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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SERPENTE EMPLUMADA
A SERPENTE EMPLUMADA

     

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 

XIV
Veio a manhã, e toda azul, com uma frescura na atmosfera e uma luminosidade tão forte nas árvores e nas montanhas longínquas que os pássaros se espalharam no ar como botões de flores acabados de abrir.
Cipriano regressava a Guadalajara, de automóvel, e Carlota ia com ele. Kate preferiu voltar pelo lago.
Às vezes, Carlota representava verdadeira tortura para o marido. Parecia ter o poder de o lacerar até nas próprias entranhas. Não no espírito, não na alma, porém no seu "eu" emotivo, passional e aí o rasgava e o fazia sangrar interiormente.
Porque a amara, ainda se preocupava com ela; porque ela fora apaixonada, afectuosa, cheia de caprichos e até egoísta, uma vez por outra. E, na assiduidade dos seus cuidados, durante anos seguidos, Ramon havia conseguido estragá-la com mimos.
Entretanto, e gradualmente, modificara-se a natureza do homem. Não que ele deixasse de a estimar ou pretendesse outras mulheres. Esta atitude bem na podia ter compreendido; contudo, no íntimo de Ramon, existia uma força imperiosa, cega, que lhe ordenava se desfizesse do seu ser espiritual para o fundir no cadinho ardente donde sairia um ente novo, inteiramente novo.
Mas devia contar com a mulher. Carlota amava-o e isso, para ela, importava acima de tudo. Amava-o como a toda a humanidade e estava persuadida de ter razão.
Assim, sentia-se roubada, iludida. Porque não continuava o marido a ser bom, amável, benigno, quando procurava tornar o mundo mais benigno, mais amável e melhor?
A razão era esta: Ramon verificara que o mundo já dera tudo o que tinha a dar no caminho da bondade e do amor. Ir mais além seria o mesmo que atingir a perversidade. Chegara o momento duma lenta evolução. Qual fosse, não no sabia.
O sentimento do amor e esse, maior, da liberdade dos homens pareciam condensar-se de roda dele, como uma concha ou como um casulo. A velha lagarta do cristianismo evoluía para qualquer coisa diferente.
Para Carlota, tudo se resumia no amor dos filhos, do marido, do povo, dos animais, das árvores. Era a sua vida inteira, o seu Cristo, a sua Virgem Maria. Como renunciar, no fim de contas?
E deste modo continuava a amar Ramon e o mundo inteiro, firmemente, obstinadamente, de forma patética - e quase diabólica. Rezava por ele e consagrava-se a obras de caridade.
Ora esse amor, desviado do fluxo espontâneo, sujeito às oscilações imprevisíveis do Espírito Santo, acabou por se transformar em vontade. Amou então com a sua vontade, tal como é agora a tendência no mundo dos brancos. Saciou-se de caridade - essa bondade cruel.
A sua simpatia, a sua sedução pessoal, tudo isso a abandonou. Começou a estiolar-se, a endurecer. Rezando pelo marido, constantemente o censurava. Nela expirou a espontaneidade do ser, a vontade fez-se rígida e toda a sua pessoa se tornou numa vontade frustrada.
Depressa conseguiu atrair a si os filhos. Ramon era muito orgulhoso e estava muito aborrecido para poder lutar. Assim se tornaram só os filhos de Carlota. Que os guardasse para si!
Eram os filhos da sua carne de outrora. A nova não tinha descendência: provavelmente nunca a teria.
- Lembra-te - observara-lhe ele, com soturna lógica - que tu não amas senão com a tua vontade. Não aprecio o amor que sentes pelo teu Deus: é uma afirmação da tua vontade apenas. Não aprecio o amor que me consagras: é ainda do mesmo género. Não aprecio o amor que tens pelos teus filhos: se vir neles uma centelha do desejo de se libertarem, farei tudo para os salvar. Entretanto procede como melhor entenderes com o teu amor e a tua vontade. Mas fica sabendo que discordo. Discordo da tua insistência, do teu monopólio do sentimento, das tuas obras de caridade. Discordo por completo do teu teor de vida. Enfraqueces e vicias os pequenos. Não os estimas, domina-los com o teu amor-vontade. Um dia rebelar-se-ão. Chegarão a detestar-te. Não te esqueças destas minhas palavras.
Dona Carlota, ao ouvir isto, estremecera até nas fibras mais íntimas do ser. Mas foi à capela do Convento da Anunciação, e rezou. Tendo orado pelo marido, julgou adquirir uma vitória sobre ele, e voltou para casa com esse triunfo puro e frágil como a flor que desabrocha numa sepultura: a do seu marido.
Ramon, desde aí, começou a espiar-lhe a dedicação irritante e alvoroçada como se espiasse as manobras do seu pior inimigo.
A vida fizera a sua obra naquele ser humano: arrancara-lhe a espontaneidade, deixando-lhe apenas um querer obstinado. Na mulher morrera o deus, ou a deusa - ficando só misericórdia envolta no manto da vontade.
- Carlota - dissera-lhe o marido -, serias imensamente feliz se pudesses usar luto pesado... luto por mim! Não te darei esse gosto.
Ela relanceou-o estranhamente com os seus olhos castanhos-claros.
- Tudo está nas mãos de Deus - replicou, afastando-se a toda a pressa.
Agora, nessa manhã que sucede às primeiras chuvas, ei-la a aproximar-se do quarto de Ramon, onde ele estava sentado a escrever. Como na véspera, conservava-se nu até à cintura, apenas com umas calças de linho branco, muito largas, como de pijama.
- Posso entrar? - inquiriu nervosa.
- Entra! - respondeu o interpelado, descansando a caneta e levantando-se.
Havia só uma cadeira, que ele lhe ofereceu; mas Carlota foi sentar-se na cama ainda por fazer, como se considerasse ali o seu lugar natural. Ao mesmo tempo olhava-lhe o peito nu - também como se considerasse aquilo uma afirmação do seu direito natural.
- Parto com Cipriano, depois do almoço.
- Já o disseste.
- Os pequenos chegam daqui a três semanas.
- Bem sei.
- Queres vê-los?
- Se o desejarem.
- com certeza que desejam.
- Então trá-los cá.
- Achas que seria agradável para mim? - retorquiu ela, enclavinhando as mãos.
- Tu é que não me tornas a vida agradável, Carlota.
- E como o poderia fazer? Não ignoras que reprovo a tua atitude. Quando te escutei ontem à noite, achei que dizias coisas belas mas monstruosas. Sim, monstruosas! Até pensei: "Que faz este homem? Este homem que, mais do que nenhum, podia ser tão benéfico para o seu país e para a humanidade!"
- E então? Que faz ele?
- Sabe-lo muito bem! Ah, não tolero! Não és tu quem vai salvar o México. Cristo já o salvou.
- A mim afigura-se-me que não.
- Sim! Sim! E Ele é que te fez assim, um ser extraordinário que podia salvar em Seu nome e pelo Seu amor. Mas em vez disso...
- Em vez disso, Carlota, tento fazer outra coisa. Ora ouve-me: se Cristo, o verdadeiro, não foi capaz de salvar o México, o Anticristo da Caridade, e o socialismo, e os políticos, e as reformas acabarão por destruí-lo. Isto, só isto me impele a agir. Tu, Carlota, com as tuas obras de caridade e a tua misericórdia; e homens como Benito Juarez, com a sua Reforma e a sua Liberdade; e o resto do povo benevolente, políticos, socialistas e quejandos, cheios de piedade pelos homens, nos seus discursos, mas na realidade carregados de ódio (o ódio dos materialistas que não possuem pelos materialistas que possuem), todos vocês, enfim, representam o Anticristo. Até põem veneno no cálice da Eucaristia! Por esta razão é que eu saio da minha reserva natural. Não quero ver ninguém envenenado. Não me preocupo muito com as "grandes massas" mas não quero ninguém envenenado.
- E tens a certeza de não seres tu o próprio envenenador? Suponho que és.
- Pois vai supondo. Eu também suponho que tu, Carlota, ainda não alcançaste o desenvolvimento final da tua feminilidade: é uma coisa que faz diferença da antiga concepção.
- A mulher é sempre a mesma.
- Isso não. Nem sequer o homem.
- Em suma: que tencionas fazer? Que julgas que esse disparate do Quetzalcoatl nos pode trazer?
- Quetzalcoatl é uma palavra viva para esta gente. Nada mais. Tudo o que pretendo é que descubram os limites, eles da sua virilidade, elas da sua feminilidade. Os homens ainda não são bem homens, as mulheres ainda não são completas. São todos feitos de metades, de partes incoerentes, horríveis ou boas. Assim tu, Carlota, segundo creio. E o resto do mundo. Mas este povo não sabe defender a sua integridade, este nosso povo do México. Assim, tendo eu podido reter uma parte da minha natureza, para me servir de guia, compete-me auxiliá-lo a realizar também a sua.
- Hás-de falhar.
- Não. Aconteça o que acontecer, haverá nova vibração, novo apelo na atmosfera, nova resposta no coração de alguns homens.
- Trair-te-ão. Sabes ao menos o que o teu amigo Toussaint diz de ti? O futuro de Ramon Carrasco é apenas o passado da humanidade.
- Grande parte pertence, de facto, ao passado. Naturalmente
foi isso o que Toussaint notou.
- Nem os pequenos acreditam em ti. Por instinto, não acreditam. Quando fui visitá-los, o nosso filho Cipriano perguntou-me: "O pai continua com aqueles discursos tolos a respeito do regresso dos antigos deuses?" E acrescentou: "Oxalá acabasse com isso. Seria para nós uma vergonha se viesse para os jornais com essa história."
Ramon riu-se.
- As crianças são como gramofones. Falam conforme o disco que lhes põem. As mães e os professores transformam-nas em grafonolas, de modo que tudo quanto dizem é a reprodução exacta do disco por eles colocado... Talvez no tempo de Cristo as crianças não fossem tão exploradas pelos adultos...
De súbito, o sorriso apagou-se na face de Ramon e ele, levantando-se, apontou para a porta.
- Vai-te embora! - disse em voz baixa. - Vai-te. Já aspirei de mais o cheiro pernicioso do teu espírito.
Sentada na cama, Carlota fixava-o com olhos amedrontados e encolhia-se como se o braço estendido ameaçasse bater-lhe.
A cólera dissipou-se no semblante de Ramon e o seu braço tombou.
- No fim de contas não temos nada de comum - murmurou docemente. E, pegando no chapéu e no casaco, saiu para o terraço, separando-se dela de corpo e alma. Carlota deixou-se cair na cama e aí ficou tal um monte de cinzas, onde ardiam apenas as brasas da sua vontade.
Os olhos tinham um fulgor desusado quando se reuniu a Kate e a Cipriano.
Depois do almoço, Kate voltou para casa de barco. Ao partir da hacienda sentia estranha depressão - como se a sua vida devesse ali decorrer e não noutra parte.
Pela primeira vez, achou a casa vazia, banal de uma vulgaridade extrema.
- Ah, niña! Ainda bem que veio! Muita água caiu ontem à noite! Mas a niña estava em segurança na hacienda. Que bonita é a hacienda de Jamiltepec! E que boa pessoa é Don Ramon, não é? É muito cuidadoso com o pessoal. E a señora não podia ser mais simpática.
Kate sorriu, mas a sua vontade era responder-lhe: "Por amor de Deus, acaba com essa tagarelice e deixa-me sozinha."
Teve de suportar novamente a insolência calma e subtil, a intolerável nota de sarcasmo que em tudo transparecia - até no constante grito de Juana: niña! niña!
Durante as refeições Juana sentava-se no chão, a pouca distância de Kate, e falava, falava, fixando, todo o tempo, na patroa os olhos negros em que por vezes cintilava a ironia peculiar dos índios.
Kate não era abastada, possuía modestos rendimentos.
- Ah, a gente rica... - disse Juana.
- Não sou rica - volveu Kate.
- Não é, niña - insistiu a outra, com a sua voz caridosa e cantante, como a dum pássaro. - Então é pobre? - E, nesta conclusão, havia evidente ironia.
- Também não sou pobre. Nem rica nem pobre.
- Não é rica nem é pobre, niña! - repetiu Juana.
Para ela, as palavras não significavam nada. Para ela, que não possuía coisa nenhuma, Kate pertencia à classe mágica, a dos opulentos. E, bem no sentia Kate, no México era crime ser rico, estar classificado entre os ricos. Não propriamente um crime, mas uma extravagância. A classe rica era a classe extravagante, como os cães de duas cabeças ou vitelos de cinco pernas. Olhavam-na menos com inveja do que com a curiosidade dum antagonismo vivo, a curiosidade dos "normais" perante aqueles que o não são; o indolente mas forte e corrosivo escárnio dos índios, nascido daquela natureza de lava, contra tudo quanto destoa e sobe acima do nível pardacento desse solo vulcânico.
- É verdade, niña, que o seu país fica do outro lado? - perguntou Juana, apontando com o dedo para o chão, para as entranhas da terra.
- Não tanto - respondeu Kate. - A minha pátria é mais para ali - e esboçou um gesto pela superfície adiante.
- Ah, naquela direcção! - exclamou Juana. E olhou para Kate com subtil desconfiança, como se dissesse: "Que se pode esperar de gente que vem da terra, de través, como os grelos da hortaliça?"
- E é verdade que em certos sítios há pessoas só com um olho... aqui? - perguntou ela tocando no meio da testa.
- Não, não é verdade.
- Tem a certeza? Já esteve nessas terras?
- Sim. Visitei todos os países, e não existem semelhantes criaturas.
- Verdad! Verdad! - murmurava Juana cheia de espanto. - E no seu país só há gringos?
Queria dizer: não indivíduos como nós os mexicanos, sal da terra.
- São todos como eu - respondeu Kate friamente.
- como a niña E falam todos da mesma maneira?
- Sim, como eu.
- E são muitos?
- Muitíssimos.
- Jesus! - exclamou Juana, sobressaltada à ideia de que o Mundo inteiro estivesse cheio de seres assim tão extravagantes e risíveis. Concha, aquela selvagenzinha, olhava admirada, através da janela de grades, para a estranha fauna de brancos que visitavam a niña. E embasbacava-se sinceramente, enquanto ia fazendo as suas tortillas.
Kate desceu até à cozinha. A pequena achatava a massa de farinha de milho, comprada na plaza a oito centavos o quilo.
- niña! - bradou ela, com a sua voz roufenha. - Come tortillas?
- Uma vez por outra.
- Então coma agora uma! - E Concha estendeu a palma de mão trigueira, onde se via uma tortilla de limpeza duvidosa.
- Agora não.
Detestava essa pesada massa que parecia de gesso e sabia a lodo.
- Não quer? Não gosta? - retorquiu Concha, soltando uma risada estrídula e impudente. E deitou a torta rejeitada no prato onde se empilhavam as outras. Era daquelas pessoas que não comem pão, alegando que não apreciam, que não chega a ser alimento.
No terraço, Kate recostava-se na sua cadeira de baloiço, enquanto o sol se entornava sobre o quadrado verde do jardim, sobre a palmeira que abria à luz os seus enormes leques recortados, sobre os cardeais de flores vermelhas e sobre as laranjas dum tom escuro que pareciam transpirar de calor.
Aproximava-se a hora do almoço, furiosamente abrasadora: a hora da sopa quente e gordurosa, do arroz cheio de banha, do peixe frito, dos bocadinhos de carne guisada com legumes, dos cabazes de fruta onde se acumulavam mangas e papaias, frutos tropicais que não apetece comer quando há calor. Servia à mesa a pequena Maria, descalça, de vestido encarnado e cheio de rasgões. Era a mais simpática de todas. Quando Juana começava a falar interminavelmente, ela chegava-se para Kate e tocava-lhe no braço - uma, duas vezes. Se lhe não ralhassem, ficaria ali encostada ao ombro de Kate, contemplando-a numa expressão beatífica, e os seus grandes olhos pretos iluminavam-lhe o rosto infantil, picado das bexigas, vagamente imbecilizado. Mas Kate repelia logo o braço trigueiro e magro: a criança recuava uns passos, desaparecia-lhe o ar de beatitude, porém os olhos negros continuavam brilhando como que absortos num êxtase de réptil.
Concha acudia então, batia com o cotovelo na irmã e fazia qualquer observação brusca, ininteligível para Kate. Apagava-se a cintilação dos olhos negros e Maria começava a chorar, enquanto Concha irrompia em gargalhadas selváticas. Juana, suspendendo o fluxo de palavras, voltava-se para as duas filhas e fazia uma observação ineficaz. Há sempre uma vítima, vítima inevitável, e um inevitável algoz.
Horrível, horrível vácuo ardente das manhãs mexicanas. Pesava no ar um tédio tenebroso. Kate sentia-se perdida, e fugia então para o lago a fim de escapar à casa, ao pessoal.
Depois das chuvas haviam florido de rubro e azul as árvores dos jardins abandonados da margem. Súbitas flores tropicais, vermelhas e azuis. Maravilhosos salpicos de cor, brilhantes, fugazes como fogo-de-artifício.
E Kate, ao pensar nos espinheiros guarnecidos de branco das azinhagas da Irlanda, nas dedaleiras junto das rochas, nos tufos de urze e nas campainhas entrelaçadas, sentia desejos de voltar para o seu país e fugir daquele explendor tropical que nada lhe dizia ao coração.
No México, o vento soprava rijo, a chuva caía em torrentes, o sol queimava, entontecia... Terra seca, dura, ofuscante de luz implacável. Terra negra, cortada de relâmpagos, batida pela violência da chuva. Nunca temperada de nevoeiros; sem nenhuma doçura na atmosfera. Ou calor dissolvente ou frio de rachar.
E Kate sentia-se dominada pela cólera e pelo ressentimento. Sentada debaixo de um salgueiro, à beira do lago lia um romance de Pio Baroja repleto de "não, não, não"! - ich bin der Geist der stets verneint! Contudo, ela ainda estava mais cheia de fúria e de repúdio do que Pio Baroja. A Espanha não pode proclamar "Não!" como o pode o México.
Envolta na folhagem leve da árvore e instalada sobre a areia quente, Kate protegia-se o melhor possível do sol. Havia no ambiente um leve cheiro amoniacal. O lago estava tão opaco e imóvel que se diria invisível. A pequena distância, ajoelhavam-se na margem mulheres trigueiras, vestidas apenas com uma camisa molhada, com a qual se haviam banhado. Algumas lavavam roupa, outras, com o auxílio de cabaças, deitavam água nos cabelos e pelos ombros, sob a intensidade dos raios solares. À esquerda ficavam duas árvores enormes, uma sebe de bambus e cabanas de palha dos indígenas. Ali terminava a praia: quase até ao lago desciam as nesgas de terra dos índios.
Relanceando o olhar pela claridade ofuscante, Kate sentia-se isolada no próprio âmago da sombra, enquanto o mundo se movia nas partículas ínfimas daquele vazio resplandecente. Nesse momento descortinou um fedelho que avançava solenemente para a borda de água. Teria os seus quatro anos mas parecia mais corajoso do que um adulto. com a idade vem qualquer coisa de vulnerável que ainda não possuem essas crianças destemidas. Kate reconheceu o garoto pela camisa rubra esgarçada e pelos farrapos que eram as suas calças brancas de homenzinho. Reconheceu-lhe a cabeça redonda e escura, o andar rígido e vigoroso, os olhos grandes, o ar ousado de
animal bravio.
"Que terá ele apanhado?", disse ela de si para si, espantada para
o vulto que se mexia sob o ardor da luz.
Pendente do bracito, presa pelos pés, trazia uma ave lacustre que agitava debilmente as asas, uma dessas muitas que flutuam à superfície do lago, próximo da margem.
Para ali caminhava o petiz, segurando a ave de cabeça para baixo; junto do punho estreito do seu algoz, ela parecia grande como uma águia. Atrás corria outro garoto. Os dois pequenos chapinharam cerca de um metro nas ondas tépidas, à claridade muito viva do sol, e, inclinando-se gravemente, como homens sensatos, puseram o seu prisioneiro na água. A ave flutuou acolá, mas a custo avançava. Então os miúdos arrastaram-na como um trapo, por um cordel amarrado à perna.
Tão calmos, silenciosos e escuros, os rechonchudos filhos de índios! Duas figuras solenes, com esse frangalho de pássaro.
Kate voltou a vista para o livro, mal disposta; aquilo bulia-lhe com os nervos. Ouviu o som de uma pedra a cair na água. A ave estava no mesmo ponto; não havia dúvida de que ao cordel tinham amarrado uma pedra. Adejava e não saía dali.
E os dois tiranos, numa torva e calma volúpia, arremessavam seixos, com a sua pontaria certeira de índios ferozes, ao animal fraco e alvoroçado. Aquela migalha de gente, de camisa vermelha, parecia um guerreiro, de braço erguido para lançar o seu projéctil à vítima indefesa.
Num ímpeto, Kate correu para a praia.
- Feios meninos! Isso não se faz! Vão-se embora, seus desalmados! - gritou só de um fôlego.
O pequeno de cabeça redonda fixou nela as pupilas negras e em
seguida desatou a correr, seguido pelo companheiro.
Kate entrou na água e agarrou a ave quente e molhada, que ainda tentou bicá-la. Da perna pendia-lhe o pedaço de cordel e Kate, uma vez na praia, apressou-se a desatar o nó. A ave, do tamanho duma pomba, conservou-se imóvel na mão dela.
Depois de descalçar os sapatos e as meias, Kate olhou em volta e, não descobrindo vivalma nas imediações, levantou as saias e foi descalça através da água, quase caindo sobre as pedras. Junto à
margem era pouco profundo. Ela continuou a avançar, cambaleando, com uma das mãos a arregaçar as saias e a outra ocupada com a
ave, até que a água lhe chegou aos joelhos. Então poisou o animal
na superfície líquida e deu-lhe um leve impulso.
Ele, porém, ficou ali, a boiar como um trapo.
- Anda, mexe-te! Mexe-te! - exclamava Kate, incitando-o a nadar para o largo.
Mas ou não podia ou não queria. Fosse porque fosse, não se moveu.
Em todo o caso encontrava-se fora do alcance dos garotos. Kate tratou de voltar para baixo da árvore e fugir ao sol ardente.
Numa ira silenciosa, ora olhava para o lago ora para as cabanas dos índios imersas em sombra densa.
A ave mergulhava o bico na água e sacudia a cabeça. Estava a voltar a si... Mas não nadava. Deixava-se levar pelas ondas, e estas arrastá-la-iam até à praia.
- Palerma! - exclamou Kate nervosamente, concentrando todo o seu espírito no animal, com a pretensão de o sugestionar e o fazer afastar-se para longe.
Da planura cintilante do lago aproximavam-se dois companheiros, nadando apressados. O da frente avançou o bico para a ave inerte como se dissesse: "Olá! Então que é isso?" Mas logo se desinteressou e se reuniu ao camarada, no seu rumo para a margem.
Kate olhava com angústia para aquele farrapo coberto de penas. Não se animaria a seguir as outras duas aves?
Não! Ali continuou a boiar, limitando-se a sacudir a cabeça de vez em quando.
Kate leu mais umas linhas de Pio Baroja. Quando tornou a olhar já não viu a pobre ave. As outras duas andavam ligeiras entre os calhaus. Voltou a ler um pouco.
O que viu a seguir foi um rapazola de cerca de dezoito anos a descer a praia em largas passadas e, atrás dele, o fedelho de camisa vermelha. Kate sentiu um baque no coração.
As duas galinholas abriram as asas e, num voo baixo, desapareceram na luminosidade do lago.
Mas o rapaz de chapeirão e fato-macaco espreitava entre as pedras. Kate, no entanto, estava convencida de que a sua ave se afastara para o largo.
Não! Afinal, não. Pelo contrário, voltara para a margem, trazida pelas ondas.
O rapaz inclinou para a água os ombros largos, esses ombros de índio que por vezes Kate tanto detestava, e, estendendo o braço, agarrou no infeliz animal. Depois, segurando-o pela ponta duma asa, entregou-o ao garoto. Feito isso, tornou a atravessar a praia, muito satisfeito consigo mesmo.
Como nesse instante Kate odiou aquele povo, a sua vileza e crueldade, os seus ombros direitos, o peito alto e, acima de tudo, o andar emproado!
De cabeça um pouco pendida para a frente e olhos postos no chão, sem nunca voltar a cara para o lado de Kate, o rapaz dirigiu-se para a sombra das cabanas. E atrás marchava o miúdo, baloiçando a desgraçada avezita suspensa pela ponta duma asa. De vez em quando, virava a face morena e redonda e lançava a Kate um olhar vingativo e desconfiado, com medo de que essa mulher branca caísse sobre ele novamente.
Kate olhava-o através dos ramos roçagantes do salgueiro.
- Se eu pudesse, matava-te! - exclamou. Regularmente, como num maquinismo de relógio, o pequeno voltava a cara para trás, ao mesmo tempo que ia correndo para uma abertura da sebe, por onde o rapaz desaparecera.
Kate pensou se deveria, mais uma vez, ir salvar aquela ave desastrada. Mas para quê?
O país devia ter sempre a sua vítima. A América precisa duma vítima. Enquanto o mundo durar, esse continente estará dividido entre vítimas e carrascos. Para quê intervir?
Levantou-se, detestando por igual a ave imprudente e o garoto teimoso.
À beira de água amontoavam-se mulheres. Para oeste, sob o resplendor, erguiam-se as vivendas com o seu ar abandonado, e as torres gémeas da igreja como dois dedos levantados acima da chama rubra das árvores floridas e do negrume das mangueiras. Kate viu a praia de aspecto imundo e aspirou o cheiro do México, que se espalha ao calor, após as chuvas: excremento de homens e de animais, seco ao sol sobre a terra muito seca. E viu as folhas ressequidas, as folhas das mangueiras. E sentiu a atmosfera com o seu leve resíduo de fumo.
"Um dia virá em que eu partirei", disse consigo.
Sentando-se mais uma vez na varanda, escutou o clape-clape das tortillas, vindo do extremo do pátio, o som metálico, tão peculiar, dos pássaros, e percebeu que as nuvens já se acumulavam a ocidente, muito pesadas, engendrando os trovões. E compreendeu que não tolerava mais aquilo: o vácuo e a pressão, a horrível elementalidade do incriado. E o próprio sol, e a própria chuva, ambos estranhos, bárbaros. ! Meditou no olhar sombrio do garoto indígena: misterioso vácuo.
Ele não compreendia que a ave era um ser verdadeiro e vivo, com a sua vida própria. Isso, aquela raça jamais compreenderia. com os seus olhos escuros fitavam o mundo rudimentar onde os elementos são monstros cruéis, assim como o sol é monstruoso e é monstruosa a água torrencial da chuva, e a terra muito seca, ressequida.
E entre a monstruosidade dos elementos tremulam e pairam outras presenças: entes terríveis e rudes, gente branca, os gringos, poderosos como deuses, porém bárbaros, demoníacos. E seres estranhos como certas aves que flutuam no ar, e cobras que se arrastam no chão, e peixes que nadam e que mordem. Rude, monstruoso universo de monstros grandes e pequenos, nos quais o homem se detém por simples resistência e precaução, e nunca, nunca avança para sair das trevas que o rodeiam.

XV
A luz eléctrica em Sayula era tão incerta como tudo o mais. Em teoria, funcionava desde as seis e meia da tarde até às dez da noite. Mas não na prática. Muitas vezes recusava-se a aparecer antes das sete, ou mesmo antes das oito. Mas a pior partida era apagar-se justamente a meio da ceia, ou quando se estava a escrever uma carta. De repente, ouvia-se um estalo, e as trevas da noite mexicana envolviam tudo. E então corria toda a gente às cegas, em busca de velas e de fósforos, chamando uns pelos outros com vozes assustadas. Depois, a luz eléctrica tentava reviver, e via-se tremular nas lâmpadas uma incandescência rubra, sinistra. Todos retinham a respiração. Vinha ou não vinha? Havia ocasiões em que se apagava de vez. Noutras, retomava alento e reaparecia, embora não muito brilhante; contudo, mais valia isso do que nada.
A coisa piorou na estação das chuvas. Noite após noite, a luz falhava. E Kate sentava-se à claridade bruxuleante da vela, enquanto os relâmpagos revelavam as formas escuras das plantas existentes no pátio.
Numa noite dessas, Kate instalou-se na varanda, de costas viradas para a sala deserta onde luzia uma vela. De quando em quando, via os loendros e a papaia no jardim, iluminados pelo clarão dos raios que tombavam como uma chapada azul e silenciosa na escuridão de breu. Rumorejavam trovões ao longe, como jaguares esfomeados que rondassem o lago.
Por várias vezes o portão rangeu e soaram passos no saibro. Passos de alguém que dava "boa noite" a Kate e se encaminhava para as dependências de Juana, onde luzia a claridade frouxa de uma candeia de azeite através da abertura da janela. Em seguida, ouviu ela o murmúrio duma voz recitando ou lendo. E enquanto o vento soprava e a luz dos relâmpagos poisava como um pássaro azul sobre as plantas, aquilo continuou, juntando-se ao rumor das bagas que caíam da árvore das cuentas. Kate sentia-se inquieta e um tanto ao abandono. Percebia que algo de extraordinário se passava na residência da criada, qualquer coisa de secreto.
Mas, no fim de contas, a casa era sua, e tinha o direito de saber o que fazia o pessoal. Levantou-se da cadeira de baloiço e, seguindo pela varanda, deu a volta à sala de jantar, cujas portas que davam para o pátio já estavam trancadas.
No canto para além do poço, viu um grupo sentado no chão, do lado de fora da cozinha de Juana. As mulheres encafuadas nos rebolos, os homens de chapéu na cabeça e serapes nos ombros, todos olhavam para o interior da barraca, onde ardia a candeia e uma voz se fazia ouvir, lenta e monótona.
Ao sentirem os passos de Kate, viraram a cabeça e alguém preveniu os outros da aproximação dum intruso. Juana pôs-se de pé.
- É a niña! - exclamou. - Coitadinha, sozinha toda a noite... Venha cá, niña!
Os homens ergueram-se e Kate reconheceu entre eles o moço Ezequiel, que se descobriu à sua chegada. E ali se encontrava a recém-casada Maria del Carmen. E dentro da barraca, com a candeia pousada no chão, estava Júlio, marido daquela. Além deles, Kate viu Concha, a pequena Maria e um casal desconhecido.
- Ouvi uma voz - explicou Kate. - Não sabia que era você, Júlio... Como tem passado? Ouvi a voz e vim averiguar o que
acontecia.
Houve um instante de silêncio, que Juana quebrou.
- Fez bem em vir, niña, fez bem. Concha, traz uma cadeira
para a niña.
Concha levantou-se a custo e foi buscar a cadeirinha baixa que era a única peça de mobília de Juana, além da cama.
- Não incomodo? - perguntou Kate.
- Não, niña. É amiga de Don Ramon, não é verdade?
- Sou.
- Pois nós estamos... estamos a ler os hinos...
- Ah, sim?
- Os hinos de Quetzalcoatl - acrescentou Ezequiel com súbita arrogância.
- Então, continuem. Posso ouvir também?
- Pode, pode! A niña quer ouvir. Lê, Júlio.
Tornaram todos a sentar-se no chão, e Júlio instalou-se junto da candeia; mas baixou a cabeça, escondendo a cara na sombra do chapéu.
- Entonces! Anda, lê! - insistia Juana.
- Está com medo - murmurou Maria del Carmen, pousando a mão no joelho do marido. - A niña quer ouvir, e portanto deves ler, Júlio.
Depois dum momento de indecisão, o rapaz inquiriu em voz abafada:
- Começo do princípio?
- Sim, do princípio! Lê! - ordenou Juana.
Júlio tirou debaixo da sua manta uma folha de papel, semelhante a um prospecto, no topo da qual sobressaía o símbolo de Quetzalcoatl: o círculo com a ave ao centro.
Então começou a ler, sempre em voz um tanto sufocada:
"Sou Quetzalcoatl de rosto escuro que noutros tempos viveu no México até que, de além dos mares, veio um estrangeiro que tinha pele branca e falava estranha linguagem.
Quetzalcoatl perguntou: - Que vens fazer ao México?
E o outro respondeu: - Venho trazer-lhe a paz.
Quetzalcoatl disse: - Está bem. Já me sinto velho, devo retirar-me. Adeus, povo do México. Adeus, irmão estrangeiro. Chegou a hora de eu partir.
Lentamente ele se foi. Aos ouvidos ressoava-lhe o desmoronar dos templos mexicanos; mas continuou o seu caminho, em passo vagaroso porque era velho e estava cansado de tanto viver. Subiu a encosta da montanha, atingiu a neve dos píncaros, e, quando caminhava, ouviu gritos de agonia e viu clarões de incêndio. Então disse consigo mesmo. "São os mexicanos a gritar! Mas não devo fazer caso porque o meu irmão estrangeiro lhes enxugará as lágrimas."
Assim o velho deus alcançou o cume da montanha e ergueu os olhos para a casa azul do céu. E através duma porta na parede azul viu escuridão profunda, e estrelas e uma lua a brilhar. E por trás das trevas viu uma estrela enorme, uma estrela cintilante.
Então, de volta do velho Quetzalcoatl, irromperam do vulcão penas e asas de fogo. E, com as asas de fogo, Quetzalcoatl ergueu-se no espaço tal um pássaro luminoso e chegou aos degraus brancos do céu que conduzem às paredes azuis, onde está a porta que dá para as trevas. E ali penetrou e desapareceu.
Tombara a noite, Quetzalcoatl fora-se embora, e os homens no mundo viram somente uma estrela atravessar o firmamento, mergulhando na escuridão.
Então os mexicanos disseram "Quetzalcoatl morreu. Até a sua estrela se extinguiu".
De modo que aprenderam os ensinamentos dos sacerdotes que vinham de além dos mares. E assim se tornaram cristãos."
Júlio, que se absorvera na leitura, acabou de repente como se a história terminasse ali.
- É bonito, isso - disse Kate.
- E não é mentira nenhuma - acrescentou a céptica Juana.
- Señora! - gritou Concha. - É verdade que o Paraíso é lá em cima e que as nuvens formam degraus até à beira do céu, como os degraus do cais até ao lago? E é verdade que El señor vem ao cimo da escada e olha cá para baixo e nos vê como a gente olha para a água e vê os peixes?
Sacudindo o cabelo e com a face trigueira erguida para Kate,
Concha esperou pela resposta.
- Não sei tudo - replicou a interpelada, rindo-se. - Mas
parece-me que é verdade.
- Ela acredita - disse Concha, voltando a cara para a mãe.
- E será verdade - perguntou Juana por sua vez - que El Señor, El Cristo del Mundo, é um gringo, e que nasceu no país da niña, assim como a Sua Santa Mãe?
- No meu país, não. Noutro próximo do meu.
- Imagine-se! - exclamou Juana, espantada. - El señor é um gringuito e a Mãe Santíssima uma gringuita! Sim, é de crer... Basta olhar para os pés da niña. Ora vejam! São mesmo pés de madona! - Kate estava sem meias e tinha sandálias com uma simples presilha. Juana tocou-lhe nos dedos, fascinada. - Pés de madona! E Ela, a Mãe Santíssima, é uma gringuita. Nasceu para além dos mares, como a niña
- Sim...
- Ah! Tem a certeza?
- Sim, todos sabemos isso.
- Imagine-se! A Santíssima é uma gringuita, nasceu para além dos mares, como a niña! - Juana falava com um misto de espanto, de horror e de troça.
- E o Senhor é um gringuito? - bradou Concha.
- Foram os gringos que mataram El Señor, niña? Não foram
os mexicanos?
- Não foram os mexicanos - confirmou Kate.
- Foram os gringos?
- Sim.
- E Ele era um gringo?
- Era - respondeu Kate, já não sabendo que dizer a tanta pergunta tola.
- Ora vejam! - comentou Juana, em tom malévolo. - Era gringo, e os gringos crucificaram-no.
- Mas já há muito tempo - apressou-se Kate a explicar. Seguiram-se uns instantes de silêncio. As faces trigueiras das
mulheres e homens sentados no chão erguiam-se para Kate, olhando-a fixamente e considerando cada palavra. Lá fora, os trovões rumorejavam em diferentes lugares.
- E agora, niña - proferiu a voz fria de Maria del Carmen - repudiamos El señor e aceitamos Quetzalcoatl.
- Quetzalcoatl não tem mãe.
- Talvez tenha esposa - sugeriu Kate, irónica.
- Quien sabe! - murmurou Juana.
- Dizem que ele se tornou novo no Paraíso - acudiu a atrevida Concha.
- Quem? - inquiriu Juana.
- Não sei como é que o chamam - murmurou Concha, com vergonha de pronunciar o nome.
Ezequiel interveio com a sua voz de adolescente, que mais parecia um latido:
- Quetzalcoatl! Sim, é agora um deus na flor da idade, e muito bem constituído.
- Dizem isso! Imagine-se! - exclamou Juana.
- Aqui é que diz - volveu Ezequiel. - Está escrito no segundo hino.
- Ora lê, Júlio.
E Júlio, já sem nenhuma relutância, pegou noutro papel.
"Eu, Quetzalcoatl, do México, fiz a viagem mais longa de todas.
Para além da parede azul do céu, para além do Sol, através da planície de trevas onde as estrelas se desenvolvem como árvores, como árvores e arbustos, muito longe no coração de todos os mundos, ao nível da Estrela da Manhã...
E no coração de todos os mundos esperavam aqueles cujas faces não pude ver. E em vozes como abelhas zumbindo murmuravam entre si: "Eis Quetzalcoatl que encaneceu ateando o fogo da vida. Vem só, e devagar."
E então, com mãos que não pude ver, eles pegaram nas minhas mãos, e nos seus braços que não pude ver morri por fim.
Mas, depois de morto, não deitaram fora os meus ossos, nem me lançaram aos quatro ventos, nem aos seis. Não, nem sequer ao vento que sopra para o meio da terra, nem ao que sopra para cima como um dedo que aponta eles me entregaram.
Morreu, disseram, mas não se destruirá.
Tiraram óleo das trevas e ungiram-me a testa e os olhos, os ouvidos, as narinas e a boca, o peito, o ventre e as minhas partes secretas, adiante e atrás; e a palma das mãos, e os joelhos, e a planta dos pés.
Por fim, ungiram-me a cabeça com o óleo tirado das trevas. E então disseram: Está confirmado. Deixemo-lo agora.
Deixaram-me na fonte que borbulha sombriamente do coração do mundo, longe, para além do Sol. E ali estive eu, Quetzalcoatl, em consolador esquecimento.
Dormi um longo sono, e não sonhei.
Até que uma voz chamou: - Quetzalcoatl!
Perguntei: - Quem é?
Não houve resposta, mas a voz repetiu: - Quetzalcoatl!
Onde estás? - disse eu.
Não estou aqui nem ali. Sou tu mesmo. Levanta-te.
Tudo pesava sobre mim, como uma pedra tumular de trevas.
E eu disse: - Sou velho. Como posso afastar esta pedra?
Como é que tu és velho se eu sou novo? Eu desviarei a pedra.
Senta-te.
Sentei-me, e a pedra rolou pelos abismos do espaço.
Falei então comigo: - Sou novo. Mais novo do que os novos, mais velho do que os velhos. Desabrochei como uma flor no caule do tempo, encontro-me no centro da flor da minha natureza humana. Não sofri com o desejo de romper o botão nem ansiei pelos longes como a semente que flutua no céu. Abriu a corola da minha floração, no meio oscilam as estrelas. A minha haste mantém-se no ar, as raízes mergulham nas trevas, o sol não é mais do que uma taça} cheia de mim.
Não sou criança nem velho, sou a flor desabrochada, sou novo.
Levantei-me, estendi os membros e olhei em volta. Vi o Sol por baixo de mim, tal um pássaro ardente pairando ao meio-dia sobre os mundos. E o seu bico era comprido e muito aguçado.
E ouvi uma voz dizer: - Oh, Quetzalcoatl! Esqueceram-te! Esqueceram a serpente emplumada! A serpente-ave silenciosa! Já ninguém pergunta por ti.
E eu respondi: - A serpente do meio da terra dorme nos meus rins e no meu ventre, a ave do ar exterior empoleira-se-me na cabeça, roça o bico no meu peito. Mas sou o senhor de um e outro. Um deus novo, com novos membros e vida, e a luz da Estrela de Alva nos olhos.
Sou Quetzalcoatl, estrela entre o dia e a noite.
Houve profundo silêncio quando Júlio acabou de ler.

