes a amá-la? Ramon fitava-a com uma expressão dolorosa nos olhos sombreados pelo desgosto, cólera e vexame.
- Lastimo bastante que Carlota e eu nos não entendamos - continuou ele. - Quem sou eu. para me atrever a falar de Quetzalcoatl quando tenho o coração roído pela ira que sinto contra a mulher que desposei e contra os filhos que ela me deu? Nunca as nossas almas se encontraram. A princípio amava-a, e ela gostava que eu a desejasse. Mas passado tempo não se é capaz de continuar a querer com ardor a posse da mesma mulher. Sente-se uma espécie de repulsa. O amor foi então da sua parte, e quiz conquistar-me à viva força. Depois cansou-se também. O pequeno mais velho é realmente meu filho, concebido pelo meu desejo, e o mais novo é filho dela concebido pelo seu desejo. Veja como tudo isto é lamentável! E agora, jamais poderemos encontrar-nos. Carlota volta-se para o seu Deus. e eu volto-me para o meu Quetzalcoatl. que ao menos não pode ser violentado.
- E estou certa que não fará dele um violador.
- Quem sabe? Se eu errar será nesse sentido. Mas, señora, Quetzalcoatl não é para mim senão o símbolo de uma perfeição acessível ao homem. O universo é um ninho de dragões em cujo centro está um mistério insondável da vida. Pouco importa que eu chame a esse mistério Estrela da Manhã. A existência do homem não se realiza no abstracto. O homem é uma criatura que, polegada a polegada, arranca a sua própria criação do antro dos dragões do Cosmos. Ou então perde-a a pouco e pouco, desfeita em migalhas. E estamos a perdê-la... Temos de a reconstituir, homens e mulheres, senão pereceremos todos.
- Mas... necessita duma mulher na sua vida? - perguntou Kate.
- Aspiro ao apaziguamento sensual do meu ser, señora. Não sou daqueles que acreditam na renúncia dos desejos do sangue. Sou homem sempre pronto a tomar esposas e concubinas, tal a sede de apaziguamento. Mas agora sei que é para mim inútil arrebatar uma mulher com o meu desejo ardente, por muito que ela me ame e queira despertar-me o desejo. Vinho, amor e canções... tudo acabou. Já nada disso existe.
- No entanto precisa de uma mulher a seu lado.
- Ah, señora! Se eu pudesse confiar em mim e confiar nela! Já não sou um adolescente, a quem se desculpam todos os erros. Tenho quarenta e dois anos e tenho o meu derradeiro... ou melhor, o meu primeiro grande esforço de homem. Espero morrer antes de cometer um erro crasso.
- E porque havia de o cometer?
- É muito fácil enganar-me. Muito fácil, por um lado, tornar-me arrogante; muito fácil, por outro, renunciar a mim próprio e fazer da minha vida uma espécie de sacrifício.
- Mas porque não procede como diz? Porque não se apoia no mais profundo do seu ser e não comunga com uma mulher, aí onde as duas almas coincidam no seu desejo mais forte? Nem sempre há-de haver aquele horrível desajustamento a que chama violentação.
- Que mulher podia eu possuir carnalmente sem me submeter à lenta degradação de violentar e ser violentado? Se casasse com uma espanhola ou com uma mexicana, abandonar-se-ia a mim para que eu a dominasse. Casando com uma anglo-saxónica ou uma branca de raça nórdica, ela quereria dominar-me com a sua vontade de todos os antigos demónios brancos. As primeiras são parasitas da nossa alma e sentimos fastio. As outras são vampiros. E entre as duas espécies não há nada.
- com certeza que existem mulheres diferentes dessas.
- Nesse caso, mostre-mas. São todas autoritárias, Carlotas ou... Caterinas. Estou certo de que dominou Joachim até à sua morte. Acredito que ele se prestasse a isso mais até do que a senhora desejaria. Não é apenas uma questão de sexo. Reside na vontade: vítimas e dominadores. As classes elevadas aspiram a ser vítimas das classes inferiores ou passarem por tal. Os políticos tentam tornar os povos em vítimas uns dos outros. A Igreja procura transformar as pessoas em seres humildes e torturados que só desejam ser vítimas. Ah, a terra é um lugar bem triste!
- Mas. se deseja ser diferente - disse Kate - há-de haver algumas outras pessoas como o senhor.
- É possível - replicou ele, acalmando-se. - É possível. Gostaria de me reprimir melhor. Reprimir-me, concentrar-me em mim próprio, onde eu esteja em paz. Na minha Estrela da Manhã. E agora já me envergonho de ter dito o que disse, señora Caterina.
- Porquê? - exclamou ela. E, pela primeira vez, veio-lhe à face o rubor da pena e da humilhação.
Ele notou-o logo e, por um momento, descansou a mão sobre a de Kate.
- Não, afinal não me envergonho. Estou aliviado.
Ao contacto dessa mão, a irlandesa corou ainda mais e ficou silenciosa. Ramon levantou-se rápido para se ir embora, de novo ansioso de se reencontrar na sua alma.
- Domingo vai plaza, de manhã, quando ouvir o tambor? perguntou Ramon.
- Para quê?
- Verá.
E, assim falando, desapareceu.
Havia muitos soldados na aldeia. Quando foi ao correio, Kate encontrou os homens de farda de algodão dispersos pelas imediações do quartel. Eram cerca de cinquenta, não como esses outros de chapéu desabado e grande estatura, mas pequeninos, vivos, sólidos como Cipriano: falavam baixo um estranho dialecto índio. Raras vezes se viam nas ruas, porque em geral se escondiam.
Os habitantes tinham ordem de recolher às dez horas da noite. Kate ouvia as patrulhas passar a cavalo, através da escuridão.
Dir-se-ia envolver o país uma atmosfera de excitação e mistério. O cura da paróquia, que era gordo e roçava pelos cinquenta anos, pregara no sábado à noite um sermão memorável contra Ramon e Quetzalcoatl, proibindo a menção deste nome execrando e predizendo castigos aos paroquianos que lessem os hinos ou os escutassem.
É claro que foi atacado quando saía da igreja e precisou de uma escolta de soldados para regressar a casa, onde chegou a salvamento. Mas a criada, uma velha que o servia há muito, ouviu as mulheres dizerem que, da próxima vez que o padre abrisse a boca para falar contra Quetzalcoatl. receberia umas poucas de facadas no abdómen. Deste modo ficou ele de portas adentro, fazendo-se substituir pelo coadjutor.
Quase toda a gente que chegava de barco, aos sábados, ia ouvir missa à igreja de Sayula, cujas portas ficavam abertas todo o dia. Os homens que iam para o lago ou que vinham de lá tiravam sempre o chapéu, num gesto humilde, quando passavam defronte do templo. Havia constantemente pessoas ajoelhadas ao longo das naves ou entre as bancadas, os homens muito direitos, com o chapéu no chão. a seu lado, as mulheres encapuchadas nos rebozos escuros, rezando numa espécie de abandono voluptuoso, de cotovelos apoiados ao banco.
No sábado à noite, a cintilação avermelhada de muitos círios iluminava o interior sombrio da igreja. Via-se como que um mar agitado de cabeças escuras, uma confusão de gente que vinha da praia e se dirigia ao mercado. Silêncio mas não bem de adoração, antes de pasmo diante daquele cintilar de luzes.
Não, não era veneração, talvez entorpecimento e abandono da alma flutuando sem governo. E era também para eles um luxo após a semana de sujidade e desleixo nas suas aldeias sórdidas de cabanas de colmo. Isso, porém, irritava Kate.
Domingo de manhã havia a primeira missa ao nascer do Sol, outra às sete horas, outra às nove e mais uma às onze. A orquestra de violinos e violoncelos executava velhas músicas de dança. Desde muito cedo que se notava uma compacta massa de peóns e mulheres, todos ajoelhados; bruxuleavam chamas fumegantes que espalhavam o cheiro da cera, elevavam-se rolos de incenso juntamente com o coro das vozes masculinas, sólidas, poderosas, impressionantes.
E os fiéis retiravam-se com uma sensação de torpor que, logo à entrada da feira, se transformava em ódio, esse velho ódio insondável, latente no coração do índio e sempre pronto a despertar quando o agita uma satisfação voluptuosa.
O interior da igreja parecia uma coisa morta, como aliás, todas as igrejas mexicanas, até a sumptuosa catedral de Puebla. Os templos italianos são quase todos no mesmo estilo, e no entanto paira neles uma sombra serena, a paz de antiga e misteriosa santidade, o silêncio. Mas tal não sucede no México. Exteriormente as igrejas possuem imponência. Por dentro, são vazias de sons e no entanto o silêncio não impera; simples e contudo vulgares, nuas, áridas, mais nuas do que uma escola ou uma sala de concertos deserta, mais desprovidas de mistério do que qualquer desses edifícios. Tem-se uma impressão de argamassa, de estuque, de lambuzadelas de cal azul ou cinzenta e de dourados superficiais com o odioso aspecto de purpurina e não de ouro puro. Enfim, nenhuma doçura, nenhum recolhimento.
Eis o interior da igreja de Sayula. onde Kate já entrara muitas vezes. Por fora era encantadora e enquadrava-se bem na paisagem, com as suas duas torres brancas elevando-se acima dos salgueiros verdes. Mas por dentro não havia nada senão o estuque branco com estrias azuis e cinzentas. As janelas, numerosas e altas, deixavam penetrar a luz como numa escola. Num dos transeptos estava Jesus sulcado de sangue, e à sua frente a Virgem Maria, vestida de cetim, olhava com ar admirado sob a redoma de vidro. Viam-se ali flores de papel, flores de pano e rendas prateadas que pareciam de zinco.
No entanto, a igreja era muito limpa, e muito frequentada.
Acabado o mês de Maria, retiraram as grinaldas de papel branco e azul, assim como os vasos de palmeiras das naves laterais. Deixaram de aparecer, à tarde, as rapariguinhas vestidas de branco, coroadas de flores e com ramalhetes na mão. É extraordinário como as antigas e enternecedoras cerimónias da Europa assumem no México aspecto vulgaríssimo e se transformam numa espécie de espectáculo popular.
No dia de Corpo de Deus a igreja encheu-se até à porta, e houve uma pequena procissão de crianças dentro do templo - visto a lei proibir desfiles religiosos na rua. Tudo aquilo constituía fiesta, um pretexto para não fazerem nada, para justificarem o seu desejo de inacção. A eterna indolência mexicana.
Decorriam as semanas, a multidão na igreja era sempre densa, mas essa mesma multidão, ao sair do templo, rodeava os Homens de Quetzalcoatl.
Durou isto até ao dia em que os oradores mais socialistas misturaram aos seus discursos um pouco de azedume anticlerical. Então ospeóns começaram a murmurar: Será El señor um gringo e a Santíssima uma gringuita?
O caso provocou admoestações da parte dos sacerdotes e por fim as ameaças do famoso sermão. A guerra estava declarada.
Toda a gente esperava ansiosa pelo sábado seguinte. Chegou o dia, a igreja conservou-se fechada, e fechada se manteve todo o domingo.
O povo na feira parecia consternado, já não sabia para onde ir. Mas à consternação juntava-se certa curiosidade. Talvez acontecesse algo de sensacional...
Já noutros tempos haviam sucedido coisas... No decurso das revoluções, muitas igrejas mexicanas tinham sido transformadas em escolas, salas de concerto ou cinemas. Vários conventos serviam agora de quartel. O mundo está sempre a modificar-se.
No sábado seguinte ao encerramento da igreja, havia uma grande feira, de excepcional importância. Viam-se ali homens a vender escudelas de pau envernizadas, mulheres com loiça de barro vidrado. E, como de costume, índios de sentinela às suas ameixas, abóboras ou mangas, amontoadas em pirâmide ao longo dos passeios.
Um mercado à cunha, e as portas da igreja fechadas, e os sinos calados. Até o relógio parara. É certo que parava de vez em quando, mas nunca estivera tanto tempo sem funcionar. Parecia uma imobilidade definitiva.
Nem missa, nem confissão, nem rolos de incenso... Só murmúrios sufocados, olhares furtivos e receosos. À beira do passeio, os vendedores pareciam ídolos astecas, hirtos, agachados no chão e com os joelhos quase ao nível dos ombros. Por toda a parte se viam soldados, em grupos de dois e de três. E señoras e señoritas, todas de mantilha preta, acorriam a ouvir missa, embora já soubessem que a igreja estava fechada.
Mas era domingo e alguma coisa ia acontecer nessa manhã.
Cerca das dez horas apareceu um barco e dele saltaram para terra vários homens de fato branco, dos quais um trazia o tambor. Abriram caminho entre a multidão que estacionava debaixo das árvores e dirigiram-se para a igreja.
Em frente das portas sempre fechadas, despiram o casaco e formaram círculo, todos de torso nu e faixa azul e preta a apertar-lhes a cintura.
Soou o tambor, em pancadas fortes, bem ritmadas, enquanto os homens se mantinham agrupados no adro, numa roda estranha de cabeças negras e lustrosas, espáduas bronzeadas e calças brancas. Continuou o toque de tambor, sempre igual, a que depois se juntou o som ácido de uma flauta de barro.
Todos os que se encontravam no largo da feira correram para a igreja. Mas estavam ali soldados para impedir que penetrassem no adro ou saltassem os muros baixos. De modo que a multidão ficou debaixo dos salgueiros e das pimenteiras, ou então ao sol, a presenciar os acontecimentos. Na sua maioria eram homens de grandes chapéus, mas também ali se encontravam pessoas da cidade, e algumas mulheres, entre as quais Kate, munida de sombrinha azul-escura. Diante de si tinha a massa compacta de gente, comprimindo-se em silêncio na sombra escassa das árvores; atrás, estacionavam automóveis e caminhetas.
Calou-se o tambor, calou-se a flauta. Ouvia-se o marulho do lago, tilintar de copos, vozes de motoristas que bebiam numa taberna e, dominando tudo, o silêncio ofegante da multidão. Vários soldados distribuíram folhetos pela assistência e uma voz máscula, bem timbrada, começou a cantar, acompanhada em surdina pelo tambor.
Durante o cântico, chegou outro barco, e os soldados afastaram a turba para deixar passar Ramon. na sua serape branca de orla azul e franjas vermelhas. Seguia-o um rapaz magro, vestido de sotaina, e mais seis homens de serapes escuras com a bordadura azul de Quetzalcoatl. Esta estranha procissão avançou através do povo até às grades do adro.
Quando eles se aproximavam, abriu-se o círculo de homens que rodeavam o tambor, desdobrando-se em forma de crescente. Ramon conservou-se de pé por trás do tambor e os seis indivíduos de serapes escuras separaram-se e foram postar-se a cada ponta do crescente. O mancebo magro vestido de sotaina permaneceu sozinho, à frente, encarando a multidão. Como ele erguesse uma das mãos,
Ramon tirou o chapéu e logo se descobriram todos os homens presentes.
Voltou-se o clérigo, dirigiu-se a Ramon e entregou-lhe a chave da igreja. Depois, esperou.
Ramon enfiou a chave em todas as portas do templo, escancarando-as. Subitamente ajoelharam os homens que estavam no primeiro plano: tinham visto aparecer o interior da igreja como uma caverna sombria, ao fundo da qual tremulava o clarão dos círios: dir-se-ia haver surgido a Sarça Ardente no meio das trevas misteriosas.
O resto do povo, estremecendo, caiu de joelhos. Só ficou de pé, aqui e ali, um operário, um motorista, um empregado do caminho de ferro.
De súbito, no fundo da sombra que todos os olhos perscrutavam, uma rajada apagou a Sarça Ardente e só ficou um ou outro círio aceso envolto num abismo de trevas.
Da multidão elevaram-se exclamações e murmúrios.
Então o tambor rufou baixinho e dois homens começaram a cantar um hino com possante voz de tenor que parecia entreabrir a terra. Eram indivíduos que Ramon e os seus partidários tinham encontrado em tabernas da Cidade do México. Os "tempos maus" haviam-nos reduzido a cantar nos antros da pior espécie, e agora elevavam a voz com toda a raiva demoníaca da sua desesperação.
O moço de sotaina entrou na igreja. Ramon seguiu-o e atrás dele foram todos os homens do semicírculo, em passos vagarosos. O sino badalou no silêncio de morte e calou-se daí a instantes.
Nas profundezas da nave soou um tambor, lento, distante e terrífico. com sobrepeliz ornada de rendas, o sacerdote apareceu no limiar. Trazia uma cruz, e hesitou antes de avançar para a claridade do exterior. O povo ajoelhado juntou as mãos.
Em direcção à porta tremulavam círios, vindos do fundo da igreja escura. Don Ramon emergiu da sombra, de torso nu e serape ao ombro, segurando a ponta dianteira do andor que sustinha a urna de vidro onde repousava Cristo morto - essa imagem de aspecto tão humano, que se venera na Semana Santa. Atrás, um homem trigueiro e alto, igualmente despido da cintura para cima, trazia ao ombro a outra extremidade do andor. A turba gemeu e benzeu-se. O Cristo morto parecia realmente morto quando transpôs a porta do templo. As mulheres e os homens ajoelhados ergueram o rosto, abriram os braços e assim ficaram em indizível êxtase, em que havia medo e súplica.
A seguir ao féretro vinha uma lenta procissão com os restantes andores. As estátuas avançavam oscilantes, transportadas por aqueles indivíduos de pele de bronze e, sob a luz crua do sol, chegaram por fim ao caminho que conduz ao lago.
- Puríssima! Puríssima! Não nos abandones! - gritavam as mulheres.
E alguns homens, tomados de estranha angústia, clamavam por seu turno:
- Senhor! Senhor! Senhor!
Agora, debaixo das árvores, o cortejo entrou na areia rugosa e surgiu em plena claridade, à beira de água. Corria uma brisa ligeira. As serapes dobradas baloiçavam nas espáduas luzentes, as imagens vacilavam levemente.
Junto do murinho da margem estava uma barca de vela, em comunicação com a terra através duma ponte de tábuas. Dois homens de branco, com as calças arregaçadas, ladearam o moço clérigo, cujas mangas largas ondulavam como bandeiras: ajudaram-no a embarcar, e ele, encaminhando-se para a proa, descansou ali a base da cruz. A barca era descoberta, sem nenhum toldo, mas tinham colocado lá -várias mesas para nelas poisar as imagens.
Ramon subiu devagar para bordo. Depositaram o caixão de vidro no seu suporte e os dois homens limparam a testa húmida de suor. A fim de se proteger do sol, Ramon cobriu-se com o manto e o chapéu. O barco baloiçava imperceptivelmente, embalado pelo vento de oeste. Batido do sol, o lago parecia uma coisa irreal.
Uma após outra, as imagens levantaram-se à popa, avultando de encontro ao azul do céu, e depois baixaram-se quando as puseram sobre as mesas. Era uma estranha colecção de estátuas de mau gosto e contudo essas efígies inspiravam certa compaixão, vendo-as assim agrupadas para a sua última viagem. Ao lado de cada uma viam-se os respectivos portadores, de chapéu e manta, segurando com mão firme nas varas do andor. Havia uma fila de soldados, na praia, e três gasolinas com militares esperavam junto da barca. a gente acorrera toda à beira de água, e muitas canoas de reinos, como peixes curiosos, rondavam a embarcação principal, sem todavia se atreverem a aproximar-se muito. Então, de pernas nuas, alguns marinheiros impeliram a barca para longe da margem, e aquela começou lentamente a mover-se nos baixios, afastando-se da praia e da multidão.
Dois outros marinheiros, rápidos, içaram a vela branca e quadrada. Depressa, mas pesada, ela subiu no ar e enfunou-se ao vento. No meio estava pintado o emblema de Quetzalcoatl, a serpente em círculo e a águia azul, no centro, em campo de oiro. À distância, parecia um olho enorme.
O vento soprava de oeste, porém a barca ia com rumo a sudeste, direita ao ilhéu dos Escorpiões, que se elevava como um vago montículo acima do lago ofuscante. Panda, a vela dir-se-ia olhar para trás com aquele seu grande olho arregalado, para a aldeia, para os salgueiros verdes, para a igreja branca e vazia e para a gente aglomerada na margem. Os gasolinas tornejavam a barca vagarosa, e as canoas seguiam-na de longe.
Na praia, o povo dispersava-se. Uns sentavam-se na areia, observando e esperando com uma paciência quase indiferente. A barca fez-se mais pequena, menos visível, e os barquinhos que a circundavam já não eram mais que pontos negros. A reverberação do lago fatigava os olhos.
Debaixo das árvores, em expectativa silenciosa, uma mulher comprou uma melancia, abriu-a batendo-a numa pedra e distribuiu pelos filhos os bocados cor-de-rosa. Uns homens polvilhavam de sal os pepinos que acabavam de comprar. A igreja estava completamente às escuras, pois não tinha outra luz senão a que entrava pela porta; e absolutamente vazia, pois fora despojada das suas imagens. Era já meio-dia e o calor apertava. A barca nesse momento costeava o ilhéu, onde vivia uma família de pescadores índios. Tinham algumas cabras e um pedaço de terreno cultivado de feijões e milho. À parte isso, era tudo rocha, com silvados'e lacraus.
Precedida pelas canoas, a barca contornou a costa para entrar na única enseada, onde já homens cor de bronze se banhavam entre os rochedos.
Arriaram a vela, a embarcação imobilizou-se e os seus tripulantes, saltando para a água, apearam as imagens e puseram-nas sobre as rochas, onde ficaram à espera dos seus portadores.
Formou-se de novo o cortejo e este, seguindo pela orla do ilhéu, passou diante das cabanas e alcançou os rochedos da outra margem, ocultos pelo matagal.
No lado fronteiro a Sayula era tudo pedra nua, árida e penosa para a marcha. À beira da água, numa depressão da rocha, tinham colocado pedregulhos de cada banda e, sobre eles, varões de ferro dispostos de modo a formar uma espécie de grelha. Por baixo estava uma pilha de lenha, pronta a arder. Perto, via-se outro molho suplementar.
Em cima daqueles varões pousaram as imagens - grupo patético contra o qual se apoiava a cruz. Era meio-dia, o calor e a luz envolviam tudo, mas já no horizonte se amontoavam nuvens.
Para além da reverberação da água, a aldeia parecia uma miragem, com as suas árvores e as torres brancas da igreja.
Os homens que tinham vindo nas canoas apinhavam-se nos rochedos do pequeno anfiteatro. Em silêncio, Ramon inflamou um punhado de caruma com o auxílio duma lente - e logo se elevaram chamazinhas como serpentes minúsculas. Então, com esse feixe de cobras rubras, pegou lume à pirâmide de lenha cuidadosamente disposta sob a grelha de ferro.
Crepitavam os ramos, e, entre baforadas de fumo branco, erguiam-se línguas de fogo no ar fremente. Num sopro de vento, as chamas altearam-se e a madeira resinosa começou a bramir. O vidro do féretro, estalando, parecia soltar gemidos de dor Por entre os varões de ferro. o lume enegrecia as imagens, consumia-lhes num ápice as túnicas e mantos de cetim.
Toda a gente se distanciou daquela árvore de lume que despedia centelhas até ao céu.
Só Ramon ficou onde estava, olhando em silêncio - até nada restar senão um braseiro e uma inextricável confusão de ferros meio fundidos.
Então, dum rochedo próximo, subiram foguetes no ar e explodiram com fragor, derramando uma chuva de oiro.
As pessoas aglomeradas na praia tinham visto o penacho de fumo e o clarão da fogueira. Ao ouvirem as detonações dos foguetes, olharam de novo, exclamando, aterradas:
- Señor! Señor! La Purísima! La Santísima!
Chamas, fumo e foguetes dissiparam-se como por milagre, deixando a atmosfera sempre límpida. com uma pá, deitaram as brasas numa cova funda.
A sudoeste, por cima das montanhas áridas, elevava-se uma nuvem semelhante a uma cauda branca - a cauda dum esquilo enorme que acabasse de desaparecer por trás dos píncaros. Foi-se desenrolando, desenrolando em direcção ao Sol, e quando a barca içou a vela para regressar à aldeia, já uma leve sombra pairava sobre o lago.
Só na extremidade baixa da ilha dos Escorpiões o ar quente ainda fremia.
Ramon voltou numa das lanchas de motor. A pouco e pouco o céu cobria-se de nuvens, preparando-se para chuva e trovoada. Não podendo atravessar o lago. a barca navegava para Tuliapan. As canoas apressavam-se em direcção à praia.
Chegaram antes de se desencadear o vento. Assim que desembarcou, Ramon foi fechar as portas da igreja.
A multidão dispersou-se sob as rajadas. Agitavam-se os rebolos, rodopiavam folhas, erguia-se poeira. Sayula estava sem Deus e, no íntimo, eles sentiam-se contentes.

CONTINUA

XVII
Na opinião geral, o presidente da República tinha utilizado a sua vassoura nova com excesso de zelo, e essa limpeza provocou uma rebelião. Não muito importante, mas o suficiente para justificar banditismo, roubos e terror nas aldeias.
Ramon estava decidido a manter-se afastado da política, mas já os Cavaleiros de Cortez e certo partido "negro" se preparavam para o atacar. Do alto do púlpito, os sacerdotes começavam a acusá-lo de Anticristo devorado pela ambição. Contudo, ele pouca coisa tinha a recear, com Cipriano a seu lado e, por consequência, todo o exército de Oeste.
Mas era possível que Cipriano fosse mandado para longe, a fim de defender o Governo.
- Acima de tudo - declarou Ramon - empenho-me em estar afastado da política. Não quero que me empurrem para este ou aquele partido. Se é para me deixar contaminar, mais vale abandonar tudo. A Igreja impele-me para os socialistas, e os socialistas trair-me-ão na primeira oportunidade. Não se trata de mim. Trata-se do espírito novo. O meio mais seguro de o aniquilar (e pode-se aniquilá-lo como a tudo o que vive) é associá-lo a um partido político, seja qual for.
- Porque não vais falar com o bispo? - lembrou Cipriano. Eu vou também. Para alguma coisa há-de servir ser comandante da divisão de Oeste.
- Sim - disse Ramon lentamente. - Hei-de avistar-me com Jiménez. Já tinha pensado nisso. Tenciono recorrer a tudo o que está ao meu alcance. Montes estará a nosso lado porque detesta a Igreja e não admite nada do que lhe cheire a ditadura exercida do exterior. Vê a possibilidade de uma Igreja Nacional. Não me interessam Igrejas nacionais, mas acho que temos de falar linguagem do povo. Sabes que os padres proibiram a leitura dos hinos
- E que te importa? - volveu Cipriano. - Hoje em dia só há perversidade neste povo. Agora é que eles hão-de ler.
- Provavelmente. Mas farei vista grossa. Deixarei expandir-se a minha nova "lenda", como a classificam, desenvolver-se enquanto a terra está húmida... Contudo, precisamos de vigiar todos os rebentos que apresentem interesse.
- Ramon! - exclamou Cipriano. - Se conseguisses transformar todo o México no país de Quetzalcoatl?
- Eu serei o "primeiro homem de Quetzalcoatl". Não sei mais nada.
- E não te importarás com o resto do mundo?
Ramon sorriu. Já ele vislumbrava nos olhos de Cipriano a chama da Guerra Santa.
- Gostaria de ser - disse ele - um dos iniciados da terra. E um dos iniciadores. Cada país com o seu Salvador, ou um Salvador para cada povo. Os primeiros de cada povo formariam aristocracia natural do mundo. Precisamos de uma aristocracia, mas natural, não artificial. De certa maneira o mundo necessita de ser organicamente unido: ser o mundo do homem. Unidade concreta e não abstracta. Ligas, alianças, programas internacionais. Ah, Cipriano, isto é como um flagelo internacional. As folhas de uma grande árvore não podem pender nos ramos de outra árvore, por maior que seja. As raças da terra são como árvores, não devem misturar-se nem confundir-se. Têm de estar no seu terreno, como árvores que são. Ou então sobrepõem-se, enovelam-se as raízes e a luta será mortífera. Só as flores é que podem unir-se, e as flores de cada raça constituem a sua aristocracia natural. Que o espírito do mundo voe de flor em flor, qual um colibri, e fertilize a planta. Apenas os aristocratas naturais conseguem elevar-se acima da sua nação, mas não além da sua raça. Apenas os aristocratas do mundo podem ser internacionais, cosmopolitas, cósmicos. Sempre assim foi. Os povos não são capazes disso, como as folhas da mangueira não são capazes de se prenderem aos troncos do pinheiro. Assim, se eu quero que os mexicanos decorem o nome de Quetzalcoatl é porque desejo que falem a linguagem do seu próprio sangue. Pudesse o mundo teutónico tornar ao espírito de Thor e de Wotan e da árvore Igdrasil! Pudessem os povos druídicos compreender que o seu mistério reside no visco e que eles mesmos são os Thuatas de Danaan, vivos embora submersos! E que um novo Hermes voltasse ao Mediterrâneo, um novo Astarot à Tunísia! E Mitra regressasse à Pérsia, e Brama, poderoso, à índia, e à China o mais velho dos dragões! Então eu, Cipriano, eu, primeiro homem de Quetzalcoatl, contigo, primeiro homem de Huitzilopochtli, e talvez tua mulher, primeira dama de Itzpapalotl, talvez nós lográssemos conhecer, com a nossa alma pura, os outros grandes aristocratas do mundo, o primeiro homem de Wotan, a primeira mulher de Freya, o primeiro senhor de Hermes e a primeira dama de Astarte, o mais bem-nascido de Brama e o filho do Magno Dragão. Digo-te eu, Cipriano, que a terra inteira rejubilaria quando os primeiros senhores do Ocidente encontrassem os primeiros senhores do Sul e do Oriente, no Vale do Espírito. Ah, a terra tem vales do Espírito, que não são cidades de comércio e indústria. O mistério é um só, porém os homens podem vê-lo diferentemente. O cardo, o hibisco, a genciana são flores da árvore da vida, mas vivem separadas no mundo. E assim deve ser. Eu sou hibisco, tu és a flor da iúca, a tua Caterina é o junquilho bravo, e a minha Carlota é um amor-perfeito branco. Quatro apenas, nós quatro, e contudo formamos um ramalhete curioso. Os homens e as mulheres não são mercadoria manufacturada, para servirem de objecto de trocas; mas a árvore da vida é una, sabemo-lo quando as almas desabrocham na floração final. Não nos trocamos, não o queremos. Todavia, quando a nossa alma se abre na floração final então as flores comungam entre si o mesmo mistério, para além do conhecimento das folhas, dos ramos e das raízes. Algo de transcendente.
Mas não é isto que importa por enquanto. O que tenho a fazer agora é lutar para abrir caminho no México, e tu deves tentar o mesmo. Façamos isso.
Ramon dirigiu-se para as oficinas onde os seus homens trabalhavam, sob a sua chefia, e Cipriano absorveu-se na correspondência e planos militares que tinha entre mãos.
Ambos foram interrompidos pelo barulho de uma lancha motorizada que entrava na baía. Nela vinha Kate, escoltada por Juana.
Ao seu encontro partiu Ramon, vestido de branco, com o chapeirão onde estava embutido o olho de turquesa de Quetzalcoatl e de faixa azul e preta. Kate trajava também de branco, chapéu verde e xaile de seda amarelo-pálido.
- Estou contente por voltar aqui - declarou ela, estendendo-lhe a mão. Jamiltepec tornou-se para mim uma espécie de Meca. Todo o meu ser aspira a este sítio.
- Então porque não vem mais vezes? Ser-me-ia muito agradável vê-la sempre por cá.
- Receio ser intrusa.
- De modo nenhum. E, se quisesse, podia ser-nos muito útil.
- Hum... Não acredito em grandes empreendimentos, que me assustam. Será talvez porque, no fundo, antipatizo com as massas, seja lá onde for. Temo que isto implique desdém pelos povos. Não gosto que me toquem nem gosto de lhes tocar. Como havia eu de fazer parte de uma espécie de... Exército de Salvação?
Don Ramon soltou uma risada.
- Comigo dá-se o mesmo. Desprezo as grandes massas populares. Mas aqui é o meu próprio povo.
- Eu, desde pequena, fui assim. Conta-se que tinha quatro anos... os meus pais ofereceram um jantar de cerimónia... e disseram à criada que me trouxesse à sala, para dar as boas-noites. Suponho que foram todos muito amáveis comigo, mas eu apenas respondi: "São macacos! São macacos!" Imagine o êxito desta cena! E o pior é que sinto agora o mesmo que sentia em criança. Para mim as pessoas não passam de macacos a fazerem as suas habilidades.
- Até as que lhe são mais chegadas?
Kate hesitou, mas acabou por confessar contra vontade:
- Sim, creio que sim. Os meus dois maridos, mesmo o segundo, pareciam-me um tanto... simiescos, tão obstinados nos seus pequenos ridículos. Quando Joachim estava a morrer, senti por ele uma espécie de repulsa. Perguntava a mim mesma: "A que macaco enfermiço consagrei tanto do meu ser?" Não acha isto horrível da minha parte?
- Acho. Mas julgo que todos experimentamos esse sentimento, de vez em quando... ou que experimentaríamos se o ousássemos. São fases do espírito.
- Chego a pensar que os seres humanos só me inspiram este sentimento. Gosto da terra, do céu, e do mistério do além. Mas as
: pessoas... considero-as a todas macacos.
Ramon percebeu que ela era sincera.
- Puras monas! - murmurou em espanhol. - Y lo que hacen, puras monerias. - Então acrescentou: - Tem filhos?
- Tenho, do meu primeiro marido.
- E eles... Monas y no mas?
- Não! - respondeu Kate, de testa franzida, como se descontente consigo mesma. - Só em parte.
- Isso é mau - volveu Ramon, meneando a cabeça. - Mas, afinal, que são para mim os meus filhos senão macaquinhos? E a mãe... a mãe... Ah, não, señora Caterina! Isto não serve de nada. Devemos ser capazes de nos libertarmos dos outros. Se me chego muito para uma roseira, os espinhos ferem-me. Temos de ver as pessoas como se vêem as árvores duma paisagem. De certa maneira, a humanidade domina-a, domina as suas faculdades conscientes. Por isso a detesta e deseja escapar-se-lhe. Mas só existe uma evasão possível: alcançar, para além dos outros, uma vida maior.
- É o que eu faço! - exclamou Kate. - Nunca fiz outra coisa. Quando vivia com o Joachim, absolutamente só numa casita isolada, sem criados e sem me dar com ninguém, tive sempre a sensação dessa vida maior e era livre e feliz.
- E ele? Era livre e feliz também?
- Era-o, na realidade. Mas aí é que intervinham as tais macaqueações de que lhe falei. Não se permitia ser feliz. Insistia em convidar gente e em criar assim motivos de tortura.
- Então porque não se deixou estar inteiramente só na sua casinha isolada, sem ele? Porque viaja e convive com as pessoas?
Vexada, Kate não respondeu. Sabia que não podia viver sozinha. Acabrunhava-a o vazio à sua volta. Precisava de um homem a seu lado para preencher esse vazio e mantê-la em equilíbrio. No entanto, mesmo quando o tinha presente, no fundo desprezava-o como se despreza um cão ou um gato. Entre ela e a humanidade havia esse laço subtil de antagonismo irredutível.
Era por natureza generosa e deixava aos outros a sua liberdade. Os servos afeiçoavam-se-lhe e todos que travavam conhecimento com ela a achavam encantadora e a admiravam. Pressentia-se nessa mulher um fluxo de vida ardente e certa alegria de viver.
Entretanto, sob isso tudo, jazia a aversão irreprimível, quase repugnância pelos outros. Sim era mais do que desagrado, chegava a ser repulsa. Fosse o que fosse, aquele sentimento dominava-a sempre ao fim de algum tempo. A mãe, o pai, as irmãs, o primeiro marido, até as crianças, que ela adorava, e Joachim, a quem dedicara tanto amor, mesmo estes, após curto convívio, principiavam a enchê-la de repulsa e Kate aspirava a ficar de novo só, e esquecida. Mas não seria um esquecimento definitivo, a menos que ela o provocasse de vez.
Assim era Kate. Até mergulhar no torvo esquecimento da morte, jamais conseguiria fugir a essa profunda, insondável repugnância pelos seres humanos. Os contactos breves podiam ser agradáveis e até emocionantes; mas os prolongados ou muito íntimos, originavam sempre rápidos ou demorados impulsos de violenta repulsa.
Kate e Ramon haviam-se sentado num banco do jardim, sob um loendro repleto de flores brancas. O rosto dele estava impassível, sereno. Nessa calma, um tanto constrangido, Ramon compreendia o estado em que se achava Kate e comparava-o com o seu, achando-o semelhante. O puro contacto pessoal, a simples aproximação dos seres enchia-o, também a ele, de aversão. Carlota aborrecia-o, Kate
aborrecia-o igualmente. Às vezes, o próprio Cipriano o entediava.
Isto, porém, acontecia quando se encontravam no campo meramente pessoal. Eis o inconveniente: sentia-se maçado deles e com
asco de si próprio.
Tinha de os encontrar noutro plano, onde o contacto fosse diferente, intangível, distante, sem intimidade. O seu espírito estava bem longe dali. A alma não deve ligar-se a ninguém, mas voltar-se para Deus, seja de que maneira for.
com Cipriano sentia-se mais em segurança. Quando, depois duma ausência, ambos se abraçavam, faziam-no sem renunciar à sua respectiva solidão. Como a Estrela da Manhã.
As mulheres, porém, não admitiam isto. Queriam intimidade, e a intimidade engendra o tédio. Carlota desejava estar perpétua e intimamente identificada com Ramon; por isso o odiava e a tudo o que ela supunha afastá-lo dessa comunhão. Era um horror, e ele tinha consciência do facto.
Os homens e as mulheres deviam saber que jamais se podem unir absolutamente neste mundo. No beijo mais ardente, na carícia mais terna, há um pequeno abismo que, por muito estreito que seja, não deixa de existir. Têm de se inclinar perante esse fosso e submeter-se reverentes. Mesmo que uma esposa represente para o marido mais do que a sua própria vida, ele é ele e ela é ela, e o abismo nunca se há-de fechar. Qualquer tentativa para o fazer constitui violação e um pecado contra o Espírito Santo.
O que adquirimos do Além, adquirimo-lo sós. O decisivo "eu sou" vem de muito longe, da Estrela da Manhã. Quanto ao resto, o que em nós é parte do poderoso Cosmos, podemos compartilhá-lo com o ente amado. Mas a alma, jamais.
Ramon debatera-se desesperadamente antes de descobrir o caminho para se evadir de si mesmo e se transportar à própria essência do ser e da existência a que ele chamava Estrela da Manhã - visto que no mundo é necessário dar um nome a tudo. Evadir-se, através da alma, atingir a Estrela da Manhã e ali, somente ali, encontrar o seu semelhante...
No entanto, ainda conhecia o malogro, e o malogro contínuo. Perante Carlota, falhava em absoluto. Esta reivindicava-o, e ele opunha-lhe uma resistência surda. Quando estava de tronco nu, com a mulher presente, nunca deixava de ter consciência dessa nudez, precisamente porque ela parecia considerá-lo propriedade sua.
Se os homens se encontram na essência de todas as coisas, não estão nus nem vestidos; na transfiguração acham-se completos, ninguém os vê em pormenor. A perfeita força final tem também o poder da inocência.
Sentado no banco ao lado de Kate, Ramon sentia-se dominado pela tristeza. O seu terceiro hino era cheio de sarcasmo e de cólera. Carlota quase conseguira amargurar-lhe a alma. No México, certos facciosos haviam-se apoderado da sua ideia, tornando-a ridícula. Tinham invadido uma das igrejas da cidade, derrubado todas as imagens sagradas e posto no lugar delas os grotescos Judas de papelão que inundam o México nos dias da Páscoa. Isto, é claro, provocara grande escândalo. Cipriano, por seu lado, de cada vez que se ausentava por algum tempo, voltava a ser o inevitável general mexicano, fascinado pela oportunidade de realizar as suas ambições pessoais e impor a sua própria vontade. E por fim vinha Kate, com a sua aversão pelas pessoas e o desejo de fazer explodir o mundo.
Ramon sentia o espírito deprimido, os membros pesavam-lhe como chumbo.
Só uma coisa um homem desejava realmente fazer no decurso de toda a sua vida: encontrar o caminho que o conduzirá ao seu Deus, à sua Estrela da Manhã, a fim de ali estar, sozinho; e, mais tarde, acolher na Estrela da Manhã o amigo da sua alma e regozijar-se com a mulher que percorreu com ele o longo caminho.
Contudo, descobrir esse caminho, até à essência resplandecente de todas as coisas, é deveras difícil e exige que o homem guarde para si toda a sua força e coragem. Se envereda por ele sozinho, é tremendo; mas, se todas as mãos o agarram para o reter, se as mãos do amor o prendem pelas entranhas e as do ódio o seguram pelos cabelos, então o avanço torna-se quase impossível.
"Tento realizar o impossível - dizia Ramon consigo mesmo.
- Mais valia gozar o meu quinhão dos prazeres desta vida e renunciar ao prazer supremo. Ou então ir para um deserto e seguir sozinho o caminho para a Estrela, onde encontraria enfim a minha solidão e o que em mim existe de sagrado. O caminho dos anacoretas e dos homens que se refugiaram nos ermos, a fim de orar. Porque a minha alma tem sede de consumação e estou farto dessa coisa a que chamam vida. Vivo, desejo partir desta região onde "eu sou".
Sentados lado a lado no banco, Ramon e Kate esqueciam-se um do outro, ela absorta no passado, com a sua repulsa por tudo isso, ele pensando no futuro e tentando reanimar-se.
A meio desse silêncio, Cipriano assomou à varanda, olhou em volta, e quase se sobressaltou ao ver lá em baixo as duas figuras sentadas no banco debaixo dos loendros, juntas e no entanto tão longe uma da outra no seu mutismo.
Ao ouvir-lhe os passos, Ramon olhou para cima.
- Já lá vamos! - exclamou, pondo-se de pé e relanceando a vista por Kate. - Não lhe apetece um refresco? Tepache ou sumo de laranja? O que não temos é gelo.
- Gostaria de sumo de laranja com água - respondeu ela. Ramon chamou pelo criado e deu-lhe uma ordem. Cipriano estava trajado de branco como o amigo, mas a sua faixa era vermelha e estriada de negro, como uma serpente.
- Ouvi-a chegar, e já pensava que tivesse partido... - disse ele, olhando para Kate com certo ar de censura e de ressentimento.
- Ainda não - replicou ela.
Ramon riu-se e deixou-se cair numa cadeira.
- A señora Caterina acha-nos a todos semelhantes a macacos; mas talvez as nossas macaquices sejam o que mais divertido tem para ver, e por isso acedeu a demorar-se aqui mais algum tempo.
Como verdadeiro índio, Cipriano sentiu-se ferido no seu orgulho, e os pêlos da mosca pareceram erguer-se-lhe no queixo, num assomo de dignidade.
- Não é justo apresentar as coisas desse modo - observou Kate, rindo.
Os olhos pretos de Cipriano fitaram-na com hostilidade. Pensou que ela se ria à sua custa: e de certo modo asssim era, no fundo, lá muito no fundo da sua alma de mulher. Ria-se dele interiormente o que nenhum homem podia suportar, e muito menos um de pele escura.
- Não - repetiu Kate. -É que há outra coisa além disso.
- Ah, tome cuidado - acudiu Don Ramon. - Um pouco de piedade oferece os seus perigos.
- Qual piedade! - retorquiu ela, corando. - Que têm hoje contra mim, para se mostrarem antipáticos?
- Os macacos acabam sempre por ser antipáticos aos espectadores - sentenciou Don Ramon.
A irlandesa ergueu a vista e notou-lhe no olhar um relâmpago
de cólera.
- Vim - declarou - para que me falassem do panteão mexicano. Julguei compreender que podia ser admitida...
- Ah, bela ideia! - volveu, rindo, o dono da casa. - Um exemplar raro de mona que pretende fazer parte do jardim zoológico de Ramon. Vai ser excelente chamariz. Já houve lindas deusas no panteão asteca, posso-lhe eu afirmar.
- Continua a ser antipático!
- Ora, ora, señora mia. Falemos sinceramente. Todos somos macacos. Monos somos. Ihr seid ali Affen. Está a ver aquele bugio, o Cipriano. Teve a ideia simiesca de querer casar consigo. Aceite-o. O casamento não passa duma macaquice. Dê-lhe o sim. Deixá-la-á em liberdade quando estiverem saciados um do outro. É um general e um grande jefe. Se lhe agradar, a si, fá-la-á rainha-mona do México simiesco. E que podem fazer os macacos senão divertirem-se? Vamos! Embobemonos! Serei o sacerdote? Vamos! Vamos!
Saltou de súbito, com a violência de um vulcão, e desapareceu
correndo.
Cipriano olhou espantado para Kate, que empalidecera.
- Que lhe tinha dito? - inquiriu o general.
- Nada! - respondeu ela, pondo-se de pé. - É melhor ir-me
embora.
Chamaram por Juana. Alonso e Kate foram-se encaminhando
para o lago. Foi com certa dignidade ofendida que a irlandesa se sentou sob o toldo do barco. O sol estava furiosamente abrasador e o reflexo da água ofuscava-lhe a vista. Pôs então os óculos pretos, que lhe davam o ar de um monstro.
- Mucho calor, niña! Mucho calor! - repetia Juana, atrás
dela. A criada ingerira, evidentemente, bastante tepache.
Na água amarelada flutuavam jacintos aquáticos, com as folhas a fazer de velas. O lago estava cheio deles. As chuvas torrenciais tinham enchido o rio Lerma, arrastando consigo as terras marginais de Lírio e levando-as lentamente para toda a extensão do mar interior, onde se acumulavam ao longo da costa e acabavam por atravancar o rio Santiago, que tem a sua origem no lago.
Nesse dia Ramon escreveu o seu quarto hino, intitulado O que Quetzalcoatl Viu no México.
"Que estranhos rostos vejo no México! Brancos, amarelos, pretos, não são mexicanos! Donde vêm, e porquê?
Senhor, são estrangeiros, Não vêm de parte nenhuma, A ambição mantém-nos cá.
Que pretendem?
Pretendem ouro, a prata das montanhas, E o petróleo, o petróleo do litoral. Tiram o açúcar das longas canas, Apoderam-se do trigo dos planaltos, e do milho, E do café que cresce nas terras quentes, e até da borracha viscosa.
Constróem chaminés altas, que fumegam, E em edifícios enormes guardam as suas máquinas E fazem mover cabos de aço para baixo e para cima E as suas garras seguram miríades de fios.
E vós, mexicanos e peóns, que fazeis?
Trabalhamos com as suas máquinas, trabalhamos nos seus campos.
Eles dão-nos dinheiro feito de prata mexicana. São hábeis, esses homens.
Gostais deles, então?
Não gostamos, nem jamais gostaremos.
São medonhos, mas realizam coisas espantosas,
E a sua vontade é de ferro, como as máquinas.
Que havemos de fazer?
Vejo uns objectos escuros correndo através do campo.
São comboios, e camionetas, e automóveis. Que bom andar de comboio! diz o peón.
E diz também:
Que bom subir para uma camioneta e ser transportado por vinte
centavos!
Que bom passear nas grandes cidades, onde os carros deslizam
velozes e as luzes resplandecem!
Que bom seria recuperar tudo o que é nosso e se encontra em
poder dos estrangeiros!
Recuperar as nossas terras, o nosso dinheiro, o nosso petróleo, tornarmo-nos donos dos comboios, das fábricas e dos automóveis!
E divertirmo-nos com eles todo o tempo!
Que bom!
Oh, insensatos mexicanos e peóns!
Quem sois para possuirdes máquinas que não sabeis fabricar
mas apenas demolir?
Os que sabem criar é que são os senhores dessas máquinas.
Não vós, pobres idiotas.
Como atravessaram os mares do mundo os homens de rosto
branco ou amarelo?
Oh, insensatos, mexicanos e peóns de coração de argila!
Não fazeis outra coisa senão estar sentados a olhar, ou a beber aguardente e a discutir uns com os outros.
E depois acorreis como cães ao apelo dos senhores de face branca.
Oh, cães, oh, insensatos mexicanos e peóns! De coração liquefeito, joelhos vacilantes, De espírito inerte, incapazes de reagir, Para que servis senão para escravos?
Não mereceis um deus.
Olhai! O universo entrava nos seus dragões,
Os Dragões do Cosmos agitam-se despertados pela ira.
O dragão que dorme na alvura de neve do Setentrião
Move a cauda no seu sono; e o vento uiva nos penhascos em volta.
O espírito da morte glacial assobia aos ouvidos do mundo.
E eu digo-vos: não há mortos verdadeiramente mortos, nem sequer os vossos mortos.
Há mortos que dormem nas vagas da Estrela da Manhã e os seus membros repousam.
Há mortos que se amontoam no gelo do Norte, e tremem e batem os dentes.
E gritam de ódio.
Há mortos que rastejam nas entranhas ardentes da terra, e avivam a fornalha.
Há mortos postados debaixo das árvores e com os olhos de cinza espreitam as suas vítimas.
Há mortos que atacam o sol, como um enxame de moscas, para lhe sugar a vida.
Há mortos que estão sobre vós quando possuís a mulher que desposastes.
E se lhe insinuam no seio, e lutam à entrada dessa porta que abristes.
Rangem os dentes e odeiam aquele que ali penetrou para renascer da mulher.
Filhos de mortos vivos, de mortos que vivem e não repousam
Eu digo-vos: que a tristeza vos cubra. Morrereis todos.
E uma vez mortos não tereis repouso.
Não há mortos verdadeiramente mortos.
Depois de mortos vagueareis como cães
Procurando as imundícies da vida nas quelhas invisíveis do éter.
Os mortos que dominaram o fogo no fogo sobrevivem como salamandras.
Os mortos senhores da água são embalados nos mares cintilantes.
Os mortos das máquinas vão-se para longe, no movimento.
Os mortos que conquistaram a electricidade nela própria se tornam.
Mas os que nada venceram andam como cães sem dono nas ruas do Além
Procurando as imundícies da vida.
Quem domina as forças do mundo encontra nessas mesmas forças a sua casa da morte.
Mas vós que dominais, entre os dragões do Cosmos?
Há dragões de sol e de gelo, dragões de lua e de terra, dragões de águas salgadas, dragões de trovão.
Há o dragão cintilante de estrelas no espaço.
E no centro, como um olho que jamais pestaneja, o dragão da
Estrela da Manhã.
Conquistai! diz a Estrela. Transponde os dragões e vinde até
mim.
Mas porque sois inertes mandarei sobre vós os meus dragões.
Que vos esmagarão os ossos,
Que vos cuspirão em cima como a cães imundos.
E não encontrareis refúgio na morte.
Soltarei os dragões! O dragão branco do Norte,
Para que fustigue o ar com a sua cauda
E sobre vós sopre o seu hálito de gelo.
E direi ao dragão da fornalha central
Que retire dos vossos pés o seu calor, e eles adquirirão a frieza
da morte.
E direi ao dragão das águas que se volte contra vós
E espalhe a corrupção nos rios e nas chuvas.
Aguardo o dia final em que o dragão do trovão,
Sacudindo com raiva as redes de teia que sobre ele lançastes, trespassará os vossos ossos com agulhas eléctricas e vos coagulará o sangue com o seu veneno.
Esperai, esperai algum tempo! A pouco e pouco conhecereis
tudo o que vos digo."
Ramon envergou o traje citadino, fato preto, e foi em pessoa levar o hino ao tipógrafo. Antes de dobrarem a folha, estamparam em baixo o símbolo de Quetzalcoatl, a preto e vermelho, e o do dragão, em verde, negro e rubro.
Seis soldados das tropas de Cipriano levaram, de comboio, os maços de hinos: um para a capital, e os outros para Puebla e Jalapa, Torreon e Chihuahua, Sivaloa, Sonora, minas de Pachucha, Guanajuavo e região central. Cada soldado era portador duma centena de! folhetos, mas em cada terra havia um ou mais leitores de hinos designados especialmente para essa função, e alguns deles iam de aldeia em aldeia.
O povo tinha sede das coisas que ultrapassam o mundo dos homens. Estava farto das notícias dos jornais, farto de tudo o que se aprende com a educação. O espírito humano cansa-se da importunidade humana, dos factos humanos ou da invenção humana. Mesmo os que não se ocupavam dos hinos ansiavam por eles como os homens anseiam por se afogar em álcool e esquecer os aborrecimentos deste mundo.
Por toda a parte, em todas as cidades e aldeias se viam, à noite, chamazinhas a bruxulear, iluminando um círculo de homens que, de pé ou sentados, escutavam a voz surda do leitor.
Mais raramente, nalguma caza desviada, soava o rufo do tambor, parecendo sair do fundo dos séculos.
Distinguiam-se então dois homens de serapes brancas orladas de azul. Depois, todos entoavam os cânticos de Quetzalcoatl e, por vezes, dançavam numa roda, lentamente, martelando com os pés o ritmo antigo da América aborígene.
Porque as danças dos Astecas, dos Zapotecas e todas as raças de índios já submergidas são baseadas nesse passo pesado dos peles-vermelhas do Norte. Eles não o esquecem, jamais o esquecerão; está-lhes no sangue, e revivem-no com uma sensação de medo, alegria e alívio.
Por si mesmos, não se atreveriam a envolver-se no terrível encanto do passado. Mas nos cânticos e hinos de Quetzalcoatl falava uma voz nova, a voz e a autoridade dum amo e senhor, e embora fossem lentos em conceder a sua confiança, acolhiam a "velha novidade" com um misto de receio, prazer e consolação.
Os homens de Quetzalcoatl evitavam as feiras e as grandes aglomerações. Preferiam os locais sossegados.
Sentado no rebordo de uma fonte, um indivíduo de serape de barra azul começava a ler em voz alta. Isto bastava. Os transeuntes detinham-se a fim de o escutar. Ele lia até ao fim e depois declarava: "Terminei a leitura do quarto hino de Quetzalcoatl. Agora vou tornar a lê-lo."
Deste modo, por uma espécie de nota longínqua na voz e pela repetição lenta e monótona, aquilo ia-se infiltrando no espírito dos auditores.
Logo no princípio, produzia-se o escândalo dos Judas. Na Cidade do México, a Semana Santa parece ser consagrada ao traidor do Mestre. Por toda a parte se vêem bonecos quase de tamanho natural e de aparência grotesca. Em geral, representam o Judas sob o aspecto dum fazendeiro hispano-mexicano, com os seus bigodes acerados, barriga proeminente e calças cingidas à perna. O patrón tradicional. E sempre de faces rosadas e com o fato dos homens de raça branca; nunca o tipo moreno do indígena mexicano
Judas é a vítima e o herói da Semana Santa, tal como o esqueleto, o esqueleto a cavalo, é o ídolo da primeira semana de Novembro, por causa do Dia de Finados e o de Todos os Santos.
No Sábado Santo, cada qual pende o seu Judas na varanda da casa, pega lume ao cordel e de repente, no meio de gritos de alegria, rebenta a bomba escondida no corpo do boneco, que fica reduzido a migalhas. Toda a cidade ressoa com as explosões.
Produzira-se, pois, grande escândalo quando, numa igreja da Cidade do México, substituíram por esses Judas as imagens dos santos, e a Igreja começou a agitar-se.
No México, a Igreja deve agir com circunspecção porque não é popular e tem as unhas cortadas. Não é permitido tocarem os sinos mais de dez minutos. Os padres não têm licença para usarem fora do templo trajes eclesiásticos, além do hediondo casaco preto e volta branca dos pastores protestantes. Por isso aparecem o menos possível na rua e, por assim dizer, nunca nos locais mais concorridos.
Contudo, o sacerdote ainda conserva certa influência. São proibidas as procissões, mas não os sermões no púlpito nem os conselhos no confessionário. O presidente Montes não simpatizava com a Igreja e meditava na expulsão de todos os padres estrangeiros. O próprio arcebispo era italiano. Mas também era um lutador. Por sua ordem, todos os párocos proibiram os fiéis de escutar fosse o que fosse respeitante a Quetzalcoatl e recomendaram que não só rasgassem os folhetos que por acaso lhes viessem parar às mãos como impedissem a leitura dos hinos ou o entoar dos cânticos pagãos na sua paróquia.
No entanto Montes ordenara por seu turno à polícia e ao exército que protegessem os Homens de Quetzalcoatl - com essa protecção devida a todos os bons e leais cidadãos.
Não é em vão que o México é o México; contudo, já houvera sangue derramado de ambas as partes, e isso Ramon queria evitar, pois sentia que uma morte violenta se não apaga da alma dos homens com a facilidade com que desaparecem na lavagem as manchas de sangue no pavimento.
Eis porque, uma vez na cidade, pediu ao bispo de Oeste lhe concedesse uma entrevista, a ele e a Don Cipriano, e fixasse o local. O bispo, velho amigo e confessor de Carlota, conhecia bem Don Ramon. Respondeu que teria muito gosto em o receber e ao señor general no dia seguinte, se se dessem ao incómodo de ir a sua casa.
O prelado já não habitava o paço episcopal, que haviam transformado em edifício dos correios, mas possuía uma boa casa não longe da catedral e que lhe fora oferecida pelos fiéis.
Ramon e Cipriano encontraram o fanzino velho à sua espera numa biblioteca poeirenta e pouco interessante. Estava de sotaina preta, já muito usada, com botões de púrpura. Acolheu os visitantes com modos afáveis, e, embora o olhar revelasse desconfiança, representou bem o papel de velhote bonacheirão.
- Há quanto tempo o não vejo, Don Ramon! Como tem passado? Bem? Muito me alegra saber! - E batia no braço de Ramon como um tio afectuoso. - Grande honra em vê-lo nesta humilde casa, general! Ora façam favor de se sentar.
Instalaram-se em cadeiras de couro, na sala triste e poeirenta. O bispo contemplava com nervosismo os dedos magros e a bela ametista que num deles ostentava.
- Estou às vossas ordens, senhores - disse por fim, erguendo os olhos pequeninos e vivos. - Inteiramente à vossa disposição.
- Minha mulher encontra-se na cidade. Já lhe falou, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Já, meu filho.
-Nesse caso, monsenhor, deve estar ao facto das últimas novidades a meu respeito. com certeza Carlota disse tudo.
- Em parte, em parte! Na verdade, referiu-se a si, Don Ramon. Mas agora, graças a Deus, tem os filhos a seu lado para a distraírem. Regressaram à sua terra natal, e de boa saúde.
- Viu-os?
- Sim. Estimo-os muito, a ambos. São simpáticos e inteligentes como o pai, e, como ele, prometem ser de boa presença... Se lhe apetece fumar, general, não faça cerimónia.
Cipriano acendeu um cigarro. Aquele ambiente fazia-lhe lembrar a sua juventude e, embora divertido, sentia-se nervoso.
- Já sabe tudo o que pretendo fazer, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Tudo, não, meu filho, mas sei o bastante para não querer
mais informações. Ah! - suspirou o prelado. -É bem triste!
- Porque havemos de levar o caso para o lado da tristeza? No México somos índios na maioria. Os índios não compreendem o cristianismo, monsenhor, e a Igreja bem o sabe. O cristianismo é uma religião do espírito e necessita ser compreendido para ter alguma eficácia. Ora os índios são tão incapazes de o compreender como os coelhos dos montes.
- De acordo, meu filho. Mas podemos transmitir-lho. Os coelhos dos montes estão nas mãos de Deus.
- Não, é impossível. E, se não tiverem uma religião que os relacione com o universo, todos hão-de sucumbir. Só a religião lhes pode valer; de nada lhes servirá o socialismo, a instrução ou qualquer outra coisa.
- Diz muito bem, Don Ramon...
- Talvez os coelhos dos montes estejam nas mãos de Deus, monsenhor, mas estão à mercê dos homens. O mesmo sucede ao povo do México. Afunda-se cada vez mais em inércia, e a Igreja não consegue ajudá-lo porque não possui a chave que abre a alma mexicana.
- A alma mexicana não conhece a voz de Deus? - redarguiu
o bispo.'
- As ovelhas que apascenta devem conhecer a sua voz, monsenhor. Mas se for pregar às aves do lago, ou aos gamos da montanha, conhecê-la-ão? Deter-se-ão para a escutar?
- Quem sabe? Detiveram-se a escutar S. Francisco de Assis.
- Hoje é preciso falar aos mexicanos na sua própria linguagem, indicar-lhes a palavra que lhes abrirá a alma. Eu indico-a: Quetzalcoatl. Se estou em erro, que eu pereça! Mas não estou.
O bispo movia-se, inquieto. Não queria ouvir aquilo, não queria responder e nenhuma das coisas podia evitar.
- A sua Igreja é a Católica, monsenhor?
- Evidentemente.
- E a Igreja Católica significa igreja universal, igreja de todos?
- com certeza, meu filho.
- Então porque não a deixa ser realmente católica?... Porque chamá-la católica quando não é mais do que uma entre numerosas Igrejas e, ainda por cima, hostil a todas as outras? Porque não há-de ser a Igreja Católica verdadeiramente universal?
- É a Igreja Universal de Cristo, meu filho.
- Porque não também a Igreja Universal de Mafoma? No fim
de contas, Deus é só um, o mesmo para todos; os povos é que se exprimem em linguagem diferente e cada qual precisa de um profeta que lhe fale no seu idioma. A Igreja Universal de Cristo e Mafoma, de Buda, de Quetzalcoatl e de todos os outros... eis a verdadeira Igreja Católica, monsenhor!
- Fala de assuntos muito transcendentes! - observou o prelado, fazendo girar o seu anel.
- Não, qualquer pessoa entende! - replicou Ramon. - A
Igreja Católica é uma igreja de todas as religiões, um lar na terra para todos os profetas, uma árvore imensa sob a qual podem sentar-se e descansar todos os homens que reconhecem a vida mais elevada da alma. Não é assim, monsenhor?
- Meu filho, só conheço a Igreja de Cristo, apostólica e romana, de que sou humilde servo. Essas subtilezas de que me fala não as posso compreender.
- Venho pedir-lhe a paz, monsenhor. Não sou daqueles que
odeiam a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana, mas creio que ela não tem lugar no México. Quando não sinto o coração amargurado, ando cheio de gratidão por Cristo, Filho de Deus. A história dos Judas afligiu-me mais do que a si, monsenhor, assim como deveras me aflige sangue derramado.
- Não sou um inovador, meu filho, para provocar efusões de sangue.
- Oiça! vou retirar da igreja de Sayula as imagens de santos, com todo o respeito, e com todo o respeito as queimarei à beira do lago. Depois colocarei na igreja a imagem de Quetzalcoatl.
O bispo ergueu os olhos de súbito e, por uns momentos, ficou
sem dizer nada.
- Atreve-se a isso, Don Ramon? - replicou finalmente.
- Sim, e ninguém mo impedirá. Tenho a meu lado o general Viedma.
O prelado lançou um olhar furtivo a Cipriano.
- Certamente - confirmou este.
- Contudo, é ilegal - volveu o bispo, indignado.
- Que há de ilegal no México? - retorquiu Ramon. - Só é ilegal a fraqueza, e eu não serei fraco, monsenhor.
- Triste fortaleza! - comentou o velho, encolhendo os ombros.
Houve uma pausa.
- Venho pedir a paz - tornou Ramon. - Transmita ao arcebispo as minhas palavras; ele que diga aos cardeais e ao Papa que chegou o momento de haver uma Igreja para todos os homens. Que a árvore da Igreja estenda os seus ramos sobre toda a terra e abrigue à sua sombra os profetas que proclamam o seu conhecimento do Além.
- Considera-se um desses profetas, Don Ramon? - inquiriu
o bispo olhando-o cheio de compaixão.
- Considero-me. E falarei de Quetzalcoatl ao México e edificarei aqui o seu templo.
- Não. Conforme afirmou há pouco, invadirá os templos de Cristo e da Virgem Maria.
- Conhece as minhas intenções. Mas não quero contendas com a Igreja de Roma, nem derramamento de sangue, nem hostilidades... Não poderá compreender-me? Não deve a paz reinar entre os homens que se esforçam, cada qual por caminho diferente, por
atingir o mistério de Deus?
- Profanar de novo os altares! Introduzir ídolos nas igrejas, queimar a imagem de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, e querer paz? - exclamou o bispo, que nesse momento só aspirava a que o
deixassem.
- Sim, tudo isso, monsenhor.
- Que lhe posso dizer? É um homem bom, Don Ramon, dominado pela loucura do orgulho. Don Cipriano é um dos inúmeros generais mexicanos, e eu sou o velho bispo desta diocese, servo fiel da Santa Igreja, humilde filho do Santo Padre. Que posso fazer? Que posso responder? Leve-me para o cemitério e fuzile-me imediatamente, general!
- Não tenho essas ideias - replicou Cipriano.
- É como tudo isto acabará, com mortes - tornou o bispo.
- Mas porquê? - protestou Don Ramon. - Não é lógico o
que eu digo? Não me compreende?
- Meu filho, vivo da minha fé e dos deveres do sacerdócio, e o que eu compreendo é que se afasta para bem longe do caminho da Verdade.
- Adeus, monsenhor! - disse Ramon, pondo-se de pé bruscamente.
- Deus o acompanhe, meu filho - respondeu o prelado erguendo os dedos.
Cipriano fez tilintar as esporas e levou a mão ao punho da espada antes de se dirigir para a porta.
- Adiós, señor.
- Adiós, general - disse o bispo, dardejando-lhes um olhar de fúria que eles sentiram nas costas.
- O velho jesuíta não transmitirá aos outros o teu recado - comentou Cipriano quando iam a descer a escada. - O que ele quer é conservar o seu lugar e a sua influência... Já os conheço...
- Não sabia que os detestavas - retorquiu o amigo, rindo-se.
- Não vale a pena perderes mais fôlego com essa gente - disse Cipriano. - Segue o teu caminho e não te rales.
Foram a pé, atravessando o largo do edifício dos correios onde modernos escribas, sentados debaixo das arcadas, escreviam cartas à máquina para os analfabetos que esperavam, a troco dalguns centavos, ter as suas missivas em magnífico castelhano.
- Ouvi dizer - prosseguiu Cipriano - que os Cavaleiros de Cortez deram um banquete no decurso do qual juraram tirar a vida a ti e a mim. Mas parece-me que me assustariam mais os juramentos das damas católicas. Porque se um homem se detém para desabotoar as calças e urinar, os Cavaleiros de Cortez fogem a sete pés, julgando que lhes vão desfechar uma pistola. Por isso, não te preocupes nem tentes conciliar-te com eles. Se desconfiassem que os temes, tornar-se-iam insolentes. Mas seis soldados bastarão para meter na ordem toda essa escória.
Cipriano tinha aposentos no grande Palace da Plaza de Armas.
- Se me casar - disse ele, quando entravam no pátio, onde estavam soldados em posição de sentido -, se me casar arranjarei uma habitação na colónia. É mais recatado...
Cipriano, na cidade, chegava a ser cómico. Parecia inchado de orgulho e de autoridade arrogante quando ia a andar. Mas os seus olhos negros, luzindo por cima do nariz delgado e da barbicha de bode, não inspiravam riso. Dir-se-ia abrangerem tudo num relance. Tinha qualquer coisa de demoníaco, o general Viedma.