XVI
Nas tardes de sábado, emergiam da leve bruma, a oeste, barcaças negras de grandes velas quadradas. Vinham de Tlapaltepec, com chapéus de palha, mantas e loiça de barro; de Ixtlahuacan, Jaramay e Las Zemas, com esteiras, madeira de construção, carvão e laranjas; de Tuliapan, Cuxcueco e San Cristóbal com melancias, tomates, mangas e legumes; e carregamentos de tijolos e de telhas, e mais carvão e madeira das montanhas que se elevam na outra banda do lago.
Ao sábado, Kate saía sempre por volta das cinco horas para assistir à descarga dos barcos na claridade da tarde. Gostava de ver os homens a correrem nas pranchas e a amontoarem na areia seca as melancias que iam transportando - melancias escuras e de ventre pálido, como animais estranhos. E os tomates, lançados numa poça da margem, flutuavam na água como rolhas vermelhas enquanto as mulheres os lavavam.
Os tijolos eram empilhados junto do antigo molhe. E chegavam burros, para levar tudo aquilo, enterrando as patas na areia e agitando as orelhas compridas.
Os carregadores azafamavam-se de volta das barcaças de carvão, andavam cá e lá com sacas de serapilheira.
- Quer carvão de lenha, niña - perguntou um deles, o mesmo homem que trouxera a mala de Kate desde a estação até casa.
- Qual é o preço?
- Vinte e cinco reales duas sacas.
- Ofereço vinte.
- Pois sejam vinte, señorita. E paga-me dois reales pelo transporte?
- O negociante é que paga o transporte - redarguiu Kate. - Mas dar-lhe-ei vinte centavos.
O homem afastou-se, descalço, de pernas à vela, com duas sacas de carvão às costas. Os mexicanos carregam pesos enormes e com ar de que lhes não custa nada.
Cestos de goiabas, de limas e de limões; cestos de mangas, de laranjas, de cenouras; tabaibos em grande abundância, algumas batatas nodosas, cebolas achatadas e dum branco nacarado, abóboras verdes e mosqueadas como rãs... Era um espectáculo curioso, o desfile de cestos, desde a praia até à igreja.
Costumavam descarregar mais tarde a loiça de barro: jarros bojudos, cântaros dum lindo tom vermelho, tachos envernizados e com ornatos brancos e pretos, frigideiras para as tortillas.
Na margem ocidental, corriam homens com uma dúzia de largos chapéus sobrepostos, o que lhes dava um aspecto de pagodes ambulantes. Outros levavam huaraches finamente tecidas e sandálias de correias, e outros ainda rimas de serapes negras com desenhos cor-de-rosa.
Era fascinante. E, contudo, pesava no ar uma sensação de soturnidade. Aquela gente vinha à feira como para um combate; não pelo gosto de vender mas para fazerem concorrência uns aos outros. Luta surda, que se desenrolava entre eles e o comprador eventual - estranho e sombrio rancor sempre presente.
Quando, ao pôr do Sol, tocavam os sinos da igreja, já a feira começava a funcionar. Nos passeios de volta da praça estavam os índios sentados junto das suas mercadorias: pilhas de chapéus, pares de sandálias em fileira, montes de melancias, um estendal de botões de punho e de bugigangas a que chamavam novedades, tabuleiros cheios de bolos. E a todo o instante chegava gente de longe com os seus burros carregados.
Contudo, jamais se ouvia um grito, nunca uma voz se elevava. Nada dessa animação, desse clamor das feiras do Mediterrâneo. Sempre o atrito pesado da vontade, tal uma mó de pedra triturando de contínuo o espírito.
Ao cair da noite os vendedores acendiam as suas lanternas de estanho, e as chamas bailavam nas faces morenas dos homens sentados no chão. Nunca solicitavam o comprador, não lhe mostravam as mercadorias; nem para ele olhavam. Dir-se-ia que o rancor latente sufocava o interesse de vender.
Às vezes, Kate achava a feira mais alegre; mas na maior parte das ocasiões sentia-se como que oprimida por um peso invisível, e a sua vontade era fugir dali, daquele mundo fúnebre.
Corriam boatos de nova revolução e na praça andavam cá e lá soldados armados de punhais e pistolas, de chapéu desabado e com o tipo selvático dos indígenas do Norte. Passeavam dois a dois, falando no seu dialecto, e pareciam mais estrangeiros em Sayula do que a própria Kate.
As barracas de petiscos estavam brilhantemente iluminadas. Viam-se homens sentados nas tábuas, bebendo caldo e comendo com os dedos alimentos escaldantes. Chegava o leiteiro a cavalo, com duas grandes bilhas de leite suspensas da frente da sela. Abria caminho lentamente através do povo, em direcção às barracas. Parando aí, e sem se apear, despejava o leite duma das bilhas na vasilha do freguês. Depois, sempre a cavalo, engolia a sua ceia: uma escudela de caldo e um prato de tamales, ou de tortillas com picado de carne bem apimentada. De roda dele andavam os peóns. Soavam violas quase em surdina. Fendia a multidão um carro vindo da cidade, a abarrotar de raparigas e rapazes, de papás e de meninos.
Que fervilhar de vida por cima do clarão das tochas pousadas no solo! Deslizava lentamente o rio de chapéus e de rebozos. A entrada do hotel resplandecia, iluminada pela electricidade. Moças citadinas exibiam vestidos de organdi branco, vermelho ou azul. Cantavam homens a meia voz. Todo o barulho parecia sufocado, contido.
Estranha impressão de sufocamento, força sombria e negativa da alma dos peóns! Quase inspirava dó ver as esbeltas raparigas de Guadalajara, tão bonitas nos seus vestidos vaporosos, a passearem de braço dado para trás e para diante, procurando despertar a atenção de alguém. E aqueles homens só exalavam o vapor negro da negação, que talvez não fosse senão ódio. Pareciam empestar o ar com a sua hostilidade surda.
Sim, Kate chegava a ter pena dessas mocinhas bonitas, de uma beleza de flor de papel, tão desejosas de serem admiradas e tão desprezadas afinal.
De repente, soou um tiro. Num instante toda a gente se pôs de pé, correu para as ruas, enfiou-se nas lojas. Novo tiro. No outro lado da praça, que se esvaziava rapidamente, Kate viu um homem sentado num banco desfechando a pistola para o ar. Era um patife da cidade, e estava meio bêbado. O povo conhecia-o; seria capaz de baixar a arma e disparar à toa sobre a multidão. Por isso todos abandonavam a plaza e se encafuavam onde podiam.
Mais dois tiros, pum, pum, ainda para o ar. No mesmo momento emergiu um oficial da rua sombria onde ficava o posto militar e correu direito ao bêbado, que, de pernas estiradas, brandia a pistola.
Antes sequer de tomar fôlego, dava-lhe em cada face uma bofetada quase tão sonora como os tiros e arrancava-lhe a arma da mão.
Dois dos soldados do Norte acorreram então e agarraram o homem pelo braço. O oficial disse-lhes qualquer coisa, e eles, depois de fazerem continência, afastaram-se com o prisioneiro.
A multidão voltou a encher a praça, despreocupadamente, e Kate sentou-se no banco, com o coração a bater. Viu o preso passar debaixo duma lâmpada, com um fio de sangue a escorrer-lhe na cara. Juana, que fugira, reapareceu sem demora e, pegando na mão de Kate, disse-lhe:
- Olhe, niña! É o general!
Kate levantou-se, surpreendida. O oficial estava à sua frente e cumprimentava-a.
- Don Cipriano! - exclamou ela.
- O próprio. Aquele ébrio assustou-a?
- Não muito. Foi mais o sobressalto... Não senti má intenção da parte do homem.
- Pois não. Estava simplesmente embriagado.
- Bem... São horas de eu voltar para casa.
- Posso acompanhá-la?
- Se quiser...
Cipriano postou-se ao lado de Kate e ambos contornaram a igreja para alcançar a borda do lago. A Lua brilhava por cima da montanha, soprava vento fresco, mas não agreste, vindo do ocidente. Viam-se luzes nos barcos acostados, umas exteriores, outras interiores, sob o toldo de lona. As mulheres preparavam a ceia.
- Linda noite! - exclamou Kate, respirando fundo.
- De Lua quase cheia - acrescentou Cipriano.
Juana ia-lhes no encalço e, atrás dela, seguiam dois soldados de chapéu desabado.
- Aqueles soldados vêm a escoltá-lo? - perguntou Kate.
- Julgo que sim.
- Este luar - disse ela, voltando ao assunto anterior - não é suave e amigo como o de Inglaterra ou da Itália.
- Contudo é do mesmo planeta - replicou o general.
- Mas o luar é diferente na América. Não nos torna felizes como na Europa. Dá impressão de que nos quer mal.
Seguiu-se uma pausa.
- Talvez haja na señora algo de europeu que ofenda a nossa lua mexicana - observou então Cipriano.
- Mas eu vim cá de boa fé.
- Boa fé europeia. É possível que não seja igual à boa fé mexicana.
Kate ficou calada, quase estupefacta.
- Que ideia, a vossa lua a protestar contra a minha presença!
- comentou, por fim, rindo ironicamente.
- Que ideia protestar contra a lua mexicana! - replicou ele.
- Mas eu não protestei!
Tinham chegado à esquina da rua de Kate. Na volta, havia um bosquete de árvores e debaixo delas, por trás da sebe, algumas cabanas de colmo. Muitas vezes Kate sorria ao ver o burro a espreitar por cima do murinho de pedra, o carneiro preto de chifres recurvos amarrado a uma árvore e o garoto seminu correndo a esconder-se sob a cortina de espinheiros.
Kate e Cipriano sentaram-se na varanda da Casa das Cuentas. Ela ofereceu-lhe um vermute, mas ele recusou.
Conservaram-se silenciosos. Só se ouvia o débil pip-pip do motor eléctrico, próximo da estrada. Então, por trás das bananeiras, cantou um galo em voz forte e áspera.
- Que disparate! - disse Kate. - Os galos não costumam
cantar a estas horas.
- Só no México - replicou Cipriano, rindo-se.
- Sim, só aqui...
- É muito agradável a sua casa, o seu pátio - disse Cipriano.
Kate ficou calada.
- Não gosta? - perguntou ele.
- Gosto mas... não tenho nada com que me entretenha, compreende? As criadas não me deixam mexer. Se varro o quarto, olham-me embasbacadas, repetindo: Que niña! Que niña! Exactamente como se eu estivesse a fazer o pino para as divertir. Limito-me a coser, embora não me interesse pela costura. Que representa
isto numa existência?
- E lê! - disse Cipriano relanceando um olhar pelas revistas
e pelos livros.
- Mas é tudo tão estúpido, tão falho de vida o que se encontra
nos livros e nos jornais!
- Que gostaria então de fazer? Diz que a costura lhe não interessa... As mulheres de Navajo, quando tecem as mantas, deixam
na ponta um buraquinho para a alma sair; não tecem a sua alma juntamente com a manta. Sempre me pareceu que a Inglaterra tecia a alma nas suas fábricas, e em tudo o que fazia, sem deixar o buraco para ela sair... Por isso toda a sua alma está agora nas mercadorias e em mais nenhuma parte.
- Mas o México não tem alma - redarguiu Kate. - Engoliu a pedra do desespero, como diz o hino.
- Acha? Pois não sou da sua opinião. A alma é uma coisa que se faz, como um desenho num tecido. É muito bonito enquanto as lãs cruzam e entrecruzam os seus fios e as suas cores diversas, e que o desenho aparece a pouco e pouco. Mas, uma vez acabado, perdeu o interesse. O México ainda não começou a tecer o desenho da sua alma. Ou principiou agora... com Ramon. Não acredita em Ramon?
Kate hesitou antes de responder.
- Em Ramon, sim. Mas não acredito que aqui, no México, surtam algum efeito as suas tentativas - murmurou, lentamente.
- Ele está no México e no México deve tentar. Porque não faz outro tanto?
- Eu?
- Sim, a señora. Ramon não crê em deuses sem mulheres, conforme diz. Porque não há-de ser a mulher do panteão de Quetzalcoatl? A deusa?
- Eu, uma deusa no panteão mexicano! - exclamou Kate, soltando uma gargalhada.
- Porque não?
- Nem sequer sou mexicana!
- Daria muito bem uma deusa, no meu panteão e no de Ramon.
Ardia na face de Cipriano uma chama de desejo, enquanto ele a fitava de olhos brilhantes; espécie de ambição intensa de que ela era em parte o objecto.
- Não me sinto com propensão para deusa de templos mexicanos - protestou Kate. - Acho o México um tanto assustador. Don Ramon é extraordinário, mas receio muito que o aniquilem.
- Ajude-nos a impedir isso.
- Como?
- Case comigo. Queixa-se de não ter nada que fazer. Pois bem; case comigo e auxilie-nos. Ramon diz que necessitamos de uma mulher. Seja essa mulher e terá muito que fazer.
- Mas não posso auxiliar-vos sem casar? - redarguiu Kate.
- Como? Não é possível.
E Kate sentiu que ele falava verdade.
- É que... não sinto impulso para o matrimónio... consigo... E, sendo assim, porque hei-de aceder?
- Porque não?
- Para lhe ser franca, não me sinto bem no México. Os olhos negros deste povo fazem-me arrepiar a pele e oprimir o coração. Emana do país certo horror, e não quero horror na minha alma.
Cipriano calava-se, longínquo, imperscrutável. Kate não lhe adivinhava os pensamentos, só lhe via como que uma nuvem sombria pairando-lhe no rosto.
- E porque não? - disse ele por fim. - O horror é qualquer coisa de verdadeiro. Porque não há-de haver um pouco de horror reunido a todo o resto?
Fixava-a de expressão grave, e parecia exercer nela forte pressão moral.
- Mas... -balbuciou Kate.
- É natural que sinta também certo horror pela minha pessoa... E talvez eu o sinta igualmente por si, pelos seus olhos claros, pelas suas mãos brancas e fortes. Todavia, isto é bom, é agradável:
Kate olhava-o, pasmada; a sua vontade era fugir, fugir daquele
país deprimente.
Cipriano continuou:
- Deve habituar-se a ter na sua vida uma parcela de medo e uma parcela de horror. Case comigo e conhecerá outras coisas muito diferentes. A pitadinha de horror é como o gergelim nos bolos, dá sabor à existência.
Falava com estranha lógica, observando-a com olhos cintilantes. O seu desejo, embora físico, dir-se-ia impessoal, sem objectivo. E Kate, perante ele, era como se tivesse outro nome e circulasse num mundo diverso; como se se chamasse, por exemplo, Itzpapatotl e houvesse nascido em qualquer região desconhecida.
Contudo, ele impunha-lhe a sua vontade.
Kate estava anelante de pasmo, porque Cipriano lhe fizera ver a possibilidade física de o desposar, ideia que até aí jamais lhe passara pela cabeça. Mas não seria ela própria, a verdadeira Kate, quem casaria com Cipriano. Seria outra mulher, o ser desconhecido que habitava dentro dela.
Irradiava do general uma paixão secreta e jubilosa.
- Não creio que me seja possível - disse Kate.
- Experimente e logo verá.
Sentindo frio, a irlandesa foi ao quarto buscar um abafo e regressou envolta num xaile espanhol de tom castanho, profusamente bordado de seda cor de prata. Enrolava nervosamente os dedos nas longas franjas escuras.
Na realidade, achava Cipriano sinistro, quase repelente. Não queria, contudo, pensar que estava simplesmente com medo, que lhe faltava coragem... Ficou sentada, de cabeça pendida. A luz incidia-lhe nos cabelos sedosos e no bordado prateado do xaile, que ela cingia aos ombros como as índias usam os rebozos. Cipriano observava-a, e ao seu xaile sumptuoso.
- Então? - disse ele de repente. - Quando se realiza?
- O quê - replicou Kate, verdadeiramente assustada.
- O nosso casamento.
Olhou-o, espantada de ele ter ido tão longe. Mas nem nesse momento sentiu ânimo para o repelir.
- Não sei - respondeu.
- Em Agosto, por exemplo? No dia 1 de Agosto?
- Não quero fixar nenhuma data.
Subitamente, a tristeza, a cólera latente nos índios dominou Cipriano. Sufocando, porém, o acesso, perguntou com fingida indiferença:
- Quer ir amanhã a Jamiltepec? Ramon deseja conversar consigo.
- Parece-lhe que deva ir?
- Sim. Iremos ambos de automóvel, amanhã de manhã. Está combinado?
- De facto, gostaria de tornar a ver Don Ramon.
- Esse não lhe mete medo? Não lhe inspira o menor horror, hem? - volveu Cipriano com um sorriso subtil.
- Não, mas Don Ramon não é bem mexicano.
- Não é bem mexicano?
- É mais europeu.
- Que ideia! Pois olhe que para mim é o México personificado.
Kate ficou uns momentos calada, a reflectir, até que declarou:
- Irei a Jamiltepec no barco de remos, ou então na lancha de motor do Alonso. Em qualquer caso estarei lá amanhã por volta das dez.
- Muito bem - disse o general, pondo-se de pé.
Depois de ele partir, Kate ouviu um tambor soando na plaza. Devia haver ali nova reunião dos Homens de Quetzalcoatl, mas não sentia desejo nem coragem de sair outra vez nessa noite.
Foi-se deitar, e ficou estendida às escuras. Pelos interstícios das janelas via a brancura do luar e através das paredes ouvia a pulsação do tambor. Tudo aquilo a assustava e a oprimia. Tinha de fugir... Faria as malas à pressa e desapareceria dali. Talvez tomasse o comboio até Manzanillo e daí embarcasse para a Califórnia, Los Angeles ou San Francisco. Fugir, voar para uma terra de homens brancos onde pudesse de novo respirar livremente. Que bom! Sim, eis o que devia fazer.
A noite adensava-se. Cessara o som de tambor. Kate ouviu Ezequiel regressar a casa e deitar-se na esteira diante da porta. Só se ouvia a voz rouca dos galos cantando ao luar. No quarto, como o riscar dum fósforo, surgia aqui e ali a claridade esverdeada dum pirilampo.
Inquieta, acobardada, Kate acabou por adormecer. E foi um
sono profundo.
Inesperadamente, ao acordar na manhã seguinte, experimentou uma sensação de força. Eram seis horas, o sol infiltrava riscos de oiro através das fendas do postigo. Abrindo a janela que deitava para a rua, olhou através da grade de ferro para o caminho sombreado, e, por cima do muro, para as folhas de bananeira, franjadas, dum verde translúcido, e ainda para a cabeça desgrenhada das palmeiras altas e para as torrres geminadas da igreja, coroadas da cruz grega de quatro braços iguais.
Na rua já havia animação: lentamente, em direcção ao lago, sob a azulada sombra da parede, avançavam algumas vacas enormes; um bezerro de grandes olhos e espírito aventureiro foi, pulando, contemplar a erva verde e as flores através do portão gradeado. O peón que o seguia ergueu ao ar os dois braços, num gesto silencioso, e o bezerro afastou-se dali. Só se distinguia o rumor do tropear do gado.
Passaram depois dois rapazes que tentaram com grande esforço puxar um toiro novo para o lago. O animal sacudia as ancas aguçadas e atirava coices a que os seus condutores se esquivavam. E, se estes lhe batiam no lombo, dava-lhes marradas com a sua cabeça romba de novilho. Naquele estado de semifúria em que os índios caem quando lhes opõem resistência, os rapazes lançaram mão do recurso habitual: desviaram-se do animal, começaram a arremessar-lhe pedras.
- Não lhe atirem pedras! - gritou Kate da janela. - Conduzam-no como devem!
Sobressaltaram-se como se o céu acabasse de se abrir, largaram as pedras e foram com ar vexado atrás do touro, que desatara a correr e se afastava aos pinotes.
Surgiu uma velha defronte da janela oferecendo um prato de folhas novas de cacto, picadas, pela soma de três centavos. Kate não era grande apreciadora de cacto como legume, mas sempre comprou. Um velhote apresentou um frango entre as grades que o separavam de Kate.
- Vá ao pátio - disse ela.
E fechou a janela para a rua, porque a invasão começara. Esta, porém, continuou noutro lado.
- niña! niña! - chamou a voz de Juana. - O velho diz que a niña compra o frango. É verdade?
- Quanto custa? - gritou Kate, enfiando o roupão.
- Dez reales.
- Ah, não! - disse Kate, escancarando as portas que deitavam para o pátio e aparecendo com o seu leve roupão cor-de-rosa pálido bordado de flores brancas. - Não dou mais do que um peso.
- Um peso e dez centavos - pediu o velho, balançando a ave na mão. - É um galo bonito e gordo.
Estendeu-o a Kate, para que visse como era gordo. Ela, contudo, fez-lhe sinal que o entregasse a Juana. Juana pegou nele e fez uma careta.
- Não pago mais de um peso - repetiu Kate.
O homem esboçou um gesto de assentimento, recebeu o dinheiro e desapareceu como uma sombra. Concha, que, entretanto, se aproximara, agarrou por sua vez no frango e logo declarou com desprezo:
- Está muy flaco.
- Põe-no na capoeira - disse Kate. - Vamos deixá-lo engordar.
O pátio estava agradável, com sol e sombra. Ezequiel enrolara a sua esteira e fora-se embora. Na ponta dum arbusto ostentavam-se enormes cardeais cor-de-rosa. Flutuava no ar o leve aroma de rosas bravas. As mangueiras pareciam mais sumptuosas de manhã, com os seus frutos pendentes das folhas bronzeadas.
- Está muy flaco - repetia Concha, enquanto levava o frango para o galinheiro, debaixo das bananeiras. - É só pele e osso.
Todas três observaram interessadas a entrada do galo novo na capoeira, onde já existiam algumas aves. O outro, mais velho e mais antigo na casa, refugiou-se no extremo oposto e olhou para o recém-vindo com ar ameaçador. O muy flaco ficou encolhido num canto. De repente, distendeu-se e fez ouvir um cocorocó agudo, eriçando de modo agressivo as penas avermelhadas. O galo antigo movia-se inquieto, preparando a vingança. As galinhas é que não ligaram nenhuma importância ao intruso.
Kate riu-se e voltou para o quarto, onde se vestiu ao esplendor da manhã. Diante da janela passavam mulheres silenciosas, com o cântaro de barro ao ombro. Iam buscar água do lago. Levavam sempre o braço por cima da cabeça, para segurar a bilha no outro ombro, o que lhes dava um aspecto contorcido, muito diferente do porte erecto das mulheres que transportam água na Sicília.
- niña! niña! - gritava Juana lá fora.
- Espera um instante - disse Kate. Era outro hino de Quetzalcoatl.
- Veja, niña, niña, o novo hino de ontem à noite. Kate pegou no papel e sentou-se na cama para o ler.
Quetzalcoatl baixa o olhar para o México. Riu-se Quetzalcoatl ao ver o Sol dardejar sobre ele raios ferozes.
Ergueu a mão, e com a sua sombra susteve o Sol.
Assim ultrapassou o astro amarelo que se contorcia como um
dragão.
E, tendo-o ultrapassado, viu a terra a seus pés.
E viu o México, tal uma mulher morena reclinada com os seus seios de pontas brancas.
Aproximou-se, surpreendido, e contemplou-a.
Contemplou os seus comboios e os seus automóveis.
As suas cidades de pedra e as suas cabanas de colmo.
E disse consigo: - Na verdade isto é estranho.
Sentou-se no côncavo duma nuvem e viu os homens a trabalharem nos campos vigiados por estrangeiros.
Viu os homens a cambalear, ébrios de aguardente.
Viu as mulheres que não eram limpas.
Viu o coração de todos, corações negros, pesados com a pedra da ira.
E disse consigo: - Estranho povo, este que encontrei.
Inclinando-se para fora da nuvem, chamou então:
Olá! Olá! Mexicanos! Olhai um instante para mim.
Voltai os olhos para este lado, Mexicanos!
Eles, porém, não olhavam.
Olá, Mexicanos! Olá!
Decerto se tornaram surdos, pensou.
De modo que soprou o seu hálito na face deles.
Mas no peso da estupefacção nenhum deu por isso.
Olá! Belo povo!
Corria uma estrela cadente como cão branco numa planície.
Ao som do seu assobio veio tombar-lhe na mão.
Na sua mão estava e na sua mão não se extinguiu.
Era a pedra da mutabilidade.
Fê-la saltar na palma e com ela brincou.
Então viu o lago e deixou cair a estrela,
Que mergulhou na água.
Dois homens levantaram a cabeça
Olá! Mexicanos, disse ele. Acordastes ambos?
E riu-se, e um deles ouviu-o rir.
Porque ris? - perguntou o homem a Quetzalcoatl.
Oiço a voz do meu primeiro homem perguntando-me porque rio?
Olá, Mexicanos! É divertido
Vê-los tão sombrios e tão pesados.
Primeiro o homem do meu nome! Escuta-me!
Eis a minha insígnia.
Prepara um lugar para me receber.
Despeja os templos das suas imagens.
Ao sétimo dia, que todo o homem se lave e unte a pele com óleo.
Que não tenha bichos a passear-lhe no corpo nem na sombra
dos cabelos".
E o mesmo quanto às mulheres.
Diz-lhes que são todos insensatos e que me rio deles.
A primeira coisa que fiz. ao vê-los foi rir-me à sua custa.
Porque se assemelham a rãs com pedras na barriga, sem poderem saltar.
Diz-lhes que se desembaracem das pedras.
Que se libertem do peso que os tolhe e os enche.
Ou eu os arrasarei a todos.
Abalarei a terra e tragá-los-ei, com as suas cidades.
Enviarei sobre eles fogo e cinzas.
O fragor do trovão transformará o seu sangue em leite corrompido.
E eles derramarão sangue corrupto e pestilento.
Os próprios ossos se desfarão em pó. Diz-lhes isto, primeiro homem do meu nome. Porque a Lua e o Sol tudo vêem com olhos brilhantes. E a Terra está pronta a sacudir as pulgas. E as estrelas estão prontas a lançar pedras aos homens. E o ar que sopra com suavidade nas narinas das criaturas está pronto a soprar com violência, para que todos pereçam. As Estrelas e a Terra, o Sol, a Lua e os ventos Preparam de roda de vós a dança guerreira, ó homens! Iniciá-la-ão quando eu der o sinal. Porque o Sol, as Estrelas, a Terra e as próprias chuvas estão cansadas
De impelir e rolar até aos vossos lábios a substância da vida.
E dizem:
Acabemos com essas tribos de homens fedorentos, com essas
rãs que não sabem saltar.
com esses galos que não sabem cantar,
com esses porcos que não sabem grunhir,
com essa carne que cheira mal,
com essas palavras vãs,
com essa vérmina do dinheiro,
com esses homens brancos, e vermelhos, e amarelos, e pretos.
Não são brancos, nem vermelhos, nem amarelos, nem pretos,
Mas todos estão sujos.
É necessário uma limpeza em todo o mundo. Porque os homens são como vermes Que devoram a terra e infestam as chagas. Eis o que as Estrelas e o Sol, a Lua, e o vento e a chuva discutem entre si, prontos a atacar-vos. Por isso eu venho.
Para vos limpar por dentro e por fora, Para erguer a pedra tumular da vossa alma. Para vos preparar a serdes homens. E preparar-vos para outras coisas ainda.
Kate leu e releu o longo folheto, e a manhã radiosa pareceu encobrir-se duma obscuridade fremente. Tomou o café na varanda. As papaias dir-se-iam destilar gotas duma fonte invisível de vida inumana.
Parecia-lhe ver o impetuoso germinar do cosmos, despertando numa existência fantástica. Os homens não passavam de moscas verdes aglomeradas na ponta dos renovos. Era monstruoso o rolar e desenrolar da vida do cosmos, tal se o próprio ferro crescesse como líquenes nas entranhas da terra e, cessando de crescer, se preparasse para a morte. Porque o ferro e a pedra terminarão a sua vida quando a hora vier. E os homens são menos do que moscas, enquanto viverem apenas para o seu sustento. Parasitas sobre a face da terra.
Kate encaminhou-se para a beira do lago - inteiramente azul na claridade matinal. Na outra margem erguiam-se as montanhas escalvadas, mas em baixo, no sopé, luziam árvores e a mancha clara das aldeias.
Perto dela, contra a luz, cinco vacas metiam o focinho na água. Enchiam as suas bilhas mulheres ajoelhadas nas pedras. Em varas bifurcadas, fincadas na areia, secavam redes de pesca, e ali pousara um passarinho vermelho, como uma gota de sangue caída das artérias do ar.
Emergindo das cabanas de colmo sob as árvores, aproximou-se o garoto desalmado, o da ave aquática. Trazia qualquer coisa na mão fechada. Abriu-a ao chegar junto de Kate e apresentou-lhe na palma três pucarozinhos de barro: as ollitas que os nativos doutros tempos atiravam à água para os seus deuses.
- Muy chiquitas! - disse o pequeno na sua voz brusca. Compra-as?
- Não tenho dinheiro comigo. Amanhã.
- Amanhã? - repetiu o miúdo, como um tiro de pistola.
- Amanhã.
Ele perdoara a Kate, mas esta não lhe perdoara. Alguém cantava na frescura da manhã; som agradável, que se diria produzir-se por si mesmo.
com passos felinos, vagueava por ali um rapazinho armado de fisga. Mas o pássaro, que era como um pingo de sangue nas redes quase invisíveis, abriu as asas e desapareceu num voo fulgurante.
Kate conhecia essas manhãs à beira do lago. Faziam-lhe experimentar uma espécie de hipnose quase semelhante à morte. Destacavam-se pássaros rubros no verde tenro dos salgueiros. Passava o aquador com uma vara aos ombros e uma lata de água quente suspensa de cada lado. Vinha das fontes térmicas, descalço e de pernas ao léu, trotando em silêncio sob a sua carga, com o belo rosto moreno sombreado pelo chapéu de abas largas.
Emergiam da água cabecinhas negras, em grupos. Seriam cabeças? Ou seriam aves?
Kate sabia de antemão como o dia havia de correr. A pouco e pouco, o sol intensificava-se e a pouco e pouco a electricidade se ia acumulando, conforme se aproximava a tarde. Nas horas de calor a praia exalava um cheiro a lixo e a urina.
Tudo perdia a nitidez à claridade ofuscante, a atmosfera espessava-se e Kate sentia a electricidade premir-lhe a nuca tal um ferro quente. Aquilo entorpecia-a, como a morfina. Entretanto, por trás das montanhas, erguiam-se nuvens tais árvores brancas, e, enquanto a tarde desfalecia em silêncio, estendiam ramos negros no céu, afugentando a luz.
A meio da sonolência da sesta desencadeava-se a trovoada e
tombavam os aguaceiros.
Vinha a hora do chá, descia a tarde... Os últimos navios de vela esperavam que o vento rodasse. Este soprava de oeste, e os barcos que se dirigiam para leste já haviam partido. Mas os que pretendiam ir em direcção oposta, esperavam, esperavam, enquanto a água lhes marulhava sob o fundo chato.
A barcaça de Tlapaltepec aguardava até noite fechada. Costumava ancorar a alguns metros de distância, e, ao anoitecer, os seus passageiros desciam a praia para recolher a bordo e amontoavam-se em grupos à beira do lago.
Vinha ajudá-los a embarcar um indivíduo entroncado, de calças arregaçadas. Os homens postavam-se de costas à sua frente, de pernas abertas; e ele, baixando-se de repente, enfiava a cabeça entre as coxas daqueles, punha-se de pé, e avançava na água com a sua carga humana.
Quando se tratava de transportar uma mulher, agachava-se diante dela para que se lhe instalasse no ombro. com o braço direito rodeava as pernas da criatura que se lhe agarrava à cabeça, e assim a levava para bordo com a maior facilidade.
Em poucos minutos o barco ficava cheio. Debaixo do toldo, em que ardia uma lanterna, sentavam-se em esteiras, desdobravam mantas para se estenderem e dormir.
A vela tombava em pregas de volta do mastro. Provavelmente não partiriam antes da meia-noite. E então seria a rota para Tlapaltepec, com os seus caniços no extremo do lago, as suas praças mortas, as suas casas de adobe negro, os seus caminhos em ruínas, e o seu estranho silêncio tumular, como Pompeia...
Kate conhecia-o bem. Tão estranho e tumular esse silêncio, que a assustava e confundia.
Hoje, porém, não passaria toda a manhã a vaguear na praia. Devia ir a Jamiltepec numa lancha de motor, para visitar Ramon e conversar com ele a respeito da possibilidade do seu casamento com Cipriano.
Ah, como podia decidir-se a tal matrimónio e assim entregar à morte o corpo? Aceitar esse fardo de trevas, consentir em morrer antes da morte, em desaparecer enquanto ainda usufruía a luz do Sol?
Não. Antes fugir para os países de homens brancos.
Apesar de tudo, foi falar com Alonso e combinar com ele a questão da lancha.