XVIII
Ramon falou com a mulher e os filhos na cidade, mas foi uma entrevista um tanto penosa. O mais velho dos rapazes sentia-se constrangido em presença do pai, enquanto o mais novo, Cipriano, que era delicado e bastante inteligente, mostrava o seu desagrado ao progenitor e assumia ares altivos.
- O papá sabe o que cantam por aí? - perguntou o pequeno.
- Não faço ideia - respondeu Ramon.
- Cantam... - O garoto hesitou e então, na sua voz clara e infantil, fez ouvir os seguintes versos com a música de La Cucaracha:
Don Ramon não fuma nem bebe, Dona Carlota bem o desejaria. Vai vestir-se com manto azul-celeste Que ele roubou à Virgem Maria.
- Não, isso não é verdade - disse Ramon, sorrindo. - O manto que eu uso tem uma serpente e um pássaro no meio. E ziguezagues pretos. E uma franja verde. Farias bem em ir comigo, para o ver.
- Não, papá, não vou.
- Porquê?
- Não quero meter-me nesse assunto que nos torna a todos ridículos.
- E não serás ridículo de fato à marinheiro e esse ar tão virtuoso? Mais valia que te vestisses de Menino Jesus.
- Oh, papá, essas coisas não se dizem!
- Serás obrigado a te confessares por ter mentido. Declaras que essas coisas não se dizem depois de mas ouvires dizer!
- Mas eu refiro-me às pessoas boas, às pessoas decentes.
- Isso! Agora chamas indecente a teu pai! Mais um pecado que terás de confessar.
O pequeno corou e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Seguiu-se um silêncio.
- Então vocês não querem ir a Jamiltepec? - perguntou Ramon aos filhos.
- Gostava de tomar banho no lago, e andar de barco - proferiu o mais velho lentamente. - Mas dizem que não pode ser.
- Porquê?
- Dizem que o pai se veste como os peóns - acrescentou o pequeno, a medo.
- É um traje bem bonito, mais do que o teu.
- E dizem também que o pai afirma ser o deus asteca Quetzalcoatl.
- Não, senhor. Só afirmo que o deus asteca vai voltar ao México.
- Mas isso não é verdade!
- Como é que sabes?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque nunca houve nenhum Quetzalcoatl, senão em ídolos.
- E as imagens dos santos?
- Isso é diferente. Os santos existiram, e estão no Céu.
- Pois Quetzalcoatl também está no Céu, e. encontrando-se lá, pode voltar à terra. Não me acreditas?
- Não, papá.
- Nesse caso, fica com a tua incredulidade - replicou o pai. rindo e levantando-se para se ir embora.
- Acho muito desagradável que façam cantigas ao papá e à mamã como fazem ao Pancho Villa - disse o filho mais novo. - É uma coisa que me dói.
- Fricciona com Vaporub o ponto dorido - redarguiu Ramon. - Uma fricção e isso passa.
- Como o papá é tão mau!
- E como tu és tão bom! Não é assim?
- Não sei. Só sei que o papá é mau.
- Oh! Oh! É isso que te ensinam no colégio?
- No próximo período vou mudar de nome - declarou Ciprianito. - Não quero usar mais o apelido Carrasco. Quando falarem do papá nos jornais hão-de se rir de nós.
- Oh! Oh! Eu é que me rio de ti neste momento, meu franganote! Que nome vais escolher então? Talvez Espina... Como sabes. Carrasco é uma planta brava dos mantagais de Espanha. Queres ser o espinhito do arbusto? Chama-te Espina. entonces, adiós, señor Espina Espinha!
- Adiós - respondeu o pequeno, rubro de cólera.
Ramon foi de automóvel até Sayula. Haviam aberto uma estrada, mas as chuvas tinham-na desnivelado, e o carro ia aos tombos, de cova em cova. A meio caminho jazia um camião de fundo para o ar.
Na planície deserta estagnavam já poças de água, e as flores cor-de-rosa e amarelas mostravam tufos de botões. Ao longe, as colinas tornavam-se numa massa verde opaca conforme as folhas revestiam as árvores e os arbustos invisíveis na distância. A terra renascia para a vida.
Chegado a Sayula, Ramon dirigiu-se a casa de Kate. Esta saíra, mas Concha correu a procurá-la na praia.
- Está cá Don Ramon! Está cá Don Ramon!
Kate regressou à pressa, com os sapatos cheios de areia. Achou Ramon fatigado, e sinistro naquele fato preto.
- Não o esperava - disse ela.
Empertigado na cadeira, de semblante sombrio, alisava sem cessar o bigode preto sobre os lábios cerrados.
- Viu alguém conhecido na cidade? - perguntou Kate.
- Don Cipriano, e minha mulher e meus filhos.
- Ah! Eles estão bem?
- De excelente saúde, creio eu. Kate riu-se, inesperadamente.
- Que ar tão zangado! Ainda é por causa dos macacos?
- Señora- disse Ramon. inclinando-se para a frente, de modo que uma melena lhe tombou para a testa - no reino dos monos não sei quem é príncipe, mas no dos loucos sou eu com certeza.
- Porquê?
E, como ele não respondesse, Kate ajuntou:
- Vale a pena ser príncipe, ainda que dos loucos. Ramon lançou-lhe um olhar furibundo, mas logo desatou a rir.
- Oh, señora mia! O nosso mal é querermos ser sempre bons.
- Sente-se arrependido?... - volveu Kate, em tom de gracejo.
- Sim, sou o rei dos loucos. Porque levantei essa história de Quetzalcoatl? Porquê? Serei capaz de me explicar?
- Porque lhe agrada, suponho.
Ramon reflectiu um instante, sem largar o bigode.
- Antes ser macaco do que idiota. E. contudo, oponho-me a que me considerem macaco. Carlota sim. pertence a essa raça, e os meus filhos não passam de macaquinhos vestidos à marinheiro. Eu sou um louco. E que diferença haverá entre um louco e um macaco?
- Quien sabe - disse Kate.
- Um quer ser bom, outro tem a certeza de que é bom. é o que me torna louco, a vontade de ser bom. Eles, tão seguros de serem bons, fazem de si mesmos uns macacos. Oh, quem me dera que o mundo explodisse como uma bomba!
- Não explodirá - asseverou Kate.
- Pois não...
Ramon endireitou-se na cadeira e mudou de assunto.
- Então, señora Caterina, sempre se decide a casar com o nosso general?
- Eu... eu... não sei - balbuciou Kate. - Mas não creio...
- Não lhe é simpático?
- é, sim, e acho até que irradia certo encanto. Mas não devemos arriscar-nos ao matrimónio com uma pessoa doutra raça, por muito simpática que seja, não lhe parece?
- Ah! - suspirou Ramon. - Só vale a pena o casamento quando haja verdadeira fusão, seja onde for.
- E eu sinto que não haverá - disse Kate. - Tenho a impressão que ele só pretende de mim uma coisa; e eu, por meu lado, talvez também só uma coisa pretenda dele. Mas nunca nos encontraríamos em verdadeira comunhão. Ele viria para obter o que deseja de mim, e eu teria de consentir... Ora não é apenas isso que eu quero. Quero um homem que me encontre a meio caminho...
Don Ramon pensou um pouco e em seguidameneou a cabeça.
- Tem razão. Mas nesse assunto nunca se sabe ao certo onde é o meio caminho... Uma mulher que deseja simplesmente que a tomem para depois se agarrar ao homem não passa de um parasita. E um homem que quer simplesmente tomar, sem nada conceder, é uma ave de rapina.
- Receio que seja esse o caso de Don Cipriano - murmurou Kate.
- É possível - disse Ramon. - Comigo ele não se mostra assim, mas talvez o fosse se não nos encontrássemos... a meio caminho... de uma espécie de crença física que está bem no centro do nosso ser e que reconhecemos um no outro. Não poderá isso existir entre a señora e ele?
- Desconfio que Don Cipriano não vê a necessidade de semelhante coisa, tratando-se de uma mulher. As mulheres têm pouca importância.
Ramon ficou silencioso.
- Talvez - disse por fim. - com uma mulher, o homem deseja sempre abandonar-se, quando, pelo contrário, devia agarrar-se à sua crença mais profunda... Porque se a crença de cada um coincide, se é física, só ali se podem encontrar. De nada serve um homem violentar uma mulher ou uma mulher violentar um homem. É pecado. O pecado existe, e está na origem. Homens e mulheres continuam a violentar-se mutuamente. Por muito absurdo que pareça não sou eu que desejo apoderar-me de Carlota, ela é que quereria possuir-me. Chega a ser estranho, quase vergonhoso, mas é a verdade. Ah, se conseguíssemos manter-nos fiéis à nossa alma e encontrar-nos nessa região serena! Não tenho grande consideração por mim mesmo. A mulher e eu falhámos um perante o outro, e é um malogro bem triste para guardar no íntimo do nosso ser.
Kate olhou-o com espanto e certo medo. Porquê aquela confissão? Estaria ele prestes a amá-la? Ramon fitava-a com uma expressão dolorosa nos olhos sombreados pelo desgosto, cólera e vexame.
- Lastimo bastante que Carlota e eu nos não entendamos - continuou ele. - Quem sou eu. para me atrever a falar de Quetzalcoatl quando tenho o coração roído pela ira que sinto contra a mulher que desposei e contra os filhos que ela me deu? Nunca as nossas almas se encontraram. A princípio amava-a, e ela gostava que eu a desejasse. Mas passado tempo não se é capaz de continuar a querer com ardor a posse da mesma mulher. Sente-se uma espécie de repulsa. O amor foi então da sua parte, e quiz conquistar-me à viva força. Depois cansou-se também. O pequeno mais velho é realmente meu filho, concebido pelo meu desejo, e o mais novo é filho dela concebido pelo seu desejo. Veja como tudo isto é lamentável! E agora, jamais poderemos encontrar-nos. Carlota volta-se para o seu Deus. e eu volto-me para o meu Quetzalcoatl. que ao menos não pode ser violentado.
- E estou certa que não fará dele um violador.
- Quem sabe? Se eu errar será nesse sentido. Mas, señora, Quetzalcoatl não é para mim senão o símbolo de uma perfeição acessível ao homem. O universo é um ninho de dragões em cujo centro está um mistério insondável da vida. Pouco importa que eu chame a esse mistério Estrela da Manhã. A existência do homem não se realiza no abstracto. O homem é uma criatura que, polegada a polegada, arranca a sua própria criação do antro dos dragões do Cosmos. Ou então perde-a a pouco e pouco, desfeita em migalhas. E estamos a perdê-la... Temos de a reconstituir, homens e mulheres, senão pereceremos todos.
- Mas... necessita duma mulher na sua vida? - perguntou Kate.
- Aspiro ao apaziguamento sensual do meu ser, señora. Não sou daqueles que acreditam na renúncia dos desejos do sangue. Sou homem sempre pronto a tomar esposas e concubinas, tal a sede de apaziguamento. Mas agora sei que é para mim inútil arrebatar uma mulher com o meu desejo ardente, por muito que ela me ame e queira despertar-me o desejo. Vinho, amor e canções... tudo acabou. Já nada disso existe.
- No entanto precisa de uma mulher a seu lado.
- Ah, señora! Se eu pudesse confiar em mim e confiar nela! Já não sou um adolescente, a quem se desculpam todos os erros. Tenho quarenta e dois anos e tenho o meu derradeiro... ou melhor, o meu primeiro grande esforço de homem. Espero morrer antes de cometer um erro crasso.
- E porque havia de o cometer?
- É muito fácil enganar-me. Muito fácil, por um lado, tornar-me arrogante; muito fácil, por outro, renunciar a mim próprio e fazer da minha vida uma espécie de sacrifício.
- Mas porque não procede como diz? Porque não se apoia no mais profundo do seu ser e não comunga com uma mulher, aí onde as duas almas coincidam no seu desejo mais forte? Nem sempre há-de haver aquele horrível desajustamento a que chama violentação.
- Que mulher podia eu possuir carnalmente sem me submeter à lenta degradação de violentar e ser violentado? Se casasse com uma espanhola ou com uma mexicana, abandonar-se-ia a mim para que eu a dominasse. Casando com uma anglo-saxónica ou uma branca de raça nórdica, ela quereria dominar-me com a sua vontade de todos os antigos demónios brancos. As primeiras são parasitas da nossa alma e sentimos fastio. As outras são vampiros. E entre as duas espécies não há nada.
- com certeza que existem mulheres diferentes dessas.
- Nesse caso, mostre-mas. São todas autoritárias, Carlotas ou... Caterinas. Estou certo de que dominou Joachim até à sua morte. Acredito que ele se prestasse a isso mais até do que a senhora desejaria. Não é apenas uma questão de sexo. Reside na vontade: vítimas e dominadores. As classes elevadas aspiram a ser vítimas das classes inferiores ou passarem por tal. Os políticos tentam tornar os povos em vítimas uns dos outros. A Igreja procura transformar as pessoas em seres humildes e torturados que só desejam ser vítimas. Ah, a terra é um lugar bem triste!
- Mas. se deseja ser diferente - disse Kate - há-de haver algumas outras pessoas como o senhor.
- É possível - replicou ele, acalmando-se. - É possível. Gostaria de me reprimir melhor. Reprimir-me, concentrar-me em mim próprio, onde eu esteja em paz. Na minha Estrela da Manhã. E agora já me envergonho de ter dito o que disse, señora Caterina.
- Porquê? - exclamou ela. E, pela primeira vez, veio-lhe à face o rubor da pena e da humilhação.
Ele notou-o logo e, por um momento, descansou a mão sobre a de Kate.
- Não, afinal não me envergonho. Estou aliviado.
Ao contacto dessa mão, a irlandesa corou ainda mais e ficou silenciosa. Ramon levantou-se rápido para se ir embora, de novo ansioso de se reencontrar na sua alma.
- Domingo vai plaza, de manhã, quando ouvir o tambor? perguntou Ramon.
- Para quê?
- Verá.
E, assim falando, desapareceu.
Havia muitos soldados na aldeia. Quando foi ao correio, Kate encontrou os homens de farda de algodão dispersos pelas imediações do quartel. Eram cerca de cinquenta, não como esses outros de chapéu desabado e grande estatura, mas pequeninos, vivos, sólidos como Cipriano: falavam baixo um estranho dialecto índio. Raras vezes se viam nas ruas, porque em geral se escondiam.
Os habitantes tinham ordem de recolher às dez horas da noite. Kate ouvia as patrulhas passar a cavalo, através da escuridão.
Dir-se-ia envolver o país uma atmosfera de excitação e mistério. O cura da paróquia, que era gordo e roçava pelos cinquenta anos, pregara no sábado à noite um sermão memorável contra Ramon e Quetzalcoatl, proibindo a menção deste nome execrando e predizendo castigos aos paroquianos que lessem os hinos ou os escutassem.
É claro que foi atacado quando saía da igreja e precisou de uma escolta de soldados para regressar a casa, onde chegou a salvamento. Mas a criada, uma velha que o servia há muito, ouviu as mulheres dizerem que, da próxima vez que o padre abrisse a boca para falar contra Quetzalcoatl. receberia umas poucas de facadas no abdómen. Deste modo ficou ele de portas adentro, fazendo-se substituir pelo coadjutor.
Quase toda a gente que chegava de barco, aos sábados, ia ouvir missa à igreja de Sayula, cujas portas ficavam abertas todo o dia. Os homens que iam para o lago ou que vinham de lá tiravam sempre o chapéu, num gesto humilde, quando passavam defronte do templo. Havia constantemente pessoas ajoelhadas ao longo das naves ou entre as bancadas, os homens muito direitos, com o chapéu no chão. a seu lado, as mulheres encapuchadas nos rebozos escuros, rezando numa espécie de abandono voluptuoso, de cotovelos apoiados ao banco.
No sábado à noite, a cintilação avermelhada de muitos círios iluminava o interior sombrio da igreja. Via-se como que um mar agitado de cabeças escuras, uma confusão de gente que vinha da praia e se dirigia ao mercado. Silêncio mas não bem de adoração, antes de pasmo diante daquele cintilar de luzes.
Não, não era veneração, talvez entorpecimento e abandono da alma flutuando sem governo. E era também para eles um luxo após a semana de sujidade e desleixo nas suas aldeias sórdidas de cabanas de colmo. Isso, porém, irritava Kate.
Domingo de manhã havia a primeira missa ao nascer do Sol, outra às sete horas, outra às nove e mais uma às onze. A orquestra de violinos e violoncelos executava velhas músicas de dança. Desde muito cedo que se notava uma compacta massa de peóns e mulheres, todos ajoelhados; bruxuleavam chamas fumegantes que espalhavam o cheiro da cera, elevavam-se rolos de incenso juntamente com o coro das vozes masculinas, sólidas, poderosas, impressionantes.
E os fiéis retiravam-se com uma sensação de torpor que, logo à entrada da feira, se transformava em ódio, esse velho ódio insondável, latente no coração do índio e sempre pronto a despertar quando o agita uma satisfação voluptuosa.
O interior da igreja parecia uma coisa morta, como aliás, todas as igrejas mexicanas, até a sumptuosa catedral de Puebla. Os templos italianos são quase todos no mesmo estilo, e no entanto paira neles uma sombra serena, a paz de antiga e misteriosa santidade, o silêncio. Mas tal não sucede no México. Exteriormente as igrejas possuem imponência. Por dentro, são vazias de sons e no entanto o silêncio não impera; simples e contudo vulgares, nuas, áridas, mais nuas do que uma escola ou uma sala de concertos deserta, mais desprovidas de mistério do que qualquer desses edifícios. Tem-se uma impressão de argamassa, de estuque, de lambuzadelas de cal azul ou cinzenta e de dourados superficiais com o odioso aspecto de purpurina e não de ouro puro. Enfim, nenhuma doçura, nenhum recolhimento.
Eis o interior da igreja de Sayula. onde Kate já entrara muitas vezes. Por fora era encantadora e enquadrava-se bem na paisagem, com as suas duas torres brancas elevando-se acima dos salgueiros verdes. Mas por dentro não havia nada senão o estuque branco com estrias azuis e cinzentas. As janelas, numerosas e altas, deixavam penetrar a luz como numa escola. Num dos transeptos estava Jesus sulcado de sangue, e à sua frente a Virgem Maria, vestida de cetim, olhava com ar admirado sob a redoma de vidro. Viam-se ali flores de papel, flores de pano e rendas prateadas que pareciam de zinco.
No entanto, a igreja era muito limpa, e muito frequentada.
Acabado o mês de Maria, retiraram as grinaldas de papel branco e azul, assim como os vasos de palmeiras das naves laterais. Deixaram de aparecer, à tarde, as rapariguinhas vestidas de branco, coroadas de flores e com ramalhetes na mão. É extraordinário como as antigas e enternecedoras cerimónias da Europa assumem no México aspecto vulgaríssimo e se transformam numa espécie de espectáculo popular.
No dia de Corpo de Deus a igreja encheu-se até à porta, e houve uma pequena procissão de crianças dentro do templo - visto a lei proibir desfiles religiosos na rua. Tudo aquilo constituía fiesta, um pretexto para não fazerem nada, para justificarem o seu desejo de inacção. A eterna indolência mexicana.
Decorriam as semanas, a multidão na igreja era sempre densa, mas essa mesma multidão, ao sair do templo, rodeava os Homens de Quetzalcoatl.
Durou isto até ao dia em que os oradores mais socialistas misturaram aos seus discursos um pouco de azedume anticlerical. Então ospeóns começaram a murmurar: Será El señor um gringo e a Santíssima uma gringuita?
O caso provocou admoestações da parte dos sacerdotes e por fim as ameaças do famoso sermão. A guerra estava declarada.
Toda a gente esperava ansiosa pelo sábado seguinte. Chegou o dia, a igreja conservou-se fechada, e fechada se manteve todo o domingo.
O povo na feira parecia consternado, já não sabia para onde ir. Mas à consternação juntava-se certa curiosidade. Talvez acontecesse algo de sensacional...
Já noutros tempos haviam sucedido coisas... No decurso das revoluções, muitas igrejas mexicanas tinham sido transformadas em escolas, salas de concerto ou cinemas. Vários conventos serviam agora de quartel. O mundo está sempre a modificar-se.
No sábado seguinte ao encerramento da igreja, havia uma grande feira, de excepcional importância. Viam-se ali homens a vender escudelas de pau envernizadas, mulheres com loiça de barro vidrado. E, como de costume, índios de sentinela às suas ameixas, abóboras ou mangas, amontoadas em pirâmide ao longo dos passeios.
Um mercado à cunha, e as portas da igreja fechadas, e os sinos calados. Até o relógio parara. É certo que parava de vez em quando, mas nunca estivera tanto tempo sem funcionar. Parecia uma imobilidade definitiva.
Nem missa, nem confissão, nem rolos de incenso... Só murmúrios sufocados, olhares furtivos e receosos. À beira do passeio, os vendedores pareciam ídolos astecas, hirtos, agachados no chão e com os joelhos quase ao nível dos ombros. Por toda a parte se viam soldados, em grupos de dois e de três. E señoras e señoritas, todas de mantilha preta, acorriam a ouvir missa, embora já soubessem que a igreja estava fechada.
Mas era domingo e alguma coisa ia acontecer nessa manhã.
Cerca das dez horas apareceu um barco e dele saltaram para terra vários homens de fato branco, dos quais um trazia o tambor. Abriram caminho entre a multidão que estacionava debaixo das árvores e dirigiram-se para a igreja.
Em frente das portas sempre fechadas, despiram o casaco e formaram círculo, todos de torso nu e faixa azul e preta a apertar-lhes a cintura.
Soou o tambor, em pancadas fortes, bem ritmadas, enquanto os homens se mantinham agrupados no adro, numa roda estranha de cabeças negras e lustrosas, espáduas bronzeadas e calças brancas. Continuou o toque de tambor, sempre igual, a que depois se juntou o som ácido de uma flauta de barro.
Todos os que se encontravam no largo da feira correram para a igreja. Mas estavam ali soldados para impedir que penetrassem no adro ou saltassem os muros baixos. De modo que a multidão ficou debaixo dos salgueiros e das pimenteiras, ou então ao sol, a presenciar os acontecimentos. Na sua maioria eram homens de grandes chapéus, mas também ali se encontravam pessoas da cidade, e algumas mulheres, entre as quais Kate, munida de sombrinha azul-escura. Diante de si tinha a massa compacta de gente, comprimindo-se em silêncio na sombra escassa das árvores; atrás, estacionavam automóveis e caminhetas.
Calou-se o tambor, calou-se a flauta. Ouvia-se o marulho do lago, tilintar de copos, vozes de motoristas que bebiam numa taberna e, dominando tudo, o silêncio ofegante da multidão. Vários soldados distribuíram folhetos pela assistência e uma voz máscula, bem timbrada, começou a cantar, acompanhada em surdina pelo tambor.
Durante o cântico, chegou outro barco, e os soldados afastaram a turba para deixar passar Ramon. na sua serape branca de orla azul e franjas vermelhas. Seguia-o um rapaz magro, vestido de sotaina, e mais seis homens de serapes escuras com a bordadura azul de Quetzalcoatl. Esta estranha procissão avançou através do povo até às grades do adro.
Quando eles se aproximavam, abriu-se o círculo de homens que rodeavam o tambor, desdobrando-se em forma de crescente. Ramon conservou-se de pé por trás do tambor e os seis indivíduos de serapes escuras separaram-se e foram postar-se a cada ponta do crescente. O mancebo magro vestido de sotaina permaneceu sozinho, à frente, encarando a multidão. Como ele erguesse uma das mãos,
Ramon tirou o chapéu e logo se descobriram todos os homens presentes.
Voltou-se o clérigo, dirigiu-se a Ramon e entregou-lhe a chave da igreja. Depois, esperou.
Ramon enfiou a chave em todas as portas do templo, escancarando-as. Subitamente ajoelharam os homens que estavam no primeiro plano: tinham visto aparecer o interior da igreja como uma caverna sombria, ao fundo da qual tremulava o clarão dos círios: dir-se-ia haver surgido a Sarça Ardente no meio das trevas misteriosas.
O resto do povo, estremecendo, caiu de joelhos. Só ficou de pé, aqui e ali, um operário, um motorista, um empregado do caminho de ferro.
De súbito, no fundo da sombra que todos os olhos perscrutavam, uma rajada apagou a Sarça Ardente e só ficou um ou outro círio aceso envolto num abismo de trevas.
Da multidão elevaram-se exclamações e murmúrios.
Então o tambor rufou baixinho e dois homens começaram a cantar um hino com possante voz de tenor que parecia entreabrir a terra. Eram indivíduos que Ramon e os seus partidários tinham encontrado em tabernas da Cidade do México. Os "tempos maus" haviam-nos reduzido a cantar nos antros da pior espécie, e agora elevavam a voz com toda a raiva demoníaca da sua desesperação.
O moço de sotaina entrou na igreja. Ramon seguiu-o e atrás dele foram todos os homens do semicírculo, em passos vagarosos. O sino badalou no silêncio de morte e calou-se daí a instantes.
Nas profundezas da nave soou um tambor, lento, distante e terrífico. com sobrepeliz ornada de rendas, o sacerdote apareceu no limiar. Trazia uma cruz, e hesitou antes de avançar para a claridade do exterior. O povo ajoelhado juntou as mãos.
Em direcção à porta tremulavam círios, vindos do fundo da igreja escura. Don Ramon emergiu da sombra, de torso nu e serape ao ombro, segurando a ponta dianteira do andor que sustinha a urna de vidro onde repousava Cristo morto - essa imagem de aspecto tão humano, que se venera na Semana Santa. Atrás, um homem trigueiro e alto, igualmente despido da cintura para cima, trazia ao ombro a outra extremidade do andor. A turba gemeu e benzeu-se. O Cristo morto parecia realmente morto quando transpôs a porta do templo. As mulheres e os homens ajoelhados ergueram o rosto, abriram os braços e assim ficaram em indizível êxtase, em que havia medo e súplica.
A seguir ao féretro vinha uma lenta procissão com os restantes andores. As estátuas avançavam oscilantes, transportadas por aqueles indivíduos de pele de bronze e, sob a luz crua do sol, chegaram por fim ao caminho que conduz ao lago.
- Puríssima! Puríssima! Não nos abandones! - gritavam as mulheres.
E alguns homens, tomados de estranha angústia, clamavam por seu turno:
- Senhor! Senhor! Senhor!
Agora, debaixo das árvores, o cortejo entrou na areia rugosa e surgiu em plena claridade, à beira de água. Corria uma brisa ligeira. As serapes dobradas baloiçavam nas espáduas luzentes, as imagens vacilavam levemente.
Junto do murinho da margem estava uma barca de vela, em comunicação com a terra através duma ponte de tábuas. Dois homens de branco, com as calças arregaçadas, ladearam o moço clérigo, cujas mangas largas ondulavam como bandeiras: ajudaram-no a embarcar, e ele, encaminhando-se para a proa, descansou ali a base da cruz. A barca era descoberta, sem nenhum toldo, mas tinham colocado lá -várias mesas para nelas poisar as imagens.
Ramon subiu devagar para bordo. Depositaram o caixão de vidro no seu suporte e os dois homens limparam a testa húmida de suor. A fim de se proteger do sol, Ramon cobriu-se com o manto e o chapéu. O barco baloiçava imperceptivelmente, embalado pelo vento de oeste. Batido do sol, o lago parecia uma coisa irreal.
Uma após outra, as imagens levantaram-se à popa, avultando de encontro ao azul do céu, e depois baixaram-se quando as puseram sobre as mesas. Era uma estranha colecção de estátuas de mau gosto e contudo essas efígies inspiravam certa compaixão, vendo-as assim agrupadas para a sua última viagem. Ao lado de cada uma viam-se os respectivos portadores, de chapéu e manta, segurando com mão firme nas varas do andor. Havia uma fila de soldados, na praia, e três gasolinas com militares esperavam junto da barca. a gente acorrera toda à beira de água, e muitas canoas de reinos, como peixes curiosos, rondavam a embarcação principal, sem todavia se atreverem a aproximar-se muito. Então, de pernas nuas, alguns marinheiros impeliram a barca para longe da margem, e aquela começou lentamente a mover-se nos baixios, afastando-se da praia e da multidão.
Dois outros marinheiros, rápidos, içaram a vela branca e quadrada. Depressa, mas pesada, ela subiu no ar e enfunou-se ao vento. No meio estava pintado o emblema de Quetzalcoatl, a serpente em círculo e a águia azul, no centro, em campo de oiro. À distância, parecia um olho enorme.
O vento soprava de oeste, porém a barca ia com rumo a sudeste, direita ao ilhéu dos Escorpiões, que se elevava como um vago montículo acima do lago ofuscante. Panda, a vela dir-se-ia olhar para trás com aquele seu grande olho arregalado, para a aldeia, para os salgueiros verdes, para a igreja branca e vazia e para a gente aglomerada na margem. Os gasolinas tornejavam a barca vagarosa, e as canoas seguiam-na de longe.
Na praia, o povo dispersava-se. Uns sentavam-se na areia, observando e esperando com uma paciência quase indiferente. A barca fez-se mais pequena, menos visível, e os barquinhos que a circundavam já não eram mais que pontos negros. A reverberação do lago fatigava os olhos.
Debaixo das árvores, em expectativa silenciosa, uma mulher comprou uma melancia, abriu-a batendo-a numa pedra e distribuiu pelos filhos os bocados cor-de-rosa. Uns homens polvilhavam de sal os pepinos que acabavam de comprar. A igreja estava completamente às escuras, pois não tinha outra luz senão a que entrava pela porta; e absolutamente vazia, pois fora despojada das suas imagens. Era já meio-dia e o calor apertava. A barca nesse momento costeava o ilhéu, onde vivia uma família de pescadores índios. Tinham algumas cabras e um pedaço de terreno cultivado de feijões e milho. À parte isso, era tudo rocha, com silvados'e lacraus.
Precedida pelas canoas, a barca contornou a costa para entrar na única enseada, onde já homens cor de bronze se banhavam entre os rochedos.
Arriaram a vela, a embarcação imobilizou-se e os seus tripulantes, saltando para a água, apearam as imagens e puseram-nas sobre as rochas, onde ficaram à espera dos seus portadores.
Formou-se de novo o cortejo e este, seguindo pela orla do ilhéu, passou diante das cabanas e alcançou os rochedos da outra margem, ocultos pelo matagal.
No lado fronteiro a Sayula era tudo pedra nua, árida e penosa para a marcha. À beira da água, numa depressão da rocha, tinham colocado pedregulhos de cada banda e, sobre eles, varões de ferro dispostos de modo a formar uma espécie de grelha. Por baixo estava uma pilha de lenha, pronta a arder. Perto, via-se outro molho suplementar.
Em cima daqueles varões pousaram as imagens - grupo patético contra o qual se apoiava a cruz. Era meio-dia, o calor e a luz envolviam tudo, mas já no horizonte se amontoavam nuvens.
Para além da reverberação da água, a aldeia parecia uma miragem, com as suas árvores e as torres brancas da igreja.
Os homens que tinham vindo nas canoas apinhavam-se nos rochedos do pequeno anfiteatro. Em silêncio, Ramon inflamou um punhado de caruma com o auxílio duma lente - e logo se elevaram chamazinhas como serpentes minúsculas. Então, com esse feixe de cobras rubras, pegou lume à pirâmide de lenha cuidadosamente disposta sob a grelha de ferro.
Crepitavam os ramos, e, entre baforadas de fumo branco, erguiam-se línguas de fogo no ar fremente. Num sopro de vento, as chamas altearam-se e a madeira resinosa começou a bramir. O vidro do féretro, estalando, parecia soltar gemidos de dor Por entre os varões de ferro. o lume enegrecia as imagens, consumia-lhes num ápice as túnicas e mantos de cetim.
Toda a gente se distanciou daquela árvore de lume que despedia centelhas até ao céu.
Só Ramon ficou onde estava, olhando em silêncio - até nada restar senão um braseiro e uma inextricável confusão de ferros meio fundidos.
Então, dum rochedo próximo, subiram foguetes no ar e explodiram com fragor, derramando uma chuva de oiro.
As pessoas aglomeradas na praia tinham visto o penacho de fumo e o clarão da fogueira. Ao ouvirem as detonações dos foguetes, olharam de novo, exclamando, aterradas:
- Señor! Señor! La Purísima! La Santísima!
Chamas, fumo e foguetes dissiparam-se como por milagre, deixando a atmosfera sempre límpida. com uma pá, deitaram as brasas numa cova funda.
A sudoeste, por cima das montanhas áridas, elevava-se uma nuvem semelhante a uma cauda branca - a cauda dum esquilo enorme que acabasse de desaparecer por trás dos píncaros. Foi-se desenrolando, desenrolando em direcção ao Sol, e quando a barca içou a vela para regressar à aldeia, já uma leve sombra pairava sobre o lago.
Só na extremidade baixa da ilha dos Escorpiões o ar quente ainda fremia.
Ramon voltou numa das lanchas de motor. A pouco e pouco o céu cobria-se de nuvens, preparando-se para chuva e trovoada. Não podendo atravessar o lago. a barca navegava para Tuliapan. As canoas apressavam-se em direcção à praia.
Chegaram antes de se desencadear o vento. Assim que desembarcou, Ramon foi fechar as portas da igreja.
A multidão dispersou-se sob as rajadas. Agitavam-se os rebolos, rodopiavam folhas, erguia-se poeira. Sayula estava sem Deus e, no íntimo, eles sentiam-se contentes.

CONTINUA

XVII
Na opinião geral, o presidente da República tinha utilizado a sua vassoura nova com excesso de zelo, e essa limpeza provocou uma rebelião. Não muito importante, mas o suficiente para justificar banditismo, roubos e terror nas aldeias.
Ramon estava decidido a manter-se afastado da política, mas já os Cavaleiros de Cortez e certo partido "negro" se preparavam para o atacar. Do alto do púlpito, os sacerdotes começavam a acusá-lo de Anticristo devorado pela ambição. Contudo, ele pouca coisa tinha a recear, com Cipriano a seu lado e, por consequência, todo o exército de Oeste.
Mas era possível que Cipriano fosse mandado para longe, a fim de defender o Governo.
- Acima de tudo - declarou Ramon - empenho-me em estar afastado da política. Não quero que me empurrem para este ou aquele partido. Se é para me deixar contaminar, mais vale abandonar tudo. A Igreja impele-me para os socialistas, e os socialistas trair-me-ão na primeira oportunidade. Não se trata de mim. Trata-se do espírito novo. O meio mais seguro de o aniquilar (e pode-se aniquilá-lo como a tudo o que vive) é associá-lo a um partido político, seja qual for.
- Porque não vais falar com o bispo? - lembrou Cipriano. Eu vou também. Para alguma coisa há-de servir ser comandante da divisão de Oeste.
- Sim - disse Ramon lentamente. - Hei-de avistar-me com Jiménez. Já tinha pensado nisso. Tenciono recorrer a tudo o que está ao meu alcance. Montes estará a nosso lado porque detesta a Igreja e não admite nada do que lhe cheire a ditadura exercida do exterior. Vê a possibilidade de uma Igreja Nacional. Não me interessam Igrejas nacionais, mas acho que temos de falar linguagem do povo. Sabes que os padres proibiram a leitura dos hinos
- E que te importa? - volveu Cipriano. - Hoje em dia só há perversidade neste povo. Agora é que eles hão-de ler.
- Provavelmente. Mas farei vista grossa. Deixarei expandir-se a minha nova "lenda", como a classificam, desenvolver-se enquanto a terra está húmida... Contudo, precisamos de vigiar todos os rebentos que apresentem interesse.
- Ramon! - exclamou Cipriano. - Se conseguisses transformar todo o México no país de Quetzalcoatl?
- Eu serei o "primeiro homem de Quetzalcoatl". Não sei mais nada.
- E não te importarás com o resto do mundo?
Ramon sorriu. Já ele vislumbrava nos olhos de Cipriano a chama da Guerra Santa.
- Gostaria de ser - disse ele - um dos iniciados da terra. E um dos iniciadores. Cada país com o seu Salvador, ou um Salvador para cada povo. Os primeiros de cada povo formariam aristocracia natural do mundo. Precisamos de uma aristocracia, mas natural, não artificial. De certa maneira o mundo necessita de ser organicamente unido: ser o mundo do homem. Unidade concreta e não abstracta. Ligas, alianças, programas internacionais. Ah, Cipriano, isto é como um flagelo internacional. As folhas de uma grande árvore não podem pender nos ramos de outra árvore, por maior que seja. As raças da terra são como árvores, não devem misturar-se nem confundir-se. Têm de estar no seu terreno, como árvores que são. Ou então sobrepõem-se, enovelam-se as raízes e a luta será mortífera. Só as flores é que podem unir-se, e as flores de cada raça constituem a sua aristocracia natural. Que o espírito do mundo voe de flor em flor, qual um colibri, e fertilize a planta. Apenas os aristocratas naturais conseguem elevar-se acima da sua nação, mas não além da sua raça. Apenas os aristocratas do mundo podem ser internacionais, cosmopolitas, cósmicos. Sempre assim foi. Os povos não são capazes disso, como as folhas da mangueira não são capazes de se prenderem aos troncos do pinheiro. Assim, se eu quero que os mexicanos decorem o nome de Quetzalcoatl é porque desejo que falem a linguagem do seu próprio sangue. Pudesse o mundo teutónico tornar ao espírito de Thor e de Wotan e da árvore Igdrasil! Pudessem os povos druídicos compreender que o seu mistério reside no visco e que eles mesmos são os Thuatas de Danaan, vivos embora submersos! E que um novo Hermes voltasse ao Mediterrâneo, um novo Astarot à Tunísia! E Mitra regressasse à Pérsia, e Brama, poderoso, à índia, e à China o mais velho dos dragões! Então eu, Cipriano, eu, primeiro homem de Quetzalcoatl, contigo, primeiro homem de Huitzilopochtli, e talvez tua mulher, primeira dama de Itzpapalotl, talvez nós lográssemos conhecer, com a nossa alma pura, os outros grandes aristocratas do mundo, o primeiro homem de Wotan, a primeira mulher de Freya, o primeiro senhor de Hermes e a primeira dama de Astarte, o mais bem-nascido de Brama e o filho do Magno Dragão. Digo-te eu, Cipriano, que a terra inteira rejubilaria quando os primeiros senhores do Ocidente encontrassem os primeiros senhores do Sul e do Oriente, no Vale do Espírito. Ah, a terra tem vales do Espírito, que não são cidades de comércio e indústria. O mistério é um só, porém os homens podem vê-lo diferentemente. O cardo, o hibisco, a genciana são flores da árvore da vida, mas vivem separadas no mundo. E assim deve ser. Eu sou hibisco, tu és a flor da iúca, a tua Caterina é o junquilho bravo, e a minha Carlota é um amor-perfeito branco. Quatro apenas, nós quatro, e contudo formamos um ramalhete curioso. Os homens e as mulheres não são mercadoria manufacturada, para servirem de objecto de trocas; mas a árvore da vida é una, sabemo-lo quando as almas desabrocham na floração final. Não nos trocamos, não o queremos. Todavia, quando a nossa alma se abre na floração final então as flores comungam entre si o mesmo mistério, para além do conhecimento das folhas, dos ramos e das raízes. Algo de transcendente.
Mas não é isto que importa por enquanto. O que tenho a fazer agora é lutar para abrir caminho no México, e tu deves tentar o mesmo. Façamos isso.
Ramon dirigiu-se para as oficinas onde os seus homens trabalhavam, sob a sua chefia, e Cipriano absorveu-se na correspondência e planos militares que tinha entre mãos.
Ambos foram interrompidos pelo barulho de uma lancha motorizada que entrava na baía. Nela vinha Kate, escoltada por Juana.
Ao seu encontro partiu Ramon, vestido de branco, com o chapeirão onde estava embutido o olho de turquesa de Quetzalcoatl e de faixa azul e preta. Kate trajava também de branco, chapéu verde e xaile de seda amarelo-pálido.
- Estou contente por voltar aqui - declarou ela, estendendo-lhe a mão. Jamiltepec tornou-se para mim uma espécie de Meca. Todo o meu ser aspira a este sítio.
- Então porque não vem mais vezes? Ser-me-ia muito agradável vê-la sempre por cá.
- Receio ser intrusa.
- De modo nenhum. E, se quisesse, podia ser-nos muito útil.
- Hum... Não acredito em grandes empreendimentos, que me assustam. Será talvez porque, no fundo, antipatizo com as massas, seja lá onde for. Temo que isto implique desdém pelos povos. Não gosto que me toquem nem gosto de lhes tocar. Como havia eu de fazer parte de uma espécie de... Exército de Salvação?
Don Ramon soltou uma risada.
- Comigo dá-se o mesmo. Desprezo as grandes massas populares. Mas aqui é o meu próprio povo.
- Eu, desde pequena, fui assim. Conta-se que tinha quatro anos... os meus pais ofereceram um jantar de cerimónia... e disseram à criada que me trouxesse à sala, para dar as boas-noites. Suponho que foram todos muito amáveis comigo, mas eu apenas respondi: "São macacos! São macacos!" Imagine o êxito desta cena! E o pior é que sinto agora o mesmo que sentia em criança. Para mim as pessoas não passam de macacos a fazerem as suas habilidades.
- Até as que lhe são mais chegadas?
Kate hesitou, mas acabou por confessar contra vontade:
- Sim, creio que sim. Os meus dois maridos, mesmo o segundo, pareciam-me um tanto... simiescos, tão obstinados nos seus pequenos ridículos. Quando Joachim estava a morrer, senti por ele uma espécie de repulsa. Perguntava a mim mesma: "A que macaco enfermiço consagrei tanto do meu ser?" Não acha isto horrível da minha parte?
- Acho. Mas julgo que todos experimentamos esse sentimento, de vez em quando... ou que experimentaríamos se o ousássemos. São fases do espírito.
- Chego a pensar que os seres humanos só me inspiram este sentimento. Gosto da terra, do céu, e do mistério do além. Mas as
: pessoas... considero-as a todas macacos.
Ramon percebeu que ela era sincera.
- Puras monas! - murmurou em espanhol. - Y lo que hacen, puras monerias. - Então acrescentou: - Tem filhos?
- Tenho, do meu primeiro marido.
- E eles... Monas y no mas?
- Não! - respondeu Kate, de testa franzida, como se descontente consigo mesma. - Só em parte.
- Isso é mau - volveu Ramon, meneando a cabeça. - Mas, afinal, que são para mim os meus filhos senão macaquinhos? E a mãe... a mãe... Ah, não, señora Caterina! Isto não serve de nada. Devemos ser capazes de nos libertarmos dos outros. Se me chego muito para uma roseira, os espinhos ferem-me. Temos de ver as pessoas como se vêem as árvores duma paisagem. De certa maneira, a humanidade domina-a, domina as suas faculdades conscientes. Por isso a detesta e deseja escapar-se-lhe. Mas só existe uma evasão possível: alcançar, para além dos outros, uma vida maior.
- É o que eu faço! - exclamou Kate. - Nunca fiz outra coisa. Quando vivia com o Joachim, absolutamente só numa casita isolada, sem criados e sem me dar com ninguém, tive sempre a sensação dessa vida maior e era livre e feliz.
- E ele? Era livre e feliz também?
- Era-o, na realidade. Mas aí é que intervinham as tais macaqueações de que lhe falei. Não se permitia ser feliz. Insistia em convidar gente e em criar assim motivos de tortura.
- Então porque não se deixou estar inteiramente só na sua casinha isolada, sem ele? Porque viaja e convive com as pessoas?
Vexada, Kate não respondeu. Sabia que não podia viver sozinha. Acabrunhava-a o vazio à sua volta. Precisava de um homem a seu lado para preencher esse vazio e mantê-la em equilíbrio. No entanto, mesmo quando o tinha presente, no fundo desprezava-o como se despreza um cão ou um gato. Entre ela e a humanidade havia esse laço subtil de antagonismo irredutível.
Era por natureza generosa e deixava aos outros a sua liberdade. Os servos afeiçoavam-se-lhe e todos que travavam conhecimento com ela a achavam encantadora e a admiravam. Pressentia-se nessa mulher um fluxo de vida ardente e certa alegria de viver.
Entretanto, sob isso tudo, jazia a aversão irreprimível, quase repugnância pelos outros. Sim era mais do que desagrado, chegava a ser repulsa. Fosse o que fosse, aquele sentimento dominava-a sempre ao fim de algum tempo. A mãe, o pai, as irmãs, o primeiro marido, até as crianças, que ela adorava, e Joachim, a quem dedicara tanto amor, mesmo estes, após curto convívio, principiavam a enchê-la de repulsa e Kate aspirava a ficar de novo só, e esquecida. Mas não seria um esquecimento definitivo, a menos que ela o provocasse de vez.
Assim era Kate. Até mergulhar no torvo esquecimento da morte, jamais conseguiria fugir a essa profunda, insondável repugnância pelos seres humanos. Os contactos breves podiam ser agradáveis e até emocionantes; mas os prolongados ou muito íntimos, originavam sempre rápidos ou demorados impulsos de violenta repulsa.
Kate e Ramon haviam-se sentado num banco do jardim, sob um loendro repleto de flores brancas. O rosto dele estava impassível, sereno. Nessa calma, um tanto constrangido, Ramon compreendia o estado em que se achava Kate e comparava-o com o seu, achando-o semelhante. O puro contacto pessoal, a simples aproximação dos seres enchia-o, também a ele, de aversão. Carlota aborrecia-o, Kate
aborrecia-o igualmente. Às vezes, o próprio Cipriano o entediava.
Isto, porém, acontecia quando se encontravam no campo meramente pessoal. Eis o inconveniente: sentia-se maçado deles e com
asco de si próprio.
Tinha de os encontrar noutro plano, onde o contacto fosse diferente, intangível, distante, sem intimidade. O seu espírito estava bem longe dali. A alma não deve ligar-se a ninguém, mas voltar-se para Deus, seja de que maneira for.
com Cipriano sentia-se mais em segurança. Quando, depois duma ausência, ambos se abraçavam, faziam-no sem renunciar à sua respectiva solidão. Como a Estrela da Manhã.
As mulheres, porém, não admitiam isto. Queriam intimidade, e a intimidade engendra o tédio. Carlota desejava estar perpétua e intimamente identificada com Ramon; por isso o odiava e a tudo o que ela supunha afastá-lo dessa comunhão. Era um horror, e ele tinha consciência do facto.
Os homens e as mulheres deviam saber que jamais se podem unir absolutamente neste mundo. No beijo mais ardente, na carícia mais terna, há um pequeno abismo que, por muito estreito que seja, não deixa de existir. Têm de se inclinar perante esse fosso e submeter-se reverentes. Mesmo que uma esposa represente para o marido mais do que a sua própria vida, ele é ele e ela é ela, e o abismo nunca se há-de fechar. Qualquer tentativa para o fazer constitui violação e um pecado contra o Espírito Santo.
O que adquirimos do Além, adquirimo-lo sós. O decisivo "eu sou" vem de muito longe, da Estrela da Manhã. Quanto ao resto, o que em nós é parte do poderoso Cosmos, podemos compartilhá-lo com o ente amado. Mas a alma, jamais.
Ramon debatera-se desesperadamente antes de descobrir o caminho para se evadir de si mesmo e se transportar à própria essência do ser e da existência a que ele chamava Estrela da Manhã - visto que no mundo é necessário dar um nome a tudo. Evadir-se, através da alma, atingir a Estrela da Manhã e ali, somente ali, encontrar o seu semelhante...
No entanto, ainda conhecia o malogro, e o malogro contínuo. Perante Carlota, falhava em absoluto. Esta reivindicava-o, e ele opunha-lhe uma resistência surda. Quando estava de tronco nu, com a mulher presente, nunca deixava de ter consciência dessa nudez, precisamente porque ela parecia considerá-lo propriedade sua.
Se os homens se encontram na essência de todas as coisas, não estão nus nem vestidos; na transfiguração acham-se completos, ninguém os vê em pormenor. A perfeita força final tem também o poder da inocência.
Sentado no banco ao lado de Kate, Ramon sentia-se dominado pela tristeza. O seu terceiro hino era cheio de sarcasmo e de cólera. Carlota quase conseguira amargurar-lhe a alma. No México, certos facciosos haviam-se apoderado da sua ideia, tornando-a ridícula. Tinham invadido uma das igrejas da cidade, derrubado todas as imagens sagradas e posto no lugar delas os grotescos Judas de papelão que inundam o México nos dias da Páscoa. Isto, é claro, provocara grande escândalo. Cipriano, por seu lado, de cada vez que se ausentava por algum tempo, voltava a ser o inevitável general mexicano, fascinado pela oportunidade de realizar as suas ambições pessoais e impor a sua própria vontade. E por fim vinha Kate, com a sua aversão pelas pessoas e o desejo de fazer explodir o mundo.
Ramon sentia o espírito deprimido, os membros pesavam-lhe como chumbo.
Só uma coisa um homem desejava realmente fazer no decurso de toda a sua vida: encontrar o caminho que o conduzirá ao seu Deus, à sua Estrela da Manhã, a fim de ali estar, sozinho; e, mais tarde, acolher na Estrela da Manhã o amigo da sua alma e regozijar-se com a mulher que percorreu com ele o longo caminho.
Contudo, descobrir esse caminho, até à essência resplandecente de todas as coisas, é deveras difícil e exige que o homem guarde para si toda a sua força e coragem. Se envereda por ele sozinho, é tremendo; mas, se todas as mãos o agarram para o reter, se as mãos do amor o prendem pelas entranhas e as do ódio o seguram pelos cabelos, então o avanço torna-se quase impossível.
"Tento realizar o impossível - dizia Ramon consigo mesmo.
- Mais valia gozar o meu quinhão dos prazeres desta vida e renunciar ao prazer supremo. Ou então ir para um deserto e seguir sozinho o caminho para a Estrela, onde encontraria enfim a minha solidão e o que em mim existe de sagrado. O caminho dos anacoretas e dos homens que se refugiaram nos ermos, a fim de orar. Porque a minha alma tem sede de consumação e estou farto dessa coisa a que chamam vida. Vivo, desejo partir desta região onde "eu sou".
Sentados lado a lado no banco, Ramon e Kate esqueciam-se um do outro, ela absorta no passado, com a sua repulsa por tudo isso, ele pensando no futuro e tentando reanimar-se.
A meio desse silêncio, Cipriano assomou à varanda, olhou em volta, e quase se sobressaltou ao ver lá em baixo as duas figuras sentadas no banco debaixo dos loendros, juntas e no entanto tão longe uma da outra no seu mutismo.
Ao ouvir-lhe os passos, Ramon olhou para cima.
- Já lá vamos! - exclamou, pondo-se de pé e relanceando a vista por Kate. - Não lhe apetece um refresco? Tepache ou sumo de laranja? O que não temos é gelo.
- Gostaria de sumo de laranja com água - respondeu ela. Ramon chamou pelo criado e deu-lhe uma ordem. Cipriano estava trajado de branco como o amigo, mas a sua faixa era vermelha e estriada de negro, como uma serpente.
- Ouvi-a chegar, e já pensava que tivesse partido... - disse ele, olhando para Kate com certo ar de censura e de ressentimento.
- Ainda não - replicou ela.
Ramon riu-se e deixou-se cair numa cadeira.
- A señora Caterina acha-nos a todos semelhantes a macacos; mas talvez as nossas macaquices sejam o que mais divertido tem para ver, e por isso acedeu a demorar-se aqui mais algum tempo.
Como verdadeiro índio, Cipriano sentiu-se ferido no seu orgulho, e os pêlos da mosca pareceram erguer-se-lhe no queixo, num assomo de dignidade.
- Não é justo apresentar as coisas desse modo - observou Kate, rindo.
Os olhos pretos de Cipriano fitaram-na com hostilidade. Pensou que ela se ria à sua custa: e de certo modo asssim era, no fundo, lá muito no fundo da sua alma de mulher. Ria-se dele interiormente o que nenhum homem podia suportar, e muito menos um de pele escura.
- Não - repetiu Kate. -É que há outra coisa além disso.
- Ah, tome cuidado - acudiu Don Ramon. - Um pouco de piedade oferece os seus perigos.
- Qual piedade! - retorquiu ela, corando. - Que têm hoje contra mim, para se mostrarem antipáticos?
- Os macacos acabam sempre por ser antipáticos aos espectadores - sentenciou Don Ramon.
A irlandesa ergueu a vista e notou-lhe no olhar um relâmpago
de cólera.
- Vim - declarou - para que me falassem do panteão mexicano. Julguei compreender que podia ser admitida...
- Ah, bela ideia! - volveu, rindo, o dono da casa. - Um exemplar raro de mona que pretende fazer parte do jardim zoológico de Ramon. Vai ser excelente chamariz. Já houve lindas deusas no panteão asteca, posso-lhe eu afirmar.
- Continua a ser antipático!
- Ora, ora, señora mia. Falemos sinceramente. Todos somos macacos. Monos somos. Ihr seid ali Affen. Está a ver aquele bugio, o Cipriano. Teve a ideia simiesca de querer casar consigo. Aceite-o. O casamento não passa duma macaquice. Dê-lhe o sim. Deixá-la-á em liberdade quando estiverem saciados um do outro. É um general e um grande jefe. Se lhe agradar, a si, fá-la-á rainha-mona do México simiesco. E que podem fazer os macacos senão divertirem-se? Vamos! Embobemonos! Serei o sacerdote? Vamos! Vamos!
Saltou de súbito, com a violência de um vulcão, e desapareceu
correndo.
Cipriano olhou espantado para Kate, que empalidecera.
- Que lhe tinha dito? - inquiriu o general.
- Nada! - respondeu ela, pondo-se de pé. - É melhor ir-me
embora.
Chamaram por Juana. Alonso e Kate foram-se encaminhando
para o lago. Foi com certa dignidade ofendida que a irlandesa se sentou sob o toldo do barco. O sol estava furiosamente abrasador e o reflexo da água ofuscava-lhe a vista. Pôs então os óculos pretos, que lhe davam o ar de um monstro.
- Mucho calor, niña! Mucho calor! - repetia Juana, atrás
dela. A criada ingerira, evidentemente, bastante tepache.
Na água amarelada flutuavam jacintos aquáticos, com as folhas a fazer de velas. O lago estava cheio deles. As chuvas torrenciais tinham enchido o rio Lerma, arrastando consigo as terras marginais de Lírio e levando-as lentamente para toda a extensão do mar interior, onde se acumulavam ao longo da costa e acabavam por atravancar o rio Santiago, que tem a sua origem no lago.
Nesse dia Ramon escreveu o seu quarto hino, intitulado O que Quetzalcoatl Viu no México.
"Que estranhos rostos vejo no México! Brancos, amarelos, pretos, não são mexicanos! Donde vêm, e porquê?
Senhor, são estrangeiros, Não vêm de parte nenhuma, A ambição mantém-nos cá.
Que pretendem?
Pretendem ouro, a prata das montanhas, E o petróleo, o petróleo do litoral. Tiram o açúcar das longas canas, Apoderam-se do trigo dos planaltos, e do milho, E do café que cresce nas terras quentes, e até da borracha viscosa.
Constróem chaminés altas, que fumegam, E em edifícios enormes guardam as suas máquinas E fazem mover cabos de aço para baixo e para cima E as suas garras seguram miríades de fios.
E vós, mexicanos e peóns, que fazeis?
Trabalhamos com as suas máquinas, trabalhamos nos seus campos.
Eles dão-nos dinheiro feito de prata mexicana. São hábeis, esses homens.
Gostais deles, então?
Não gostamos, nem jamais gostaremos.
São medonhos, mas realizam coisas espantosas,
E a sua vontade é de ferro, como as máquinas.
Que havemos de fazer?
Vejo uns objectos escuros correndo através do campo.
São comboios, e camionetas, e automóveis. Que bom andar de comboio! diz o peón.
E diz também:
Que bom subir para uma camioneta e ser transportado por vinte
centavos!
Que bom passear nas grandes cidades, onde os carros deslizam
velozes e as luzes resplandecem!
Que bom seria recuperar tudo o que é nosso e se encontra em
poder dos estrangeiros!
Recuperar as nossas terras, o nosso dinheiro, o nosso petróleo, tornarmo-nos donos dos comboios, das fábricas e dos automóveis!
E divertirmo-nos com eles todo o tempo!
Que bom!
Oh, insensatos mexicanos e peóns!
Quem sois para possuirdes máquinas que não sabeis fabricar
mas apenas demolir?
Os que sabem criar é que são os senhores dessas máquinas.
Não vós, pobres idiotas.
Como atravessaram os mares do mundo os homens de rosto
branco ou amarelo?
Oh, insensatos, mexicanos e peóns de coração de argila!
Não fazeis outra coisa senão estar sentados a olhar, ou a beber aguardente e a discutir uns com os outros.
E depois acorreis como cães ao apelo dos senhores de face branca.
Oh, cães, oh, insensatos mexicanos e peóns! De coração liquefeito, joelhos vacilantes, De espírito inerte, incapazes de reagir, Para que servis senão para escravos?
Não mereceis um deus.
Olhai! O universo entrava nos seus dragões,
Os Dragões do Cosmos agitam-se despertados pela ira.
O dragão que dorme na alvura de neve do Setentrião
Move a cauda no seu sono; e o vento uiva nos penhascos em volta.
O espírito da morte glacial assobia aos ouvidos do mundo.
E eu digo-vos: não há mortos verdadeiramente mortos, nem sequer os vossos mortos.
Há mortos que dormem nas vagas da Estrela da Manhã e os seus membros repousam.
Há mortos que se amontoam no gelo do Norte, e tremem e batem os dentes.
E gritam de ódio.
Há mortos que rastejam nas entranhas ardentes da terra, e avivam a fornalha.
Há mortos postados debaixo das árvores e com os olhos de cinza espreitam as suas vítimas.
Há mortos que atacam o sol, como um enxame de moscas, para lhe sugar a vida.
Há mortos que estão sobre vós quando possuís a mulher que desposastes.
E se lhe insinuam no seio, e lutam à entrada dessa porta que abristes.
Rangem os dentes e odeiam aquele que ali penetrou para renascer da mulher.
Filhos de mortos vivos, de mortos que vivem e não repousam
Eu digo-vos: que a tristeza vos cubra. Morrereis todos.
E uma vez mortos não tereis repouso.
Não há mortos verdadeiramente mortos.
Depois de mortos vagueareis como cães
Procurando as imundícies da vida nas quelhas invisíveis do éter.
Os mortos que dominaram o fogo no fogo sobrevivem como salamandras.
Os mortos senhores da água são embalados nos mares cintilantes.
Os mortos das máquinas vão-se para longe, no movimento.
Os mortos que conquistaram a electricidade nela própria se tornam.
Mas os que nada venceram andam como cães sem dono nas ruas do Além
Procurando as imundícies da vida.
Quem domina as forças do mundo encontra nessas mesmas forças a sua casa da morte.
Mas vós que dominais, entre os dragões do Cosmos?
Há dragões de sol e de gelo, dragões de lua e de terra, dragões de águas salgadas, dragões de trovão.
Há o dragão cintilante de estrelas no espaço.
E no centro, como um olho que jamais pestaneja, o dragão da
Estrela da Manhã.
Conquistai! diz a Estrela. Transponde os dragões e vinde até
mim.
Mas porque sois inertes mandarei sobre vós os meus dragões.
Que vos esmagarão os ossos,
Que vos cuspirão em cima como a cães imundos.
E não encontrareis refúgio na morte.
Soltarei os dragões! O dragão branco do Norte,
Para que fustigue o ar com a sua cauda
E sobre vós sopre o seu hálito de gelo.
E direi ao dragão da fornalha central
Que retire dos vossos pés o seu calor, e eles adquirirão a frieza
da morte.
E direi ao dragão das águas que se volte contra vós
E espalhe a corrupção nos rios e nas chuvas.
Aguardo o dia final em que o dragão do trovão,
Sacudindo com raiva as redes de teia que sobre ele lançastes, trespassará os vossos ossos com agulhas eléctricas e vos coagulará o sangue com o seu veneno.
Esperai, esperai algum tempo! A pouco e pouco conhecereis
tudo o que vos digo."
Ramon envergou o traje citadino, fato preto, e foi em pessoa levar o hino ao tipógrafo. Antes de dobrarem a folha, estamparam em baixo o símbolo de Quetzalcoatl, a preto e vermelho, e o do dragão, em verde, negro e rubro.
Seis soldados das tropas de Cipriano levaram, de comboio, os maços de hinos: um para a capital, e os outros para Puebla e Jalapa, Torreon e Chihuahua, Sivaloa, Sonora, minas de Pachucha, Guanajuavo e região central. Cada soldado era portador duma centena de! folhetos, mas em cada terra havia um ou mais leitores de hinos designados especialmente para essa função, e alguns deles iam de aldeia em aldeia.
O povo tinha sede das coisas que ultrapassam o mundo dos homens. Estava farto das notícias dos jornais, farto de tudo o que se aprende com a educação. O espírito humano cansa-se da importunidade humana, dos factos humanos ou da invenção humana. Mesmo os que não se ocupavam dos hinos ansiavam por eles como os homens anseiam por se afogar em álcool e esquecer os aborrecimentos deste mundo.
Por toda a parte, em todas as cidades e aldeias se viam, à noite, chamazinhas a bruxulear, iluminando um círculo de homens que, de pé ou sentados, escutavam a voz surda do leitor.
Mais raramente, nalguma caza desviada, soava o rufo do tambor, parecendo sair do fundo dos séculos.
Distinguiam-se então dois homens de serapes brancas orladas de azul. Depois, todos entoavam os cânticos de Quetzalcoatl e, por vezes, dançavam numa roda, lentamente, martelando com os pés o ritmo antigo da América aborígene.
Porque as danças dos Astecas, dos Zapotecas e todas as raças de índios já submergidas são baseadas nesse passo pesado dos peles-vermelhas do Norte. Eles não o esquecem, jamais o esquecerão; está-lhes no sangue, e revivem-no com uma sensação de medo, alegria e alívio.
Por si mesmos, não se atreveriam a envolver-se no terrível encanto do passado. Mas nos cânticos e hinos de Quetzalcoatl falava uma voz nova, a voz e a autoridade dum amo e senhor, e embora fossem lentos em conceder a sua confiança, acolhiam a "velha novidade" com um misto de receio, prazer e consolação.
Os homens de Quetzalcoatl evitavam as feiras e as grandes aglomerações. Preferiam os locais sossegados.
Sentado no rebordo de uma fonte, um indivíduo de serape de barra azul começava a ler em voz alta. Isto bastava. Os transeuntes detinham-se a fim de o escutar. Ele lia até ao fim e depois declarava: "Terminei a leitura do quarto hino de Quetzalcoatl. Agora vou tornar a lê-lo."
Deste modo, por uma espécie de nota longínqua na voz e pela repetição lenta e monótona, aquilo ia-se infiltrando no espírito dos auditores.
Logo no princípio, produzia-se o escândalo dos Judas. Na Cidade do México, a Semana Santa parece ser consagrada ao traidor do Mestre. Por toda a parte se vêem bonecos quase de tamanho natural e de aparência grotesca. Em geral, representam o Judas sob o aspecto dum fazendeiro hispano-mexicano, com os seus bigodes acerados, barriga proeminente e calças cingidas à perna. O patrón tradicional. E sempre de faces rosadas e com o fato dos homens de raça branca; nunca o tipo moreno do indígena mexicano
Judas é a vítima e o herói da Semana Santa, tal como o esqueleto, o esqueleto a cavalo, é o ídolo da primeira semana de Novembro, por causa do Dia de Finados e o de Todos os Santos.
No Sábado Santo, cada qual pende o seu Judas na varanda da casa, pega lume ao cordel e de repente, no meio de gritos de alegria, rebenta a bomba escondida no corpo do boneco, que fica reduzido a migalhas. Toda a cidade ressoa com as explosões.
Produzira-se, pois, grande escândalo quando, numa igreja da Cidade do México, substituíram por esses Judas as imagens dos santos, e a Igreja começou a agitar-se.
No México, a Igreja deve agir com circunspecção porque não é popular e tem as unhas cortadas. Não é permitido tocarem os sinos mais de dez minutos. Os padres não têm licença para usarem fora do templo trajes eclesiásticos, além do hediondo casaco preto e volta branca dos pastores protestantes. Por isso aparecem o menos possível na rua e, por assim dizer, nunca nos locais mais concorridos.
Contudo, o sacerdote ainda conserva certa influência. São proibidas as procissões, mas não os sermões no púlpito nem os conselhos no confessionário. O presidente Montes não simpatizava com a Igreja e meditava na expulsão de todos os padres estrangeiros. O próprio arcebispo era italiano. Mas também era um lutador. Por sua ordem, todos os párocos proibiram os fiéis de escutar fosse o que fosse respeitante a Quetzalcoatl e recomendaram que não só rasgassem os folhetos que por acaso lhes viessem parar às mãos como impedissem a leitura dos hinos ou o entoar dos cânticos pagãos na sua paróquia.
No entanto Montes ordenara por seu turno à polícia e ao exército que protegessem os Homens de Quetzalcoatl - com essa protecção devida a todos os bons e leais cidadãos.
Não é em vão que o México é o México; contudo, já houvera sangue derramado de ambas as partes, e isso Ramon queria evitar, pois sentia que uma morte violenta se não apaga da alma dos homens com a facilidade com que desaparecem na lavagem as manchas de sangue no pavimento.
Eis porque, uma vez na cidade, pediu ao bispo de Oeste lhe concedesse uma entrevista, a ele e a Don Cipriano, e fixasse o local. O bispo, velho amigo e confessor de Carlota, conhecia bem Don Ramon. Respondeu que teria muito gosto em o receber e ao señor general no dia seguinte, se se dessem ao incómodo de ir a sua casa.
O prelado já não habitava o paço episcopal, que haviam transformado em edifício dos correios, mas possuía uma boa casa não longe da catedral e que lhe fora oferecida pelos fiéis.
Ramon e Cipriano encontraram o fanzino velho à sua espera numa biblioteca poeirenta e pouco interessante. Estava de sotaina preta, já muito usada, com botões de púrpura. Acolheu os visitantes com modos afáveis, e, embora o olhar revelasse desconfiança, representou bem o papel de velhote bonacheirão.
- Há quanto tempo o não vejo, Don Ramon! Como tem passado? Bem? Muito me alegra saber! - E batia no braço de Ramon como um tio afectuoso. - Grande honra em vê-lo nesta humilde casa, general! Ora façam favor de se sentar.
Instalaram-se em cadeiras de couro, na sala triste e poeirenta. O bispo contemplava com nervosismo os dedos magros e a bela ametista que num deles ostentava.
- Estou às vossas ordens, senhores - disse por fim, erguendo os olhos pequeninos e vivos. - Inteiramente à vossa disposição.
- Minha mulher encontra-se na cidade. Já lhe falou, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Já, meu filho.
-Nesse caso, monsenhor, deve estar ao facto das últimas novidades a meu respeito. com certeza Carlota disse tudo.
- Em parte, em parte! Na verdade, referiu-se a si, Don Ramon. Mas agora, graças a Deus, tem os filhos a seu lado para a distraírem. Regressaram à sua terra natal, e de boa saúde.
- Viu-os?
- Sim. Estimo-os muito, a ambos. São simpáticos e inteligentes como o pai, e, como ele, prometem ser de boa presença... Se lhe apetece fumar, general, não faça cerimónia.
Cipriano acendeu um cigarro. Aquele ambiente fazia-lhe lembrar a sua juventude e, embora divertido, sentia-se nervoso.
- Já sabe tudo o que pretendo fazer, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Tudo, não, meu filho, mas sei o bastante para não querer
mais informações. Ah! - suspirou o prelado. -É bem triste!
- Porque havemos de levar o caso para o lado da tristeza? No México somos índios na maioria. Os índios não compreendem o cristianismo, monsenhor, e a Igreja bem o sabe. O cristianismo é uma religião do espírito e necessita ser compreendido para ter alguma eficácia. Ora os índios são tão incapazes de o compreender como os coelhos dos montes.
- De acordo, meu filho. Mas podemos transmitir-lho. Os coelhos dos montes estão nas mãos de Deus.
- Não, é impossível. E, se não tiverem uma religião que os relacione com o universo, todos hão-de sucumbir. Só a religião lhes pode valer; de nada lhes servirá o socialismo, a instrução ou qualquer outra coisa.
- Diz muito bem, Don Ramon...
- Talvez os coelhos dos montes estejam nas mãos de Deus, monsenhor, mas estão à mercê dos homens. O mesmo sucede ao povo do México. Afunda-se cada vez mais em inércia, e a Igreja não consegue ajudá-lo porque não possui a chave que abre a alma mexicana.
- A alma mexicana não conhece a voz de Deus? - redarguiu
o bispo.'
- As ovelhas que apascenta devem conhecer a sua voz, monsenhor. Mas se for pregar às aves do lago, ou aos gamos da montanha, conhecê-la-ão? Deter-se-ão para a escutar?
- Quem sabe? Detiveram-se a escutar S. Francisco de Assis.
- Hoje é preciso falar aos mexicanos na sua própria linguagem, indicar-lhes a palavra que lhes abrirá a alma. Eu indico-a: Quetzalcoatl. Se estou em erro, que eu pereça! Mas não estou.
O bispo movia-se, inquieto. Não queria ouvir aquilo, não queria responder e nenhuma das coisas podia evitar.
- A sua Igreja é a Católica, monsenhor?
- Evidentemente.
- E a Igreja Católica significa igreja universal, igreja de todos?
- com certeza, meu filho.
- Então porque não a deixa ser realmente católica?... Porque chamá-la católica quando não é mais do que uma entre numerosas Igrejas e, ainda por cima, hostil a todas as outras? Porque não há-de ser a Igreja Católica verdadeiramente universal?
- É a Igreja Universal de Cristo, meu filho.
- Porque não também a Igreja Universal de Mafoma? No fim
de contas, Deus é só um, o mesmo para todos; os povos é que se exprimem em linguagem diferente e cada qual precisa de um profeta que lhe fale no seu idioma. A Igreja Universal de Cristo e Mafoma, de Buda, de Quetzalcoatl e de todos os outros... eis a verdadeira Igreja Católica, monsenhor!
- Fala de assuntos muito transcendentes! - observou o prelado, fazendo girar o seu anel.
- Não, qualquer pessoa entende! - replicou Ramon. - A
Igreja Católica é uma igreja de todas as religiões, um lar na terra para todos os profetas, uma árvore imensa sob a qual podem sentar-se e descansar todos os homens que reconhecem a vida mais elevada da alma. Não é assim, monsenhor?
- Meu filho, só conheço a Igreja de Cristo, apostólica e romana, de que sou humilde servo. Essas subtilezas de que me fala não as posso compreender.
- Venho pedir-lhe a paz, monsenhor. Não sou daqueles que
odeiam a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana, mas creio que ela não tem lugar no México. Quando não sinto o coração amargurado, ando cheio de gratidão por Cristo, Filho de Deus. A história dos Judas afligiu-me mais do que a si, monsenhor, assim como deveras me aflige sangue derramado.
- Não sou um inovador, meu filho, para provocar efusões de sangue.
- Oiça! vou retirar da igreja de Sayula as imagens de santos, com todo o respeito, e com todo o respeito as queimarei à beira do lago. Depois colocarei na igreja a imagem de Quetzalcoatl.
O bispo ergueu os olhos de súbito e, por uns momentos, ficou
sem dizer nada.
- Atreve-se a isso, Don Ramon? - replicou finalmente.
- Sim, e ninguém mo impedirá. Tenho a meu lado o general Viedma.
O prelado lançou um olhar furtivo a Cipriano.
- Certamente - confirmou este.
- Contudo, é ilegal - volveu o bispo, indignado.
- Que há de ilegal no México? - retorquiu Ramon. - Só é ilegal a fraqueza, e eu não serei fraco, monsenhor.
- Triste fortaleza! - comentou o velho, encolhendo os ombros.
Houve uma pausa.
- Venho pedir a paz - tornou Ramon. - Transmita ao arcebispo as minhas palavras; ele que diga aos cardeais e ao Papa que chegou o momento de haver uma Igreja para todos os homens. Que a árvore da Igreja estenda os seus ramos sobre toda a terra e abrigue à sua sombra os profetas que proclamam o seu conhecimento do Além.
- Considera-se um desses profetas, Don Ramon? - inquiriu
o bispo olhando-o cheio de compaixão.
- Considero-me. E falarei de Quetzalcoatl ao México e edificarei aqui o seu templo.
- Não. Conforme afirmou há pouco, invadirá os templos de Cristo e da Virgem Maria.
- Conhece as minhas intenções. Mas não quero contendas com a Igreja de Roma, nem derramamento de sangue, nem hostilidades... Não poderá compreender-me? Não deve a paz reinar entre os homens que se esforçam, cada qual por caminho diferente, por
atingir o mistério de Deus?
- Profanar de novo os altares! Introduzir ídolos nas igrejas, queimar a imagem de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, e querer paz? - exclamou o bispo, que nesse momento só aspirava a que o
deixassem.
- Sim, tudo isso, monsenhor.
- Que lhe posso dizer? É um homem bom, Don Ramon, dominado pela loucura do orgulho. Don Cipriano é um dos inúmeros generais mexicanos, e eu sou o velho bispo desta diocese, servo fiel da Santa Igreja, humilde filho do Santo Padre. Que posso fazer? Que posso responder? Leve-me para o cemitério e fuzile-me imediatamente, general!
- Não tenho essas ideias - replicou Cipriano.
- É como tudo isto acabará, com mortes - tornou o bispo.
- Mas porquê? - protestou Don Ramon. - Não é lógico o
que eu digo? Não me compreende?
- Meu filho, vivo da minha fé e dos deveres do sacerdócio, e o que eu compreendo é que se afasta para bem longe do caminho da Verdade.
- Adeus, monsenhor! - disse Ramon, pondo-se de pé bruscamente.
- Deus o acompanhe, meu filho - respondeu o prelado erguendo os dedos.
Cipriano fez tilintar as esporas e levou a mão ao punho da espada antes de se dirigir para a porta.
- Adiós, señor.
- Adiós, general - disse o bispo, dardejando-lhes um olhar de fúria que eles sentiram nas costas.
- O velho jesuíta não transmitirá aos outros o teu recado - comentou Cipriano quando iam a descer a escada. - O que ele quer é conservar o seu lugar e a sua influência... Já os conheço...
- Não sabia que os detestavas - retorquiu o amigo, rindo-se.
- Não vale a pena perderes mais fôlego com essa gente - disse Cipriano. - Segue o teu caminho e não te rales.
Foram a pé, atravessando o largo do edifício dos correios onde modernos escribas, sentados debaixo das arcadas, escreviam cartas à máquina para os analfabetos que esperavam, a troco dalguns centavos, ter as suas missivas em magnífico castelhano.
- Ouvi dizer - prosseguiu Cipriano - que os Cavaleiros de Cortez deram um banquete no decurso do qual juraram tirar a vida a ti e a mim. Mas parece-me que me assustariam mais os juramentos das damas católicas. Porque se um homem se detém para desabotoar as calças e urinar, os Cavaleiros de Cortez fogem a sete pés, julgando que lhes vão desfechar uma pistola. Por isso, não te preocupes nem tentes conciliar-te com eles. Se desconfiassem que os temes, tornar-se-iam insolentes. Mas seis soldados bastarão para meter na ordem toda essa escória.
Cipriano tinha aposentos no grande Palace da Plaza de Armas.
- Se me casar - disse ele, quando entravam no pátio, onde estavam soldados em posição de sentido -, se me casar arranjarei uma habitação na colónia. É mais recatado...
Cipriano, na cidade, chegava a ser cómico. Parecia inchado de orgulho e de autoridade arrogante quando ia a andar. Mas os seus olhos negros, luzindo por cima do nariz delgado e da barbicha de bode, não inspiravam riso. Dir-se-ia abrangerem tudo num relance. Tinha qualquer coisa de demoníaco, o general Viedma.

XVIII
Ramon falou com a mulher e os filhos na cidade, mas foi uma entrevista um tanto penosa. O mais velho dos rapazes sentia-se constrangido em presença do pai, enquanto o mais novo, Cipriano, que era delicado e bastante inteligente, mostrava o seu desagrado ao progenitor e assumia ares altivos.
- O papá sabe o que cantam por aí? - perguntou o pequeno.
- Não faço ideia - respondeu Ramon.
- Cantam... - O garoto hesitou e então, na sua voz clara e infantil, fez ouvir os seguintes versos com a música de La Cucaracha:
Don Ramon não fuma nem bebe, Dona Carlota bem o desejaria. Vai vestir-se com manto azul-celeste Que ele roubou à Virgem Maria.
- Não, isso não é verdade - disse Ramon, sorrindo. - O manto que eu uso tem uma serpente e um pássaro no meio. E ziguezagues pretos. E uma franja verde. Farias bem em ir comigo, para o ver.
- Não, papá, não vou.
- Porquê?
- Não quero meter-me nesse assunto que nos torna a todos ridículos.
- E não serás ridículo de fato à marinheiro e esse ar tão virtuoso? Mais valia que te vestisses de Menino Jesus.
- Oh, papá, essas coisas não se dizem!
- Serás obrigado a te confessares por ter mentido. Declaras que essas coisas não se dizem depois de mas ouvires dizer!
- Mas eu refiro-me às pessoas boas, às pessoas decentes.
- Isso! Agora chamas indecente a teu pai! Mais um pecado que terás de confessar.
O pequeno corou e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Seguiu-se um silêncio.
- Então vocês não querem ir a Jamiltepec? - perguntou Ramon aos filhos.
- Gostava de tomar banho no lago, e andar de barco - proferiu o mais velho lentamente. - Mas dizem que não pode ser.
- Porquê?
- Dizem que o pai se veste como os peóns - acrescentou o pequeno, a medo.
- É um traje bem bonito, mais do que o teu.
- E dizem também que o pai afirma ser o deus asteca Quetzalcoatl.
- Não, senhor. Só afirmo que o deus asteca vai voltar ao México.
- Mas isso não é verdade!
- Como é que sabes?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque nunca houve nenhum Quetzalcoatl, senão em ídolos.
- E as imagens dos santos?
- Isso é diferente. Os santos existiram, e estão no Céu.
- Pois Quetzalcoatl também está no Céu, e. encontrando-se lá, pode voltar à terra. Não me acreditas?
- Não, papá.
- Nesse caso, fica com a tua incredulidade - replicou o pai. rindo e levantando-se para se ir embora.
- Acho muito desagradável que façam cantigas ao papá e à mamã como fazem ao Pancho Villa - disse o filho mais novo. - É uma coisa que me dói.
- Fricciona com Vaporub o ponto dorido - redarguiu Ramon. - Uma fricção e isso passa.
- Como o papá é tão mau!
- E como tu és tão bom! Não é assim?
- Não sei. Só sei que o papá é mau.
- Oh! Oh! É isso que te ensinam no colégio?
- No próximo período vou mudar de nome - declarou Ciprianito. - Não quero usar mais o apelido Carrasco. Quando falarem do papá nos jornais hão-de se rir de nós.
- Oh! Oh! Eu é que me rio de ti neste momento, meu franganote! Que nome vais escolher então? Talvez Espina... Como sabes. Carrasco é uma planta brava dos mantagais de Espanha. Queres ser o espinhito do arbusto? Chama-te Espina. entonces, adiós, señor Espina Espinha!
- Adiós - respondeu o pequeno, rubro de cólera.
Ramon foi de automóvel até Sayula. Haviam aberto uma estrada, mas as chuvas tinham-na desnivelado, e o carro ia aos tombos, de cova em cova. A meio caminho jazia um camião de fundo para o ar.
Na planície deserta estagnavam já poças de água, e as flores cor-de-rosa e amarelas mostravam tufos de botões. Ao longe, as colinas tornavam-se numa massa verde opaca conforme as folhas revestiam as árvores e os arbustos invisíveis na distância. A terra renascia para a vida.
Chegado a Sayula, Ramon dirigiu-se a casa de Kate. Esta saíra, mas Concha correu a procurá-la na praia.
- Está cá Don Ramon! Está cá Don Ramon!
Kate regressou à pressa, com os sapatos cheios de areia. Achou Ramon fatigado, e sinistro naquele fato preto.
- Não o esperava - disse ela.
Empertigado na cadeira, de semblante sombrio, alisava sem cessar o bigode preto sobre os lábios cerrados.
- Viu alguém conhecido na cidade? - perguntou Kate.
- Don Cipriano, e minha mulher e meus filhos.
- Ah! Eles estão bem?
- De excelente saúde, creio eu. Kate riu-se, inesperadamente.
- Que ar tão zangado! Ainda é por causa dos macacos?
- Señora- disse Ramon. inclinando-se para a frente, de modo que uma melena lhe tombou para a testa - no reino dos monos não sei quem é príncipe, mas no dos loucos sou eu com certeza.
- Porquê?
E, como ele não respondesse, Kate ajuntou:
- Vale a pena ser príncipe, ainda que dos loucos. Ramon lançou-lhe um olhar furibundo, mas logo desatou a rir.
- Oh, señora mia! O nosso mal é querermos ser sempre bons.
- Sente-se arrependido?... - volveu Kate, em tom de gracejo.
- Sim, sou o rei dos loucos. Porque levantei essa história de Quetzalcoatl? Porquê? Serei capaz de me explicar?
- Porque lhe agrada, suponho.
Ramon reflectiu um instante, sem largar o bigode.
- Antes ser macaco do que idiota. E. contudo, oponho-me a que me considerem macaco. Carlota sim. pertence a essa raça, e os meus filhos não passam de macaquinhos vestidos à marinheiro. Eu sou um louco. E que diferença haverá entre um louco e um macaco?
- Quien sabe - disse Kate.
- Um quer ser bom, outro tem a certeza de que é bom. é o que me torna louco, a vontade de ser bom. Eles, tão seguros de serem bons, fazem de si mesmos uns macacos. Oh, quem me dera que o mundo explodisse como uma bomba!
- Não explodirá - asseverou Kate.
- Pois não...
Ramon endireitou-se na cadeira e mudou de assunto.
- Então, señora Caterina, sempre se decide a casar com o nosso general?
- Eu... eu... não sei - balbuciou Kate. - Mas não creio...
- Não lhe é simpático?
- é, sim, e acho até que irradia certo encanto. Mas não devemos arriscar-nos ao matrimónio com uma pessoa doutra raça, por muito simpática que seja, não lhe parece?
- Ah! - suspirou Ramon. - Só vale a pena o casamento quando haja verdadeira fusão, seja onde for.
- E eu sinto que não haverá - disse Kate. - Tenho a impressão que ele só pretende de mim uma coisa; e eu, por meu lado, talvez também só uma coisa pretenda dele. Mas nunca nos encontraríamos em verdadeira comunhão. Ele viria para obter o que deseja de mim, e eu teria de consentir... Ora não é apenas isso que eu quero. Quero um homem que me encontre a meio caminho...
Don Ramon pensou um pouco e em seguidameneou a cabeça.
- Tem razão. Mas nesse assunto nunca se sabe ao certo onde é o meio caminho... Uma mulher que deseja simplesmente que a tomem para depois se agarrar ao homem não passa de um parasita. E um homem que quer simplesmente tomar, sem nada conceder, é uma ave de rapina.
- Receio que seja esse o caso de Don Cipriano - murmurou Kate.
- É possível - disse Ramon. - Comigo ele não se mostra assim, mas talvez o fosse se não nos encontrássemos... a meio caminho... de uma espécie de crença física que está bem no centro do nosso ser e que reconhecemos um no outro. Não poderá isso existir entre a señora e ele?
- Desconfio que Don Cipriano não vê a necessidade de semelhante coisa, tratando-se de uma mulher. As mulheres têm pouca importância.
Ramon ficou silencioso.
- Talvez - disse por fim. - com uma mulher, o homem deseja sempre abandonar-se, quando, pelo contrário, devia agarrar-se à sua crença mais profunda... Porque se a crença de cada um coincide, se é física, só ali se podem encontrar. De nada serve um homem violentar uma mulher ou uma mulher violentar um homem. É pecado. O pecado existe, e está na origem. Homens e mulheres continuam a violentar-se mutuamente. Por muito absurdo que pareça não sou eu que desejo apoderar-me de Carlota, ela é que quereria possuir-me. Chega a ser estranho, quase vergonhoso, mas é a verdade. Ah, se conseguíssemos manter-nos fiéis à nossa alma e encontrar-nos nessa região serena! Não tenho grande consideração por mim mesmo. A mulher e eu falhámos um perante o outro, e é um malogro bem triste para guardar no íntimo do nosso ser.
Kate olhou-o com espanto e certo medo. Porquê aquela confissão? Estaria ele prestes a amá-la? Ramon fitava-a com uma expressão dolorosa nos olhos sombreados pelo desgosto, cólera e vexame.
- Lastimo bastante que Carlota e eu nos não entendamos - continuou ele. - Quem sou eu. para me atrever a falar de Quetzalcoatl quando tenho o coração roído pela ira que sinto contra a mulher que desposei e contra os filhos que ela me deu? Nunca as nossas almas se encontraram. A princípio amava-a, e ela gostava que eu a desejasse. Mas passado tempo não se é capaz de continuar a querer com ardor a posse da mesma mulher. Sente-se uma espécie de repulsa. O amor foi então da sua parte, e quiz conquistar-me à viva força. Depois cansou-se também. O pequeno mais velho é realmente meu filho, concebido pelo meu desejo, e o mais novo é filho dela concebido pelo seu desejo. Veja como tudo isto é lamentável! E agora, jamais poderemos encontrar-nos. Carlota volta-se para o seu Deus. e eu volto-me para o meu Quetzalcoatl. que ao menos não pode ser violentado.
- E estou certa que não fará dele um violador.
- Quem sabe? Se eu errar será nesse sentido. Mas, señora, Quetzalcoatl não é para mim senão o símbolo de uma perfeição acessível ao homem. O universo é um ninho de dragões em cujo centro está um mistério insondável da vida. Pouco importa que eu chame a esse mistério Estrela da Manhã. A existência do homem não se realiza no abstracto. O homem é uma criatura que, polegada a polegada, arranca a sua própria criação do antro dos dragões do Cosmos. Ou então perde-a a pouco e pouco, desfeita em migalhas. E estamos a perdê-la... Temos de a reconstituir, homens e mulheres, senão pereceremos todos.
- Mas... necessita duma mulher na sua vida? - perguntou Kate.
- Aspiro ao apaziguamento sensual do meu ser, señora. Não sou daqueles que acreditam na renúncia dos desejos do sangue. Sou homem sempre pronto a tomar esposas e concubinas, tal a sede de apaziguamento. Mas agora sei que é para mim inútil arrebatar uma mulher com o meu desejo ardente, por muito que ela me ame e queira despertar-me o desejo. Vinho, amor e canções... tudo acabou. Já nada disso existe.
- No entanto precisa de uma mulher a seu lado.
- Ah, señora! Se eu pudesse confiar em mim e confiar nela! Já não sou um adolescente, a quem se desculpam todos os erros. Tenho quarenta e dois anos e tenho o meu derradeiro... ou melhor, o meu primeiro grande esforço de homem. Espero morrer antes de cometer um erro crasso.
- E porque havia de o cometer?
- É muito fácil enganar-me. Muito fácil, por um lado, tornar-me arrogante; muito fácil, por outro, renunciar a mim próprio e fazer da minha vida uma espécie de sacrifício.
- Mas porque não procede como diz? Porque não se apoia no mais profundo do seu ser e não comunga com uma mulher, aí onde as duas almas coincidam no seu desejo mais forte? Nem sempre há-de haver aquele horrível desajustamento a que chama violentação.
- Que mulher podia eu possuir carnalmente sem me submeter à lenta degradação de violentar e ser violentado? Se casasse com uma espanhola ou com uma mexicana, abandonar-se-ia a mim para que eu a dominasse. Casando com uma anglo-saxónica ou uma branca de raça nórdica, ela quereria dominar-me com a sua vontade de todos os antigos demónios brancos. As primeiras são parasitas da nossa alma e sentimos fastio. As outras são vampiros. E entre as duas espécies não há nada.
- com certeza que existem mulheres diferentes dessas.
- Nesse caso, mostre-mas. São todas autoritárias, Carlotas ou... Caterinas. Estou certo de que dominou Joachim até à sua morte. Acredito que ele se prestasse a isso mais até do que a senhora desejaria. Não é apenas uma questão de sexo. Reside na vontade: vítimas e dominadores. As classes elevadas aspiram a ser vítimas das classes inferiores ou passarem por tal. Os políticos tentam tornar os povos em vítimas uns dos outros. A Igreja procura transformar as pessoas em seres humildes e torturados que só desejam ser vítimas. Ah, a terra é um lugar bem triste!
- Mas. se deseja ser diferente - disse Kate - há-de haver algumas outras pessoas como o senhor.
- É possível - replicou ele, acalmando-se. - É possível. Gostaria de me reprimir melhor. Reprimir-me, concentrar-me em mim próprio, onde eu esteja em paz. Na minha Estrela da Manhã. E agora já me envergonho de ter dito o que disse, señora Caterina.
- Porquê? - exclamou ela. E, pela primeira vez, veio-lhe à face o rubor da pena e da humilhação.
Ele notou-o logo e, por um momento, descansou a mão sobre a de Kate.
- Não, afinal não me envergonho. Estou aliviado.
Ao contacto dessa mão, a irlandesa corou ainda mais e ficou silenciosa. Ramon levantou-se rápido para se ir embora, de novo ansioso de se reencontrar na sua alma.
- Domingo vai plaza, de manhã, quando ouvir o tambor? perguntou Ramon.
- Para quê?
- Verá.
E, assim falando, desapareceu.
Havia muitos soldados na aldeia. Quando foi ao correio, Kate encontrou os homens de farda de algodão dispersos pelas imediações do quartel. Eram cerca de cinquenta, não como esses outros de chapéu desabado e grande estatura, mas pequeninos, vivos, sólidos como Cipriano: falavam baixo um estranho dialecto índio. Raras vezes se viam nas ruas, porque em geral se escondiam.
Os habitantes tinham ordem de recolher às dez horas da noite. Kate ouvia as patrulhas passar a cavalo, através da escuridão.
Dir-se-ia envolver o país uma atmosfera de excitação e mistério. O cura da paróquia, que era gordo e roçava pelos cinquenta anos, pregara no sábado à noite um sermão memorável contra Ramon e Quetzalcoatl, proibindo a menção deste nome execrando e predizendo castigos aos paroquianos que lessem os hinos ou os escutassem.
É claro que foi atacado quando saía da igreja e precisou de uma escolta de soldados para regressar a casa, onde chegou a salvamento. Mas a criada, uma velha que o servia há muito, ouviu as mulheres dizerem que, da próxima vez que o padre abrisse a boca para falar contra Quetzalcoatl. receberia umas poucas de facadas no abdómen. Deste modo ficou ele de portas adentro, fazendo-se substituir pelo coadjutor.
Quase toda a gente que chegava de barco, aos sábados, ia ouvir missa à igreja de Sayula, cujas portas ficavam abertas todo o dia. Os homens que iam para o lago ou que vinham de lá tiravam sempre o chapéu, num gesto humilde, quando passavam defronte do templo. Havia constantemente pessoas ajoelhadas ao longo das naves ou entre as bancadas, os homens muito direitos, com o chapéu no chão. a seu lado, as mulheres encapuchadas nos rebozos escuros, rezando numa espécie de abandono voluptuoso, de cotovelos apoiados ao banco.
No sábado à noite, a cintilação avermelhada de muitos círios iluminava o interior sombrio da igreja. Via-se como que um mar agitado de cabeças escuras, uma confusão de gente que vinha da praia e se dirigia ao mercado. Silêncio mas não bem de adoração, antes de pasmo diante daquele cintilar de luzes.
Não, não era veneração, talvez entorpecimento e abandono da alma flutuando sem governo. E era também para eles um luxo após a semana de sujidade e desleixo nas suas aldeias sórdidas de cabanas de colmo. Isso, porém, irritava Kate.
Domingo de manhã havia a primeira missa ao nascer do Sol, outra às sete horas, outra às nove e mais uma às onze. A orquestra de violinos e violoncelos executava velhas músicas de dança. Desde muito cedo que se notava uma compacta massa de peóns e mulheres, todos ajoelhados; bruxuleavam chamas fumegantes que espalhavam o cheiro da cera, elevavam-se rolos de incenso juntamente com o coro das vozes masculinas, sólidas, poderosas, impressionantes.
E os fiéis retiravam-se com uma sensação de torpor que, logo à entrada da feira, se transformava em ódio, esse velho ódio insondável, latente no coração do índio e sempre pronto a despertar quando o agita uma satisfação voluptuosa.
O interior da igreja parecia uma coisa morta, como aliás, todas as igrejas mexicanas, até a sumptuosa catedral de Puebla. Os templos italianos são quase todos no mesmo estilo, e no entanto paira neles uma sombra serena, a paz de antiga e misteriosa santidade, o silêncio. Mas tal não sucede no México. Exteriormente as igrejas possuem imponência. Por dentro, são vazias de sons e no entanto o silêncio não impera; simples e contudo vulgares, nuas, áridas, mais nuas do que uma escola ou uma sala de concertos deserta, mais desprovidas de mistério do que qualquer desses edifícios. Tem-se uma impressão de argamassa, de estuque, de lambuzadelas de cal azul ou cinzenta e de dourados superficiais com o odioso aspecto de purpurina e não de ouro puro. Enfim, nenhuma doçura, nenhum recolhimento.
Eis o interior da igreja de Sayula. onde Kate já entrara muitas vezes. Por fora era encantadora e enquadrava-se bem na paisagem, com as suas duas torres brancas elevando-se acima dos salgueiros verdes. Mas por dentro não havia nada senão o estuque branco com estrias azuis e cinzentas. As janelas, numerosas e altas, deixavam penetrar a luz como numa escola. Num dos transeptos estava Jesus sulcado de sangue, e à sua frente a Virgem Maria, vestida de cetim, olhava com ar admirado sob a redoma de vidro. Viam-se ali flores de papel, flores de pano e rendas prateadas que pareciam de zinco.
No entanto, a igreja era muito limpa, e muito frequentada.
Acabado o mês de Maria, retiraram as grinaldas de papel branco e azul, assim como os vasos de palmeiras das naves laterais. Deixaram de aparecer, à tarde, as rapariguinhas vestidas de branco, coroadas de flores e com ramalhetes na mão. É extraordinário como as antigas e enternecedoras cerimónias da Europa assumem no México aspecto vulgaríssimo e se transformam numa espécie de espectáculo popular.
No dia de Corpo de Deus a igreja encheu-se até à porta, e houve uma pequena procissão de crianças dentro do templo - visto a lei proibir desfiles religiosos na rua. Tudo aquilo constituía fiesta, um pretexto para não fazerem nada, para justificarem o seu desejo de inacção. A eterna indolência mexicana.
Decorriam as semanas, a multidão na igreja era sempre densa, mas essa mesma multidão, ao sair do templo, rodeava os Homens de Quetzalcoatl.
Durou isto até ao dia em que os oradores mais socialistas misturaram aos seus discursos um pouco de azedume anticlerical. Então ospeóns começaram a murmurar: Será El señor um gringo e a Santíssima uma gringuita?
O caso provocou admoestações da parte dos sacerdotes e por fim as ameaças do famoso sermão. A guerra estava declarada.
Toda a gente esperava ansiosa pelo sábado seguinte. Chegou o dia, a igreja conservou-se fechada, e fechada se manteve todo o domingo.
O povo na feira parecia consternado, já não sabia para onde ir. Mas à consternação juntava-se certa curiosidade. Talvez acontecesse algo de sensacional...
Já noutros tempos haviam sucedido coisas... No decurso das revoluções, muitas igrejas mexicanas tinham sido transformadas em escolas, salas de concerto ou cinemas. Vários conventos serviam agora de quartel. O mundo está sempre a modificar-se.
No sábado seguinte ao encerramento da igreja, havia uma grande feira, de excepcional importância. Viam-se ali homens a vender escudelas de pau envernizadas, mulheres com loiça de barro vidrado. E, como de costume, índios de sentinela às suas ameixas, abóboras ou mangas, amontoadas em pirâmide ao longo dos passeios.
Um mercado à cunha, e as portas da igreja fechadas, e os sinos calados. Até o relógio parara. É certo que parava de vez em quando, mas nunca estivera tanto tempo sem funcionar. Parecia uma imobilidade definitiva.
Nem missa, nem confissão, nem rolos de incenso... Só murmúrios sufocados, olhares furtivos e receosos. À beira do passeio, os vendedores pareciam ídolos astecas, hirtos, agachados no chão e com os joelhos quase ao nível dos ombros. Por toda a parte se viam soldados, em grupos de dois e de três. E señoras e señoritas, todas de mantilha preta, acorriam a ouvir missa, embora já soubessem que a igreja estava fechada.
Mas era domingo e alguma coisa ia acontecer nessa manhã.
Cerca das dez horas apareceu um barco e dele saltaram para terra vários homens de fato branco, dos quais um trazia o tambor. Abriram caminho entre a multidão que estacionava debaixo das árvores e dirigiram-se para a igreja.
Em frente das portas sempre fechadas, despiram o casaco e formaram círculo, todos de torso nu e faixa azul e preta a apertar-lhes a cintura.
Soou o tambor, em pancadas fortes, bem ritmadas, enquanto os homens se mantinham agrupados no adro, numa roda estranha de cabeças negras e lustrosas, espáduas bronzeadas e calças brancas. Continuou o toque de tambor, sempre igual, a que depois se juntou o som ácido de uma flauta de barro.
Todos os que se encontravam no largo da feira correram para a igreja. Mas estavam ali soldados para impedir que penetrassem no adro ou saltassem os muros baixos. De modo que a multidão ficou debaixo dos salgueiros e das pimenteiras, ou então ao sol, a presenciar os acontecimentos. Na sua maioria eram homens de grandes chapéus, mas também ali se encontravam pessoas da cidade, e algumas mulheres, entre as quais Kate, munida de sombrinha azul-escura. Diante de si tinha a massa compacta de gente, comprimindo-se em silêncio na sombra escassa das árvores; atrás, estacionavam automóveis e caminhetas.
Calou-se o tambor, calou-se a flauta. Ouvia-se o marulho do lago, tilintar de copos, vozes de motoristas que bebiam numa taberna e, dominando tudo, o silêncio ofegante da multidão. Vários soldados distribuíram folhetos pela assistência e uma voz máscula, bem timbrada, começou a cantar, acompanhada em surdina pelo tambor.
Durante o cântico, chegou outro barco, e os soldados afastaram a turba para deixar passar Ramon. na sua serape branca de orla azul e franjas vermelhas. Seguia-o um rapaz magro, vestido de sotaina, e mais seis homens de serapes escuras com a bordadura azul de Quetzalcoatl. Esta estranha procissão avançou através do povo até às grades do adro.
Quando eles se aproximavam, abriu-se o círculo de homens que rodeavam o tambor, desdobrando-se em forma de crescente. Ramon conservou-se de pé por trás do tambor e os seis indivíduos de serapes escuras separaram-se e foram postar-se a cada ponta do crescente. O mancebo magro vestido de sotaina permaneceu sozinho, à frente, encarando a multidão. Como ele erguesse uma das mãos,
Ramon tirou o chapéu e logo se descobriram todos os homens presentes.
Voltou-se o clérigo, dirigiu-se a Ramon e entregou-lhe a chave da igreja. Depois, esperou.
Ramon enfiou a chave em todas as portas do templo, escancarando-as. Subitamente ajoelharam os homens que estavam no primeiro plano: tinham visto aparecer o interior da igreja como uma caverna sombria, ao fundo da qual tremulava o clarão dos círios: dir-se-ia haver surgido a Sarça Ardente no meio das trevas misteriosas.
O resto do povo, estremecendo, caiu de joelhos. Só ficou de pé, aqui e ali, um operário, um motorista, um empregado do caminho de ferro.
De súbito, no fundo da sombra que todos os olhos perscrutavam, uma rajada apagou a Sarça Ardente e só ficou um ou outro círio aceso envolto num abismo de trevas.
Da multidão elevaram-se exclamações e murmúrios.
Então o tambor rufou baixinho e dois homens começaram a cantar um hino com possante voz de tenor que parecia entreabrir a terra. Eram indivíduos que Ramon e os seus partidários tinham encontrado em tabernas da Cidade do México. Os "tempos maus" haviam-nos reduzido a cantar nos antros da pior espécie, e agora elevavam a voz com toda a raiva demoníaca da sua desesperação.
O moço de sotaina entrou na igreja. Ramon seguiu-o e atrás dele foram todos os homens do semicírculo, em passos vagarosos. O sino badalou no silêncio de morte e calou-se daí a instantes.
Nas profundezas da nave soou um tambor, lento, distante e terrífico. com sobrepeliz ornada de rendas, o sacerdote apareceu no limiar. Trazia uma cruz, e hesitou antes de avançar para a claridade do exterior. O povo ajoelhado juntou as mãos.
Em direcção à porta tremulavam círios, vindos do fundo da igreja escura. Don Ramon emergiu da sombra, de torso nu e serape ao ombro, segurando a ponta dianteira do andor que sustinha a urna de vidro onde repousava Cristo morto - essa imagem de aspecto tão humano, que se venera na Semana Santa. Atrás, um homem trigueiro e alto, igualmente despido da cintura para cima, trazia ao ombro a outra extremidade do andor. A turba gemeu e benzeu-se. O Cristo morto parecia realmente morto quando transpôs a porta do templo. As mulheres e os homens ajoelhados ergueram o rosto, abriram os braços e assim ficaram em indizível êxtase, em que havia medo e súplica.
A seguir ao féretro vinha uma lenta procissão com os restantes andores. As estátuas avançavam oscilantes, transportadas por aqueles indivíduos de pele de bronze e, sob a luz crua do sol, chegaram por fim ao caminho que conduz ao lago.
- Puríssima! Puríssima! Não nos abandones! - gritavam as mulheres.
E alguns homens, tomados de estranha angústia, clamavam por seu turno:
- Senhor! Senhor! Senhor!
Agora, debaixo das árvores, o cortejo entrou na areia rugosa e surgiu em plena claridade, à beira de água. Corria uma brisa ligeira. As serapes dobradas baloiçavam nas espáduas luzentes, as imagens vacilavam levemente.
Junto do murinho da margem estava uma barca de vela, em comunicação com a terra através duma ponte de tábuas. Dois homens de branco, com as calças arregaçadas, ladearam o moço clérigo, cujas mangas largas ondulavam como bandeiras: ajudaram-no a embarcar, e ele, encaminhando-se para a proa, descansou ali a base da cruz. A barca era descoberta, sem nenhum toldo, mas tinham colocado lá -várias mesas para nelas poisar as imagens.
Ramon subiu devagar para bordo. Depositaram o caixão de vidro no seu suporte e os dois homens limparam a testa húmida de suor. A fim de se proteger do sol, Ramon cobriu-se com o manto e o chapéu. O barco baloiçava imperceptivelmente, embalado pelo vento de oeste. Batido do sol, o lago parecia uma coisa irreal.
Uma após outra, as imagens levantaram-se à popa, avultando de encontro ao azul do céu, e depois baixaram-se quando as puseram sobre as mesas. Era uma estranha colecção de estátuas de mau gosto e contudo essas efígies inspiravam certa compaixão, vendo-as assim agrupadas para a sua última viagem. Ao lado de cada uma viam-se os respectivos portadores, de chapéu e manta, segurando com mão firme nas varas do andor. Havia uma fila de soldados, na praia, e três gasolinas com militares esperavam junto da barca. a gente acorrera toda à beira de água, e muitas canoas de reinos, como peixes curiosos, rondavam a embarcação principal, sem todavia se atreverem a aproximar-se muito. Então, de pernas nuas, alguns marinheiros impeliram a barca para longe da margem, e aquela começou lentamente a mover-se nos baixios, afastando-se da praia e da multidão.
Dois outros marinheiros, rápidos, içaram a vela branca e quadrada. Depressa, mas pesada, ela subiu no ar e enfunou-se ao vento. No meio estava pintado o emblema de Quetzalcoatl, a serpente em círculo e a águia azul, no centro, em campo de oiro. À distância, parecia um olho enorme.
O vento soprava de oeste, porém a barca ia com rumo a sudeste, direita ao ilhéu dos Escorpiões, que se elevava como um vago montículo acima do lago ofuscante. Panda, a vela dir-se-ia olhar para trás com aquele seu grande olho arregalado, para a aldeia, para os salgueiros verdes, para a igreja branca e vazia e para a gente aglomerada na margem. Os gasolinas tornejavam a barca vagarosa, e as canoas seguiam-na de longe.
Na praia, o povo dispersava-se. Uns sentavam-se na areia, observando e esperando com uma paciência quase indiferente. A barca fez-se mais pequena, menos visível, e os barquinhos que a circundavam já não eram mais que pontos negros. A reverberação do lago fatigava os olhos.
Debaixo das árvores, em expectativa silenciosa, uma mulher comprou uma melancia, abriu-a batendo-a numa pedra e distribuiu pelos filhos os bocados cor-de-rosa. Uns homens polvilhavam de sal os pepinos que acabavam de comprar. A igreja estava completamente às escuras, pois não tinha outra luz senão a que entrava pela porta; e absolutamente vazia, pois fora despojada das suas imagens. Era já meio-dia e o calor apertava. A barca nesse momento costeava o ilhéu, onde vivia uma família de pescadores índios. Tinham algumas cabras e um pedaço de terreno cultivado de feijões e milho. À parte isso, era tudo rocha, com silvados'e lacraus.
Precedida pelas canoas, a barca contornou a costa para entrar na única enseada, onde já homens cor de bronze se banhavam entre os rochedos.
Arriaram a vela, a embarcação imobilizou-se e os seus tripulantes, saltando para a água, apearam as imagens e puseram-nas sobre as rochas, onde ficaram à espera dos seus portadores.
Formou-se de novo o cortejo e este, seguindo pela orla do ilhéu, passou diante das cabanas e alcançou os rochedos da outra margem, ocultos pelo matagal.
No lado fronteiro a Sayula era tudo pedra nua, árida e penosa para a marcha. À beira da água, numa depressão da rocha, tinham colocado pedregulhos de cada banda e, sobre eles, varões de ferro dispostos de modo a formar uma espécie de grelha. Por baixo estava uma pilha de lenha, pronta a arder. Perto, via-se outro molho suplementar.
Em cima daqueles varões pousaram as imagens - grupo patético contra o qual se apoiava a cruz. Era meio-dia, o calor e a luz envolviam tudo, mas já no horizonte se amontoavam nuvens.
Para além da reverberação da água, a aldeia parecia uma miragem, com as suas árvores e as torres brancas da igreja.
Os homens que tinham vindo nas canoas apinhavam-se nos rochedos do pequeno anfiteatro. Em silêncio, Ramon inflamou um punhado de caruma com o auxílio duma lente - e logo se elevaram chamazinhas como serpentes minúsculas. Então, com esse feixe de cobras rubras, pegou lume à pirâmide de lenha cuidadosamente disposta sob a grelha de ferro.
Crepitavam os ramos, e, entre baforadas de fumo branco, erguiam-se línguas de fogo no ar fremente. Num sopro de vento, as chamas altearam-se e a madeira resinosa começou a bramir. O vidro do féretro, estalando, parecia soltar gemidos de dor Por entre os varões de ferro. o lume enegrecia as imagens, consumia-lhes num ápice as túnicas e mantos de cetim.
Toda a gente se distanciou daquela árvore de lume que despedia centelhas até ao céu.
Só Ramon ficou onde estava, olhando em silêncio - até nada restar senão um braseiro e uma inextricável confusão de ferros meio fundidos.
Então, dum rochedo próximo, subiram foguetes no ar e explodiram com fragor, derramando uma chuva de oiro.
As pessoas aglomeradas na praia tinham visto o penacho de fumo e o clarão da fogueira. Ao ouvirem as detonações dos foguetes, olharam de novo, exclamando, aterradas:
- Señor! Señor! La Purísima! La Santísima!
Chamas, fumo e foguetes dissiparam-se como por milagre, deixando a atmosfera sempre límpida. com uma pá, deitaram as brasas numa cova funda.
A sudoeste, por cima das montanhas áridas, elevava-se uma nuvem semelhante a uma cauda branca - a cauda dum esquilo enorme que acabasse de desaparecer por trás dos píncaros. Foi-se desenrolando, desenrolando em direcção ao Sol, e quando a barca içou a vela para regressar à aldeia, já uma leve sombra pairava sobre o lago.
Só na extremidade baixa da ilha dos Escorpiões o ar quente ainda fremia.
Ramon voltou numa das lanchas de motor. A pouco e pouco o céu cobria-se de nuvens, preparando-se para chuva e trovoada. Não podendo atravessar o lago. a barca navegava para Tuliapan. As canoas apressavam-se em direcção à praia.
Chegaram antes de se desencadear o vento. Assim que desembarcou, Ramon foi fechar as portas da igreja.
A multidão dispersou-se sob as rajadas. Agitavam-se os rebolos, rodopiavam folhas, erguia-se poeira. Sayula estava sem Deus e, no íntimo, eles sentiam-se contentes.