CONTINUA

XIV
Veio a manhã, e toda azul, com uma frescura na atmosfera e uma luminosidade tão forte nas árvores e nas montanhas longínquas que os pássaros se espalharam no ar como botões de flores acabados de abrir.
Cipriano regressava a Guadalajara, de automóvel, e Carlota ia com ele. Kate preferiu voltar pelo lago.
Às vezes, Carlota representava verdadeira tortura para o marido. Parecia ter o poder de o lacerar até nas próprias entranhas. Não no espírito, não na alma, porém no seu "eu" emotivo, passional e aí o rasgava e o fazia sangrar interiormente.
Porque a amara, ainda se preocupava com ela; porque ela fora apaixonada, afectuosa, cheia de caprichos e até egoísta, uma vez por outra. E, na assiduidade dos seus cuidados, durante anos seguidos, Ramon havia conseguido estragá-la com mimos.
Entretanto, e gradualmente, modificara-se a natureza do homem. Não que ele deixasse de a estimar ou pretendesse outras mulheres. Esta atitude bem na podia ter compreendido; contudo, no íntimo de Ramon, existia uma força imperiosa, cega, que lhe ordenava se desfizesse do seu ser espiritual para o fundir no cadinho ardente donde sairia um ente novo, inteiramente novo.
Mas devia contar com a mulher. Carlota amava-o e isso, para ela, importava acima de tudo. Amava-o como a toda a humanidade e estava persuadida de ter razão.
Assim, sentia-se roubada, iludida. Porque não continuava o marido a ser bom, amável, benigno, quando procurava tornar o mundo mais benigno, mais amável e melhor?
A razão era esta: Ramon verificara que o mundo já dera tudo o que tinha a dar no caminho da bondade e do amor. Ir mais além seria o mesmo que atingir a perversidade. Chegara o momento duma lenta evolução. Qual fosse, não no sabia.
O sentimento do amor e esse, maior, da liberdade dos homens pareciam condensar-se de roda dele, como uma concha ou como um casulo. A velha lagarta do cristianismo evoluía para qualquer coisa diferente.
Para Carlota, tudo se resumia no amor dos filhos, do marido, do povo, dos animais, das árvores. Era a sua vida inteira, o seu Cristo, a sua Virgem Maria. Como renunciar, no fim de contas?
E deste modo continuava a amar Ramon e o mundo inteiro, firmemente, obstinadamente, de forma patética - e quase diabólica. Rezava por ele e consagrava-se a obras de caridade.
Ora esse amor, desviado do fluxo espontâneo, sujeito às oscilações imprevisíveis do Espírito Santo, acabou por se transformar em vontade. Amou então com a sua vontade, tal como é agora a tendência no mundo dos brancos. Saciou-se de caridade - essa bondade cruel.
A sua simpatia, a sua sedução pessoal, tudo isso a abandonou. Começou a estiolar-se, a endurecer. Rezando pelo marido, constantemente o censurava. Nela expirou a espontaneidade do ser, a vontade fez-se rígida e toda a sua pessoa se tornou numa vontade frustrada.
Depressa conseguiu atrair a si os filhos. Ramon era muito orgulhoso e estava muito aborrecido para poder lutar. Assim se tornaram só os filhos de Carlota. Que os guardasse para si!
Eram os filhos da sua carne de outrora. A nova não tinha descendência: provavelmente nunca a teria.
- Lembra-te - observara-lhe ele, com soturna lógica - que tu não amas senão com a tua vontade. Não aprecio o amor que sentes pelo teu Deus: é uma afirmação da tua vontade apenas. Não aprecio o amor que me consagras: é ainda do mesmo género. Não aprecio o amor que tens pelos teus filhos: se vir neles uma centelha do desejo de se libertarem, farei tudo para os salvar. Entretanto procede como melhor entenderes com o teu amor e a tua vontade. Mas fica sabendo que discordo. Discordo da tua insistência, do teu monopólio do sentimento, das tuas obras de caridade. Discordo por completo do teu teor de vida. Enfraqueces e vicias os pequenos. Não os estimas, domina-los com o teu amor-vontade. Um dia rebelar-se-ão. Chegarão a detestar-te. Não te esqueças destas minhas palavras.
Dona Carlota, ao ouvir isto, estremecera até nas fibras mais íntimas do ser. Mas foi à capela do Convento da Anunciação, e rezou. Tendo orado pelo marido, julgou adquirir uma vitória sobre ele, e voltou para casa com esse triunfo puro e frágil como a flor que desabrocha numa sepultura: a do seu marido.
Ramon, desde aí, começou a espiar-lhe a dedicação irritante e alvoroçada como se espiasse as manobras do seu pior inimigo.
A vida fizera a sua obra naquele ser humano: arrancara-lhe a espontaneidade, deixando-lhe apenas um querer obstinado. Na mulher morrera o deus, ou a deusa - ficando só misericórdia envolta no manto da vontade.
- Carlota - dissera-lhe o marido -, serias imensamente feliz se pudesses usar luto pesado... luto por mim! Não te darei esse gosto.
Ela relanceou-o estranhamente com os seus olhos castanhos-claros.
- Tudo está nas mãos de Deus - replicou, afastando-se a toda a pressa.
Agora, nessa manhã que sucede às primeiras chuvas, ei-la a aproximar-se do quarto de Ramon, onde ele estava sentado a escrever. Como na véspera, conservava-se nu até à cintura, apenas com umas calças de linho branco, muito largas, como de pijama.
- Posso entrar? - inquiriu nervosa.
- Entra! - respondeu o interpelado, descansando a caneta e levantando-se.
Havia só uma cadeira, que ele lhe ofereceu; mas Carlota foi sentar-se na cama ainda por fazer, como se considerasse ali o seu lugar natural. Ao mesmo tempo olhava-lhe o peito nu - também como se considerasse aquilo uma afirmação do seu direito natural.
- Parto com Cipriano, depois do almoço.
- Já o disseste.
- Os pequenos chegam daqui a três semanas.
- Bem sei.
- Queres vê-los?
- Se o desejarem.
- com certeza que desejam.
- Então trá-los cá.
- Achas que seria agradável para mim? - retorquiu ela, enclavinhando as mãos.
- Tu é que não me tornas a vida agradável, Carlota.
- E como o poderia fazer? Não ignoras que reprovo a tua atitude. Quando te escutei ontem à noite, achei que dizias coisas belas mas monstruosas. Sim, monstruosas! Até pensei: "Que faz este homem? Este homem que, mais do que nenhum, podia ser tão benéfico para o seu país e para a humanidade!"
- E então? Que faz ele?
- Sabe-lo muito bem! Ah, não tolero! Não és tu quem vai salvar o México. Cristo já o salvou.
- A mim afigura-se-me que não.
- Sim! Sim! E Ele é que te fez assim, um ser extraordinário que podia salvar em Seu nome e pelo Seu amor. Mas em vez disso...
- Em vez disso, Carlota, tento fazer outra coisa. Ora ouve-me: se Cristo, o verdadeiro, não foi capaz de salvar o México, o Anticristo da Caridade, e o socialismo, e os políticos, e as reformas acabarão por destruí-lo. Isto, só isto me impele a agir. Tu, Carlota, com as tuas obras de caridade e a tua misericórdia; e homens como Benito Juarez, com a sua Reforma e a sua Liberdade; e o resto do povo benevolente, políticos, socialistas e quejandos, cheios de piedade pelos homens, nos seus discursos, mas na realidade carregados de ódio (o ódio dos materialistas que não possuem pelos materialistas que possuem), todos vocês, enfim, representam o Anticristo. Até põem veneno no cálice da Eucaristia! Por esta razão é que eu saio da minha reserva natural. Não quero ver ninguém envenenado. Não me preocupo muito com as "grandes massas" mas não quero ninguém envenenado.
- E tens a certeza de não seres tu o próprio envenenador? Suponho que és.
- Pois vai supondo. Eu também suponho que tu, Carlota, ainda não alcançaste o desenvolvimento final da tua feminilidade: é uma coisa que faz diferença da antiga concepção.
- A mulher é sempre a mesma.
- Isso não. Nem sequer o homem.
- Em suma: que tencionas fazer? Que julgas que esse disparate do Quetzalcoatl nos pode trazer?
- Quetzalcoatl é uma palavra viva para esta gente. Nada mais. Tudo o que pretendo é que descubram os limites, eles da sua virilidade, elas da sua feminilidade. Os homens ainda não são bem homens, as mulheres ainda não são completas. São todos feitos de metades, de partes incoerentes, horríveis ou boas. Assim tu, Carlota, segundo creio. E o resto do mundo. Mas este povo não sabe defender a sua integridade, este nosso povo do México. Assim, tendo eu podido reter uma parte da minha natureza, para me servir de guia, compete-me auxiliá-lo a realizar também a sua.
- Hás-de falhar.
- Não. Aconteça o que acontecer, haverá nova vibração, novo apelo na atmosfera, nova resposta no coração de alguns homens.
- Trair-te-ão. Sabes ao menos o que o teu amigo Toussaint diz de ti? O futuro de Ramon Carrasco é apenas o passado da humanidade.
- Grande parte pertence, de facto, ao passado. Naturalmente
foi isso o que Toussaint notou.
- Nem os pequenos acreditam em ti. Por instinto, não acreditam. Quando fui visitá-los, o nosso filho Cipriano perguntou-me: "O pai continua com aqueles discursos tolos a respeito do regresso dos antigos deuses?" E acrescentou: "Oxalá acabasse com isso. Seria para nós uma vergonha se viesse para os jornais com essa história."
Ramon riu-se.
- As crianças são como gramofones. Falam conforme o disco que lhes põem. As mães e os professores transformam-nas em grafonolas, de modo que tudo quanto dizem é a reprodução exacta do disco por eles colocado... Talvez no tempo de Cristo as crianças não fossem tão exploradas pelos adultos...
De súbito, o sorriso apagou-se na face de Ramon e ele, levantando-se, apontou para a porta.
- Vai-te embora! - disse em voz baixa. - Vai-te. Já aspirei de mais o cheiro pernicioso do teu espírito.
Sentada na cama, Carlota fixava-o com olhos amedrontados e encolhia-se como se o braço estendido ameaçasse bater-lhe.
A cólera dissipou-se no semblante de Ramon e o seu braço tombou.
- No fim de contas não temos nada de comum - murmurou docemente. E, pegando no chapéu e no casaco, saiu para o terraço, separando-se dela de corpo e alma. Carlota deixou-se cair na cama e aí ficou tal um monte de cinzas, onde ardiam apenas as brasas da sua vontade.
Os olhos tinham um fulgor desusado quando se reuniu a Kate e a Cipriano.
Depois do almoço, Kate voltou para casa de barco. Ao partir da hacienda sentia estranha depressão - como se a sua vida devesse ali decorrer e não noutra parte.
Pela primeira vez, achou a casa vazia, banal de uma vulgaridade extrema.
- Ah, niña! Ainda bem que veio! Muita água caiu ontem à noite! Mas a niña estava em segurança na hacienda. Que bonita é a hacienda de Jamiltepec! E que boa pessoa é Don Ramon, não é? É muito cuidadoso com o pessoal. E a señora não podia ser mais simpática.
Kate sorriu, mas a sua vontade era responder-lhe: "Por amor de Deus, acaba com essa tagarelice e deixa-me sozinha."
Teve de suportar novamente a insolência calma e subtil, a intolerável nota de sarcasmo que em tudo transparecia - até no constante grito de Juana: niña! niña!
Durante as refeições Juana sentava-se no chão, a pouca distância de Kate, e falava, falava, fixando, todo o tempo, na patroa os olhos negros em que por vezes cintilava a ironia peculiar dos índios.
Kate não era abastada, possuía modestos rendimentos.
- Ah, a gente rica... - disse Juana.
- Não sou rica - volveu Kate.
- Não é, niña - insistiu a outra, com a sua voz caridosa e cantante, como a dum pássaro. - Então é pobre? - E, nesta conclusão, havia evidente ironia.
- Também não sou pobre. Nem rica nem pobre.
- Não é rica nem é pobre, niña! - repetiu Juana.
Para ela, as palavras não significavam nada. Para ela, que não possuía coisa nenhuma, Kate pertencia à classe mágica, a dos opulentos. E, bem no sentia Kate, no México era crime ser rico, estar classificado entre os ricos. Não propriamente um crime, mas uma extravagância. A classe rica era a classe extravagante, como os cães de duas cabeças ou vitelos de cinco pernas. Olhavam-na menos com inveja do que com a curiosidade dum antagonismo vivo, a curiosidade dos "normais" perante aqueles que o não são; o indolente mas forte e corrosivo escárnio dos índios, nascido daquela natureza de lava, contra tudo quanto destoa e sobe acima do nível pardacento desse solo vulcânico.
- É verdade, niña, que o seu país fica do outro lado? - perguntou Juana, apontando com o dedo para o chão, para as entranhas da terra.
- Não tanto - respondeu Kate. - A minha pátria é mais para ali - e esboçou um gesto pela superfície adiante.
- Ah, naquela direcção! - exclamou Juana. E olhou para Kate com subtil desconfiança, como se dissesse: "Que se pode esperar de gente que vem da terra, de través, como os grelos da hortaliça?"
- E é verdade que em certos sítios há pessoas só com um olho... aqui? - perguntou ela tocando no meio da testa.
- Não, não é verdade.
- Tem a certeza? Já esteve nessas terras?
- Sim. Visitei todos os países, e não existem semelhantes criaturas.
- Verdad! Verdad! - murmurava Juana cheia de espanto. - E no seu país só há gringos?
Queria dizer: não indivíduos como nós os mexicanos, sal da terra.
- São todos como eu - respondeu Kate friamente.
- como a niña E falam todos da mesma maneira?
- Sim, como eu.
- E são muitos?
- Muitíssimos.
- Jesus! - exclamou Juana, sobressaltada à ideia de que o Mundo inteiro estivesse cheio de seres assim tão extravagantes e risíveis. Concha, aquela selvagenzinha, olhava admirada, através da janela de grades, para a estranha fauna de brancos que visitavam a niña. E embasbacava-se sinceramente, enquanto ia fazendo as suas tortillas.
Kate desceu até à cozinha. A pequena achatava a massa de farinha de milho, comprada na plaza a oito centavos o quilo.
- niña! - bradou ela, com a sua voz roufenha. - Come tortillas?
- Uma vez por outra.
- Então coma agora uma! - E Concha estendeu a palma de mão trigueira, onde se via uma tortilla de limpeza duvidosa.
- Agora não.
Detestava essa pesada massa que parecia de gesso e sabia a lodo.
- Não quer? Não gosta? - retorquiu Concha, soltando uma risada estrídula e impudente. E deitou a torta rejeitada no prato onde se empilhavam as outras. Era daquelas pessoas que não comem pão, alegando que não apreciam, que não chega a ser alimento.
No terraço, Kate recostava-se na sua cadeira de baloiço, enquanto o sol se entornava sobre o quadrado verde do jardim, sobre a palmeira que abria à luz os seus enormes leques recortados, sobre os cardeais de flores vermelhas e sobre as laranjas dum tom escuro que pareciam transpirar de calor.
Aproximava-se a hora do almoço, furiosamente abrasadora: a hora da sopa quente e gordurosa, do arroz cheio de banha, do peixe frito, dos bocadinhos de carne guisada com legumes, dos cabazes de fruta onde se acumulavam mangas e papaias, frutos tropicais que não apetece comer quando há calor. Servia à mesa a pequena Maria, descalça, de vestido encarnado e cheio de rasgões. Era a mais simpática de todas. Quando Juana começava a falar interminavelmente, ela chegava-se para Kate e tocava-lhe no braço - uma, duas vezes. Se lhe não ralhassem, ficaria ali encostada ao ombro de Kate, contemplando-a numa expressão beatífica, e os seus grandes olhos pretos iluminavam-lhe o rosto infantil, picado das bexigas, vagamente imbecilizado. Mas Kate repelia logo o braço trigueiro e magro: a criança recuava uns passos, desaparecia-lhe o ar de beatitude, porém os olhos negros continuavam brilhando como que absortos num êxtase de réptil.
Concha acudia então, batia com o cotovelo na irmã e fazia qualquer observação brusca, ininteligível para Kate. Apagava-se a cintilação dos olhos negros e Maria começava a chorar, enquanto Concha irrompia em gargalhadas selváticas. Juana, suspendendo o fluxo de palavras, voltava-se para as duas filhas e fazia uma observação ineficaz. Há sempre uma vítima, vítima inevitável, e um inevitável algoz.
Horrível, horrível vácuo ardente das manhãs mexicanas. Pesava no ar um tédio tenebroso. Kate sentia-se perdida, e fugia então para o lago a fim de escapar à casa, ao pessoal.
Depois das chuvas haviam florido de rubro e azul as árvores dos jardins abandonados da margem. Súbitas flores tropicais, vermelhas e azuis. Maravilhosos salpicos de cor, brilhantes, fugazes como fogo-de-artifício.
E Kate, ao pensar nos espinheiros guarnecidos de branco das azinhagas da Irlanda, nas dedaleiras junto das rochas, nos tufos de urze e nas campainhas entrelaçadas, sentia desejos de voltar para o seu país e fugir daquele explendor tropical que nada lhe dizia ao coração.
No México, o vento soprava rijo, a chuva caía em torrentes, o sol queimava, entontecia... Terra seca, dura, ofuscante de luz implacável. Terra negra, cortada de relâmpagos, batida pela violência da chuva. Nunca temperada de nevoeiros; sem nenhuma doçura na atmosfera. Ou calor dissolvente ou frio de rachar.
E Kate sentia-se dominada pela cólera e pelo ressentimento. Sentada debaixo de um salgueiro, à beira do lago lia um romance de Pio Baroja repleto de "não, não, não"! - ich bin der Geist der stets verneint! Contudo, ela ainda estava mais cheia de fúria e de repúdio do que Pio Baroja. A Espanha não pode proclamar "Não!" como o pode o México.
Envolta na folhagem leve da árvore e instalada sobre a areia quente, Kate protegia-se o melhor possível do sol. Havia no ambiente um leve cheiro amoniacal. O lago estava tão opaco e imóvel que se diria invisível. A pequena distância, ajoelhavam-se na margem mulheres trigueiras, vestidas apenas com uma camisa molhada, com a qual se haviam banhado. Algumas lavavam roupa, outras, com o auxílio de cabaças, deitavam água nos cabelos e pelos ombros, sob a intensidade dos raios solares. À esquerda ficavam duas árvores enormes, uma sebe de bambus e cabanas de palha dos indígenas. Ali terminava a praia: quase até ao lago desciam as nesgas de terra dos índios.
Relanceando o olhar pela claridade ofuscante, Kate sentia-se isolada no próprio âmago da sombra, enquanto o mundo se movia nas partículas ínfimas daquele vazio resplandecente. Nesse momento descortinou um fedelho que avançava solenemente para a borda de água. Teria os seus quatro anos mas parecia mais corajoso do que um adulto. com a idade vem qualquer coisa de vulnerável que ainda não possuem essas crianças destemidas. Kate reconheceu o garoto pela camisa rubra esgarçada e pelos farrapos que eram as suas calças brancas de homenzinho. Reconheceu-lhe a cabeça redonda e escura, o andar rígido e vigoroso, os olhos grandes, o ar ousado de
animal bravio.
"Que terá ele apanhado?", disse ela de si para si, espantada para
o vulto que se mexia sob o ardor da luz.
Pendente do bracito, presa pelos pés, trazia uma ave lacustre que agitava debilmente as asas, uma dessas muitas que flutuam à superfície do lago, próximo da margem.
Para ali caminhava o petiz, segurando a ave de cabeça para baixo; junto do punho estreito do seu algoz, ela parecia grande como uma águia. Atrás corria outro garoto. Os dois pequenos chapinharam cerca de um metro nas ondas tépidas, à claridade muito viva do sol, e, inclinando-se gravemente, como homens sensatos, puseram o seu prisioneiro na água. A ave flutuou acolá, mas a custo avançava. Então os miúdos arrastaram-na como um trapo, por um cordel amarrado à perna.
Tão calmos, silenciosos e escuros, os rechonchudos filhos de índios! Duas figuras solenes, com esse frangalho de pássaro.
Kate voltou a vista para o livro, mal disposta; aquilo bulia-lhe com os nervos. Ouviu o som de uma pedra a cair na água. A ave estava no mesmo ponto; não havia dúvida de que ao cordel tinham amarrado uma pedra. Adejava e não saía dali.
E os dois tiranos, numa torva e calma volúpia, arremessavam seixos, com a sua pontaria certeira de índios ferozes, ao animal fraco e alvoroçado. Aquela migalha de gente, de camisa vermelha, parecia um guerreiro, de braço erguido para lançar o seu projéctil à vítima indefesa.
Num ímpeto, Kate correu para a praia.
- Feios meninos! Isso não se faz! Vão-se embora, seus desalmados! - gritou só de um fôlego.
O pequeno de cabeça redonda fixou nela as pupilas negras e em
seguida desatou a correr, seguido pelo companheiro.
Kate entrou na água e agarrou a ave quente e molhada, que ainda tentou bicá-la. Da perna pendia-lhe o pedaço de cordel e Kate, uma vez na praia, apressou-se a desatar o nó. A ave, do tamanho duma pomba, conservou-se imóvel na mão dela.
Depois de descalçar os sapatos e as meias, Kate olhou em volta e, não descobrindo vivalma nas imediações, levantou as saias e foi descalça através da água, quase caindo sobre as pedras. Junto à
margem era pouco profundo. Ela continuou a avançar, cambaleando, com uma das mãos a arregaçar as saias e a outra ocupada com a
ave, até que a água lhe chegou aos joelhos. Então poisou o animal
na superfície líquida e deu-lhe um leve impulso.
Ele, porém, ficou ali, a boiar como um trapo.
- Anda, mexe-te! Mexe-te! - exclamava Kate, incitando-o a nadar para o largo.
Mas ou não podia ou não queria. Fosse porque fosse, não se moveu.
Em todo o caso encontrava-se fora do alcance dos garotos. Kate tratou de voltar para baixo da árvore e fugir ao sol ardente.
Numa ira silenciosa, ora olhava para o lago ora para as cabanas dos índios imersas em sombra densa.
A ave mergulhava o bico na água e sacudia a cabeça. Estava a voltar a si... Mas não nadava. Deixava-se levar pelas ondas, e estas arrastá-la-iam até à praia.
- Palerma! - exclamou Kate nervosamente, concentrando todo o seu espírito no animal, com a pretensão de o sugestionar e o fazer afastar-se para longe.
Da planura cintilante do lago aproximavam-se dois companheiros, nadando apressados. O da frente avançou o bico para a ave inerte como se dissesse: "Olá! Então que é isso?" Mas logo se desinteressou e se reuniu ao camarada, no seu rumo para a margem.
Kate olhava com angústia para aquele farrapo coberto de penas. Não se animaria a seguir as outras duas aves?
Não! Ali continuou a boiar, limitando-se a sacudir a cabeça de vez em quando.
Kate leu mais umas linhas de Pio Baroja. Quando tornou a olhar já não viu a pobre ave. As outras duas andavam ligeiras entre os calhaus. Voltou a ler um pouco.
O que viu a seguir foi um rapazola de cerca de dezoito anos a descer a praia em largas passadas e, atrás dele, o fedelho de camisa vermelha. Kate sentiu um baque no coração.
As duas galinholas abriram as asas e, num voo baixo, desapareceram na luminosidade do lago.
Mas o rapaz de chapeirão e fato-macaco espreitava entre as pedras. Kate, no entanto, estava convencida de que a sua ave se afastara para o largo.
Não! Afinal, não. Pelo contrário, voltara para a margem, trazida pelas ondas.
O rapaz inclinou para a água os ombros largos, esses ombros de índio que por vezes Kate tanto detestava, e, estendendo o braço, agarrou no infeliz animal. Depois, segurando-o pela ponta duma asa, entregou-o ao garoto. Feito isso, tornou a atravessar a praia, muito satisfeito consigo mesmo.
Como nesse instante Kate odiou aquele povo, a sua vileza e crueldade, os seus ombros direitos, o peito alto e, acima de tudo, o andar emproado!
De cabeça um pouco pendida para a frente e olhos postos no chão, sem nunca voltar a cara para o lado de Kate, o rapaz dirigiu-se para a sombra das cabanas. E atrás marchava o miúdo, baloiçando a desgraçada avezita suspensa pela ponta duma asa. De vez em quando, virava a face morena e redonda e lançava a Kate um olhar vingativo e desconfiado, com medo de que essa mulher branca caísse sobre ele novamente.
Kate olhava-o através dos ramos roçagantes do salgueiro.
- Se eu pudesse, matava-te! - exclamou. Regularmente, como num maquinismo de relógio, o pequeno voltava a cara para trás, ao mesmo tempo que ia correndo para uma abertura da sebe, por onde o rapaz desaparecera.
Kate pensou se deveria, mais uma vez, ir salvar aquela ave desastrada. Mas para quê?
O país devia ter sempre a sua vítima. A América precisa duma vítima. Enquanto o mundo durar, esse continente estará dividido entre vítimas e carrascos. Para quê intervir?
Levantou-se, detestando por igual a ave imprudente e o garoto teimoso.
À beira de água amontoavam-se mulheres. Para oeste, sob o resplendor, erguiam-se as vivendas com o seu ar abandonado, e as torres gémeas da igreja como dois dedos levantados acima da chama rubra das árvores floridas e do negrume das mangueiras. Kate viu a praia de aspecto imundo e aspirou o cheiro do México, que se espalha ao calor, após as chuvas: excremento de homens e de animais, seco ao sol sobre a terra muito seca. E viu as folhas ressequidas, as folhas das mangueiras. E sentiu a atmosfera com o seu leve resíduo de fumo.
"Um dia virá em que eu partirei", disse consigo.
Sentando-se mais uma vez na varanda, escutou o clape-clape das tortillas, vindo do extremo do pátio, o som metálico, tão peculiar, dos pássaros, e percebeu que as nuvens já se acumulavam a ocidente, muito pesadas, engendrando os trovões. E compreendeu que não tolerava mais aquilo: o vácuo e a pressão, a horrível elementalidade do incriado. E o próprio sol, e a própria chuva, ambos estranhos, bárbaros. ! Meditou no olhar sombrio do garoto indígena: misterioso vácuo.
Ele não compreendia que a ave era um ser verdadeiro e vivo, com a sua vida própria. Isso, aquela raça jamais compreenderia. com os seus olhos escuros fitavam o mundo rudimentar onde os elementos são monstros cruéis, assim como o sol é monstruoso e é monstruosa a água torrencial da chuva, e a terra muito seca, ressequida.
E entre a monstruosidade dos elementos tremulam e pairam outras presenças: entes terríveis e rudes, gente branca, os gringos, poderosos como deuses, porém bárbaros, demoníacos. E seres estranhos como certas aves que flutuam no ar, e cobras que se arrastam no chão, e peixes que nadam e que mordem. Rude, monstruoso universo de monstros grandes e pequenos, nos quais o homem se detém por simples resistência e precaução, e nunca, nunca avança para sair das trevas que o rodeiam.

XV
A luz eléctrica em Sayula era tão incerta como tudo o mais. Em teoria, funcionava desde as seis e meia da tarde até às dez da noite. Mas não na prática. Muitas vezes recusava-se a aparecer antes das sete, ou mesmo antes das oito. Mas a pior partida era apagar-se justamente a meio da ceia, ou quando se estava a escrever uma carta. De repente, ouvia-se um estalo, e as trevas da noite mexicana envolviam tudo. E então corria toda a gente às cegas, em busca de velas e de fósforos, chamando uns pelos outros com vozes assustadas. Depois, a luz eléctrica tentava reviver, e via-se tremular nas lâmpadas uma incandescência rubra, sinistra. Todos retinham a respiração. Vinha ou não vinha? Havia ocasiões em que se apagava de vez. Noutras, retomava alento e reaparecia, embora não muito brilhante; contudo, mais valia isso do que nada.
A coisa piorou na estação das chuvas. Noite após noite, a luz falhava. E Kate sentava-se à claridade bruxuleante da vela, enquanto os relâmpagos revelavam as formas escuras das plantas existentes no pátio.
Numa noite dessas, Kate instalou-se na varanda, de costas viradas para a sala deserta onde luzia uma vela. De quando em quando, via os loendros e a papaia no jardim, iluminados pelo clarão dos raios que tombavam como uma chapada azul e silenciosa na escuridão de breu. Rumorejavam trovões ao longe, como jaguares esfomeados que rondassem o lago.
Por várias vezes o portão rangeu e soaram passos no saibro. Passos de alguém que dava "boa noite" a Kate e se encaminhava para as dependências de Juana, onde luzia a claridade frouxa de uma candeia de azeite através da abertura da janela. Em seguida, ouviu ela o murmúrio duma voz recitando ou lendo. E enquanto o vento soprava e a luz dos relâmpagos poisava como um pássaro azul sobre as plantas, aquilo continuou, juntando-se ao rumor das bagas que caíam da árvore das cuentas. Kate sentia-se inquieta e um tanto ao abandono. Percebia que algo de extraordinário se passava na residência da criada, qualquer coisa de secreto.
Mas, no fim de contas, a casa era sua, e tinha o direito de saber o que fazia o pessoal. Levantou-se da cadeira de baloiço e, seguindo pela varanda, deu a volta à sala de jantar, cujas portas que davam para o pátio já estavam trancadas.
No canto para além do poço, viu um grupo sentado no chão, do lado de fora da cozinha de Juana. As mulheres encafuadas nos rebolos, os homens de chapéu na cabeça e serapes nos ombros, todos olhavam para o interior da barraca, onde ardia a candeia e uma voz se fazia ouvir, lenta e monótona.
Ao sentirem os passos de Kate, viraram a cabeça e alguém preveniu os outros da aproximação dum intruso. Juana pôs-se de pé.
- É a niña! - exclamou. - Coitadinha, sozinha toda a noite... Venha cá, niña!
Os homens ergueram-se e Kate reconheceu entre eles o moço Ezequiel, que se descobriu à sua chegada. E ali se encontrava a recém-casada Maria del Carmen. E dentro da barraca, com a candeia pousada no chão, estava Júlio, marido daquela. Além deles, Kate viu Concha, a pequena Maria e um casal desconhecido.
- Ouvi uma voz - explicou Kate. - Não sabia que era você, Júlio... Como tem passado? Ouvi a voz e vim averiguar o que
acontecia.
Houve um instante de silêncio, que Juana quebrou.
- Fez bem em vir, niña, fez bem. Concha, traz uma cadeira
para a niña.
Concha levantou-se a custo e foi buscar a cadeirinha baixa que era a única peça de mobília de Juana, além da cama.
- Não incomodo? - perguntou Kate.
- Não, niña. É amiga de Don Ramon, não é verdade?
- Sou.
- Pois nós estamos... estamos a ler os hinos...
- Ah, sim?
- Os hinos de Quetzalcoatl - acrescentou Ezequiel com súbita arrogância.
- Então, continuem. Posso ouvir também?
- Pode, pode! A niña quer ouvir. Lê, Júlio.
Tornaram todos a sentar-se no chão, e Júlio instalou-se junto da candeia; mas baixou a cabeça, escondendo a cara na sombra do chapéu.
- Entonces! Anda, lê! - insistia Juana.
- Está com medo - murmurou Maria del Carmen, pousando a mão no joelho do marido. - A niña quer ouvir, e portanto deves ler, Júlio.
Depois dum momento de indecisão, o rapaz inquiriu em voz abafada:
- Começo do princípio?
- Sim, do princípio! Lê! - ordenou Juana.
Júlio tirou debaixo da sua manta uma folha de papel, semelhante a um prospecto, no topo da qual sobressaía o símbolo de Quetzalcoatl: o círculo com a ave ao centro.
Então começou a ler, sempre em voz um tanto sufocada:
"Sou Quetzalcoatl de rosto escuro que noutros tempos viveu no México até que, de além dos mares, veio um estrangeiro que tinha pele branca e falava estranha linguagem.
Quetzalcoatl perguntou: - Que vens fazer ao México?
E o outro respondeu: - Venho trazer-lhe a paz.
Quetzalcoatl disse: - Está bem. Já me sinto velho, devo retirar-me. Adeus, povo do México. Adeus, irmão estrangeiro. Chegou a hora de eu partir.
Lentamente ele se foi. Aos ouvidos ressoava-lhe o desmoronar dos templos mexicanos; mas continuou o seu caminho, em passo vagaroso porque era velho e estava cansado de tanto viver. Subiu a encosta da montanha, atingiu a neve dos píncaros, e, quando caminhava, ouviu gritos de agonia e viu clarões de incêndio. Então disse consigo mesmo. "São os mexicanos a gritar! Mas não devo fazer caso porque o meu irmão estrangeiro lhes enxugará as lágrimas."
Assim o velho deus alcançou o cume da montanha e ergueu os olhos para a casa azul do céu. E através duma porta na parede azul viu escuridão profunda, e estrelas e uma lua a brilhar. E por trás das trevas viu uma estrela enorme, uma estrela cintilante.
Então, de volta do velho Quetzalcoatl, irromperam do vulcão penas e asas de fogo. E, com as asas de fogo, Quetzalcoatl ergueu-se no espaço tal um pássaro luminoso e chegou aos degraus brancos do céu que conduzem às paredes azuis, onde está a porta que dá para as trevas. E ali penetrou e desapareceu.
Tombara a noite, Quetzalcoatl fora-se embora, e os homens no mundo viram somente uma estrela atravessar o firmamento, mergulhando na escuridão.
Então os mexicanos disseram "Quetzalcoatl morreu. Até a sua estrela se extinguiu".
De modo que aprenderam os ensinamentos dos sacerdotes que vinham de além dos mares. E assim se tornaram cristãos."
Júlio, que se absorvera na leitura, acabou de repente como se a história terminasse ali.
- É bonito, isso - disse Kate.
- E não é mentira nenhuma - acrescentou a céptica Juana.
- Señora! - gritou Concha. - É verdade que o Paraíso é lá em cima e que as nuvens formam degraus até à beira do céu, como os degraus do cais até ao lago? E é verdade que El señor vem ao cimo da escada e olha cá para baixo e nos vê como a gente olha para a água e vê os peixes?
Sacudindo o cabelo e com a face trigueira erguida para Kate,
Concha esperou pela resposta.
- Não sei tudo - replicou a interpelada, rindo-se. - Mas
parece-me que é verdade.
- Ela acredita - disse Concha, voltando a cara para a mãe.
- E será verdade - perguntou Juana por sua vez - que El Señor, El Cristo del Mundo, é um gringo, e que nasceu no país da niña, assim como a Sua Santa Mãe?
- No meu país, não. Noutro próximo do meu.
- Imagine-se! - exclamou Juana, espantada. - El señor é um gringuito e a Mãe Santíssima uma gringuita! Sim, é de crer... Basta olhar para os pés da niña. Ora vejam! São mesmo pés de madona! - Kate estava sem meias e tinha sandálias com uma simples presilha. Juana tocou-lhe nos dedos, fascinada. - Pés de madona! E Ela, a Mãe Santíssima, é uma gringuita. Nasceu para além dos mares, como a niña
- Sim...
- Ah! Tem a certeza?
- Sim, todos sabemos isso.
- Imagine-se! A Santíssima é uma gringuita, nasceu para além dos mares, como a niña! - Juana falava com um misto de espanto, de horror e de troça.
- E o Senhor é um gringuito? - bradou Concha.
- Foram os gringos que mataram El Señor, niña? Não foram
os mexicanos?
- Não foram os mexicanos - confirmou Kate.
- Foram os gringos?
- Sim.
- E Ele era um gringo?
- Era - respondeu Kate, já não sabendo que dizer a tanta pergunta tola.
- Ora vejam! - comentou Juana, em tom malévolo. - Era gringo, e os gringos crucificaram-no.
- Mas já há muito tempo - apressou-se Kate a explicar. Seguiram-se uns instantes de silêncio. As faces trigueiras das
mulheres e homens sentados no chão erguiam-se para Kate, olhando-a fixamente e considerando cada palavra. Lá fora, os trovões rumorejavam em diferentes lugares.
- E agora, niña - proferiu a voz fria de Maria del Carmen - repudiamos El señor e aceitamos Quetzalcoatl.
- Quetzalcoatl não tem mãe.
- Talvez tenha esposa - sugeriu Kate, irónica.
- Quien sabe! - murmurou Juana.
- Dizem que ele se tornou novo no Paraíso - acudiu a atrevida Concha.
- Quem? - inquiriu Juana.
- Não sei como é que o chamam - murmurou Concha, com vergonha de pronunciar o nome.
Ezequiel interveio com a sua voz de adolescente, que mais parecia um latido:
- Quetzalcoatl! Sim, é agora um deus na flor da idade, e muito bem constituído.
- Dizem isso! Imagine-se! - exclamou Juana.
- Aqui é que diz - volveu Ezequiel. - Está escrito no segundo hino.
- Ora lê, Júlio.
E Júlio, já sem nenhuma relutância, pegou noutro papel.
"Eu, Quetzalcoatl, do México, fiz a viagem mais longa de todas.
Para além da parede azul do céu, para além do Sol, através da planície de trevas onde as estrelas se desenvolvem como árvores, como árvores e arbustos, muito longe no coração de todos os mundos, ao nível da Estrela da Manhã...
E no coração de todos os mundos esperavam aqueles cujas faces não pude ver. E em vozes como abelhas zumbindo murmuravam entre si: "Eis Quetzalcoatl que encaneceu ateando o fogo da vida. Vem só, e devagar."
E então, com mãos que não pude ver, eles pegaram nas minhas mãos, e nos seus braços que não pude ver morri por fim.
Mas, depois de morto, não deitaram fora os meus ossos, nem me lançaram aos quatro ventos, nem aos seis. Não, nem sequer ao vento que sopra para o meio da terra, nem ao que sopra para cima como um dedo que aponta eles me entregaram.
Morreu, disseram, mas não se destruirá.
Tiraram óleo das trevas e ungiram-me a testa e os olhos, os ouvidos, as narinas e a boca, o peito, o ventre e as minhas partes secretas, adiante e atrás; e a palma das mãos, e os joelhos, e a planta dos pés.
Por fim, ungiram-me a cabeça com o óleo tirado das trevas. E então disseram: Está confirmado. Deixemo-lo agora.
Deixaram-me na fonte que borbulha sombriamente do coração do mundo, longe, para além do Sol. E ali estive eu, Quetzalcoatl, em consolador esquecimento.
Dormi um longo sono, e não sonhei.
Até que uma voz chamou: - Quetzalcoatl!
Perguntei: - Quem é?
Não houve resposta, mas a voz repetiu: - Quetzalcoatl!
Onde estás? - disse eu.
Não estou aqui nem ali. Sou tu mesmo. Levanta-te.
Tudo pesava sobre mim, como uma pedra tumular de trevas.
E eu disse: - Sou velho. Como posso afastar esta pedra?
Como é que tu és velho se eu sou novo? Eu desviarei a pedra.
Senta-te.
Sentei-me, e a pedra rolou pelos abismos do espaço.
Falei então comigo: - Sou novo. Mais novo do que os novos, mais velho do que os velhos. Desabrochei como uma flor no caule do tempo, encontro-me no centro da flor da minha natureza humana. Não sofri com o desejo de romper o botão nem ansiei pelos longes como a semente que flutua no céu. Abriu a corola da minha floração, no meio oscilam as estrelas. A minha haste mantém-se no ar, as raízes mergulham nas trevas, o sol não é mais do que uma taça} cheia de mim.
Não sou criança nem velho, sou a flor desabrochada, sou novo.
Levantei-me, estendi os membros e olhei em volta. Vi o Sol por baixo de mim, tal um pássaro ardente pairando ao meio-dia sobre os mundos. E o seu bico era comprido e muito aguçado.
E ouvi uma voz dizer: - Oh, Quetzalcoatl! Esqueceram-te! Esqueceram a serpente emplumada! A serpente-ave silenciosa! Já ninguém pergunta por ti.
E eu respondi: - A serpente do meio da terra dorme nos meus rins e no meu ventre, a ave do ar exterior empoleira-se-me na cabeça, roça o bico no meu peito. Mas sou o senhor de um e outro. Um deus novo, com novos membros e vida, e a luz da Estrela de Alva nos olhos.
Sou Quetzalcoatl, estrela entre o dia e a noite.
Houve profundo silêncio quando Júlio acabou de ler.