CONTINUA

XVII
Na opinião geral, o presidente da República tinha utilizado a sua vassoura nova com excesso de zelo, e essa limpeza provocou uma rebelião. Não muito importante, mas o suficiente para justificar banditismo, roubos e terror nas aldeias.
Ramon estava decidido a manter-se afastado da política, mas já os Cavaleiros de Cortez e certo partido "negro" se preparavam para o atacar. Do alto do púlpito, os sacerdotes começavam a acusá-lo de Anticristo devorado pela ambição. Contudo, ele pouca coisa tinha a recear, com Cipriano a seu lado e, por consequência, todo o exército de Oeste.
Mas era possível que Cipriano fosse mandado para longe, a fim de defender o Governo.
- Acima de tudo - declarou Ramon - empenho-me em estar afastado da política. Não quero que me empurrem para este ou aquele partido. Se é para me deixar contaminar, mais vale abandonar tudo. A Igreja impele-me para os socialistas, e os socialistas trair-me-ão na primeira oportunidade. Não se trata de mim. Trata-se do espírito novo. O meio mais seguro de o aniquilar (e pode-se aniquilá-lo como a tudo o que vive) é associá-lo a um partido político, seja qual for.
- Porque não vais falar com o bispo? - lembrou Cipriano. Eu vou também. Para alguma coisa há-de servir ser comandante da divisão de Oeste.
- Sim - disse Ramon lentamente. - Hei-de avistar-me com Jiménez. Já tinha pensado nisso. Tenciono recorrer a tudo o que está ao meu alcance. Montes estará a nosso lado porque detesta a Igreja e não admite nada do que lhe cheire a ditadura exercida do exterior. Vê a possibilidade de uma Igreja Nacional. Não me interessam Igrejas nacionais, mas acho que temos de falar linguagem do povo. Sabes que os padres proibiram a leitura dos hinos
- E que te importa? - volveu Cipriano. - Hoje em dia só há perversidade neste povo. Agora é que eles hão-de ler.
- Provavelmente. Mas farei vista grossa. Deixarei expandir-se a minha nova "lenda", como a classificam, desenvolver-se enquanto a terra está húmida... Contudo, precisamos de vigiar todos os rebentos que apresentem interesse.
- Ramon! - exclamou Cipriano. - Se conseguisses transformar todo o México no país de Quetzalcoatl?
- Eu serei o "primeiro homem de Quetzalcoatl". Não sei mais nada.
- E não te importarás com o resto do mundo?
Ramon sorriu. Já ele vislumbrava nos olhos de Cipriano a chama da Guerra Santa.
- Gostaria de ser - disse ele - um dos iniciados da terra. E um dos iniciadores. Cada país com o seu Salvador, ou um Salvador para cada povo. Os primeiros de cada povo formariam aristocracia natural do mundo. Precisamos de uma aristocracia, mas natural, não artificial. De certa maneira o mundo necessita de ser organicamente unido: ser o mundo do homem. Unidade concreta e não abstracta. Ligas, alianças, programas internacionais. Ah, Cipriano, isto é como um flagelo internacional. As folhas de uma grande árvore não podem pender nos ramos de outra árvore, por maior que seja. As raças da terra são como árvores, não devem misturar-se nem confundir-se. Têm de estar no seu terreno, como árvores que são. Ou então sobrepõem-se, enovelam-se as raízes e a luta será mortífera. Só as flores é que podem unir-se, e as flores de cada raça constituem a sua aristocracia natural. Que o espírito do mundo voe de flor em flor, qual um colibri, e fertilize a planta. Apenas os aristocratas naturais conseguem elevar-se acima da sua nação, mas não além da sua raça. Apenas os aristocratas do mundo podem ser internacionais, cosmopolitas, cósmicos. Sempre assim foi. Os povos não são capazes disso, como as folhas da mangueira não são capazes de se prenderem aos troncos do pinheiro. Assim, se eu quero que os mexicanos decorem o nome de Quetzalcoatl é porque desejo que falem a linguagem do seu próprio sangue. Pudesse o mundo teutónico tornar ao espírito de Thor e de Wotan e da árvore Igdrasil! Pudessem os povos druídicos compreender que o seu mistério reside no visco e que eles mesmos são os Thuatas de Danaan, vivos embora submersos! E que um novo Hermes voltasse ao Mediterrâneo, um novo Astarot à Tunísia! E Mitra regressasse à Pérsia, e Brama, poderoso, à índia, e à China o mais velho dos dragões! Então eu, Cipriano, eu, primeiro homem de Quetzalcoatl, contigo, primeiro homem de Huitzilopochtli, e talvez tua mulher, primeira dama de Itzpapalotl, talvez nós lográssemos conhecer, com a nossa alma pura, os outros grandes aristocratas do mundo, o primeiro homem de Wotan, a primeira mulher de Freya, o primeiro senhor de Hermes e a primeira dama de Astarte, o mais bem-nascido de Brama e o filho do Magno Dragão. Digo-te eu, Cipriano, que a terra inteira rejubilaria quando os primeiros senhores do Ocidente encontrassem os primeiros senhores do Sul e do Oriente, no Vale do Espírito. Ah, a terra tem vales do Espírito, que não são cidades de comércio e indústria. O mistério é um só, porém os homens podem vê-lo diferentemente. O cardo, o hibisco, a genciana são flores da árvore da vida, mas vivem separadas no mundo. E assim deve ser. Eu sou hibisco, tu és a flor da iúca, a tua Caterina é o junquilho bravo, e a minha Carlota é um amor-perfeito branco. Quatro apenas, nós quatro, e contudo formamos um ramalhete curioso. Os homens e as mulheres não são mercadoria manufacturada, para servirem de objecto de trocas; mas a árvore da vida é una, sabemo-lo quando as almas desabrocham na floração final. Não nos trocamos, não o queremos. Todavia, quando a nossa alma se abre na floração final então as flores comungam entre si o mesmo mistério, para além do conhecimento das folhas, dos ramos e das raízes. Algo de transcendente.
Mas não é isto que importa por enquanto. O que tenho a fazer agora é lutar para abrir caminho no México, e tu deves tentar o mesmo. Façamos isso.
Ramon dirigiu-se para as oficinas onde os seus homens trabalhavam, sob a sua chefia, e Cipriano absorveu-se na correspondência e planos militares que tinha entre mãos.
Ambos foram interrompidos pelo barulho de uma lancha motorizada que entrava na baía. Nela vinha Kate, escoltada por Juana.
Ao seu encontro partiu Ramon, vestido de branco, com o chapeirão onde estava embutido o olho de turquesa de Quetzalcoatl e de faixa azul e preta. Kate trajava também de branco, chapéu verde e xaile de seda amarelo-pálido.
- Estou contente por voltar aqui - declarou ela, estendendo-lhe a mão. Jamiltepec tornou-se para mim uma espécie de Meca. Todo o meu ser aspira a este sítio.
- Então porque não vem mais vezes? Ser-me-ia muito agradável vê-la sempre por cá.
- Receio ser intrusa.
- De modo nenhum. E, se quisesse, podia ser-nos muito útil.
- Hum... Não acredito em grandes empreendimentos, que me assustam. Será talvez porque, no fundo, antipatizo com as massas, seja lá onde for. Temo que isto implique desdém pelos povos. Não gosto que me toquem nem gosto de lhes tocar. Como havia eu de fazer parte de uma espécie de... Exército de Salvação?
Don Ramon soltou uma risada.
- Comigo dá-se o mesmo. Desprezo as grandes massas populares. Mas aqui é o meu próprio povo.
- Eu, desde pequena, fui assim. Conta-se que tinha quatro anos... os meus pais ofereceram um jantar de cerimónia... e disseram à criada que me trouxesse à sala, para dar as boas-noites. Suponho que foram todos muito amáveis comigo, mas eu apenas respondi: "São macacos! São macacos!" Imagine o êxito desta cena! E o pior é que sinto agora o mesmo que sentia em criança. Para mim as pessoas não passam de macacos a fazerem as suas habilidades.
- Até as que lhe são mais chegadas?
Kate hesitou, mas acabou por confessar contra vontade:
- Sim, creio que sim. Os meus dois maridos, mesmo o segundo, pareciam-me um tanto... simiescos, tão obstinados nos seus pequenos ridículos. Quando Joachim estava a morrer, senti por ele uma espécie de repulsa. Perguntava a mim mesma: "A que macaco enfermiço consagrei tanto do meu ser?" Não acha isto horrível da minha parte?
- Acho. Mas julgo que todos experimentamos esse sentimento, de vez em quando... ou que experimentaríamos se o ousássemos. São fases do espírito.
- Chego a pensar que os seres humanos só me inspiram este sentimento. Gosto da terra, do céu, e do mistério do além. Mas as
: pessoas... considero-as a todas macacos.
Ramon percebeu que ela era sincera.
- Puras monas! - murmurou em espanhol. - Y lo que hacen, puras monerias. - Então acrescentou: - Tem filhos?
- Tenho, do meu primeiro marido.
- E eles... Monas y no mas?
- Não! - respondeu Kate, de testa franzida, como se descontente consigo mesma. - Só em parte.
- Isso é mau - volveu Ramon, meneando a cabeça. - Mas, afinal, que são para mim os meus filhos senão macaquinhos? E a mãe... a mãe... Ah, não, señora Caterina! Isto não serve de nada. Devemos ser capazes de nos libertarmos dos outros. Se me chego muito para uma roseira, os espinhos ferem-me. Temos de ver as pessoas como se vêem as árvores duma paisagem. De certa maneira, a humanidade domina-a, domina as suas faculdades conscientes. Por isso a detesta e deseja escapar-se-lhe. Mas só existe uma evasão possível: alcançar, para além dos outros, uma vida maior.
- É o que eu faço! - exclamou Kate. - Nunca fiz outra coisa. Quando vivia com o Joachim, absolutamente só numa casita isolada, sem criados e sem me dar com ninguém, tive sempre a sensação dessa vida maior e era livre e feliz.
- E ele? Era livre e feliz também?
- Era-o, na realidade. Mas aí é que intervinham as tais macaqueações de que lhe falei. Não se permitia ser feliz. Insistia em convidar gente e em criar assim motivos de tortura.
- Então porque não se deixou estar inteiramente só na sua casinha isolada, sem ele? Porque viaja e convive com as pessoas?
Vexada, Kate não respondeu. Sabia que não podia viver sozinha. Acabrunhava-a o vazio à sua volta. Precisava de um homem a seu lado para preencher esse vazio e mantê-la em equilíbrio. No entanto, mesmo quando o tinha presente, no fundo desprezava-o como se despreza um cão ou um gato. Entre ela e a humanidade havia esse laço subtil de antagonismo irredutível.
Era por natureza generosa e deixava aos outros a sua liberdade. Os servos afeiçoavam-se-lhe e todos que travavam conhecimento com ela a achavam encantadora e a admiravam. Pressentia-se nessa mulher um fluxo de vida ardente e certa alegria de viver.
Entretanto, sob isso tudo, jazia a aversão irreprimível, quase repugnância pelos outros. Sim era mais do que desagrado, chegava a ser repulsa. Fosse o que fosse, aquele sentimento dominava-a sempre ao fim de algum tempo. A mãe, o pai, as irmãs, o primeiro marido, até as crianças, que ela adorava, e Joachim, a quem dedicara tanto amor, mesmo estes, após curto convívio, principiavam a enchê-la de repulsa e Kate aspirava a ficar de novo só, e esquecida. Mas não seria um esquecimento definitivo, a menos que ela o provocasse de vez.
Assim era Kate. Até mergulhar no torvo esquecimento da morte, jamais conseguiria fugir a essa profunda, insondável repugnância pelos seres humanos. Os contactos breves podiam ser agradáveis e até emocionantes; mas os prolongados ou muito íntimos, originavam sempre rápidos ou demorados impulsos de violenta repulsa.
Kate e Ramon haviam-se sentado num banco do jardim, sob um loendro repleto de flores brancas. O rosto dele estava impassível, sereno. Nessa calma, um tanto constrangido, Ramon compreendia o estado em que se achava Kate e comparava-o com o seu, achando-o semelhante. O puro contacto pessoal, a simples aproximação dos seres enchia-o, também a ele, de aversão. Carlota aborrecia-o, Kate
aborrecia-o igualmente. Às vezes, o próprio Cipriano o entediava.
Isto, porém, acontecia quando se encontravam no campo meramente pessoal. Eis o inconveniente: sentia-se maçado deles e com
asco de si próprio.
Tinha de os encontrar noutro plano, onde o contacto fosse diferente, intangível, distante, sem intimidade. O seu espírito estava bem longe dali. A alma não deve ligar-se a ninguém, mas voltar-se para Deus, seja de que maneira for.
com Cipriano sentia-se mais em segurança. Quando, depois duma ausência, ambos se abraçavam, faziam-no sem renunciar à sua respectiva solidão. Como a Estrela da Manhã.
As mulheres, porém, não admitiam isto. Queriam intimidade, e a intimidade engendra o tédio. Carlota desejava estar perpétua e intimamente identificada com Ramon; por isso o odiava e a tudo o que ela supunha afastá-lo dessa comunhão. Era um horror, e ele tinha consciência do facto.
Os homens e as mulheres deviam saber que jamais se podem unir absolutamente neste mundo. No beijo mais ardente, na carícia mais terna, há um pequeno abismo que, por muito estreito que seja, não deixa de existir. Têm de se inclinar perante esse fosso e submeter-se reverentes. Mesmo que uma esposa represente para o marido mais do que a sua própria vida, ele é ele e ela é ela, e o abismo nunca se há-de fechar. Qualquer tentativa para o fazer constitui violação e um pecado contra o Espírito Santo.
O que adquirimos do Além, adquirimo-lo sós. O decisivo "eu sou" vem de muito longe, da Estrela da Manhã. Quanto ao resto, o que em nós é parte do poderoso Cosmos, podemos compartilhá-lo com o ente amado. Mas a alma, jamais.
Ramon debatera-se desesperadamente antes de descobrir o caminho para se evadir de si mesmo e se transportar à própria essência do ser e da existência a que ele chamava Estrela da Manhã - visto que no mundo é necessário dar um nome a tudo. Evadir-se, através da alma, atingir a Estrela da Manhã e ali, somente ali, encontrar o seu semelhante...
No entanto, ainda conhecia o malogro, e o malogro contínuo. Perante Carlota, falhava em absoluto. Esta reivindicava-o, e ele opunha-lhe uma resistência surda. Quando estava de tronco nu, com a mulher presente, nunca deixava de ter consciência dessa nudez, precisamente porque ela parecia considerá-lo propriedade sua.
Se os homens se encontram na essência de todas as coisas, não estão nus nem vestidos; na transfiguração acham-se completos, ninguém os vê em pormenor. A perfeita força final tem também o poder da inocência.
Sentado no banco ao lado de Kate, Ramon sentia-se dominado pela tristeza. O seu terceiro hino era cheio de sarcasmo e de cólera. Carlota quase conseguira amargurar-lhe a alma. No México, certos facciosos haviam-se apoderado da sua ideia, tornando-a ridícula. Tinham invadido uma das igrejas da cidade, derrubado todas as imagens sagradas e posto no lugar delas os grotescos Judas de papelão que inundam o México nos dias da Páscoa. Isto, é claro, provocara grande escândalo. Cipriano, por seu lado, de cada vez que se ausentava por algum tempo, voltava a ser o inevitável general mexicano, fascinado pela oportunidade de realizar as suas ambições pessoais e impor a sua própria vontade. E por fim vinha Kate, com a sua aversão pelas pessoas e o desejo de fazer explodir o mundo.
Ramon sentia o espírito deprimido, os membros pesavam-lhe como chumbo.
Só uma coisa um homem desejava realmente fazer no decurso de toda a sua vida: encontrar o caminho que o conduzirá ao seu Deus, à sua Estrela da Manhã, a fim de ali estar, sozinho; e, mais tarde, acolher na Estrela da Manhã o amigo da sua alma e regozijar-se com a mulher que percorreu com ele o longo caminho.
Contudo, descobrir esse caminho, até à essência resplandecente de todas as coisas, é deveras difícil e exige que o homem guarde para si toda a sua força e coragem. Se envereda por ele sozinho, é tremendo; mas, se todas as mãos o agarram para o reter, se as mãos do amor o prendem pelas entranhas e as do ódio o seguram pelos cabelos, então o avanço torna-se quase impossível.
"Tento realizar o impossível - dizia Ramon consigo mesmo.
- Mais valia gozar o meu quinhão dos prazeres desta vida e renunciar ao prazer supremo. Ou então ir para um deserto e seguir sozinho o caminho para a Estrela, onde encontraria enfim a minha solidão e o que em mim existe de sagrado. O caminho dos anacoretas e dos homens que se refugiaram nos ermos, a fim de orar. Porque a minha alma tem sede de consumação e estou farto dessa coisa a que chamam vida. Vivo, desejo partir desta região onde "eu sou".
Sentados lado a lado no banco, Ramon e Kate esqueciam-se um do outro, ela absorta no passado, com a sua repulsa por tudo isso, ele pensando no futuro e tentando reanimar-se.
A meio desse silêncio, Cipriano assomou à varanda, olhou em volta, e quase se sobressaltou ao ver lá em baixo as duas figuras sentadas no banco debaixo dos loendros, juntas e no entanto tão longe uma da outra no seu mutismo.
Ao ouvir-lhe os passos, Ramon olhou para cima.
- Já lá vamos! - exclamou, pondo-se de pé e relanceando a vista por Kate. - Não lhe apetece um refresco? Tepache ou sumo de laranja? O que não temos é gelo.
- Gostaria de sumo de laranja com água - respondeu ela. Ramon chamou pelo criado e deu-lhe uma ordem. Cipriano estava trajado de branco como o amigo, mas a sua faixa era vermelha e estriada de negro, como uma serpente.
- Ouvi-a chegar, e já pensava que tivesse partido... - disse ele, olhando para Kate com certo ar de censura e de ressentimento.
- Ainda não - replicou ela.
Ramon riu-se e deixou-se cair numa cadeira.
- A señora Caterina acha-nos a todos semelhantes a macacos; mas talvez as nossas macaquices sejam o que mais divertido tem para ver, e por isso acedeu a demorar-se aqui mais algum tempo.
Como verdadeiro índio, Cipriano sentiu-se ferido no seu orgulho, e os pêlos da mosca pareceram erguer-se-lhe no queixo, num assomo de dignidade.
- Não é justo apresentar as coisas desse modo - observou Kate, rindo.
Os olhos pretos de Cipriano fitaram-na com hostilidade. Pensou que ela se ria à sua custa: e de certo modo asssim era, no fundo, lá muito no fundo da sua alma de mulher. Ria-se dele interiormente o que nenhum homem podia suportar, e muito menos um de pele escura.
- Não - repetiu Kate. -É que há outra coisa além disso.
- Ah, tome cuidado - acudiu Don Ramon. - Um pouco de piedade oferece os seus perigos.
- Qual piedade! - retorquiu ela, corando. - Que têm hoje contra mim, para se mostrarem antipáticos?
- Os macacos acabam sempre por ser antipáticos aos espectadores - sentenciou Don Ramon.
A irlandesa ergueu a vista e notou-lhe no olhar um relâmpago
de cólera.
- Vim - declarou - para que me falassem do panteão mexicano. Julguei compreender que podia ser admitida...
- Ah, bela ideia! - volveu, rindo, o dono da casa. - Um exemplar raro de mona que pretende fazer parte do jardim zoológico de Ramon. Vai ser excelente chamariz. Já houve lindas deusas no panteão asteca, posso-lhe eu afirmar.
- Continua a ser antipático!
- Ora, ora, señora mia. Falemos sinceramente. Todos somos macacos. Monos somos. Ihr seid ali Affen. Está a ver aquele bugio, o Cipriano. Teve a ideia simiesca de querer casar consigo. Aceite-o. O casamento não passa duma macaquice. Dê-lhe o sim. Deixá-la-á em liberdade quando estiverem saciados um do outro. É um general e um grande jefe. Se lhe agradar, a si, fá-la-á rainha-mona do México simiesco. E que podem fazer os macacos senão divertirem-se? Vamos! Embobemonos! Serei o sacerdote? Vamos! Vamos!
Saltou de súbito, com a violência de um vulcão, e desapareceu
correndo.
Cipriano olhou espantado para Kate, que empalidecera.
- Que lhe tinha dito? - inquiriu o general.
- Nada! - respondeu ela, pondo-se de pé. - É melhor ir-me
embora.
Chamaram por Juana. Alonso e Kate foram-se encaminhando
para o lago. Foi com certa dignidade ofendida que a irlandesa se sentou sob o toldo do barco. O sol estava furiosamente abrasador e o reflexo da água ofuscava-lhe a vista. Pôs então os óculos pretos, que lhe davam o ar de um monstro.
- Mucho calor, niña! Mucho calor! - repetia Juana, atrás
dela. A criada ingerira, evidentemente, bastante tepache.
Na água amarelada flutuavam jacintos aquáticos, com as folhas a fazer de velas. O lago estava cheio deles. As chuvas torrenciais tinham enchido o rio Lerma, arrastando consigo as terras marginais de Lírio e levando-as lentamente para toda a extensão do mar interior, onde se acumulavam ao longo da costa e acabavam por atravancar o rio Santiago, que tem a sua origem no lago.
Nesse dia Ramon escreveu o seu quarto hino, intitulado O que Quetzalcoatl Viu no México.
"Que estranhos rostos vejo no México! Brancos, amarelos, pretos, não são mexicanos! Donde vêm, e porquê?
Senhor, são estrangeiros, Não vêm de parte nenhuma, A ambição mantém-nos cá.
Que pretendem?
Pretendem ouro, a prata das montanhas, E o petróleo, o petróleo do litoral. Tiram o açúcar das longas canas, Apoderam-se do trigo dos planaltos, e do milho, E do café que cresce nas terras quentes, e até da borracha viscosa.
Constróem chaminés altas, que fumegam, E em edifícios enormes guardam as suas máquinas E fazem mover cabos de aço para baixo e para cima E as suas garras seguram miríades de fios.
E vós, mexicanos e peóns, que fazeis?
Trabalhamos com as suas máquinas, trabalhamos nos seus campos.
Eles dão-nos dinheiro feito de prata mexicana. São hábeis, esses homens.
Gostais deles, então?
Não gostamos, nem jamais gostaremos.
São medonhos, mas realizam coisas espantosas,
E a sua vontade é de ferro, como as máquinas.
Que havemos de fazer?
Vejo uns objectos escuros correndo através do campo.
São comboios, e camionetas, e automóveis. Que bom andar de comboio! diz o peón.
E diz também:
Que bom subir para uma camioneta e ser transportado por vinte
centavos!
Que bom passear nas grandes cidades, onde os carros deslizam
velozes e as luzes resplandecem!
Que bom seria recuperar tudo o que é nosso e se encontra em
poder dos estrangeiros!
Recuperar as nossas terras, o nosso dinheiro, o nosso petróleo, tornarmo-nos donos dos comboios, das fábricas e dos automóveis!
E divertirmo-nos com eles todo o tempo!
Que bom!
Oh, insensatos mexicanos e peóns!
Quem sois para possuirdes máquinas que não sabeis fabricar
mas apenas demolir?
Os que sabem criar é que são os senhores dessas máquinas.
Não vós, pobres idiotas.
Como atravessaram os mares do mundo os homens de rosto
branco ou amarelo?
Oh, insensatos, mexicanos e peóns de coração de argila!
Não fazeis outra coisa senão estar sentados a olhar, ou a beber aguardente e a discutir uns com os outros.
E depois acorreis como cães ao apelo dos senhores de face branca.
Oh, cães, oh, insensatos mexicanos e peóns! De coração liquefeito, joelhos vacilantes, De espírito inerte, incapazes de reagir, Para que servis senão para escravos?
Não mereceis um deus.
Olhai! O universo entrava nos seus dragões,
Os Dragões do Cosmos agitam-se despertados pela ira.
O dragão que dorme na alvura de neve do Setentrião
Move a cauda no seu sono; e o vento uiva nos penhascos em volta.
O espírito da morte glacial assobia aos ouvidos do mundo.
E eu digo-vos: não há mortos verdadeiramente mortos, nem sequer os vossos mortos.
Há mortos que dormem nas vagas da Estrela da Manhã e os seus membros repousam.
Há mortos que se amontoam no gelo do Norte, e tremem e batem os dentes.
E gritam de ódio.
Há mortos que rastejam nas entranhas ardentes da terra, e avivam a fornalha.
Há mortos postados debaixo das árvores e com os olhos de cinza espreitam as suas vítimas.
Há mortos que atacam o sol, como um enxame de moscas, para lhe sugar a vida.
Há mortos que estão sobre vós quando possuís a mulher que desposastes.
E se lhe insinuam no seio, e lutam à entrada dessa porta que abristes.
Rangem os dentes e odeiam aquele que ali penetrou para renascer da mulher.
Filhos de mortos vivos, de mortos que vivem e não repousam
Eu digo-vos: que a tristeza vos cubra. Morrereis todos.
E uma vez mortos não tereis repouso.
Não há mortos verdadeiramente mortos.
Depois de mortos vagueareis como cães
Procurando as imundícies da vida nas quelhas invisíveis do éter.
Os mortos que dominaram o fogo no fogo sobrevivem como salamandras.
Os mortos senhores da água são embalados nos mares cintilantes.
Os mortos das máquinas vão-se para longe, no movimento.
Os mortos que conquistaram a electricidade nela própria se tornam.
Mas os que nada venceram andam como cães sem dono nas ruas do Além
Procurando as imundícies da vida.
Quem domina as forças do mundo encontra nessas mesmas forças a sua casa da morte.
Mas vós que dominais, entre os dragões do Cosmos?
Há dragões de sol e de gelo, dragões de lua e de terra, dragões de águas salgadas, dragões de trovão.
Há o dragão cintilante de estrelas no espaço.
E no centro, como um olho que jamais pestaneja, o dragão da
Estrela da Manhã.
Conquistai! diz a Estrela. Transponde os dragões e vinde até
mim.
Mas porque sois inertes mandarei sobre vós os meus dragões.
Que vos esmagarão os ossos,
Que vos cuspirão em cima como a cães imundos.
E não encontrareis refúgio na morte.
Soltarei os dragões! O dragão branco do Norte,
Para que fustigue o ar com a sua cauda
E sobre vós sopre o seu hálito de gelo.
E direi ao dragão da fornalha central
Que retire dos vossos pés o seu calor, e eles adquirirão a frieza
da morte.
E direi ao dragão das águas que se volte contra vós
E espalhe a corrupção nos rios e nas chuvas.
Aguardo o dia final em que o dragão do trovão,
Sacudindo com raiva as redes de teia que sobre ele lançastes, trespassará os vossos ossos com agulhas eléctricas e vos coagulará o sangue com o seu veneno.
Esperai, esperai algum tempo! A pouco e pouco conhecereis
tudo o que vos digo."
Ramon envergou o traje citadino, fato preto, e foi em pessoa levar o hino ao tipógrafo. Antes de dobrarem a folha, estamparam em baixo o símbolo de Quetzalcoatl, a preto e vermelho, e o do dragão, em verde, negro e rubro.
Seis soldados das tropas de Cipriano levaram, de comboio, os maços de hinos: um para a capital, e os outros para Puebla e Jalapa, Torreon e Chihuahua, Sivaloa, Sonora, minas de Pachucha, Guanajuavo e região central. Cada soldado era portador duma centena de! folhetos, mas em cada terra havia um ou mais leitores de hinos designados especialmente para essa função, e alguns deles iam de aldeia em aldeia.
O povo tinha sede das coisas que ultrapassam o mundo dos homens. Estava farto das notícias dos jornais, farto de tudo o que se aprende com a educação. O espírito humano cansa-se da importunidade humana, dos factos humanos ou da invenção humana. Mesmo os que não se ocupavam dos hinos ansiavam por eles como os homens anseiam por se afogar em álcool e esquecer os aborrecimentos deste mundo.
Por toda a parte, em todas as cidades e aldeias se viam, à noite, chamazinhas a bruxulear, iluminando um círculo de homens que, de pé ou sentados, escutavam a voz surda do leitor.
Mais raramente, nalguma caza desviada, soava o rufo do tambor, parecendo sair do fundo dos séculos.
Distinguiam-se então dois homens de serapes brancas orladas de azul. Depois, todos entoavam os cânticos de Quetzalcoatl e, por vezes, dançavam numa roda, lentamente, martelando com os pés o ritmo antigo da América aborígene.
Porque as danças dos Astecas, dos Zapotecas e todas as raças de índios já submergidas são baseadas nesse passo pesado dos peles-vermelhas do Norte. Eles não o esquecem, jamais o esquecerão; está-lhes no sangue, e revivem-no com uma sensação de medo, alegria e alívio.
Por si mesmos, não se atreveriam a envolver-se no terrível encanto do passado. Mas nos cânticos e hinos de Quetzalcoatl falava uma voz nova, a voz e a autoridade dum amo e senhor, e embora fossem lentos em conceder a sua confiança, acolhiam a "velha novidade" com um misto de receio, prazer e consolação.
Os homens de Quetzalcoatl evitavam as feiras e as grandes aglomerações. Preferiam os locais sossegados.
Sentado no rebordo de uma fonte, um indivíduo de serape de barra azul começava a ler em voz alta. Isto bastava. Os transeuntes detinham-se a fim de o escutar. Ele lia até ao fim e depois declarava: "Terminei a leitura do quarto hino de Quetzalcoatl. Agora vou tornar a lê-lo."
Deste modo, por uma espécie de nota longínqua na voz e pela repetição lenta e monótona, aquilo ia-se infiltrando no espírito dos auditores.
Logo no princípio, produzia-se o escândalo dos Judas. Na Cidade do México, a Semana Santa parece ser consagrada ao traidor do Mestre. Por toda a parte se vêem bonecos quase de tamanho natural e de aparência grotesca. Em geral, representam o Judas sob o aspecto dum fazendeiro hispano-mexicano, com os seus bigodes acerados, barriga proeminente e calças cingidas à perna. O patrón tradicional. E sempre de faces rosadas e com o fato dos homens de raça branca; nunca o tipo moreno do indígena mexicano
Judas é a vítima e o herói da Semana Santa, tal como o esqueleto, o esqueleto a cavalo, é o ídolo da primeira semana de Novembro, por causa do Dia de Finados e o de Todos os Santos.
No Sábado Santo, cada qual pende o seu Judas na varanda da casa, pega lume ao cordel e de repente, no meio de gritos de alegria, rebenta a bomba escondida no corpo do boneco, que fica reduzido a migalhas. Toda a cidade ressoa com as explosões.
Produzira-se, pois, grande escândalo quando, numa igreja da Cidade do México, substituíram por esses Judas as imagens dos santos, e a Igreja começou a agitar-se.
No México, a Igreja deve agir com circunspecção porque não é popular e tem as unhas cortadas. Não é permitido tocarem os sinos mais de dez minutos. Os padres não têm licença para usarem fora do templo trajes eclesiásticos, além do hediondo casaco preto e volta branca dos pastores protestantes. Por isso aparecem o menos possível na rua e, por assim dizer, nunca nos locais mais concorridos.
Contudo, o sacerdote ainda conserva certa influência. São proibidas as procissões, mas não os sermões no púlpito nem os conselhos no confessionário. O presidente Montes não simpatizava com a Igreja e meditava na expulsão de todos os padres estrangeiros. O próprio arcebispo era italiano. Mas também era um lutador. Por sua ordem, todos os párocos proibiram os fiéis de escutar fosse o que fosse respeitante a Quetzalcoatl e recomendaram que não só rasgassem os folhetos que por acaso lhes viessem parar às mãos como impedissem a leitura dos hinos ou o entoar dos cânticos pagãos na sua paróquia.
No entanto Montes ordenara por seu turno à polícia e ao exército que protegessem os Homens de Quetzalcoatl - com essa protecção devida a todos os bons e leais cidadãos.
Não é em vão que o México é o México; contudo, já houvera sangue derramado de ambas as partes, e isso Ramon queria evitar, pois sentia que uma morte violenta se não apaga da alma dos homens com a facilidade com que desaparecem na lavagem as manchas de sangue no pavimento.
Eis porque, uma vez na cidade, pediu ao bispo de Oeste lhe concedesse uma entrevista, a ele e a Don Cipriano, e fixasse o local. O bispo, velho amigo e confessor de Carlota, conhecia bem Don Ramon. Respondeu que teria muito gosto em o receber e ao señor general no dia seguinte, se se dessem ao incómodo de ir a sua casa.
O prelado já não habitava o paço episcopal, que haviam transformado em edifício dos correios, mas possuía uma boa casa não longe da catedral e que lhe fora oferecida pelos fiéis.
Ramon e Cipriano encontraram o fanzino velho à sua espera numa biblioteca poeirenta e pouco interessante. Estava de sotaina preta, já muito usada, com botões de púrpura. Acolheu os visitantes com modos afáveis, e, embora o olhar revelasse desconfiança, representou bem o papel de velhote bonacheirão.
- Há quanto tempo o não vejo, Don Ramon! Como tem passado? Bem? Muito me alegra saber! - E batia no braço de Ramon como um tio afectuoso. - Grande honra em vê-lo nesta humilde casa, general! Ora façam favor de se sentar.
Instalaram-se em cadeiras de couro, na sala triste e poeirenta. O bispo contemplava com nervosismo os dedos magros e a bela ametista que num deles ostentava.
- Estou às vossas ordens, senhores - disse por fim, erguendo os olhos pequeninos e vivos. - Inteiramente à vossa disposição.
- Minha mulher encontra-se na cidade. Já lhe falou, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Já, meu filho.
-Nesse caso, monsenhor, deve estar ao facto das últimas novidades a meu respeito. com certeza Carlota disse tudo.
- Em parte, em parte! Na verdade, referiu-se a si, Don Ramon. Mas agora, graças a Deus, tem os filhos a seu lado para a distraírem. Regressaram à sua terra natal, e de boa saúde.
- Viu-os?
- Sim. Estimo-os muito, a ambos. São simpáticos e inteligentes como o pai, e, como ele, prometem ser de boa presença... Se lhe apetece fumar, general, não faça cerimónia.
Cipriano acendeu um cigarro. Aquele ambiente fazia-lhe lembrar a sua juventude e, embora divertido, sentia-se nervoso.
- Já sabe tudo o que pretendo fazer, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Tudo, não, meu filho, mas sei o bastante para não querer
mais informações. Ah! - suspirou o prelado. -É bem triste!
- Porque havemos de levar o caso para o lado da tristeza? No México somos índios na maioria. Os índios não compreendem o cristianismo, monsenhor, e a Igreja bem o sabe. O cristianismo é uma religião do espírito e necessita ser compreendido para ter alguma eficácia. Ora os índios são tão incapazes de o compreender como os coelhos dos montes.
- De acordo, meu filho. Mas podemos transmitir-lho. Os coelhos dos montes estão nas mãos de Deus.
- Não, é impossível. E, se não tiverem uma religião que os relacione com o universo, todos hão-de sucumbir. Só a religião lhes pode valer; de nada lhes servirá o socialismo, a instrução ou qualquer outra coisa.
- Diz muito bem, Don Ramon...
- Talvez os coelhos dos montes estejam nas mãos de Deus, monsenhor, mas estão à mercê dos homens. O mesmo sucede ao povo do México. Afunda-se cada vez mais em inércia, e a Igreja não consegue ajudá-lo porque não possui a chave que abre a alma mexicana.
- A alma mexicana não conhece a voz de Deus? - redarguiu
o bispo.'
- As ovelhas que apascenta devem conhecer a sua voz, monsenhor. Mas se for pregar às aves do lago, ou aos gamos da montanha, conhecê-la-ão? Deter-se-ão para a escutar?
- Quem sabe? Detiveram-se a escutar S. Francisco de Assis.
- Hoje é preciso falar aos mexicanos na sua própria linguagem, indicar-lhes a palavra que lhes abrirá a alma. Eu indico-a: Quetzalcoatl. Se estou em erro, que eu pereça! Mas não estou.
O bispo movia-se, inquieto. Não queria ouvir aquilo, não queria responder e nenhuma das coisas podia evitar.
- A sua Igreja é a Católica, monsenhor?
- Evidentemente.
- E a Igreja Católica significa igreja universal, igreja de todos?
- com certeza, meu filho.
- Então porque não a deixa ser realmente católica?... Porque chamá-la católica quando não é mais do que uma entre numerosas Igrejas e, ainda por cima, hostil a todas as outras? Porque não há-de ser a Igreja Católica verdadeiramente universal?
- É a Igreja Universal de Cristo, meu filho.
- Porque não também a Igreja Universal de Mafoma? No fim
de contas, Deus é só um, o mesmo para todos; os povos é que se exprimem em linguagem diferente e cada qual precisa de um profeta que lhe fale no seu idioma. A Igreja Universal de Cristo e Mafoma, de Buda, de Quetzalcoatl e de todos os outros... eis a verdadeira Igreja Católica, monsenhor!
- Fala de assuntos muito transcendentes! - observou o prelado, fazendo girar o seu anel.
- Não, qualquer pessoa entende! - replicou Ramon. - A
Igreja Católica é uma igreja de todas as religiões, um lar na terra para todos os profetas, uma árvore imensa sob a qual podem sentar-se e descansar todos os homens que reconhecem a vida mais elevada da alma. Não é assim, monsenhor?
- Meu filho, só conheço a Igreja de Cristo, apostólica e romana, de que sou humilde servo. Essas subtilezas de que me fala não as posso compreender.
- Venho pedir-lhe a paz, monsenhor. Não sou daqueles que
odeiam a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana, mas creio que ela não tem lugar no México. Quando não sinto o coração amargurado, ando cheio de gratidão por Cristo, Filho de Deus. A história dos Judas afligiu-me mais do que a si, monsenhor, assim como deveras me aflige sangue derramado.
- Não sou um inovador, meu filho, para provocar efusões de sangue.
- Oiça! vou retirar da igreja de Sayula as imagens de santos, com todo o respeito, e com todo o respeito as queimarei à beira do lago. Depois colocarei na igreja a imagem de Quetzalcoatl.
O bispo ergueu os olhos de súbito e, por uns momentos, ficou
sem dizer nada.
- Atreve-se a isso, Don Ramon? - replicou finalmente.
- Sim, e ninguém mo impedirá. Tenho a meu lado o general Viedma.
O prelado lançou um olhar furtivo a Cipriano.
- Certamente - confirmou este.
- Contudo, é ilegal - volveu o bispo, indignado.
- Que há de ilegal no México? - retorquiu Ramon. - Só é ilegal a fraqueza, e eu não serei fraco, monsenhor.
- Triste fortaleza! - comentou o velho, encolhendo os ombros.
Houve uma pausa.
- Venho pedir a paz - tornou Ramon. - Transmita ao arcebispo as minhas palavras; ele que diga aos cardeais e ao Papa que chegou o momento de haver uma Igreja para todos os homens. Que a árvore da Igreja estenda os seus ramos sobre toda a terra e abrigue à sua sombra os profetas que proclamam o seu conhecimento do Além.
- Considera-se um desses profetas, Don Ramon? - inquiriu
o bispo olhando-o cheio de compaixão.
- Considero-me. E falarei de Quetzalcoatl ao México e edificarei aqui o seu templo.
- Não. Conforme afirmou há pouco, invadirá os templos de Cristo e da Virgem Maria.
- Conhece as minhas intenções. Mas não quero contendas com a Igreja de Roma, nem derramamento de sangue, nem hostilidades... Não poderá compreender-me? Não deve a paz reinar entre os homens que se esforçam, cada qual por caminho diferente, por
atingir o mistério de Deus?
- Profanar de novo os altares! Introduzir ídolos nas igrejas, queimar a imagem de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, e querer paz? - exclamou o bispo, que nesse momento só aspirava a que o
deixassem.
- Sim, tudo isso, monsenhor.
- Que lhe posso dizer? É um homem bom, Don Ramon, dominado pela loucura do orgulho. Don Cipriano é um dos inúmeros generais mexicanos, e eu sou o velho bispo desta diocese, servo fiel da Santa Igreja, humilde filho do Santo Padre. Que posso fazer? Que posso responder? Leve-me para o cemitério e fuzile-me imediatamente, general!
- Não tenho essas ideias - replicou Cipriano.
- É como tudo isto acabará, com mortes - tornou o bispo.
- Mas porquê? - protestou Don Ramon. - Não é lógico o
que eu digo? Não me compreende?
- Meu filho, vivo da minha fé e dos deveres do sacerdócio, e o que eu compreendo é que se afasta para bem longe do caminho da Verdade.
- Adeus, monsenhor! - disse Ramon, pondo-se de pé bruscamente.
- Deus o acompanhe, meu filho - respondeu o prelado erguendo os dedos.
Cipriano fez tilintar as esporas e levou a mão ao punho da espada antes de se dirigir para a porta.
- Adiós, señor.
- Adiós, general - disse o bispo, dardejando-lhes um olhar de fúria que eles sentiram nas costas.
- O velho jesuíta não transmitirá aos outros o teu recado - comentou Cipriano quando iam a descer a escada. - O que ele quer é conservar o seu lugar e a sua influência... Já os conheço...
- Não sabia que os detestavas - retorquiu o amigo, rindo-se.
- Não vale a pena perderes mais fôlego com essa gente - disse Cipriano. - Segue o teu caminho e não te rales.
Foram a pé, atravessando o largo do edifício dos correios onde modernos escribas, sentados debaixo das arcadas, escreviam cartas à máquina para os analfabetos que esperavam, a troco dalguns centavos, ter as suas missivas em magnífico castelhano.
- Ouvi dizer - prosseguiu Cipriano - que os Cavaleiros de Cortez deram um banquete no decurso do qual juraram tirar a vida a ti e a mim. Mas parece-me que me assustariam mais os juramentos das damas católicas. Porque se um homem se detém para desabotoar as calças e urinar, os Cavaleiros de Cortez fogem a sete pés, julgando que lhes vão desfechar uma pistola. Por isso, não te preocupes nem tentes conciliar-te com eles. Se desconfiassem que os temes, tornar-se-iam insolentes. Mas seis soldados bastarão para meter na ordem toda essa escória.
Cipriano tinha aposentos no grande Palace da Plaza de Armas.
- Se me casar - disse ele, quando entravam no pátio, onde estavam soldados em posição de sentido -, se me casar arranjarei uma habitação na colónia. É mais recatado...
Cipriano, na cidade, chegava a ser cómico. Parecia inchado de orgulho e de autoridade arrogante quando ia a andar. Mas os seus olhos negros, luzindo por cima do nariz delgado e da barbicha de bode, não inspiravam riso. Dir-se-ia abrangerem tudo num relance. Tinha qualquer coisa de demoníaco, o general Viedma.

XVIII
Ramon falou com a mulher e os filhos na cidade, mas foi uma entrevista um tanto penosa. O mais velho dos rapazes sentia-se constrangido em presença do pai, enquanto o mais novo, Cipriano, que era delicado e bastante inteligente, mostrava o seu desagrado ao progenitor e assumia ares altivos.
- O papá sabe o que cantam por aí? - perguntou o pequeno.
- Não faço ideia - respondeu Ramon.
- Cantam... - O garoto hesitou e então, na sua voz clara e infantil, fez ouvir os seguintes versos com a música de La Cucaracha:
Don Ramon não fuma nem bebe, Dona Carlota bem o desejaria. Vai vestir-se com manto azul-celeste Que ele roubou à Virgem Maria.
- Não, isso não é verdade - disse Ramon, sorrindo. - O manto que eu uso tem uma serpente e um pássaro no meio. E ziguezagues pretos. E uma franja verde. Farias bem em ir comigo, para o ver.
- Não, papá, não vou.
- Porquê?
- Não quero meter-me nesse assunto que nos torna a todos ridículos.
- E não serás ridículo de fato à marinheiro e esse ar tão virtuoso? Mais valia que te vestisses de Menino Jesus.
- Oh, papá, essas coisas não se dizem!
- Serás obrigado a te confessares por ter mentido. Declaras que essas coisas não se dizem depois de mas ouvires dizer!
- Mas eu refiro-me às pessoas boas, às pessoas decentes.
- Isso! Agora chamas indecente a teu pai! Mais um pecado que terás de confessar.
O pequeno corou e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Seguiu-se um silêncio.
- Então vocês não querem ir a Jamiltepec? - perguntou Ramon aos filhos.
- Gostava de tomar banho no lago, e andar de barco - proferiu o mais velho lentamente. - Mas dizem que não pode ser.
- Porquê?
- Dizem que o pai se veste como os peóns - acrescentou o pequeno, a medo.
- É um traje bem bonito, mais do que o teu.
- E dizem também que o pai afirma ser o deus asteca Quetzalcoatl.
- Não, senhor. Só afirmo que o deus asteca vai voltar ao México.
- Mas isso não é verdade!
- Como é que sabes?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque nunca houve nenhum Quetzalcoatl, senão em ídolos.
- E as imagens dos santos?
- Isso é diferente. Os santos existiram, e estão no Céu.
- Pois Quetzalcoatl também está no Céu, e. encontrando-se lá, pode voltar à terra. Não me acreditas?
- Não, papá.
- Nesse caso, fica com a tua incredulidade - replicou o pai. rindo e levantando-se para se ir embora.
- Acho muito desagradável que façam cantigas ao papá e à mamã como fazem ao Pancho Villa - disse o filho mais novo. - É uma coisa que me dói.
- Fricciona com Vaporub o ponto dorido - redarguiu Ramon. - Uma fricção e isso passa.
- Como o papá é tão mau!
- E como tu és tão bom! Não é assim?
- Não sei. Só sei que o papá é mau.
- Oh! Oh! É isso que te ensinam no colégio?
- No próximo período vou mudar de nome - declarou Ciprianito. - Não quero usar mais o apelido Carrasco. Quando falarem do papá nos jornais hão-de se rir de nós.
- Oh! Oh! Eu é que me rio de ti neste momento, meu franganote! Que nome vais escolher então? Talvez Espina... Como sabes. Carrasco é uma planta brava dos mantagais de Espanha. Queres ser o espinhito do arbusto? Chama-te Espina. entonces, adiós, señor Espina Espinha!
- Adiós - respondeu o pequeno, rubro de cólera.
Ramon foi de automóvel até Sayula. Haviam aberto uma estrada, mas as chuvas tinham-na desnivelado, e o carro ia aos tombos, de cova em cova. A meio caminho jazia um camião de fundo para o ar.
Na planície deserta estagnavam já poças de água, e as flores cor-de-rosa e amarelas mostravam tufos de botões. Ao longe, as colinas tornavam-se numa massa verde opaca conforme as folhas revestiam as árvores e os arbustos invisíveis na distância. A terra renascia para a vida.
Chegado a Sayula, Ramon dirigiu-se a casa de Kate. Esta saíra, mas Concha correu a procurá-la na praia.
- Está cá Don Ramon! Está cá Don Ramon!
Kate regressou à pressa, com os sapatos cheios de areia. Achou Ramon fatigado, e sinistro naquele fato preto.
- Não o esperava - disse ela.
Empertigado na cadeira, de semblante sombrio, alisava sem cessar o bigode preto sobre os lábios cerrados.
- Viu alguém conhecido na cidade? - perguntou Kate.
- Don Cipriano, e minha mulher e meus filhos.
- Ah! Eles estão bem?
- De excelente saúde, creio eu. Kate riu-se, inesperadamente.
- Que ar tão zangado! Ainda é por causa dos macacos?
- Señora- disse Ramon. inclinando-se para a frente, de modo que uma melena lhe tombou para a testa - no reino dos monos não sei quem é príncipe, mas no dos loucos sou eu com certeza.
- Porquê?
E, como ele não respondesse, Kate ajuntou:
- Vale a pena ser príncipe, ainda que dos loucos. Ramon lançou-lhe um olhar furibundo, mas logo desatou a rir.
- Oh, señora mia! O nosso mal é querermos ser sempre bons.
- Sente-se arrependido?... - volveu Kate, em tom de gracejo.
- Sim, sou o rei dos loucos. Porque levantei essa história de Quetzalcoatl? Porquê? Serei capaz de me explicar?
- Porque lhe agrada, suponho.
Ramon reflectiu um instante, sem largar o bigode.
- Antes ser macaco do que idiota. E. contudo, oponho-me a que me considerem macaco. Carlota sim. pertence a essa raça, e os meus filhos não passam de macaquinhos vestidos à marinheiro. Eu sou um louco. E que diferença haverá entre um louco e um macaco?
- Quien sabe - disse Kate.
- Um quer ser bom, outro tem a certeza de que é bom. é o que me torna louco, a vontade de ser bom. Eles, tão seguros de serem bons, fazem de si mesmos uns macacos. Oh, quem me dera que o mundo explodisse como uma bomba!
- Não explodirá - asseverou Kate.
- Pois não...
Ramon endireitou-se na cadeira e mudou de assunto.
- Então, señora Caterina, sempre se decide a casar com o nosso general?
- Eu... eu... não sei - balbuciou Kate. - Mas não creio...
- Não lhe é simpático?
- é, sim, e acho até que irradia certo encanto. Mas não devemos arriscar-nos ao matrimónio com uma pessoa doutra raça, por muito simpática que seja, não lhe parece?
- Ah! - suspirou Ramon. - Só vale a pena o casamento quando haja verdadeira fusão, seja onde for.
- E eu sinto que não haverá - disse Kate. - Tenho a impressão que ele só pretende de mim uma coisa; e eu, por meu lado, talvez também só uma coisa pretenda dele. Mas nunca nos encontraríamos em verdadeira comunhão. Ele viria para obter o que deseja de mim, e eu teria de consentir... Ora não é apenas isso que eu quero. Quero um homem que me encontre a meio caminho...
Don Ramon pensou um pouco e em seguidameneou a cabeça.
- Tem razão. Mas nesse assunto nunca se sabe ao certo onde é o meio caminho... Uma mulher que deseja simplesmente que a tomem para depois se agarrar ao homem não passa de um parasita. E um homem que quer simplesmente tomar, sem nada conceder, é uma ave de rapina.
- Receio que seja esse o caso de Don Cipriano - murmurou Kate.
- É possível - disse Ramon. - Comigo ele não se mostra assim, mas talvez o fosse se não nos encontrássemos... a meio caminho... de uma espécie de crença física que está bem no centro do nosso ser e que reconhecemos um no outro. Não poderá isso existir entre a señora e ele?
- Desconfio que Don Cipriano não vê a necessidade de semelhante coisa, tratando-se de uma mulher. As mulheres têm pouca importância.
Ramon ficou silencioso.
- Talvez - disse por fim. - com uma mulher, o homem deseja sempre abandonar-se, quando, pelo contrário, devia agarrar-se à sua crença mais profunda... Porque se a crença de cada um coincide, se é física, só ali se podem encontrar. De nada serve um homem violentar uma mulher ou uma mulher violentar um homem. É pecado. O pecado existe, e está na origem. Homens e mulheres continuam a violentar-se mutuamente. Por muito absurdo que pareça não sou eu que desejo apoderar-me de Carlota, ela é que quereria possuir-me. Chega a ser estranho, quase vergonhoso, mas é a verdade. Ah, se conseguíssemos manter-nos fiéis à nossa alma e encontrar-nos nessa região serena! Não tenho grande consideração por mim mesmo. A mulher e eu falhámos um perante o outro, e é um malogro bem triste para guardar no íntimo do nosso ser.
Kate olhou-o com espanto e certo medo. Porquê aquela confissão? Estaria ele prestes a amá-la? Ramon fitava-a com uma expressão dolorosa nos olhos sombreados pelo desgosto, cólera e vexame.
- Lastimo bastante que Carlota e eu nos não entendamos - continuou ele. - Quem sou eu. para me atrever a falar de Quetzalcoatl quando tenho o coração roído pela ira que sinto contra a mulher que desposei e contra os filhos que ela me deu? Nunca as nossas almas se encontraram. A princípio amava-a, e ela gostava que eu a desejasse. Mas passado tempo não se é capaz de continuar a querer com ardor a posse da mesma mulher. Sente-se uma espécie de repulsa. O amor foi então da sua parte, e quiz conquistar-me à viva força. Depois cansou-se também. O pequeno mais velho é realmente meu filho, concebido pelo meu desejo, e o mais novo é filho dela concebido pelo seu desejo. Veja como tudo isto é lamentável! E agora, jamais poderemos encontrar-nos. Carlota volta-se para o seu Deus. e eu volto-me para o meu Quetzalcoatl. que ao menos não pode ser violentado.
- E estou certa que não fará dele um violador.
- Quem sabe? Se eu errar será nesse sentido. Mas, señora, Quetzalcoatl não é para mim senão o símbolo de uma perfeição acessível ao homem. O universo é um ninho de dragões em cujo centro está um mistério insondável da vida. Pouco importa que eu chame a esse mistério Estrela da Manhã. A existência do homem não se realiza no abstracto. O homem é uma criatura que, polegada a polegada, arranca a sua própria criação do antro dos dragões do Cosmos. Ou então perde-a a pouco e pouco, desfeita em migalhas. E estamos a perdê-la... Temos de a reconstituir, homens e mulheres, senão pereceremos todos.
- Mas... necessita duma mulher na sua vida? - perguntou Kate.
- Aspiro ao apaziguamento sensual do meu ser, señora. Não sou daqueles que acreditam na renúncia dos desejos do sangue. Sou homem sempre pronto a tomar esposas e concubinas, tal a sede de apaziguamento. Mas agora sei que é para mim inútil arrebatar uma mulher com o meu desejo ardente, por muito que ela me ame e queira despertar-me o desejo. Vinho, amor e canções... tudo acabou. Já nada disso existe.
- No entanto precisa de uma mulher a seu lado.
- Ah, señora! Se eu pudesse confiar em mim e confiar nela! Já não sou um adolescente, a quem se desculpam todos os erros. Tenho quarenta e dois anos e tenho o meu derradeiro... ou melhor, o meu primeiro grande esforço de homem. Espero morrer antes de cometer um erro crasso.
- E porque havia de o cometer?
- É muito fácil enganar-me. Muito fácil, por um lado, tornar-me arrogante; muito fácil, por outro, renunciar a mim próprio e fazer da minha vida uma espécie de sacrifício.
- Mas porque não procede como diz? Porque não se apoia no mais profundo do seu ser e não comunga com uma mulher, aí onde as duas almas coincidam no seu desejo mais forte? Nem sempre há-de haver aquele horrível desajustamento a que chama violentação.
- Que mulher podia eu possuir carnalmente sem me submeter à lenta degradação de violentar e ser violentado? Se casasse com uma espanhola ou com uma mexicana, abandonar-se-ia a mim para que eu a dominasse. Casando com uma anglo-saxónica ou uma branca de raça nórdica, ela quereria dominar-me com a sua vontade de todos os antigos demónios brancos. As primeiras são parasitas da nossa alma e sentimos fastio. As outras são vampiros. E entre as duas espécies não há nada.
- com certeza que existem mulheres diferentes dessas.
- Nesse caso, mostre-mas. São todas autoritárias, Carlotas ou... Caterinas. Estou certo de que dominou Joachim até à sua morte. Acredito que ele se prestasse a isso mais até do que a senhora desejaria. Não é apenas uma questão de sexo. Reside na vontade: vítimas e dominadores. As classes elevadas aspiram a ser vítimas das classes inferiores ou passarem por tal. Os políticos tentam tornar os povos em vítimas uns dos outros. A Igreja procura transformar as pessoas em seres humildes e torturados que só desejam ser vítimas. Ah, a terra é um lugar bem triste!
- Mas. se deseja ser diferente - disse Kate - há-de haver algumas outras pessoas como o senhor.
- É possível - replicou ele, acalmando-se. - É possível. Gostaria de me reprimir melhor. Reprimir-me, concentrar-me em mim próprio, onde eu esteja em paz. Na minha Estrela da Manhã. E agora já me envergonho de ter dito o que disse, señora Caterina.
- Porquê? - exclamou ela. E, pela primeira vez, veio-lhe à face o rubor da pena e da humilhação.
Ele notou-o logo e, por um momento, descansou a mão sobre a de Kate.
- Não, afinal não me envergonho. Estou aliviado.
Ao contacto dessa mão, a irlandesa corou ainda mais e ficou silenciosa. Ramon levantou-se rápido para se ir embora, de novo ansioso de se reencontrar na sua alma.
- Domingo vai plaza, de manhã, quando ouvir o tambor? perguntou Ramon.
- Para quê?
- Verá.
E, assim falando, desapareceu.
Havia muitos soldados na aldeia. Quando foi ao correio, Kate encontrou os homens de farda de algodão dispersos pelas imediações do quartel. Eram cerca de cinquenta, não como esses outros de chapéu desabado e grande estatura, mas pequeninos, vivos, sólidos como Cipriano: falavam baixo um estranho dialecto índio. Raras vezes se viam nas ruas, porque em geral se escondiam.
Os habitantes tinham ordem de recolher às dez horas da noite. Kate ouvia as patrulhas passar a cavalo, através da escuridão.
Dir-se-ia envolver o país uma atmosfera de excitação e mistério. O cura da paróquia, que era gordo e roçava pelos cinquenta anos, pregara no sábado à noite um sermão memorável contra Ramon e Quetzalcoatl, proibindo a menção deste nome execrando e predizendo castigos aos paroquianos que lessem os hinos ou os escutassem.
É claro que foi atacado quando saía da igreja e precisou de uma escolta de soldados para regressar a casa, onde chegou a salvamento. Mas a criada, uma velha que o servia há muito, ouviu as mulheres dizerem que, da próxima vez que o padre abrisse a boca para falar contra Quetzalcoatl. receberia umas poucas de facadas no abdómen. Deste modo ficou ele de portas adentro, fazendo-se substituir pelo coadjutor.
Quase toda a gente que chegava de barco, aos sábados, ia ouvir missa à igreja de Sayula, cujas portas ficavam abertas todo o dia. Os homens que iam para o lago ou que vinham de lá tiravam sempre o chapéu, num gesto humilde, quando passavam defronte do templo. Havia constantemente pessoas ajoelhadas ao longo das naves ou entre as bancadas, os homens muito direitos, com o chapéu no chão. a seu lado, as mulheres encapuchadas nos rebozos escuros, rezando numa espécie de abandono voluptuoso, de cotovelos apoiados ao banco.
No sábado à noite, a cintilação avermelhada de muitos círios iluminava o interior sombrio da igreja. Via-se como que um mar agitado de cabeças escuras, uma confusão de gente que vinha da praia e se dirigia ao mercado. Silêncio mas não bem de adoração, antes de pasmo diante daquele cintilar de luzes.
Não, não era veneração, talvez entorpecimento e abandono da alma flutuando sem governo. E era também para eles um luxo após a semana de sujidade e desleixo nas suas aldeias sórdidas de cabanas de colmo. Isso, porém, irritava Kate.
Domingo de manhã havia a primeira missa ao nascer do Sol, outra às sete horas, outra às nove e mais uma às onze. A orquestra de violinos e violoncelos executava velhas músicas de dança. Desde muito cedo que se notava uma compacta massa de peóns e mulheres, todos ajoelhados; bruxuleavam chamas fumegantes que espalhavam o cheiro da cera, elevavam-se rolos de incenso juntamente com o coro das vozes masculinas, sólidas, poderosas, impressionantes.
E os fiéis retiravam-se com uma sensação de torpor que, logo à entrada da feira, se transformava em ódio, esse velho ódio insondável, latente no coração do índio e sempre pronto a despertar quando o agita uma satisfação voluptuosa.
O interior da igreja parecia uma coisa morta, como aliás, todas as igrejas mexicanas, até a sumptuosa catedral de Puebla. Os templos italianos são quase todos no mesmo estilo, e no entanto paira neles uma sombra serena, a paz de antiga e misteriosa santidade, o silêncio. Mas tal não sucede no México. Exteriormente as igrejas possuem imponência. Por dentro, são vazias de sons e no entanto o silêncio não impera; simples e contudo vulgares, nuas, áridas, mais nuas do que uma escola ou uma sala de concertos deserta, mais desprovidas de mistério do que qualquer desses edifícios. Tem-se uma impressão de argamassa, de estuque, de lambuzadelas de cal azul ou cinzenta e de dourados superficiais com o odioso aspecto de purpurina e não de ouro puro. Enfim, nenhuma doçura, nenhum recolhimento.
Eis o interior da igreja de Sayula. onde Kate já entrara muitas vezes. Por fora era encantadora e enquadrava-se bem na paisagem, com as suas duas torres brancas elevando-se acima dos salgueiros verdes. Mas por dentro não havia nada senão o estuque branco com estrias azuis e cinzentas. As janelas, numerosas e altas, deixavam penetrar a luz como numa escola. Num dos transeptos estava Jesus sulcado de sangue, e à sua frente a Virgem Maria, vestida de cetim, olhava com ar admirado sob a redoma de vidro. Viam-se ali flores de papel, flores de pano e rendas prateadas que pareciam de zinco.
No entanto, a igreja era muito limpa, e muito frequentada.
Acabado o mês de Maria, retiraram as grinaldas de papel branco e azul, assim como os vasos de palmeiras das naves laterais. Deixaram de aparecer, à tarde, as rapariguinhas vestidas de branco, coroadas de flores e com ramalhetes na mão. É extraordinário como as antigas e enternecedoras cerimónias da Europa assumem no México aspecto vulgaríssimo e se transformam numa espécie de espectáculo popular.
No dia de Corpo de Deus a igreja encheu-se até à porta, e houve uma pequena procissão de crianças dentro do templo - visto a lei proibir desfiles religiosos na rua. Tudo aquilo constituía fiesta, um pretexto para não fazerem nada, para justificarem o seu desejo de inacção. A eterna indolência mexicana.
Decorriam as semanas, a multidão na igreja era sempre densa, mas essa mesma multidão, ao sair do templo, rodeava os Homens de Quetzalcoatl.
Durou isto até ao dia em que os oradores mais socialistas misturaram aos seus discursos um pouco de azedume anticlerical. Então ospeóns começaram a murmurar: Será El señor um gringo e a Santíssima uma gringuita?
O caso provocou admoestações da parte dos sacerdotes e por fim as ameaças do famoso sermão. A guerra estava declarada.
Toda a gente esperava ansiosa pelo sábado seguinte. Chegou o dia, a igreja conservou-se fechada, e fechada se manteve todo o domingo.
O povo na feira parecia consternado, já não sabia para onde ir. Mas à consternação juntava-se certa curiosidade. Talvez acontecesse algo de sensacional...
Já noutros tempos haviam sucedido coisas... No decurso das revoluções, muitas igrejas mexicanas tinham sido transformadas em escolas, salas de concerto ou cinemas. Vários conventos serviam agora de quartel. O mundo está sempre a modificar-se.
No sábado seguinte ao encerramento da igreja, havia uma grande feira, de excepcional importância. Viam-se ali homens a vender escudelas de pau envernizadas, mulheres com loiça de barro vidrado. E, como de costume, índios de sentinela às suas ameixas, abóboras ou mangas, amontoadas em pirâmide ao longo dos passeios.
Um mercado à cunha, e as portas da igreja fechadas, e os sinos calados. Até o relógio parara. É certo que parava de vez em quando, mas nunca estivera tanto tempo sem funcionar. Parecia uma imobilidade definitiva.
Nem missa, nem confissão, nem rolos de incenso... Só murmúrios sufocados, olhares furtivos e receosos. À beira do passeio, os vendedores pareciam ídolos astecas, hirtos, agachados no chão e com os joelhos quase ao nível dos ombros. Por toda a parte se viam soldados, em grupos de dois e de três. E señoras e señoritas, todas de mantilha preta, acorriam a ouvir missa, embora já soubessem que a igreja estava fechada.
Mas era domingo e alguma coisa ia acontecer nessa manhã.
Cerca das dez horas apareceu um barco e dele saltaram para terra vários homens de fato branco, dos quais um trazia o tambor. Abriram caminho entre a multidão que estacionava debaixo das árvores e dirigiram-se para a igreja.
Em frente das portas sempre fechadas, despiram o casaco e formaram círculo, todos de torso nu e faixa azul e preta a apertar-lhes a cintura.
Soou o tambor, em pancadas fortes, bem ritmadas, enquanto os homens se mantinham agrupados no adro, numa roda estranha de cabeças negras e lustrosas, espáduas bronzeadas e calças brancas. Continuou o toque de tambor, sempre igual, a que depois se juntou o som ácido de uma flauta de barro.
Todos os que se encontravam no largo da feira correram para a igreja. Mas estavam ali soldados para impedir que penetrassem no adro ou saltassem os muros baixos. De modo que a multidão ficou debaixo dos salgueiros e das pimenteiras, ou então ao sol, a presenciar os acontecimentos. Na sua maioria eram homens de grandes chapéus, mas também ali se encontravam pessoas da cidade, e algumas mulheres, entre as quais Kate, munida de sombrinha azul-escura. Diante de si tinha a massa compacta de gente, comprimindo-se em silêncio na sombra escassa das árvores; atrás, estacionavam automóveis e caminhetas.
Calou-se o tambor, calou-se a flauta. Ouvia-se o marulho do lago, tilintar de copos, vozes de motoristas que bebiam numa taberna e, dominando tudo, o silêncio ofegante da multidão. Vários soldados distribuíram folhetos pela assistência e uma voz máscula, bem timbrada, começou a cantar, acompanhada em surdina pelo tambor.
Durante o cântico, chegou outro barco, e os soldados afastaram a turba para deixar passar Ramon. na sua serape branca de orla azul e franjas vermelhas. Seguia-o um rapaz magro, vestido de sotaina, e mais seis homens de serapes escuras com a bordadura azul de Quetzalcoatl. Esta estranha procissão avançou através do povo até às grades do adro.
Quando eles se aproximavam, abriu-se o círculo de homens que rodeavam o tambor, desdobrando-se em forma de crescente. Ramon conservou-se de pé por trás do tambor e os seis indivíduos de serapes escuras separaram-se e foram postar-se a cada ponta do crescente. O mancebo magro vestido de sotaina permaneceu sozinho, à frente, encarando a multidão. Como ele erguesse uma das mãos,
Ramon tirou o chapéu e logo se descobriram todos os homens presentes.
Voltou-se o clérigo, dirigiu-se a Ramon e entregou-lhe a chave da igreja. Depois, esperou.
Ramon enfiou a chave em todas as portas do templo, escancarando-as. Subitamente ajoelharam os homens que estavam no primeiro plano: tinham visto aparecer o interior da igreja como uma caverna sombria, ao fundo da qual tremulava o clarão dos círios: dir-se-ia haver surgido a Sarça Ardente no meio das trevas misteriosas.
O resto do povo, estremecendo, caiu de joelhos. Só ficou de pé, aqui e ali, um operário, um motorista, um empregado do caminho de ferro.
De súbito, no fundo da sombra que todos os olhos perscrutavam, uma rajada apagou a Sarça Ardente e só ficou um ou outro círio aceso envolto num abismo de trevas.
Da multidão elevaram-se exclamações e murmúrios.
Então o tambor rufou baixinho e dois homens começaram a cantar um hino com possante voz de tenor que parecia entreabrir a terra. Eram indivíduos que Ramon e os seus partidários tinham encontrado em tabernas da Cidade do México. Os "tempos maus" haviam-nos reduzido a cantar nos antros da pior espécie, e agora elevavam a voz com toda a raiva demoníaca da sua desesperação.
O moço de sotaina entrou na igreja. Ramon seguiu-o e atrás dele foram todos os homens do semicírculo, em passos vagarosos. O sino badalou no silêncio de morte e calou-se daí a instantes.
Nas profundezas da nave soou um tambor, lento, distante e terrífico. com sobrepeliz ornada de rendas, o sacerdote apareceu no limiar. Trazia uma cruz, e hesitou antes de avançar para a claridade do exterior. O povo ajoelhado juntou as mãos.
Em direcção à porta tremulavam círios, vindos do fundo da igreja escura. Don Ramon emergiu da sombra, de torso nu e serape ao ombro, segurando a ponta dianteira do andor que sustinha a urna de vidro onde repousava Cristo morto - essa imagem de aspecto tão humano, que se venera na Semana Santa. Atrás, um homem trigueiro e alto, igualmente despido da cintura para cima, trazia ao ombro a outra extremidade do andor. A turba gemeu e benzeu-se. O Cristo morto parecia realmente morto quando transpôs a porta do templo. As mulheres e os homens ajoelhados ergueram o rosto, abriram os braços e assim ficaram em indizível êxtase, em que havia medo e súplica.
A seguir ao féretro vinha uma lenta procissão com os restantes andores. As estátuas avançavam oscilantes, transportadas por aqueles indivíduos de pele de bronze e, sob a luz crua do sol, chegaram por fim ao caminho que conduz ao lago.
- Puríssima! Puríssima! Não nos abandones! - gritavam as mulheres.
E alguns homens, tomados de estranha angústia, clamavam por seu turno:
- Senhor! Senhor! Senhor!
Agora, debaixo das árvores, o cortejo entrou na areia rugosa e surgiu em plena claridade, à beira de água. Corria uma brisa ligeira. As serapes dobradas baloiçavam nas espáduas luzentes, as imagens vacilavam levemente.
Junto do murinho da margem estava uma barca de vela, em comunicação com a terra através duma ponte de tábuas. Dois homens de branco, com as calças arregaçadas, ladearam o moço clérigo, cujas mangas largas ondulavam como bandeiras: ajudaram-no a embarcar, e ele, encaminhando-se para a proa, descansou ali a base da cruz. A barca era descoberta, sem nenhum toldo, mas tinham colocado lá -várias mesas para nelas poisar as imagens.
Ramon subiu devagar para bordo. Depositaram o caixão de vidro no seu suporte e os dois homens limparam a testa húmida de suor. A fim de se proteger do sol, Ramon cobriu-se com o manto e o chapéu. O barco baloiçava imperceptivelmente, embalado pelo vento de oeste. Batido do sol, o lago parecia uma coisa irreal.
Uma após outra, as imagens levantaram-se à popa, avultando de encontro ao azul do céu, e depois baixaram-se quando as puseram sobre as mesas. Era uma estranha colecção de estátuas de mau gosto e contudo essas efígies inspiravam certa compaixão, vendo-as assim agrupadas para a sua última viagem. Ao lado de cada uma viam-se os respectivos portadores, de chapéu e manta, segurando com mão firme nas varas do andor. Havia uma fila de soldados, na praia, e três gasolinas com militares esperavam junto da barca. a gente acorrera toda à beira de água, e muitas canoas de reinos, como peixes curiosos, rondavam a embarcação principal, sem todavia se atreverem a aproximar-se muito. Então, de pernas nuas, alguns marinheiros impeliram a barca para longe da margem, e aquela começou lentamente a mover-se nos baixios, afastando-se da praia e da multidão.
Dois outros marinheiros, rápidos, içaram a vela branca e quadrada. Depressa, mas pesada, ela subiu no ar e enfunou-se ao vento. No meio estava pintado o emblema de Quetzalcoatl, a serpente em círculo e a águia azul, no centro, em campo de oiro. À distância, parecia um olho enorme.
O vento soprava de oeste, porém a barca ia com rumo a sudeste, direita ao ilhéu dos Escorpiões, que se elevava como um vago montículo acima do lago ofuscante. Panda, a vela dir-se-ia olhar para trás com aquele seu grande olho arregalado, para a aldeia, para os salgueiros verdes, para a igreja branca e vazia e para a gente aglomerada na margem. Os gasolinas tornejavam a barca vagarosa, e as canoas seguiam-na de longe.
Na praia, o povo dispersava-se. Uns sentavam-se na areia, observando e esperando com uma paciência quase indiferente. A barca fez-se mais pequena, menos visível, e os barquinhos que a circundavam já não eram mais que pontos negros. A reverberação do lago fatigava os olhos.
Debaixo das árvores, em expectativa silenciosa, uma mulher comprou uma melancia, abriu-a batendo-a numa pedra e distribuiu pelos filhos os bocados cor-de-rosa. Uns homens polvilhavam de sal os pepinos que acabavam de comprar. A igreja estava completamente às escuras, pois não tinha outra luz senão a que entrava pela porta; e absolutamente vazia, pois fora despojada das suas imagens. Era já meio-dia e o calor apertava. A barca nesse momento costeava o ilhéu, onde vivia uma família de pescadores índios. Tinham algumas cabras e um pedaço de terreno cultivado de feijões e milho. À parte isso, era tudo rocha, com silvados'e lacraus.
Precedida pelas canoas, a barca contornou a costa para entrar na única enseada, onde já homens cor de bronze se banhavam entre os rochedos.
Arriaram a vela, a embarcação imobilizou-se e os seus tripulantes, saltando para a água, apearam as imagens e puseram-nas sobre as rochas, onde ficaram à espera dos seus portadores.
Formou-se de novo o cortejo e este, seguindo pela orla do ilhéu, passou diante das cabanas e alcançou os rochedos da outra margem, ocultos pelo matagal.
No lado fronteiro a Sayula era tudo pedra nua, árida e penosa para a marcha. À beira da água, numa depressão da rocha, tinham colocado pedregulhos de cada banda e, sobre eles, varões de ferro dispostos de modo a formar uma espécie de grelha. Por baixo estava uma pilha de lenha, pronta a arder. Perto, via-se outro molho suplementar.
Em cima daqueles varões pousaram as imagens - grupo patético contra o qual se apoiava a cruz. Era meio-dia, o calor e a luz envolviam tudo, mas já no horizonte se amontoavam nuvens.
Para além da reverberação da água, a aldeia parecia uma miragem, com as suas árvores e as torres brancas da igreja.
Os homens que tinham vindo nas canoas apinhavam-se nos rochedos do pequeno anfiteatro. Em silêncio, Ramon inflamou um punhado de caruma com o auxílio duma lente - e logo se elevaram chamazinhas como serpentes minúsculas. Então, com esse feixe de cobras rubras, pegou lume à pirâmide de lenha cuidadosamente disposta sob a grelha de ferro.
Crepitavam os ramos, e, entre baforadas de fumo branco, erguiam-se línguas de fogo no ar fremente. Num sopro de vento, as chamas altearam-se e a madeira resinosa começou a bramir. O vidro do féretro, estalando, parecia soltar gemidos de dor Por entre os varões de ferro. o lume enegrecia as imagens, consumia-lhes num ápice as túnicas e mantos de cetim.
Toda a gente se distanciou daquela árvore de lume que despedia centelhas até ao céu.
Só Ramon ficou onde estava, olhando em silêncio - até nada restar senão um braseiro e uma inextricável confusão de ferros meio fundidos.
Então, dum rochedo próximo, subiram foguetes no ar e explodiram com fragor, derramando uma chuva de oiro.
As pessoas aglomeradas na praia tinham visto o penacho de fumo e o clarão da fogueira. Ao ouvirem as detonações dos foguetes, olharam de novo, exclamando, aterradas:
- Señor! Señor! La Purísima! La Santísima!
Chamas, fumo e foguetes dissiparam-se como por milagre, deixando a atmosfera sempre límpida. com uma pá, deitaram as brasas numa cova funda.
A sudoeste, por cima das montanhas áridas, elevava-se uma nuvem semelhante a uma cauda branca - a cauda dum esquilo enorme que acabasse de desaparecer por trás dos píncaros. Foi-se desenrolando, desenrolando em direcção ao Sol, e quando a barca içou a vela para regressar à aldeia, já uma leve sombra pairava sobre o lago.
Só na extremidade baixa da ilha dos Escorpiões o ar quente ainda fremia.
Ramon voltou numa das lanchas de motor. A pouco e pouco o céu cobria-se de nuvens, preparando-se para chuva e trovoada. Não podendo atravessar o lago. a barca navegava para Tuliapan. As canoas apressavam-se em direcção à praia.
Chegaram antes de se desencadear o vento. Assim que desembarcou, Ramon foi fechar as portas da igreja.
A multidão dispersou-se sob as rajadas. Agitavam-se os rebolos, rodopiavam folhas, erguia-se poeira. Sayula estava sem Deus e, no íntimo, eles sentiam-se contentes.