XVI
Nas tardes de sábado, emergiam da leve bruma, a oeste, barcaças negras de grandes velas quadradas. Vinham de Tlapaltepec, com chapéus de palha, mantas e loiça de barro; de Ixtlahuacan, Jaramay e Las Zemas, com esteiras, madeira de construção, carvão e laranjas; de Tuliapan, Cuxcueco e San Cristóbal com melancias, tomates, mangas e legumes; e carregamentos de tijolos e de telhas, e mais carvão e madeira das montanhas que se elevam na outra banda do lago.
Ao sábado, Kate saía sempre por volta das cinco horas para assistir à descarga dos barcos na claridade da tarde. Gostava de ver os homens a correrem nas pranchas e a amontoarem na areia seca as melancias que iam transportando - melancias escuras e de ventre pálido, como animais estranhos. E os tomates, lançados numa poça da margem, flutuavam na água como rolhas vermelhas enquanto as mulheres os lavavam.
Os tijolos eram empilhados junto do antigo molhe. E chegavam burros, para levar tudo aquilo, enterrando as patas na areia e agitando as orelhas compridas.
Os carregadores azafamavam-se de volta das barcaças de carvão, andavam cá e lá com sacas de serapilheira.
- Quer carvão de lenha, niña - perguntou um deles, o mesmo homem que trouxera a mala de Kate desde a estação até casa.
- Qual é o preço?
- Vinte e cinco reales duas sacas.
- Ofereço vinte.
- Pois sejam vinte, señorita. E paga-me dois reales pelo transporte?
- O negociante é que paga o transporte - redarguiu Kate. - Mas dar-lhe-ei vinte centavos.
O homem afastou-se, descalço, de pernas à vela, com duas sacas de carvão às costas. Os mexicanos carregam pesos enormes e com ar de que lhes não custa nada.
Cestos de goiabas, de limas e de limões; cestos de mangas, de laranjas, de cenouras; tabaibos em grande abundância, algumas batatas nodosas, cebolas achatadas e dum branco nacarado, abóboras verdes e mosqueadas como rãs... Era um espectáculo curioso, o desfile de cestos, desde a praia até à igreja.
Costumavam descarregar mais tarde a loiça de barro: jarros bojudos, cântaros dum lindo tom vermelho, tachos envernizados e com ornatos brancos e pretos, frigideiras para as tortillas.
Na margem ocidental, corriam homens com uma dúzia de largos chapéus sobrepostos, o que lhes dava um aspecto de pagodes ambulantes. Outros levavam huaraches finamente tecidas e sandálias de correias, e outros ainda rimas de serapes negras com desenhos cor-de-rosa.
Era fascinante. E, contudo, pesava no ar uma sensação de soturnidade. Aquela gente vinha à feira como para um combate; não pelo gosto de vender mas para fazerem concorrência uns aos outros. Luta surda, que se desenrolava entre eles e o comprador eventual - estranho e sombrio rancor sempre presente.
Quando, ao pôr do Sol, tocavam os sinos da igreja, já a feira começava a funcionar. Nos passeios de volta da praça estavam os índios sentados junto das suas mercadorias: pilhas de chapéus, pares de sandálias em fileira, montes de melancias, um estendal de botões de punho e de bugigangas a que chamavam novedades, tabuleiros cheios de bolos. E a todo o instante chegava gente de longe com os seus burros carregados.
Contudo, jamais se ouvia um grito, nunca uma voz se elevava. Nada dessa animação, desse clamor das feiras do Mediterrâneo. Sempre o atrito pesado da vontade, tal uma mó de pedra triturando de contínuo o espírito.
Ao cair da noite os vendedores acendiam as suas lanternas de estanho, e as chamas bailavam nas faces morenas dos homens sentados no chão. Nunca solicitavam o comprador, não lhe mostravam as mercadorias; nem para ele olhavam. Dir-se-ia que o rancor latente sufocava o interesse de vender.
Às vezes, Kate achava a feira mais alegre; mas na maior parte das ocasiões sentia-se como que oprimida por um peso invisível, e a sua vontade era fugir dali, daquele mundo fúnebre.
Corriam boatos de nova revolução e na praça andavam cá e lá soldados armados de punhais e pistolas, de chapéu desabado e com o tipo selvático dos indígenas do Norte. Passeavam dois a dois, falando no seu dialecto, e pareciam mais estrangeiros em Sayula do que a própria Kate.
As barracas de petiscos estavam brilhantemente iluminadas. Viam-se homens sentados nas tábuas, bebendo caldo e comendo com os dedos alimentos escaldantes. Chegava o leiteiro a cavalo, com duas grandes bilhas de leite suspensas da frente da sela. Abria caminho lentamente através do povo, em direcção às barracas. Parando aí, e sem se apear, despejava o leite duma das bilhas na vasilha do freguês. Depois, sempre a cavalo, engolia a sua ceia: uma escudela de caldo e um prato de tamales, ou de tortillas com picado de carne bem apimentada. De roda dele andavam os peóns. Soavam violas quase em surdina. Fendia a multidão um carro vindo da cidade, a abarrotar de raparigas e rapazes, de papás e de meninos.
Que fervilhar de vida por cima do clarão das tochas pousadas no solo! Deslizava lentamente o rio de chapéus e de rebozos. A entrada do hotel resplandecia, iluminada pela electricidade. Moças citadinas exibiam vestidos de organdi branco, vermelho ou azul. Cantavam homens a meia voz. Todo o barulho parecia sufocado, contido.
Estranha impressão de sufocamento, força sombria e negativa da alma dos peóns! Quase inspirava dó ver as esbeltas raparigas de Guadalajara, tão bonitas nos seus vestidos vaporosos, a passearem de braço dado para trás e para diante, procurando despertar a atenção de alguém. E aqueles homens só exalavam o vapor negro da negação, que talvez não fosse senão ódio. Pareciam empestar o ar com a sua hostilidade surda.
Sim, Kate chegava a ter pena dessas mocinhas bonitas, de uma beleza de flor de papel, tão desejosas de serem admiradas e tão desprezadas afinal.
De repente, soou um tiro. Num instante toda a gente se pôs de pé, correu para as ruas, enfiou-se nas lojas. Novo tiro. No outro lado da praça, que se esvaziava rapidamente, Kate viu um homem sentado num banco desfechando a pistola para o ar. Era um patife da cidade, e estava meio bêbado. O povo conhecia-o; seria capaz de baixar a arma e disparar à toa sobre a multidão. Por isso todos abandonavam a plaza e se encafuavam onde podiam.
Mais dois tiros, pum, pum, ainda para o ar. No mesmo momento emergiu um oficial da rua sombria onde ficava o posto militar e correu direito ao bêbado, que, de pernas estiradas, brandia a pistola.
Antes sequer de tomar fôlego, dava-lhe em cada face uma bofetada quase tão sonora como os tiros e arrancava-lhe a arma da mão.
Dois dos soldados do Norte acorreram então e agarraram o homem pelo braço. O oficial disse-lhes qualquer coisa, e eles, depois de fazerem continência, afastaram-se com o prisioneiro.
A multidão voltou a encher a praça, despreocupadamente, e Kate sentou-se no banco, com o coração a bater. Viu o preso passar debaixo duma lâmpada, com um fio de sangue a escorrer-lhe na cara. Juana, que fugira, reapareceu sem demora e, pegando na mão de Kate, disse-lhe:
- Olhe, niña! É o general!
Kate levantou-se, surpreendida. O oficial estava à sua frente e cumprimentava-a.
- Don Cipriano! - exclamou ela.
- O próprio. Aquele ébrio assustou-a?
- Não muito. Foi mais o sobressalto... Não senti má intenção da parte do homem.
- Pois não. Estava simplesmente embriagado.
- Bem... São horas de eu voltar para casa.
- Posso acompanhá-la?
- Se quiser...
Cipriano postou-se ao lado de Kate e ambos contornaram a igreja para alcançar a borda do lago. A Lua brilhava por cima da montanha, soprava vento fresco, mas não agreste, vindo do ocidente. Viam-se luzes nos barcos acostados, umas exteriores, outras interiores, sob o toldo de lona. As mulheres preparavam a ceia.
- Linda noite! - exclamou Kate, respirando fundo.
- De Lua quase cheia - acrescentou Cipriano.
Juana ia-lhes no encalço e, atrás dela, seguiam dois soldados de chapéu desabado.
- Aqueles soldados vêm a escoltá-lo? - perguntou Kate.
- Julgo que sim.
- Este luar - disse ela, voltando ao assunto anterior - não é suave e amigo como o de Inglaterra ou da Itália.
- Contudo é do mesmo planeta - replicou o general.
- Mas o luar é diferente na América. Não nos torna felizes como na Europa. Dá impressão de que nos quer mal.
Seguiu-se uma pausa.
- Talvez haja na señora algo de europeu que ofenda a nossa lua mexicana - observou então Cipriano.
- Mas eu vim cá de boa fé.
- Boa fé europeia. É possível que não seja igual à boa fé mexicana.
Kate ficou calada, quase estupefacta.
- Que ideia, a vossa lua a protestar contra a minha presença!
- comentou, por fim, rindo ironicamente.
- Que ideia protestar contra a lua mexicana! - replicou ele.
- Mas eu não protestei!
Tinham chegado à esquina da rua de Kate. Na volta, havia um bosquete de árvores e debaixo delas, por trás da sebe, algumas cabanas de colmo. Muitas vezes Kate sorria ao ver o burro a espreitar por cima do murinho de pedra, o carneiro preto de chifres recurvos amarrado a uma árvore e o garoto seminu correndo a esconder-se sob a cortina de espinheiros.
Kate e Cipriano sentaram-se na varanda da Casa das Cuentas. Ela ofereceu-lhe um vermute, mas ele recusou.
Conservaram-se silenciosos. Só se ouvia o débil pip-pip do motor eléctrico, próximo da estrada. Então, por trás das bananeiras, cantou um galo em voz forte e áspera.
- Que disparate! - disse Kate. - Os galos não costumam
cantar a estas horas.
- Só no México - replicou Cipriano, rindo-se.
- Sim, só aqui...
- É muito agradável a sua casa, o seu pátio - disse Cipriano.
Kate ficou calada.
- Não gosta? - perguntou ele.
- Gosto mas... não tenho nada com que me entretenha, compreende? As criadas não me deixam mexer. Se varro o quarto, olham-me embasbacadas, repetindo: Que niña! Que niña! Exactamente como se eu estivesse a fazer o pino para as divertir. Limito-me a coser, embora não me interesse pela costura. Que representa
isto numa existência?
- E lê! - disse Cipriano relanceando um olhar pelas revistas
e pelos livros.
- Mas é tudo tão estúpido, tão falho de vida o que se encontra
nos livros e nos jornais!
- Que gostaria então de fazer? Diz que a costura lhe não interessa... As mulheres de Navajo, quando tecem as mantas, deixam
na ponta um buraquinho para a alma sair; não tecem a sua alma juntamente com a manta. Sempre me pareceu que a Inglaterra tecia a alma nas suas fábricas, e em tudo o que fazia, sem deixar o buraco para ela sair... Por isso toda a sua alma está agora nas mercadorias e em mais nenhuma parte.
- Mas o México não tem alma - redarguiu Kate. - Engoliu a pedra do desespero, como diz o hino.
- Acha? Pois não sou da sua opinião. A alma é uma coisa que se faz, como um desenho num tecido. É muito bonito enquanto as lãs cruzam e entrecruzam os seus fios e as suas cores diversas, e que o desenho aparece a pouco e pouco. Mas, uma vez acabado, perdeu o interesse. O México ainda não começou a tecer o desenho da sua alma. Ou principiou agora... com Ramon. Não acredita em Ramon?
Kate hesitou antes de responder.
- Em Ramon, sim. Mas não acredito que aqui, no México, surtam algum efeito as suas tentativas - murmurou, lentamente.
- Ele está no México e no México deve tentar. Porque não faz outro tanto?
- Eu?
- Sim, a señora. Ramon não crê em deuses sem mulheres, conforme diz. Porque não há-de ser a mulher do panteão de Quetzalcoatl? A deusa?
- Eu, uma deusa no panteão mexicano! - exclamou Kate, soltando uma gargalhada.
- Porque não?
- Nem sequer sou mexicana!
- Daria muito bem uma deusa, no meu panteão e no de Ramon.
Ardia na face de Cipriano uma chama de desejo, enquanto ele a fitava de olhos brilhantes; espécie de ambição intensa de que ela era em parte o objecto.
- Não me sinto com propensão para deusa de templos mexicanos - protestou Kate. - Acho o México um tanto assustador. Don Ramon é extraordinário, mas receio muito que o aniquilem.
- Ajude-nos a impedir isso.
- Como?
- Case comigo. Queixa-se de não ter nada que fazer. Pois bem; case comigo e auxilie-nos. Ramon diz que necessitamos de uma mulher. Seja essa mulher e terá muito que fazer.
- Mas não posso auxiliar-vos sem casar? - redarguiu Kate.
- Como? Não é possível.
E Kate sentiu que ele falava verdade.
- É que... não sinto impulso para o matrimónio... consigo... E, sendo assim, porque hei-de aceder?
- Porque não?
- Para lhe ser franca, não me sinto bem no México. Os olhos negros deste povo fazem-me arrepiar a pele e oprimir o coração. Emana do país certo horror, e não quero horror na minha alma.
Cipriano calava-se, longínquo, imperscrutável. Kate não lhe adivinhava os pensamentos, só lhe via como que uma nuvem sombria pairando-lhe no rosto.
- E porque não? - disse ele por fim. - O horror é qualquer coisa de verdadeiro. Porque não há-de haver um pouco de horror reunido a todo o resto?
Fixava-a de expressão grave, e parecia exercer nela forte pressão moral.
- Mas... -balbuciou Kate.
- É natural que sinta também certo horror pela minha pessoa... E talvez eu o sinta igualmente por si, pelos seus olhos claros, pelas suas mãos brancas e fortes. Todavia, isto é bom, é agradável:
Kate olhava-o, pasmada; a sua vontade era fugir, fugir daquele
país deprimente.
Cipriano continuou:
- Deve habituar-se a ter na sua vida uma parcela de medo e uma parcela de horror. Case comigo e conhecerá outras coisas muito diferentes. A pitadinha de horror é como o gergelim nos bolos, dá sabor à existência.
Falava com estranha lógica, observando-a com olhos cintilantes. O seu desejo, embora físico, dir-se-ia impessoal, sem objectivo. E Kate, perante ele, era como se tivesse outro nome e circulasse num mundo diverso; como se se chamasse, por exemplo, Itzpapatotl e houvesse nascido em qualquer região desconhecida.
Contudo, ele impunha-lhe a sua vontade.
Kate estava anelante de pasmo, porque Cipriano lhe fizera ver a possibilidade física de o desposar, ideia que até aí jamais lhe passara pela cabeça. Mas não seria ela própria, a verdadeira Kate, quem casaria com Cipriano. Seria outra mulher, o ser desconhecido que habitava dentro dela.
Irradiava do general uma paixão secreta e jubilosa.
- Não creio que me seja possível - disse Kate.
- Experimente e logo verá.
Sentindo frio, a irlandesa foi ao quarto buscar um abafo e regressou envolta num xaile espanhol de tom castanho, profusamente bordado de seda cor de prata. Enrolava nervosamente os dedos nas longas franjas escuras.
Na realidade, achava Cipriano sinistro, quase repelente. Não queria, contudo, pensar que estava simplesmente com medo, que lhe faltava coragem... Ficou sentada, de cabeça pendida. A luz incidia-lhe nos cabelos sedosos e no bordado prateado do xaile, que ela cingia aos ombros como as índias usam os rebozos. Cipriano observava-a, e ao seu xaile sumptuoso.
- Então? - disse ele de repente. - Quando se realiza?
- O quê - replicou Kate, verdadeiramente assustada.
- O nosso casamento.
Olhou-o, espantada de ele ter ido tão longe. Mas nem nesse momento sentiu ânimo para o repelir.
- Não sei - respondeu.
- Em Agosto, por exemplo? No dia 1 de Agosto?
- Não quero fixar nenhuma data.
Subitamente, a tristeza, a cólera latente nos índios dominou Cipriano. Sufocando, porém, o acesso, perguntou com fingida indiferença:
- Quer ir amanhã a Jamiltepec? Ramon deseja conversar consigo.
- Parece-lhe que deva ir?
- Sim. Iremos ambos de automóvel, amanhã de manhã. Está combinado?
- De facto, gostaria de tornar a ver Don Ramon.
- Esse não lhe mete medo? Não lhe inspira o menor horror, hem? - volveu Cipriano com um sorriso subtil.
- Não, mas Don Ramon não é bem mexicano.
- Não é bem mexicano?
- É mais europeu.
- Que ideia! Pois olhe que para mim é o México personificado.
Kate ficou uns momentos calada, a reflectir, até que declarou:
- Irei a Jamiltepec no barco de remos, ou então na lancha de motor do Alonso. Em qualquer caso estarei lá amanhã por volta das dez.
- Muito bem - disse o general, pondo-se de pé.
Depois de ele partir, Kate ouviu um tambor soando na plaza. Devia haver ali nova reunião dos Homens de Quetzalcoatl, mas não sentia desejo nem coragem de sair outra vez nessa noite.
Foi-se deitar, e ficou estendida às escuras. Pelos interstícios das janelas via a brancura do luar e através das paredes ouvia a pulsação do tambor. Tudo aquilo a assustava e a oprimia. Tinha de fugir... Faria as malas à pressa e desapareceria dali. Talvez tomasse o comboio até Manzanillo e daí embarcasse para a Califórnia, Los Angeles ou San Francisco. Fugir, voar para uma terra de homens brancos onde pudesse de novo respirar livremente. Que bom! Sim, eis o que devia fazer.
A noite adensava-se. Cessara o som de tambor. Kate ouviu Ezequiel regressar a casa e deitar-se na esteira diante da porta. Só se ouvia a voz rouca dos galos cantando ao luar. No quarto, como o riscar dum fósforo, surgia aqui e ali a claridade esverdeada dum pirilampo.
Inquieta, acobardada, Kate acabou por adormecer. E foi um
sono profundo.
Inesperadamente, ao acordar na manhã seguinte, experimentou uma sensação de força. Eram seis horas, o sol infiltrava riscos de oiro através das fendas do postigo. Abrindo a janela que deitava para a rua, olhou através da grade de ferro para o caminho sombreado, e, por cima do muro, para as folhas de bananeira, franjadas, dum verde translúcido, e ainda para a cabeça desgrenhada das palmeiras altas e para as torrres geminadas da igreja, coroadas da cruz grega de quatro braços iguais.
Na rua já havia animação: lentamente, em direcção ao lago, sob a azulada sombra da parede, avançavam algumas vacas enormes; um bezerro de grandes olhos e espírito aventureiro foi, pulando, contemplar a erva verde e as flores através do portão gradeado. O peón que o seguia ergueu ao ar os dois braços, num gesto silencioso, e o bezerro afastou-se dali. Só se distinguia o rumor do tropear do gado.
Passaram depois dois rapazes que tentaram com grande esforço puxar um toiro novo para o lago. O animal sacudia as ancas aguçadas e atirava coices a que os seus condutores se esquivavam. E, se estes lhe batiam no lombo, dava-lhes marradas com a sua cabeça romba de novilho. Naquele estado de semifúria em que os índios caem quando lhes opõem resistência, os rapazes lançaram mão do recurso habitual: desviaram-se do animal, começaram a arremessar-lhe pedras.
- Não lhe atirem pedras! - gritou Kate da janela. - Conduzam-no como devem!
Sobressaltaram-se como se o céu acabasse de se abrir, largaram as pedras e foram com ar vexado atrás do touro, que desatara a correr e se afastava aos pinotes.
Surgiu uma velha defronte da janela oferecendo um prato de folhas novas de cacto, picadas, pela soma de três centavos. Kate não era grande apreciadora de cacto como legume, mas sempre comprou. Um velhote apresentou um frango entre as grades que o separavam de Kate.
- Vá ao pátio - disse ela.
E fechou a janela para a rua, porque a invasão começara. Esta, porém, continuou noutro lado.
- niña! niña! - chamou a voz de Juana. - O velho diz que a niña compra o frango. É verdade?
- Quanto custa? - gritou Kate, enfiando o roupão.
- Dez reales.
- Ah, não! - disse Kate, escancarando as portas que deitavam para o pátio e aparecendo com o seu leve roupão cor-de-rosa pálido bordado de flores brancas. - Não dou mais do que um peso.
- Um peso e dez centavos - pediu o velho, balançando a ave na mão. - É um galo bonito e gordo.
Estendeu-o a Kate, para que visse como era gordo. Ela, contudo, fez-lhe sinal que o entregasse a Juana. Juana pegou nele e fez uma careta.
- Não pago mais de um peso - repetiu Kate.
O homem esboçou um gesto de assentimento, recebeu o dinheiro e desapareceu como uma sombra. Concha, que, entretanto, se aproximara, agarrou por sua vez no frango e logo declarou com desprezo:
- Está muy flaco.
- Põe-no na capoeira - disse Kate. - Vamos deixá-lo engordar.
O pátio estava agradável, com sol e sombra. Ezequiel enrolara a sua esteira e fora-se embora. Na ponta dum arbusto ostentavam-se enormes cardeais cor-de-rosa. Flutuava no ar o leve aroma de rosas bravas. As mangueiras pareciam mais sumptuosas de manhã, com os seus frutos pendentes das folhas bronzeadas.
- Está muy flaco - repetia Concha, enquanto levava o frango para o galinheiro, debaixo das bananeiras. - É só pele e osso.
Todas três observaram interessadas a entrada do galo novo na capoeira, onde já existiam algumas aves. O outro, mais velho e mais antigo na casa, refugiou-se no extremo oposto e olhou para o recém-vindo com ar ameaçador. O muy flaco ficou encolhido num canto. De repente, distendeu-se e fez ouvir um cocorocó agudo, eriçando de modo agressivo as penas avermelhadas. O galo antigo movia-se inquieto, preparando a vingança. As galinhas é que não ligaram nenhuma importância ao intruso.
Kate riu-se e voltou para o quarto, onde se vestiu ao esplendor da manhã. Diante da janela passavam mulheres silenciosas, com o cântaro de barro ao ombro. Iam buscar água do lago. Levavam sempre o braço por cima da cabeça, para segurar a bilha no outro ombro, o que lhes dava um aspecto contorcido, muito diferente do porte erecto das mulheres que transportam água na Sicília.
- niña! niña! - gritava Juana lá fora.
- Espera um instante - disse Kate. Era outro hino de Quetzalcoatl.
- Veja, niña, niña, o novo hino de ontem à noite. Kate pegou no papel e sentou-se na cama para o ler.
Quetzalcoatl baixa o olhar para o México. Riu-se Quetzalcoatl ao ver o Sol dardejar sobre ele raios ferozes.
Ergueu a mão, e com a sua sombra susteve o Sol.
Assim ultrapassou o astro amarelo que se contorcia como um
dragão.
E, tendo-o ultrapassado, viu a terra a seus pés.
E viu o México, tal uma mulher morena reclinada com os seus seios de pontas brancas.
Aproximou-se, surpreendido, e contemplou-a.
Contemplou os seus comboios e os seus automóveis.
As suas cidades de pedra e as suas cabanas de colmo.
E disse consigo: - Na verdade isto é estranho.
Sentou-se no côncavo duma nuvem e viu os homens a trabalharem nos campos vigiados por estrangeiros.
Viu os homens a cambalear, ébrios de aguardente.
Viu as mulheres que não eram limpas.
Viu o coração de todos, corações negros, pesados com a pedra da ira.
E disse consigo: - Estranho povo, este que encontrei.
Inclinando-se para fora da nuvem, chamou então:
Olá! Olá! Mexicanos! Olhai um instante para mim.
Voltai os olhos para este lado, Mexicanos!
Eles, porém, não olhavam.
Olá, Mexicanos! Olá!
Decerto se tornaram surdos, pensou.
De modo que soprou o seu hálito na face deles.
Mas no peso da estupefacção nenhum deu por isso.
Olá! Belo povo!
Corria uma estrela cadente como cão branco numa planície.
Ao som do seu assobio veio tombar-lhe na mão.
Na sua mão estava e na sua mão não se extinguiu.
Era a pedra da mutabilidade.
Fê-la saltar na palma e com ela brincou.
Então viu o lago e deixou cair a estrela,
Que mergulhou na água.
Dois homens levantaram a cabeça
Olá! Mexicanos, disse ele. Acordastes ambos?
E riu-se, e um deles ouviu-o rir.
Porque ris? - perguntou o homem a Quetzalcoatl.
Oiço a voz do meu primeiro homem perguntando-me porque rio?
Olá, Mexicanos! É divertido
Vê-los tão sombrios e tão pesados.
Primeiro o homem do meu nome! Escuta-me!
Eis a minha insígnia.
Prepara um lugar para me receber.
Despeja os templos das suas imagens.
Ao sétimo dia, que todo o homem se lave e unte a pele com óleo.
Que não tenha bichos a passear-lhe no corpo nem na sombra
dos cabelos".
E o mesmo quanto às mulheres.
Diz-lhes que são todos insensatos e que me rio deles.
A primeira coisa que fiz. ao vê-los foi rir-me à sua custa.
Porque se assemelham a rãs com pedras na barriga, sem poderem saltar.
Diz-lhes que se desembaracem das pedras.
Que se libertem do peso que os tolhe e os enche.
Ou eu os arrasarei a todos.
Abalarei a terra e tragá-los-ei, com as suas cidades.
Enviarei sobre eles fogo e cinzas.
O fragor do trovão transformará o seu sangue em leite corrompido.
E eles derramarão sangue corrupto e pestilento.
Os próprios ossos se desfarão em pó. Diz-lhes isto, primeiro homem do meu nome. Porque a Lua e o Sol tudo vêem com olhos brilhantes. E a Terra está pronta a sacudir as pulgas. E as estrelas estão prontas a lançar pedras aos homens. E o ar que sopra com suavidade nas narinas das criaturas está pronto a soprar com violência, para que todos pereçam. As Estrelas e a Terra, o Sol, a Lua e os ventos Preparam de roda de vós a dança guerreira, ó homens! Iniciá-la-ão quando eu der o sinal. Porque o Sol, as Estrelas, a Terra e as próprias chuvas estão cansadas
De impelir e rolar até aos vossos lábios a substância da vida.
E dizem:
Acabemos com essas tribos de homens fedorentos, com essas
rãs que não sabem saltar.
com esses galos que não sabem cantar,
com esses porcos que não sabem grunhir,
com essa carne que cheira mal,
com essas palavras vãs,
com essa vérmina do dinheiro,
com esses homens brancos, e vermelhos, e amarelos, e pretos.
Não são brancos, nem vermelhos, nem amarelos, nem pretos,
Mas todos estão sujos.
É necessário uma limpeza em todo o mundo. Porque os homens são como vermes Que devoram a terra e infestam as chagas. Eis o que as Estrelas e o Sol, a Lua, e o vento e a chuva discutem entre si, prontos a atacar-vos. Por isso eu venho.
Para vos limpar por dentro e por fora, Para erguer a pedra tumular da vossa alma. Para vos preparar a serdes homens. E preparar-vos para outras coisas ainda.
Kate leu e releu o longo folheto, e a manhã radiosa pareceu encobrir-se duma obscuridade fremente. Tomou o café na varanda. As papaias dir-se-iam destilar gotas duma fonte invisível de vida inumana.
Parecia-lhe ver o impetuoso germinar do cosmos, despertando numa existência fantástica. Os homens não passavam de moscas verdes aglomeradas na ponta dos renovos. Era monstruoso o rolar e desenrolar da vida do cosmos, tal se o próprio ferro crescesse como líquenes nas entranhas da terra e, cessando de crescer, se preparasse para a morte. Porque o ferro e a pedra terminarão a sua vida quando a hora vier. E os homens são menos do que moscas, enquanto viverem apenas para o seu sustento. Parasitas sobre a face da terra.
Kate encaminhou-se para a beira do lago - inteiramente azul na claridade matinal. Na outra margem erguiam-se as montanhas escalvadas, mas em baixo, no sopé, luziam árvores e a mancha clara das aldeias.
Perto dela, contra a luz, cinco vacas metiam o focinho na água. Enchiam as suas bilhas mulheres ajoelhadas nas pedras. Em varas bifurcadas, fincadas na areia, secavam redes de pesca, e ali pousara um passarinho vermelho, como uma gota de sangue caída das artérias do ar.
Emergindo das cabanas de colmo sob as árvores, aproximou-se o garoto desalmado, o da ave aquática. Trazia qualquer coisa na mão fechada. Abriu-a ao chegar junto de Kate e apresentou-lhe na palma três pucarozinhos de barro: as ollitas que os nativos doutros tempos atiravam à água para os seus deuses.
- Muy chiquitas! - disse o pequeno na sua voz brusca. Compra-as?
- Não tenho dinheiro comigo. Amanhã.
- Amanhã? - repetiu o miúdo, como um tiro de pistola.
- Amanhã.
Ele perdoara a Kate, mas esta não lhe perdoara. Alguém cantava na frescura da manhã; som agradável, que se diria produzir-se por si mesmo.
com passos felinos, vagueava por ali um rapazinho armado de fisga. Mas o pássaro, que era como um pingo de sangue nas redes quase invisíveis, abriu as asas e desapareceu num voo fulgurante.
Kate conhecia essas manhãs à beira do lago. Faziam-lhe experimentar uma espécie de hipnose quase semelhante à morte. Destacavam-se pássaros rubros no verde tenro dos salgueiros. Passava o aquador com uma vara aos ombros e uma lata de água quente suspensa de cada lado. Vinha das fontes térmicas, descalço e de pernas ao léu, trotando em silêncio sob a sua carga, com o belo rosto moreno sombreado pelo chapéu de abas largas.
Emergiam da água cabecinhas negras, em grupos. Seriam cabeças? Ou seriam aves?
Kate sabia de antemão como o dia havia de correr. A pouco e pouco, o sol intensificava-se e a pouco e pouco a electricidade se ia acumulando, conforme se aproximava a tarde. Nas horas de calor a praia exalava um cheiro a lixo e a urina.
Tudo perdia a nitidez à claridade ofuscante, a atmosfera espessava-se e Kate sentia a electricidade premir-lhe a nuca tal um ferro quente. Aquilo entorpecia-a, como a morfina. Entretanto, por trás das montanhas, erguiam-se nuvens tais árvores brancas, e, enquanto a tarde desfalecia em silêncio, estendiam ramos negros no céu, afugentando a luz.
A meio da sonolência da sesta desencadeava-se a trovoada e
tombavam os aguaceiros.
Vinha a hora do chá, descia a tarde... Os últimos navios de vela esperavam que o vento rodasse. Este soprava de oeste, e os barcos que se dirigiam para leste já haviam partido. Mas os que pretendiam ir em direcção oposta, esperavam, esperavam, enquanto a água lhes marulhava sob o fundo chato.
A barcaça de Tlapaltepec aguardava até noite fechada. Costumava ancorar a alguns metros de distância, e, ao anoitecer, os seus passageiros desciam a praia para recolher a bordo e amontoavam-se em grupos à beira do lago.
Vinha ajudá-los a embarcar um indivíduo entroncado, de calças arregaçadas. Os homens postavam-se de costas à sua frente, de pernas abertas; e ele, baixando-se de repente, enfiava a cabeça entre as coxas daqueles, punha-se de pé, e avançava na água com a sua carga humana.
Quando se tratava de transportar uma mulher, agachava-se diante dela para que se lhe instalasse no ombro. com o braço direito rodeava as pernas da criatura que se lhe agarrava à cabeça, e assim a levava para bordo com a maior facilidade.
Em poucos minutos o barco ficava cheio. Debaixo do toldo, em que ardia uma lanterna, sentavam-se em esteiras, desdobravam mantas para se estenderem e dormir.
A vela tombava em pregas de volta do mastro. Provavelmente não partiriam antes da meia-noite. E então seria a rota para Tlapaltepec, com os seus caniços no extremo do lago, as suas praças mortas, as suas casas de adobe negro, os seus caminhos em ruínas, e o seu estranho silêncio tumular, como Pompeia...
Kate conhecia-o bem. Tão estranho e tumular esse silêncio, que a assustava e confundia.
Hoje, porém, não passaria toda a manhã a vaguear na praia. Devia ir a Jamiltepec numa lancha de motor, para visitar Ramon e conversar com ele a respeito da possibilidade do seu casamento com Cipriano.
Ah, como podia decidir-se a tal matrimónio e assim entregar à morte o corpo? Aceitar esse fardo de trevas, consentir em morrer antes da morte, em desaparecer enquanto ainda usufruía a luz do Sol?
Não. Antes fugir para os países de homens brancos.
Apesar de tudo, foi falar com Alonso e combinar com ele a questão da lancha.