CONTINUA

XVII
Na opinião geral, o presidente da República tinha utilizado a sua vassoura nova com excesso de zelo, e essa limpeza provocou uma rebelião. Não muito importante, mas o suficiente para justificar banditismo, roubos e terror nas aldeias.
Ramon estava decidido a manter-se afastado da política, mas já os Cavaleiros de Cortez e certo partido "negro" se preparavam para o atacar. Do alto do púlpito, os sacerdotes começavam a acusá-lo de Anticristo devorado pela ambição. Contudo, ele pouca coisa tinha a recear, com Cipriano a seu lado e, por consequência, todo o exército de Oeste.
Mas era possível que Cipriano fosse mandado para longe, a fim de defender o Governo.
- Acima de tudo - declarou Ramon - empenho-me em estar afastado da política. Não quero que me empurrem para este ou aquele partido. Se é para me deixar contaminar, mais vale abandonar tudo. A Igreja impele-me para os socialistas, e os socialistas trair-me-ão na primeira oportunidade. Não se trata de mim. Trata-se do espírito novo. O meio mais seguro de o aniquilar (e pode-se aniquilá-lo como a tudo o que vive) é associá-lo a um partido político, seja qual for.
- Porque não vais falar com o bispo? - lembrou Cipriano. Eu vou também. Para alguma coisa há-de servir ser comandante da divisão de Oeste.
- Sim - disse Ramon lentamente. - Hei-de avistar-me com Jiménez. Já tinha pensado nisso. Tenciono recorrer a tudo o que está ao meu alcance. Montes estará a nosso lado porque detesta a Igreja e não admite nada do que lhe cheire a ditadura exercida do exterior. Vê a possibilidade de uma Igreja Nacional. Não me interessam Igrejas nacionais, mas acho que temos de falar linguagem do povo. Sabes que os padres proibiram a leitura dos hinos
- E que te importa? - volveu Cipriano. - Hoje em dia só há perversidade neste povo. Agora é que eles hão-de ler.
- Provavelmente. Mas farei vista grossa. Deixarei expandir-se a minha nova "lenda", como a classificam, desenvolver-se enquanto a terra está húmida... Contudo, precisamos de vigiar todos os rebentos que apresentem interesse.
- Ramon! - exclamou Cipriano. - Se conseguisses transformar todo o México no país de Quetzalcoatl?
- Eu serei o "primeiro homem de Quetzalcoatl". Não sei mais nada.
- E não te importarás com o resto do mundo?
Ramon sorriu. Já ele vislumbrava nos olhos de Cipriano a chama da Guerra Santa.
- Gostaria de ser - disse ele - um dos iniciados da terra. E um dos iniciadores. Cada país com o seu Salvador, ou um Salvador para cada povo. Os primeiros de cada povo formariam aristocracia natural do mundo. Precisamos de uma aristocracia, mas natural, não artificial. De certa maneira o mundo necessita de ser organicamente unido: ser o mundo do homem. Unidade concreta e não abstracta. Ligas, alianças, programas internacionais. Ah, Cipriano, isto é como um flagelo internacional. As folhas de uma grande árvore não podem pender nos ramos de outra árvore, por maior que seja. As raças da terra são como árvores, não devem misturar-se nem confundir-se. Têm de estar no seu terreno, como árvores que são. Ou então sobrepõem-se, enovelam-se as raízes e a luta será mortífera. Só as flores é que podem unir-se, e as flores de cada raça constituem a sua aristocracia natural. Que o espírito do mundo voe de flor em flor, qual um colibri, e fertilize a planta. Apenas os aristocratas naturais conseguem elevar-se acima da sua nação, mas não além da sua raça. Apenas os aristocratas do mundo podem ser internacionais, cosmopolitas, cósmicos. Sempre assim foi. Os povos não são capazes disso, como as folhas da mangueira não são capazes de se prenderem aos troncos do pinheiro. Assim, se eu quero que os mexicanos decorem o nome de Quetzalcoatl é porque desejo que falem a linguagem do seu próprio sangue. Pudesse o mundo teutónico tornar ao espírito de Thor e de Wotan e da árvore Igdrasil! Pudessem os povos druídicos compreender que o seu mistério reside no visco e que eles mesmos são os Thuatas de Danaan, vivos embora submersos! E que um novo Hermes voltasse ao Mediterrâneo, um novo Astarot à Tunísia! E Mitra regressasse à Pérsia, e Brama, poderoso, à índia, e à China o mais velho dos dragões! Então eu, Cipriano, eu, primeiro homem de Quetzalcoatl, contigo, primeiro homem de Huitzilopochtli, e talvez tua mulher, primeira dama de Itzpapalotl, talvez nós lográssemos conhecer, com a nossa alma pura, os outros grandes aristocratas do mundo, o primeiro homem de Wotan, a primeira mulher de Freya, o primeiro senhor de Hermes e a primeira dama de Astarte, o mais bem-nascido de Brama e o filho do Magno Dragão. Digo-te eu, Cipriano, que a terra inteira rejubilaria quando os primeiros senhores do Ocidente encontrassem os primeiros senhores do Sul e do Oriente, no Vale do Espírito. Ah, a terra tem vales do Espírito, que não são cidades de comércio e indústria. O mistério é um só, porém os homens podem vê-lo diferentemente. O cardo, o hibisco, a genciana são flores da árvore da vida, mas vivem separadas no mundo. E assim deve ser. Eu sou hibisco, tu és a flor da iúca, a tua Caterina é o junquilho bravo, e a minha Carlota é um amor-perfeito branco. Quatro apenas, nós quatro, e contudo formamos um ramalhete curioso. Os homens e as mulheres não são mercadoria manufacturada, para servirem de objecto de trocas; mas a árvore da vida é una, sabemo-lo quando as almas desabrocham na floração final. Não nos trocamos, não o queremos. Todavia, quando a nossa alma se abre na floração final então as flores comungam entre si o mesmo mistério, para além do conhecimento das folhas, dos ramos e das raízes. Algo de transcendente.
Mas não é isto que importa por enquanto. O que tenho a fazer agora é lutar para abrir caminho no México, e tu deves tentar o mesmo. Façamos isso.
Ramon dirigiu-se para as oficinas onde os seus homens trabalhavam, sob a sua chefia, e Cipriano absorveu-se na correspondência e planos militares que tinha entre mãos.
Ambos foram interrompidos pelo barulho de uma lancha motorizada que entrava na baía. Nela vinha Kate, escoltada por Juana.
Ao seu encontro partiu Ramon, vestido de branco, com o chapeirão onde estava embutido o olho de turquesa de Quetzalcoatl e de faixa azul e preta. Kate trajava também de branco, chapéu verde e xaile de seda amarelo-pálido.
- Estou contente por voltar aqui - declarou ela, estendendo-lhe a mão. Jamiltepec tornou-se para mim uma espécie de Meca. Todo o meu ser aspira a este sítio.
- Então porque não vem mais vezes? Ser-me-ia muito agradável vê-la sempre por cá.
- Receio ser intrusa.
- De modo nenhum. E, se quisesse, podia ser-nos muito útil.
- Hum... Não acredito em grandes empreendimentos, que me assustam. Será talvez porque, no fundo, antipatizo com as massas, seja lá onde for. Temo que isto implique desdém pelos povos. Não gosto que me toquem nem gosto de lhes tocar. Como havia eu de fazer parte de uma espécie de... Exército de Salvação?
Don Ramon soltou uma risada.
- Comigo dá-se o mesmo. Desprezo as grandes massas populares. Mas aqui é o meu próprio povo.
- Eu, desde pequena, fui assim. Conta-se que tinha quatro anos... os meus pais ofereceram um jantar de cerimónia... e disseram à criada que me trouxesse à sala, para dar as boas-noites. Suponho que foram todos muito amáveis comigo, mas eu apenas respondi: "São macacos! São macacos!" Imagine o êxito desta cena! E o pior é que sinto agora o mesmo que sentia em criança. Para mim as pessoas não passam de macacos a fazerem as suas habilidades.
- Até as que lhe são mais chegadas?
Kate hesitou, mas acabou por confessar contra vontade:
- Sim, creio que sim. Os meus dois maridos, mesmo o segundo, pareciam-me um tanto... simiescos, tão obstinados nos seus pequenos ridículos. Quando Joachim estava a morrer, senti por ele uma espécie de repulsa. Perguntava a mim mesma: "A que macaco enfermiço consagrei tanto do meu ser?" Não acha isto horrível da minha parte?
- Acho. Mas julgo que todos experimentamos esse sentimento, de vez em quando... ou que experimentaríamos se o ousássemos. São fases do espírito.
- Chego a pensar que os seres humanos só me inspiram este sentimento. Gosto da terra, do céu, e do mistério do além. Mas as
: pessoas... considero-as a todas macacos.
Ramon percebeu que ela era sincera.
- Puras monas! - murmurou em espanhol. - Y lo que hacen, puras monerias. - Então acrescentou: - Tem filhos?
- Tenho, do meu primeiro marido.
- E eles... Monas y no mas?
- Não! - respondeu Kate, de testa franzida, como se descontente consigo mesma. - Só em parte.
- Isso é mau - volveu Ramon, meneando a cabeça. - Mas, afinal, que são para mim os meus filhos senão macaquinhos? E a mãe... a mãe... Ah, não, señora Caterina! Isto não serve de nada. Devemos ser capazes de nos libertarmos dos outros. Se me chego muito para uma roseira, os espinhos ferem-me. Temos de ver as pessoas como se vêem as árvores duma paisagem. De certa maneira, a humanidade domina-a, domina as suas faculdades conscientes. Por isso a detesta e deseja escapar-se-lhe. Mas só existe uma evasão possível: alcançar, para além dos outros, uma vida maior.
- É o que eu faço! - exclamou Kate. - Nunca fiz outra coisa. Quando vivia com o Joachim, absolutamente só numa casita isolada, sem criados e sem me dar com ninguém, tive sempre a sensação dessa vida maior e era livre e feliz.
- E ele? Era livre e feliz também?
- Era-o, na realidade. Mas aí é que intervinham as tais macaqueações de que lhe falei. Não se permitia ser feliz. Insistia em convidar gente e em criar assim motivos de tortura.
- Então porque não se deixou estar inteiramente só na sua casinha isolada, sem ele? Porque viaja e convive com as pessoas?
Vexada, Kate não respondeu. Sabia que não podia viver sozinha. Acabrunhava-a o vazio à sua volta. Precisava de um homem a seu lado para preencher esse vazio e mantê-la em equilíbrio. No entanto, mesmo quando o tinha presente, no fundo desprezava-o como se despreza um cão ou um gato. Entre ela e a humanidade havia esse laço subtil de antagonismo irredutível.
Era por natureza generosa e deixava aos outros a sua liberdade. Os servos afeiçoavam-se-lhe e todos que travavam conhecimento com ela a achavam encantadora e a admiravam. Pressentia-se nessa mulher um fluxo de vida ardente e certa alegria de viver.
Entretanto, sob isso tudo, jazia a aversão irreprimível, quase repugnância pelos outros. Sim era mais do que desagrado, chegava a ser repulsa. Fosse o que fosse, aquele sentimento dominava-a sempre ao fim de algum tempo. A mãe, o pai, as irmãs, o primeiro marido, até as crianças, que ela adorava, e Joachim, a quem dedicara tanto amor, mesmo estes, após curto convívio, principiavam a enchê-la de repulsa e Kate aspirava a ficar de novo só, e esquecida. Mas não seria um esquecimento definitivo, a menos que ela o provocasse de vez.
Assim era Kate. Até mergulhar no torvo esquecimento da morte, jamais conseguiria fugir a essa profunda, insondável repugnância pelos seres humanos. Os contactos breves podiam ser agradáveis e até emocionantes; mas os prolongados ou muito íntimos, originavam sempre rápidos ou demorados impulsos de violenta repulsa.
Kate e Ramon haviam-se sentado num banco do jardim, sob um loendro repleto de flores brancas. O rosto dele estava impassível, sereno. Nessa calma, um tanto constrangido, Ramon compreendia o estado em que se achava Kate e comparava-o com o seu, achando-o semelhante. O puro contacto pessoal, a simples aproximação dos seres enchia-o, também a ele, de aversão. Carlota aborrecia-o, Kate
aborrecia-o igualmente. Às vezes, o próprio Cipriano o entediava.
Isto, porém, acontecia quando se encontravam no campo meramente pessoal. Eis o inconveniente: sentia-se maçado deles e com
asco de si próprio.
Tinha de os encontrar noutro plano, onde o contacto fosse diferente, intangível, distante, sem intimidade. O seu espírito estava bem longe dali. A alma não deve ligar-se a ninguém, mas voltar-se para Deus, seja de que maneira for.
com Cipriano sentia-se mais em segurança. Quando, depois duma ausência, ambos se abraçavam, faziam-no sem renunciar à sua respectiva solidão. Como a Estrela da Manhã.
As mulheres, porém, não admitiam isto. Queriam intimidade, e a intimidade engendra o tédio. Carlota desejava estar perpétua e intimamente identificada com Ramon; por isso o odiava e a tudo o que ela supunha afastá-lo dessa comunhão. Era um horror, e ele tinha consciência do facto.
Os homens e as mulheres deviam saber que jamais se podem unir absolutamente neste mundo. No beijo mais ardente, na carícia mais terna, há um pequeno abismo que, por muito estreito que seja, não deixa de existir. Têm de se inclinar perante esse fosso e submeter-se reverentes. Mesmo que uma esposa represente para o marido mais do que a sua própria vida, ele é ele e ela é ela, e o abismo nunca se há-de fechar. Qualquer tentativa para o fazer constitui violação e um pecado contra o Espírito Santo.
O que adquirimos do Além, adquirimo-lo sós. O decisivo "eu sou" vem de muito longe, da Estrela da Manhã. Quanto ao resto, o que em nós é parte do poderoso Cosmos, podemos compartilhá-lo com o ente amado. Mas a alma, jamais.
Ramon debatera-se desesperadamente antes de descobrir o caminho para se evadir de si mesmo e se transportar à própria essência do ser e da existência a que ele chamava Estrela da Manhã - visto que no mundo é necessário dar um nome a tudo. Evadir-se, através da alma, atingir a Estrela da Manhã e ali, somente ali, encontrar o seu semelhante...
No entanto, ainda conhecia o malogro, e o malogro contínuo. Perante Carlota, falhava em absoluto. Esta reivindicava-o, e ele opunha-lhe uma resistência surda. Quando estava de tronco nu, com a mulher presente, nunca deixava de ter consciência dessa nudez, precisamente porque ela parecia considerá-lo propriedade sua.
Se os homens se encontram na essência de todas as coisas, não estão nus nem vestidos; na transfiguração acham-se completos, ninguém os vê em pormenor. A perfeita força final tem também o poder da inocência.
Sentado no banco ao lado de Kate, Ramon sentia-se dominado pela tristeza. O seu terceiro hino era cheio de sarcasmo e de cólera. Carlota quase conseguira amargurar-lhe a alma. No México, certos facciosos haviam-se apoderado da sua ideia, tornando-a ridícula. Tinham invadido uma das igrejas da cidade, derrubado todas as imagens sagradas e posto no lugar delas os grotescos Judas de papelão que inundam o México nos dias da Páscoa. Isto, é claro, provocara grande escândalo. Cipriano, por seu lado, de cada vez que se ausentava por algum tempo, voltava a ser o inevitável general mexicano, fascinado pela oportunidade de realizar as suas ambições pessoais e impor a sua própria vontade. E por fim vinha Kate, com a sua aversão pelas pessoas e o desejo de fazer explodir o mundo.
Ramon sentia o espírito deprimido, os membros pesavam-lhe como chumbo.
Só uma coisa um homem desejava realmente fazer no decurso de toda a sua vida: encontrar o caminho que o conduzirá ao seu Deus, à sua Estrela da Manhã, a fim de ali estar, sozinho; e, mais tarde, acolher na Estrela da Manhã o amigo da sua alma e regozijar-se com a mulher que percorreu com ele o longo caminho.
Contudo, descobrir esse caminho, até à essência resplandecente de todas as coisas, é deveras difícil e exige que o homem guarde para si toda a sua força e coragem. Se envereda por ele sozinho, é tremendo; mas, se todas as mãos o agarram para o reter, se as mãos do amor o prendem pelas entranhas e as do ódio o seguram pelos cabelos, então o avanço torna-se quase impossível.
"Tento realizar o impossível - dizia Ramon consigo mesmo.
- Mais valia gozar o meu quinhão dos prazeres desta vida e renunciar ao prazer supremo. Ou então ir para um deserto e seguir sozinho o caminho para a Estrela, onde encontraria enfim a minha solidão e o que em mim existe de sagrado. O caminho dos anacoretas e dos homens que se refugiaram nos ermos, a fim de orar. Porque a minha alma tem sede de consumação e estou farto dessa coisa a que chamam vida. Vivo, desejo partir desta região onde "eu sou".
Sentados lado a lado no banco, Ramon e Kate esqueciam-se um do outro, ela absorta no passado, com a sua repulsa por tudo isso, ele pensando no futuro e tentando reanimar-se.
A meio desse silêncio, Cipriano assomou à varanda, olhou em volta, e quase se sobressaltou ao ver lá em baixo as duas figuras sentadas no banco debaixo dos loendros, juntas e no entanto tão longe uma da outra no seu mutismo.
Ao ouvir-lhe os passos, Ramon olhou para cima.
- Já lá vamos! - exclamou, pondo-se de pé e relanceando a vista por Kate. - Não lhe apetece um refresco? Tepache ou sumo de laranja? O que não temos é gelo.
- Gostaria de sumo de laranja com água - respondeu ela. Ramon chamou pelo criado e deu-lhe uma ordem. Cipriano estava trajado de branco como o amigo, mas a sua faixa era vermelha e estriada de negro, como uma serpente.
- Ouvi-a chegar, e já pensava que tivesse partido... - disse ele, olhando para Kate com certo ar de censura e de ressentimento.
- Ainda não - replicou ela.
Ramon riu-se e deixou-se cair numa cadeira.
- A señora Caterina acha-nos a todos semelhantes a macacos; mas talvez as nossas macaquices sejam o que mais divertido tem para ver, e por isso acedeu a demorar-se aqui mais algum tempo.
Como verdadeiro índio, Cipriano sentiu-se ferido no seu orgulho, e os pêlos da mosca pareceram erguer-se-lhe no queixo, num assomo de dignidade.
- Não é justo apresentar as coisas desse modo - observou Kate, rindo.
Os olhos pretos de Cipriano fitaram-na com hostilidade. Pensou que ela se ria à sua custa: e de certo modo asssim era, no fundo, lá muito no fundo da sua alma de mulher. Ria-se dele interiormente o que nenhum homem podia suportar, e muito menos um de pele escura.
- Não - repetiu Kate. -É que há outra coisa além disso.
- Ah, tome cuidado - acudiu Don Ramon. - Um pouco de piedade oferece os seus perigos.
- Qual piedade! - retorquiu ela, corando. - Que têm hoje contra mim, para se mostrarem antipáticos?
- Os macacos acabam sempre por ser antipáticos aos espectadores - sentenciou Don Ramon.
A irlandesa ergueu a vista e notou-lhe no olhar um relâmpago
de cólera.
- Vim - declarou - para que me falassem do panteão mexicano. Julguei compreender que podia ser admitida...
- Ah, bela ideia! - volveu, rindo, o dono da casa. - Um exemplar raro de mona que pretende fazer parte do jardim zoológico de Ramon. Vai ser excelente chamariz. Já houve lindas deusas no panteão asteca, posso-lhe eu afirmar.
- Continua a ser antipático!
- Ora, ora, señora mia. Falemos sinceramente. Todos somos macacos. Monos somos. Ihr seid ali Affen. Está a ver aquele bugio, o Cipriano. Teve a ideia simiesca de querer casar consigo. Aceite-o. O casamento não passa duma macaquice. Dê-lhe o sim. Deixá-la-á em liberdade quando estiverem saciados um do outro. É um general e um grande jefe. Se lhe agradar, a si, fá-la-á rainha-mona do México simiesco. E que podem fazer os macacos senão divertirem-se? Vamos! Embobemonos! Serei o sacerdote? Vamos! Vamos!
Saltou de súbito, com a violência de um vulcão, e desapareceu
correndo.
Cipriano olhou espantado para Kate, que empalidecera.
- Que lhe tinha dito? - inquiriu o general.
- Nada! - respondeu ela, pondo-se de pé. - É melhor ir-me
embora.
Chamaram por Juana. Alonso e Kate foram-se encaminhando
para o lago. Foi com certa dignidade ofendida que a irlandesa se sentou sob o toldo do barco. O sol estava furiosamente abrasador e o reflexo da água ofuscava-lhe a vista. Pôs então os óculos pretos, que lhe davam o ar de um monstro.
- Mucho calor, niña! Mucho calor! - repetia Juana, atrás
dela. A criada ingerira, evidentemente, bastante tepache.
Na água amarelada flutuavam jacintos aquáticos, com as folhas a fazer de velas. O lago estava cheio deles. As chuvas torrenciais tinham enchido o rio Lerma, arrastando consigo as terras marginais de Lírio e levando-as lentamente para toda a extensão do mar interior, onde se acumulavam ao longo da costa e acabavam por atravancar o rio Santiago, que tem a sua origem no lago.
Nesse dia Ramon escreveu o seu quarto hino, intitulado O que Quetzalcoatl Viu no México.
"Que estranhos rostos vejo no México! Brancos, amarelos, pretos, não são mexicanos! Donde vêm, e porquê?
Senhor, são estrangeiros, Não vêm de parte nenhuma, A ambição mantém-nos cá.
Que pretendem?
Pretendem ouro, a prata das montanhas, E o petróleo, o petróleo do litoral. Tiram o açúcar das longas canas, Apoderam-se do trigo dos planaltos, e do milho, E do café que cresce nas terras quentes, e até da borracha viscosa.
Constróem chaminés altas, que fumegam, E em edifícios enormes guardam as suas máquinas E fazem mover cabos de aço para baixo e para cima E as suas garras seguram miríades de fios.
E vós, mexicanos e peóns, que fazeis?
Trabalhamos com as suas máquinas, trabalhamos nos seus campos.
Eles dão-nos dinheiro feito de prata mexicana. São hábeis, esses homens.
Gostais deles, então?
Não gostamos, nem jamais gostaremos.
São medonhos, mas realizam coisas espantosas,
E a sua vontade é de ferro, como as máquinas.
Que havemos de fazer?
Vejo uns objectos escuros correndo através do campo.
São comboios, e camionetas, e automóveis. Que bom andar de comboio! diz o peón.
E diz também:
Que bom subir para uma camioneta e ser transportado por vinte
centavos!
Que bom passear nas grandes cidades, onde os carros deslizam
velozes e as luzes resplandecem!
Que bom seria recuperar tudo o que é nosso e se encontra em
poder dos estrangeiros!
Recuperar as nossas terras, o nosso dinheiro, o nosso petróleo, tornarmo-nos donos dos comboios, das fábricas e dos automóveis!
E divertirmo-nos com eles todo o tempo!
Que bom!
Oh, insensatos mexicanos e peóns!
Quem sois para possuirdes máquinas que não sabeis fabricar
mas apenas demolir?
Os que sabem criar é que são os senhores dessas máquinas.
Não vós, pobres idiotas.
Como atravessaram os mares do mundo os homens de rosto
branco ou amarelo?
Oh, insensatos, mexicanos e peóns de coração de argila!
Não fazeis outra coisa senão estar sentados a olhar, ou a beber aguardente e a discutir uns com os outros.
E depois acorreis como cães ao apelo dos senhores de face branca.
Oh, cães, oh, insensatos mexicanos e peóns! De coração liquefeito, joelhos vacilantes, De espírito inerte, incapazes de reagir, Para que servis senão para escravos?
Não mereceis um deus.
Olhai! O universo entrava nos seus dragões,
Os Dragões do Cosmos agitam-se despertados pela ira.
O dragão que dorme na alvura de neve do Setentrião
Move a cauda no seu sono; e o vento uiva nos penhascos em volta.
O espírito da morte glacial assobia aos ouvidos do mundo.
E eu digo-vos: não há mortos verdadeiramente mortos, nem sequer os vossos mortos.
Há mortos que dormem nas vagas da Estrela da Manhã e os seus membros repousam.
Há mortos que se amontoam no gelo do Norte, e tremem e batem os dentes.
E gritam de ódio.
Há mortos que rastejam nas entranhas ardentes da terra, e avivam a fornalha.
Há mortos postados debaixo das árvores e com os olhos de cinza espreitam as suas vítimas.
Há mortos que atacam o sol, como um enxame de moscas, para lhe sugar a vida.
Há mortos que estão sobre vós quando possuís a mulher que desposastes.
E se lhe insinuam no seio, e lutam à entrada dessa porta que abristes.
Rangem os dentes e odeiam aquele que ali penetrou para renascer da mulher.
Filhos de mortos vivos, de mortos que vivem e não repousam
Eu digo-vos: que a tristeza vos cubra. Morrereis todos.
E uma vez mortos não tereis repouso.
Não há mortos verdadeiramente mortos.
Depois de mortos vagueareis como cães
Procurando as imundícies da vida nas quelhas invisíveis do éter.
Os mortos que dominaram o fogo no fogo sobrevivem como salamandras.
Os mortos senhores da água são embalados nos mares cintilantes.
Os mortos das máquinas vão-se para longe, no movimento.
Os mortos que conquistaram a electricidade nela própria se tornam.
Mas os que nada venceram andam como cães sem dono nas ruas do Além
Procurando as imundícies da vida.
Quem domina as forças do mundo encontra nessas mesmas forças a sua casa da morte.
Mas vós que dominais, entre os dragões do Cosmos?
Há dragões de sol e de gelo, dragões de lua e de terra, dragões de águas salgadas, dragões de trovão.
Há o dragão cintilante de estrelas no espaço.
E no centro, como um olho que jamais pestaneja, o dragão da
Estrela da Manhã.
Conquistai! diz a Estrela. Transponde os dragões e vinde até
mim.
Mas porque sois inertes mandarei sobre vós os meus dragões.
Que vos esmagarão os ossos,
Que vos cuspirão em cima como a cães imundos.
E não encontrareis refúgio na morte.
Soltarei os dragões! O dragão branco do Norte,
Para que fustigue o ar com a sua cauda
E sobre vós sopre o seu hálito de gelo.
E direi ao dragão da fornalha central
Que retire dos vossos pés o seu calor, e eles adquirirão a frieza
da morte.
E direi ao dragão das águas que se volte contra vós
E espalhe a corrupção nos rios e nas chuvas.
Aguardo o dia final em que o dragão do trovão,
Sacudindo com raiva as redes de teia que sobre ele lançastes, trespassará os vossos ossos com agulhas eléctricas e vos coagulará o sangue com o seu veneno.
Esperai, esperai algum tempo! A pouco e pouco conhecereis
tudo o que vos digo."
Ramon envergou o traje citadino, fato preto, e foi em pessoa levar o hino ao tipógrafo. Antes de dobrarem a folha, estamparam em baixo o símbolo de Quetzalcoatl, a preto e vermelho, e o do dragão, em verde, negro e rubro.
Seis soldados das tropas de Cipriano levaram, de comboio, os maços de hinos: um para a capital, e os outros para Puebla e Jalapa, Torreon e Chihuahua, Sivaloa, Sonora, minas de Pachucha, Guanajuavo e região central. Cada soldado era portador duma centena de! folhetos, mas em cada terra havia um ou mais leitores de hinos designados especialmente para essa função, e alguns deles iam de aldeia em aldeia.
O povo tinha sede das coisas que ultrapassam o mundo dos homens. Estava farto das notícias dos jornais, farto de tudo o que se aprende com a educação. O espírito humano cansa-se da importunidade humana, dos factos humanos ou da invenção humana. Mesmo os que não se ocupavam dos hinos ansiavam por eles como os homens anseiam por se afogar em álcool e esquecer os aborrecimentos deste mundo.
Por toda a parte, em todas as cidades e aldeias se viam, à noite, chamazinhas a bruxulear, iluminando um círculo de homens que, de pé ou sentados, escutavam a voz surda do leitor.
Mais raramente, nalguma caza desviada, soava o rufo do tambor, parecendo sair do fundo dos séculos.
Distinguiam-se então dois homens de serapes brancas orladas de azul. Depois, todos entoavam os cânticos de Quetzalcoatl e, por vezes, dançavam numa roda, lentamente, martelando com os pés o ritmo antigo da América aborígene.
Porque as danças dos Astecas, dos Zapotecas e todas as raças de índios já submergidas são baseadas nesse passo pesado dos peles-vermelhas do Norte. Eles não o esquecem, jamais o esquecerão; está-lhes no sangue, e revivem-no com uma sensação de medo, alegria e alívio.
Por si mesmos, não se atreveriam a envolver-se no terrível encanto do passado. Mas nos cânticos e hinos de Quetzalcoatl falava uma voz nova, a voz e a autoridade dum amo e senhor, e embora fossem lentos em conceder a sua confiança, acolhiam a "velha novidade" com um misto de receio, prazer e consolação.
Os homens de Quetzalcoatl evitavam as feiras e as grandes aglomerações. Preferiam os locais sossegados.
Sentado no rebordo de uma fonte, um indivíduo de serape de barra azul começava a ler em voz alta. Isto bastava. Os transeuntes detinham-se a fim de o escutar. Ele lia até ao fim e depois declarava: "Terminei a leitura do quarto hino de Quetzalcoatl. Agora vou tornar a lê-lo."
Deste modo, por uma espécie de nota longínqua na voz e pela repetição lenta e monótona, aquilo ia-se infiltrando no espírito dos auditores.
Logo no princípio, produzia-se o escândalo dos Judas. Na Cidade do México, a Semana Santa parece ser consagrada ao traidor do Mestre. Por toda a parte se vêem bonecos quase de tamanho natural e de aparência grotesca. Em geral, representam o Judas sob o aspecto dum fazendeiro hispano-mexicano, com os seus bigodes acerados, barriga proeminente e calças cingidas à perna. O patrón tradicional. E sempre de faces rosadas e com o fato dos homens de raça branca; nunca o tipo moreno do indígena mexicano
Judas é a vítima e o herói da Semana Santa, tal como o esqueleto, o esqueleto a cavalo, é o ídolo da primeira semana de Novembro, por causa do Dia de Finados e o de Todos os Santos.
No Sábado Santo, cada qual pende o seu Judas na varanda da casa, pega lume ao cordel e de repente, no meio de gritos de alegria, rebenta a bomba escondida no corpo do boneco, que fica reduzido a migalhas. Toda a cidade ressoa com as explosões.
Produzira-se, pois, grande escândalo quando, numa igreja da Cidade do México, substituíram por esses Judas as imagens dos santos, e a Igreja começou a agitar-se.
No México, a Igreja deve agir com circunspecção porque não é popular e tem as unhas cortadas. Não é permitido tocarem os sinos mais de dez minutos. Os padres não têm licença para usarem fora do templo trajes eclesiásticos, além do hediondo casaco preto e volta branca dos pastores protestantes. Por isso aparecem o menos possível na rua e, por assim dizer, nunca nos locais mais concorridos.
Contudo, o sacerdote ainda conserva certa influência. São proibidas as procissões, mas não os sermões no púlpito nem os conselhos no confessionário. O presidente Montes não simpatizava com a Igreja e meditava na expulsão de todos os padres estrangeiros. O próprio arcebispo era italiano. Mas também era um lutador. Por sua ordem, todos os párocos proibiram os fiéis de escutar fosse o que fosse respeitante a Quetzalcoatl e recomendaram que não só rasgassem os folhetos que por acaso lhes viessem parar às mãos como impedissem a leitura dos hinos ou o entoar dos cânticos pagãos na sua paróquia.
No entanto Montes ordenara por seu turno à polícia e ao exército que protegessem os Homens de Quetzalcoatl - com essa protecção devida a todos os bons e leais cidadãos.
Não é em vão que o México é o México; contudo, já houvera sangue derramado de ambas as partes, e isso Ramon queria evitar, pois sentia que uma morte violenta se não apaga da alma dos homens com a facilidade com que desaparecem na lavagem as manchas de sangue no pavimento.
Eis porque, uma vez na cidade, pediu ao bispo de Oeste lhe concedesse uma entrevista, a ele e a Don Cipriano, e fixasse o local. O bispo, velho amigo e confessor de Carlota, conhecia bem Don Ramon. Respondeu que teria muito gosto em o receber e ao señor general no dia seguinte, se se dessem ao incómodo de ir a sua casa.
O prelado já não habitava o paço episcopal, que haviam transformado em edifício dos correios, mas possuía uma boa casa não longe da catedral e que lhe fora oferecida pelos fiéis.
Ramon e Cipriano encontraram o fanzino velho à sua espera numa biblioteca poeirenta e pouco interessante. Estava de sotaina preta, já muito usada, com botões de púrpura. Acolheu os visitantes com modos afáveis, e, embora o olhar revelasse desconfiança, representou bem o papel de velhote bonacheirão.
- Há quanto tempo o não vejo, Don Ramon! Como tem passado? Bem? Muito me alegra saber! - E batia no braço de Ramon como um tio afectuoso. - Grande honra em vê-lo nesta humilde casa, general! Ora façam favor de se sentar.
Instalaram-se em cadeiras de couro, na sala triste e poeirenta. O bispo contemplava com nervosismo os dedos magros e a bela ametista que num deles ostentava.
- Estou às vossas ordens, senhores - disse por fim, erguendo os olhos pequeninos e vivos. - Inteiramente à vossa disposição.
- Minha mulher encontra-se na cidade. Já lhe falou, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Já, meu filho.
-Nesse caso, monsenhor, deve estar ao facto das últimas novidades a meu respeito. com certeza Carlota disse tudo.
- Em parte, em parte! Na verdade, referiu-se a si, Don Ramon. Mas agora, graças a Deus, tem os filhos a seu lado para a distraírem. Regressaram à sua terra natal, e de boa saúde.
- Viu-os?
- Sim. Estimo-os muito, a ambos. São simpáticos e inteligentes como o pai, e, como ele, prometem ser de boa presença... Se lhe apetece fumar, general, não faça cerimónia.
Cipriano acendeu um cigarro. Aquele ambiente fazia-lhe lembrar a sua juventude e, embora divertido, sentia-se nervoso.
- Já sabe tudo o que pretendo fazer, monsenhor? - perguntou Ramon.
- Tudo, não, meu filho, mas sei o bastante para não querer
mais informações. Ah! - suspirou o prelado. -É bem triste!
- Porque havemos de levar o caso para o lado da tristeza? No México somos índios na maioria. Os índios não compreendem o cristianismo, monsenhor, e a Igreja bem o sabe. O cristianismo é uma religião do espírito e necessita ser compreendido para ter alguma eficácia. Ora os índios são tão incapazes de o compreender como os coelhos dos montes.
- De acordo, meu filho. Mas podemos transmitir-lho. Os coelhos dos montes estão nas mãos de Deus.
- Não, é impossível. E, se não tiverem uma religião que os relacione com o universo, todos hão-de sucumbir. Só a religião lhes pode valer; de nada lhes servirá o socialismo, a instrução ou qualquer outra coisa.
- Diz muito bem, Don Ramon...
- Talvez os coelhos dos montes estejam nas mãos de Deus, monsenhor, mas estão à mercê dos homens. O mesmo sucede ao povo do México. Afunda-se cada vez mais em inércia, e a Igreja não consegue ajudá-lo porque não possui a chave que abre a alma mexicana.
- A alma mexicana não conhece a voz de Deus? - redarguiu
o bispo.'
- As ovelhas que apascenta devem conhecer a sua voz, monsenhor. Mas se for pregar às aves do lago, ou aos gamos da montanha, conhecê-la-ão? Deter-se-ão para a escutar?
- Quem sabe? Detiveram-se a escutar S. Francisco de Assis.
- Hoje é preciso falar aos mexicanos na sua própria linguagem, indicar-lhes a palavra que lhes abrirá a alma. Eu indico-a: Quetzalcoatl. Se estou em erro, que eu pereça! Mas não estou.
O bispo movia-se, inquieto. Não queria ouvir aquilo, não queria responder e nenhuma das coisas podia evitar.
- A sua Igreja é a Católica, monsenhor?
- Evidentemente.
- E a Igreja Católica significa igreja universal, igreja de todos?
- com certeza, meu filho.
- Então porque não a deixa ser realmente católica?... Porque chamá-la católica quando não é mais do que uma entre numerosas Igrejas e, ainda por cima, hostil a todas as outras? Porque não há-de ser a Igreja Católica verdadeiramente universal?
- É a Igreja Universal de Cristo, meu filho.
- Porque não também a Igreja Universal de Mafoma? No fim
de contas, Deus é só um, o mesmo para todos; os povos é que se exprimem em linguagem diferente e cada qual precisa de um profeta que lhe fale no seu idioma. A Igreja Universal de Cristo e Mafoma, de Buda, de Quetzalcoatl e de todos os outros... eis a verdadeira Igreja Católica, monsenhor!
- Fala de assuntos muito transcendentes! - observou o prelado, fazendo girar o seu anel.
- Não, qualquer pessoa entende! - replicou Ramon. - A
Igreja Católica é uma igreja de todas as religiões, um lar na terra para todos os profetas, uma árvore imensa sob a qual podem sentar-se e descansar todos os homens que reconhecem a vida mais elevada da alma. Não é assim, monsenhor?
- Meu filho, só conheço a Igreja de Cristo, apostólica e romana, de que sou humilde servo. Essas subtilezas de que me fala não as posso compreender.
- Venho pedir-lhe a paz, monsenhor. Não sou daqueles que
odeiam a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana, mas creio que ela não tem lugar no México. Quando não sinto o coração amargurado, ando cheio de gratidão por Cristo, Filho de Deus. A história dos Judas afligiu-me mais do que a si, monsenhor, assim como deveras me aflige sangue derramado.
- Não sou um inovador, meu filho, para provocar efusões de sangue.
- Oiça! vou retirar da igreja de Sayula as imagens de santos, com todo o respeito, e com todo o respeito as queimarei à beira do lago. Depois colocarei na igreja a imagem de Quetzalcoatl.
O bispo ergueu os olhos de súbito e, por uns momentos, ficou
sem dizer nada.
- Atreve-se a isso, Don Ramon? - replicou finalmente.
- Sim, e ninguém mo impedirá. Tenho a meu lado o general Viedma.
O prelado lançou um olhar furtivo a Cipriano.
- Certamente - confirmou este.
- Contudo, é ilegal - volveu o bispo, indignado.
- Que há de ilegal no México? - retorquiu Ramon. - Só é ilegal a fraqueza, e eu não serei fraco, monsenhor.
- Triste fortaleza! - comentou o velho, encolhendo os ombros.
Houve uma pausa.
- Venho pedir a paz - tornou Ramon. - Transmita ao arcebispo as minhas palavras; ele que diga aos cardeais e ao Papa que chegou o momento de haver uma Igreja para todos os homens. Que a árvore da Igreja estenda os seus ramos sobre toda a terra e abrigue à sua sombra os profetas que proclamam o seu conhecimento do Além.
- Considera-se um desses profetas, Don Ramon? - inquiriu
o bispo olhando-o cheio de compaixão.
- Considero-me. E falarei de Quetzalcoatl ao México e edificarei aqui o seu templo.
- Não. Conforme afirmou há pouco, invadirá os templos de Cristo e da Virgem Maria.
- Conhece as minhas intenções. Mas não quero contendas com a Igreja de Roma, nem derramamento de sangue, nem hostilidades... Não poderá compreender-me? Não deve a paz reinar entre os homens que se esforçam, cada qual por caminho diferente, por
atingir o mistério de Deus?
- Profanar de novo os altares! Introduzir ídolos nas igrejas, queimar a imagem de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, e querer paz? - exclamou o bispo, que nesse momento só aspirava a que o
deixassem.
- Sim, tudo isso, monsenhor.
- Que lhe posso dizer? É um homem bom, Don Ramon, dominado pela loucura do orgulho. Don Cipriano é um dos inúmeros generais mexicanos, e eu sou o velho bispo desta diocese, servo fiel da Santa Igreja, humilde filho do Santo Padre. Que posso fazer? Que posso responder? Leve-me para o cemitério e fuzile-me imediatamente, general!
- Não tenho essas ideias - replicou Cipriano.
- É como tudo isto acabará, com mortes - tornou o bispo.
- Mas porquê? - protestou Don Ramon. - Não é lógico o
que eu digo? Não me compreende?
- Meu filho, vivo da minha fé e dos deveres do sacerdócio, e o que eu compreendo é que se afasta para bem longe do caminho da Verdade.
- Adeus, monsenhor! - disse Ramon, pondo-se de pé bruscamente.
- Deus o acompanhe, meu filho - respondeu o prelado erguendo os dedos.
Cipriano fez tilintar as esporas e levou a mão ao punho da espada antes de se dirigir para a porta.
- Adiós, señor.
- Adiós, general - disse o bispo, dardejando-lhes um olhar de fúria que eles sentiram nas costas.
- O velho jesuíta não transmitirá aos outros o teu recado - comentou Cipriano quando iam a descer a escada. - O que ele quer é conservar o seu lugar e a sua influência... Já os conheço...
- Não sabia que os detestavas - retorquiu o amigo, rindo-se.
- Não vale a pena perderes mais fôlego com essa gente - disse Cipriano. - Segue o teu caminho e não te rales.
Foram a pé, atravessando o largo do edifício dos correios onde modernos escribas, sentados debaixo das arcadas, escreviam cartas à máquina para os analfabetos que esperavam, a troco dalguns centavos, ter as suas missivas em magnífico castelhano.
- Ouvi dizer - prosseguiu Cipriano - que os Cavaleiros de Cortez deram um banquete no decurso do qual juraram tirar a vida a ti e a mim. Mas parece-me que me assustariam mais os juramentos das damas católicas. Porque se um homem se detém para desabotoar as calças e urinar, os Cavaleiros de Cortez fogem a sete pés, julgando que lhes vão desfechar uma pistola. Por isso, não te preocupes nem tentes conciliar-te com eles. Se desconfiassem que os temes, tornar-se-iam insolentes. Mas seis soldados bastarão para meter na ordem toda essa escória.
Cipriano tinha aposentos no grande Palace da Plaza de Armas.
- Se me casar - disse ele, quando entravam no pátio, onde estavam soldados em posição de sentido -, se me casar arranjarei uma habitação na colónia. É mais recatado...
Cipriano, na cidade, chegava a ser cómico. Parecia inchado de orgulho e de autoridade arrogante quando ia a andar. Mas os seus olhos negros, luzindo por cima do nariz delgado e da barbicha de bode, não inspiravam riso. Dir-se-ia abrangerem tudo num relance. Tinha qualquer coisa de demoníaco, o general Viedma.

XVIII
Ramon falou com a mulher e os filhos na cidade, mas foi uma entrevista um tanto penosa. O mais velho dos rapazes sentia-se constrangido em presença do pai, enquanto o mais novo, Cipriano, que era delicado e bastante inteligente, mostrava o seu desagrado ao progenitor e assumia ares altivos.
- O papá sabe o que cantam por aí? - perguntou o pequeno.
- Não faço ideia - respondeu Ramon.
- Cantam... - O garoto hesitou e então, na sua voz clara e infantil, fez ouvir os seguintes versos com a música de La Cucaracha:
Don Ramon não fuma nem bebe, Dona Carlota bem o desejaria. Vai vestir-se com manto azul-celeste Que ele roubou à Virgem Maria.
- Não, isso não é verdade - disse Ramon, sorrindo. - O manto que eu uso tem uma serpente e um pássaro no meio. E ziguezagues pretos. E uma franja verde. Farias bem em ir comigo, para o ver.
- Não, papá, não vou.
- Porquê?
- Não quero meter-me nesse assunto que nos torna a todos ridículos.
- E não serás ridículo de fato à marinheiro e esse ar tão virtuoso? Mais valia que te vestisses de Menino Jesus.
- Oh, papá, essas coisas não se dizem!
- Serás obrigado a te confessares por ter mentido. Declaras que essas coisas não se dizem depois de mas ouvires dizer!
- Mas eu refiro-me às pessoas boas, às pessoas decentes.
- Isso! Agora chamas indecente a teu pai! Mais um pecado que terás de confessar.
O pequeno corou e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Seguiu-se um silêncio.
- Então vocês não querem ir a Jamiltepec? - perguntou Ramon aos filhos.
- Gostava de tomar banho no lago, e andar de barco - proferiu o mais velho lentamente. - Mas dizem que não pode ser.
- Porquê?
- Dizem que o pai se veste como os peóns - acrescentou o pequeno, a medo.
- É um traje bem bonito, mais do que o teu.
- E dizem também que o pai afirma ser o deus asteca Quetzalcoatl.
- Não, senhor. Só afirmo que o deus asteca vai voltar ao México.
- Mas isso não é verdade!
- Como é que sabes?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque nunca houve nenhum Quetzalcoatl, senão em ídolos.
- E as imagens dos santos?
- Isso é diferente. Os santos existiram, e estão no Céu.
- Pois Quetzalcoatl também está no Céu, e. encontrando-se lá, pode voltar à terra. Não me acreditas?
- Não, papá.
- Nesse caso, fica com a tua incredulidade - replicou o pai. rindo e levantando-se para se ir embora.
- Acho muito desagradável que façam cantigas ao papá e à mamã como fazem ao Pancho Villa - disse o filho mais novo. - É uma coisa que me dói.
- Fricciona com Vaporub o ponto dorido - redarguiu Ramon. - Uma fricção e isso passa.
- Como o papá é tão mau!
- E como tu és tão bom! Não é assim?
- Não sei. Só sei que o papá é mau.
- Oh! Oh! É isso que te ensinam no colégio?
- No próximo período vou mudar de nome - declarou Ciprianito. - Não quero usar mais o apelido Carrasco. Quando falarem do papá nos jornais hão-de se rir de nós.
- Oh! Oh! Eu é que me rio de ti neste momento, meu franganote! Que nome vais escolher então? Talvez Espina... Como sabes. Carrasco é uma planta brava dos mantagais de Espanha. Queres ser o espinhito do arbusto? Chama-te Espina. entonces, adiós, señor Espina Espinha!
- Adiós - respondeu o pequeno, rubro de cólera.
Ramon foi de automóvel até Sayula. Haviam aberto uma estrada, mas as chuvas tinham-na desnivelado, e o carro ia aos tombos, de cova em cova. A meio caminho jazia um camião de fundo para o ar.
Na planície deserta estagnavam já poças de água, e as flores cor-de-rosa e amarelas mostravam tufos de botões. Ao longe, as colinas tornavam-se numa massa verde opaca conforme as folhas revestiam as árvores e os arbustos invisíveis na distância. A terra renascia para a vida.
Chegado a Sayula, Ramon dirigiu-se a casa de Kate. Esta saíra, mas Concha correu a procurá-la na praia.
- Está cá Don Ramon! Está cá Don Ramon!
Kate regressou à pressa, com os sapatos cheios de areia. Achou Ramon fatigado, e sinistro naquele fato preto.
- Não o esperava - disse ela.
Empertigado na cadeira, de semblante sombrio, alisava sem cessar o bigode preto sobre os lábios cerrados.
- Viu alguém conhecido na cidade? - perguntou Kate.
- Don Cipriano, e minha mulher e meus filhos.
- Ah! Eles estão bem?
- De excelente saúde, creio eu. Kate riu-se, inesperadamente.
- Que ar tão zangado! Ainda é por causa dos macacos?
- Señora- disse Ramon. inclinando-se para a frente, de modo que uma melena lhe tombou para a testa - no reino dos monos não sei quem é príncipe, mas no dos loucos sou eu com certeza.
- Porquê?
E, como ele não respondesse, Kate ajuntou:
- Vale a pena ser príncipe, ainda que dos loucos. Ramon lançou-lhe um olhar furibundo, mas logo desatou a rir.
- Oh, señora mia! O nosso mal é querermos ser sempre bons.
- Sente-se arrependido?... - volveu Kate, em tom de gracejo.
- Sim, sou o rei dos loucos. Porque levantei essa história de Quetzalcoatl? Porquê? Serei capaz de me explicar?
- Porque lhe agrada, suponho.
Ramon reflectiu um instante, sem largar o bigode.
- Antes ser macaco do que idiota. E. contudo, oponho-me a que me considerem macaco. Carlota sim. pertence a essa raça, e os meus filhos não passam de macaquinhos vestidos à marinheiro. Eu sou um louco. E que diferença haverá entre um louco e um macaco?
- Quien sabe - disse Kate.
- Um quer ser bom, outro tem a certeza de que é bom. é o que me torna louco, a vontade de ser bom. Eles, tão seguros de serem bons, fazem de si mesmos uns macacos. Oh, quem me dera que o mundo explodisse como uma bomba!
- Não explodirá - asseverou Kate.
- Pois não...
Ramon endireitou-se na cadeira e mudou de assunto.
- Então, señora Caterina, sempre se decide a casar com o nosso general?
- Eu... eu... não sei - balbuciou Kate. - Mas não creio...
- Não lhe é simpático?
- é, sim, e acho até que irradia certo encanto. Mas não devemos arriscar-nos ao matrimónio com uma pessoa doutra raça, por muito simpática que seja, não lhe parece?
- Ah! - suspirou Ramon. - Só vale a pena o casamento quando haja verdadeira fusão, seja onde for.
- E eu sinto que não haverá - disse Kate. - Tenho a impressão que ele só pretende de mim uma coisa; e eu, por meu lado, talvez também só uma coisa pretenda dele. Mas nunca nos encontraríamos em verdadeira comunhão. Ele viria para obter o que deseja de mim, e eu teria de consentir... Ora não é apenas isso que eu quero. Quero um homem que me encontre a meio caminho...
Don Ramon pensou um pouco e em seguidameneou a cabeça.
- Tem razão. Mas nesse assunto nunca se sabe ao certo onde é o meio caminho... Uma mulher que deseja simplesmente que a tomem para depois se agarrar ao homem não passa de um parasita. E um homem que quer simplesmente tomar, sem nada conceder, é uma ave de rapina.
- Receio que seja esse o caso de Don Cipriano - murmurou Kate.
- É possível - disse Ramon. - Comigo ele não se mostra assim, mas talvez o fosse se não nos encontrássemos... a meio caminho... de uma espécie de crença física que está bem no centro do nosso ser e que reconhecemos um no outro. Não poderá isso existir entre a señora e ele?
- Desconfio que Don Cipriano não vê a necessidade de semelhante coisa, tratando-se de uma mulher. As mulheres têm pouca importância.
Ramon ficou silencioso.
- Talvez - disse por fim. - com uma mulher, o homem deseja sempre abandonar-se, quando, pelo contrário, devia agarrar-se à sua crença mais profunda... Porque se a crença de cada um coincide, se é física, só ali se podem encontrar. De nada serve um homem violentar uma mulher ou uma mulher violentar um homem. É pecado. O pecado existe, e está na origem. Homens e mulheres continuam a violentar-se mutuamente. Por muito absurdo que pareça não sou eu que desejo apoderar-me de Carlota, ela é que quereria possuir-me. Chega a ser estranho, quase vergonhoso, mas é a verdade. Ah, se conseguíssemos manter-nos fiéis à nossa alma e encontrar-nos nessa região serena! Não tenho grande consideração por mim mesmo. A mulher e eu falhámos um perante o outro, e é um malogro bem triste para guardar no íntimo do nosso ser.
Kate olhou-o com espanto e certo medo. Porquê aquela confissão? Estaria ele prestes a amá-la? Ramon fitava-a com uma expressão dolorosa nos olhos sombreados pelo desgosto, cólera e vexame.
- Lastimo bastante que Carlota e eu nos não entendamos - continuou ele. - Quem sou eu. para me atrever a falar de Quetzalcoatl quando tenho o coração roído pela ira que sinto contra a mulher que desposei e contra os filhos que ela me deu? Nunca as nossas almas se encontraram. A princípio amava-a, e ela gostava que eu a desejasse. Mas passado tempo não se é capaz de continuar a querer com ardor a posse da mesma mulher. Sente-se uma espécie de repulsa. O amor foi então da sua parte, e quiz conquistar-me à viva força. Depois cansou-se também. O pequeno mais velho é realmente meu filho, concebido pelo meu desejo, e o mais novo é filho dela concebido pelo seu desejo. Veja como tudo isto é lamentável! E agora, jamais poderemos encontrar-nos. Carlota volta-se para o seu Deus. e eu volto-me para o meu Quetzalcoatl. que ao menos não pode ser violentado.
- E estou certa que não fará dele um violador.
- Quem sabe? Se eu errar será nesse sentido. Mas, señora, Quetzalcoatl não é para mim senão o símbolo de uma perfeição acessível ao homem. O universo é um ninho de dragões em cujo centro está um mistério insondável da vida. Pouco importa que eu chame a esse mistério Estrela da Manhã. A existência do homem não se realiza no abstracto. O homem é uma criatura que, polegada a polegada, arranca a sua própria criação do antro dos dragões do Cosmos. Ou então perde-a a pouco e pouco, desfeita em migalhas. E estamos a perdê-la... Temos de a reconstituir, homens e mulheres, senão pereceremos todos.
- Mas... necessita duma mulher na sua vida? - perguntou Kate.
- Aspiro ao apaziguamento sensual do meu ser, señora. Não sou daqueles que acreditam na renúncia dos desejos do sangue. Sou homem sempre pronto a tomar esposas e concubinas, tal a sede de apaziguamento. Mas agora sei que é para mim inútil arrebatar uma mulher com o meu desejo ardente, por muito que ela me ame e queira despertar-me o desejo. Vinho, amor e canções... tudo acabou. Já nada disso existe.
- No entanto precisa de uma mulher a seu lado.
- Ah, señora! Se eu pudesse confiar em mim e confiar nela! Já não sou um adolescente, a quem se desculpam todos os erros. Tenho quarenta e dois anos e tenho o meu derradeiro... ou melhor, o meu primeiro grande esforço de homem. Espero morrer antes de cometer um erro crasso.
- E porque havia de o cometer?
- É muito fácil enganar-me. Muito fácil, por um lado, tornar-me arrogante; muito fácil, por outro, renunciar a mim próprio e fazer da minha vida uma espécie de sacrifício.
- Mas porque não procede como diz? Porque não se apoia no mais profundo do seu ser e não comunga com uma mulher, aí onde as duas almas coincidam no seu desejo mais forte? Nem sempre há-de haver aquele horrível desajustamento a que chama violentação.
- Que mulher podia eu possuir carnalmente sem me submeter à lenta degradação de violentar e ser violentado? Se casasse com uma espanhola ou com uma mexicana, abandonar-se-ia a mim para que eu a dominasse. Casando com uma anglo-saxónica ou uma branca de raça nórdica, ela quereria dominar-me com a sua vontade de todos os antigos demónios brancos. As primeiras são parasitas da nossa alma e sentimos fastio. As outras são vampiros. E entre as duas espécies não há nada.
- com certeza que existem mulheres diferentes dessas.
- Nesse caso, mostre-mas. São todas autoritárias, Carlotas ou... Caterinas. Estou certo de que dominou Joachim até à sua morte. Acredito que ele se prestasse a isso mais até do que a senhora desejaria. Não é apenas uma questão de sexo. Reside na vontade: vítimas e dominadores. As classes elevadas aspiram a ser vítimas das classes inferiores ou passarem por tal. Os políticos tentam tornar os povos em vítimas uns dos outros. A Igreja procura transformar as pessoas em seres humildes e torturados que só desejam ser vítimas. Ah, a terra é um lugar bem triste!
- Mas. se deseja ser diferente - disse Kate - há-de haver algumas outras pessoas como o senhor.
- É possível - replicou ele, acalmando-se. - É possível. Gostaria de me reprimir melhor. Reprimir-me, concentrar-me em mim próprio, onde eu esteja em paz. Na minha Estrela da Manhã. E agora já me envergonho de ter dito o que disse, señora Caterina.
- Porquê? - exclamou ela. E, pela primeira vez, veio-lhe à face o rubor da pena e da humilhação.
Ele notou-o logo e, por um momento, descansou a mão sobre a de Kate.
- Não, afinal não me envergonho. Estou aliviado.
Ao contacto dessa mão, a irlandesa corou ainda mais e ficou silenciosa. Ramon levantou-se rápido para se ir embora, de novo ansioso de se reencontrar na sua alma.
- Domingo vai plaza, de manhã, quando ouvir o tambor? perguntou Ramon.
- Para quê?
- Verá.
E, assim falando, desapareceu.
Havia muitos soldados na aldeia. Quando foi ao correio, Kate encontrou os homens de farda de algodão dispersos pelas imediações do quartel. Eram cerca de cinquenta, não como esses outros de chapéu desabado e grande estatura, mas pequeninos, vivos, sólidos como Cipriano: falavam baixo um estranho dialecto índio. Raras vezes se viam nas ruas, porque em geral se escondiam.
Os habitantes tinham ordem de recolher às dez horas da noite. Kate ouvia as patrulhas passar a cavalo, através da escuridão.
Dir-se-ia envolver o país uma atmosfera de excitação e mistério. O cura da paróquia, que era gordo e roçava pelos cinquenta anos, pregara no sábado à noite um sermão memorável contra Ramon e Quetzalcoatl, proibindo a menção deste nome execrando e predizendo castigos aos paroquianos que lessem os hinos ou os escutassem.
É claro que foi atacado quando saía da igreja e precisou de uma escolta de soldados para regressar a casa, onde chegou a salvamento. Mas a criada, uma velha que o servia há muito, ouviu as mulheres dizerem que, da próxima vez que o padre abrisse a boca para falar contra Quetzalcoatl. receberia umas poucas de facadas no abdómen. Deste modo ficou ele de portas adentro, fazendo-se substituir pelo coadjutor.
Quase toda a gente que chegava de barco, aos sábados, ia ouvir missa à igreja de Sayula, cujas portas ficavam abertas todo o dia. Os homens que iam para o lago ou que vinham de lá tiravam sempre o chapéu, num gesto humilde, quando passavam defronte do templo. Havia constantemente pessoas ajoelhadas ao longo das naves ou entre as bancadas, os homens muito direitos, com o chapéu no chão. a seu lado, as mulheres encapuchadas nos rebozos escuros, rezando numa espécie de abandono voluptuoso, de cotovelos apoiados ao banco.
No sábado à noite, a cintilação avermelhada de muitos círios iluminava o interior sombrio da igreja. Via-se como que um mar agitado de cabeças escuras, uma confusão de gente que vinha da praia e se dirigia ao mercado. Silêncio mas não bem de adoração, antes de pasmo diante daquele cintilar de luzes.
Não, não era veneração, talvez entorpecimento e abandono da alma flutuando sem governo. E era também para eles um luxo após a semana de sujidade e desleixo nas suas aldeias sórdidas de cabanas de colmo. Isso, porém, irritava Kate.
Domingo de manhã havia a primeira missa ao nascer do Sol, outra às sete horas, outra às nove e mais uma às onze. A orquestra de violinos e violoncelos executava velhas músicas de dança. Desde muito cedo que se notava uma compacta massa de peóns e mulheres, todos ajoelhados; bruxuleavam chamas fumegantes que espalhavam o cheiro da cera, elevavam-se rolos de incenso juntamente com o coro das vozes masculinas, sólidas, poderosas, impressionantes.
E os fiéis retiravam-se com uma sensação de torpor que, logo à entrada da feira, se transformava em ódio, esse velho ódio insondável, latente no coração do índio e sempre pronto a despertar quando o agita uma satisfação voluptuosa.
O interior da igreja parecia uma coisa morta, como aliás, todas as igrejas mexicanas, até a sumptuosa catedral de Puebla. Os templos italianos são quase todos no mesmo estilo, e no entanto paira neles uma sombra serena, a paz de antiga e misteriosa santidade, o silêncio. Mas tal não sucede no México. Exteriormente as igrejas possuem imponência. Por dentro, são vazias de sons e no entanto o silêncio não impera; simples e contudo vulgares, nuas, áridas, mais nuas do que uma escola ou uma sala de concertos deserta, mais desprovidas de mistério do que qualquer desses edifícios. Tem-se uma impressão de argamassa, de estuque, de lambuzadelas de cal azul ou cinzenta e de dourados superficiais com o odioso aspecto de purpurina e não de ouro puro. Enfim, nenhuma doçura, nenhum recolhimento.
Eis o interior da igreja de Sayula. onde Kate já entrara muitas vezes. Por fora era encantadora e enquadrava-se bem na paisagem, com as suas duas torres brancas elevando-se acima dos salgueiros verdes. Mas por dentro não havia nada senão o estuque branco com estrias azuis e cinzentas. As janelas, numerosas e altas, deixavam penetrar a luz como numa escola. Num dos transeptos estava Jesus sulcado de sangue, e à sua frente a Virgem Maria, vestida de cetim, olhava com ar admirado sob a redoma de vidro. Viam-se ali flores de papel, flores de pano e rendas prateadas que pareciam de zinco.
No entanto, a igreja era muito limpa, e muito frequentada.
Acabado o mês de Maria, retiraram as grinaldas de papel branco e azul, assim como os vasos de palmeiras das naves laterais. Deixaram de aparecer, à tarde, as rapariguinhas vestidas de branco, coroadas de flores e com ramalhetes na mão. É extraordinário como as antigas e enternecedoras cerimónias da Europa assumem no México aspecto vulgaríssimo e se transformam numa espécie de espectáculo popular.
No dia de Corpo de Deus a igreja encheu-se até à porta, e houve uma pequena procissão de crianças dentro do templo - visto a lei proibir desfiles religiosos na rua. Tudo aquilo constituía fiesta, um pretexto para não fazerem nada, para justificarem o seu desejo de inacção. A eterna indolência mexicana.
Decorriam as semanas, a multidão na igreja era sempre densa, mas essa mesma multidão, ao sair do templo, rodeava os Homens de Quetzalcoatl.
Durou isto até ao dia em que os oradores mais socialistas misturaram aos seus discursos um pouco de azedume anticlerical. Então ospeóns começaram a murmurar: Será El señor um gringo e a Santíssima uma gringuita?
O caso provocou admoestações da parte dos sacerdotes e por fim as ameaças do famoso sermão. A guerra estava declarada.
Toda a gente esperava ansiosa pelo sábado seguinte. Chegou o dia, a igreja conservou-se fechada, e fechada se manteve todo o domingo.
O povo na feira parecia consternado, já não sabia para onde ir. Mas à consternação juntava-se certa curiosidade. Talvez acontecesse algo de sensacional...
Já noutros tempos haviam sucedido coisas... No decurso das revoluções, muitas igrejas mexicanas tinham sido transformadas em escolas, salas de concerto ou cinemas. Vários conventos serviam agora de quartel. O mundo está sempre a modificar-se.
No sábado seguinte ao encerramento da igreja, havia uma grande feira, de excepcional importância. Viam-se ali homens a vender escudelas de pau envernizadas, mulheres com loiça de barro vidrado. E, como de costume, índios de sentinela às suas ameixas, abóboras ou mangas, amontoadas em pirâmide ao longo dos passeios.
Um mercado à cunha, e as portas da igreja fechadas, e os sinos calados. Até o relógio parara. É certo que parava de vez em quando, mas nunca estivera tanto tempo sem funcionar. Parecia uma imobilidade definitiva.
Nem missa, nem confissão, nem rolos de incenso... Só murmúrios sufocados, olhares furtivos e receosos. À beira do passeio, os vendedores pareciam ídolos astecas, hirtos, agachados no chão e com os joelhos quase ao nível dos ombros. Por toda a parte se viam soldados, em grupos de dois e de três. E señoras e señoritas, todas de mantilha preta, acorriam a ouvir missa, embora já soubessem que a igreja estava fechada.
Mas era domingo e alguma coisa ia acontecer nessa manhã.
Cerca das dez horas apareceu um barco e dele saltaram para terra vários homens de fato branco, dos quais um trazia o tambor. Abriram caminho entre a multidão que estacionava debaixo das árvores e dirigiram-se para a igreja.
Em frente das portas sempre fechadas, despiram o casaco e formaram círculo, todos de torso nu e faixa azul e preta a apertar-lhes a cintura.
Soou o tambor, em pancadas fortes, bem ritmadas, enquanto os homens se mantinham agrupados no adro, numa roda estranha de cabeças negras e lustrosas, espáduas bronzeadas e calças brancas. Continuou o toque de tambor, sempre igual, a que depois se juntou o som ácido de uma flauta de barro.
Todos os que se encontravam no largo da feira correram para a igreja. Mas estavam ali soldados para impedir que penetrassem no adro ou saltassem os muros baixos. De modo que a multidão ficou debaixo dos salgueiros e das pimenteiras, ou então ao sol, a presenciar os acontecimentos. Na sua maioria eram homens de grandes chapéus, mas também ali se encontravam pessoas da cidade, e algumas mulheres, entre as quais Kate, munida de sombrinha azul-escura. Diante de si tinha a massa compacta de gente, comprimindo-se em silêncio na sombra escassa das árvores; atrás, estacionavam automóveis e caminhetas.
Calou-se o tambor, calou-se a flauta. Ouvia-se o marulho do lago, tilintar de copos, vozes de motoristas que bebiam numa taberna e, dominando tudo, o silêncio ofegante da multidão. Vários soldados distribuíram folhetos pela assistência e uma voz máscula, bem timbrada, começou a cantar, acompanhada em surdina pelo tambor.
Durante o cântico, chegou outro barco, e os soldados afastaram a turba para deixar passar Ramon. na sua serape branca de orla azul e franjas vermelhas. Seguia-o um rapaz magro, vestido de sotaina, e mais seis homens de serapes escuras com a bordadura azul de Quetzalcoatl. Esta estranha procissão avançou através do povo até às grades do adro.
Quando eles se aproximavam, abriu-se o círculo de homens que rodeavam o tambor, desdobrando-se em forma de crescente. Ramon conservou-se de pé por trás do tambor e os seis indivíduos de serapes escuras separaram-se e foram postar-se a cada ponta do crescente. O mancebo magro vestido de sotaina permaneceu sozinho, à frente, encarando a multidão. Como ele erguesse uma das mãos,
Ramon tirou o chapéu e logo se descobriram todos os homens presentes.
Voltou-se o clérigo, dirigiu-se a Ramon e entregou-lhe a chave da igreja. Depois, esperou.
Ramon enfiou a chave em todas as portas do templo, escancarando-as. Subitamente ajoelharam os homens que estavam no primeiro plano: tinham visto aparecer o interior da igreja como uma caverna sombria, ao fundo da qual tremulava o clarão dos círios: dir-se-ia haver surgido a Sarça Ardente no meio das trevas misteriosas.
O resto do povo, estremecendo, caiu de joelhos. Só ficou de pé, aqui e ali, um operário, um motorista, um empregado do caminho de ferro.
De súbito, no fundo da sombra que todos os olhos perscrutavam, uma rajada apagou a Sarça Ardente e só ficou um ou outro círio aceso envolto num abismo de trevas.
Da multidão elevaram-se exclamações e murmúrios.
Então o tambor rufou baixinho e dois homens começaram a cantar um hino com possante voz de tenor que parecia entreabrir a terra. Eram indivíduos que Ramon e os seus partidários tinham encontrado em tabernas da Cidade do México. Os "tempos maus" haviam-nos reduzido a cantar nos antros da pior espécie, e agora elevavam a voz com toda a raiva demoníaca da sua desesperação.
O moço de sotaina entrou na igreja. Ramon seguiu-o e atrás dele foram todos os homens do semicírculo, em passos vagarosos. O sino badalou no silêncio de morte e calou-se daí a instantes.
Nas profundezas da nave soou um tambor, lento, distante e terrífico. com sobrepeliz ornada de rendas, o sacerdote apareceu no limiar. Trazia uma cruz, e hesitou antes de avançar para a claridade do exterior. O povo ajoelhado juntou as mãos.
Em direcção à porta tremulavam círios, vindos do fundo da igreja escura. Don Ramon emergiu da sombra, de torso nu e serape ao ombro, segurando a ponta dianteira do andor que sustinha a urna de vidro onde repousava Cristo morto - essa imagem de aspecto tão humano, que se venera na Semana Santa. Atrás, um homem trigueiro e alto, igualmente despido da cintura para cima, trazia ao ombro a outra extremidade do andor. A turba gemeu e benzeu-se. O Cristo morto parecia realmente morto quando transpôs a porta do templo. As mulheres e os homens ajoelhados ergueram o rosto, abriram os braços e assim ficaram em indizível êxtase, em que havia medo e súplica.
A seguir ao féretro vinha uma lenta procissão com os restantes andores. As estátuas avançavam oscilantes, transportadas por aqueles indivíduos de pele de bronze e, sob a luz crua do sol, chegaram por fim ao caminho que conduz ao lago.
- Puríssima! Puríssima! Não nos abandones! - gritavam as mulheres.
E alguns homens, tomados de estranha angústia, clamavam por seu turno:
- Senhor! Senhor! Senhor!
Agora, debaixo das árvores, o cortejo entrou na areia rugosa e surgiu em plena claridade, à beira de água. Corria uma brisa ligeira. As serapes dobradas baloiçavam nas espáduas luzentes, as imagens vacilavam levemente.
Junto do murinho da margem estava uma barca de vela, em comunicação com a terra através duma ponte de tábuas. Dois homens de branco, com as calças arregaçadas, ladearam o moço clérigo, cujas mangas largas ondulavam como bandeiras: ajudaram-no a embarcar, e ele, encaminhando-se para a proa, descansou ali a base da cruz. A barca era descoberta, sem nenhum toldo, mas tinham colocado lá -várias mesas para nelas poisar as imagens.
Ramon subiu devagar para bordo. Depositaram o caixão de vidro no seu suporte e os dois homens limparam a testa húmida de suor. A fim de se proteger do sol, Ramon cobriu-se com o manto e o chapéu. O barco baloiçava imperceptivelmente, embalado pelo vento de oeste. Batido do sol, o lago parecia uma coisa irreal.
Uma após outra, as imagens levantaram-se à popa, avultando de encontro ao azul do céu, e depois baixaram-se quando as puseram sobre as mesas. Era uma estranha colecção de estátuas de mau gosto e contudo essas efígies inspiravam certa compaixão, vendo-as assim agrupadas para a sua última viagem. Ao lado de cada uma viam-se os respectivos portadores, de chapéu e manta, segurando com mão firme nas varas do andor. Havia uma fila de soldados, na praia, e três gasolinas com militares esperavam junto da barca. a gente acorrera toda à beira de água, e muitas canoas de reinos, como peixes curiosos, rondavam a embarcação principal, sem todavia se atreverem a aproximar-se muito. Então, de pernas nuas, alguns marinheiros impeliram a barca para longe da margem, e aquela começou lentamente a mover-se nos baixios, afastando-se da praia e da multidão.
Dois outros marinheiros, rápidos, içaram a vela branca e quadrada. Depressa, mas pesada, ela subiu no ar e enfunou-se ao vento. No meio estava pintado o emblema de Quetzalcoatl, a serpente em círculo e a águia azul, no centro, em campo de oiro. À distância, parecia um olho enorme.
O vento soprava de oeste, porém a barca ia com rumo a sudeste, direita ao ilhéu dos Escorpiões, que se elevava como um vago montículo acima do lago ofuscante. Panda, a vela dir-se-ia olhar para trás com aquele seu grande olho arregalado, para a aldeia, para os salgueiros verdes, para a igreja branca e vazia e para a gente aglomerada na margem. Os gasolinas tornejavam a barca vagarosa, e as canoas seguiam-na de longe.
Na praia, o povo dispersava-se. Uns sentavam-se na areia, observando e esperando com uma paciência quase indiferente. A barca fez-se mais pequena, menos visível, e os barquinhos que a circundavam já não eram mais que pontos negros. A reverberação do lago fatigava os olhos.
Debaixo das árvores, em expectativa silenciosa, uma mulher comprou uma melancia, abriu-a batendo-a numa pedra e distribuiu pelos filhos os bocados cor-de-rosa. Uns homens polvilhavam de sal os pepinos que acabavam de comprar. A igreja estava completamente às escuras, pois não tinha outra luz senão a que entrava pela porta; e absolutamente vazia, pois fora despojada das suas imagens. Era já meio-dia e o calor apertava. A barca nesse momento costeava o ilhéu, onde vivia uma família de pescadores índios. Tinham algumas cabras e um pedaço de terreno cultivado de feijões e milho. À parte isso, era tudo rocha, com silvados'e lacraus.
Precedida pelas canoas, a barca contornou a costa para entrar na única enseada, onde já homens cor de bronze se banhavam entre os rochedos.
Arriaram a vela, a embarcação imobilizou-se e os seus tripulantes, saltando para a água, apearam as imagens e puseram-nas sobre as rochas, onde ficaram à espera dos seus portadores.
Formou-se de novo o cortejo e este, seguindo pela orla do ilhéu, passou diante das cabanas e alcançou os rochedos da outra margem, ocultos pelo matagal.
No lado fronteiro a Sayula era tudo pedra nua, árida e penosa para a marcha. À beira da água, numa depressão da rocha, tinham colocado pedregulhos de cada banda e, sobre eles, varões de ferro dispostos de modo a formar uma espécie de grelha. Por baixo estava uma pilha de lenha, pronta a arder. Perto, via-se outro molho suplementar.
Em cima daqueles varões pousaram as imagens - grupo patético contra o qual se apoiava a cruz. Era meio-dia, o calor e a luz envolviam tudo, mas já no horizonte se amontoavam nuvens.
Para além da reverberação da água, a aldeia parecia uma miragem, com as suas árvores e as torres brancas da igreja.
Os homens que tinham vindo nas canoas apinhavam-se nos rochedos do pequeno anfiteatro. Em silêncio, Ramon inflamou um punhado de caruma com o auxílio duma lente - e logo se elevaram chamazinhas como serpentes minúsculas. Então, com esse feixe de cobras rubras, pegou lume à pirâmide de lenha cuidadosamente disposta sob a grelha de ferro.
Crepitavam os ramos, e, entre baforadas de fumo branco, erguiam-se línguas de fogo no ar fremente. Num sopro de vento, as chamas altearam-se e a madeira resinosa começou a bramir. O vidro do féretro, estalando, parecia soltar gemidos de dor Por entre os varões de ferro. o lume enegrecia as imagens, consumia-lhes num ápice as túnicas e mantos de cetim.
Toda a gente se distanciou daquela árvore de lume que despedia centelhas até ao céu.
Só Ramon ficou onde estava, olhando em silêncio - até nada restar senão um braseiro e uma inextricável confusão de ferros meio fundidos.
Então, dum rochedo próximo, subiram foguetes no ar e explodiram com fragor, derramando uma chuva de oiro.
As pessoas aglomeradas na praia tinham visto o penacho de fumo e o clarão da fogueira. Ao ouvirem as detonações dos foguetes, olharam de novo, exclamando, aterradas:
- Señor! Señor! La Purísima! La Santísima!
Chamas, fumo e foguetes dissiparam-se como por milagre, deixando a atmosfera sempre límpida. com uma pá, deitaram as brasas numa cova funda.
A sudoeste, por cima das montanhas áridas, elevava-se uma nuvem semelhante a uma cauda branca - a cauda dum esquilo enorme que acabasse de desaparecer por trás dos píncaros. Foi-se desenrolando, desenrolando em direcção ao Sol, e quando a barca içou a vela para regressar à aldeia, já uma leve sombra pairava sobre o lago.
Só na extremidade baixa da ilha dos Escorpiões o ar quente ainda fremia.
Ramon voltou numa das lanchas de motor. A pouco e pouco o céu cobria-se de nuvens, preparando-se para chuva e trovoada. Não podendo atravessar o lago. a barca navegava para Tuliapan. As canoas apressavam-se em direcção à praia.
Chegaram antes de se desencadear o vento. Assim que desembarcou, Ramon foi fechar as portas da igreja.
A multidão dispersou-se sob as rajadas. Agitavam-se os rebolos, rodopiavam folhas, erguia-se poeira. Sayula estava sem Deus e, no íntimo, eles sentiam-se contentes.

 

 

                       CONTINUA

 

 

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