CONTINUA

XIV
Veio a manhã, e toda azul, com uma frescura na atmosfera e uma luminosidade tão forte nas árvores e nas montanhas longínquas que os pássaros se espalharam no ar como botões de flores acabados de abrir.
Cipriano regressava a Guadalajara, de automóvel, e Carlota ia com ele. Kate preferiu voltar pelo lago.
Às vezes, Carlota representava verdadeira tortura para o marido. Parecia ter o poder de o lacerar até nas próprias entranhas. Não no espírito, não na alma, porém no seu "eu" emotivo, passional e aí o rasgava e o fazia sangrar interiormente.
Porque a amara, ainda se preocupava com ela; porque ela fora apaixonada, afectuosa, cheia de caprichos e até egoísta, uma vez por outra. E, na assiduidade dos seus cuidados, durante anos seguidos, Ramon havia conseguido estragá-la com mimos.
Entretanto, e gradualmente, modificara-se a natureza do homem. Não que ele deixasse de a estimar ou pretendesse outras mulheres. Esta atitude bem na podia ter compreendido; contudo, no íntimo de Ramon, existia uma força imperiosa, cega, que lhe ordenava se desfizesse do seu ser espiritual para o fundir no cadinho ardente donde sairia um ente novo, inteiramente novo.
Mas devia contar com a mulher. Carlota amava-o e isso, para ela, importava acima de tudo. Amava-o como a toda a humanidade e estava persuadida de ter razão.
Assim, sentia-se roubada, iludida. Porque não continuava o marido a ser bom, amável, benigno, quando procurava tornar o mundo mais benigno, mais amável e melhor?
A razão era esta: Ramon verificara que o mundo já dera tudo o que tinha a dar no caminho da bondade e do amor. Ir mais além seria o mesmo que atingir a perversidade. Chegara o momento duma lenta evolução. Qual fosse, não no sabia.
O sentimento do amor e esse, maior, da liberdade dos homens pareciam condensar-se de roda dele, como uma concha ou como um casulo. A velha lagarta do cristianismo evoluía para qualquer coisa diferente.
Para Carlota, tudo se resumia no amor dos filhos, do marido, do povo, dos animais, das árvores. Era a sua vida inteira, o seu Cristo, a sua Virgem Maria. Como renunciar, no fim de contas?
E deste modo continuava a amar Ramon e o mundo inteiro, firmemente, obstinadamente, de forma patética - e quase diabólica. Rezava por ele e consagrava-se a obras de caridade.
Ora esse amor, desviado do fluxo espontâneo, sujeito às oscilações imprevisíveis do Espírito Santo, acabou por se transformar em vontade. Amou então com a sua vontade, tal como é agora a tendência no mundo dos brancos. Saciou-se de caridade - essa bondade cruel.
A sua simpatia, a sua sedução pessoal, tudo isso a abandonou. Começou a estiolar-se, a endurecer. Rezando pelo marido, constantemente o censurava. Nela expirou a espontaneidade do ser, a vontade fez-se rígida e toda a sua pessoa se tornou numa vontade frustrada.
Depressa conseguiu atrair a si os filhos. Ramon era muito orgulhoso e estava muito aborrecido para poder lutar. Assim se tornaram só os filhos de Carlota. Que os guardasse para si!
Eram os filhos da sua carne de outrora. A nova não tinha descendência: provavelmente nunca a teria.
- Lembra-te - observara-lhe ele, com soturna lógica - que tu não amas senão com a tua vontade. Não aprecio o amor que sentes pelo teu Deus: é uma afirmação da tua vontade apenas. Não aprecio o amor que me consagras: é ainda do mesmo género. Não aprecio o amor que tens pelos teus filhos: se vir neles uma centelha do desejo de se libertarem, farei tudo para os salvar. Entretanto procede como melhor entenderes com o teu amor e a tua vontade. Mas fica sabendo que discordo. Discordo da tua insistência, do teu monopólio do sentimento, das tuas obras de caridade. Discordo por completo do teu teor de vida. Enfraqueces e vicias os pequenos. Não os estimas, domina-los com o teu amor-vontade. Um dia rebelar-se-ão. Chegarão a detestar-te. Não te esqueças destas minhas palavras.
Dona Carlota, ao ouvir isto, estremecera até nas fibras mais íntimas do ser. Mas foi à capela do Convento da Anunciação, e rezou. Tendo orado pelo marido, julgou adquirir uma vitória sobre ele, e voltou para casa com esse triunfo puro e frágil como a flor que desabrocha numa sepultura: a do seu marido.
Ramon, desde aí, começou a espiar-lhe a dedicação irritante e alvoroçada como se espiasse as manobras do seu pior inimigo.
A vida fizera a sua obra naquele ser humano: arrancara-lhe a espontaneidade, deixando-lhe apenas um querer obstinado. Na mulher morrera o deus, ou a deusa - ficando só misericórdia envolta no manto da vontade.
- Carlota - dissera-lhe o marido -, serias imensamente feliz se pudesses usar luto pesado... luto por mim! Não te darei esse gosto.
Ela relanceou-o estranhamente com os seus olhos castanhos-claros.
- Tudo está nas mãos de Deus - replicou, afastando-se a toda a pressa.
Agora, nessa manhã que sucede às primeiras chuvas, ei-la a aproximar-se do quarto de Ramon, onde ele estava sentado a escrever. Como na véspera, conservava-se nu até à cintura, apenas com umas calças de linho branco, muito largas, como de pijama.
- Posso entrar? - inquiriu nervosa.
- Entra! - respondeu o interpelado, descansando a caneta e levantando-se.
Havia só uma cadeira, que ele lhe ofereceu; mas Carlota foi sentar-se na cama ainda por fazer, como se considerasse ali o seu lugar natural. Ao mesmo tempo olhava-lhe o peito nu - também como se considerasse aquilo uma afirmação do seu direito natural.
- Parto com Cipriano, depois do almoço.
- Já o disseste.
- Os pequenos chegam daqui a três semanas.
- Bem sei.
- Queres vê-los?
- Se o desejarem.
- com certeza que desejam.
- Então trá-los cá.
- Achas que seria agradável para mim? - retorquiu ela, enclavinhando as mãos.
- Tu é que não me tornas a vida agradável, Carlota.
- E como o poderia fazer? Não ignoras que reprovo a tua atitude. Quando te escutei ontem à noite, achei que dizias coisas belas mas monstruosas. Sim, monstruosas! Até pensei: "Que faz este homem? Este homem que, mais do que nenhum, podia ser tão benéfico para o seu país e para a humanidade!"
- E então? Que faz ele?
- Sabe-lo muito bem! Ah, não tolero! Não és tu quem vai salvar o México. Cristo já o salvou.
- A mim afigura-se-me que não.
- Sim! Sim! E Ele é que te fez assim, um ser extraordinário que podia salvar em Seu nome e pelo Seu amor. Mas em vez disso...
- Em vez disso, Carlota, tento fazer outra coisa. Ora ouve-me: se Cristo, o verdadeiro, não foi capaz de salvar o México, o Anticristo da Caridade, e o socialismo, e os políticos, e as reformas acabarão por destruí-lo. Isto, só isto me impele a agir. Tu, Carlota, com as tuas obras de caridade e a tua misericórdia; e homens como Benito Juarez, com a sua Reforma e a sua Liberdade; e o resto do povo benevolente, políticos, socialistas e quejandos, cheios de piedade pelos homens, nos seus discursos, mas na realidade carregados de ódio (o ódio dos materialistas que não possuem pelos materialistas que possuem), todos vocês, enfim, representam o Anticristo. Até põem veneno no cálice da Eucaristia! Por esta razão é que eu saio da minha reserva natural. Não quero ver ninguém envenenado. Não me preocupo muito com as "grandes massas" mas não quero ninguém envenenado.
- E tens a certeza de não seres tu o próprio envenenador? Suponho que és.
- Pois vai supondo. Eu também suponho que tu, Carlota, ainda não alcançaste o desenvolvimento final da tua feminilidade: é uma coisa que faz diferença da antiga concepção.
- A mulher é sempre a mesma.
- Isso não. Nem sequer o homem.
- Em suma: que tencionas fazer? Que julgas que esse disparate do Quetzalcoatl nos pode trazer?
- Quetzalcoatl é uma palavra viva para esta gente. Nada mais. Tudo o que pretendo é que descubram os limites, eles da sua virilidade, elas da sua feminilidade. Os homens ainda não são bem homens, as mulheres ainda não são completas. São todos feitos de metades, de partes incoerentes, horríveis ou boas. Assim tu, Carlota, segundo creio. E o resto do mundo. Mas este povo não sabe defender a sua integridade, este nosso povo do México. Assim, tendo eu podido reter uma parte da minha natureza, para me servir de guia, compete-me auxiliá-lo a realizar também a sua.
- Hás-de falhar.
- Não. Aconteça o que acontecer, haverá nova vibração, novo apelo na atmosfera, nova resposta no coração de alguns homens.
- Trair-te-ão. Sabes ao menos o que o teu amigo Toussaint diz de ti? O futuro de Ramon Carrasco é apenas o passado da humanidade.
- Grande parte pertence, de facto, ao passado. Naturalmente
foi isso o que Toussaint notou.
- Nem os pequenos acreditam em ti. Por instinto, não acreditam. Quando fui visitá-los, o nosso filho Cipriano perguntou-me: "O pai continua com aqueles discursos tolos a respeito do regresso dos antigos deuses?" E acrescentou: "Oxalá acabasse com isso. Seria para nós uma vergonha se viesse para os jornais com essa história."
Ramon riu-se.
- As crianças são como gramofones. Falam conforme o disco que lhes põem. As mães e os professores transformam-nas em grafonolas, de modo que tudo quanto dizem é a reprodução exacta do disco por eles colocado... Talvez no tempo de Cristo as crianças não fossem tão exploradas pelos adultos...
De súbito, o sorriso apagou-se na face de Ramon e ele, levantando-se, apontou para a porta.
- Vai-te embora! - disse em voz baixa. - Vai-te. Já aspirei de mais o cheiro pernicioso do teu espírito.
Sentada na cama, Carlota fixava-o com olhos amedrontados e encolhia-se como se o braço estendido ameaçasse bater-lhe.
A cólera dissipou-se no semblante de Ramon e o seu braço tombou.
- No fim de contas não temos nada de comum - murmurou docemente. E, pegando no chapéu e no casaco, saiu para o terraço, separando-se dela de corpo e alma. Carlota deixou-se cair na cama e aí ficou tal um monte de cinzas, onde ardiam apenas as brasas da sua vontade.
Os olhos tinham um fulgor desusado quando se reuniu a Kate e a Cipriano.
Depois do almoço, Kate voltou para casa de barco. Ao partir da hacienda sentia estranha depressão - como se a sua vida devesse ali decorrer e não noutra parte.
Pela primeira vez, achou a casa vazia, banal de uma vulgaridade extrema.
- Ah, niña! Ainda bem que veio! Muita água caiu ontem à noite! Mas a niña estava em segurança na hacienda. Que bonita é a hacienda de Jamiltepec! E que boa pessoa é Don Ramon, não é? É muito cuidadoso com o pessoal. E a señora não podia ser mais simpática.
Kate sorriu, mas a sua vontade era responder-lhe: "Por amor de Deus, acaba com essa tagarelice e deixa-me sozinha."
Teve de suportar novamente a insolência calma e subtil, a intolerável nota de sarcasmo que em tudo transparecia - até no constante grito de Juana: niña! niña!
Durante as refeições Juana sentava-se no chão, a pouca distância de Kate, e falava, falava, fixando, todo o tempo, na patroa os olhos negros em que por vezes cintilava a ironia peculiar dos índios.
Kate não era abastada, possuía modestos rendimentos.
- Ah, a gente rica... - disse Juana.
- Não sou rica - volveu Kate.
- Não é, niña - insistiu a outra, com a sua voz caridosa e cantante, como a dum pássaro. - Então é pobre? - E, nesta conclusão, havia evidente ironia.
- Também não sou pobre. Nem rica nem pobre.
- Não é rica nem é pobre, niña! - repetiu Juana.
Para ela, as palavras não significavam nada. Para ela, que não possuía coisa nenhuma, Kate pertencia à classe mágica, a dos opulentos. E, bem no sentia Kate, no México era crime ser rico, estar classificado entre os ricos. Não propriamente um crime, mas uma extravagância. A classe rica era a classe extravagante, como os cães de duas cabeças ou vitelos de cinco pernas. Olhavam-na menos com inveja do que com a curiosidade dum antagonismo vivo, a curiosidade dos "normais" perante aqueles que o não são; o indolente mas forte e corrosivo escárnio dos índios, nascido daquela natureza de lava, contra tudo quanto destoa e sobe acima do nível pardacento desse solo vulcânico.
- É verdade, niña, que o seu país fica do outro lado? - perguntou Juana, apontando com o dedo para o chão, para as entranhas da terra.
- Não tanto - respondeu Kate. - A minha pátria é mais para ali - e esboçou um gesto pela superfície adiante.
- Ah, naquela direcção! - exclamou Juana. E olhou para Kate com subtil desconfiança, como se dissesse: "Que se pode esperar de gente que vem da terra, de través, como os grelos da hortaliça?"
- E é verdade que em certos sítios há pessoas só com um olho... aqui? - perguntou ela tocando no meio da testa.
- Não, não é verdade.
- Tem a certeza? Já esteve nessas terras?
- Sim. Visitei todos os países, e não existem semelhantes criaturas.
- Verdad! Verdad! - murmurava Juana cheia de espanto. - E no seu país só há gringos?
Queria dizer: não indivíduos como nós os mexicanos, sal da terra.
- São todos como eu - respondeu Kate friamente.
- como a niña E falam todos da mesma maneira?
- Sim, como eu.
- E são muitos?
- Muitíssimos.
- Jesus! - exclamou Juana, sobressaltada à ideia de que o Mundo inteiro estivesse cheio de seres assim tão extravagantes e risíveis. Concha, aquela selvagenzinha, olhava admirada, através da janela de grades, para a estranha fauna de brancos que visitavam a niña. E embasbacava-se sinceramente, enquanto ia fazendo as suas tortillas.
Kate desceu até à cozinha. A pequena achatava a massa de farinha de milho, comprada na plaza a oito centavos o quilo.
- niña! - bradou ela, com a sua voz roufenha. - Come tortillas?
- Uma vez por outra.
- Então coma agora uma! - E Concha estendeu a palma de mão trigueira, onde se via uma tortilla de limpeza duvidosa.
- Agora não.
Detestava essa pesada massa que parecia de gesso e sabia a lodo.
- Não quer? Não gosta? - retorquiu Concha, soltando uma risada estrídula e impudente. E deitou a torta rejeitada no prato onde se empilhavam as outras. Era daquelas pessoas que não comem pão, alegando que não apreciam, que não chega a ser alimento.
No terraço, Kate recostava-se na sua cadeira de baloiço, enquanto o sol se entornava sobre o quadrado verde do jardim, sobre a palmeira que abria à luz os seus enormes leques recortados, sobre os cardeais de flores vermelhas e sobre as laranjas dum tom escuro que pareciam transpirar de calor.
Aproximava-se a hora do almoço, furiosamente abrasadora: a hora da sopa quente e gordurosa, do arroz cheio de banha, do peixe frito, dos bocadinhos de carne guisada com legumes, dos cabazes de fruta onde se acumulavam mangas e papaias, frutos tropicais que não apetece comer quando há calor. Servia à mesa a pequena Maria, descalça, de vestido encarnado e cheio de rasgões. Era a mais simpática de todas. Quando Juana começava a falar interminavelmente, ela chegava-se para Kate e tocava-lhe no braço - uma, duas vezes. Se lhe não ralhassem, ficaria ali encostada ao ombro de Kate, contemplando-a numa expressão beatífica, e os seus grandes olhos pretos iluminavam-lhe o rosto infantil, picado das bexigas, vagamente imbecilizado. Mas Kate repelia logo o braço trigueiro e magro: a criança recuava uns passos, desaparecia-lhe o ar de beatitude, porém os olhos negros continuavam brilhando como que absortos num êxtase de réptil.
Concha acudia então, batia com o cotovelo na irmã e fazia qualquer observação brusca, ininteligível para Kate. Apagava-se a cintilação dos olhos negros e Maria começava a chorar, enquanto Concha irrompia em gargalhadas selváticas. Juana, suspendendo o fluxo de palavras, voltava-se para as duas filhas e fazia uma observação ineficaz. Há sempre uma vítima, vítima inevitável, e um inevitável algoz.
Horrível, horrível vácuo ardente das manhãs mexicanas. Pesava no ar um tédio tenebroso. Kate sentia-se perdida, e fugia então para o lago a fim de escapar à casa, ao pessoal.
Depois das chuvas haviam florido de rubro e azul as árvores dos jardins abandonados da margem. Súbitas flores tropicais, vermelhas e azuis. Maravilhosos salpicos de cor, brilhantes, fugazes como fogo-de-artifício.
E Kate, ao pensar nos espinheiros guarnecidos de branco das azinhagas da Irlanda, nas dedaleiras junto das rochas, nos tufos de urze e nas campainhas entrelaçadas, sentia desejos de voltar para o seu país e fugir daquele explendor tropical que nada lhe dizia ao coração.
No México, o vento soprava rijo, a chuva caía em torrentes, o sol queimava, entontecia... Terra seca, dura, ofuscante de luz implacável. Terra negra, cortada de relâmpagos, batida pela violência da chuva. Nunca temperada de nevoeiros; sem nenhuma doçura na atmosfera. Ou calor dissolvente ou frio de rachar.
E Kate sentia-se dominada pela cólera e pelo ressentimento. Sentada debaixo de um salgueiro, à beira do lago lia um romance de Pio Baroja repleto de "não, não, não"! - ich bin der Geist der stets verneint! Contudo, ela ainda estava mais cheia de fúria e de repúdio do que Pio Baroja. A Espanha não pode proclamar "Não!" como o pode o México.
Envolta na folhagem leve da árvore e instalada sobre a areia quente, Kate protegia-se o melhor possível do sol. Havia no ambiente um leve cheiro amoniacal. O lago estava tão opaco e imóvel que se diria invisível. A pequena distância, ajoelhavam-se na margem mulheres trigueiras, vestidas apenas com uma camisa molhada, com a qual se haviam banhado. Algumas lavavam roupa, outras, com o auxílio de cabaças, deitavam água nos cabelos e pelos ombros, sob a intensidade dos raios solares. À esquerda ficavam duas árvores enormes, uma sebe de bambus e cabanas de palha dos indígenas. Ali terminava a praia: quase até ao lago desciam as nesgas de terra dos índios.
Relanceando o olhar pela claridade ofuscante, Kate sentia-se isolada no próprio âmago da sombra, enquanto o mundo se movia nas partículas ínfimas daquele vazio resplandecente. Nesse momento descortinou um fedelho que avançava solenemente para a borda de água. Teria os seus quatro anos mas parecia mais corajoso do que um adulto. com a idade vem qualquer coisa de vulnerável que ainda não possuem essas crianças destemidas. Kate reconheceu o garoto pela camisa rubra esgarçada e pelos farrapos que eram as suas calças brancas de homenzinho. Reconheceu-lhe a cabeça redonda e escura, o andar rígido e vigoroso, os olhos grandes, o ar ousado de
animal bravio.
"Que terá ele apanhado?", disse ela de si para si, espantada para
o vulto que se mexia sob o ardor da luz.
Pendente do bracito, presa pelos pés, trazia uma ave lacustre que agitava debilmente as asas, uma dessas muitas que flutuam à superfície do lago, próximo da margem.
Para ali caminhava o petiz, segurando a ave de cabeça para baixo; junto do punho estreito do seu algoz, ela parecia grande como uma águia. Atrás corria outro garoto. Os dois pequenos chapinharam cerca de um metro nas ondas tépidas, à claridade muito viva do sol, e, inclinando-se gravemente, como homens sensatos, puseram o seu prisioneiro na água. A ave flutuou acolá, mas a custo avançava. Então os miúdos arrastaram-na como um trapo, por um cordel amarrado à perna.
Tão calmos, silenciosos e escuros, os rechonchudos filhos de índios! Duas figuras solenes, com esse frangalho de pássaro.
Kate voltou a vista para o livro, mal disposta; aquilo bulia-lhe com os nervos. Ouviu o som de uma pedra a cair na água. A ave estava no mesmo ponto; não havia dúvida de que ao cordel tinham amarrado uma pedra. Adejava e não saía dali.
E os dois tiranos, numa torva e calma volúpia, arremessavam seixos, com a sua pontaria certeira de índios ferozes, ao animal fraco e alvoroçado. Aquela migalha de gente, de camisa vermelha, parecia um guerreiro, de braço erguido para lançar o seu projéctil à vítima indefesa.
Num ímpeto, Kate correu para a praia.
- Feios meninos! Isso não se faz! Vão-se embora, seus desalmados! - gritou só de um fôlego.
O pequeno de cabeça redonda fixou nela as pupilas negras e em
seguida desatou a correr, seguido pelo companheiro.
Kate entrou na água e agarrou a ave quente e molhada, que ainda tentou bicá-la. Da perna pendia-lhe o pedaço de cordel e Kate, uma vez na praia, apressou-se a desatar o nó. A ave, do tamanho duma pomba, conservou-se imóvel na mão dela.
Depois de descalçar os sapatos e as meias, Kate olhou em volta e, não descobrindo vivalma nas imediações, levantou as saias e foi descalça através da água, quase caindo sobre as pedras. Junto à
margem era pouco profundo. Ela continuou a avançar, cambaleando, com uma das mãos a arregaçar as saias e a outra ocupada com a
ave, até que a água lhe chegou aos joelhos. Então poisou o animal
na superfície líquida e deu-lhe um leve impulso.
Ele, porém, ficou ali, a boiar como um trapo.
- Anda, mexe-te! Mexe-te! - exclamava Kate, incitando-o a nadar para o largo.
Mas ou não podia ou não queria. Fosse porque fosse, não se moveu.
Em todo o caso encontrava-se fora do alcance dos garotos. Kate tratou de voltar para baixo da árvore e fugir ao sol ardente.
Numa ira silenciosa, ora olhava para o lago ora para as cabanas dos índios imersas em sombra densa.
A ave mergulhava o bico na água e sacudia a cabeça. Estava a voltar a si... Mas não nadava. Deixava-se levar pelas ondas, e estas arrastá-la-iam até à praia.
- Palerma! - exclamou Kate nervosamente, concentrando todo o seu espírito no animal, com a pretensão de o sugestionar e o fazer afastar-se para longe.
Da planura cintilante do lago aproximavam-se dois companheiros, nadando apressados. O da frente avançou o bico para a ave inerte como se dissesse: "Olá! Então que é isso?" Mas logo se desinteressou e se reuniu ao camarada, no seu rumo para a margem.
Kate olhava com angústia para aquele farrapo coberto de penas. Não se animaria a seguir as outras duas aves?
Não! Ali continuou a boiar, limitando-se a sacudir a cabeça de vez em quando.
Kate leu mais umas linhas de Pio Baroja. Quando tornou a olhar já não viu a pobre ave. As outras duas andavam ligeiras entre os calhaus. Voltou a ler um pouco.
O que viu a seguir foi um rapazola de cerca de dezoito anos a descer a praia em largas passadas e, atrás dele, o fedelho de camisa vermelha. Kate sentiu um baque no coração.
As duas galinholas abriram as asas e, num voo baixo, desapareceram na luminosidade do lago.
Mas o rapaz de chapeirão e fato-macaco espreitava entre as pedras. Kate, no entanto, estava convencida de que a sua ave se afastara para o largo.
Não! Afinal, não. Pelo contrário, voltara para a margem, trazida pelas ondas.
O rapaz inclinou para a água os ombros largos, esses ombros de índio que por vezes Kate tanto detestava, e, estendendo o braço, agarrou no infeliz animal. Depois, segurando-o pela ponta duma asa, entregou-o ao garoto. Feito isso, tornou a atravessar a praia, muito satisfeito consigo mesmo.
Como nesse instante Kate odiou aquele povo, a sua vileza e crueldade, os seus ombros direitos, o peito alto e, acima de tudo, o andar emproado!
De cabeça um pouco pendida para a frente e olhos postos no chão, sem nunca voltar a cara para o lado de Kate, o rapaz dirigiu-se para a sombra das cabanas. E atrás marchava o miúdo, baloiçando a desgraçada avezita suspensa pela ponta duma asa. De vez em quando, virava a face morena e redonda e lançava a Kate um olhar vingativo e desconfiado, com medo de que essa mulher branca caísse sobre ele novamente.
Kate olhava-o através dos ramos roçagantes do salgueiro.
- Se eu pudesse, matava-te! - exclamou. Regularmente, como num maquinismo de relógio, o pequeno voltava a cara para trás, ao mesmo tempo que ia correndo para uma abertura da sebe, por onde o rapaz desaparecera.
Kate pensou se deveria, mais uma vez, ir salvar aquela ave desastrada. Mas para quê?
O país devia ter sempre a sua vítima. A América precisa duma vítima. Enquanto o mundo durar, esse continente estará dividido entre vítimas e carrascos. Para quê intervir?
Levantou-se, detestando por igual a ave imprudente e o garoto teimoso.
À beira de água amontoavam-se mulheres. Para oeste, sob o resplendor, erguiam-se as vivendas com o seu ar abandonado, e as torres gémeas da igreja como dois dedos levantados acima da chama rubra das árvores floridas e do negrume das mangueiras. Kate viu a praia de aspecto imundo e aspirou o cheiro do México, que se espalha ao calor, após as chuvas: excremento de homens e de animais, seco ao sol sobre a terra muito seca. E viu as folhas ressequidas, as folhas das mangueiras. E sentiu a atmosfera com o seu leve resíduo de fumo.
"Um dia virá em que eu partirei", disse consigo.
Sentando-se mais uma vez na varanda, escutou o clape-clape das tortillas, vindo do extremo do pátio, o som metálico, tão peculiar, dos pássaros, e percebeu que as nuvens já se acumulavam a ocidente, muito pesadas, engendrando os trovões. E compreendeu que não tolerava mais aquilo: o vácuo e a pressão, a horrível elementalidade do incriado. E o próprio sol, e a própria chuva, ambos estranhos, bárbaros. ! Meditou no olhar sombrio do garoto indígena: misterioso vácuo.
Ele não compreendia que a ave era um ser verdadeiro e vivo, com a sua vida própria. Isso, aquela raça jamais compreenderia. com os seus olhos escuros fitavam o mundo rudimentar onde os elementos são monstros cruéis, assim como o sol é monstruoso e é monstruosa a água torrencial da chuva, e a terra muito seca, ressequida.
E entre a monstruosidade dos elementos tremulam e pairam outras presenças: entes terríveis e rudes, gente branca, os gringos, poderosos como deuses, porém bárbaros, demoníacos. E seres estranhos como certas aves que flutuam no ar, e cobras que se arrastam no chão, e peixes que nadam e que mordem. Rude, monstruoso universo de monstros grandes e pequenos, nos quais o homem se detém por simples resistência e precaução, e nunca, nunca avança para sair das trevas que o rodeiam.

XV
A luz eléctrica em Sayula era tão incerta como tudo o mais. Em teoria, funcionava desde as seis e meia da tarde até às dez da noite. Mas não na prática. Muitas vezes recusava-se a aparecer antes das sete, ou mesmo antes das oito. Mas a pior partida era apagar-se justamente a meio da ceia, ou quando se estava a escrever uma carta. De repente, ouvia-se um estalo, e as trevas da noite mexicana envolviam tudo. E então corria toda a gente às cegas, em busca de velas e de fósforos, chamando uns pelos outros com vozes assustadas. Depois, a luz eléctrica tentava reviver, e via-se tremular nas lâmpadas uma incandescência rubra, sinistra. Todos retinham a respiração. Vinha ou não vinha? Havia ocasiões em que se apagava de vez. Noutras, retomava alento e reaparecia, embora não muito brilhante; contudo, mais valia isso do que nada.
A coisa piorou na estação das chuvas. Noite após noite, a luz falhava. E Kate sentava-se à claridade bruxuleante da vela, enquanto os relâmpagos revelavam as formas escuras das plantas existentes no pátio.
Numa noite dessas, Kate instalou-se na varanda, de costas viradas para a sala deserta onde luzia uma vela. De quando em quando, via os loendros e a papaia no jardim, iluminados pelo clarão dos raios que tombavam como uma chapada azul e silenciosa na escuridão de breu. Rumorejavam trovões ao longe, como jaguares esfomeados que rondassem o lago.
Por várias vezes o portão rangeu e soaram passos no saibro. Passos de alguém que dava "boa noite" a Kate e se encaminhava para as dependências de Juana, onde luzia a claridade frouxa de uma candeia de azeite através da abertura da janela. Em seguida, ouviu ela o murmúrio duma voz recitando ou lendo. E enquanto o vento soprava e a luz dos relâmpagos poisava como um pássaro azul sobre as plantas, aquilo continuou, juntando-se ao rumor das bagas que caíam da árvore das cuentas. Kate sentia-se inquieta e um tanto ao abandono. Percebia que algo de extraordinário se passava na residência da criada, qualquer coisa de secreto.
Mas, no fim de contas, a casa era sua, e tinha o direito de saber o que fazia o pessoal. Levantou-se da cadeira de baloiço e, seguindo pela varanda, deu a volta à sala de jantar, cujas portas que davam para o pátio já estavam trancadas.
No canto para além do poço, viu um grupo sentado no chão, do lado de fora da cozinha de Juana. As mulheres encafuadas nos rebolos, os homens de chapéu na cabeça e serapes nos ombros, todos olhavam para o interior da barraca, onde ardia a candeia e uma voz se fazia ouvir, lenta e monótona.
Ao sentirem os passos de Kate, viraram a cabeça e alguém preveniu os outros da aproximação dum intruso. Juana pôs-se de pé.
- É a niña! - exclamou. - Coitadinha, sozinha toda a noite... Venha cá, niña!
Os homens ergueram-se e Kate reconheceu entre eles o moço Ezequiel, que se descobriu à sua chegada. E ali se encontrava a recém-casada Maria del Carmen. E dentro da barraca, com a candeia pousada no chão, estava Júlio, marido daquela. Além deles, Kate viu Concha, a pequena Maria e um casal desconhecido.
- Ouvi uma voz - explicou Kate. - Não sabia que era você, Júlio... Como tem passado? Ouvi a voz e vim averiguar o que
acontecia.
Houve um instante de silêncio, que Juana quebrou.
- Fez bem em vir, niña, fez bem. Concha, traz uma cadeira
para a niña.
Concha levantou-se a custo e foi buscar a cadeirinha baixa que era a única peça de mobília de Juana, além da cama.
- Não incomodo? - perguntou Kate.
- Não, niña. É amiga de Don Ramon, não é verdade?
- Sou.
- Pois nós estamos... estamos a ler os hinos...
- Ah, sim?
- Os hinos de Quetzalcoatl - acrescentou Ezequiel com súbita arrogância.
- Então, continuem. Posso ouvir também?
- Pode, pode! A niña quer ouvir. Lê, Júlio.
Tornaram todos a sentar-se no chão, e Júlio instalou-se junto da candeia; mas baixou a cabeça, escondendo a cara na sombra do chapéu.
- Entonces! Anda, lê! - insistia Juana.
- Está com medo - murmurou Maria del Carmen, pousando a mão no joelho do marido. - A niña quer ouvir, e portanto deves ler, Júlio.
Depois dum momento de indecisão, o rapaz inquiriu em voz abafada:
- Começo do princípio?
- Sim, do princípio! Lê! - ordenou Juana.
Júlio tirou debaixo da sua manta uma folha de papel, semelhante a um prospecto, no topo da qual sobressaía o símbolo de Quetzalcoatl: o círculo com a ave ao centro.
Então começou a ler, sempre em voz um tanto sufocada:
"Sou Quetzalcoatl de rosto escuro que noutros tempos viveu no México até que, de além dos mares, veio um estrangeiro que tinha pele branca e falava estranha linguagem.
Quetzalcoatl perguntou: - Que vens fazer ao México?
E o outro respondeu: - Venho trazer-lhe a paz.
Quetzalcoatl disse: - Está bem. Já me sinto velho, devo retirar-me. Adeus, povo do México. Adeus, irmão estrangeiro. Chegou a hora de eu partir.
Lentamente ele se foi. Aos ouvidos ressoava-lhe o desmoronar dos templos mexicanos; mas continuou o seu caminho, em passo vagaroso porque era velho e estava cansado de tanto viver. Subiu a encosta da montanha, atingiu a neve dos píncaros, e, quando caminhava, ouviu gritos de agonia e viu clarões de incêndio. Então disse consigo mesmo. "São os mexicanos a gritar! Mas não devo fazer caso porque o meu irmão estrangeiro lhes enxugará as lágrimas."
Assim o velho deus alcançou o cume da montanha e ergueu os olhos para a casa azul do céu. E através duma porta na parede azul viu escuridão profunda, e estrelas e uma lua a brilhar. E por trás das trevas viu uma estrela enorme, uma estrela cintilante.
Então, de volta do velho Quetzalcoatl, irromperam do vulcão penas e asas de fogo. E, com as asas de fogo, Quetzalcoatl ergueu-se no espaço tal um pássaro luminoso e chegou aos degraus brancos do céu que conduzem às paredes azuis, onde está a porta que dá para as trevas. E ali penetrou e desapareceu.
Tombara a noite, Quetzalcoatl fora-se embora, e os homens no mundo viram somente uma estrela atravessar o firmamento, mergulhando na escuridão.
Então os mexicanos disseram "Quetzalcoatl morreu. Até a sua estrela se extinguiu".
De modo que aprenderam os ensinamentos dos sacerdotes que vinham de além dos mares. E assim se tornaram cristãos."
Júlio, que se absorvera na leitura, acabou de repente como se a história terminasse ali.
- É bonito, isso - disse Kate.
- E não é mentira nenhuma - acrescentou a céptica Juana.
- Señora! - gritou Concha. - É verdade que o Paraíso é lá em cima e que as nuvens formam degraus até à beira do céu, como os degraus do cais até ao lago? E é verdade que El señor vem ao cimo da escada e olha cá para baixo e nos vê como a gente olha para a água e vê os peixes?
Sacudindo o cabelo e com a face trigueira erguida para Kate,
Concha esperou pela resposta.
- Não sei tudo - replicou a interpelada, rindo-se. - Mas
parece-me que é verdade.
- Ela acredita - disse Concha, voltando a cara para a mãe.
- E será verdade - perguntou Juana por sua vez - que El Señor, El Cristo del Mundo, é um gringo, e que nasceu no país da niña, assim como a Sua Santa Mãe?
- No meu país, não. Noutro próximo do meu.
- Imagine-se! - exclamou Juana, espantada. - El señor é um gringuito e a Mãe Santíssima uma gringuita! Sim, é de crer... Basta olhar para os pés da niña. Ora vejam! São mesmo pés de madona! - Kate estava sem meias e tinha sandálias com uma simples presilha. Juana tocou-lhe nos dedos, fascinada. - Pés de madona! E Ela, a Mãe Santíssima, é uma gringuita. Nasceu para além dos mares, como a niña
- Sim...
- Ah! Tem a certeza?
- Sim, todos sabemos isso.
- Imagine-se! A Santíssima é uma gringuita, nasceu para além dos mares, como a niña! - Juana falava com um misto de espanto, de horror e de troça.
- E o Senhor é um gringuito? - bradou Concha.
- Foram os gringos que mataram El Señor, niña? Não foram
os mexicanos?
- Não foram os mexicanos - confirmou Kate.
- Foram os gringos?
- Sim.
- E Ele era um gringo?
- Era - respondeu Kate, já não sabendo que dizer a tanta pergunta tola.
- Ora vejam! - comentou Juana, em tom malévolo. - Era gringo, e os gringos crucificaram-no.
- Mas já há muito tempo - apressou-se Kate a explicar. Seguiram-se uns instantes de silêncio. As faces trigueiras das
mulheres e homens sentados no chão erguiam-se para Kate, olhando-a fixamente e considerando cada palavra. Lá fora, os trovões rumorejavam em diferentes lugares.
- E agora, niña - proferiu a voz fria de Maria del Carmen - repudiamos El señor e aceitamos Quetzalcoatl.
- Quetzalcoatl não tem mãe.
- Talvez tenha esposa - sugeriu Kate, irónica.
- Quien sabe! - murmurou Juana.
- Dizem que ele se tornou novo no Paraíso - acudiu a atrevida Concha.
- Quem? - inquiriu Juana.
- Não sei como é que o chamam - murmurou Concha, com vergonha de pronunciar o nome.
Ezequiel interveio com a sua voz de adolescente, que mais parecia um latido:
- Quetzalcoatl! Sim, é agora um deus na flor da idade, e muito bem constituído.
- Dizem isso! Imagine-se! - exclamou Juana.
- Aqui é que diz - volveu Ezequiel. - Está escrito no segundo hino.
- Ora lê, Júlio.
E Júlio, já sem nenhuma relutância, pegou noutro papel.
"Eu, Quetzalcoatl, do México, fiz a viagem mais longa de todas.
Para além da parede azul do céu, para além do Sol, através da planície de trevas onde as estrelas se desenvolvem como árvores, como árvores e arbustos, muito longe no coração de todos os mundos, ao nível da Estrela da Manhã...
E no coração de todos os mundos esperavam aqueles cujas faces não pude ver. E em vozes como abelhas zumbindo murmuravam entre si: "Eis Quetzalcoatl que encaneceu ateando o fogo da vida. Vem só, e devagar."
E então, com mãos que não pude ver, eles pegaram nas minhas mãos, e nos seus braços que não pude ver morri por fim.
Mas, depois de morto, não deitaram fora os meus ossos, nem me lançaram aos quatro ventos, nem aos seis. Não, nem sequer ao vento que sopra para o meio da terra, nem ao que sopra para cima como um dedo que aponta eles me entregaram.
Morreu, disseram, mas não se destruirá.
Tiraram óleo das trevas e ungiram-me a testa e os olhos, os ouvidos, as narinas e a boca, o peito, o ventre e as minhas partes secretas, adiante e atrás; e a palma das mãos, e os joelhos, e a planta dos pés.
Por fim, ungiram-me a cabeça com o óleo tirado das trevas. E então disseram: Está confirmado. Deixemo-lo agora.
Deixaram-me na fonte que borbulha sombriamente do coração do mundo, longe, para além do Sol. E ali estive eu, Quetzalcoatl, em consolador esquecimento.
Dormi um longo sono, e não sonhei.
Até que uma voz chamou: - Quetzalcoatl!
Perguntei: - Quem é?
Não houve resposta, mas a voz repetiu: - Quetzalcoatl!
Onde estás? - disse eu.
Não estou aqui nem ali. Sou tu mesmo. Levanta-te.
Tudo pesava sobre mim, como uma pedra tumular de trevas.
E eu disse: - Sou velho. Como posso afastar esta pedra?
Como é que tu és velho se eu sou novo? Eu desviarei a pedra.
Senta-te.
Sentei-me, e a pedra rolou pelos abismos do espaço.
Falei então comigo: - Sou novo. Mais novo do que os novos, mais velho do que os velhos. Desabrochei como uma flor no caule do tempo, encontro-me no centro da flor da minha natureza humana. Não sofri com o desejo de romper o botão nem ansiei pelos longes como a semente que flutua no céu. Abriu a corola da minha floração, no meio oscilam as estrelas. A minha haste mantém-se no ar, as raízes mergulham nas trevas, o sol não é mais do que uma taça} cheia de mim.
Não sou criança nem velho, sou a flor desabrochada, sou novo.
Levantei-me, estendi os membros e olhei em volta. Vi o Sol por baixo de mim, tal um pássaro ardente pairando ao meio-dia sobre os mundos. E o seu bico era comprido e muito aguçado.
E ouvi uma voz dizer: - Oh, Quetzalcoatl! Esqueceram-te! Esqueceram a serpente emplumada! A serpente-ave silenciosa! Já ninguém pergunta por ti.
E eu respondi: - A serpente do meio da terra dorme nos meus rins e no meu ventre, a ave do ar exterior empoleira-se-me na cabeça, roça o bico no meu peito. Mas sou o senhor de um e outro. Um deus novo, com novos membros e vida, e a luz da Estrela de Alva nos olhos.
Sou Quetzalcoatl, estrela entre o dia e a noite.
Houve profundo silêncio quando Júlio acabou de ler.

XVI
Nas tardes de sábado, emergiam da leve bruma, a oeste, barcaças negras de grandes velas quadradas. Vinham de Tlapaltepec, com chapéus de palha, mantas e loiça de barro; de Ixtlahuacan, Jaramay e Las Zemas, com esteiras, madeira de construção, carvão e laranjas; de Tuliapan, Cuxcueco e San Cristóbal com melancias, tomates, mangas e legumes; e carregamentos de tijolos e de telhas, e mais carvão e madeira das montanhas que se elevam na outra banda do lago.
Ao sábado, Kate saía sempre por volta das cinco horas para assistir à descarga dos barcos na claridade da tarde. Gostava de ver os homens a correrem nas pranchas e a amontoarem na areia seca as melancias que iam transportando - melancias escuras e de ventre pálido, como animais estranhos. E os tomates, lançados numa poça da margem, flutuavam na água como rolhas vermelhas enquanto as mulheres os lavavam.
Os tijolos eram empilhados junto do antigo molhe. E chegavam burros, para levar tudo aquilo, enterrando as patas na areia e agitando as orelhas compridas.
Os carregadores azafamavam-se de volta das barcaças de carvão, andavam cá e lá com sacas de serapilheira.
- Quer carvão de lenha, niña - perguntou um deles, o mesmo homem que trouxera a mala de Kate desde a estação até casa.
- Qual é o preço?
- Vinte e cinco reales duas sacas.
- Ofereço vinte.
- Pois sejam vinte, señorita. E paga-me dois reales pelo transporte?
- O negociante é que paga o transporte - redarguiu Kate. - Mas dar-lhe-ei vinte centavos.
O homem afastou-se, descalço, de pernas à vela, com duas sacas de carvão às costas. Os mexicanos carregam pesos enormes e com ar de que lhes não custa nada.
Cestos de goiabas, de limas e de limões; cestos de mangas, de laranjas, de cenouras; tabaibos em grande abundância, algumas batatas nodosas, cebolas achatadas e dum branco nacarado, abóboras verdes e mosqueadas como rãs... Era um espectáculo curioso, o desfile de cestos, desde a praia até à igreja.
Costumavam descarregar mais tarde a loiça de barro: jarros bojudos, cântaros dum lindo tom vermelho, tachos envernizados e com ornatos brancos e pretos, frigideiras para as tortillas.
Na margem ocidental, corriam homens com uma dúzia de largos chapéus sobrepostos, o que lhes dava um aspecto de pagodes ambulantes. Outros levavam huaraches finamente tecidas e sandálias de correias, e outros ainda rimas de serapes negras com desenhos cor-de-rosa.
Era fascinante. E, contudo, pesava no ar uma sensação de soturnidade. Aquela gente vinha à feira como para um combate; não pelo gosto de vender mas para fazerem concorrência uns aos outros. Luta surda, que se desenrolava entre eles e o comprador eventual - estranho e sombrio rancor sempre presente.
Quando, ao pôr do Sol, tocavam os sinos da igreja, já a feira começava a funcionar. Nos passeios de volta da praça estavam os índios sentados junto das suas mercadorias: pilhas de chapéus, pares de sandálias em fileira, montes de melancias, um estendal de botões de punho e de bugigangas a que chamavam novedades, tabuleiros cheios de bolos. E a todo o instante chegava gente de longe com os seus burros carregados.
Contudo, jamais se ouvia um grito, nunca uma voz se elevava. Nada dessa animação, desse clamor das feiras do Mediterrâneo. Sempre o atrito pesado da vontade, tal uma mó de pedra triturando de contínuo o espírito.
Ao cair da noite os vendedores acendiam as suas lanternas de estanho, e as chamas bailavam nas faces morenas dos homens sentados no chão. Nunca solicitavam o comprador, não lhe mostravam as mercadorias; nem para ele olhavam. Dir-se-ia que o rancor latente sufocava o interesse de vender.
Às vezes, Kate achava a feira mais alegre; mas na maior parte das ocasiões sentia-se como que oprimida por um peso invisível, e a sua vontade era fugir dali, daquele mundo fúnebre.
Corriam boatos de nova revolução e na praça andavam cá e lá soldados armados de punhais e pistolas, de chapéu desabado e com o tipo selvático dos indígenas do Norte. Passeavam dois a dois, falando no seu dialecto, e pareciam mais estrangeiros em Sayula do que a própria Kate.
As barracas de petiscos estavam brilhantemente iluminadas. Viam-se homens sentados nas tábuas, bebendo caldo e comendo com os dedos alimentos escaldantes. Chegava o leiteiro a cavalo, com duas grandes bilhas de leite suspensas da frente da sela. Abria caminho lentamente através do povo, em direcção às barracas. Parando aí, e sem se apear, despejava o leite duma das bilhas na vasilha do freguês. Depois, sempre a cavalo, engolia a sua ceia: uma escudela de caldo e um prato de tamales, ou de tortillas com picado de carne bem apimentada. De roda dele andavam os peóns. Soavam violas quase em surdina. Fendia a multidão um carro vindo da cidade, a abarrotar de raparigas e rapazes, de papás e de meninos.
Que fervilhar de vida por cima do clarão das tochas pousadas no solo! Deslizava lentamente o rio de chapéus e de rebozos. A entrada do hotel resplandecia, iluminada pela electricidade. Moças citadinas exibiam vestidos de organdi branco, vermelho ou azul. Cantavam homens a meia voz. Todo o barulho parecia sufocado, contido.
Estranha impressão de sufocamento, força sombria e negativa da alma dos peóns! Quase inspirava dó ver as esbeltas raparigas de Guadalajara, tão bonitas nos seus vestidos vaporosos, a passearem de braço dado para trás e para diante, procurando despertar a atenção de alguém. E aqueles homens só exalavam o vapor negro da negação, que talvez não fosse senão ódio. Pareciam empestar o ar com a sua hostilidade surda.
Sim, Kate chegava a ter pena dessas mocinhas bonitas, de uma beleza de flor de papel, tão desejosas de serem admiradas e tão desprezadas afinal.
De repente, soou um tiro. Num instante toda a gente se pôs de pé, correu para as ruas, enfiou-se nas lojas. Novo tiro. No outro lado da praça, que se esvaziava rapidamente, Kate viu um homem sentado num banco desfechando a pistola para o ar. Era um patife da cidade, e estava meio bêbado. O povo conhecia-o; seria capaz de baixar a arma e disparar à toa sobre a multidão. Por isso todos abandonavam a plaza e se encafuavam onde podiam.
Mais dois tiros, pum, pum, ainda para o ar. No mesmo momento emergiu um oficial da rua sombria onde ficava o posto militar e correu direito ao bêbado, que, de pernas estiradas, brandia a pistola.
Antes sequer de tomar fôlego, dava-lhe em cada face uma bofetada quase tão sonora como os tiros e arrancava-lhe a arma da mão.
Dois dos soldados do Norte acorreram então e agarraram o homem pelo braço. O oficial disse-lhes qualquer coisa, e eles, depois de fazerem continência, afastaram-se com o prisioneiro.
A multidão voltou a encher a praça, despreocupadamente, e Kate sentou-se no banco, com o coração a bater. Viu o preso passar debaixo duma lâmpada, com um fio de sangue a escorrer-lhe na cara. Juana, que fugira, reapareceu sem demora e, pegando na mão de Kate, disse-lhe:
- Olhe, niña! É o general!
Kate levantou-se, surpreendida. O oficial estava à sua frente e cumprimentava-a.
- Don Cipriano! - exclamou ela.
- O próprio. Aquele ébrio assustou-a?
- Não muito. Foi mais o sobressalto... Não senti má intenção da parte do homem.
- Pois não. Estava simplesmente embriagado.
- Bem... São horas de eu voltar para casa.
- Posso acompanhá-la?
- Se quiser...
Cipriano postou-se ao lado de Kate e ambos contornaram a igreja para alcançar a borda do lago. A Lua brilhava por cima da montanha, soprava vento fresco, mas não agreste, vindo do ocidente. Viam-se luzes nos barcos acostados, umas exteriores, outras interiores, sob o toldo de lona. As mulheres preparavam a ceia.
- Linda noite! - exclamou Kate, respirando fundo.
- De Lua quase cheia - acrescentou Cipriano.
Juana ia-lhes no encalço e, atrás dela, seguiam dois soldados de chapéu desabado.
- Aqueles soldados vêm a escoltá-lo? - perguntou Kate.
- Julgo que sim.
- Este luar - disse ela, voltando ao assunto anterior - não é suave e amigo como o de Inglaterra ou da Itália.
- Contudo é do mesmo planeta - replicou o general.
- Mas o luar é diferente na América. Não nos torna felizes como na Europa. Dá impressão de que nos quer mal.
Seguiu-se uma pausa.
- Talvez haja na señora algo de europeu que ofenda a nossa lua mexicana - observou então Cipriano.
- Mas eu vim cá de boa fé.
- Boa fé europeia. É possível que não seja igual à boa fé mexicana.
Kate ficou calada, quase estupefacta.
- Que ideia, a vossa lua a protestar contra a minha presença!
- comentou, por fim, rindo ironicamente.
- Que ideia protestar contra a lua mexicana! - replicou ele.
- Mas eu não protestei!
Tinham chegado à esquina da rua de Kate. Na volta, havia um bosquete de árvores e debaixo delas, por trás da sebe, algumas cabanas de colmo. Muitas vezes Kate sorria ao ver o burro a espreitar por cima do murinho de pedra, o carneiro preto de chifres recurvos amarrado a uma árvore e o garoto seminu correndo a esconder-se sob a cortina de espinheiros.
Kate e Cipriano sentaram-se na varanda da Casa das Cuentas. Ela ofereceu-lhe um vermute, mas ele recusou.
Conservaram-se silenciosos. Só se ouvia o débil pip-pip do motor eléctrico, próximo da estrada. Então, por trás das bananeiras, cantou um galo em voz forte e áspera.
- Que disparate! - disse Kate. - Os galos não costumam
cantar a estas horas.
- Só no México - replicou Cipriano, rindo-se.
- Sim, só aqui...
- É muito agradável a sua casa, o seu pátio - disse Cipriano.
Kate ficou calada.
- Não gosta? - perguntou ele.
- Gosto mas... não tenho nada com que me entretenha, compreende? As criadas não me deixam mexer. Se varro o quarto, olham-me embasbacadas, repetindo: Que niña! Que niña! Exactamente como se eu estivesse a fazer o pino para as divertir. Limito-me a coser, embora não me interesse pela costura. Que representa
isto numa existência?
- E lê! - disse Cipriano relanceando um olhar pelas revistas
e pelos livros.
- Mas é tudo tão estúpido, tão falho de vida o que se encontra
nos livros e nos jornais!
- Que gostaria então de fazer? Diz que a costura lhe não interessa... As mulheres de Navajo, quando tecem as mantas, deixam
na ponta um buraquinho para a alma sair; não tecem a sua alma juntamente com a manta. Sempre me pareceu que a Inglaterra tecia a alma nas suas fábricas, e em tudo o que fazia, sem deixar o buraco para ela sair... Por isso toda a sua alma está agora nas mercadorias e em mais nenhuma parte.
- Mas o México não tem alma - redarguiu Kate. - Engoliu a pedra do desespero, como diz o hino.
- Acha? Pois não sou da sua opinião. A alma é uma coisa que se faz, como um desenho num tecido. É muito bonito enquanto as lãs cruzam e entrecruzam os seus fios e as suas cores diversas, e que o desenho aparece a pouco e pouco. Mas, uma vez acabado, perdeu o interesse. O México ainda não começou a tecer o desenho da sua alma. Ou principiou agora... com Ramon. Não acredita em Ramon?
Kate hesitou antes de responder.
- Em Ramon, sim. Mas não acredito que aqui, no México, surtam algum efeito as suas tentativas - murmurou, lentamente.
- Ele está no México e no México deve tentar. Porque não faz outro tanto?
- Eu?
- Sim, a señora. Ramon não crê em deuses sem mulheres, conforme diz. Porque não há-de ser a mulher do panteão de Quetzalcoatl? A deusa?
- Eu, uma deusa no panteão mexicano! - exclamou Kate, soltando uma gargalhada.
- Porque não?
- Nem sequer sou mexicana!
- Daria muito bem uma deusa, no meu panteão e no de Ramon.
Ardia na face de Cipriano uma chama de desejo, enquanto ele a fitava de olhos brilhantes; espécie de ambição intensa de que ela era em parte o objecto.
- Não me sinto com propensão para deusa de templos mexicanos - protestou Kate. - Acho o México um tanto assustador. Don Ramon é extraordinário, mas receio muito que o aniquilem.
- Ajude-nos a impedir isso.
- Como?
- Case comigo. Queixa-se de não ter nada que fazer. Pois bem; case comigo e auxilie-nos. Ramon diz que necessitamos de uma mulher. Seja essa mulher e terá muito que fazer.
- Mas não posso auxiliar-vos sem casar? - redarguiu Kate.
- Como? Não é possível.
E Kate sentiu que ele falava verdade.
- É que... não sinto impulso para o matrimónio... consigo... E, sendo assim, porque hei-de aceder?
- Porque não?
- Para lhe ser franca, não me sinto bem no México. Os olhos negros deste povo fazem-me arrepiar a pele e oprimir o coração. Emana do país certo horror, e não quero horror na minha alma.
Cipriano calava-se, longínquo, imperscrutável. Kate não lhe adivinhava os pensamentos, só lhe via como que uma nuvem sombria pairando-lhe no rosto.
- E porque não? - disse ele por fim. - O horror é qualquer coisa de verdadeiro. Porque não há-de haver um pouco de horror reunido a todo o resto?
Fixava-a de expressão grave, e parecia exercer nela forte pressão moral.
- Mas... -balbuciou Kate.
- É natural que sinta também certo horror pela minha pessoa... E talvez eu o sinta igualmente por si, pelos seus olhos claros, pelas suas mãos brancas e fortes. Todavia, isto é bom, é agradável:
Kate olhava-o, pasmada; a sua vontade era fugir, fugir daquele
país deprimente.
Cipriano continuou:
- Deve habituar-se a ter na sua vida uma parcela de medo e uma parcela de horror. Case comigo e conhecerá outras coisas muito diferentes. A pitadinha de horror é como o gergelim nos bolos, dá sabor à existência.
Falava com estranha lógica, observando-a com olhos cintilantes. O seu desejo, embora físico, dir-se-ia impessoal, sem objectivo. E Kate, perante ele, era como se tivesse outro nome e circulasse num mundo diverso; como se se chamasse, por exemplo, Itzpapatotl e houvesse nascido em qualquer região desconhecida.
Contudo, ele impunha-lhe a sua vontade.
Kate estava anelante de pasmo, porque Cipriano lhe fizera ver a possibilidade física de o desposar, ideia que até aí jamais lhe passara pela cabeça. Mas não seria ela própria, a verdadeira Kate, quem casaria com Cipriano. Seria outra mulher, o ser desconhecido que habitava dentro dela.
Irradiava do general uma paixão secreta e jubilosa.
- Não creio que me seja possível - disse Kate.
- Experimente e logo verá.
Sentindo frio, a irlandesa foi ao quarto buscar um abafo e regressou envolta num xaile espanhol de tom castanho, profusamente bordado de seda cor de prata. Enrolava nervosamente os dedos nas longas franjas escuras.
Na realidade, achava Cipriano sinistro, quase repelente. Não queria, contudo, pensar que estava simplesmente com medo, que lhe faltava coragem... Ficou sentada, de cabeça pendida. A luz incidia-lhe nos cabelos sedosos e no bordado prateado do xaile, que ela cingia aos ombros como as índias usam os rebozos. Cipriano observava-a, e ao seu xaile sumptuoso.
- Então? - disse ele de repente. - Quando se realiza?
- O quê - replicou Kate, verdadeiramente assustada.
- O nosso casamento.
Olhou-o, espantada de ele ter ido tão longe. Mas nem nesse momento sentiu ânimo para o repelir.
- Não sei - respondeu.
- Em Agosto, por exemplo? No dia 1 de Agosto?
- Não quero fixar nenhuma data.
Subitamente, a tristeza, a cólera latente nos índios dominou Cipriano. Sufocando, porém, o acesso, perguntou com fingida indiferença:
- Quer ir amanhã a Jamiltepec? Ramon deseja conversar consigo.
- Parece-lhe que deva ir?
- Sim. Iremos ambos de automóvel, amanhã de manhã. Está combinado?
- De facto, gostaria de tornar a ver Don Ramon.
- Esse não lhe mete medo? Não lhe inspira o menor horror, hem? - volveu Cipriano com um sorriso subtil.
- Não, mas Don Ramon não é bem mexicano.
- Não é bem mexicano?
- É mais europeu.
- Que ideia! Pois olhe que para mim é o México personificado.
Kate ficou uns momentos calada, a reflectir, até que declarou:
- Irei a Jamiltepec no barco de remos, ou então na lancha de motor do Alonso. Em qualquer caso estarei lá amanhã por volta das dez.
- Muito bem - disse o general, pondo-se de pé.
Depois de ele partir, Kate ouviu um tambor soando na plaza. Devia haver ali nova reunião dos Homens de Quetzalcoatl, mas não sentia desejo nem coragem de sair outra vez nessa noite.
Foi-se deitar, e ficou estendida às escuras. Pelos interstícios das janelas via a brancura do luar e através das paredes ouvia a pulsação do tambor. Tudo aquilo a assustava e a oprimia. Tinha de fugir... Faria as malas à pressa e desapareceria dali. Talvez tomasse o comboio até Manzanillo e daí embarcasse para a Califórnia, Los Angeles ou San Francisco. Fugir, voar para uma terra de homens brancos onde pudesse de novo respirar livremente. Que bom! Sim, eis o que devia fazer.
A noite adensava-se. Cessara o som de tambor. Kate ouviu Ezequiel regressar a casa e deitar-se na esteira diante da porta. Só se ouvia a voz rouca dos galos cantando ao luar. No quarto, como o riscar dum fósforo, surgia aqui e ali a claridade esverdeada dum pirilampo.
Inquieta, acobardada, Kate acabou por adormecer. E foi um
sono profundo.
Inesperadamente, ao acordar na manhã seguinte, experimentou uma sensação de força. Eram seis horas, o sol infiltrava riscos de oiro através das fendas do postigo. Abrindo a janela que deitava para a rua, olhou através da grade de ferro para o caminho sombreado, e, por cima do muro, para as folhas de bananeira, franjadas, dum verde translúcido, e ainda para a cabeça desgrenhada das palmeiras altas e para as torrres geminadas da igreja, coroadas da cruz grega de quatro braços iguais.
Na rua já havia animação: lentamente, em direcção ao lago, sob a azulada sombra da parede, avançavam algumas vacas enormes; um bezerro de grandes olhos e espírito aventureiro foi, pulando, contemplar a erva verde e as flores através do portão gradeado. O peón que o seguia ergueu ao ar os dois braços, num gesto silencioso, e o bezerro afastou-se dali. Só se distinguia o rumor do tropear do gado.
Passaram depois dois rapazes que tentaram com grande esforço puxar um toiro novo para o lago. O animal sacudia as ancas aguçadas e atirava coices a que os seus condutores se esquivavam. E, se estes lhe batiam no lombo, dava-lhes marradas com a sua cabeça romba de novilho. Naquele estado de semifúria em que os índios caem quando lhes opõem resistência, os rapazes lançaram mão do recurso habitual: desviaram-se do animal, começaram a arremessar-lhe pedras.
- Não lhe atirem pedras! - gritou Kate da janela. - Conduzam-no como devem!
Sobressaltaram-se como se o céu acabasse de se abrir, largaram as pedras e foram com ar vexado atrás do touro, que desatara a correr e se afastava aos pinotes.
Surgiu uma velha defronte da janela oferecendo um prato de folhas novas de cacto, picadas, pela soma de três centavos. Kate não era grande apreciadora de cacto como legume, mas sempre comprou. Um velhote apresentou um frango entre as grades que o separavam de Kate.
- Vá ao pátio - disse ela.
E fechou a janela para a rua, porque a invasão começara. Esta, porém, continuou noutro lado.
- niña! niña! - chamou a voz de Juana. - O velho diz que a niña compra o frango. É verdade?
- Quanto custa? - gritou Kate, enfiando o roupão.
- Dez reales.
- Ah, não! - disse Kate, escancarando as portas que deitavam para o pátio e aparecendo com o seu leve roupão cor-de-rosa pálido bordado de flores brancas. - Não dou mais do que um peso.
- Um peso e dez centavos - pediu o velho, balançando a ave na mão. - É um galo bonito e gordo.
Estendeu-o a Kate, para que visse como era gordo. Ela, contudo, fez-lhe sinal que o entregasse a Juana. Juana pegou nele e fez uma careta.
- Não pago mais de um peso - repetiu Kate.
O homem esboçou um gesto de assentimento, recebeu o dinheiro e desapareceu como uma sombra. Concha, que, entretanto, se aproximara, agarrou por sua vez no frango e logo declarou com desprezo:
- Está muy flaco.
- Põe-no na capoeira - disse Kate. - Vamos deixá-lo engordar.
O pátio estava agradável, com sol e sombra. Ezequiel enrolara a sua esteira e fora-se embora. Na ponta dum arbusto ostentavam-se enormes cardeais cor-de-rosa. Flutuava no ar o leve aroma de rosas bravas. As mangueiras pareciam mais sumptuosas de manhã, com os seus frutos pendentes das folhas bronzeadas.
- Está muy flaco - repetia Concha, enquanto levava o frango para o galinheiro, debaixo das bananeiras. - É só pele e osso.
Todas três observaram interessadas a entrada do galo novo na capoeira, onde já existiam algumas aves. O outro, mais velho e mais antigo na casa, refugiou-se no extremo oposto e olhou para o recém-vindo com ar ameaçador. O muy flaco ficou encolhido num canto. De repente, distendeu-se e fez ouvir um cocorocó agudo, eriçando de modo agressivo as penas avermelhadas. O galo antigo movia-se inquieto, preparando a vingança. As galinhas é que não ligaram nenhuma importância ao intruso.
Kate riu-se e voltou para o quarto, onde se vestiu ao esplendor da manhã. Diante da janela passavam mulheres silenciosas, com o cântaro de barro ao ombro. Iam buscar água do lago. Levavam sempre o braço por cima da cabeça, para segurar a bilha no outro ombro, o que lhes dava um aspecto contorcido, muito diferente do porte erecto das mulheres que transportam água na Sicília.
- niña! niña! - gritava Juana lá fora.
- Espera um instante - disse Kate. Era outro hino de Quetzalcoatl.
- Veja, niña, niña, o novo hino de ontem à noite. Kate pegou no papel e sentou-se na cama para o ler.
Quetzalcoatl baixa o olhar para o México. Riu-se Quetzalcoatl ao ver o Sol dardejar sobre ele raios ferozes.
Ergueu a mão, e com a sua sombra susteve o Sol.
Assim ultrapassou o astro amarelo que se contorcia como um
dragão.
E, tendo-o ultrapassado, viu a terra a seus pés.
E viu o México, tal uma mulher morena reclinada com os seus seios de pontas brancas.
Aproximou-se, surpreendido, e contemplou-a.
Contemplou os seus comboios e os seus automóveis.
As suas cidades de pedra e as suas cabanas de colmo.
E disse consigo: - Na verdade isto é estranho.
Sentou-se no côncavo duma nuvem e viu os homens a trabalharem nos campos vigiados por estrangeiros.
Viu os homens a cambalear, ébrios de aguardente.
Viu as mulheres que não eram limpas.
Viu o coração de todos, corações negros, pesados com a pedra da ira.
E disse consigo: - Estranho povo, este que encontrei.
Inclinando-se para fora da nuvem, chamou então:
Olá! Olá! Mexicanos! Olhai um instante para mim.
Voltai os olhos para este lado, Mexicanos!
Eles, porém, não olhavam.
Olá, Mexicanos! Olá!
Decerto se tornaram surdos, pensou.
De modo que soprou o seu hálito na face deles.
Mas no peso da estupefacção nenhum deu por isso.
Olá! Belo povo!
Corria uma estrela cadente como cão branco numa planície.
Ao som do seu assobio veio tombar-lhe na mão.
Na sua mão estava e na sua mão não se extinguiu.
Era a pedra da mutabilidade.
Fê-la saltar na palma e com ela brincou.
Então viu o lago e deixou cair a estrela,
Que mergulhou na água.
Dois homens levantaram a cabeça
Olá! Mexicanos, disse ele. Acordastes ambos?
E riu-se, e um deles ouviu-o rir.
Porque ris? - perguntou o homem a Quetzalcoatl.
Oiço a voz do meu primeiro homem perguntando-me porque rio?
Olá, Mexicanos! É divertido
Vê-los tão sombrios e tão pesados.
Primeiro o homem do meu nome! Escuta-me!
Eis a minha insígnia.
Prepara um lugar para me receber.
Despeja os templos das suas imagens.
Ao sétimo dia, que todo o homem se lave e unte a pele com óleo.
Que não tenha bichos a passear-lhe no corpo nem na sombra
dos cabelos".
E o mesmo quanto às mulheres.
Diz-lhes que são todos insensatos e que me rio deles.
A primeira coisa que fiz. ao vê-los foi rir-me à sua custa.
Porque se assemelham a rãs com pedras na barriga, sem poderem saltar.
Diz-lhes que se desembaracem das pedras.
Que se libertem do peso que os tolhe e os enche.
Ou eu os arrasarei a todos.
Abalarei a terra e tragá-los-ei, com as suas cidades.
Enviarei sobre eles fogo e cinzas.
O fragor do trovão transformará o seu sangue em leite corrompido.
E eles derramarão sangue corrupto e pestilento.
Os próprios ossos se desfarão em pó. Diz-lhes isto, primeiro homem do meu nome. Porque a Lua e o Sol tudo vêem com olhos brilhantes. E a Terra está pronta a sacudir as pulgas. E as estrelas estão prontas a lançar pedras aos homens. E o ar que sopra com suavidade nas narinas das criaturas está pronto a soprar com violência, para que todos pereçam. As Estrelas e a Terra, o Sol, a Lua e os ventos Preparam de roda de vós a dança guerreira, ó homens! Iniciá-la-ão quando eu der o sinal. Porque o Sol, as Estrelas, a Terra e as próprias chuvas estão cansadas
De impelir e rolar até aos vossos lábios a substância da vida.
E dizem:
Acabemos com essas tribos de homens fedorentos, com essas
rãs que não sabem saltar.
com esses galos que não sabem cantar,
com esses porcos que não sabem grunhir,
com essa carne que cheira mal,
com essas palavras vãs,
com essa vérmina do dinheiro,
com esses homens brancos, e vermelhos, e amarelos, e pretos.
Não são brancos, nem vermelhos, nem amarelos, nem pretos,
Mas todos estão sujos.
É necessário uma limpeza em todo o mundo. Porque os homens são como vermes Que devoram a terra e infestam as chagas. Eis o que as Estrelas e o Sol, a Lua, e o vento e a chuva discutem entre si, prontos a atacar-vos. Por isso eu venho.
Para vos limpar por dentro e por fora, Para erguer a pedra tumular da vossa alma. Para vos preparar a serdes homens. E preparar-vos para outras coisas ainda.
Kate leu e releu o longo folheto, e a manhã radiosa pareceu encobrir-se duma obscuridade fremente. Tomou o café na varanda. As papaias dir-se-iam destilar gotas duma fonte invisível de vida inumana.
Parecia-lhe ver o impetuoso germinar do cosmos, despertando numa existência fantástica. Os homens não passavam de moscas verdes aglomeradas na ponta dos renovos. Era monstruoso o rolar e desenrolar da vida do cosmos, tal se o próprio ferro crescesse como líquenes nas entranhas da terra e, cessando de crescer, se preparasse para a morte. Porque o ferro e a pedra terminarão a sua vida quando a hora vier. E os homens são menos do que moscas, enquanto viverem apenas para o seu sustento. Parasitas sobre a face da terra.
Kate encaminhou-se para a beira do lago - inteiramente azul na claridade matinal. Na outra margem erguiam-se as montanhas escalvadas, mas em baixo, no sopé, luziam árvores e a mancha clara das aldeias.
Perto dela, contra a luz, cinco vacas metiam o focinho na água. Enchiam as suas bilhas mulheres ajoelhadas nas pedras. Em varas bifurcadas, fincadas na areia, secavam redes de pesca, e ali pousara um passarinho vermelho, como uma gota de sangue caída das artérias do ar.
Emergindo das cabanas de colmo sob as árvores, aproximou-se o garoto desalmado, o da ave aquática. Trazia qualquer coisa na mão fechada. Abriu-a ao chegar junto de Kate e apresentou-lhe na palma três pucarozinhos de barro: as ollitas que os nativos doutros tempos atiravam à água para os seus deuses.
- Muy chiquitas! - disse o pequeno na sua voz brusca. Compra-as?
- Não tenho dinheiro comigo. Amanhã.
- Amanhã? - repetiu o miúdo, como um tiro de pistola.
- Amanhã.
Ele perdoara a Kate, mas esta não lhe perdoara. Alguém cantava na frescura da manhã; som agradável, que se diria produzir-se por si mesmo.
com passos felinos, vagueava por ali um rapazinho armado de fisga. Mas o pássaro, que era como um pingo de sangue nas redes quase invisíveis, abriu as asas e desapareceu num voo fulgurante.
Kate conhecia essas manhãs à beira do lago. Faziam-lhe experimentar uma espécie de hipnose quase semelhante à morte. Destacavam-se pássaros rubros no verde tenro dos salgueiros. Passava o aquador com uma vara aos ombros e uma lata de água quente suspensa de cada lado. Vinha das fontes térmicas, descalço e de pernas ao léu, trotando em silêncio sob a sua carga, com o belo rosto moreno sombreado pelo chapéu de abas largas.
Emergiam da água cabecinhas negras, em grupos. Seriam cabeças? Ou seriam aves?
Kate sabia de antemão como o dia havia de correr. A pouco e pouco, o sol intensificava-se e a pouco e pouco a electricidade se ia acumulando, conforme se aproximava a tarde. Nas horas de calor a praia exalava um cheiro a lixo e a urina.
Tudo perdia a nitidez à claridade ofuscante, a atmosfera espessava-se e Kate sentia a electricidade premir-lhe a nuca tal um ferro quente. Aquilo entorpecia-a, como a morfina. Entretanto, por trás das montanhas, erguiam-se nuvens tais árvores brancas, e, enquanto a tarde desfalecia em silêncio, estendiam ramos negros no céu, afugentando a luz.
A meio da sonolência da sesta desencadeava-se a trovoada e
tombavam os aguaceiros.
Vinha a hora do chá, descia a tarde... Os últimos navios de vela esperavam que o vento rodasse. Este soprava de oeste, e os barcos que se dirigiam para leste já haviam partido. Mas os que pretendiam ir em direcção oposta, esperavam, esperavam, enquanto a água lhes marulhava sob o fundo chato.
A barcaça de Tlapaltepec aguardava até noite fechada. Costumava ancorar a alguns metros de distância, e, ao anoitecer, os seus passageiros desciam a praia para recolher a bordo e amontoavam-se em grupos à beira do lago.
Vinha ajudá-los a embarcar um indivíduo entroncado, de calças arregaçadas. Os homens postavam-se de costas à sua frente, de pernas abertas; e ele, baixando-se de repente, enfiava a cabeça entre as coxas daqueles, punha-se de pé, e avançava na água com a sua carga humana.
Quando se tratava de transportar uma mulher, agachava-se diante dela para que se lhe instalasse no ombro. com o braço direito rodeava as pernas da criatura que se lhe agarrava à cabeça, e assim a levava para bordo com a maior facilidade.
Em poucos minutos o barco ficava cheio. Debaixo do toldo, em que ardia uma lanterna, sentavam-se em esteiras, desdobravam mantas para se estenderem e dormir.
A vela tombava em pregas de volta do mastro. Provavelmente não partiriam antes da meia-noite. E então seria a rota para Tlapaltepec, com os seus caniços no extremo do lago, as suas praças mortas, as suas casas de adobe negro, os seus caminhos em ruínas, e o seu estranho silêncio tumular, como Pompeia...
Kate conhecia-o bem. Tão estranho e tumular esse silêncio, que a assustava e confundia.
Hoje, porém, não passaria toda a manhã a vaguear na praia. Devia ir a Jamiltepec numa lancha de motor, para visitar Ramon e conversar com ele a respeito da possibilidade do seu casamento com Cipriano.
Ah, como podia decidir-se a tal matrimónio e assim entregar à morte o corpo? Aceitar esse fardo de trevas, consentir em morrer antes da morte, em desaparecer enquanto ainda usufruía a luz do Sol?
Não. Antes fugir para os países de homens brancos.
Apesar de tudo, foi falar com Alonso e combinar com ele a questão da lancha.

CONTINUA

XIV
Veio a manhã, e toda azul, com uma frescura na atmosfera e uma luminosidade tão forte nas árvores e nas montanhas longínquas que os pássaros se espalharam no ar como botões de flores acabados de abrir.
Cipriano regressava a Guadalajara, de automóvel, e Carlota ia com ele. Kate preferiu voltar pelo lago.
Às vezes, Carlota representava verdadeira tortura para o marido. Parecia ter o poder de o lacerar até nas próprias entranhas. Não no espírito, não na alma, porém no seu "eu" emotivo, passional e aí o rasgava e o fazia sangrar interiormente.
Porque a amara, ainda se preocupava com ela; porque ela fora apaixonada, afectuosa, cheia de caprichos e até egoísta, uma vez por outra. E, na assiduidade dos seus cuidados, durante anos seguidos, Ramon havia conseguido estragá-la com mimos.
Entretanto, e gradualmente, modificara-se a natureza do homem. Não que ele deixasse de a estimar ou pretendesse outras mulheres. Esta atitude bem na podia ter compreendido; contudo, no íntimo de Ramon, existia uma força imperiosa, cega, que lhe ordenava se desfizesse do seu ser espiritual para o fundir no cadinho ardente donde sairia um ente novo, inteiramente novo.
Mas devia contar com a mulher. Carlota amava-o e isso, para ela, importava acima de tudo. Amava-o como a toda a humanidade e estava persuadida de ter razão.
Assim, sentia-se roubada, iludida. Porque não continuava o marido a ser bom, amável, benigno, quando procurava tornar o mundo mais benigno, mais amável e melhor?
A razão era esta: Ramon verificara que o mundo já dera tudo o que tinha a dar no caminho da bondade e do amor. Ir mais além seria o mesmo que atingir a perversidade. Chegara o momento duma lenta evolução. Qual fosse, não no sabia.
O sentimento do amor e esse, maior, da liberdade dos homens pareciam condensar-se de roda dele, como uma concha ou como um casulo. A velha lagarta do cristianismo evoluía para qualquer coisa diferente.
Para Carlota, tudo se resumia no amor dos filhos, do marido, do povo, dos animais, das árvores. Era a sua vida inteira, o seu Cristo, a sua Virgem Maria. Como renunciar, no fim de contas?
E deste modo continuava a amar Ramon e o mundo inteiro, firmemente, obstinadamente, de forma patética - e quase diabólica. Rezava por ele e consagrava-se a obras de caridade.
Ora esse amor, desviado do fluxo espontâneo, sujeito às oscilações imprevisíveis do Espírito Santo, acabou por se transformar em vontade. Amou então com a sua vontade, tal como é agora a tendência no mundo dos brancos. Saciou-se de caridade - essa bondade cruel.
A sua simpatia, a sua sedução pessoal, tudo isso a abandonou. Começou a estiolar-se, a endurecer. Rezando pelo marido, constantemente o censurava. Nela expirou a espontaneidade do ser, a vontade fez-se rígida e toda a sua pessoa se tornou numa vontade frustrada.
Depressa conseguiu atrair a si os filhos. Ramon era muito orgulhoso e estava muito aborrecido para poder lutar. Assim se tornaram só os filhos de Carlota. Que os guardasse para si!
Eram os filhos da sua carne de outrora. A nova não tinha descendência: provavelmente nunca a teria.
- Lembra-te - observara-lhe ele, com soturna lógica - que tu não amas senão com a tua vontade. Não aprecio o amor que sentes pelo teu Deus: é uma afirmação da tua vontade apenas. Não aprecio o amor que me consagras: é ainda do mesmo género. Não aprecio o amor que tens pelos teus filhos: se vir neles uma centelha do desejo de se libertarem, farei tudo para os salvar. Entretanto procede como melhor entenderes com o teu amor e a tua vontade. Mas fica sabendo que discordo. Discordo da tua insistência, do teu monopólio do sentimento, das tuas obras de caridade. Discordo por completo do teu teor de vida. Enfraqueces e vicias os pequenos. Não os estimas, domina-los com o teu amor-vontade. Um dia rebelar-se-ão. Chegarão a detestar-te. Não te esqueças destas minhas palavras.
Dona Carlota, ao ouvir isto, estremecera até nas fibras mais íntimas do ser. Mas foi à capela do Convento da Anunciação, e rezou. Tendo orado pelo marido, julgou adquirir uma vitória sobre ele, e voltou para casa com esse triunfo puro e frágil como a flor que desabrocha numa sepultura: a do seu marido.
Ramon, desde aí, começou a espiar-lhe a dedicação irritante e alvoroçada como se espiasse as manobras do seu pior inimigo.
A vida fizera a sua obra naquele ser humano: arrancara-lhe a espontaneidade, deixando-lhe apenas um querer obstinado. Na mulher morrera o deus, ou a deusa - ficando só misericórdia envolta no manto da vontade.
- Carlota - dissera-lhe o marido -, serias imensamente feliz se pudesses usar luto pesado... luto por mim! Não te darei esse gosto.
Ela relanceou-o estranhamente com os seus olhos castanhos-claros.
- Tudo está nas mãos de Deus - replicou, afastando-se a toda a pressa.
Agora, nessa manhã que sucede às primeiras chuvas, ei-la a aproximar-se do quarto de Ramon, onde ele estava sentado a escrever. Como na véspera, conservava-se nu até à cintura, apenas com umas calças de linho branco, muito largas, como de pijama.
- Posso entrar? - inquiriu nervosa.
- Entra! - respondeu o interpelado, descansando a caneta e levantando-se.
Havia só uma cadeira, que ele lhe ofereceu; mas Carlota foi sentar-se na cama ainda por fazer, como se considerasse ali o seu lugar natural. Ao mesmo tempo olhava-lhe o peito nu - também como se considerasse aquilo uma afirmação do seu direito natural.
- Parto com Cipriano, depois do almoço.
- Já o disseste.
- Os pequenos chegam daqui a três semanas.
- Bem sei.
- Queres vê-los?
- Se o desejarem.
- com certeza que desejam.
- Então trá-los cá.
- Achas que seria agradável para mim? - retorquiu ela, enclavinhando as mãos.
- Tu é que não me tornas a vida agradável, Carlota.
- E como o poderia fazer? Não ignoras que reprovo a tua atitude. Quando te escutei ontem à noite, achei que dizias coisas belas mas monstruosas. Sim, monstruosas! Até pensei: "Que faz este homem? Este homem que, mais do que nenhum, podia ser tão benéfico para o seu país e para a humanidade!"
- E então? Que faz ele?
- Sabe-lo muito bem! Ah, não tolero! Não és tu quem vai salvar o México. Cristo já o salvou.
- A mim afigura-se-me que não.
- Sim! Sim! E Ele é que te fez assim, um ser extraordinário que podia salvar em Seu nome e pelo Seu amor. Mas em vez disso...
- Em vez disso, Carlota, tento fazer outra coisa. Ora ouve-me: se Cristo, o verdadeiro, não foi capaz de salvar o México, o Anticristo da Caridade, e o socialismo, e os políticos, e as reformas acabarão por destruí-lo. Isto, só isto me impele a agir. Tu, Carlota, com as tuas obras de caridade e a tua misericórdia; e homens como Benito Juarez, com a sua Reforma e a sua Liberdade; e o resto do povo benevolente, políticos, socialistas e quejandos, cheios de piedade pelos homens, nos seus discursos, mas na realidade carregados de ódio (o ódio dos materialistas que não possuem pelos materialistas que possuem), todos vocês, enfim, representam o Anticristo. Até põem veneno no cálice da Eucaristia! Por esta razão é que eu saio da minha reserva natural. Não quero ver ninguém envenenado. Não me preocupo muito com as "grandes massas" mas não quero ninguém envenenado.
- E tens a certeza de não seres tu o próprio envenenador? Suponho que és.
- Pois vai supondo. Eu também suponho que tu, Carlota, ainda não alcançaste o desenvolvimento final da tua feminilidade: é uma coisa que faz diferença da antiga concepção.
- A mulher é sempre a mesma.
- Isso não. Nem sequer o homem.
- Em suma: que tencionas fazer? Que julgas que esse disparate do Quetzalcoatl nos pode trazer?
- Quetzalcoatl é uma palavra viva para esta gente. Nada mais. Tudo o que pretendo é que descubram os limites, eles da sua virilidade, elas da sua feminilidade. Os homens ainda não são bem homens, as mulheres ainda não são completas. São todos feitos de metades, de partes incoerentes, horríveis ou boas. Assim tu, Carlota, segundo creio. E o resto do mundo. Mas este povo não sabe defender a sua integridade, este nosso povo do México. Assim, tendo eu podido reter uma parte da minha natureza, para me servir de guia, compete-me auxiliá-lo a realizar também a sua.
- Hás-de falhar.
- Não. Aconteça o que acontecer, haverá nova vibração, novo apelo na atmosfera, nova resposta no coração de alguns homens.
- Trair-te-ão. Sabes ao menos o que o teu amigo Toussaint diz de ti? O futuro de Ramon Carrasco é apenas o passado da humanidade.
- Grande parte pertence, de facto, ao passado. Naturalmente
foi isso o que Toussaint notou.
- Nem os pequenos acreditam em ti. Por instinto, não acreditam. Quando fui visitá-los, o nosso filho Cipriano perguntou-me: "O pai continua com aqueles discursos tolos a respeito do regresso dos antigos deuses?" E acrescentou: "Oxalá acabasse com isso. Seria para nós uma vergonha se viesse para os jornais com essa história."
Ramon riu-se.
- As crianças são como gramofones. Falam conforme o disco que lhes põem. As mães e os professores transformam-nas em grafonolas, de modo que tudo quanto dizem é a reprodução exacta do disco por eles colocado... Talvez no tempo de Cristo as crianças não fossem tão exploradas pelos adultos...
De súbito, o sorriso apagou-se na face de Ramon e ele, levantando-se, apontou para a porta.
- Vai-te embora! - disse em voz baixa. - Vai-te. Já aspirei de mais o cheiro pernicioso do teu espírito.
Sentada na cama, Carlota fixava-o com olhos amedrontados e encolhia-se como se o braço estendido ameaçasse bater-lhe.
A cólera dissipou-se no semblante de Ramon e o seu braço tombou.
- No fim de contas não temos nada de comum - murmurou docemente. E, pegando no chapéu e no casaco, saiu para o terraço, separando-se dela de corpo e alma. Carlota deixou-se cair na cama e aí ficou tal um monte de cinzas, onde ardiam apenas as brasas da sua vontade.
Os olhos tinham um fulgor desusado quando se reuniu a Kate e a Cipriano.
Depois do almoço, Kate voltou para casa de barco. Ao partir da hacienda sentia estranha depressão - como se a sua vida devesse ali decorrer e não noutra parte.
Pela primeira vez, achou a casa vazia, banal de uma vulgaridade extrema.
- Ah, niña! Ainda bem que veio! Muita água caiu ontem à noite! Mas a niña estava em segurança na hacienda. Que bonita é a hacienda de Jamiltepec! E que boa pessoa é Don Ramon, não é? É muito cuidadoso com o pessoal. E a señora não podia ser mais simpática.
Kate sorriu, mas a sua vontade era responder-lhe: "Por amor de Deus, acaba com essa tagarelice e deixa-me sozinha."
Teve de suportar novamente a insolência calma e subtil, a intolerável nota de sarcasmo que em tudo transparecia - até no constante grito de Juana: niña! niña!
Durante as refeições Juana sentava-se no chão, a pouca distância de Kate, e falava, falava, fixando, todo o tempo, na patroa os olhos negros em que por vezes cintilava a ironia peculiar dos índios.
Kate não era abastada, possuía modestos rendimentos.
- Ah, a gente rica... - disse Juana.
- Não sou rica - volveu Kate.
- Não é, niña - insistiu a outra, com a sua voz caridosa e cantante, como a dum pássaro. - Então é pobre? - E, nesta conclusão, havia evidente ironia.
- Também não sou pobre. Nem rica nem pobre.
- Não é rica nem é pobre, niña! - repetiu Juana.
Para ela, as palavras não significavam nada. Para ela, que não possuía coisa nenhuma, Kate pertencia à classe mágica, a dos opulentos. E, bem no sentia Kate, no México era crime ser rico, estar classificado entre os ricos. Não propriamente um crime, mas uma extravagância. A classe rica era a classe extravagante, como os cães de duas cabeças ou vitelos de cinco pernas. Olhavam-na menos com inveja do que com a curiosidade dum antagonismo vivo, a curiosidade dos "normais" perante aqueles que o não são; o indolente mas forte e corrosivo escárnio dos índios, nascido daquela natureza de lava, contra tudo quanto destoa e sobe acima do nível pardacento desse solo vulcânico.
- É verdade, niña, que o seu país fica do outro lado? - perguntou Juana, apontando com o dedo para o chão, para as entranhas da terra.
- Não tanto - respondeu Kate. - A minha pátria é mais para ali - e esboçou um gesto pela superfície adiante.
- Ah, naquela direcção! - exclamou Juana. E olhou para Kate com subtil desconfiança, como se dissesse: "Que se pode esperar de gente que vem da terra, de través, como os grelos da hortaliça?"
- E é verdade que em certos sítios há pessoas só com um olho... aqui? - perguntou ela tocando no meio da testa.
- Não, não é verdade.
- Tem a certeza? Já esteve nessas terras?
- Sim. Visitei todos os países, e não existem semelhantes criaturas.
- Verdad! Verdad! - murmurava Juana cheia de espanto. - E no seu país só há gringos?
Queria dizer: não indivíduos como nós os mexicanos, sal da terra.
- São todos como eu - respondeu Kate friamente.
- como a niña E falam todos da mesma maneira?
- Sim, como eu.
- E são muitos?
- Muitíssimos.
- Jesus! - exclamou Juana, sobressaltada à ideia de que o Mundo inteiro estivesse cheio de seres assim tão extravagantes e risíveis. Concha, aquela selvagenzinha, olhava admirada, através da janela de grades, para a estranha fauna de brancos que visitavam a niña. E embasbacava-se sinceramente, enquanto ia fazendo as suas tortillas.
Kate desceu até à cozinha. A pequena achatava a massa de farinha de milho, comprada na plaza a oito centavos o quilo.
- niña! - bradou ela, com a sua voz roufenha. - Come tortillas?
- Uma vez por outra.
- Então coma agora uma! - E Concha estendeu a palma de mão trigueira, onde se via uma tortilla de limpeza duvidosa.
- Agora não.
Detestava essa pesada massa que parecia de gesso e sabia a lodo.
- Não quer? Não gosta? - retorquiu Concha, soltando uma risada estrídula e impudente. E deitou a torta rejeitada no prato onde se empilhavam as outras. Era daquelas pessoas que não comem pão, alegando que não apreciam, que não chega a ser alimento.
No terraço, Kate recostava-se na sua cadeira de baloiço, enquanto o sol se entornava sobre o quadrado verde do jardim, sobre a palmeira que abria à luz os seus enormes leques recortados, sobre os cardeais de flores vermelhas e sobre as laranjas dum tom escuro que pareciam transpirar de calor.
Aproximava-se a hora do almoço, furiosamente abrasadora: a hora da sopa quente e gordurosa, do arroz cheio de banha, do peixe frito, dos bocadinhos de carne guisada com legumes, dos cabazes de fruta onde se acumulavam mangas e papaias, frutos tropicais que não apetece comer quando há calor. Servia à mesa a pequena Maria, descalça, de vestido encarnado e cheio de rasgões. Era a mais simpática de todas. Quando Juana começava a falar interminavelmente, ela chegava-se para Kate e tocava-lhe no braço - uma, duas vezes. Se lhe não ralhassem, ficaria ali encostada ao ombro de Kate, contemplando-a numa expressão beatífica, e os seus grandes olhos pretos iluminavam-lhe o rosto infantil, picado das bexigas, vagamente imbecilizado. Mas Kate repelia logo o braço trigueiro e magro: a criança recuava uns passos, desaparecia-lhe o ar de beatitude, porém os olhos negros continuavam brilhando como que absortos num êxtase de réptil.
Concha acudia então, batia com o cotovelo na irmã e fazia qualquer observação brusca, ininteligível para Kate. Apagava-se a cintilação dos olhos negros e Maria começava a chorar, enquanto Concha irrompia em gargalhadas selváticas. Juana, suspendendo o fluxo de palavras, voltava-se para as duas filhas e fazia uma observação ineficaz. Há sempre uma vítima, vítima inevitável, e um inevitável algoz.
Horrível, horrível vácuo ardente das manhãs mexicanas. Pesava no ar um tédio tenebroso. Kate sentia-se perdida, e fugia então para o lago a fim de escapar à casa, ao pessoal.
Depois das chuvas haviam florido de rubro e azul as árvores dos jardins abandonados da margem. Súbitas flores tropicais, vermelhas e azuis. Maravilhosos salpicos de cor, brilhantes, fugazes como fogo-de-artifício.
E Kate, ao pensar nos espinheiros guarnecidos de branco das azinhagas da Irlanda, nas dedaleiras junto das rochas, nos tufos de urze e nas campainhas entrelaçadas, sentia desejos de voltar para o seu país e fugir daquele explendor tropical que nada lhe dizia ao coração.
No México, o vento soprava rijo, a chuva caía em torrentes, o sol queimava, entontecia... Terra seca, dura, ofuscante de luz implacável. Terra negra, cortada de relâmpagos, batida pela violência da chuva. Nunca temperada de nevoeiros; sem nenhuma doçura na atmosfera. Ou calor dissolvente ou frio de rachar.
E Kate sentia-se dominada pela cólera e pelo ressentimento. Sentada debaixo de um salgueiro, à beira do lago lia um romance de Pio Baroja repleto de "não, não, não"! - ich bin der Geist der stets verneint! Contudo, ela ainda estava mais cheia de fúria e de repúdio do que Pio Baroja. A Espanha não pode proclamar "Não!" como o pode o México.
Envolta na folhagem leve da árvore e instalada sobre a areia quente, Kate protegia-se o melhor possível do sol. Havia no ambiente um leve cheiro amoniacal. O lago estava tão opaco e imóvel que se diria invisível. A pequena distância, ajoelhavam-se na margem mulheres trigueiras, vestidas apenas com uma camisa molhada, com a qual se haviam banhado. Algumas lavavam roupa, outras, com o auxílio de cabaças, deitavam água nos cabelos e pelos ombros, sob a intensidade dos raios solares. À esquerda ficavam duas árvores enormes, uma sebe de bambus e cabanas de palha dos indígenas. Ali terminava a praia: quase até ao lago desciam as nesgas de terra dos índios.
Relanceando o olhar pela claridade ofuscante, Kate sentia-se isolada no próprio âmago da sombra, enquanto o mundo se movia nas partículas ínfimas daquele vazio resplandecente. Nesse momento descortinou um fedelho que avançava solenemente para a borda de água. Teria os seus quatro anos mas parecia mais corajoso do que um adulto. com a idade vem qualquer coisa de vulnerável que ainda não possuem essas crianças destemidas. Kate reconheceu o garoto pela camisa rubra esgarçada e pelos farrapos que eram as suas calças brancas de homenzinho. Reconheceu-lhe a cabeça redonda e escura, o andar rígido e vigoroso, os olhos grandes, o ar ousado de
animal bravio.
"Que terá ele apanhado?", disse ela de si para si, espantada para
o vulto que se mexia sob o ardor da luz.
Pendente do bracito, presa pelos pés, trazia uma ave lacustre que agitava debilmente as asas, uma dessas muitas que flutuam à superfície do lago, próximo da margem.
Para ali caminhava o petiz, segurando a ave de cabeça para baixo; junto do punho estreito do seu algoz, ela parecia grande como uma águia. Atrás corria outro garoto. Os dois pequenos chapinharam cerca de um metro nas ondas tépidas, à claridade muito viva do sol, e, inclinando-se gravemente, como homens sensatos, puseram o seu prisioneiro na água. A ave flutuou acolá, mas a custo avançava. Então os miúdos arrastaram-na como um trapo, por um cordel amarrado à perna.
Tão calmos, silenciosos e escuros, os rechonchudos filhos de índios! Duas figuras solenes, com esse frangalho de pássaro.
Kate voltou a vista para o livro, mal disposta; aquilo bulia-lhe com os nervos. Ouviu o som de uma pedra a cair na água. A ave estava no mesmo ponto; não havia dúvida de que ao cordel tinham amarrado uma pedra. Adejava e não saía dali.
E os dois tiranos, numa torva e calma volúpia, arremessavam seixos, com a sua pontaria certeira de índios ferozes, ao animal fraco e alvoroçado. Aquela migalha de gente, de camisa vermelha, parecia um guerreiro, de braço erguido para lançar o seu projéctil à vítima indefesa.
Num ímpeto, Kate correu para a praia.
- Feios meninos! Isso não se faz! Vão-se embora, seus desalmados! - gritou só de um fôlego.
O pequeno de cabeça redonda fixou nela as pupilas negras e em
seguida desatou a correr, seguido pelo companheiro.
Kate entrou na água e agarrou a ave quente e molhada, que ainda tentou bicá-la. Da perna pendia-lhe o pedaço de cordel e Kate, uma vez na praia, apressou-se a desatar o nó. A ave, do tamanho duma pomba, conservou-se imóvel na mão dela.
Depois de descalçar os sapatos e as meias, Kate olhou em volta e, não descobrindo vivalma nas imediações, levantou as saias e foi descalça através da água, quase caindo sobre as pedras. Junto à
margem era pouco profundo. Ela continuou a avançar, cambaleando, com uma das mãos a arregaçar as saias e a outra ocupada com a
ave, até que a água lhe chegou aos joelhos. Então poisou o animal
na superfície líquida e deu-lhe um leve impulso.
Ele, porém, ficou ali, a boiar como um trapo.
- Anda, mexe-te! Mexe-te! - exclamava Kate, incitando-o a nadar para o largo.
Mas ou não podia ou não queria. Fosse porque fosse, não se moveu.
Em todo o caso encontrava-se fora do alcance dos garotos. Kate tratou de voltar para baixo da árvore e fugir ao sol ardente.
Numa ira silenciosa, ora olhava para o lago ora para as cabanas dos índios imersas em sombra densa.
A ave mergulhava o bico na água e sacudia a cabeça. Estava a voltar a si... Mas não nadava. Deixava-se levar pelas ondas, e estas arrastá-la-iam até à praia.
- Palerma! - exclamou Kate nervosamente, concentrando todo o seu espírito no animal, com a pretensão de o sugestionar e o fazer afastar-se para longe.
Da planura cintilante do lago aproximavam-se dois companheiros, nadando apressados. O da frente avançou o bico para a ave inerte como se dissesse: "Olá! Então que é isso?" Mas logo se desinteressou e se reuniu ao camarada, no seu rumo para a margem.
Kate olhava com angústia para aquele farrapo coberto de penas. Não se animaria a seguir as outras duas aves?
Não! Ali continuou a boiar, limitando-se a sacudir a cabeça de vez em quando.
Kate leu mais umas linhas de Pio Baroja. Quando tornou a olhar já não viu a pobre ave. As outras duas andavam ligeiras entre os calhaus. Voltou a ler um pouco.
O que viu a seguir foi um rapazola de cerca de dezoito anos a descer a praia em largas passadas e, atrás dele, o fedelho de camisa vermelha. Kate sentiu um baque no coração.
As duas galinholas abriram as asas e, num voo baixo, desapareceram na luminosidade do lago.
Mas o rapaz de chapeirão e fato-macaco espreitava entre as pedras. Kate, no entanto, estava convencida de que a sua ave se afastara para o largo.
Não! Afinal, não. Pelo contrário, voltara para a margem, trazida pelas ondas.
O rapaz inclinou para a água os ombros largos, esses ombros de índio que por vezes Kate tanto detestava, e, estendendo o braço, agarrou no infeliz animal. Depois, segurando-o pela ponta duma asa, entregou-o ao garoto. Feito isso, tornou a atravessar a praia, muito satisfeito consigo mesmo.
Como nesse instante Kate odiou aquele povo, a sua vileza e crueldade, os seus ombros direitos, o peito alto e, acima de tudo, o andar emproado!
De cabeça um pouco pendida para a frente e olhos postos no chão, sem nunca voltar a cara para o lado de Kate, o rapaz dirigiu-se para a sombra das cabanas. E atrás marchava o miúdo, baloiçando a desgraçada avezita suspensa pela ponta duma asa. De vez em quando, virava a face morena e redonda e lançava a Kate um olhar vingativo e desconfiado, com medo de que essa mulher branca caísse sobre ele novamente.
Kate olhava-o através dos ramos roçagantes do salgueiro.
- Se eu pudesse, matava-te! - exclamou. Regularmente, como num maquinismo de relógio, o pequeno voltava a cara para trás, ao mesmo tempo que ia correndo para uma abertura da sebe, por onde o rapaz desaparecera.
Kate pensou se deveria, mais uma vez, ir salvar aquela ave desastrada. Mas para quê?
O país devia ter sempre a sua vítima. A América precisa duma vítima. Enquanto o mundo durar, esse continente estará dividido entre vítimas e carrascos. Para quê intervir?
Levantou-se, detestando por igual a ave imprudente e o garoto teimoso.
À beira de água amontoavam-se mulheres. Para oeste, sob o resplendor, erguiam-se as vivendas com o seu ar abandonado, e as torres gémeas da igreja como dois dedos levantados acima da chama rubra das árvores floridas e do negrume das mangueiras. Kate viu a praia de aspecto imundo e aspirou o cheiro do México, que se espalha ao calor, após as chuvas: excremento de homens e de animais, seco ao sol sobre a terra muito seca. E viu as folhas ressequidas, as folhas das mangueiras. E sentiu a atmosfera com o seu leve resíduo de fumo.
"Um dia virá em que eu partirei", disse consigo.
Sentando-se mais uma vez na varanda, escutou o clape-clape das tortillas, vindo do extremo do pátio, o som metálico, tão peculiar, dos pássaros, e percebeu que as nuvens já se acumulavam a ocidente, muito pesadas, engendrando os trovões. E compreendeu que não tolerava mais aquilo: o vácuo e a pressão, a horrível elementalidade do incriado. E o próprio sol, e a própria chuva, ambos estranhos, bárbaros. ! Meditou no olhar sombrio do garoto indígena: misterioso vácuo.
Ele não compreendia que a ave era um ser verdadeiro e vivo, com a sua vida própria. Isso, aquela raça jamais compreenderia. com os seus olhos escuros fitavam o mundo rudimentar onde os elementos são monstros cruéis, assim como o sol é monstruoso e é monstruosa a água torrencial da chuva, e a terra muito seca, ressequida.
E entre a monstruosidade dos elementos tremulam e pairam outras presenças: entes terríveis e rudes, gente branca, os gringos, poderosos como deuses, porém bárbaros, demoníacos. E seres estranhos como certas aves que flutuam no ar, e cobras que se arrastam no chão, e peixes que nadam e que mordem. Rude, monstruoso universo de monstros grandes e pequenos, nos quais o homem se detém por simples resistência e precaução, e nunca, nunca avança para sair das trevas que o rodeiam.

XV
A luz eléctrica em Sayula era tão incerta como tudo o mais. Em teoria, funcionava desde as seis e meia da tarde até às dez da noite. Mas não na prática. Muitas vezes recusava-se a aparecer antes das sete, ou mesmo antes das oito. Mas a pior partida era apagar-se justamente a meio da ceia, ou quando se estava a escrever uma carta. De repente, ouvia-se um estalo, e as trevas da noite mexicana envolviam tudo. E então corria toda a gente às cegas, em busca de velas e de fósforos, chamando uns pelos outros com vozes assustadas. Depois, a luz eléctrica tentava reviver, e via-se tremular nas lâmpadas uma incandescência rubra, sinistra. Todos retinham a respiração. Vinha ou não vinha? Havia ocasiões em que se apagava de vez. Noutras, retomava alento e reaparecia, embora não muito brilhante; contudo, mais valia isso do que nada.
A coisa piorou na estação das chuvas. Noite após noite, a luz falhava. E Kate sentava-se à claridade bruxuleante da vela, enquanto os relâmpagos revelavam as formas escuras das plantas existentes no pátio.
Numa noite dessas, Kate instalou-se na varanda, de costas viradas para a sala deserta onde luzia uma vela. De quando em quando, via os loendros e a papaia no jardim, iluminados pelo clarão dos raios que tombavam como uma chapada azul e silenciosa na escuridão de breu. Rumorejavam trovões ao longe, como jaguares esfomeados que rondassem o lago.
Por várias vezes o portão rangeu e soaram passos no saibro. Passos de alguém que dava "boa noite" a Kate e se encaminhava para as dependências de Juana, onde luzia a claridade frouxa de uma candeia de azeite através da abertura da janela. Em seguida, ouviu ela o murmúrio duma voz recitando ou lendo. E enquanto o vento soprava e a luz dos relâmpagos poisava como um pássaro azul sobre as plantas, aquilo continuou, juntando-se ao rumor das bagas que caíam da árvore das cuentas. Kate sentia-se inquieta e um tanto ao abandono. Percebia que algo de extraordinário se passava na residência da criada, qualquer coisa de secreto.
Mas, no fim de contas, a casa era sua, e tinha o direito de saber o que fazia o pessoal. Levantou-se da cadeira de baloiço e, seguindo pela varanda, deu a volta à sala de jantar, cujas portas que davam para o pátio já estavam trancadas.
No canto para além do poço, viu um grupo sentado no chão, do lado de fora da cozinha de Juana. As mulheres encafuadas nos rebolos, os homens de chapéu na cabeça e serapes nos ombros, todos olhavam para o interior da barraca, onde ardia a candeia e uma voz se fazia ouvir, lenta e monótona.
Ao sentirem os passos de Kate, viraram a cabeça e alguém preveniu os outros da aproximação dum intruso. Juana pôs-se de pé.
- É a niña! - exclamou. - Coitadinha, sozinha toda a noite... Venha cá, niña!
Os homens ergueram-se e Kate reconheceu entre eles o moço Ezequiel, que se descobriu à sua chegada. E ali se encontrava a recém-casada Maria del Carmen. E dentro da barraca, com a candeia pousada no chão, estava Júlio, marido daquela. Além deles, Kate viu Concha, a pequena Maria e um casal desconhecido.
- Ouvi uma voz - explicou Kate. - Não sabia que era você, Júlio... Como tem passado? Ouvi a voz e vim averiguar o que
acontecia.
Houve um instante de silêncio, que Juana quebrou.
- Fez bem em vir, niña, fez bem. Concha, traz uma cadeira
para a niña.
Concha levantou-se a custo e foi buscar a cadeirinha baixa que era a única peça de mobília de Juana, além da cama.
- Não incomodo? - perguntou Kate.
- Não, niña. É amiga de Don Ramon, não é verdade?
- Sou.
- Pois nós estamos... estamos a ler os hinos...
- Ah, sim?
- Os hinos de Quetzalcoatl - acrescentou Ezequiel com súbita arrogância.
- Então, continuem. Posso ouvir também?
- Pode, pode! A niña quer ouvir. Lê, Júlio.
Tornaram todos a sentar-se no chão, e Júlio instalou-se junto da candeia; mas baixou a cabeça, escondendo a cara na sombra do chapéu.
- Entonces! Anda, lê! - insistia Juana.
- Está com medo - murmurou Maria del Carmen, pousando a mão no joelho do marido. - A niña quer ouvir, e portanto deves ler, Júlio.
Depois dum momento de indecisão, o rapaz inquiriu em voz abafada:
- Começo do princípio?
- Sim, do princípio! Lê! - ordenou Juana.
Júlio tirou debaixo da sua manta uma folha de papel, semelhante a um prospecto, no topo da qual sobressaía o símbolo de Quetzalcoatl: o círculo com a ave ao centro.
Então começou a ler, sempre em voz um tanto sufocada:
"Sou Quetzalcoatl de rosto escuro que noutros tempos viveu no México até que, de além dos mares, veio um estrangeiro que tinha pele branca e falava estranha linguagem.
Quetzalcoatl perguntou: - Que vens fazer ao México?
E o outro respondeu: - Venho trazer-lhe a paz.
Quetzalcoatl disse: - Está bem. Já me sinto velho, devo retirar-me. Adeus, povo do México. Adeus, irmão estrangeiro. Chegou a hora de eu partir.
Lentamente ele se foi. Aos ouvidos ressoava-lhe o desmoronar dos templos mexicanos; mas continuou o seu caminho, em passo vagaroso porque era velho e estava cansado de tanto viver. Subiu a encosta da montanha, atingiu a neve dos píncaros, e, quando caminhava, ouviu gritos de agonia e viu clarões de incêndio. Então disse consigo mesmo. "São os mexicanos a gritar! Mas não devo fazer caso porque o meu irmão estrangeiro lhes enxugará as lágrimas."
Assim o velho deus alcançou o cume da montanha e ergueu os olhos para a casa azul do céu. E através duma porta na parede azul viu escuridão profunda, e estrelas e uma lua a brilhar. E por trás das trevas viu uma estrela enorme, uma estrela cintilante.
Então, de volta do velho Quetzalcoatl, irromperam do vulcão penas e asas de fogo. E, com as asas de fogo, Quetzalcoatl ergueu-se no espaço tal um pássaro luminoso e chegou aos degraus brancos do céu que conduzem às paredes azuis, onde está a porta que dá para as trevas. E ali penetrou e desapareceu.
Tombara a noite, Quetzalcoatl fora-se embora, e os homens no mundo viram somente uma estrela atravessar o firmamento, mergulhando na escuridão.
Então os mexicanos disseram "Quetzalcoatl morreu. Até a sua estrela se extinguiu".
De modo que aprenderam os ensinamentos dos sacerdotes que vinham de além dos mares. E assim se tornaram cristãos."
Júlio, que se absorvera na leitura, acabou de repente como se a história terminasse ali.
- É bonito, isso - disse Kate.
- E não é mentira nenhuma - acrescentou a céptica Juana.
- Señora! - gritou Concha. - É verdade que o Paraíso é lá em cima e que as nuvens formam degraus até à beira do céu, como os degraus do cais até ao lago? E é verdade que El señor vem ao cimo da escada e olha cá para baixo e nos vê como a gente olha para a água e vê os peixes?
Sacudindo o cabelo e com a face trigueira erguida para Kate,
Concha esperou pela resposta.
- Não sei tudo - replicou a interpelada, rindo-se. - Mas
parece-me que é verdade.
- Ela acredita - disse Concha, voltando a cara para a mãe.
- E será verdade - perguntou Juana por sua vez - que El Señor, El Cristo del Mundo, é um gringo, e que nasceu no país da niña, assim como a Sua Santa Mãe?
- No meu país, não. Noutro próximo do meu.
- Imagine-se! - exclamou Juana, espantada. - El señor é um gringuito e a Mãe Santíssima uma gringuita! Sim, é de crer... Basta olhar para os pés da niña. Ora vejam! São mesmo pés de madona! - Kate estava sem meias e tinha sandálias com uma simples presilha. Juana tocou-lhe nos dedos, fascinada. - Pés de madona! E Ela, a Mãe Santíssima, é uma gringuita. Nasceu para além dos mares, como a niña
- Sim...
- Ah! Tem a certeza?
- Sim, todos sabemos isso.
- Imagine-se! A Santíssima é uma gringuita, nasceu para além dos mares, como a niña! - Juana falava com um misto de espanto, de horror e de troça.
- E o Senhor é um gringuito? - bradou Concha.
- Foram os gringos que mataram El Señor, niña? Não foram
os mexicanos?
- Não foram os mexicanos - confirmou Kate.
- Foram os gringos?
- Sim.
- E Ele era um gringo?
- Era - respondeu Kate, já não sabendo que dizer a tanta pergunta tola.
- Ora vejam! - comentou Juana, em tom malévolo. - Era gringo, e os gringos crucificaram-no.
- Mas já há muito tempo - apressou-se Kate a explicar. Seguiram-se uns instantes de silêncio. As faces trigueiras das
mulheres e homens sentados no chão erguiam-se para Kate, olhando-a fixamente e considerando cada palavra. Lá fora, os trovões rumorejavam em diferentes lugares.
- E agora, niña - proferiu a voz fria de Maria del Carmen - repudiamos El señor e aceitamos Quetzalcoatl.
- Quetzalcoatl não tem mãe.
- Talvez tenha esposa - sugeriu Kate, irónica.
- Quien sabe! - murmurou Juana.
- Dizem que ele se tornou novo no Paraíso - acudiu a atrevida Concha.
- Quem? - inquiriu Juana.
- Não sei como é que o chamam - murmurou Concha, com vergonha de pronunciar o nome.
Ezequiel interveio com a sua voz de adolescente, que mais parecia um latido:
- Quetzalcoatl! Sim, é agora um deus na flor da idade, e muito bem constituído.
- Dizem isso! Imagine-se! - exclamou Juana.
- Aqui é que diz - volveu Ezequiel. - Está escrito no segundo hino.
- Ora lê, Júlio.
E Júlio, já sem nenhuma relutância, pegou noutro papel.
"Eu, Quetzalcoatl, do México, fiz a viagem mais longa de todas.
Para além da parede azul do céu, para além do Sol, através da planície de trevas onde as estrelas se desenvolvem como árvores, como árvores e arbustos, muito longe no coração de todos os mundos, ao nível da Estrela da Manhã...
E no coração de todos os mundos esperavam aqueles cujas faces não pude ver. E em vozes como abelhas zumbindo murmuravam entre si: "Eis Quetzalcoatl que encaneceu ateando o fogo da vida. Vem só, e devagar."
E então, com mãos que não pude ver, eles pegaram nas minhas mãos, e nos seus braços que não pude ver morri por fim.
Mas, depois de morto, não deitaram fora os meus ossos, nem me lançaram aos quatro ventos, nem aos seis. Não, nem sequer ao vento que sopra para o meio da terra, nem ao que sopra para cima como um dedo que aponta eles me entregaram.
Morreu, disseram, mas não se destruirá.
Tiraram óleo das trevas e ungiram-me a testa e os olhos, os ouvidos, as narinas e a boca, o peito, o ventre e as minhas partes secretas, adiante e atrás; e a palma das mãos, e os joelhos, e a planta dos pés.
Por fim, ungiram-me a cabeça com o óleo tirado das trevas. E então disseram: Está confirmado. Deixemo-lo agora.
Deixaram-me na fonte que borbulha sombriamente do coração do mundo, longe, para além do Sol. E ali estive eu, Quetzalcoatl, em consolador esquecimento.
Dormi um longo sono, e não sonhei.
Até que uma voz chamou: - Quetzalcoatl!
Perguntei: - Quem é?
Não houve resposta, mas a voz repetiu: - Quetzalcoatl!
Onde estás? - disse eu.
Não estou aqui nem ali. Sou tu mesmo. Levanta-te.
Tudo pesava sobre mim, como uma pedra tumular de trevas.
E eu disse: - Sou velho. Como posso afastar esta pedra?
Como é que tu és velho se eu sou novo? Eu desviarei a pedra.
Senta-te.
Sentei-me, e a pedra rolou pelos abismos do espaço.
Falei então comigo: - Sou novo. Mais novo do que os novos, mais velho do que os velhos. Desabrochei como uma flor no caule do tempo, encontro-me no centro da flor da minha natureza humana. Não sofri com o desejo de romper o botão nem ansiei pelos longes como a semente que flutua no céu. Abriu a corola da minha floração, no meio oscilam as estrelas. A minha haste mantém-se no ar, as raízes mergulham nas trevas, o sol não é mais do que uma taça} cheia de mim.
Não sou criança nem velho, sou a flor desabrochada, sou novo.
Levantei-me, estendi os membros e olhei em volta. Vi o Sol por baixo de mim, tal um pássaro ardente pairando ao meio-dia sobre os mundos. E o seu bico era comprido e muito aguçado.
E ouvi uma voz dizer: - Oh, Quetzalcoatl! Esqueceram-te! Esqueceram a serpente emplumada! A serpente-ave silenciosa! Já ninguém pergunta por ti.
E eu respondi: - A serpente do meio da terra dorme nos meus rins e no meu ventre, a ave do ar exterior empoleira-se-me na cabeça, roça o bico no meu peito. Mas sou o senhor de um e outro. Um deus novo, com novos membros e vida, e a luz da Estrela de Alva nos olhos.
Sou Quetzalcoatl, estrela entre o dia e a noite.
Houve profundo silêncio quando Júlio acabou de ler.

XVI
Nas tardes de sábado, emergiam da leve bruma, a oeste, barcaças negras de grandes velas quadradas. Vinham de Tlapaltepec, com chapéus de palha, mantas e loiça de barro; de Ixtlahuacan, Jaramay e Las Zemas, com esteiras, madeira de construção, carvão e laranjas; de Tuliapan, Cuxcueco e San Cristóbal com melancias, tomates, mangas e legumes; e carregamentos de tijolos e de telhas, e mais carvão e madeira das montanhas que se elevam na outra banda do lago.
Ao sábado, Kate saía sempre por volta das cinco horas para assistir à descarga dos barcos na claridade da tarde. Gostava de ver os homens a correrem nas pranchas e a amontoarem na areia seca as melancias que iam transportando - melancias escuras e de ventre pálido, como animais estranhos. E os tomates, lançados numa poça da margem, flutuavam na água como rolhas vermelhas enquanto as mulheres os lavavam.
Os tijolos eram empilhados junto do antigo molhe. E chegavam burros, para levar tudo aquilo, enterrando as patas na areia e agitando as orelhas compridas.
Os carregadores azafamavam-se de volta das barcaças de carvão, andavam cá e lá com sacas de serapilheira.
- Quer carvão de lenha, niña - perguntou um deles, o mesmo homem que trouxera a mala de Kate desde a estação até casa.
- Qual é o preço?
- Vinte e cinco reales duas sacas.
- Ofereço vinte.
- Pois sejam vinte, señorita. E paga-me dois reales pelo transporte?
- O negociante é que paga o transporte - redarguiu Kate. - Mas dar-lhe-ei vinte centavos.
O homem afastou-se, descalço, de pernas à vela, com duas sacas de carvão às costas. Os mexicanos carregam pesos enormes e com ar de que lhes não custa nada.
Cestos de goiabas, de limas e de limões; cestos de mangas, de laranjas, de cenouras; tabaibos em grande abundância, algumas batatas nodosas, cebolas achatadas e dum branco nacarado, abóboras verdes e mosqueadas como rãs... Era um espectáculo curioso, o desfile de cestos, desde a praia até à igreja.
Costumavam descarregar mais tarde a loiça de barro: jarros bojudos, cântaros dum lindo tom vermelho, tachos envernizados e com ornatos brancos e pretos, frigideiras para as tortillas.
Na margem ocidental, corriam homens com uma dúzia de largos chapéus sobrepostos, o que lhes dava um aspecto de pagodes ambulantes. Outros levavam huaraches finamente tecidas e sandálias de correias, e outros ainda rimas de serapes negras com desenhos cor-de-rosa.
Era fascinante. E, contudo, pesava no ar uma sensação de soturnidade. Aquela gente vinha à feira como para um combate; não pelo gosto de vender mas para fazerem concorrência uns aos outros. Luta surda, que se desenrolava entre eles e o comprador eventual - estranho e sombrio rancor sempre presente.
Quando, ao pôr do Sol, tocavam os sinos da igreja, já a feira começava a funcionar. Nos passeios de volta da praça estavam os índios sentados junto das suas mercadorias: pilhas de chapéus, pares de sandálias em fileira, montes de melancias, um estendal de botões de punho e de bugigangas a que chamavam novedades, tabuleiros cheios de bolos. E a todo o instante chegava gente de longe com os seus burros carregados.
Contudo, jamais se ouvia um grito, nunca uma voz se elevava. Nada dessa animação, desse clamor das feiras do Mediterrâneo. Sempre o atrito pesado da vontade, tal uma mó de pedra triturando de contínuo o espírito.
Ao cair da noite os vendedores acendiam as suas lanternas de estanho, e as chamas bailavam nas faces morenas dos homens sentados no chão. Nunca solicitavam o comprador, não lhe mostravam as mercadorias; nem para ele olhavam. Dir-se-ia que o rancor latente sufocava o interesse de vender.
Às vezes, Kate achava a feira mais alegre; mas na maior parte das ocasiões sentia-se como que oprimida por um peso invisível, e a sua vontade era fugir dali, daquele mundo fúnebre.
Corriam boatos de nova revolução e na praça andavam cá e lá soldados armados de punhais e pistolas, de chapéu desabado e com o tipo selvático dos indígenas do Norte. Passeavam dois a dois, falando no seu dialecto, e pareciam mais estrangeiros em Sayula do que a própria Kate.
As barracas de petiscos estavam brilhantemente iluminadas. Viam-se homens sentados nas tábuas, bebendo caldo e comendo com os dedos alimentos escaldantes. Chegava o leiteiro a cavalo, com duas grandes bilhas de leite suspensas da frente da sela. Abria caminho lentamente através do povo, em direcção às barracas. Parando aí, e sem se apear, despejava o leite duma das bilhas na vasilha do freguês. Depois, sempre a cavalo, engolia a sua ceia: uma escudela de caldo e um prato de tamales, ou de tortillas com picado de carne bem apimentada. De roda dele andavam os peóns. Soavam violas quase em surdina. Fendia a multidão um carro vindo da cidade, a abarrotar de raparigas e rapazes, de papás e de meninos.
Que fervilhar de vida por cima do clarão das tochas pousadas no solo! Deslizava lentamente o rio de chapéus e de rebozos. A entrada do hotel resplandecia, iluminada pela electricidade. Moças citadinas exibiam vestidos de organdi branco, vermelho ou azul. Cantavam homens a meia voz. Todo o barulho parecia sufocado, contido.
Estranha impressão de sufocamento, força sombria e negativa da alma dos peóns! Quase inspirava dó ver as esbeltas raparigas de Guadalajara, tão bonitas nos seus vestidos vaporosos, a passearem de braço dado para trás e para diante, procurando despertar a atenção de alguém. E aqueles homens só exalavam o vapor negro da negação, que talvez não fosse senão ódio. Pareciam empestar o ar com a sua hostilidade surda.
Sim, Kate chegava a ter pena dessas mocinhas bonitas, de uma beleza de flor de papel, tão desejosas de serem admiradas e tão desprezadas afinal.
De repente, soou um tiro. Num instante toda a gente se pôs de pé, correu para as ruas, enfiou-se nas lojas. Novo tiro. No outro lado da praça, que se esvaziava rapidamente, Kate viu um homem sentado num banco desfechando a pistola para o ar. Era um patife da cidade, e estava meio bêbado. O povo conhecia-o; seria capaz de baixar a arma e disparar à toa sobre a multidão. Por isso todos abandonavam a plaza e se encafuavam onde podiam.
Mais dois tiros, pum, pum, ainda para o ar. No mesmo momento emergiu um oficial da rua sombria onde ficava o posto militar e correu direito ao bêbado, que, de pernas estiradas, brandia a pistola.
Antes sequer de tomar fôlego, dava-lhe em cada face uma bofetada quase tão sonora como os tiros e arrancava-lhe a arma da mão.
Dois dos soldados do Norte acorreram então e agarraram o homem pelo braço. O oficial disse-lhes qualquer coisa, e eles, depois de fazerem continência, afastaram-se com o prisioneiro.
A multidão voltou a encher a praça, despreocupadamente, e Kate sentou-se no banco, com o coração a bater. Viu o preso passar debaixo duma lâmpada, com um fio de sangue a escorrer-lhe na cara. Juana, que fugira, reapareceu sem demora e, pegando na mão de Kate, disse-lhe:
- Olhe, niña! É o general!
Kate levantou-se, surpreendida. O oficial estava à sua frente e cumprimentava-a.
- Don Cipriano! - exclamou ela.
- O próprio. Aquele ébrio assustou-a?
- Não muito. Foi mais o sobressalto... Não senti má intenção da parte do homem.
- Pois não. Estava simplesmente embriagado.
- Bem... São horas de eu voltar para casa.
- Posso acompanhá-la?
- Se quiser...
Cipriano postou-se ao lado de Kate e ambos contornaram a igreja para alcançar a borda do lago. A Lua brilhava por cima da montanha, soprava vento fresco, mas não agreste, vindo do ocidente. Viam-se luzes nos barcos acostados, umas exteriores, outras interiores, sob o toldo de lona. As mulheres preparavam a ceia.
- Linda noite! - exclamou Kate, respirando fundo.
- De Lua quase cheia - acrescentou Cipriano.
Juana ia-lhes no encalço e, atrás dela, seguiam dois soldados de chapéu desabado.
- Aqueles soldados vêm a escoltá-lo? - perguntou Kate.
- Julgo que sim.
- Este luar - disse ela, voltando ao assunto anterior - não é suave e amigo como o de Inglaterra ou da Itália.
- Contudo é do mesmo planeta - replicou o general.
- Mas o luar é diferente na América. Não nos torna felizes como na Europa. Dá impressão de que nos quer mal.
Seguiu-se uma pausa.
- Talvez haja na señora algo de europeu que ofenda a nossa lua mexicana - observou então Cipriano.
- Mas eu vim cá de boa fé.
- Boa fé europeia. É possível que não seja igual à boa fé mexicana.
Kate ficou calada, quase estupefacta.
- Que ideia, a vossa lua a protestar contra a minha presença!
- comentou, por fim, rindo ironicamente.
- Que ideia protestar contra a lua mexicana! - replicou ele.
- Mas eu não protestei!
Tinham chegado à esquina da rua de Kate. Na volta, havia um bosquete de árvores e debaixo delas, por trás da sebe, algumas cabanas de colmo. Muitas vezes Kate sorria ao ver o burro a espreitar por cima do murinho de pedra, o carneiro preto de chifres recurvos amarrado a uma árvore e o garoto seminu correndo a esconder-se sob a cortina de espinheiros.
Kate e Cipriano sentaram-se na varanda da Casa das Cuentas. Ela ofereceu-lhe um vermute, mas ele recusou.
Conservaram-se silenciosos. Só se ouvia o débil pip-pip do motor eléctrico, próximo da estrada. Então, por trás das bananeiras, cantou um galo em voz forte e áspera.
- Que disparate! - disse Kate. - Os galos não costumam
cantar a estas horas.
- Só no México - replicou Cipriano, rindo-se.
- Sim, só aqui...
- É muito agradável a sua casa, o seu pátio - disse Cipriano.
Kate ficou calada.
- Não gosta? - perguntou ele.
- Gosto mas... não tenho nada com que me entretenha, compreende? As criadas não me deixam mexer. Se varro o quarto, olham-me embasbacadas, repetindo: Que niña! Que niña! Exactamente como se eu estivesse a fazer o pino para as divertir. Limito-me a coser, embora não me interesse pela costura. Que representa
isto numa existência?
- E lê! - disse Cipriano relanceando um olhar pelas revistas
e pelos livros.
- Mas é tudo tão estúpido, tão falho de vida o que se encontra
nos livros e nos jornais!
- Que gostaria então de fazer? Diz que a costura lhe não interessa... As mulheres de Navajo, quando tecem as mantas, deixam
na ponta um buraquinho para a alma sair; não tecem a sua alma juntamente com a manta. Sempre me pareceu que a Inglaterra tecia a alma nas suas fábricas, e em tudo o que fazia, sem deixar o buraco para ela sair... Por isso toda a sua alma está agora nas mercadorias e em mais nenhuma parte.
- Mas o México não tem alma - redarguiu Kate. - Engoliu a pedra do desespero, como diz o hino.
- Acha? Pois não sou da sua opinião. A alma é uma coisa que se faz, como um desenho num tecido. É muito bonito enquanto as lãs cruzam e entrecruzam os seus fios e as suas cores diversas, e que o desenho aparece a pouco e pouco. Mas, uma vez acabado, perdeu o interesse. O México ainda não começou a tecer o desenho da sua alma. Ou principiou agora... com Ramon. Não acredita em Ramon?
Kate hesitou antes de responder.
- Em Ramon, sim. Mas não acredito que aqui, no México, surtam algum efeito as suas tentativas - murmurou, lentamente.
- Ele está no México e no México deve tentar. Porque não faz outro tanto?
- Eu?
- Sim, a señora. Ramon não crê em deuses sem mulheres, conforme diz. Porque não há-de ser a mulher do panteão de Quetzalcoatl? A deusa?
- Eu, uma deusa no panteão mexicano! - exclamou Kate, soltando uma gargalhada.
- Porque não?
- Nem sequer sou mexicana!
- Daria muito bem uma deusa, no meu panteão e no de Ramon.
Ardia na face de Cipriano uma chama de desejo, enquanto ele a fitava de olhos brilhantes; espécie de ambição intensa de que ela era em parte o objecto.
- Não me sinto com propensão para deusa de templos mexicanos - protestou Kate. - Acho o México um tanto assustador. Don Ramon é extraordinário, mas receio muito que o aniquilem.
- Ajude-nos a impedir isso.
- Como?
- Case comigo. Queixa-se de não ter nada que fazer. Pois bem; case comigo e auxilie-nos. Ramon diz que necessitamos de uma mulher. Seja essa mulher e terá muito que fazer.
- Mas não posso auxiliar-vos sem casar? - redarguiu Kate.
- Como? Não é possível.
E Kate sentiu que ele falava verdade.
- É que... não sinto impulso para o matrimónio... consigo... E, sendo assim, porque hei-de aceder?
- Porque não?
- Para lhe ser franca, não me sinto bem no México. Os olhos negros deste povo fazem-me arrepiar a pele e oprimir o coração. Emana do país certo horror, e não quero horror na minha alma.
Cipriano calava-se, longínquo, imperscrutável. Kate não lhe adivinhava os pensamentos, só lhe via como que uma nuvem sombria pairando-lhe no rosto.
- E porque não? - disse ele por fim. - O horror é qualquer coisa de verdadeiro. Porque não há-de haver um pouco de horror reunido a todo o resto?
Fixava-a de expressão grave, e parecia exercer nela forte pressão moral.
- Mas... -balbuciou Kate.
- É natural que sinta também certo horror pela minha pessoa... E talvez eu o sinta igualmente por si, pelos seus olhos claros, pelas suas mãos brancas e fortes. Todavia, isto é bom, é agradável:
Kate olhava-o, pasmada; a sua vontade era fugir, fugir daquele
país deprimente.
Cipriano continuou:
- Deve habituar-se a ter na sua vida uma parcela de medo e uma parcela de horror. Case comigo e conhecerá outras coisas muito diferentes. A pitadinha de horror é como o gergelim nos bolos, dá sabor à existência.
Falava com estranha lógica, observando-a com olhos cintilantes. O seu desejo, embora físico, dir-se-ia impessoal, sem objectivo. E Kate, perante ele, era como se tivesse outro nome e circulasse num mundo diverso; como se se chamasse, por exemplo, Itzpapatotl e houvesse nascido em qualquer região desconhecida.
Contudo, ele impunha-lhe a sua vontade.
Kate estava anelante de pasmo, porque Cipriano lhe fizera ver a possibilidade física de o desposar, ideia que até aí jamais lhe passara pela cabeça. Mas não seria ela própria, a verdadeira Kate, quem casaria com Cipriano. Seria outra mulher, o ser desconhecido que habitava dentro dela.
Irradiava do general uma paixão secreta e jubilosa.
- Não creio que me seja possível - disse Kate.
- Experimente e logo verá.
Sentindo frio, a irlandesa foi ao quarto buscar um abafo e regressou envolta num xaile espanhol de tom castanho, profusamente bordado de seda cor de prata. Enrolava nervosamente os dedos nas longas franjas escuras.
Na realidade, achava Cipriano sinistro, quase repelente. Não queria, contudo, pensar que estava simplesmente com medo, que lhe faltava coragem... Ficou sentada, de cabeça pendida. A luz incidia-lhe nos cabelos sedosos e no bordado prateado do xaile, que ela cingia aos ombros como as índias usam os rebozos. Cipriano observava-a, e ao seu xaile sumptuoso.
- Então? - disse ele de repente. - Quando se realiza?
- O quê - replicou Kate, verdadeiramente assustada.
- O nosso casamento.
Olhou-o, espantada de ele ter ido tão longe. Mas nem nesse momento sentiu ânimo para o repelir.
- Não sei - respondeu.
- Em Agosto, por exemplo? No dia 1 de Agosto?
- Não quero fixar nenhuma data.
Subitamente, a tristeza, a cólera latente nos índios dominou Cipriano. Sufocando, porém, o acesso, perguntou com fingida indiferença:
- Quer ir amanhã a Jamiltepec? Ramon deseja conversar consigo.
- Parece-lhe que deva ir?
- Sim. Iremos ambos de automóvel, amanhã de manhã. Está combinado?
- De facto, gostaria de tornar a ver Don Ramon.
- Esse não lhe mete medo? Não lhe inspira o menor horror, hem? - volveu Cipriano com um sorriso subtil.
- Não, mas Don Ramon não é bem mexicano.
- Não é bem mexicano?
- É mais europeu.
- Que ideia! Pois olhe que para mim é o México personificado.
Kate ficou uns momentos calada, a reflectir, até que declarou:
- Irei a Jamiltepec no barco de remos, ou então na lancha de motor do Alonso. Em qualquer caso estarei lá amanhã por volta das dez.
- Muito bem - disse o general, pondo-se de pé.
Depois de ele partir, Kate ouviu um tambor soando na plaza. Devia haver ali nova reunião dos Homens de Quetzalcoatl, mas não sentia desejo nem coragem de sair outra vez nessa noite.
Foi-se deitar, e ficou estendida às escuras. Pelos interstícios das janelas via a brancura do luar e através das paredes ouvia a pulsação do tambor. Tudo aquilo a assustava e a oprimia. Tinha de fugir... Faria as malas à pressa e desapareceria dali. Talvez tomasse o comboio até Manzanillo e daí embarcasse para a Califórnia, Los Angeles ou San Francisco. Fugir, voar para uma terra de homens brancos onde pudesse de novo respirar livremente. Que bom! Sim, eis o que devia fazer.
A noite adensava-se. Cessara o som de tambor. Kate ouviu Ezequiel regressar a casa e deitar-se na esteira diante da porta. Só se ouvia a voz rouca dos galos cantando ao luar. No quarto, como o riscar dum fósforo, surgia aqui e ali a claridade esverdeada dum pirilampo.
Inquieta, acobardada, Kate acabou por adormecer. E foi um
sono profundo.
Inesperadamente, ao acordar na manhã seguinte, experimentou uma sensação de força. Eram seis horas, o sol infiltrava riscos de oiro através das fendas do postigo. Abrindo a janela que deitava para a rua, olhou através da grade de ferro para o caminho sombreado, e, por cima do muro, para as folhas de bananeira, franjadas, dum verde translúcido, e ainda para a cabeça desgrenhada das palmeiras altas e para as torrres geminadas da igreja, coroadas da cruz grega de quatro braços iguais.
Na rua já havia animação: lentamente, em direcção ao lago, sob a azulada sombra da parede, avançavam algumas vacas enormes; um bezerro de grandes olhos e espírito aventureiro foi, pulando, contemplar a erva verde e as flores através do portão gradeado. O peón que o seguia ergueu ao ar os dois braços, num gesto silencioso, e o bezerro afastou-se dali. Só se distinguia o rumor do tropear do gado.
Passaram depois dois rapazes que tentaram com grande esforço puxar um toiro novo para o lago. O animal sacudia as ancas aguçadas e atirava coices a que os seus condutores se esquivavam. E, se estes lhe batiam no lombo, dava-lhes marradas com a sua cabeça romba de novilho. Naquele estado de semifúria em que os índios caem quando lhes opõem resistência, os rapazes lançaram mão do recurso habitual: desviaram-se do animal, começaram a arremessar-lhe pedras.
- Não lhe atirem pedras! - gritou Kate da janela. - Conduzam-no como devem!
Sobressaltaram-se como se o céu acabasse de se abrir, largaram as pedras e foram com ar vexado atrás do touro, que desatara a correr e se afastava aos pinotes.
Surgiu uma velha defronte da janela oferecendo um prato de folhas novas de cacto, picadas, pela soma de três centavos. Kate não era grande apreciadora de cacto como legume, mas sempre comprou. Um velhote apresentou um frango entre as grades que o separavam de Kate.
- Vá ao pátio - disse ela.
E fechou a janela para a rua, porque a invasão começara. Esta, porém, continuou noutro lado.
- niña! niña! - chamou a voz de Juana. - O velho diz que a niña compra o frango. É verdade?
- Quanto custa? - gritou Kate, enfiando o roupão.
- Dez reales.
- Ah, não! - disse Kate, escancarando as portas que deitavam para o pátio e aparecendo com o seu leve roupão cor-de-rosa pálido bordado de flores brancas. - Não dou mais do que um peso.
- Um peso e dez centavos - pediu o velho, balançando a ave na mão. - É um galo bonito e gordo.
Estendeu-o a Kate, para que visse como era gordo. Ela, contudo, fez-lhe sinal que o entregasse a Juana. Juana pegou nele e fez uma careta.
- Não pago mais de um peso - repetiu Kate.
O homem esboçou um gesto de assentimento, recebeu o dinheiro e desapareceu como uma sombra. Concha, que, entretanto, se aproximara, agarrou por sua vez no frango e logo declarou com desprezo:
- Está muy flaco.
- Põe-no na capoeira - disse Kate. - Vamos deixá-lo engordar.
O pátio estava agradável, com sol e sombra. Ezequiel enrolara a sua esteira e fora-se embora. Na ponta dum arbusto ostentavam-se enormes cardeais cor-de-rosa. Flutuava no ar o leve aroma de rosas bravas. As mangueiras pareciam mais sumptuosas de manhã, com os seus frutos pendentes das folhas bronzeadas.
- Está muy flaco - repetia Concha, enquanto levava o frango para o galinheiro, debaixo das bananeiras. - É só pele e osso.
Todas três observaram interessadas a entrada do galo novo na capoeira, onde já existiam algumas aves. O outro, mais velho e mais antigo na casa, refugiou-se no extremo oposto e olhou para o recém-vindo com ar ameaçador. O muy flaco ficou encolhido num canto. De repente, distendeu-se e fez ouvir um cocorocó agudo, eriçando de modo agressivo as penas avermelhadas. O galo antigo movia-se inquieto, preparando a vingança. As galinhas é que não ligaram nenhuma importância ao intruso.
Kate riu-se e voltou para o quarto, onde se vestiu ao esplendor da manhã. Diante da janela passavam mulheres silenciosas, com o cântaro de barro ao ombro. Iam buscar água do lago. Levavam sempre o braço por cima da cabeça, para segurar a bilha no outro ombro, o que lhes dava um aspecto contorcido, muito diferente do porte erecto das mulheres que transportam água na Sicília.
- niña! niña! - gritava Juana lá fora.
- Espera um instante - disse Kate. Era outro hino de Quetzalcoatl.
- Veja, niña, niña, o novo hino de ontem à noite. Kate pegou no papel e sentou-se na cama para o ler.
Quetzalcoatl baixa o olhar para o México. Riu-se Quetzalcoatl ao ver o Sol dardejar sobre ele raios ferozes.
Ergueu a mão, e com a sua sombra susteve o Sol.
Assim ultrapassou o astro amarelo que se contorcia como um
dragão.
E, tendo-o ultrapassado, viu a terra a seus pés.
E viu o México, tal uma mulher morena reclinada com os seus seios de pontas brancas.
Aproximou-se, surpreendido, e contemplou-a.
Contemplou os seus comboios e os seus automóveis.
As suas cidades de pedra e as suas cabanas de colmo.
E disse consigo: - Na verdade isto é estranho.
Sentou-se no côncavo duma nuvem e viu os homens a trabalharem nos campos vigiados por estrangeiros.
Viu os homens a cambalear, ébrios de aguardente.
Viu as mulheres que não eram limpas.
Viu o coração de todos, corações negros, pesados com a pedra da ira.
E disse consigo: - Estranho povo, este que encontrei.
Inclinando-se para fora da nuvem, chamou então:
Olá! Olá! Mexicanos! Olhai um instante para mim.
Voltai os olhos para este lado, Mexicanos!
Eles, porém, não olhavam.
Olá, Mexicanos! Olá!
Decerto se tornaram surdos, pensou.
De modo que soprou o seu hálito na face deles.
Mas no peso da estupefacção nenhum deu por isso.
Olá! Belo povo!
Corria uma estrela cadente como cão branco numa planície.
Ao som do seu assobio veio tombar-lhe na mão.
Na sua mão estava e na sua mão não se extinguiu.
Era a pedra da mutabilidade.
Fê-la saltar na palma e com ela brincou.
Então viu o lago e deixou cair a estrela,
Que mergulhou na água.
Dois homens levantaram a cabeça
Olá! Mexicanos, disse ele. Acordastes ambos?
E riu-se, e um deles ouviu-o rir.
Porque ris? - perguntou o homem a Quetzalcoatl.
Oiço a voz do meu primeiro homem perguntando-me porque rio?
Olá, Mexicanos! É divertido
Vê-los tão sombrios e tão pesados.
Primeiro o homem do meu nome! Escuta-me!
Eis a minha insígnia.
Prepara um lugar para me receber.
Despeja os templos das suas imagens.
Ao sétimo dia, que todo o homem se lave e unte a pele com óleo.
Que não tenha bichos a passear-lhe no corpo nem na sombra
dos cabelos".
E o mesmo quanto às mulheres.
Diz-lhes que são todos insensatos e que me rio deles.
A primeira coisa que fiz. ao vê-los foi rir-me à sua custa.
Porque se assemelham a rãs com pedras na barriga, sem poderem saltar.
Diz-lhes que se desembaracem das pedras.
Que se libertem do peso que os tolhe e os enche.
Ou eu os arrasarei a todos.
Abalarei a terra e tragá-los-ei, com as suas cidades.
Enviarei sobre eles fogo e cinzas.
O fragor do trovão transformará o seu sangue em leite corrompido.
E eles derramarão sangue corrupto e pestilento.
Os próprios ossos se desfarão em pó. Diz-lhes isto, primeiro homem do meu nome. Porque a Lua e o Sol tudo vêem com olhos brilhantes. E a Terra está pronta a sacudir as pulgas. E as estrelas estão prontas a lançar pedras aos homens. E o ar que sopra com suavidade nas narinas das criaturas está pronto a soprar com violência, para que todos pereçam. As Estrelas e a Terra, o Sol, a Lua e os ventos Preparam de roda de vós a dança guerreira, ó homens! Iniciá-la-ão quando eu der o sinal. Porque o Sol, as Estrelas, a Terra e as próprias chuvas estão cansadas
De impelir e rolar até aos vossos lábios a substância da vida.
E dizem:
Acabemos com essas tribos de homens fedorentos, com essas
rãs que não sabem saltar.
com esses galos que não sabem cantar,
com esses porcos que não sabem grunhir,
com essa carne que cheira mal,
com essas palavras vãs,
com essa vérmina do dinheiro,
com esses homens brancos, e vermelhos, e amarelos, e pretos.
Não são brancos, nem vermelhos, nem amarelos, nem pretos,
Mas todos estão sujos.
É necessário uma limpeza em todo o mundo. Porque os homens são como vermes Que devoram a terra e infestam as chagas. Eis o que as Estrelas e o Sol, a Lua, e o vento e a chuva discutem entre si, prontos a atacar-vos. Por isso eu venho.
Para vos limpar por dentro e por fora, Para erguer a pedra tumular da vossa alma. Para vos preparar a serdes homens. E preparar-vos para outras coisas ainda.
Kate leu e releu o longo folheto, e a manhã radiosa pareceu encobrir-se duma obscuridade fremente. Tomou o café na varanda. As papaias dir-se-iam destilar gotas duma fonte invisível de vida inumana.
Parecia-lhe ver o impetuoso germinar do cosmos, despertando numa existência fantástica. Os homens não passavam de moscas verdes aglomeradas na ponta dos renovos. Era monstruoso o rolar e desenrolar da vida do cosmos, tal se o próprio ferro crescesse como líquenes nas entranhas da terra e, cessando de crescer, se preparasse para a morte. Porque o ferro e a pedra terminarão a sua vida quando a hora vier. E os homens são menos do que moscas, enquanto viverem apenas para o seu sustento. Parasitas sobre a face da terra.
Kate encaminhou-se para a beira do lago - inteiramente azul na claridade matinal. Na outra margem erguiam-se as montanhas escalvadas, mas em baixo, no sopé, luziam árvores e a mancha clara das aldeias.
Perto dela, contra a luz, cinco vacas metiam o focinho na água. Enchiam as suas bilhas mulheres ajoelhadas nas pedras. Em varas bifurcadas, fincadas na areia, secavam redes de pesca, e ali pousara um passarinho vermelho, como uma gota de sangue caída das artérias do ar.
Emergindo das cabanas de colmo sob as árvores, aproximou-se o garoto desalmado, o da ave aquática. Trazia qualquer coisa na mão fechada. Abriu-a ao chegar junto de Kate e apresentou-lhe na palma três pucarozinhos de barro: as ollitas que os nativos doutros tempos atiravam à água para os seus deuses.
- Muy chiquitas! - disse o pequeno na sua voz brusca. Compra-as?
- Não tenho dinheiro comigo. Amanhã.
- Amanhã? - repetiu o miúdo, como um tiro de pistola.
- Amanhã.
Ele perdoara a Kate, mas esta não lhe perdoara. Alguém cantava na frescura da manhã; som agradável, que se diria produzir-se por si mesmo.
com passos felinos, vagueava por ali um rapazinho armado de fisga. Mas o pássaro, que era como um pingo de sangue nas redes quase invisíveis, abriu as asas e desapareceu num voo fulgurante.
Kate conhecia essas manhãs à beira do lago. Faziam-lhe experimentar uma espécie de hipnose quase semelhante à morte. Destacavam-se pássaros rubros no verde tenro dos salgueiros. Passava o aquador com uma vara aos ombros e uma lata de água quente suspensa de cada lado. Vinha das fontes térmicas, descalço e de pernas ao léu, trotando em silêncio sob a sua carga, com o belo rosto moreno sombreado pelo chapéu de abas largas.
Emergiam da água cabecinhas negras, em grupos. Seriam cabeças? Ou seriam aves?
Kate sabia de antemão como o dia havia de correr. A pouco e pouco, o sol intensificava-se e a pouco e pouco a electricidade se ia acumulando, conforme se aproximava a tarde. Nas horas de calor a praia exalava um cheiro a lixo e a urina.
Tudo perdia a nitidez à claridade ofuscante, a atmosfera espessava-se e Kate sentia a electricidade premir-lhe a nuca tal um ferro quente. Aquilo entorpecia-a, como a morfina. Entretanto, por trás das montanhas, erguiam-se nuvens tais árvores brancas, e, enquanto a tarde desfalecia em silêncio, estendiam ramos negros no céu, afugentando a luz.
A meio da sonolência da sesta desencadeava-se a trovoada e
tombavam os aguaceiros.
Vinha a hora do chá, descia a tarde... Os últimos navios de vela esperavam que o vento rodasse. Este soprava de oeste, e os barcos que se dirigiam para leste já haviam partido. Mas os que pretendiam ir em direcção oposta, esperavam, esperavam, enquanto a água lhes marulhava sob o fundo chato.
A barcaça de Tlapaltepec aguardava até noite fechada. Costumava ancorar a alguns metros de distância, e, ao anoitecer, os seus passageiros desciam a praia para recolher a bordo e amontoavam-se em grupos à beira do lago.
Vinha ajudá-los a embarcar um indivíduo entroncado, de calças arregaçadas. Os homens postavam-se de costas à sua frente, de pernas abertas; e ele, baixando-se de repente, enfiava a cabeça entre as coxas daqueles, punha-se de pé, e avançava na água com a sua carga humana.
Quando se tratava de transportar uma mulher, agachava-se diante dela para que se lhe instalasse no ombro. com o braço direito rodeava as pernas da criatura que se lhe agarrava à cabeça, e assim a levava para bordo com a maior facilidade.
Em poucos minutos o barco ficava cheio. Debaixo do toldo, em que ardia uma lanterna, sentavam-se em esteiras, desdobravam mantas para se estenderem e dormir.
A vela tombava em pregas de volta do mastro. Provavelmente não partiriam antes da meia-noite. E então seria a rota para Tlapaltepec, com os seus caniços no extremo do lago, as suas praças mortas, as suas casas de adobe negro, os seus caminhos em ruínas, e o seu estranho silêncio tumular, como Pompeia...
Kate conhecia-o bem. Tão estranho e tumular esse silêncio, que a assustava e confundia.
Hoje, porém, não passaria toda a manhã a vaguear na praia. Devia ir a Jamiltepec numa lancha de motor, para visitar Ramon e conversar com ele a respeito da possibilidade do seu casamento com Cipriano.
Ah, como podia decidir-se a tal matrimónio e assim entregar à morte o corpo? Aceitar esse fardo de trevas, consentir em morrer antes da morte, em desaparecer enquanto ainda usufruía a luz do Sol?
Não. Antes fugir para os países de homens brancos.
Apesar de tudo, foi falar com Alonso e combinar com ele a questão da lancha.

 

 

                                      CONTINUA

 

 

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